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VALTER DA ROSA BORGES
RECIFE – 2011
N ovestilo – Edições do Autor
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Nada nos engana tanto quanto a nossa opinião
Leonardo Da Vinci
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POR QUE ESTE TEMA?
Desde a minha juventude, o tema Deus me fascina. Ora crente, ora duvidoso, refleti
inumeráveis vezes sobre a sua existência ou não. Como era de se esperar, não cheguei a
nenhuma conclusão. E nunca chegarei. Apesar disso, jamais me abalei em conviver com os
paradoxos. Aliás, gosto dos paradoxos, porque a lógica é incapaz de lidar com a ilimitada
complexidade da vida.
Decidi, por fim, escrever um livro sobre o maior de todos os paradoxos - Deus. Para
isso, recolhi tudo o que havia escrito sobre Deus e acrescentei novas ideias para enriquecer o
tema. Para isso, me fragmentei em seis personagens - o teólogo, o místico, o poeta, o cético, o
filósofo e o cientista - para abordar o assunto sob as mais diversas perspectivas. Não tenho
preferências por nenhum deles, porque todos sou eu, no tumulto de minhas contradições.
A vida não teria qualquer sabor se tudo fosse unânime.
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TEMÁRIO
Realidade ............................................................... 11
Natureza ................................................................ 22
Caos e ordem.......................................................... 29
Criação .................................................................. 39
Evolução................................................................. 55
Vida ....................................................................... 61
Teleologia ............................................................. 70
Deus...................................................................... 77
Fé.......................................................................... 111
Ação de Deus no mundo.......................................... 125
Antropomorfismo .................................................. 131
Atributos ................................................................ 134
Imortalidade ......................................................... 139
Imutabilidade ........................................................ 144
Infinitude .............................................................. 149
Unidade ................................................................ 151
Imanência e transcendência ................................... 154
Onisciência............................................................ 166
Onipresença .......................................................... 172
Onipotência .......................................................... 180
Liberdade .............................................................. 188
Amor ..................................................................... 196
O bem e o mal ........................................................ 198
Justiça ................................................................... 213
Perfeição............................................................... 217
Sofrimento ............................................................ 222
Ateísmo.................................................. ............... 233
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A REALIDADE
Cientista – O que é, então, a realidade, seja ela a matéria ou Deus? Benedito Espinosa
afirmou que Deus é a substância de todas as coisas. Parece -nos que a realidade é uma
substância única, em vários níveis de manifestação, dos quais a matéria é um deles.
Cientista – Essa indagação suscita outra: de que são feitos os átomos e as partículas
subatômicas? Se afirmarmos que é de matéria, caímos da tautologia de dizer que a matéria é
feita de matéria, ou de fragmentos de matéria cada vez menores, que não percebemos,
embora a ciência ainda não tenha encontrado o fragmento indivisível da matéria. O átomo não
é matéria, porque esta resulta do modo como os átomos se organizam. Ela não é causa, mas
efeito das mais variadas formas de organização atômica.
Cético – A matéria é tudo aquilo que é apreensível pelos nossos sentidos ou por suas
extensões artificiais. Por isso, à medida que aumentamos a capacidade da nossa
instrumentação tecnológica, percebemos que o universo material é cada vez maior do que
pensávamos.
Cientista – Nunca conheceremos toda a realidade. São os nossos sentidos que criam a
nossa realidade, decodificando os estímulos recebidos do mundo exterior. O conjunto de
todos esses estímulos nos proporciona a impressão da “realidade” da matéria. Assim, as
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“propriedades” da matéria - forma, cor, peso, aroma, sabor, impenetrabilidade – são
decodificações da nossa estrutura sensorial e não de uma matéria objetivamente real.
Gregory Bateson ressaltou a influência da percepção em relação ao universo que
supomos conhecer. Disse ele: "As regras do universo que acreditamos conhecer estão
profundamente enterradas em nossos processos de percepção."
Fritjof Capra foi mais contundente: "Os padrões que os cientistas observam na
natureza estão intimamente relacionados com os padrões de suas mentes, com os seus
conceitos, pensamentos e valores. Por isso, os resultados científicos que obtêm e as aplicações
tecnológicas que investigam estarão condicionados pela estrutura de suas mentes."
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Cientista – As propriedades da matéria são as propriedades do observador.
Materialidade é a relação entre seres e coisas do mesmo nível fenomênico, pois a matéria é a
teia de interações entre os observadores.
O observador isolado cria sua própria realidade subjetiva. Os observadores em
interação criam uma “realidade objetiva” com a sua própria “materialidade”. Se a realidade é
criação dos observadores, novas coisas podem ser inventadas ou descobertas desde que haja
concordância entre eles, ao menos, na sua maioria. A aceitação de uma percepção constitui a
sua realidade. Assim como os observadores criam a realidade, eles também a modificam.
A realidade é uma consensualidade entre os observadores e essa é a sua
materialidade. O mundo não é uma ilusão, embora cada mundo gerado por grupos de
observadores diferentes pareça ilusório em relação a outros.
Segundo a Escola de Copenhague, não faz sentido falar sobre as propriedades físicas
de um objeto quântico, sem especificar o dispositivo experimental através do qual se pretende
observá-lo, visto que a realidade quântica é, em parte, criada pelo observador. Ou seja: o
mundo não possui um estado de existência bem definido, independente de nossa observação,
porque, no mundo atômico, a realidade resulta do modo que a observamos ou daquilo que de-
cidimos observar e de conformidade com o disposi tivo experimental utilizado nessa observa-
ção. O observador não se limita a observar as propriedades de um determinado objeto, mas
também define as propriedades do mesmo. Assim, se se modificam as condições
experimentais, também se alterarão as propriedades do objeto observado. Por esse motivo
John Wheeler sugeriu a substituição da palavra "observador" pelo termo "participante".
A constatação de que o observador e seus instrumentos de observação interferem no
objeto observado, produzindo-lhe alteração por mínima que seja, também se aplica à vida
social, conforme constataram os antropólogos. As pessoas reagem à presença de observadores
de outras culturas, modificando o seu comportamento no seu relacionamento com eles.
Cético – Nós não vemos senão o que desejamos ver, aquilo que esperamos ver e o que
nos ensinaram a ver. Eis porque místicos e santos afirmam, com convicção, que viram ou vêem
Deus. A essas alucinações visuais dá-se o nome de experiências espirituais. Videntes dizem
perceber espíritos e até conversar com eles. A alucinação é uma percepção enganosa.
Cientista – Para Arthur Koestler, "a percepção é uma questão de níveis", visto que
grande parte de nossa atividade é guiada pela rotina e pelo hábito.
Nós não vemos uma coisa em si, mas estados sucessivos de uma mesma coisa. O
próprio observador não é o mesmo que observa, mas estados sucessivos de si mesmo,
observando a sucessividade de estados da coisa observada.
A nossa percepção é seletiva, porque só nos conscientizamos daquilo que tem
interesse e significado para nós. Os fatos, assim, são constructos mentais, decorrentes dos
nossos condicionamentos perceptuais, por sua vez resultantes de causas orgânicas e culturais.
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bioquímica do organismo produz alterações sensoriais, fazendo o indivíduo, sob seu efeito,
perceber as coisas de uma forma bizarra.
A experiência modela a percepção e a percepção ratifica a expe riência. Ou seja: o
modo como aprendemos a perceber passa a ser o modo como percebemos. Então, a realidade
se torna, para nós, o modo como a percebemos.
Filósofo – David Hume apoiou a tradição oriental. E sustentou: “A natureza não passa
de uma ficção. A realidade são fenômenos subjetivos. Não há substância e o próprio eu é um
feixe de impressões psíquicas. A substância é apenas uma constante associação de percepção
resultante da experiência.
Causa e substância, tempo e espaço não passam de criações psicológicas, poeira de
fenômenos subjetivos. Acalentamos, porém, a crença de que existimos e de que o real e xiste.
E isto é o bastante para as nossas necessidades práticas.”
Cientista – John Gribbin percebeu o mundo material através da óptica quântica: “No
mundo do quantum, só possuímos aquilo que vemos e nada é real. O mais que se pode
conseguir é ter um conjunto e ilusões concordantes entre si. Nada é real, senão enquanto
vemos.”
Dizia Werner Heisenberg: “Todas as partículas elementares são feitas da mesma
substância, que podemos chamá-la de energia ou matéria fundamental: elas são apenas
formas distintas em que a matéria pode se revelar”.
Se compararmos essa situação com os conceitos aristotélicos sobre matéria e forma,
poderemos dizer que a matéria, como mera potentia, deveria ser comparada ao presente
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conceito de energia, e esta passaria ao estado de matéria, após adquirir forma no momento
em que se cria a partícula elementar.
Cético – Tudo isso não passa de misticismo científico. É loucura afirmar que a matéria
não existe. Somos feitos de matéria e vivemos num mundo material.
Cientista – A Física Quântica mudou essa visão do mundo. Arthur Koestler advertiu:
“Todo um coro de laureados do Prêmio Nobel da Física ergue sua voz para nos anunciar a
morte da matéria, a morte da causalidade, a morte do determinismo.”
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Místico – Por isso, Teilhard de Chardin asseverou: “Atingido o extremo de suas aná-
lises, os físicos não sabem mais se a estrutura que eles alcançaram é a essência da Matéria que
eles estudam ou, então, reflexo de seu próprio pensamento.”
Pietro Ubaldi acentuou que “a ciência da matéria se reduz a uma ciência de relações, a
um puro processo lógico.”
E acrescentou: “As ondas que representam um elétron na mecânica ondulatória, hoje
se julga que são ondas de probabilidade, cuja intensidade em cada ponto dê a medida da
probabilidade de que um elétron esteja naquele ponto.”
Filósofo – David Bohm, por sua vez, questionou: “A pesquisa da matéria pode nos le var
a perguntar se há algo além da matéria ou se a matéria é tão sutil que está alem da matéria
como comumente a conhecemos.
A questão é se a matéria é tosca e mecânica ou vai se tornando mais e mais sutil, a
ponto de se tornar indistinta daquilo a que chamamos mente.”
Cético – Então, não há uma realidade objetiva? Tudo o que percebemos não passa de
uma ilusão?
Teólogo – René Descartes argumentou que o mundo não é uma ilusão, porque Deus
não nos daria sentidos enganosos.
NATUREZA
Filósofo – Falamos das leis da natureza e não das leis da realidade. Há alguma
diferença entre a realidade e a natureza? Ou elas são a mesma coisa?
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Cientista – A natureza é o modo como percebemos a realidade e as leis que regem o
universo observável. Galileu interpretava a natureza como a ordem do universo, uma ordem
que é única e que nunca foi e nem será diferente.
Porque vemos certas coisas acontecerem da mesma maneira, acreditamos que elas
sempre acontecerão assim para sempre. E porque elas se tornam previsíveis e até
experimentalmente repetíveis, damos-lhes o nome de leis. Por isso, eventos esporádicos,
singulares, contraditórios não alcançam o status de lei.
Cético – Para Galileu Galilei, a estrutura do universo é a matemática. Por isso, afirmava
que as leis da natureza são leis matemáticas.
O mesmo pensava o astrônomo Johannes Kepler: “As leis da natureza nada mais são
do que pensamentos matemáticos.”
Místico – Deus não é o matemático, nem a matemática. Esta é apenas uma ferramenta
usada para solucionar problemas humanos e questões ligadas ao Universo.
Alan Watts corroborou esse entendimento: “Os cientistas estão cada vez mais
convictos de que as leis da natureza não são descobertas e sim invenções, e a noção de que a
natureza obedece ou segue uma ordem ou padrão inato está sendo suplantada pel a ideia de
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que tais padrões não são determinativos mas, antes, descritivos.
Watts advertiu que “o que parece serem necessidades da natureza em geral pode não
ser mais do que necessidades de gramática ou de matemática.
A natureza é um campo de relações e não uma coleção de coisas. A realidade é uma
multidão de relações em constante mutação.”
Teólogo – O cientista quer conhecer a natureza para subjugá-la. O religioso quer
conhecer Deus e a ele submeter-se. O cientista quer prever e evitar as ações da natureza que
ele julga prejudicial à humanidade. O religioso quer conhecer previamente as manifestações
divinas a fim de preparar-se para elas ou tentar, pela oração, não ser atingido por aquelas que
possam feri-lo de uma maneira ou de outra. Ou simplesmente pedir que lhe seja dado o dom
da resignação.
Cientista – René Descartes e Isaac Newton conceberam a natureza como uma grande
máquina. Passamos, então, a criar máquinas, porque a super-máquina da natureza nos
domina. E, no imaginário da robótica, os robôs, um dia, dominarão o mundo e os seres
humanos serão seus escravos. Agora, estamos submissos à máquina da natureza e,
futuramente, às máquinas que nós criamos.
Edgar Morin estabeleceu uma comparação entre a máquina e o organismo e que é um
libelo contra o maquinomorfismo: "A maravilha da organização viva, diferentemente da
máquina artificial, é ser capaz de funcionar apesar do erro e com o erro. Assim, ela po de
tolerar erros, resistir ao erro, detectar e corrigir o erro, tirar lição do erro, induzir em erro e
utilizar positivamente certos erros, transmudando-os até no seu contrário."
Cientista – Deus já foi o mecânico que montou a maquinaria do mundo. Hoje, ele
mudou de status. É o computador cósmico que gerou todos programas do mundo e os
computadores onde eles rodam. Assim, só Deus, o computador cósmico, é real. Tudo mais
constitui uma realidade virtual, onde a consciência é um programa que lhe faz parecer que ela
é real, assim como o universo em que o homem vive. Deus não é mais criador do universo real,
mas de um universo virtual. Se certa filosofia oriental ensina que o mundo é o sonho de
Brahma e, por isso, tudo o que existe é ilusão (maya), uma filosofi a, com base na informática,
poderá postular que o mundo é uma trama virtual gerada por programas de um computador
cósmico. Somos sonhos, que foram programados para pensarmos que somos reais.
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A maquinolatria será a substituição do Deus que nos criou pela Máquina-Deus que
pretendemos criar. Ou seja: trocaremos um Ser superior ontológico por outro de natureza
material.
Cientista – Como o computador, que é uma invenção humana, poderá nos explicar e
compreender, se nós nem sequer nos compreendemos e também não compreendemos os
outros?
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Cético – Cada vez mais, somos uma fusão de homem e máquina, de órgãos e próteses,
comandados pelo cérebro.
CAOS E ORDEM
Filósofo – No princípio, era o caos. Caos de que? Não há caos sem coisas. Logo, havia
coisas e havendo coisas, não há de se cogitar que as elas vieram do nada.
Filósofo – Kurt Gödel acreditava que o mundo é racional e que “a ordem do mundo
reflete a ordem da mente suprema que o governa”.
Ilya Prigogine afirmava que a desordem não é um estado “natural” da matéria, mas, ao
contrário, um estado que precede a emergência de uma ordem mais elevada.
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Filósofo – Postular que o mundo resultou de um caos preexistente que, depois, se fez
ordem, constitui uma metafísica de menor qualidade do que aquela que postula ser o universo
a manifestação de uma Ordem eterna ou Divindade e que, por isso, tudo o que existe é um
reflexo desta Ordem em seus infinitos aspectos.
Concordo com o que disse Geoges Bernanos: “O que chamamos acaso talvez seja a
lógica de Deus.”
Cético – Charles Peirce definiu o acaso como a realização de um evento que não tinha
suficiente relevância para ser previsto. E Jacques Munod destacou o acaso como o funda-
mento do “prodigioso edifício da evolução”.
Místico – O caos criador? Não é o mesmo que o Deus criador? Será que, no princípio
(se é que houve princípio), era o acaso? E o acaso criou todas as coisas e de tantos e tantos
acasos surgiu a vida, a seleção natural, a ordem que descobrimos nas relações entre as coisas?
Ou o acaso criador é um eufemismo para um Deus criador?
Cético – Tudo se originou de um acaso. Foi ele o criador de tudo. Se tudo está em
permanente mudança, produzindo, como consequência, eventos imprevisíveis, contrariando a
ordem aparente das coisas, então o acaso continua intervindo no universo que ele criou. O
acaso, portanto, existe e é criador e mantenedor de uma sequência ilimitada de impossibili -
dades, disfarçada pela máscara ilusória de uma ordem constituída de repetências a que se deu
o nome de leis da natureza.
Cientista – Apesar disso, muitos cientistas acreditam na ordem universal, apesar das
intervenções do incômodo acaso.
Cético – O acaso é o sucedâneo de um Deus que não existe. Por causa do acaso, vive -
mos em um universo de ordem ilusória, mas que nele se crê apesar de suas eventuais incon -
sequências.
Muitas pessoas acreditam que nada acontece por acaso. Acontece, sim. Elas é que não
se conformam com o acaso, porque ele atenta contra o sistema de crenças baseado na cau-
salidade. Essas pessoas querem aprisionar o acaso nas grades das leis da natureza. O acaso as
torna inseguras, porque elas ainda mantêm bem viva a presunção de que o ser humano é a
coroa de toda criação.
Filósofo – Henri Bergson reconheceu que o papel do acaso é muito grande e que nem
tudo é coerente na natureza.
Edgar Morin faz uma apologia do acaso: "A vida parece feita para encontrar o acaso,
domesticá-lo, combatê-lo. Efetivamente, suporta o acaso, joga com o acaso, utiliza o acaso,
transforma o acaso, transforma-se segundo o acaso, desenvolve-se com o acaso e finalmente
morre por acaso."
