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RESUMO:
Reflexão sobre a devoração do tempo na obra Um homem sem profissão,
memórias e confissões, sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade,
à luz da teoria de Genette (1979), com amparo no Manifesto Antropófago
(1928) e em teóricos da escrita confessional tais como Lejeune (1994), Todorov
(2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006). Como resultado,
aponta-se a singularidade da escrita das memórias do autor, considerada como
antropofágica na medida em que supera (ou devora) um modelo estático de
reescrita do passado.
Ponto de partida
Vários escritores brasileiros publicaram suas memórias como forma de alargar o legado literário
que gravita em torno de suas trajetórias. A marca da escrita de memórias é comumente reconhecida
pela longa cronologia de enredo, pelo caráter autopromocional, pelo narrador autodiegético, pela
aparente sinceridade e pela capacidade de apreensão de um entorno histórico. O que singulariza cada
narrativa de memórias são as escolhas particulares de seus autores, notadamente a capacidade de
revisitar o passado por meio do trabalho com a linguagem.
A diversidade de escolhas e de soluções desmascara tanto a ilusão autobiográfica quanto a
hipótese das memórias serem compreendidas apenas como um retorno a um passado acabado.
Na verdade cada obra dessa natureza é “levada a feito por um eu inquiridor, não imobilizante”
(MIRANDA, 1992, p. 26).
Neste esteio, em que se supera o modelo estático de reescrita do passado, aparece uma obra
de memórias bastante singular: Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de
mamãe (1954), de Oswald de Andrade - nosso objeto de estudo no que concerne à problematização
do tempo na narrativa. Como aparato teórico, utilizaremos Discurso da Narrativa. Ensaio de método
(1979), de Gérard Genette, e no tocante ao processo memorialista propriamente dito, trataremos da
relação entre memória e tempo, utilizando os conceitos complementares dados por Lejeune (1994),
Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006).
As memórias antropofágicas
Ou seja, as personagens são fictícias com aparência de verdade. Em Um homem sem profissão
existe um autor-narrador-personagem que parece revisitar a história de vida do escritor Oswald de
Andrade, retratando-a não como documento ou registro fiel, mas metamorfoseando-a em episódios
onde se intercalam ficção e realidade, recriando esta última através de contextos diferentes e da
inserção de personagens imaginários.
Há, contudo, uma constância sobre a qual insiste o escritor, e que incide na evidência de que
em seus romances anteriores, como Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte
Grande (1933), os protagonistas foram inspirados na história de vida do próprio Oswald de Andrade,
como demonstram os dois excertos abaixo, o primeiro extraído de Memórias Sentimentais e o segundo
de Um homem sem profissão: “Entrei para a escola mista de D. Matilde. Ela me deu um livro com cem
figuras para contar à mamãe a história do rei Carlos Magno” (ANDRADE, 2004, p. 75) e “Estudaria
em casa. Improvisei em professora uma senhora idosa que se chamava D. Matilde Rebouças [...] Li
deslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo mundo,
cozinheiras, amigos de família” (ANDRADE, 2002, p. 6).
A obra Um homem sem profissão está repleta de reelaborações e reinserções de episódios dos
romances oswaldianos, havendo uma fusão entre ficção e memorialismo que configura um “binômio
solidário” entre o si mesmo e a criação ficcional. (OLMI, 2006, p. 107). Este tipo de escritura é
alcunhada também de “romance do eu” ou autofiction. Philippe Forest assim a define: “Nada mais
é do que a autobiografia sob suspeita, isto é, submetida ao questionamento por parte da consciência
crítica” (FORREST apud OLMI, 2006, p. 109). Ao narrarmos uma existência, diz, esta se transforma
em romance, penetrando, assim, na fábula.
OLMI (2006, p. 107-8) esclarece que neste tipo de fundição escritural se estruturam “os eus
como ficções, e se escrevem as histórias como uma forma de preservar essa ficção”. Uma “invenção
do eu”, defende a autora. Na obra Um homem sem profissão há a reelaboração da imagem que o
autor Oswald de Andrade faz de si mesmo, espelhando-se em seus personagens e mostrando que são
espelhos dele próprio, engenhosamente fundindo o eu e o outro, o escritor e as personagens, a obra
literária e a existência humana.
Assim, Oswald de Andrade faz da própria vida um romance, “Mas se trata de um romance
dentro do qual a identidade do escritor é interceptada apenas como miragem, quimera e mentira”
(OLMI, 2006, p. 110). Nesta perspectiva podemos conceber as memórias de Oswald de Andrade
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como antropofágicas, já que seguem a antropofagia literária lançada pelo escritor no tocante ao
deslocamento do objeto estético. Um homem sem profissão propõe um redirecionamento da escrita de
memórias ou uma espécie de deglutição do gênero memórias de caráter historicizante que florescia na
Europa.
