UM LEÃO POR DIA

por

Fabio Gomes

(Um quarto sem muita decoração de um

lado e bem produzido de outro. Nathan,
caracterizado de drag queen, se senta
em frente a uma penteadeira com uma
filmadora digital, retira os sapatos e
começa a gravar um video.)

NATHAN
Olá, minhas delícias! Como vocês estão? Pra quem está
chegando agora, eu sou Mimi St. Clair e hoje estou gravando
esse video em tom de desabafo porque ando me sentindo no
limite com muito do que tenho visto por aí diariamente. Já
peço desculpas caso o assunto de hoje não faça o menor
sentido, mas eu nem escrevi roteiro. Decidi gravar só depois
que cheguei em casa.

(remove as unhas postiças e os

brincos)
Aproveita e já comenta aqui embaixo o que vocês acharam dessa
peruca que ganhei da minha amiga Scarlett. Lindona, né?
Grande, eu gosto. Vocês sabem: “Quanto mais alta a peruca,
mais perto de Deus”. É meio que sobre isso que eu vou falar
daqui a pouco, mas vamos por partes.

(remove os grampos da peruca e

a tira delicadamente)
Tem quase dois anos que saí da casa da minha mãe e vim morar
com o Victor, meu amigo lindo que vocês conhecem e cobiçam.
Links na descrição. (pausa) Assumir a responsabilidade de
cuidar de uma casa, um apartamento pequeno como esse, que
seja, transformou em mim o que eu nem acreditava ser possível
transformar.

(tira a faixa elástica da

cabeça e remove os cílios
postiços)
Vocês podem pensar que eu já deveria estar acostumado ou
muito além e acima disso que vou falar, mas não, não estou.
Não estou e nem acho que ninguém deva se acostumar às
situações patéticas que nos fazem passar nas ruas, no
trabalho e na internet. Sempre digo isso a todos os meninos
que pensam em se montar, que vocês precisam estar muito bem
consigo mesmos pra dar esse passo, sabem? Não é só peruca e
esse monte de maquiagem. Não é só glamour! São agressões de
todos os tipos, de todos os lados, vocês conhecem o mundo
onde a gente vive. Nelson Rodrigues escreveu certa vez que
antigamente os idiotas conheciam e tinham vergonha de sua
idiotia, até que um dia um deles tomou coragem de enfrentar a
sociedade e foi seguido por outros como ele.
Podem ter certeza que, pra cada drag queen, existem uns cento
e cinquenta idiotas.

(passa lenços umedecidos no

rosto e pescoço)
Adoro uns que aparecem aqui pra comentar de vez em quando e
soltam o famoso “o que meu filho vai pensar?”. (alterado) Meu
amor, a educação do seu filho não é problema meu! Eu não vou
viver ou deixar de viver minha vida em função do que seu
precioso filho vai pensar, dá pra colocar isso na cabeça?

(pega um chumaço de algodão com

demaquilante e esfrega sobre
as sobrancelhas e pálpebras)
Vocês estão cansados de saber que não sou aquele macho alfa
que muita gente na minha família e na sociedade gostaria que
eu fosse. A voz que uso pra Mimi é minha própria voz. Desse
jeitinho, que parece que um gato vai pular pra fora da minha
boca cada vez que começo a falar. (pausa) Sempre que digo que
não conheci meu pai, logo apontam esse como sendo o motivo de
eu ser gay. Deixa eu chegar mais perto pra ver se vocês
conseguem ver uma coisa. (se aproxima da câmera) Estão vendo
essa marca aqui perto do meu lábio superior? Isso aqui foi
presente de um tio quando eu tinha uns 9 anos de idade. “Fala
que nem homem!”, e me deu um tapa com as costas da mão, tipo
esses de novela. Contou depois que caí de bicicleta. (pausa)
Nunca deixava de ir à Igreja. Nunca casou, também. Morreu de
câncer na garganta. Feio demais, nem queiram imaginar.

(passa mais lenços umedecidos

no rosto e pescoço)
Como excluído social e concentrando em mim tantas minorias
quanto uma pessoa é capaz, preciso matar um leão por dia só
pra existir. Os autodenominados tão puros de coração, com um
salmo pronto no status do WhatsApp ou no perfil do Facebook,
são os que mais fazem da minha vida um verdadeiro inferno.
“Pessoas de bem”. (alterado) Eu ando com um ódio dessas
pessoas de bem que vocês não fazem ideia. É tudo em nome da
família, em nome de Deus. A sociedade que julga uma mulher
pela roupa que veste é a mesma que diz que homem não chora. E
isso é ruim pra todo mundo. Pra mulher que é agredida verbal
e fisicamente, e pro homem que tem certeza que ele precisa
ser um troglodita. Homens e mulheres, independente de
orientação sexual, todos vítimas de uma enorme imbecilidade.
“A liberdade é defendida com discursos e atacada com
metralhadoras”. Essa frase de Drummond continua atual, mas se
você só quer tirar foto com a estátua na praia de Copacabana,
não vai saber disso. E dizem que, depois que a internet
chegou, as distâncias ficaram mais curtas...

(confere o tempo de gravação na

filmadora)
Vivam. Cuidem-se bem. Sejam o que vocês quiserem ser, desde
que não comprometa a integridade física de vocês e de mais
ninguém. Prometem? Se eu, esse belo espécime da bicha mais
rejeitada pela família tradicional brasileira tenho mais de
cem mil seguidores e saio de casa montada até pra dar
entrevistas, vocês não podem parar.
E como esse video já está ficando longo demais, deixo vocês
com uma reflexão: “Não é sobre vencer, é sobre não desistir”.
Nelson Rodrigues outra vez? Clarice Lispector? (sorri) Não,
meus amores: Lady Gaga.

FIM