A capacidade cognitiva da mente humana é limitada para apreender a versatilidade
ilimitada da realidade.
A ciência do nosso século descobriu que o acaso tem suas leis e criou a palavra esto -
cástica, dando ensejo ao florescimento da matemática dos processos estocásticos ao lado da
matemática dos processos determinísticos. Surgem, assim, lei s para a ordem e leis para o
acaso, leis determinísticas para os sistemas simples e leis estatísticas para os sistemas comple -
xos.
Teólogo – Faço minhas as palavras de Benjamin Franklin: “Achar que o mundo não tem
um criador é o mesmo que afirmar que um dicionário é o resultado de uma explosão numa
tipografia“.
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Filósofo – Por que não podem conviver, em situações diversas, a ordem e o caos, o
determinismo e o aleatório?
Cientista – Transcrevo o que escreveu Ian Stewart: “No curso do século XX, a
metodologia estatística conquistou seu lugar em pé de igualdade com a modelagem
determinística. Uma nova palavra foi cunhada para refletir a descoberta de que até o acaso
tem suas leis: estocástica. (A palavra grega stochastikos significa "hábil na mira", transmitindo
a ideia do uso das leis do acaso em benefício próprio.) A matemática dos processos
estocásticos — sequências de eventos determinados pela influência do acaso — floresceu ao
lado da matemática dos processos determinísticos.
A ordem já não era sinônimo de lei, nem a desordem de ausência de lei. Tanto uma
quanto a outra tinham leis. Mas estas eram dois códigos de comportamento distintos. Uma lei
para o ordenado, outra para o desordenado. Dois paradigmas, duas técnicas. Duas maneiras
de ver o mundo. Duas ideologias matemáticas, cada uma se aplicando apenas à própria esfera
de influência. Determinismo para sistemas simples, com poucos graus de liberdade; estatística
para sistemas complexos, com muitos graus de liberdade. Um sistema era randômico ou não.
Se fosse, os cientistas buscavam algo estocástico; se não fosse, aprimoravam suas equações
determinísticas.
Os dois paradigmas eram parceiros de igual nível — igualmente aceitos no mundo
científico, igualmente úteis, igualmente importantes, igualmente matemáticos. Iguais. Mas
diferentes. Completamente, irreconciliavelmente diferentes. Os cientistas sabiam que eram
diferentes e sabiam a razão disso: sistemas simples se comportam de maneiras simples,
sistemas complexos se comportam de maneiras complexas. Simplicidade e complexidade nada
tinham em comum.”
Filósofo – Há uma implícita vocação do ser humano para a ordem. Por isso, ele tem a
tendência de descobrir uma ordem na natureza, de criar uma ordem para a natureza e de
conviver em uma ordem social.
A ordem é a sinergia de estados e processos coerentes de um sistema.
Ninguém suportaria viver no caos, na permanente incerteza e falta de significado. Por
isso, queremos estar sujeitos a uma ordem, seja ela qual for. A revolução que destrói a ordem
social estabelecida impõe uma nova ordem para substituí-la.
O que chamamos de rotina é o exagero da ordem, a sua imobilização e o processo de
seu desgaste. Toda ordem, para sobreviver, tem de ser dinâmica e adaptar-se às situações
mais diversas e imprevistas.
Tudo o que o ser humano faz gira em redor de uma ordem e, por isso, ele sempre
procura organizar e dar significado a situações inabituais. Ele é um organizador da realidade e
tem uma natural aversão ao caos.
O que lhe programou essa necessidade de organização?
Cientista – Para Pierre de Latil, a tendência para a ordem, que ele denominou de
antiacaso, é uma estruturação da causalidade interna para fugir às influências externas e
seguir apenas uma lei interna.
Francis Bacon advertiu: “O intelecto humano, mercê de suas peculiares propriedades,
facilmente supõe maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram.
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Deste modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de disparidades,
aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não existem.”
Filósofo – Discordo do que disse Teilhard de Chardin. Um “acaso dirigido” não é acaso.
Grichka Bogdanov contraditou a hipótese do acaso: “A realidade inteira repousa
sobre um pequeno número de constantes cosmológicas: menos de quinze. Trata-se da
constante de gravitação, da velocidade da luz, do zero absoluto, da constante de Planck, etc.
Conhecemos o valor de cada uma dessas constantes com notável precisão.
Ora, se uma só dessas constantes tivesse sido minimamente modificada, então o
Universo — ao menos, tal como o conhecemos — não poderia ter aparecido.”
E Igor Bogdanov ressaltou que “a probabilidade matemática de que o Universo tenha
sido engendrado pelo acaso é praticamente nula.”
Cientista – John Wheeler asseverou que até o caos pode possuir regularidades esta-
tísticas.
Ilya Prigogine assinalou que a desordem não é um estado “natural” da matéria, mas,
ao contrário, um estado que precede a emergência de uma ordem mais elevada.
Vivemos em um tipo de ordem que, para muitos, parece ser a única no universo. Daí, o
nosso vezo de denominar de caos a tudo o que não se enquadra na nossa concepção de
ordem. Na verdade, pode-se admitir outros tipos de ordem que a nossa estrutura ontológica -
sensorial e racional - não pode conhecer. Logo, o caos é uma expressão genérica para balizar
as fronteiras do cognoscível e do incognoscível.
A teoria do caos, revelando a imprevisibilidade e a instabilidade de todas as coisas,
rompe as estruturas do lógico e do racional, parecendo ser atualizações de potencialidades da
natureza.
Ordem e caos são complementares, e um se converte em outro indefinidamente. A
ordem surge do caos e este, daquela. A ordem é o equilíbrio momentâneo. Se tudo está em
permanente mudança, a ordem é um momento da mudança e a mudança é o caos se
transformando a cada momento em ordem. O caos é o estado de criatividade permanente do
universo. É a ordem em potencial. E a ordem é um instante do caos.
A ordem não é uma necessidade da natureza, mas do homem na tentativa de lidar com
o caos e domesticar a realidade.
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Ordem e desordem são conceitos funcionais. Caos, para o homem, é tudo aquilo que
não se ajusta aos seus padrões de ordem, a esquemas perceptuais inatos ou adquiridos.
Filósofo – O caos não existe em si, mas referenciado a um dado sistema. Pensamos
que a natureza é imutável, porque acreditamos na repetibilidade absoluta das coisas e, por
conseguinte, só é verdadeiro aquilo que se repete. Se o homem permanecer durante algum
tempo naquilo que lhe parece um caos, em breve descobrirá uma ordem nele. A ordem é
hábito.
Quanto mais complexa é uma ordem, mais mutável e instável ela é, e maiores são as
possibilidades de desordem. Quanto mais intensa for a desordem, maior a possibilidade de
surgimento de uma ordem mais complexa. A crise de um sistema que não mais consegue
manter seu equilíbrio dinâmico pode resultar na sua destruição ou na sua transformação em
um sistema de ordem diferente.
Tudo o que está rigidamente organizado tende à imobilidade e à morte. Tudo o que é
excessivamente caótico nada produz de eficaz e é um turbilhão sem sentido.
Cientista – A ordem não é imutável, definitiva, mas algo que muda sempre. Tudo ten-
de à ordem, e a ordem se mantém desorganizando-se para ensejar uma nova ordem e, assim,
indefinidamente.
O aleatório impede a imobilização da ordem e constitui a atividade criativa da
natureza. A cada ordem que infringe, o aleatório favorece a emergência de novas ordens.
Ordem e caos são pulsações da natureza e a expressão de sua infinita liberdade. A
instabilidade se harmoniza com a estabilidade provisória de todos os sistemas, sejam eles
físicos, biológicos ou sociais.
Caos é tudo aquilo que não conseguimos ordenar ou nele descobrir uma ordem dentro
dos nossos padrões convencionais. Ele é a infinita variedade e reciclagem da natureza, e a
ordem, a nossa forma peculiar de perceber uma dessas infinitas formas da reali dade.
Caos se transforma em ordem. Ordem se transforma em caos. Não há caos ou ordem
permanentes. Não será isso uma lei?
Filósofo – Se há uma ordem, tudo pode ser previsível e, assim, o acaso é o acontecido
que não fomos capazes de prever ou que aconteceu contrariando as nossas previsões
habituais. Não podemos saber se algo é impossível ou absolutamente certo. Allgo nos parece
impossível porque nunca aconteceu antes, ou certo, porque sempre aconteceu e continua
acontecendo. Logo, o que afirmamos ou negamos não passa de probabilidade de acontecer e
de não acontecer. Quando, portanto, prometemos algo, prometemos uma probabilidade e não
uma certeza de que o prometido acontecerá.
Parece-nos que tudo tende para algo. Se para melhor ou para pior depende da aprecia-
ção subjetiva de cada um, segundo o que aconteça lhe seja favorável ou desfavorável.
Cético – Não criamos possibilidades. Elas existem previamente, mas nenhuma delas é
prefixada. Nós é que, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente,
viabilizamos a realização de algumas delas em relação a nós e, algumas vezes, em relação também
aos outros. Tudo o que o homem descobre ou inventa já existia em potencial.
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Cientista – As probabilidades do real são infinitamente mais numerosas do que as suas
facticidades. Não conhecemos todas as possibilidades do real nem podemos imaginar, das
probabilidades que conhecemos, aquelas que se tornarão fatos. O fato é a realização do pos-
sível. Ou do que nos parecia impossível.
O homem é o médium do mundo das possibilidades. Ele é, ao menos em nosso
planeta, quem converte possibilidades em realidades físicas.
Quando um fato ocorre pela primeira vez, rompendo a sucessividade dos eventos
habituais ou previsíveis, nós o denominamos de acaso.
Místico – Por isso, a realidade, ou Deus, é de uma infinita complexidade para o nosso
entendimento. Tudo se confunde ou tudo nos confunde? El e é ordem ou caos? Ou caos e
ordem, confundindo os nossos sentidos e a nossa razão?
CRIAÇÃO
Teólogo – Deus criou todas as coisas, porém ignoramos como e por que Ele as criou
Cético – É um prato apetitoso para quem se delicia com refeições metafísicas. São
explicações delirantes para explicar por que o hipotético Deus criou o universo e os mundos.
A explicação mais simples é a de que os mundos se originaram da evolução da matéria.
Não entendo que a criação, sendo o ato de amor de Deus, resulte em um ato de
sacrifício da Divindade, e que esse sacrifício se perpetue em cada criação. Qual a razão desse
sacrifício continuado? Por que não seria um ato de prazer, de permanente prazer? Não vejo
razão para esse masoquismo divino.
Se o mundo, como pensam alguns místicos, é uma brincadeira de Deus, é uma
brincadeira de péssimo gosto. E, para que Deus quer brincar? Para preencher a sua solidão, já
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que tudo o que existe é ele? Faz-se muitos para iludir-se que não está só? E, por mero deleite,
cria os ateus para negar a sua existência e perturbar os crentes?
Filósofo – Certos teólogos, com as suas invencionices, são culpados pela descrença em
Deus, dando azo a que argumentações, como essas, sejam propostas. É uma perda de tempo
discutir tais delírios.
Cientista – Deus criou o tempo, ou Deus surgiu no tempo? Se Deus criou o tempo, ele
é atemporal. Mas se Deus surgiu no tempo, quando ele surgiu? O que existia antes de Deus? A
eternidade? A eternidade de que?
Teólogo – Antes de tudo ser criado, só existia Deus. E, segundo Platão e Santo Agos-
tinho, Deus não criou o mundo no tempo, mas o mundo e o tempo foram criados juntos. Logo,
é inválida a questão de quando Deus criou o mundo.
Cético – Segundo o Judaísmo, Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo.
Se assim foi, quando ele criou o mundo o tempo já existia assim como a semana de sete dias.
Não se sabe por que Deus não criou tudo de uma só vez. Ao contrário. Levou seis dias, talve z
trabalhando vinte quatro horas, sem interrupção e, por isso, teve de descansar no sétimo dia
para evitar uma estafa infinita.
O Jainismo negava a existência de um Deus criador, porque o universo é eterno. Tudo,
inclusive os deuses, é constituído de mônadas vitais e somente estas são eternas. Demócrito
era da mesma opinião: tudo é formado por átomos, inclusive os deuses.
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Para Gottfried Leibniz, a criação é uma ação contínua de Deus, porque todas as coisas
n'Ele existem como possibilidades.
Cientista – Ilya Prigogine postulou que “a criação do universo é antes de tudo uma
criação de possibilidades, das quais umas se realizam e outras não.”
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e estes mundos e seus habitantes se desconhecem reciprocamente.
Há uma hipótese ocultista que afirma que o homem ocupa si multaneamente vários
corpos em dimensões diferentes.
Na minha opinião, tudo isso não passa de ficção científica.
Místico – Um dos textos chamados Purunas afirma: “Os grãos de areia talvez pos-
sam ser contados, mas os universos são inumeráveis”.
Teólogo – Jesus afirmou: ”Na casa de meu Pai há muitas moradas”. Estaria Ele
referindo-se a outros mundos espirituais ou também a mundos físicos?
Cientista – Ervin Laszlo argumentou que, enquanto alguns cosmologistas falam de vá-
rios universos coexistentes, a mais razoável das concepções correntes é a que vê a criação
sucessiva de universos dentro do útero de um universo preexistente.
Isso sugere a existência de um universo primordial atemporal do qual se originam to-
dos os demais universos temporais.
Para Stephan Lupasco, no universo tudo é constituído de siste mas e subsistemas
físicos, biológicos e psíquicos e todo sistema é função de duas forças antagônicas, interagindo
entre si, de tal maneira que, quando uma se atualiza, a outra se potencializa e, assim, alter-
nadamente.
Ludwig von Bertalanffy elaborou uma teoria geral dos sistemas, partindo da premissa
da existência da organização em todos os níveis. Afirmou que o Universo é uno, pois todos os
níveis da realidade refletem a isomorfia de suas leis. Dizia ele que "se um objeto é um sistema
deve ter certas características gerais dos sistemas, qualquer que seja o sistema." Por isso,
"uma grande parte do comportamento biológico e humano situa-se além dos princípios de
utilidade, homeostase e estímulo resposta."
Os sistemas vivos, portanto, são sistemas abertos e estes consistem em uma atividade
de troca da matéria com o meio ambiente. Um sistema aberto pode, assim, tender para um es-
tado de organização superior, passando de um estado inferior para aquele.
Ilya Prigogine teorizou a existência do que denominou de estruturas dissipadoras, que
são sistemas abertos, onde sua forma ou estrutura é mantida por uma contínua dissipação
(consumo) de energia, constituindo, assim, uma integridade flutuante. Quanto mais complexo
é o sistema, maior é a sua instabilidade, pelo aumento crescente das interações de seu
interior. Uma vez atingido o ponto crítico, essas flutuações perturbam o sistema, resultando na
reorganização de suas partes e surgindo um novo sistema de ordem mais elevada.
Quanto mais complexa é uma estrutura química ou humana, maior quantidade de
energia terá de utilizar para manter todas as conexões envolvidas.
Prigogine postulou a existência de um princípio de auto-organização nos organismos
vivos, mediante o qual, embora interajam com o meio ambiente continuamente, são relati -
vamente autônomos. Ou seja: essa interação com o meio ambiente não é a causa de sua
organização como sistema. Eles, na verdade, se auto-organizam.
Cético – Deus não criou todas as coisas. Há coisas que inventamos e, portanto, não
foram criadas por Deus.
23
Místico – As descobertas e os inventos resultam da ação do Deus imanente em nós.
Teólogo – Deus criou o mundo do nada. Mas Deus não é o que Ele criou. Essa é uma
afirmação absurda do panteísmo sob o argumento falacioso de que tudo é Deus e Deus é tudo.
Cético – Não percebo probabilidades, mas pessoas, animais, plantas e coisas. E elas
independem de mim. Afinal, o que é uma probabilidade?
Cientista – Afinal, o que é uma ideia? Ela não existe objetivamente e, no entanto, é a
origem das nossas ações e das coisas que fazemos. A probabilidade é algo que poderá ou não
acontecer. Vivemos em um mundo de fatos e probabilidades, mai s de probabilidades do que
de fatos, pois esses são apenas uma das infinitas probabilidades que aconteceram no universo
físico.
24
Poeta – Um vazio pulsante é o que somos,
vivendo na ilusão da solidez.
Matéria são vazios que colidem.
As formas são momentos do vazio.
Tudo é mudança.
Mas, o que dirige
a universal mudança do vazio?
Teólogo – Deus como o vazio, Deus como o nada é uma ideia esdrúxula para a teo-
logia.
Teólogo – Deus, como vácuo infinito, é inconcebível, inimaginável, não nos move ou
nos comove. Daí, a nossa necessidade de reduzi-Lo ontologicamente à nossa condição cog-
nitiva. Por isso, O fazemos à nossa imagem e semelhança, porém dotado dos mais excelsos
ideais da natureza humana, como o amor, a justiça, a bondade, a misericórdia e a perfeição.
Disse Ervin Laszlo – “Os cientistas podem olhar para o vácuo quântico do pré-universo
como o potencial energético do qual brotou a explosão reticular que se inflacionou no uni -
verso original; os teólogos e místicos podem considerar o campo psi virgem como o campo de
consciência primordial do Criador divino.”