Considerando que há muita irreverência, subversão e invenção em Um homem sem profissão,
neste artigo nos limitaremos ao estudo sintético e específico da devoração do tempo. Para tanto,
apresentaremos o fato narrativo em seu aspecto temporal, ou seja, o trato dado pelo autor à questão
dentro da obra. Na sequência, discutiremos a configuração do sentido ou discurso oswaldiano sobre
o fazer autobiográfico, partindo-se da premissa constante do Manifesto Antropófago (1928): “Contra
as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem
Napoleão. Sem César” (ANDRADE, 1996, p. 23).
A devoração do tempo
Que ordem seguir para contar a vida de alguém? Essa pergunta, feita por Lejeune, sobre o
estudo da ordem do relato em Les Mots (1963), de Jean Paul Sartre, também foi realizada por Genette
(1979, p. 14) em Discurso da Narrativa, quando do estudo sobre o tempo em À la recherche du temps
perdu (1955), de Marcel Proust. Igualmente, indaga-se aqui: – Que efeitos de ordem compõem Um
homem sem profissão para configurar as memórias de Oswald de Andrade? Que intenções subsistem
na eleição de ditos efeitos e qual a relação com a escritura autobiográfica?
Tanto para Lejeune como para Genette, há duas ordens aplicáveis à análise temporal do
discurso narrativo, diferenciando-se, apenas, as nomenclaturas usadas por um e outro autor. De um
lado, Genette intitula-as de ordem temporal (diegética ou histórica) e ordem pseudo temporal (ou
da narrativa); Lejeune, ao seu passo, denomina-as de tempo cronológico e de tempo dialético ou de
sentido.
A abordagem das relações entre essas ordens, bem como a possibilidade de inversão ou subversão,
leva-os às seguintes indagações: “E não é perfeitamente possível que um texto que se refere, em última
estância, à ordem cronológica da biografia clássica, seja construído seguindo outra ordem?”2, ou seja,
há narrativas que “convidam a uma espécie de olhar global e sincrônico ou, pelo menos, um olhar
cujo percurso não é já comandado pela sucessão de imagens” (GENETTE, 1979, p. 32).
Em ambos os teóricos, a ideia de variedade de atributos do tempo é igualmente reconhecida, mas
enquanto Lejeune encaminha a problemática do tempo como estruturador da narrativa em direção à
história da autobiografia e sua dimensão contratual, Genette aprofunda a questão organizando a base
de conceitos para uma análise temporal da narrativa.
Ao analisarmos as relações temporais em Um homem sem profissão, em seus aspectos de ordem,
duração e frequência, sugeridos pelo estudo genettiano, buscamos articular a devoração temporal
oswaldiana com aspectos que concebam a percepção do sentido (ou tempo dialético) de suas memórias
e confissões, através dos encadeamentos narrativos.
Considera-se, ainda, a sutil advertência contida em “Prefácio Inútil”, escrito por Antonio
Candido para Um homem sem profissão, de que “nas presentes memórias de Oswald de Andrade, não
se deve procurar auto-análise nem retrato do tempo” (ANDRADE, 2002, p. 12), o que antecipa o
caráter inovador dessa obra literária que, comparada a outras de cunho confessional existentes no
circuito literário brasileiro, mostra-se subversora dos convencionalismos memorialísticos sacralizados.
Contudo, observa-se a existência de recorte diacrônico às primeiras páginas das confissões
oswaldianas, não significando, porém, que haja supremacia diegética na narrativa. Antes, romper ao
Recordar é, ao mesmo tempo, uma das formas mais importantes com as quais
declaramos nossa proximidade afetiva nas relações íntimas com familiares
e amigos, mas também nas cerimônias públicas nas quais consolidamos a
fidelidade aos nossos grupos sociais. O que está em jogo, portanto, não é somente
a compreensão do passado, mas, sobretudo, a interpretação do presente e da
maneira pela qual nossa vivência pessoal se insere na história da coletividade à
qual pertencemos (OLMI, 2006, p. 36).
Como e por onde começar minhas memórias? Hesito. Devo começá-las pelo
início de minha existência? Ou pelo fim, pelo atual, quando em 1952, os pés
inchados me impossibilitam de andar no pequeno apartamento que habitamos em
São Paulo, à Rua Ricardo Batista, 18, no 5º. Andar (ANDRADE, 2002, p. 35).
Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que
estes nos apresentem seus testemunhos; também é preciso que ela não tenha
deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de
contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha
a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39).