25
Cético – De onde Deus retirou a matéria com a qual criou o mundo? Deus criou a
matéria e dela fez o mundo? Ou a matéria, assim como Deus, é eterna e Deus dela se utilizou
para a sua criação?
Místico – Toda criação se dá “dentro” de Deus, com a própria substância de Deus. Não
há criação fora de Deus, pois nada existe senão Ele. Logo, tudo o que existe é da mesma
essência de Deus, mas o que Deus criou não é Ele, mas d’Ele.
John Eckhart já se apercebera disso e opinou que “Deus produz todas as coisas de si
mesmo”.
Espinosa admitia que Deus criou o mundo de si mesmo e, por consequência, o mundo
é idêntico a Deus.
Deus cria todas as coisas da substância de Si mesmo. Mas, ninguém sabe como.
Deus é infinito. Como pode ter criado algo fora de si mesmo? Logo, o que Ele criou foi
de Si mesmo e não do nada, pois é inconcebível existir um nada em Deus.
Por isso, ensinava o Bhagavad Gita: "Curvando-me dentro de mim, eu crio sempre e
sempre." E, ainda: “Com um átomo de mim mesmo sustento o universo”.
Deus não fez o mundo, mas se fez mundo e tudo o que nele existe.
Teólogo – Mas o mundo não é Deus. Já afirmei isso antes. Deus está no mundo, mas o
mundo não é Ele.
Cientista – Há uma ideia singular sobre o processo de criação dos mundos, oriundos de
um universo-mãe, gerando de si mesmo, por cissiparidade, os universos-bebês. Trata-se da
aplicação da multiplicação celular à criação de novos universos.
Filósofo – Em analogia com o modelo da Física, podemos conceber Deus, no seu pro-
cesso criativo, como a singularidade da qual tudo se origina de modo in explicável. Se o
universo não surgiu de onde e quando, mas o onde e o quando surgiram com o próprio
universo, como propriedades dele, então não dispomos de recursos para explicar sua origem,
pois a hipótese da singularidade, como ressaltou Paul Davies, constitui "o confronto entre o
natural e o sobrenatural."
Para Ilya Prigogine, “a criação é antes de tudo uma criação de possibilidades, das quais
algumas se realizam e outras não”. Aliás, Bergson já dizia que “a realidade é apenas um caso
particular do possível”.
Cientista – A ciência teoriza que tudo começou de uma singularidade, uma máxima
concentração da matéria, e que explodiu, resultando na criação do universo. A essa explosão
se deu o nome de big-bang. Ora, se havia algo, mesmo infinitamente pequeno, havia algo e
não o nada. O problema é: o que existia antes do big-bang? Tempo e espaço estavam contidos
em uma infinita contração da matéria a que se deu o nome de singulari dade. Essa
singularidade é algo infinitamente pequeno.
Porém, me pergunto: se o universo for infinito, como poderia estar contido na
singularidade, como se fosse uma semente cósmica?
Cético – Concordo com o que disse Paul Davies: "Não há dúvida de que a física
moderna apresenta um forte sabor místico."
E mais ainda: "O apelo místico da física moderna torna-a querida a muitas pessoas de
convicção religiosa ou filosófica, que nela vêem uma libertação do mundo materialista e
26
impessoal criado pela sociedade tecnológica moderna."
Filósofo – Essa é uma questão difícil para a ciência. Seria a singularidade a matéria
infinitamente condensada ou uma virtualidade, onde não existem matéria, tempo e espaço?
Se essa hipótese estiver correta, o que provocou o colapso dessa possibili dade?
Cientista – O nosso universo começou com o big-bang. É tudo o que, até agora,
podemos teorizar.
Cientista – Paul Davies declarou: “Uma singularidade é a coisa mais parecida com um
ser sobrenatural que a ciência descobriu até hoje”.
Stephen Hawking propôs o “princípio da ignorância” mediante o qual se reconhece
que a singularidade é o derradeiro incognoscível.
Filósofo – Então podemos questionar: de onde e como surgiu essa singularidade que
continha informações para a criação do universo? Em linguagem de informática, a
singularidade é o universo zipado. Mas, o que ou quem o zipou e o dizipou? Deus? O acaso?
Teólogo – Para Leibniz, Deus escolhe, por necessidade moral, o melhor dos mundos
possíveis, dando-lhe existência ou atualidade.
Cético – E por que Deus teria criado o mundo por necessidade moral? Se Deus, como
se diz, é um ser necessário, por que teria ele necessidades, mesmo de natureza moral? Moral é
apenas um comportamento social que varia de cultura a cultura.
Místico – Deus não é moralidade. Ele não tem contrato com os seres humanos.
27
Cientista – Stephen Jay Gould acrescentou: “Uma vez que não podemos encontrar
nenhuma moral na natureza, temos de encontrá-la em nós mesmos. Se a natureza é não-
moral, então a evolução não pode nos ensinar nenhuma teoria ética.”
EVOLUÇÃO
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André Bourguignon admite que "cada espécie tem uma "perspectiva filogenética", isto
é, uma potencialidade evolutiva que lhe é própria."
Se evolução é atualização de potencialidades, então todo ser evolui e pára de evoluir,
quando atualiza todo seu potencial.
O que não sabemos é se os seres biológicos realizam todas as suas potencialidades. Na
espécie humana, elas parecem ilimitadas.
Filósofo – A seleção não cria. A seleção não seleciona. Assim como não há criação sem
criador, não há seleção sem selecionador, Algo, que não sabemos o que é, faz a seleção.
Cético – Darwin sustentava que a evolução não tem direção e qualquer sentido de
progresso, consistindo apenas na melhor adaptação dos organismos aos seus ambientes.
Carl Sagan afirmava que a evolução é fortuita e não planejada. É um processo
estocástico.
Para Jacques Monod, a evolução resultou do "acaso puro", da "liberdade absoluta, mas
cega".
Disse Fritjof Capra: "A evolução é basicamente aberta e indeterminada. Não existe
meta ou finalidade nela e, no entanto, há um padrão reconhecível de desenvolvimento."
E mais: "A evolução é uma aventura contínua e aberta que cria ininterruptamente sua
finalidade, num processo cujo desfecho detalhado é inerentemente imprevisível."
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Contrário à opinião de Darwin, Alister Hardy postulava que o principal fator causal do
processo evolutivo não é a pressão seletiva do ambiente, mas a iniciativa do organismo vivo.
Filósofo - André Bourguignon admite que "é sedutora a certeza de que a evolução é
orientada, em direção a organizações sempre mais complexas, para entidades sempre mais
autônomas cada vez mais fechadas."
Diz ainda: "Não temos razão alguma para afirmar que um acaso essencial está na base
da evolução."
E conclui: "A evolução é a expressão de poder auto-organizador da matéria e das
propriedades de sistemas cuja complexidade é sempre crescente."
Acreditava Teilhard Chardin que a evolução é "uma ascensão para a consciência" e o
homem é “a flecha ascendente da grande síntese biológica”. Por conseguinte, “a evolução tem
um sentido” e tudo não pode ser “um efeito do acaso”. “A vida é ascensão na consciência” e
“na nossa consciência, na consciência de cada um de nós, a Evolução descobre -se a si própria,
refletindo-se”.
Para Julien Huxley, a evolução se torna autoconsciente no homem.
Cientista – Afirmar, como o fez Richard Dawkins, que os genes se servem de nós para
as suas finalidades, é admitir explicitamente que eles agem intencionalmente. É reconhecer
que a natureza é teleológica.
Dawkins também sustentou que os genes são imortais, uma afirmação de natureza
metafísica, porque a ciência não lida com a questão da imortalidade. Pensando assim Dawkins
cometeu uma heresia científica.
Místico – Se somos uma criação dos nossos genes, o eu não passa de uma f ederação
de genes.
Sob esse aspecto, Deus é uma invenção dos neurônios para enganar a si mesmos. Por
que, então, dois grupos formados por crentes e ateus acreditam e não acreditam em Deus, se
todos são da mesma natureza biológica? Qual dos dois grupos de neurônios está com a razão.
Por que o grupo de neurônios equivocados sofrem de uma doença metafísica que podemos
dar-lhe o nome de teomania?
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Cientista – Se a Física hoje admite a probabilidade e a Física Quântica tem ensejado o
surgimento de hipóteses abstrusas, que mais parecem ficção científica para a exp licação de
tudo, por que a hipótese de Deus não pode fazer-lhes concorrência? A Teoria das Cordas e a
dos Universos Paralelos não são testáveis, nem sequer observáveis e, no entanto, são admis -
síveis cientificamente. Na verdade, elas são tão metafísicas como a hipótese de Deus. Aliás, as
diversas Teorias do Tudo, propostas por cientistas respeitáveis como Arthur Eddington, Erwin
Scrödinger, Wolfgang Pauli e Werner Heisenberg fracassaram, o que levou Freeman Dyson a
comentar: “o terreno da física está coberto de cadáveres de teorias unificadas.”
Místico – Para Amit Goswami, Deus “guia a evolução por meio de saltos quânticos
criativos”.
VIDA
Filósofo – Não há realidade morta. A realidade é viva. Temos, assim, que repensar a
definição de vida.
Místico – Deus é a vida universal. Os seres biológicos e as coisas são vida apri sionada
em uma forma.
31
Jean Guitton escreveu: “A aventura da vida resulta de uma tendência universal da
matéria a se organizar espontaneamente em sistemas cada vez mais heterogêneos. O movi -
mento é orientado da unidade para a diversidade, criando ordem a partir da desordem, ela-
borando estruturas cuja organização é cada vez mais complexa.”
Ilya Prigogine definiu a vida como “uma flutuação da matéria” e que, nessa flutuação,
há outras flutuações.
Místico – Se Deus fosse o criador da vida, ela teria sido criada por algo não-vivo, o que
seria um paradoxo.
Filósofo – Tudo o que é, é vivo. Como pode algo do real estar morto? O que denomi -
namos de morte é a desagregação de uma expressão organizacional. Os seus elementos
constituintes básicos, em nível atômico, permanecem vivos.
Há vida sem matéria? Há matéria sem vida? É a vida uma modalidade da matéria? É a
matéria uma modalidade da vida?
Somos tentados a admitir que não há vida sem matéria, pois esta é uma das
modalidades de manifestação da vida. A vida é a própria realidade, pois absurdo seria
conceber-se a realidade sem vida e a vida sem realidade. E, consequentemente, se a realidade
é vida, qualquer aspecto da realidade, por mais ínfimo e insigni ficante que pareça, é
necessariamente vivo.
Pesquisas demonstraram que os chamados corpos inanimados possuem certas
características dos seres biológicos: os metais "cansam" e os cristais demonstram p ossuir
"memória", pois, quando mutilados, em pouco tempo se recompõem.
Cético – Se Deus é imortal e imanente em cada ser vivo, como pode um ser vivo matar
outro ser vivo? Se cada individualização de Deus é imortal, então ninguém se mata, é morto ou
mata alguém.
Filósofo – Essa argumentação é lógica, mas perigosa, porque pessoas com propensão
criminosa podem cometer homicídios e admitir que nada fizeram de errado.
Místico – Nada morre em Deus, mas tudo se transforma sem perder a sua essência. Só
a existência é transitória. A forma se desfaz, não a ideia da forma.
32
Cientista – Valho-me, de novo, de Francis Crick: “O processo não precisa acontecer
apenas uma vez. Pode acontecer repetidas vezes, porque o acaso faz surgir novas mutações
favoráveis. Os aperfeiçoamentos assim somados com o tempo irão dar origem no processo de
evolução a um indivíduo que será particularmente bem adaptado ao seu meio ambiente. Para
se chegar a uma tal perfeição de desenho não são precisas mais do que mutações produzidas
pelo acaso. Parece não haver mecanismo algum, pelo menos um mecanismo comum, que dirija as
modificações no gene de forma que se produzam apenas alterações favoráveis. Além disso pode-se
argumentar que um mecanismo que fosse assim controlado a longo prazo tornar-se-ia demasiado
rígido. Quando as coisas se tornam difíceis é necessário introduzir verdadeira novidade —
novidade cujas características importantes não podem ser planificadas de antemão —, e para isso
é no acaso que se deve confiar. O acaso é a única fonte de verdadeira novidade.
Tal é o poder da seleção natural que pode operar a todos os níveis.
Cientista – Para Paul Davies, “o segredo da vida não reside na sua base química, mas nas
regras lógicas e informacionais que explora. A vida tem sucesso exatamente porque foge aos
imperativos químicos.”
Ludwig von Bertalanffy aprofundou a questão: “Biologicamente a vida não é manutenção
ou restauração do equilíbrio, mas essencialmente manutenção de desequilíbrios, conforme
revela a doutrina do organismo como sistema aberto. A chegada do equilíbrio significa a morte
e consequente decomposição.
Existem sistemas inanimados que, à semelhança dos seres vivos, conseguem realizar a
auto-organização espontânea.”
Ilya Prigogine acrescentou: “O que é espantoso é que cada molécula sabe o que as
outras moléculas farão ao mesmo tempo em que ela, e a distâncias macroscópicas. Nossas
experiências mostram como as moléculas se comunicam. Todo o mundo aceita essa
propriedade nos sistemas vivos, mas ela é no mínimo inesperada nos sistemas inertes.”
33
Os sistemas vivos são sistemas abertos e estes consistem em uma atividade de troca
da matéria com o meio ambiente. Um sistema aberto pode, assim, tender para um estado de
organização superior, passando de um estado inferior para aquele.
Cientista – Somos vida consciente. Mas não sabemos o que é a vida e por que ela é
dessa maneira e não de outra, ou por que não somos apenas vida, mas consciência. E como, por
que e para que a matéria se fez vida e a vida se fez consciência. E por que nos questionamos a
respeito do que somos e do que é a realidade.
A vida emergiu da matéria e a consciência, dos seres vivos. A vida, há cerca de 3,5
bilhões de anos, se tornou autônoma em relação à matéria, pois, desde a sua emergência, o
vivo só se origina do vivo, pouco importando que tudo seja composto de partículas atômicas.
Do mesmo modo, pode-se cogitar que consciência emergente dos organismos biológicos
também adquiriu sua autonomia, embora interaja com eles. Embora ignoremos como ocorreu
o salto qualitativo da matéria à vida e desta à consciência, parece -nos viável a hipótese de que
a matéria, a vida e a consciência representam três níveis da realidade que, conquanto
autônomos, interagem entre si.
Será a consciência o último nível da realidade?
Místico – Se a vida e a realidade são a mesma coisa, então, a vida é imortal, a morte
nada mais é do que a continuidade da vida em suas infinitas formas. Assim, a morte é,
essencialmente, uma ilusão, e o sofrimento um aspecto inerente ao processo de
transformação da vida em suas infinitas formas transitórias.
Deus é a vida é eterna. N’Ele, nada se perde e tudo se transforma em Suas infinitas
manifestações. Deus é o eterno se fazendo temporal, e o temporal se desfazendo no eterno.
Filósofo – Será que a Terra, em sendo um ser vivo, é também consciente? Ou nós, seres
humanos, somos a Terra que se tornou autoconsciente? Talvez sejamos um produto da
evolução da Terra que, nos primórdios de sua formação, desenvolveu-se através das
experiências de seus elementos constitutivos, gerando uma forma de vida baseada no carbono
e, desta forma de vida, evoluiu para as manifestações individualizadas de consciência.
Freeman Dyson e Alfred North Whitehead afirmaram que até mesmo as partículas
elementares são dotadas de uma forma e de um nível de consciência.
Cético – Os cientistas têm seus momentos de loucura, quando fazem projeções para a
vida futura. Os adeptos da informática sonham em dar inteligência superior e consciência aos
autômatos metálicos. E até mesmo emoções. Com arrimo nessa especulação alucinada, torna-
se plausível a ideia maluca de que objetos inanimados podem ter vida, inteligência, emoção e
consciência
34
espécie. Assim, cada espécie é Deus especializado.
Filósofo – A vida se complexifica pela contínua escolha das opções mais favoráveis. O
que não sabemos é o que seleciona essas escolhas e se a contínua complexificação ocorre à
custa de “acasos felizes” ou de uma programação que se desenvol ve, aprendendo com os
erros e se consolidando com os acertos.
A complexificação ocorre sem motivo, sem plano, sem finalidade ou ela é direcionada
para determinados fins? Em caso afirmativo, o que é que direciona o processo de
complexificação?
A especialização enfraquece a adaptabilidade. No entanto, quanto maior a capacidade
adaptativa, maior é a eficiência do ser de comportar-se adequadamente às mais diversas
situações.
Os seres vivos são programados para manter a vida, seja de que modo for, embora, em
certas circunstâncias, alguns provoquem a própria morte, seja instintivamente, seja
voluntariamente. Há casos de animais que se suicidam em benefício da espécie. O suicídio
entre as células recebeu o nome de apoptose.
Filósofo – O ser humano parece ser a estratégia da vida para aumentar a sua com-
plexidade e o seu poder criativo.
Humberto Maturana e Francisco Varela entenderam que a vida gera a si própria con-
tinuamente. É o que eles denominaram de autopoese.
Ora, se a vida nasce de si mesma, ela sempre existiu, porque a vida não tem outra
causa que a gerou senão ela própria.
A vida é a eterna passagem do estado de potência para o de atualidade e do estado de
atualidade para o de potência. Nascimento é a passagem da vida do estado de potência para o
de atualidade. Morte é a passagem da vida do estado de atualidade para o de potência.
Cético – Temos de mudar o nosso conceito de vida e especular sobre o que opera essa
transição do não-vivo para o vivo. O vírus, por exemplo, é um dos nossos grandes desafios.
Filósofo – Não há consciência sem vida. Mas, pode haver vida sem consciência? Só
inferimos que uma espécie de vida é consciente, quando podemos interagir com ela.
TELEOLOGIA
35
Teólogo – Todos os seres vivos são programas de ação, tudo tem finalidade. Não exis-
tem programas sem finalidades.
Filósofo – O universo criou as condições necessárias para a vinda dos seres humanos
ou ele foi criado para essa finalidade? Se o universo não se autocriou o que ou quem o criou?
Aliás, como pode autocriar-se o que não existe?
Cético – O físico Steven Weinberg escreveu: “Quanto mais o universo parece compre -
ensível, mais parece sem sentido”.
Mas, por que o universo teria de ter sentido? A vida tem sentido? A realidade tem
sentido? Sentido é invenção humana para explicar o mundo e a vida do ser humano no
mundo. Como tudo tem um programa para funcionar, buscamos um programa extrabiológico
para funcionar na vida social. Queremos ser uma peça importante no grande mecanismo da
sociedade.
Werner Heisenberg argumentou ainda: “A indeterminação é uma característica obje -
tiva da natureza e não uma limitação do conhecimento. É o que denomino de “restauração do
conceito de potencialidade”. O universo, diferentemente do que pensava Aristóteles, não tem
finalidade predeterminada, mas uma gama de potencialidades. Assim, o futuro ainda não foi
decidido e é sempre possível uma inovação imprevisível.”
Ilya Prigogine observou: “Hoje, não temos mais medo da “hipótese indeterminista”. Ela
é a consequência natural da teoria moderna da instabilidade e do caos.”
A realidade não tem projetos, nem objetivos, nem intencionalidade. A realidade é ação
espontânea que se desenvolve no tempo e no espaço. A sucessividade de tudo é a negação da
simultaneidade.
36
autoconstruíram em virtude da necessidade de adaptação do ser ao ambiente, é apenas
escamotear o problema. Então, se pergunta por que e para que a necessidade de adaptação
fez com que os olhos fossem criados.
A capacidade de adaptação foi programada ou se constituiu por acaso? É tautológico
dizer que a natureza se ajusta às condições emergentes, como se essas condições emergentes
não fizessem parte da natureza. É o mesmo que se dizer que a natureza se ajusta à própria
natureza, na manifestação de seus fenômenos.
A vida é um complexo de finalidades, embora não saibamos a finalidade da vida. Pode
ser que a vida, apesar de ser um complexo de finalidades, ela própria não tenha finalidade, ou
seja uma finalidade em si mesma.
Cético – Deus tem objetivos? Se os tem, necessita do concurso dos seres humanos
para realizá-los. Então, ele não é todo poderoso, ou se agrada em terceirizar seus objetivos.
Teólogo – Deus deu a cada pessoa uma missão. Ninguém está no mundo por acaso.
Ninguém vive apenas por viver e vive somente para procriar. O ser humano, além de uma
entidade biológica, é artífice de sua própria história.
Cético – Verdade? Hitler, Napoleão, Júlio César, Alexandre, Ramsés II, Kublai Khan,
Ivan, o Terrível, Stalin, Hitler e tantos outros ditadores antigos e modernos tinham a missão de
matar milhões de pessoas? Então, eles não podem ser responsabilizados por seus atos.
Teólogo – Eles agiram por conta própria ou se equivocaram em relação ao seu papel
na História. Deus, por certo, não lhes deu essa missão.
Cético – Mas, se eles erraram em sua missão, como Deus, sendo onisciente, não sabia,
de antemão, que eles falhariam. E, se sabia, porque lhes deu essa missão?
37
Teólogo – Mais uma vez, fica evidenciada a nossa incapacidade de compreender as
ações de Deus. Não apenas cremos n’Ele, mas também cremos que, por ser onisciente, Ele
sabe o que está fazendo.
Místico – Deus não tem propósito, porque ele é todas as possibi lidades. Somente os
indivíduos têm propósitos, porque este é o seu movimento para realizar todas as suas
possibilidades. Bhagavan Sri Rama Maharishi ensinava que “Deus não tem propósito” e, por
isso, “não está preso a qualquer ação”.
Filósofo – Sim, o significado que dermos a tudo isso. A vida sem significado é sem
valor.
Místico – Porque o ateu, pelos mais diversos motivos, ainda não se conectou com a
sua essência divina. Quando isso acontece a sua conversão se realiza espontaneamente,
porque ele encontrou a sua estrada de Damasco.
Místico – Talvez sim. Talvez não. Ninguém pode saber o que lhe acontecerá no futuro.
38
DEUS
Filósofo – A palavra Deus sofreu o desgaste do tempo. Precisamos criar uma nova
palavra para rediscutir o mistério da Vida. Não só uma nova palavra, mas um novo conceito. O
Deus das religiões é incompatível com a evolução do conhecimento de nossa época.
Místico – Todo ser é, na sua essência, Deus, porque Deus é tudo o que existe.
Chamamos de Deus o nosso modo pessoal ou coletivo de dar um significado à
realidade. É um processo de antropomorfização da realidade, que satisfaz a necessidade de
quase todas as pessoas.
Deus é realidade e n’Ele vivemos. Porém, o ser humano foi além da realidade que lhe
foi dada e descobriu que há outra realidade que não pode compreender. Essa descoberta o fez
duvidar de sua realidade e procurar a realidade verdadeira.
Por mais que sejamos deuses, nunca seremos Deus. Por mais que sejamos consciências
individuais, jamais seremos a onisciência de Deus.
Filósofo – Deus é a realidade ou faz parte da realidade? Se Deus é a realidade, cada ser
o percebe de certo modo. Assim, só conhecemos um minúsculo aspecto da realidade ou Deus.
Tudo o mais nos é desconhecido. Mas, se Deus é parte da realidade, o que é a realidade que
está além de Deus?
Se Deus criou a realidade, Deus era um ser irreal. E como poderia um ser irreal criar a
realidade?
Se a realidade criou Deus, ele faz parte da realidade. É, portanto, um ser criado e, não,
o Criador.
Mas, se Deus e a realidade são a mesma coisa, então tudo resulta do eterno dinamis-
mo da realidade e o que chamamos de Deus é tudo aquilo que da realidade não compreen -
demos, porque está acima da nossa capacidade de compreensão.
Se Deus é a realidade, então só percebemos de Deus o que percebemos da realidade.
Deus, sendo a realidade, é concebido segundo o grau de inteligência de cada pessoa e segundo
os seus condicionamentos culturais. A realidade, assim, não é apenas o que observamos, seja
por meio dos nossos sentidos e de suas extensões artificiais, mas também o que não ob -
servamos e o que não poderemos jamais observar.
Filósofo – Esse é o ponto. Não precisamos crer nele. No entanto, há filósofos malucos
que questionam a realidade e asseguram que tudo é ilusão. Ora, se tudo é ilusão, quem faz
esse questionamento?
Místico – O que é isso que os nossos impulsos elétricos decodifi caram como realidade?
Talvez seja a ação de um agente que a religião nomeou de Deus. A filosofia oriental ensina que
o mundo é um sonho de Brahma, ou seja, o Absoluto. Discordo, porém, da conclusão de que,
por isso, o mundo é ilusão. O mundo é real, porque é a ação contínua de Deus. Os homens
vêem da mesma forma a realidade, porque Deus criou para eles uma realidade comum.
39
Cético – Se a realidade é Deus, quase nada sobre ele sabemos ou poderemos saber. O
que é real não necessita de provas.
Filósofo – É uma questão humanamente insolúvel. Somos reais e somente uma parte
infinitesimal da realidade nos afeta. Além disso, tudo é mistério envolto em especulações
metafísicas.
Místico – Perguntar o que é Deus é o mesmo que perguntar o que é a realidade. Deus
não é parte da realidade: Ele é a realidade.
Todo ser é, na sua essência, Deus, porque Deus é tudo o que existe.
Deus é realidade e n’Ele vivemos. Porém, o ser humano foi além da realidade que lhe foi dada
e descobriu que há outra realidade que não pode compreender. Essa descoberta o fez duvidar
de sua realidade e procurar a realidade verdadeira.
Por mais que sejamos deuses, nunca seremos Deus. Por mais que sejamos consciências
individuais, jamais seremos a onisciência de Deus.
A filosofia oriental ensina que o mundo é um sonho de Brahma, ou seja, o Absoluto.
Discordo, porém, da conclusão de que, por isso, o mundo é ilusão. O mundo é real, porque é a
ação contínua de Deus. Os homens vêem da mesma forma a realidade, porque Deus criou para
eles uma realidade comum.
Cético – Se a realidade é Deus, quase nada sobre ele sabemos ou poderemos saber. O
que é real não necessita de provas.
Cientista – É uma questão humanamente insolúvel. Somos reais e somente uma parte
infinitesimal da realidade nos afeta. Além disso, tudo é mistério envolto em especulações
metafísicas.
Amit Goswama procurou explicar como Deus age. Albert Einstein queria conhecer os
pensamentos de Deus. São pretensões que excedem a capacidade do ser humano.
Cético – Se Deus é a realidade, quanto mais especularmos sobre ela, mais duvidaremos
do que sabemos.
Teólogo – Nesse ponto, você está de acordo com Santo Agostinho. Ele ensinava que
Deus é incognoscível e, paradoxalmente, quanto mais O conhecemos, mais O ignoramos.
Assim, para “compreender” Deus, nós o humanizamos, dotando-o dos mais altos atributos da
natureza humana. Compreendemos que Ele não é assim, mas que essa é a nossa manei ra de
sentir a Sua presença. Trata-se de uma nova óptica do antropomorfismo: não mais o
antropomorfismo ontológico, mas o antropomorfismo funcional, onde se sabe que Deus não é
como o homem O concebe, mas que é sentido como se fosse o homem perfeito, o modelo
ideal da nossa humanidade.
40
Filósofo – Se fomos programados para perceber a realidade dentro de um padrão, por
que a ideia de Deus não faz parte também dessa programação? Claro é que, à semelhança do
computador, o programa Deus só rodará em nossa existência, se o seu comando for
corretamente acessado. Dizer que esse programa é produto de um equívoco ou de um acaso,
é afirmar, implicitamente, que toda a programação do ser humano é uma grande ilusão ou, no
mínimo, não é perfeita por conter este erro grave.
Melhor será dizer que um programador, seja ele o que for, instalou no software da
natureza humana o comando identificador do seu autor, pois, na sua omissão, o homem
jamais poderia conhecer o seu criador.
Místico – Quando nos percebemos como indivíduos – esse é o nosso estado habitual –,
a realidade é uma multiplicidade de seres e coisas. Quando percebemos a realidade como um
Todo unificado é porque perdemos a noção de nossa individualidade. Deus é a realidade e
todas as individualidades são realidades transitórias. Como existência somos mortais, como
essência somos imortais.
Místico – A realidade é uma percepção alternativa. Quando Deus nos assume , não
existimos. Quando nos assumimos, Deus deixa de existir. Por isso, o individual jamais verá o
uni- versal.
Deus é a realidade onisciente.
Cientista – Para Amit Goswami, Deus é a consciência quântica, e o agente que provoca
o colapso quântico das probabilidades, das quais resultaram e resultam todos os universos.
Teólogo – Como alguém pode ser materialista, se a matéria não passa de uma ficção?
Místico – Deus não é quem. Nem é o que. Está além da compre ensão humana e o
vocábulo que o indica não o define.
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Filósofo – Deus, como a realidade total, é uma noção que perturba crentes e ateus,
acostumados que são a ideia de um Deus antropomórfico. No entanto, os infinitos aspectos da
realidade podem ser investigados, mesmo aqueles que não são passíveis de observação direta
ou mediante as extensões tecnológicas da nossa percepção.
Cientista – Einstein não via como divorciar a ciência de uma metafísica intrínseca. E
exclamou: "Sem a convicção de uma harmonia íntima do Universo, não poderia haver ciência."
Karl Popper advertiu que "num certo sentido, a ciência produz mitos - tanto quanto a
religião." Porém, disse ele “os mitos científicos estão sujeitos à revisão crítica".
A ciência tem sua própria metafísica e são seus pressupostos: a) a existência de um
mundo exterior; b) um universo constituído de coisas; c) coisas que se associam para formar
sistemas em que os elementos constituintes interagem entre si; d) a associação de cada
sistema a outros sistemas, podendo qualquer um deles ser também examinado como se
estivesse isolado dos outros sistemas; e) comportamento de todas as coisas obedecendo a leis.
Na Física, os cientistas trabalham também com entidades não-materiais, muitas das
quais denominadas de campos. A maioria destes campos está associada à matéria, como, por
exemplo, o campo eletromagnético. Outros não, como o campo métrico na relatividade geral.
E há, ainda, os campos de probabilidade, um dos fundamentais da Física quântica.
Os físicos modernos começam a falar uma linguagem metafísica. Erwin Schrödinger
postula a Mente Única; David Bohm, a Mente Holográfica; Henry Margenau, a Mente
Universal.
Por ser o holograma uma imagem estática, Bohm, em face da natureza dinâmica da
realidade, preferiu descrever o universo como um holomovimento. Ele não aceita a hipótese
de que as partículas não existem até que sejam observadas.
Postula a Física quântica que pode haver ligações e correlações entre acontecimentos
muito distantes na ausência de qualquer força ou sinal intermediário e de maneira
instantânea. Esta ação à distância foi designada de "princípio da não-localização", segundo o
qual qualquer coisa pode ser afetada por uma causa não-local.
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Místico – A revelação de Deus ao homem é sempre uma experiência pessoal,
despertando-lhe um sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização dessa
experiência é que resulta na permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais,
segundo as idiossincrasias de cada pessoa que se julga o seu intérprete.
Deus é sentido com uma experiência da unidade e sentimento de solidariedade e que
transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade.
Cético – Não acredito em revelação. Não acredito nas pessoas que se passam por
intérpretes de Deus, porque dizem que falaram ou ainda falam com ele.
Uma pessoa é confiável porque acredita em Deus? Uma pessoa não merece confiança
porque não acredita em Deus?
Há pessoas que se iludem, pensando que as suas ideias são re velações da divindade.
Filósofo – É o mal que acomete aqueles que se julgam profetas. E o mal que fazem às
pessoas que acreditam neles.
Cético – Por isso, é paradoxal que teólogos e filósofos religiosos queiram provar a
existência de Deus mediante o emprego da lógica.
O que se atribui a Deus é o poder do ser humano. A ciência cada vez nos demonstra
que nada é impossível. O que o homem pensar se tornará, um dia, realidade.
Filósofo – Para aqueles que acreditam que nada é impossível, a existência de Deus é
possível.
Místico – Deus pode ser experimentado nas mais diversas situações: nas crises
existenciais, na oração, nos alucinógenos, na meditação.
A fé em Deus resulta, algumas vezes, das experiências mais dramáticas do ser humano,
desde o êxtase ao extremo sofrimento. Deus é a experiência suprema. Mas, a ideia de Deus
pode ainda resultar de especulações metafísicas e racionais. É a mais exasperada tentativa de
significação para o universo e de tudo o que existe.
Uma coisa é acreditar em Deus e polemizar sobre o que Ele é. E outra, é experimentá-
Lo no êxtase, e nada poder dizer sobre o que Ele é. A ideia de Deus raramente decorre da
razão.
Cientista – Deus é uma questão de fé. A fé não pode fundamentar-se na ciência para
ser validada. Nem a ciência pode questionar a fé, porque esta não é adequada à metodologia
científica.
Filósofo – A razão não é inimiga da fé, como pensavam alguns teólogos católicos.
Embora sejam domínios cognitivos diferentes, em raras ocasiões, elas convergem.
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Filósofo – Para o Deísmo, o homem conhece Deus pela razão. Ele rejeita toda
revelação, dogmas e cultos. Prega a existência de um Deus pessoal que não intervém no
mundo criado, o qual é governado pelas leis da natureza. Para o Teísmo, o homem conhece
Deus pela revelação.
Místico – A ideia de Deus é inata ao homem, não porque Deus a colocou na mente
humana, como pensavam Agostinho e René Descartes, mas porque Deus está imanente em
cada ser, embora nem todas as pessoas e povos se conscientizem de Sua presen ça interior. Por
isso, argumentava Agostinho que Deus é o nosso mestre interior, porque está presente
essencialmente em nós, embora subjetivamente estejamos ausentes dele. É na reflexão do
homem sobre si mesmo que ele encontra seu Deus imanente.
Cético – As pessoas têm a ideia de Deus porque foi a cultura que o programou para
isso como forma de controle social. Deus, nessa acepção, é o poder supremo ao qual estão
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subordinados todos os poderes terrenos. E seus representantes na Terra possuem poderes por
ele delegados para disciplinar a vida social.
Filósofo – Essa estratégia política não invalida a ideia de Deus, porque constitui apenas
uma forma de manipulação do poder para submeter os indivíduos ao controle de instituições e
grupos religiosos, principalmente os mais fanáticos.