A base comum da experiência pessoal renovada no autor narrador de Um homem sem profissão
encontra-se na invenção de uma antimemória, explorada nos jogos de anacronias, enquanto recursos
literários, ao longo de Um homem sem profissão, através de intermitências entre prolepses e analepses,
representativas do próprio movimento cognitivo de relembrar, de trabalhar a memória em constante
vaivém entre agora, antes e depois.
Um homem sem profissão delimita, diacronicamente, o período entre 1890 e 1919. Oswald de
Andrade pretendia escrever outros volumes de suas confissões e memórias, com períodos distintos.
“Sob as ordens de mamãe. Memórias e confissões” seria o primeiro dentre os quatro volumes pensados.
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Nessa obra, vemos poucas prolepses e minuciosas analepses, estas que se mostram ora externas ora
internas. Dentre as externas, onde a amplitude total permanece exterior à narrativa primeira, têm-se
as representativas da saga familiar, como em: “Meu bisavô conseguira afazendar-se ali com bastante
gado e fazia comércio entre Belém e o interior. Menino de 14 anos, meu avô fora incumbido de ir
buscar mercadoria na capital do Pará, numa grande barca, levando consigo trinta contos em ouro”
(ANDRADE, 2002, p. 55).
A maior parte das analepses traz referências cronológicas por meio de muitos marcadores
de data, idade, período escolar, recheadas de outras marcadas por elipses ou antecipações de curto
alcance, como é o diário da garçonnière que, de forma ambígua remete também ao presente em que
Oswald de Andrade já está idoso.
Nota-se, no fragmento a seguir, que dentro da analepse do ano de 1917 o narrador realiza
uma prolepse interna que avança a um período muito próximo, entre 1918 e 1919, e faz, ainda, outra
prolepse externa que avança mais ainda ao instante presente da escritura da narrativa, no ano de 1952,
sendo que nessa última fica implícito ao leitor que Nonê, primeiro filho do escritor, já está adulto e
guarda suas anotações literárias:
Alugo uma garçonnière, à Rua Líbero Badaró, nos fundos de um terceiro andar.
Estamos no ano de 17. Dessa época, do ano de 18 e até 19, componho com os
frequentadores da garçonnière e com Daisy, que se tornou minha amante, um
caderno enorme que Nonê conserva (ANDRADE, 2002, p. 160).
Fragmento 1:
Da literatura que conheci na mais afastada infância, lembro-me de As espumas
flutuantes de Castro Alves, que meu pai me deu. Não entendi nada mas gostei. Já
na Rua de Santo Antonio, minhas preocupações foram outras. Li deslumbrado
Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo
mundo, cozinheiras, amigos da família (ANDRADE, 2002, p. 65).
Fragmento 2:
Fui em 1903, com treze anos, matriculado no Ginásio de São Bento, onde
passei a estudar todas as disciplinas, entregues a professores civis, entre os
quais figuravam o peralta Batista Pereira, genro de Rui Barbosa, e o Dr. Afonso
d’Escragnole Taunay, filho do Visconde de Taunay, autor de Inocência, tão
horrivelzinha e tão célebre (ANDRADE, 2002, p. 76).
Os dois fragmentos são verdades literárias distantes e contrapostas àquela realidade efervescente
da Europa que tanto o influenciou, no início do século XX, através dos movimentos artísticos como
dadaísmo, cubismo, futurismo e expressionismo, entre outros. Essa sede de novos rumos se faz
perceptível na passagem em que diz: “Paro para perguntar: - Por que gostava eu mais da Europa do
que do Brasil? Os meus ideais de escritor entraram grandemente nessa precoce tomada de posição.
Tinha-se aberto um novo front em minha vida. Nunca fui com a nossa literatura vigente. A não ser
Machado de Assis e Euclides da Cunha, nada nela me interessava” (ANDRADE, 2002, p. 113).
Como enfatizou em seu Manifesto Antropófago, “Ora, o momento é de reação à aparência.
Reação à cópia” (ANDRADE, 1996, p. 13). Em UHSP o autor narrador explora traços marcadores
do tempo iterativo, através da determinação, especificação e extensão de unidades singulares, como
em “Os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer renovação. Bilac e
Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac. Houvera um surto de Simbolismo com Cruz e Souza e Alphonsus
e Guimaraens mas a literatura oficial abafava tudo. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac”
(ANDRADE, 2002, p. 125, grifo nosso).