Místico – Deus é uma experiência pessoal. Não há lugar e tempo para o encontro com
Ele. E essa experiência é indescritível e solitária. Quem O encontra não discute mais sobre Ele.
A dúvida passa a ser um problema dos outros.
As pessoas que passaram por uma experiência de quase-morte (EQM) perderam essa
dúvida.
Cético – Essas experiências ditas espirituais estão sendo explicadas pela química do
cérebro e ativação de certas áreas cerebrais, quando estimuladas. Não há nada de espiritual
nisso.
Místico – Então, tudo isso decorre de uma programação biológica, inclusive a ideia de
Deus, que nos faz passar por essa experiência, uma vez ativada por motivos mais diversos.
Assim, é de se perguntar: qual a finalidade desse tipo de atividade cerebral como mecanismo
de defesa para a sobrevivência do ser humano? Será a ideia de Deus apenas um luxo
bioquímico?
Cético – Deus é uma experiência bioquímica, deflagrada pela ativação de uma área do
cérebro.
Michael Persinger estimulou partes dos seus lobos frontais e disse ter tido a
experiência de Deus
Melvin Morse informou: “Da mesma forma que temos uma área cerebral destinada à
fala e outra que nos permite recobrar o equilíbrio quando tropeçamos e quase caímos, temos
uma área dedicada à comunicação com as coisas místicas. Funciona como uma espécie de
sexto sentido. Em suma, essa área é o "sensor de Deus".”
Quando estimulava eletricamente as áreas adjacentes da fissura, os pacientes com
frequência tinham a experiência de "ver a Deus", ouvindo uma bela música, vendo amigos e
parentes mortos, e tendo um retrospecto panorâmico da vida.
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Místico – Como poderíamos ter o sentimento da existência de Deus, se não tivéssemos
um programa, uma localização no cérebro, uma conexão neurônica especial, uma alteração
bioquímica que nos dessem essa experiência extraordinária da unidade de tudo, interpre tada
como revelação de Deus? O acionamento do programa Deus pode ocorrer pelas mais diversas
circunstâncias, a maioria delas traumática. Essa experiência produz uma modifi cação radical no
ser humano. Ele se torna convicto da unidade de tudo, de que faz parte dessa unidade e de
que matar e morrer é uma ilusão resultante da ideia da separatividade.
Teólogo – Para Espinosa, a essência de Deus implica em sua existência. Ele é infinito,
único, eterno, imutável, indivisível, causa e conservação de tudo, dotado de uma infinidade de
atributos e modos. Embora causa do mundo, ele não é causa externa e transcendente, mas
causa interna e imanente, porque os modos da substância possuem, intrinsecamente, as
propriedades dela. Deus é a ordem necessária e geométrica, que transcende a razão humana.
Leibniz encontrou no que denominou de princípio da harmonia preestabelecida, uma
prova a posteriori da existência de Deus. Se tudo deve ter uma razão suficiente de sua
existência e se nenhuma coisa existente tem em si essa razão, é evidente que existe Deus
como razão suficiente de todo o universo.
Pascal enfatizou: "Pode-se saber bem que há Deus, sem saber o que ele é."
Para Kierkegaard, o homem não tem a prova, mas a vocação de Deus.
Maine de Biran postulou existir, no homem, um "sentido íntimo", uma espécie de
"revelação interior", que nos demonstra a presença divina na ordem do uni verso.
Krishnamurti sempre se insurgiu contra a intelectualização do relacionamento do
homem com a Divindade: "Se pensais em Deus, esse Deus é uma criação do vosso pensar."
Místico – Deus não se prova, nem se explica: é a suprema expe riência da fé. Tudo o
que d'Ele dissermos não passa de um reflexo de nós mesmos. Todas as "provas" intelectuais da
existência de Deus resultaram inconclusivas, irremediavelmente contaminadas de
antropomorfismo, projetando sobre Ele os conceitos humanos de amor, bondade, j ustiça,
inteligência, perfeição, vontade, ação e até emoção.
Os intérpretes de Deus são, na verdade, intérpretes das necessi dades coletivas,
segundo cada contexto histórico.
A revelação de Deus no homem é sempre uma experiência pessoal, despertando um
sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização desta experiência é que
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resulta na permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais, segundo as
idiossincrasias de cada pessoa que se julga o seu intérprete.
Deus, assim, é sentido por essa experiência da unidade e sentimento de solidariedade
e que transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade. O amor que ele
sente em Deus é uma das formas de decodificação desta experiência. Por isso, Ramakrishna
ensinava que Deus se manifesta no devoto de conformidade com a necessidade do devoto.
Filósofo – A ideia de Deus surge, quase sempre, nas situações mais dramáticas do ser
humano, desde o êxtase ao extremo sofrimento. Ela pode ainda resultar de especulações
metafísicas e racionais. É a mais exasperada tentativa de significação para o universo e de tudo
o que existe.
Teólogo – Deus não pode ser entendido racionalmente, pois a razão é a medida do
homem. Todo exercício lógico para compreender a Divindade é irremediavelmente condenado
ao fracasso. Deus é o eterno incognoscível.
Cético – Então, a teologia é vã, quando procura compreender Deus mediante o uso da
razão. A fé não resulta de um raciocínio lógico. A razão não prova a fé.
Cientista – Não existe lógica na Natureza. A lógica é uma invenção do homem para
organizar os acontecimentos de conformidade com as suas necessidades e interesses. É uma
ferramenta, nada mais.
Dizer que a vida é lógica é dizer que só existe o que a ferramenta faz.
A lógica é a relação harmoniosa entre os componentes de um dado contexto, o qual é
resultado de uma convenção. Assim, toda lógica é em relação a. Ao que está fora do contexto
não se pode aplicar a lógica deste contexto.
A lógica é uma ferramenta cognitiva de grande utilidade, porém inválida para conhecer
a realidade total.
Henri Poincaré sustentava que a intuição inventa e a lógica de monstra: "Adivinhar
antes de demonstrar! Será preciso recordar que foi assim que se fizeram todas as descobertas
importantes?!"
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intelectual de Deus. A unidade da substância está além da razão humana e só a intuição é
competente para entendê-la.
Cientista – Claude Bernard foi mais enfático: "A única fonte dos nossos erros são a
razão e o raciocínio."
Segundo Einstein, "não existe nenhum caminho lógico para a descoberta das leis
elementares do universo - o único caminho é o da intuição."
E observou: "O mecanismo do descobrimento não é lógi co e intelectual - é uma ilumi-
nação subitânea, quase um êxtase. Em seguida, é certo, a inteligência analisa e a experiência
confirma a intuição."
Por isso, disse ele: "Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar,
mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela."
E concluiu: "A mente avança até o ponto onde pode chegar; mas depois passa para
uma dimensão superior, sem saber como lá chegou. Todas as grandes descobertas realizaram
esse salto."
Místico – Em Deus estão todas as respostas. Mas, raras vezes, fazemos as perguntas
corretas. É essa “abertura” do indivíduo para o Todo que enseja as descobertas e os inventos
Cético – Martinho Lutero era um inimigo declarado da razão. Ele vociferava: ”A razão é
o maior inimigo que a fé possui; ela nunca aparece para contribuir com as coisas espirituais,
mas com freqüência entra em confronto com a Palavra divina, tratando com desdém tudo o
que emana de Deus”.
Seu furor vai além: “Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”.
E arrematou: “A razão deve ser destruída em todos os cristãos.”
Místico – Os teólogos fanáticos pensam assim. Martinho Lutero foi ainda mais
delirante quando esbravejou que “a razão é a meretriz do Diabo, que nada faz a não ser
difamar e corromper tudo o que Deus diz e faz”.
Cético – O diabo de Lutero é mais forte do que Deus, pois pode prejudicar o que Deus
diz ou faz.
Essa estreiteza intelectual de alguns teólogos é exemplificada pela afirmação de Tomas
de Aquino que dizia ser um homem de um só livro.
Místico – Deus é incompreensível. Está além da lógica e da razão. E só pode ser intuído
pela fé. Blaise Pascal escreveu: “É o coração que sente Deus e não a razão.”
Cético – Tudo o que foi dito até agora, não passa de um jogo intelectual para explicar
uma fantasia do ser humano. Deus é uma idéia que provoca a mais forte e desvairada paixão. É
um alucinógeno coletivo que faz delirar a humanidade desde as eras mais remotas. O crente,
ante a complexidade cada vez maior da vida contemporânea, sente -se necessitado de um
“Salvador” para a solução de seus problemas existenciais.
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Teólogo – O racionalismo radical emburrece as pessoas. É o fundamentalismo da
razão. A fé pode ser comparada a um ideal. Quem não tem ideal está existencialmente
entorpecido. Todos nós precisamos de emoções. A fé é a melhor de todas as emoções.
Cético – Foi por isso que Richard Feynman ironizou: “Acho que posso afirmar com
segurança que ninguém entende a mecânica quântica”.
Cientista – A opinião de Niels Bohr é diferente: “Quem não se sentiu abalado quando
teve contato pela primeira vez com a teoria quântica não pode tê -la entendido”.
Místico – Deus é uma experiência pessoal. Não há lugar e tempo para o encontro com
Ele. E essa experiência é indescritível e solitária. Quem O encontra não discute mais sobre Ele.
A dúvida passa a ser um problema dos outros.
As pessoas que passaram por uma experiência de quase-morte (EQM) perderam essa
dúvida.
Cético – Essas experiências ditas espirituais estão sendo explicadas pela química do
cérebro e ativação de certas áreas cerebrais, quando estimuladas. Não há nada de espiritual
nisso.
Místico – Então, tudo isso decorre de uma programação biológica, inclusive a ideia de
Deus, que nos faz passar por essa experiência, uma vez ativada por motivos mais diversos.
Assim, é de se perguntar: qual a finalidade desse tipo de atividade cerebral como mecanismo
de defesa para a sobrevivência do ser humano? Será a ideia de Deus apenas um luxo
bioquímico?
Místico – Deus não é para ser conhecido, nem compreendido, mas experimentado na
nossa existência, como o ar que respiramos. É na experiência da desindividualização que
presentificamos a Divindade. Deus está, quando não estamos, porque somos a consciência da
unidade de todas as coisas.
Quem passou pela experiência mística de Deus, não sabe como explicá-la. Quem não
passou, procura explicá-la.
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Cético – Se eu fosse um deus, preferiria os questionadores e não os carolas.
Já se diz com propriedade que o Deus em que muita gente acredita é o Deus das lacunas.
Richard Dawkins comparou a crença em Deus a um vírus psíquico.
Místico – A ideia de Deus não resulta das lacunas, mas dos detalhes do conhecimento.
Quanto mais a pesquisa se aprofunda nos detalhes, mais evidente se torna est ruturas da
realidade que dificilmente se pode explicar pelo acaso.
A descrença é também um vírus psíquico, porém de limitada capacidade de
proliferação.
Cético – Logo, estão equivocados aqueles que afirmam que conhecem Deus, que
falaram ou ainda falam com Deus.
Místico – Concordo. O mesmo afirmou Hamza Fansûr: “Ninguém vê Deus, a não ser
Deus”.
Teólogo – A ideia de Deus aparecer às suas criaturas para que elas creiam nele é
lamentavelmente infantil. É o mesmo que se argumentar: mostre um átomo e eu acreditarei
na existência dele. O que não é percebido não é prova de sua inexistência.
Cético – No entanto, conforme o relato bíblico, Moisés teve um encontro com Iavé e
dele recebeu, pessoalmente, o Decálogo, gravado em pedra.
Cético – Quando alguém diz que viu Deus, falou com Ele, é o seu enviado, por certo,
alucinou ou está enganando as pessoas crédulas, que constituem a maioria da humanidade.
Místico – Deus não se faz pessoa para lidar com os seres humanos, mas estes fazem-
no pessoa para se sentirem em contato com Ele.
Teólogo – Sim. Essa experiência reforça a fé das pessoas crentes e destrói o ateísmo
das que eram, até então, materialistas, céticas. É uma “prova” da existência de Deus, mas não
do conhecimento de Deus.
Místico – Exato. Mas isso lhes basta. E é algo importante para as suas vidas. Para
Mestre Eckhart, algumas pessoas desejam ver a Deus com seus olhos assim como vêem uma
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vaca, e amá-Lo como amam suas vacas — pelo leite, pelo queijo e pelo lucro que lhes traz. Isto
acontece com pessoas que amam a Deus visando à riqueza externa e ao conforto interno. E
indagava: por que tagarelar tanto a respeito de Deus, se tudo o que d’Ele se disser é mentira?
Dionísio, o Areopagita, ensinava que, para se alcançar uma união completa com Deus,
deve-se abandonar toda e qualquer concepção de Deus. É o que se conhece pelo nome de
teologia negativa.
Cético – A nossa limitação cognitiva não é prova de que Deus existe. Deus existirá
enquanto existir a humanidade. Ele não é criador, mas criatura.
Teólogo – Deus não é o reflexo das nossas necessidades, mas Ele é percebido segundo
as nossas necessidades. Ele não é como O compreendemos, mas, para nós, é como O
compreendemos. A compreensão de Deus é a consciência da nossa absoluta incapacidade de
compreendê-Lo.
Cético – O que demonstra que Deus é apenas uma resposta às nossas necessidades.
Místico – Eu não posso conhecer Deus. Ele é quem se faz conhe cido a mim na
proporção de minhas necessidades.
Deus não é um ídolo para ser adorado, mas uma experiência a ser vivida. Ele não é
algo a que se socorre, mas o sentimento de plenitude que nos ocorre em momentos especiais
de nossa vida. Não é algo dentro ou fora de nós, mas a totalidade que nada exclui e tudo inclui.
Cada ser é a presença setorizada de Deus.
Místico – Sim. Ninguém conhece Deus objetivamente. Ele não é objeto, mas o sujeito
em todas as relações com Ele mesmo.
Podemos, objetivamente, medir uma mesma ideia em pessoas diferentes?
Místico – Por que eu trocaria o encantamento de Deus pela geli dez da dúvida, pela
estreiteza circular da lógica, pelo reducionismo do método científico e pelas sandices da
teologia salvacionista?
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são as muletas
dos abstêmios de Deus.
Cético – Poetas e místicos encantam, mas a razão nos desencanta. Deus é apenas um
sonho contagioso.
Cientista – Essa não é a opinião de Descartes. Disse ele: “Pode parecer surpreendente
haver mais pensamentos profundos nos escritos poéticos do que nos filosóficos. O motivo é
que os poetas escrevem sob a influência do entusiasmo e da força da imaginação. Existem em
nós sementes de ciência como em um sílex sementes de fogo; os filósofos as extraem pela
razão, os poetas as arrancam pela imaginação; elas brilham então ainda mais”.
Erwin Laszlo foi mais incisivo: “O universo é muito mais complexo do que qualquer
pessoa – exceto os poetas e os místicos – já ousou imaginar”.
Teólogo – Tenho fé em Deus. É uma fé inquebrantável. Por isso, posso dar-me ao luxo
de fazer aos ateus uma aposta. Aposto que Deus existe, porque não se pode fazer a prova de
que ele existe ou não existe. Assim, vivo feliz na aposta que é a minha fé.
Outros poderão apostar em contrário, nomeando sua crença de ceticismo, realismo,
racionalismo, positivismo, materialismo, etc.
Qual de nós, sem sombra de dúvida, estará vivendo na ilusão? Só o futuro, talvez, dirá.
No entanto, se eu perder a aposta, ao menos vivi toda a minha vida numa ilusão feliz. E, se
ganhar, já fui feliz antecipadamente e continuarei sendo por toda a eternidade.
Se os meus opositores perderem a aposta, terão sofrido inutil mente por uma ilusão
infeliz. E, se ganharem, terão perdido para sempre a única oportunidade de viver com
felicidade numa realidade infeliz.
Filósofo – Trata-se de uma aposta metafísica pragmática na qual aquele que aposta
em Deus sempre é o vencedor.
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Teólogo – Deus existe independentemente de nossa subjetividade e ainda se não
existíssemos.
Filósofo – Um Deus, que pode ser explicado, está à altura da cognição humana e,
portanto, não é Deus.
Cético – Deus é uma espécie de dopamina, que é liberada nos momentos de crise
sobre o significado de sua existência nas pessoas que são predispostas às experiências. Por
isso, os ateus não passam por essa experiência.
Místico – Eis um bom motivo para, através da prece, do êxtase natural ou induzido por
drogas, possam os crentes obter a experiência de Deus. Isso, porém, não exclui a existência de
Deus extra-cérebro.
Cético – Não se pode conhecer o que não é. Se Deus existe, ele é quem ou o quê?
Místico – Deus não é quem. Nem é o quê. Está além da compre ensão humana e o
vocábulo que o indica não o define. Ele é o agente de tudo. É a realidade em ação.
Cientista – Embora não seja filósofo, estou de acordo com a opinião Kant ao refutar as
provas a priori e a posteriori de Deus, argumentando que ele está além da experiência, do
universo fenomênico, porque este é o limite do conhecimento humano. Logo, a razão é
incompetente para provar a existência ou a inexistência de Deus. Somente a fé, a que Kant
denominou de razão prática, pode conhecê-lo.
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Cético – Isso não passa de alienação.
Místico – Deus é uma intuição do homem, mas que está acima de sua compreensão.
Basta-nos somente o sentimento de sua invisível presença.
Deus, para mim, é o melhor que eu posso conceber. E embora saiba que Deus não é
isso, isso, porém, me basta.
Místico – Deus não é o que pensamos, mas pensar em Deus é, para nós, uma
necessidade. O pensamento sobre Deus é o nosso mais elevado ícone. O nosso ópio é
confundirmos Deus com os seus ícones, sejam eles materiais ou psíquicos. Tudo o que pen -
sarmos sobre Deus não passará do que pensamos sobre Deus, e não Deus. O que pensamos
sobre Deus é o que nos afeta. Pensar sobre Deus é reduzi -lo ao tamanho de quem n’Ele pensa.
Místico – A ideia de Deus não resulta das lacunas, mas dos detalhes do conhecimento.
Quanto mais a pesquisa se aprofunda nos detalhes, mais evidente se torna estruturas da
realidade que dificilmente se pode explicar pelo acaso.
A descrença é também um vírus psíquico, porém de limitada capacidade de proliferação.
FÉ
Místico – A fé não diz respeito às coisas possíveis, mas às que parecem impossíveis.
Para Roger Garaudy, fé começa onde a razão vacila ou se detém.
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Filósofo – A fé não é a afirmação do absurdo, mas a conscientização de que o absurdo
é não ter fé.
Crer é uma atitude espontânea como o ato de respirar. Ninguém é obrigado a crer e,
se crê por obrigação, na verdade não crê.
Místico – Deus não “precisa” que acreditemos nele. O problema é nosso. As pessoas
podem ser felizes acreditando ou não acreditando em Deus.
Místico – O fato de não compreendermos uma pessoa não nos impede de confiarmos
nela.
55
Cético – Para a maioria dos crentes, fé e superstição se confundem. Atletas e
dirigentes de clubes esportivos, por exemplo, fazem promessas a santos e orixás para que lhes
dê a vitória nos jogos que disputam com seus adversários. Quando vencem atribuem a Deus a
vitória e lhe mostram gratidão.
Místico – A fé, e não a razão, é o artífice do nosso destino. A fé cria suas próprias
razões. E a razão se faz sua própria fé.
Vivemos ou morremos pela força do que cremos. A nossa vida é consequência do que
cremos.
Místico – Então, podemos substituir a expressão “Pai nosso que estais no Céu” por
“Deus nosso que estais em nós”. Quanto mais temos fé, maior é a ação do nosso Deus
imanente.
Místico – E também os que fazem da razão a fé de sua vida. Alguns dos que pensam de
um modo ou de outro se tornam fanáticos resistentes a alegações em contrário.
Teólogo – A fé, não o fanatismo, faz bem a saúde. As pessoas que têm fé suportam
melhor as agruras da vida.
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e sustenta o próprio mundo.
Tudo é um ato de fé.
E a fé, que tudo sustenta,
é também insustentável
alicerce assentado
sobre o solo do vazio.
Onde está o chão do mundo?
Místico – A fé me faz feliz. Pouco me importa que ela seja uma ilusão. Nem sempre a
razão está certa. Há pessoas que buscam ser felizes na ingestão de bebidas alcoólicas e no
consumo de drogas estupefacientes. É uma felicidade química e transitória, não uma felicidade
real e permanente.
Teólogo – Em certas circunstâncias, duvidar é pôr à prova a sua fé. Não foram poucos
os místicos que experimentaram momentos de dúvida, estado psicológico a que João da Cruz
deu o nome de “noite escura da alma”. Do mesmo modo, houve descrentes que, em algum
momento de suas vidas, experimentaram vacilação em sua dúvida.
Filósofo – O mesmo se pode dizer do ateu convicto, quando sua certeza, então
inabalável, sofre um colapso por uma experiência mística esmagadora. Só que existe uma
diferença: o místico recupera a sua fé e o ateu nem sempre restabelece sua certeza.
Místico – A fé não necessita do milagre. Se necessitasse, não seria fé. Para Alan Watts,
a fé é “um mergulho no desconhecido”.
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Místico – A fé é conhecimento sem necessidade de prova, e é também ação da
vontade, que pode produzir fatos que pareciam impossíveis e a realização destes fatos são
considerados pela religião como milagres.
Filósofo – A dúvida não é a afirmação de que tudo é incerto, pois isso seria negação da
dúvida. Quando perdemos todas as certezas é que ficamos certos de que nada perdemos. A
incerteza gera muitas possibilidades. A certeza, apenas uma.
Cético – O dogma é o cansaço da razão. O homem que não duvida, cansou de crescer.
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Cético – Devemos duvidar de tudo, porque não temos certeza de nada.
Cientista – Se não temos certeza de nada, como podemos afirmar ou negar qualquer
coisa? O que temos são opiniões ou crenças às quais damos o nome de conhecimento porque
nos parecem verdadeiras e, por isso, orientamos nossa vida em razão delas.
Cético – Admiro o que ensinou Buda, como o faria um cético: “Não acrediteis numa
coisa apenas por ouvir dizer. Não acrediteis na fé das tradições só porque foram transmitidas
por longas gerações. Não acrediteis numa coisa só porque é dita e repetida por muita gente.
Não acrediteis numa coisa só pelo testemunho de um sábio antigo. Não acrediteis numa coisa
só porque as probabilidades a favorecem ou porque um longo hábito vos leva a tê-la por
verdadeira. Não acrediteis no que imaginastes, pensando que um ser superior a revelou. Não
acrediteis em coisa alguma apenas pela autoridade dos mais velhos ou dos vossos instrutores.
Mas, aquilo que por vós mesmo experimentastes, provastes e reconhecestes verdadeiro,
aquilo que corresponde ao vosso bem e ao bem dos outros - isso deveis aceitar e por isso
moldar a vossa conduta.”
Filósofo – Roger Bacon argumentava que a fé, por si só, não é suficiente para
compreender a natureza das coisas. Nem também a razão. Por isso, se faz necessária a
experiência para verificar e confirmar os dados da fé e da razão.
Místico – A razão nem sempre está certa. Por isso, Blaise Pascal advertiu: “Dois
excessos: excluir a razão, só admitir a razão.”
Cientista – Se Deus é a experiência humana que está acima da própria razão, tudo o
que for dito sobre Ele é o que o homem pensa como consequência desta experiência.
Místico – Deus é o atrator supremo do universo. Por isso, o homem se sente atraído
em direção a algo que é maior do que ele, embora nunca saiba o que é. O teotropismo é uma
inclinação inata no ser humano.
Místico – Deus é a única realidade objetiva. Tudo o mais não passa de Sua
subjetividade.
Tudo o que falarmos a respeito de Deus é mais uma história a respeito de Deus, mas
não é Deus. No entanto, é uma história que, enquanto responder às nossas necessidades
metafísicas, se constituirá em referencial e significado para a nossa existência.
Deus é o fogo que aquece e queima. É a água que nos sacia e nos afoga.
Mas, é preciso lembrar que a luz que ilumina também ofusca. São necessários olhos
especiais para encarar, com proveito, a luz e a escuridão de Deus. Deus é como a luz. Para vê-
59
Lo, é preciso reduzir a intensidade de Sua presença à limitada capacidade de nossa visão e
compreensão.
Teólogo – Deus é explicação para tudo, exceto para Ele próprio. Ele é a explicação para
tudo o que não compreendemos.
Deus não é um conceito, mas uma experiência humana impossível de ser conceituada.
Místico – Deus, para nós, não é só o supremo mistério, mas também o paradoxo e o
caos que inutilmente procuramos dar sentido, organização e lógica.
Cético – Se pouco sabemos sobre nós mesmos, como poderemos explicar o que
excede a nossa capacidade cognitiva? A teologia é uma mitologia que obteve credibilidade
pela sedução de seu imaginário. Apesar de, em alguns casos, ser um placebo para a angústia
metafísica do ser humano, ela também produz efeitos colaterais que podem agravar as
condições existenciais, produzindo as mais variadas sintomatologias como medo, ansiedade,
fanatismo, sentimentos de culpa, busca de salvação e outras coisas mais.
Filósofo – A consciência, cada vez mais aguda, da nossa ilimitada ignorância, resulta
em um encantamento sempre maior pelo mistério da vida. E esse mistério é o Deus daqueles
que não acreditam nas teologias, porém respeitam todas elas.
Filósofo – Deus é o modo como cada pessoa e cada religião concebem a Divindade ou
o Todo. Por isso, as concepções sobre Deus são necessariamente contraditórias. Podemos, por
isso, fazer as mais diversas conjecturas sobre Deus, conscientes de que nenhuma delas é
concludente, exaustiva, verdadeira, embora seja uma convicção inabalável para aqueles que
nele crêem.
Cético – Mas Deus também pode ser uma projeção do que há de pior no ser humano.
Daí, a crença em um Deus vingador, punidor, malévolo, aterrador, que gosta de ser adorado,
glorificado e que exige que as pessoas se humilhem para satisfazer seu orgulho.
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Cientista – Por isso, Einstein dizia: “Não posso imaginar um Deus a recompensar e a
castigar o objeto de sua criação.”
Cético – Deus é o nome pelo qual designamos tudo o que não sabemos e é também
uma explicação para tudo o que não compreendemos.
O que não sabemos explicar, explica a existência de Deus? Se assim for, enquanto não
explicarmos tudo, Deus existirá. Se, um dia, o ser humano explicar tudo, a ideia de Deus,
definitivamente, desaparecerá.
Cientista – É uma especulação descabida. A ciência nunca explicará o que está fora do
seu alcance. Não me parece razoável ir ao extremo reducionismo, alegando que tudo o que
existe foi o resultado de uma feliz combinação de partículas elementares.
Teólogo – Todos somos teocêntricos. Estamos sempre em busca de Deus. Por isso,
concordo com o que escreveu Deepak Chopra: “Deus para nós não é uma escolha, mas uma
necessidade”.
Teólogo – Para alguns, essa necessidade latente em cada ser humano, só é acessada
nos momentos de extrema aflição em suas vidas.
Filósofo – Ou seja, usando de uma metáfora: como a onda pretende encontrar o mar
se ela faz parte do mar?
Um Deus concebido e compreendido é apenas um Deus humani zado e feito na medida
de nossas carências.
Cético – Por não aceitarem essas especulações metafísicas e poéticas, os ateus negam
a existência de Deus.
61
AÇÃO DE DEUS NO MUNDO
Cético – Se Deus não é matéria, como pode ele agir sobre a matéria? Como o que é
imaterial tem ação sobre a matéria?
Místico – E por que não? Se Deus e a matéria fossem separados, Deus não seria tudo.
Seu raciocínio está viciado pela crença de muitos teólogos e místicos de que a matéria é má,
de que o corpo é a prisão do espírito.
Cientista – É o mesmo que indagar como a mente age sobre o organismo, como os
pensamentos influem sobre os processos biológicos, como os distúrbios orgânicos afetam o
nosso modo de pensar.
As pesquisas parapsicológicas têm demonstrado que a mente, em certas
circunstâncias, age sobre a matéria. Essa relação mente-matéria é denominada psicocinesia. O
problema é como a mente age sobre o mundo exterior.
Filósofo – Se a matéria, tal como a concebemos, não existe, Deus não age sobre ela,
mas sobre si mesmo.
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passado daquela entidade, de sua própria ação e da ação de Deus. Aqui, embora transcenda o
mundo, Deus é imanente ao mundo de um modo específico na produção de cada evento. Não
há uma sucessão de eventos puramente naturais, interrompida por lacunas onde somente
Deus opera.”
Cético – George Bernard Shaw foi contundente: “O fato de um crente ser mais feliz do
que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz do
que um sóbrio”.
Místico – O milagre não vem de Deus, mas da fé das pessoas que acreditam n’Ele. A fé
é o momento de abertura que nos coloca em relação com Deus interior ou imanente. Quem
não tem fé, jamais experimentará o milagre. Nosso Deus imanente está sempre disponível
para nós. Nós, no entanto, raramente nos dispomos para Ele.
Deus transcendente não faz milagre. É o ser humano que realiza coisas milagrosas com
o poder de sua fé. Nesse caso, o milagre é um acontecimento que está além da capacidade
humana em seu estado normal e em nível consciente. Daí, a afirmação de Jesus: ”Se tiverdes
fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Move-te daqui para acolá, e ele se moverá.
Nada vos será impossível.”
Jesus jamais afirmou que Ele ou Deus curou alguém. Quando o fazia, dizia ao beneficia-
do: vai, tua fé te curou.
63
Cientista – Temos de reconhecer que a Igreja Católica tem sido cautelosa em relação
aos fenômenos paranormais. As estigmatizações, por exemplo. A Igreja, oficialmente, aceita
apenas, até agora, as de Francisco de Assis.
Os crentes e os estigmatizados proclamam que se trata de um milagre. Os céticos
estão convictos de que tudo não passa de fraude, porque muitas de tais estigmatizações foram
comprovadamente fraudulentas. Mas, como se tem constatado a ação da mente sobre o
organismo, é admissível a hipótese de que um estado emocional intensificado, ou auto-
hipnose, explique esse “milagre”.
Teólogo – Deus não está submetido às leis que criou. O milagre é uma prova disso. Ele
revela o poder de Deus e a Sua liberdade absoluta.
Cético – Se Deus, em sua onisciência, fez as leis da natureza, por que ele as contraria?
Se elas são derrogadas, é porque não eram perfeitas, o que demonstra que Deus não é
perfeito nem onisciente. Mas, se assim procede, porque quer, para demonstrar a sua
onipotência, mediante os milagres, então dá um péssimo exemplo à humanidade, j ustificando
os atos das pessoas que não cumprem as leis.
A ciência, um dia, explicará cada milagre. É só uma questão de tempo.
Místico – Jesus afirmou que todos nós somos deuses. Então, todos nós somos capazes
de fazer “milagres”. Se todos somos um, cada um de nós poderá realizar prodígios, utilizando o
nosso potencial a que damos o nome de Deus imanente.
ANTROPOMORFISMO
Teólogo – Deus criou o mundo e nos fez à Sua imagem e seme lhança. Portanto, a
espécie humana tem a mesma natureza de Deus.
Místico – Tudo o que existe tem a natureza de Deus e não apenas os seres humanos.
Deus é a essência de tudo.
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Cético – A concepção antropomórfica da Divindade suscitou difi culdades
intransponíveis ou aporias. Xenófanes, o primeiro filósofo que combateu o antropomorfismo,
argumentava: “Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos e pudessem, com elas, pintar e
produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos
e os bois semelhantes aos bois, cada (espécie animal) representando a sua própria forma."
Montesquieu asseverava que se os triângulos tivessem um deus, ele teria três lados.
Espinosa combateu o antropomorfismo, asseverando que Deus não está sujeito a
paixões e, assim, não ama e nem odeia, pois a paixão é uma afecção inerente ao corpo.
Se os animais acreditassem em um deus à sua imagem e semelhança e praticassem
teologia, o predador diria que seu deus é bom e a presa procuraria explicação para a maldade
de seu deus.
Epicuro argumentava: "Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não
quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é
impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que do mesmo modo é contrário a
Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e
quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males?
Por que razão é que os não impede?"
E Lactâncio aduzia: Deus sabe que o mal existe, pode suprimi-lo e não quer fazê-lo: tal
Deus seria mau, logo inadmissível. Deus sabe que o mal existe, quer impedi-lo e não o pode:
neste caso não seria onipotente, logo inadmissível. Deus ignora que o mal existe, donde Deus
ininteligente e, portanto, também inadmissível.”
Eu jamais acreditarei em um Deus, na forma em que ele é apresentado pelas religiões.
É um Deus mirim e imaturo que apenas impressiona as pessoas ingênuas.
Feuerbach via a ideia de Deus como mera projeção das necessi dades emocionais do
homem. E argumentava que Deus é "a ânsia de felicidade do homem satisfeita na fantasia" e
“portanto essencialmente um ser que realiza os desejos do homem."
Deus é uma necessidade psicológica do ser humano.
Carl Sagan foi incisivo: “A ideia de que Deus é um gigante barbudo de pele branca
sentado no céu é ridícula. Mas se, com esse conceito, você se referir a um conjunto de leis
físicas que regem o Universo, então claramente existe um Deus. Só que Ele é emocionalmente
frustrante: afinal, não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade!”
Cientista – Palavras e números são invenções humanas e, por isso, inúteis para a
compreensão do real.
Filósofo – O Deus teológico é pequeno demais como explicação para o universo. Por
que fizemos de Deus um ser semelhante a nós, pensamos que ele é uma imagem maior do ser
humano e, por isso, dotado de seus atributos.
Einstein afirmou categoricamente: “A ideia de um Deus pessoal me é bastante
estranha, e me parece até ingênua”.
É fácil ser ateu: basta uma reflexão sobre o Deus formatado pelas religiões.
65
Deus não é o ser que idealizamos e antropomorfizamos. Deus é a realidade e, por isso,
não tem atributos humanos.
Porque somos partes da realidade, somos seres reais, dotados de atributos resultantes
dos nossos padrões e valores culturais e das nossas relações interpessoais.
Deus não é uma pessoa, é a realidade. Por isso, cada ser, seja qual f or a sua espécie,
percebe a realidade (Deus), segundo a sua estrutura orgânica e, no caso do ser humano, de
conformidade com a sua cultura e o seu grau de inteligência.
ATRIBUTOS
Cético – De que vale esse Deus afinal? Dispensá-lo, não nos faz falta alguma?
Místico – De que serve a realidade? Para que servimos nós, seres humanos?
Teólogo – Deus não é humano, mas se fez homem, na pessoa de Jesus, para salvar a
humanidade.
Cético – Afinal, Deus, em Jesus, veio salvar-nos de que? Essa história do pecado
original só impressiona as pessoas crédulas. A humanidade continua a mesma.
Místico – Há aqueles que dizem (e talvez acreditem) que são a mais alta manifestação
de Deus. É o caso dos avatares indianos.
Cético – Como não podemos fazer tudo, acreditamos em um ser que pode tudo. Como
não podemos estar simultaneamente em todas as partes, acreditamos em um ser que é
ubíquo.
As pessoas amorosas concebem Deus como um Ser de amor. As rancorosas, como um
Ser punidor. As injustiçadas, como um Ser de Justiça. As sofredoras, como um Ser consolador.
As que se sentem pecadoras, como um Ser salvador.
66
Com o avanço sempre crescente do conhecimento científico e tecnológico, as pessoas
se sentem mais desejosas de poder, de estar, embora virtualmente, em todos os lugares e de
saber todas as coisas para dominar o universo.
Teólogo – Não temos qualquer evidência de que todas as pessoas pensem assim.
Místico – Não há bons nem maus pensamentos. Bem e mal são produtos culturais. As
coisas são o que são, mas as pessoas fazem dela o que lhes interessa.
67
simbólica dos nossos recalques, mas outra modalidade de atividade psíquica. Vigília é atividade
psíquica seletiva.
Chamamos de sonho a realidade que passou ou que passará. E chamamos de realidade
o que estamos sonhando juntamente com outras pessoas.
Confundiu-se o conceito de sonho com o de irrealidade, porque se acreditava que a
única realidade era a física. O átomo é, no entanto, tão imaterial quanto o sonho, mas, no
entanto, produz resultados como a atividade onírica.
Não será a vigília um sonho lúcido de maior duração e nitidez e sobre o qual
exercemos controle?
O sonho é uma experiência sem parceria e a realidade físi ca, um sonho compartilhado.
Enquanto assistimos a um filme no cinema ou na televisão, ou a uma encenação
teatral, os personagens e a história se tornam reais e a trama ficcional influi sobre nossas
emoções, opiniões e comportamentos. Embora saibamos que el es não existem, psi-
cologicamente eles existem e nos influenciam, passando a fazer parte, a curto ou a longo
prazo, de nossa vida.
A realidade que percebemos é mais conceitual e, portanto, onírica do que a realidade
simplesmente fática. Nós não vemos diretamente a rosa, mas o seu nome, o seu significado, o
seu simbolismo. Experimentamos mais os conceitos do que as coisas e os seres. Não sabemos
o sabor natural da realidade física, mas apenas os seus condimentos e temperos e pensamos
que estes são o seu verdadeiro sabor.
IMORTALIDADE
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Teólogo – Só Deus é imortal. Nós somos, em nossa essência, imortais. Se formos
salvos, viveremos a eterna bem-aventurança. Se formos condenados, sofreremos eternamente
no Inferno. No entanto, outros teólogos admitem que os maus não alcançarão a vida eterna,
porque, após o Juízo Final, serão destruídos.
Filósofo – A memória pessoal se conserva, caso o ser humano seja imortal? Essa é a
grande questão. Sem memória, não há individualidade. Se como na mitologia grega, o morto
bebe a água do rio Letes e perde a memória da vida terrestre, então ele se torna um zumbi
transcendental. De que lhe serve essa imortalidade desmemoriada?
Cético – Isso não passa de fantasia. Parte da memória é volátil e, por isso,
irrecuperável. Ela pode ser suprida por falsas lembranças.
Filósofo – Tudo o que existe tem memória, seja seres vivos, seja a matéria em geral.
Nada é tabula rasa, como pensava Aristóteles. Tudo tem um programa que mantém em
funcionamento todas as coisas.
Edwald Hering asseverou que a memória é um princípio biológico universal, carac-
terística onipresente de toda matéria viva.
A memória está em tudo. No microcosmo como no macrocosmo. Porque a memória
são possibilidades que já aconteceram ou que poderão ou não acontecer. Assim, há uma
memória do passado e uma memória do futuro.
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O que é, porém, a memória? Duas hipóteses procuram explicá-la: a) a memória é um
traço psicofisiológico, deixado pelas impressões no cérebro e reproduzível por meio das leis de
associação; b) a memória é um fluxo psíquico.
O farmacólogo George Ungar isolou, em 1970, a molécula da memória, a que deu o
nome de scotophobin. A partir desta data, outras moléculas de memória foram também
isoladas.
Sabe-se, por outro lado, de experiências bem sucedidas de transferência química da
memória em platelmintos e ratos. E já se admite que, no futuro, memórias sintéticas possam
ser injetadas com a mesma naturalidade de uma vacinação.
Atualmente já se produz um metal com memória. Trata-se de uma liga de níquel e
titânio, que pode ser preformada, convertida para uma segunda forma, depois aquecida, após
o que ela retorna à sua forma original.
As células contêm todas as informações sobre a pessoa de que fazem parte. Lynn
Margulis e Dorion Sagan lembram que, "em certo sentido, a essência da vida é uma espécie de
memória" e que "por meio do processo reprodutivo, as formas vivas impõem o passado e
registram mensagens para o futuro." Assim, afirmam que "a vida é extremamente conserva-
dora", seja a que nível for, mesmo modificando-se "com o fim de permanecer a mesma."
Místico – Sob este aspecto, podemos especular sobre o chamado "pe cado original",
interpretado como pano de fundo do milenar drama cósmico da humanidade e que existe
latente em cada indivíduo. Este pecado, segundo alguns místico, seria decorrente do processo
de individualização do ser humano de sua inconsciência original no lendário Jardim do Éden.
Ao reconhecer-se como um ser separado do mundo, ele cuidou que essa separação era
objetiva. Daí, resultaram os seus problemas para viver como um ser autônomo da natureza.
Essa separação subjetiva levou-o a ilusão de sua separação (maia) do Todo. Assim, só a
conscientização de sua unidade objetiva com o Todo, ou Deus, poderá levá-lo à "salvação",
que é possível obter-se pela meditação ou por meios de recursos químicos – as drogas
alucinógenas.
Filósofo - Segundo Platão, todo saber é recordar. Assim, o aprendizado externo é mera
repetição do que sabemos em nosso nível inconsciente. Esta concepção enseja duas
alternativas: a) O homem tem, potencialmente, o conhecimento de tudo; b) O homem tem,
potencialmente, o conhecimento de tudo o que lhe é necessário em sua condição humana.
A primeira alternativa se baseia na premissa de que, sendo o homem uma
individualização do Todo, ele possui todos os atributos do Todo, assim como as ondas do mar
possuem a mesma natureza do mar.
70
A segunda alternativa postula que todo ser - e não apenas o homem - é dotado de
todo conhecimento necessário às suas necessidades, uma sabedoria inata específica a cada
espécie viva.
Na primeira alternativa, o conhecimento do homem é ilimitado e, na segunda, é
limitado às necessidades de sua natureza humana.
Místico – Todos os seres estão ligados na memória universal, onde inexistem tempo e
espaço. Essa interação é a fonte de descobertas e de invenções, como também de eventos
telepáticos. Deus e nós somos um.
IMUTABILIDADE
Cético – Os crentes acreditam que Deus é imortal, porque dese jam também ser
imortais. Acalentam a esperança de que Deus criou somente os seres humanos para ser sua
imagem e semelhança, o que não acontece com os demais seres da natureza.
Místico – Por que Deus é imortal e tudo é Deus, os seres vivos são imortais e a morte é
a reciclagem das formas transitórias. Deus é criação contínua e n’Ele nada se perde e tudo se
transforma. Somos imortais como essência e mortais como indivi dualidade.
O ser individual é, como essência, imortal e, portanto, em sua trajetória evolutiva, ele
não conquista a imortalidade, mas sim a consciência de sua imortalidade.
O que chamamos de espírito é o nosso Deus imanente, que anima o corpo mortal.
A imortalidade não é a conservação, mas a transformação de tudo.
Teólogo – Na Sua essência, Deus é imutável. As Suas criaturas é que são mutáveis e
mortais enquanto simples organismos.
Teólogo – Na Filosofia grega, o que é perfeito é imutável e, portanto, Deus, por ser
perfeito, é imutável. Se Ele não fosse imutável, não seria Deus.
Deus é imutável e as suas leis são imutáveis.
71
Filósofo – Para Parmênides, um dos atributos do Ser era a imutabilidade. Heráclito, ao
contrário, alegava que tudo era um eterno vir a ser. As aparências confirmam a opinião de
Heráclito.
Místico – Muitas pessoas acreditam em um Deus imutável, porque têm medo das
mudanças. Se, no universo, tudo é movimento, mutabilidade, por que Deus teria de ser imóvel
e imutável? Queremos que nada mude, porque isso nos dá segurança e a certeza de um
conhecimento definitivo. Assim, concebemos um Deus imutável e, portanto, cognoscível. A
beleza de tudo isso é que Deus é perpétua mudança, renovando tudo, criando novas formas,
impossibilitando um conhecimento estático. Por isso, procuramos imobilizar a realidade ou
Deus, dando à imobilidade o nome de perfeição. Sob esta óptica, as mon tanhas seriam um
grande exemplo de perfeição, enquanto os seres vivos, por mutáveis que são, seriam
imperfeitos.
Para mim, Deus não é imutável e imóvel, mas eternamente mutável, dinâmico,
criativo. Um Deus pleno de surpresas. E todo o seu mistério é isso, pois a beleza da vida é a
eterna mudança, a contínua criatividade.
Deus é perpétua criação. Um Deus imutável e imóvel seria um Deus morto, uma
espécie de rocha infinita ao gosto de certos filósofos e teólogos.
Foi o ser humano que, na sua pequenez, criou um deus pequeno com todos os
atributos do seu criador.
Deus é imutável na sua essência e infinitamente mutável em suas manifestações. Ou
seja: Deus é imutável quanto à sua natureza, mas infinitamente mutável nas inúmeras formas
de Suas criações.
Um Deus imutável, engessado nas leis que criou, seria um Deus escravo de si mesmo.
Filósofo – Entendia Henri Bergson que a realidade é um fluxo incessante, onde nada
persiste. É um processo em perene criação. E afirmava: "A realidade é um processo de perene
criação sem princípio nem fim, que não tem duas vezes a mesma fisionomia, mas assume a
cada instante um aspecto imprevisível: é um fluxo incessante, onde nada persiste, uma
continuidade móvel e viva, sem nenhuma divisão ou parte."
Para Bergson, "o que é real é a transformação contínua da forma: a forma nada mais é
senão um instantâneo tomado numa transição."
O mesmo diz Alan Watts: "Forma é fluxo."
Embora a forma seja um aspecto transitório do ser, ela é real enquanto referência a
um continuum.
Tinha, pois, razão Bertrand Russel: "Todos os aspectos de uma coisa são reais, mas a
coisa é uma construção puramente lógica." E, ainda: "Uma coisa pode, pois, ser definida como
uma determinada série de aparências, relacionadas entre si pela continuidade e por certas leis
causais."
Cientista – O que parece ser imutável e imóvel não passa da insuficiência de nossa
percepção de observar a contínua mudança das coisas e também do próprio observador.
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Cético – Se Deus não pode modificar as leis ele criou, ele não é absolutamente livre. Se
ele, por ser liberdade absoluta, pode mudar o que determinou, ele não é imutável.
Cético – Se Deus não pode mudar a sua natureza, ele não é onipotente.
Teólogo – Admiramos Deus pelas ações que nos dão um senti mento de beleza, e
sofremos com aquelas que nos causam perdas e dissabores. A nossa fé consiste em conviver
com os imprevistos de Sua liberdade absoluta.
Místico – Tudo está em permanente mudança, porque Deus está sempre agindo no
mundo. Ele é a causa da perpétua mudança de tudo. Os seres humanos é que, por necessidade
de segurança, estabeleceram leis imutáveis com o intento de conhecê -las e, assim, poder
dominar o universo.
INFINITUDE
Teólogo – Deus é infinito. Nada existe além d’Ele. Se existisse, Ele não seria tudo. E o
que seria este algo além de Deus?
Hermes Trismegistus comparou Deus a “um círculo cujo centro está em todo lugar e
cuja circunferência está em lugar algum”.
Pierre Lévy, em outro contexto, comparou Deus a “um computador cujo centro está
em toda parte e a circunferência em nenhuma.”
São analogias que dão uma ideia da infinitude de Deus.
73
Místico – Deus, como infinito, é inconcebível, inimaginável, não nos move ou nos
comove. Daí, a nossa necessidade de reduzi-Lo ontologicamente à nossa condição cognitiva,
dirigindo-nos, subjetivamente, a ele, como se fosse uma pessoa.
Deus é infinito, por isso não tem forma. O infinito é necessariamente amorfo.
Cada um sabe de Deus o que é capaz de saber. Mas o que sabe o ser finito do Infinito,
senão a consciência de sua infinita ignorância?
Deus, por ser infinito, é um manancial de possibilidades infinitas. Nele, todas as
possibilidades são simultâneas. Em relação aos indivíduos, porém, essas possibilidades são
sucessivas, dando-lhes a impressão de que algo novo está sempre acontecendo.
O que chamamos de indivíduo é um ponto selecionado num determinado processo e
num dado instante do tempo. O ser é o processo, não o indivíduo, pois este é o aspecto
transitório do processo.
A realidade é infinita e a quase totalidade dela nos é invisível. Só podemos conhecer o
que nos afeta diretamente ou mediante nossas extensões tecnológicas. A nossa miopia em
relação à realidade é quase cegueira.
Místico – É a infinitude que esmaga e aterroriza a nossa finitude. Por isso, só podemos
nos relacionar com Deus sob forma antropomórfica e localizada. A personalização de Deus é o
alicerce cognitivo da pessoa humana.
Deus, por ser infinito, é o receptáculo de possibilidades infinitas. Assim, para Deus,
todas as possibilidades são simultâneas. Em relação aos indivíduos, porém, essas
possibilidades são sucessivas, dando-lhes a impressão de que algo novo está sempre acon-
tecendo.
Cientista – Cientistas admitem que o universo é uma rede de interações, na qual tudo
está em contato com tudo. E mais: o universo também parece uma rede de informação.
Fritjof Capra assinalou: “A teoria quântica revela assim um estado de interconexão
essencial do universo. Ela mostra que não podemos decompor o mundo em suas menores
unidades capazes de existir independentemente.
No nível atômico, então, os objetos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em
padrões de probabilidades, e esses padrões não representam probabilidades de coisas mas,
74
sim, probabilidades de interconexões. Uma partícula elementar, portanto, é, em essência, um
conjunto de relações e o mundo afigura-se assim como um complicado tecido de eventos.
O campo quantizado é concebido como entidade física fundamental, um meio
contínuo que está presente em todos os pontos do espaço. As partículas não passam de
condensações locais do campo, concentrações de energia que vêm e vão, perdendo dessa
forma seu caráter individual e se dissolvendo no campo subjacente.”
Místico – Somos parte de um todo, mas raros são os que têm consciência da nossa
ligação com o universo e do universo conosco.
Ramakrishna fez uma bela metáfora para descrever a unificação do indivíduo com a
divindade. Disse ele: “Uma boneca de sal foi certa vez medir a profundidade do oceano. Tão
logo mergulhou nele, dissolveu-se. Agora quem pode dizer a profundidade do oceano.”
A revelação de Deus no homem é sempre uma experiência pessoal, despertando um
sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização desta experiência resulta na
permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais, segundo as idiossincrasias de
cada pessoa que se julga o seu intérprete.
Deus é sentido com uma experiência da unidade e sentimento de solidariedade e que
transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade.
Eckhart exaltou a unidade entre Deus e o ser humano: “Deus deve ser e u próprio e eu
o próprio Deus, de forma tão perfeita que Ele e eu somos um só e aquele que trabalha dentro
dessa ideia o faz eternamente; mas se esse Ele e esse eu, ou melhor, Deus e a alma, não são
um só aqui e agora, eu não posso trabalhar nem ser, com Ele, um só.
Tão certo como eu vivo, nada está mais perto de mim como Deus. Deus está mais
perto de mim do que eu de mim mesmo.”
Místico – O Deus em nós nos induz também a conceber um Deus fora de nós. Se não
fôssemos induzidos a conceber um Deus fora de nós, poderíamos pensar que somos Deus, se
O descobríssemos dentro de nós. Porém, quando vivenciamos Deus em nós e fora de nós,
alcançamos a iluminação, que é a experiência da unidade.
IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
Filósofo – O Ocultismo doutrinava que tudo está no Todo e o Todo está em tudo.
Teólogo – Deus é transcendente a tudo o que Ele criou e continua criando, e imanente
em todas as coisas e em todos seres por Ele criados, inclusive em tudo que o ser humano faz,
pois a natureza divina está em tudo.
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O Evangelho de Tomé relata a seguinte afirmação de Jesus: “Eu sou a luz, que está
acima de todos. Eu sou o “Todo”. O Todo saiu de mim, e o Todo voltou a mim. Rachai a
madeira – lá estou eu. Erguei a pedra – lá me achareis.”
Por ser imanente, Deus é onipresente.
Na Sua transcendência, tudo é atual, nada existe em potencial. Como imanência, Ele é
atualidade e potencialidade, o que resulta na sucessividade e mudança das coisas e dos
eventos, dando-nos a impressão de tempo.
Não há separação essencial entre a Sua Transcendência e a Sua imanência. Cada
indivíduo é uma das infinitas perspectivas de Deus. Essencialmente, somos Deus.
Existencialmente, somos um modo de Deus.
Cético – Se tudo é Deus, temos de admitir que o lixo e os excrementos são divinos.
Filosofo – E por que não? Lixo e excrementos são feitos de átomos. É o ser humano
que despreza e rejeita tudo o que não lhe é útil. Se somos matéria, por que fazemos distinção
entre o que é útil e o que é inútil. Por que desvalorizamos o lixo e os excre mentos? Aliás, já
começamos a reciclar o que era tido como refugo. A reciclagem igualou todas as coisas. Que
76
vergonha, então, podemos ter, matéria que somos, de tudo o que considerávamos matéria
inútil?
Hoje, a reciclagem é a prova de que nada é inútil na natureza. É a alquimia universal,
que por tantos séculos foi buscada pelos ocultistas do passado.
Místico – Deus é um ser onde tudo está acontecendo. Nele, nada aconteceu, nem
acontecerá.
Deus é o ser simultâneo, por isso, onipresente e onisciente. Os seres individuais são
sucessivos e, por isso, se locomovem no tempo e no espaço, no infinito corpo de Deus.
Por sua simultaneidade, Deus não se encontra no tempo. Os seres humanos, em razão
de sua finitude, estão localizados em pontos diferentes do espaço. Por isso, tudo para eles é
sucessivo e é a sucessividade que lhes dá a experiência do tempo.
Cético – Se Deus não está no tempo e no espaço, mas na eternidade, como podemos
compreendê-lo? E como podemos dizer que ele é tudo e está em tudo, se não se encontra no
tempo e no espaço. Logo, ele não é onipresente e, por não ser onipresente não é onisciente.
77
Não existem incompatibilidades entre certas substâncias no universo físico? Isto não
quer dizer que elas sejam inimigas: apenas não se combinam entre si. O Deus imanente habita
nos seres vivos, na natureza em todas as suas formas e convive nas semelhanças e diferenças
de suas formas o que resulta na maravilhosa complexidade da vida, onde tudo está em
permanente processo de transformação.
Místico – Deus está imanente em infinitos níveis fenomênicos, cada qual com sua
"materialidade" própria, sua realidade específica, podendo existir uma maior ou menor
interconexão entre esses níveis. Os diversos níveis fenomenológicos não são lugares de
punições e prêmios, mas estados de consciência compatíveis com a natureza de cada ser
individual.
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Filósofo – Tinha razão William Blake quando afirmou: “Se as portas da percepção
fossem lavadas, tudo apareceria ao homem como é, infinito.”
Cético – Se Deus foi visto por algumas pessoas, então ele tem forma e, se tem forma,
não é infinito, porque ocupa um lugar no espaço. Como pode um ser limitado ver o ilimitado?
Milagre ou vontade de Deus, dirão, e o assunto fica encerrado.
Místico – Ramakrishna costumava indagar aos que o procuravam: “Como você gosta
de falar de Deus, com forma ou sem forma?”. Dizia ele que Deus era com forma ou sem forma
conforme a necessidade do devoto.
Teólogo – A ideia de Deus aparecer às suas criaturas para que elas creiam nele é
lamentavelmente infantil. É o mesmo que se argumentar: mostre um átomo e eu acreditarei
na existência dele. O que não é percebido não é prova de sua inexistência.
Cético – No entanto, conforme o relato bíblico, Moisés teve um encontro com Iavé e,
dele, recebeu, pessoalmente, o Decálogo, gravado em pedra.
Místico – Deus tem a face que lhe damos para que possamos vê-Lo. Ele é o maior de
todos os mistérios que a mente humana é capaz de imaginar.
Místico – Deus é, assim, o paradoxo: Ele é e não é cada indivíduo, Ele é e não é o
universo e tudo o que nele contém. Deus é transcendência, mas também imanência no interior
de tudo o que existe.
Deus é a infinita escuridão. Mas também é luz na criação de todos os seres e coisas.
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Deus é a substância de que somos feitos. Por isso, todas as respostas estão em nós e
não fora de nós.
Somos mortais como existência e imortais como essência. Na nossa condição humana,
somos deuses transitórios.
Cético – Tudo isso não passa de poesia, que encanta os crentes desejosos de ser uma
partícula ou individualização de Deus.
Místico – Deus é qualquer ser individual. O indivíduo é que não sabe que é Deus.
Quando ele se conscientiza de que é Deus em manifestação finita, alcançou o reino dos céus, o
nirvana e se libertou da ilusão da separatividade.
Deus se manifesta com maior intensidade em determinados indivíduos do que em
outros. Deus, na flor, é o mesmo Deus no homem.
Não existe lugar onde Deus não esteja. Não existe qualquer ser, não existe qualquer
coisa que não seja Deus. Tudo não é feito de átomos (eles são os limites da nossa percepção e
da nossa concepção). Tudo é feito de Deus.
Filósofo – Se onda e partícula são aspectos diferentes da luz, mas ambos são luz, por
que Deus não pode ser infinitos aspectos contingentes de Si mesmo, permanecendo
necessário e imortal na condição de Todo? Assim, tudo é de Deus sem ser Deus e Deus está em
todos os seres sem ser qualquer deles.
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Poeta – Quando homem,
Deus pergunta o por quê
de todas as coisas,
mas não encontra resposta.
Quando Deus,
Ele sabe a resposta,
mas não tem
a quem comunicá-la.
Místico – Deus é tudo e está em tudo, por isso ninguém está sozinho. O que
chamamos de anjo-da-guarda ou de guia espiritual é o nosso Deus imanente.
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Místico – Se Deus está imanente em tudo, é absurdo pensar a que Ele condene uma
parte de si mesmo.
ONISCIÊNCIA
Místico – Temos, portanto, respostas para todos os problemas. O que, na verdade, não
sabemos é formular as perguntas adequadas. Por essa razão, as pessoas que passam pela
experiência transcendental da unidade de todas as coisas tomam consciência da própria
onisciência, quando se experienciam como o próprio Todo. Porém, ao retornarem à condição
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de parte, restam-lhes, apenas, a vaga lembrança daquela experiência inefável, como o sonho
que se apaga no retorno da vigília. O indivíduo, sob este enfoque, é, na verdade, um Deus
desmemoriado.
Cético – Admitamos que Deus é onisciente, por que ele preci sou provar a fé de
Abrahão e de Jó?
Teólogo – Foi para Abrahão e Jó avaliarem a força de sua fé. Deus, por ser onisciente,
conhecia os limites da fé dos dois.
Teólogo – Deus não erra: Ele é a perfeição. Se atende aos pedidos dos fiéis é porque
Ele é bondoso e misericordioso.
Teólogo – É a fraqueza da nossa fé que nos faz proceder assim. Deus sabe o que é
melhor para nós e nós não o sabemos.
Místico – O Deus imanente em nós é que realiza o nosso pedido segundo a força de
nossa fé. O Deus transcendente não determina o nosso destino. Deus imanente é o nosso mais
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profundo íntimo. Somos deuses limitados, porque desprovidos de onisci ência, onipresença e
onipotência.
Místico – Quem não sabe disso, procura encontrar Deus nos templos, nas mesquitas,
nas igrejas, nos mestres, nos gurus.
Cético – Então, a oração só tem valor psicológico e funciona como analgésico para as
angústias da existência.
Cético – Leia-se o que disse o profeta Joel (Joel. 2-13): “Rasgai vossos corações e não
vossas vestes; voltai ao Senhor vosso Deus, porque Ele é bom e compassivo, longânime e
indulgente, pronto a arrepender-se do castigo que inflige.”
Se Deus se arrepende do que fez, Ele não é onisciente e perfeito, porque, por saber de
tudo, nunca deveria errar.
Aliás, padres e pastores parecem não acreditar na onisciência divina, lembrando a
Deus o que ele parece ter esquecido ou que não sabe.
Cético – Quem pede algo a Deus, duvida de sua onisciência. É uma fraqueza de sua fé.
Cético – Se Deus é onisciente, a sua vida deve ser um tédio infi nito e eterno. Nada o
surpreende, porque ele sabe de tudo. Um Deus sem surpresas me parece um Deus infeliz.
Se eu tivesse a onisciência divina, ela seria, para mim, monótona e enfadonha. A
beleza da vida é a surpresa.
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As surpresas, quando agradáveis, são o aperitivo da vida. A onisciência nos impediria
de ter surpresas agradáveis e desagradáveis. Penso que o ser humano não suportaria a
onisciência.
Cientistas acalentam a esperança de que a ciência possa, um dia, conhecer tudo. Será
que, se isso acontecer, eles suportarão o peso do tédio?
Cientista – A ciência não objetiva alcançar a onisciência. Logo, essa questão, para os
cientistas, é impertinente e destituída de sentido.
Místico – Quem realmente acredita em Deus, não lhe faz qualquer pedido. Orar é
apenas uma necessidade psicológica do ser humano, principalmente nos momentos de
grandes sofrimentos. É um desabafo e não uma tentativa de modificar a “vontade” de Deus.
Cético – Se Deus é onisciente, ele não tem esperança. Se tem, ele não é onisciente.
Se há perdição, por que Deus, sendo onisciente, cria seres sabendo que irão se perder?
Se Deus tem esperança de que eles se salvem, Deus não é onisciente. Se é onisciente e os cria,
por que os cria?
Cético – E por que a teologia inventa questões que não é capaz de resolver?
Se Deus é onipotente e onisciente, por que cri a seres destinados ao sofrimento
eterno? Se ele sofre por isso, então é masoquista. Mas, se não sofre, então ele é sádico.
Se ele não pode evitar criar as criaturas nem pode impedir que elas sofram, então
Deus não é onipotente.
Se Deus não sabe quais de suas criaturas se salvam ou não se salvam, ele não é
onipotente. Ou se Deus escolhe os seres humanos que se salvarão ou se perderão, ele não é
bondoso.
ONIPRESENÇA
Místico – Nada pode existir que não seja divino. Deus é onipre sente, porque tudo o
que existe é Ele. Se algo não fosse divino, Deus não seria tudo. Porque tudo é Deus, cada
criatura é naturalmente teotrópica, isto é, irresistivelmente atraída para Ele. Deus está
presente em toda parte. Mas, parece que, em alguns lugares, coisas e seres, Ele está mais
densificado, mais claramente presente. Assim, na pedra, há menos Deus do que no homem.
Deus está sempre onde estamos, porque nós estamos n’Ele. No entanto, muitas
pessoas procuram um lugar, tido por sagrado, para sentir a Sua presença.
Cético – Logo, de nada valem os templos, as mesquitas, as sinagogas ou qualquer
outro local de adoração coletiva.
Místico – Não há um lugar especial para sentirmos a presença de Deus. Ele está em
todos os lugares, porque é onipresente. Mas podemos escolher o local onde O sintamos mais
intensamente. Este local é sagrado para nós.
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Somos partículas de Deus. Ele é a essência de tudo. Podemos sentir Sua presença no
nosso íntimo e no mundo.
Tudo está N’ele e Ele está em tudo, seja no microcosmo, seja no macrocosmo e, sendo
infinito, nada existe além D’ele. Deus não é feito de, mas tudo é feito D’ele, porque tudo é sua
manifestação.
Místico – Deus imanente em nós é que nos mantém ligados à Divindade, embora não
estejamos conscientes desse vínculo a não ser em situações especiais. Por isso, para os
mestres espirituais, a busca de Deus se converteu em comunhão com o divino.
Místico – A premissa de que Deus está em tudo pode levar a exageros. Por isso,
Ramakrishna advertiu: "É certo que Deus reside também no tigre; mas nem por isso devemos
ir abraçar a esse animal. É certo que Deus mora até nos seres mais perversos, mas não é
próprio buscar a sua companhia."
Deus é a simultaneidade de todas as coisas.
Teólogo – É uma premissa falsa e que leva a uma conclusão lógica, mas falsa.
Místico – Deus é onipresente e, por isso, está também no Inferno. Porém, os que lá
estão, não podem sentir a Sua presença. O Inferno, essencialmente, é um estado de espírito.
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Teólogo – Estado de espírito ou lugar, ou, ainda, as duas coisas, o Inferno existe.
Cético – Se o Inferno existe, Deus o criou. Se não foi ele, quem foi? Se Deus não pôd e
evitar a sua criação, ele não é onipotente. Mas, se permitiu, ele não é bondoso.
Teólogo – Seja como for, o Inferno é uma realidade e também uma necessidade. Se
assim não fosse, não haveria punição para as pessoas más.
Judiciosamente, Platão observou: “Admitamos que a morte nada mais seja do que uma
total dissolução de tudo. Que admirável sorte não estaria reservada então para os maus, que
se veriam nesse momento libertos de seu corpo, de sua alma e da própria maldade.”
Místico – Pode-se admitir o Inferno como punição para os maus, porém é inadmissível
que seja um castigo eterno. Há, nos sistemas penitenciários, a prisão perpétua, melhor seria
dizer vitalícia, para certos criminosos. Mas, uma pena eterna para os pecadores é, na verdade,
um exagero. Um prisioneiro pode ser irrecuperável em vida. Mas também o seria em sua vida
eterna? A não ser que os condenados percam a imortalidade. Nessa hipótese, não tem sentido
se falar castigo eterno.
Para Miguel Unamuno, se a mortalidade da alma pode ser terrível, não menos terrível
pode ser a sua imortalidade.
Filósofo – O Inferno não existe. É fantasia teológica. Por conseguinte, esse é um falso
problema. É a mente humana que cria o céu e o inferno. Jesus não afirmou que o reino dos
céus está dentro de nós? Então, o inferno também está.
Cético – Se há um lugar fora de Deus que se chama inferno, então, Deus não é tudo e,
portanto, não é onipresente. Se Deus é onipresente e existe o inferno, Ele está
necessariamente também no Inferno. A não ser que o Inferno não exista.
Se o inferno existe contra a vontade de Deus, ele não é onipotente.
Se ele não previu a desobediência dos anjos rebeldes e a mal dade dos homens, daí
resultando a criação de um lugar povoado por demônios e condenados, então Deus não é
onisciente. Se não previu e não pôde evitar, então não é onipotente. E se previu o que poderia
evitar, porque não fez? Inferno e perdição não condizem com a proclamada onipresença,
onisciência e onipotência de Deus.
Se assim é, os teólogos estão equivocados ao ensinarem que os bons vão para o céu e
os maus para o inferno.
Se as pessoas más vão para o Inferno e ali são torturadas por toda a eternidade, o que
fazem as pessoas boas no Céu, além da contemplação eterna de Deus?
Filósofo – Para essa questão, São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica,
esclareceu: “Para que os santos possam aproveitar com mais abundância sua beatitude e a
graça de Deus, eles têm a permissão de ver a punição dos condenados no Inferno”.
Que sadismo celestial!
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O Deus teológico é um sádico e, por isso, permite o sadismo dos santos. E por que
pessoas sádicas estão no céu e não no inferno?
Quem acredita em castigo no Além, há de convir que a vida espiritual pode ser pior do
que a vida material, porque naquela o sofrimento de uma parte da humanidade é eterno, o
que não acontece na vida física.
Como pode uma pessoa ser feliz, se vive permanentemente receosa de ser condenada
ao inferno por causa de seus hipotéticos pecados?
Místico – Não há anjos nem demônios. As pessoas é que são anjos e demônios de si
mesmas. Se Deus é onipresente e onisciente não necessita dos anjos para saber o que
acontece no mundo. Nem dos demônios para punir as pessoas, já que Deus é onipotente.
Filósofo – Os homens sentem uma grande atração pela esperança e pelo receio, e uma
religião sem inferno nem paraíso não poderia agradar-lhes de modo algum.
Cético – Céu e Inferno são compensações psicológicas para as pessoas que se sentem
infelizes e injustiçadas na Terra. Para elas, a verdadeira felicidade está no Céu e o supremo
sofrimento no Inferno. O Além é o avesso do que ocorre na vida terrena. Os infelizes se
tornarão felizes, os bons, recompensados, os injustiçados, ressarcidos, enquanto as pessoas
más receberão o seu merecido castigo, punidos pela justiça divina ainda que tenham escapado
da justiça terrena.
Teólogo – Os demônios são seres infelizes, que, pelo seu orgulho, ousaram em
enfrentar Deus e, por isso, foram condenados ao inferno. Frustrados, eles resolveram vingar-se
nos seres humanos para levá-los ao inferno e, ali, sofrerem eternamente. Os demônios se
rejubilam em fazer o mal.
Filósofo – Já observara Lucrécio que, na verdade, aqueles suplícios que dizem existir
no Inferno, estão todos aqui, nas nossas vidas. “Assim como as crianças, que no escuro
tremem de medo e temem tudo, nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas que
não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem no escuro e pensam que
acontecerão a elas.Tantos males a religião pôde aconselhar!
É preciso afugentar com ímpeto esse medo do Inferno que perturba profundamente a
vida do homem, estendendo sobre tudo a lúgubre sombra de morte e não deixando existir
nenhuma alegria serena e inteira.”