Como se o literário brasileiro tivesse parado o tempo naquele período de prosa e poesia realista,
que se perpetuava em uma determinação temporal cuja diacronia começa em 1888 com Poesias,
de Olavo Bilac, e se declina a partir de 1896, com Sertão de Coelho Neto. Há, também, outra
especificação nessa mesma diegese, marcada pelo período entre os dois escritores em evidência, e
que faz inferências às recorrências unitárias do meio literário da época. O fragmento revela, ainda,
a extensão da amplitude diacrônica cuja duração sintética situa-se dentro do Realismo literário,
marcando os limites exteriores dessa série iterativa.
A série iterativa sobre literatura, exposta acima, pode ser contraposta à outra, de fase diacrônica
posterior, – a do Modernismo, cuja confissão em imperfeito assoma como ironia do autor para como
o modelo poético anterior, marcando transformações irreversíveis:
Eu nunca conseguira versejar. A métrica fora sempre para mim uma couraça
entorpecente. Fizera esforços grotescos para traduzir as “perfeições” da Herédia.
Disso tudo observamos que a relação entre a diacronia interna (contraposição entre escrituras
literárias brasileiras) e a diacronia externa (entre Realismo e Modernismo, enquanto períodos literários)
suprime antiteticamente o período Simbolista do fluxo temporal e traça paralelo entre os períodos
acima recortados, como se um respondesse diretamente ao outro. Os episódios contêm resíduos
emocionais das lembranças que Oswald de Andrade reteve ou manteve para revisitar, em deglutição,
a presença e a importância da literatura. Diz, Halbwachs (2006, p. 43),
Com esse quadro inferimos que a narrativa em Um homem sem profissão explora os elementos
temporais de ordem, duração e frequência, inventando condensações temporais que oscilam entre
invocação da realidade e invenção da verdade. Interpola segmentos singulativos e iterativos de
maneira que o anacronismo resulta em jogo literário de pura subversão autobiográfica, através do ato
de recordar; e, esse percurso temporal de sentidos pode ser compreendido ao se entrecruzar teorias que
elucidem esse tipo novo de fazer a literatura confessional brasileira.
Podemos afirmar o ineditismo da obra Um homem sem profissão, ou “o contrapeso da originalidade
nativa para inutilizar a adesão acadêmica” (ANDRADE, 1996, p. 15) ao observamos o espaço, entre
o tempo presente da narrativa e o passado narrado, ocupado pela memória ou pelo ato de relembrar.
Mnemósine, a deusa grega da memória e mãe das musas, é evocada para dilacerar o tempo sentido em
Um homem sem profissão. Veicula-se através de artifícios como a metáfora que associa por semelhança
ou diferença o fazer literário, e a metonímia que permite uma contiguidade entre os tempos e temas.
Segundo Olmi (2006, p. 30) a memória “é a única que pode religar-nos a um passado ao qual pertencemos
e do qual derivam nossas atitudes, nossas crenças e descrenças, nossos mitos, nossa capacidade e recriar
mundos possíveis nos quais já habitamos no passado, e nossa capacidade de narrar”.
O quadro dado pelo fragmento acima vem nos falar da crença e da atitude antropofágica
oswaldiana, cujos sentidos ultrapassam a imagem descrita. Contra a memória fonte dos costumes,
através do encantamento que provoca sua arte narrativa, Oswald de Andrade se faz aedo que canta
suas confissões e toca a lira de suas memórias, com uma perfeição que faz lembrar sua defesa “pelo
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acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (ANDRADE, 1996, p. 13).
O tempo oswaldiano é todo musical, repleto de diferenciados ritmos, como se houvesse devorado
Orfeu, que inventou a lira e os rituais mágicos e divinatórios da qual originaram seitas místicas e a
denominação orfismo.
Daí resulta que o sentimento órfico a que faz menção constantemente em Um homem sem
profissão remete ao próprio Modernismo e àquela literatura poética e filosófica ligada à personalidade
de Orfeu, ou ao fazer artístico inovador, repleto de invenções e inversões, como bem o disse Décio
Pignatari na nota introdutória da obra, intitulada “Tempo: invenção e inversão” (ANDRADE, 2002,
p. 23). Novos ares, novos exercícios do direito da possibilidade, confessados quando o autor narrador
diz: “Como sempre, eu iniciava a mudança, cheio do meu sentimento órfico” (ANDRADE, 2002,
p. 87). Esse mesmo fazer da literatura confessional antropofágica oswaldiana configura um corte
epistemológico, também, com a aceitação passiva de ouvir e repetir o canto da flauta católica, ecoado
dentro do lar de seus pais, representativos do patriarcado que rechaçou, como se observa em:
Para Halbwachs a memória individual diante da coletiva não chega a ser uma condição
necessária e suficiente de recordação e do reconhecimento da lembrança. Para esse autor, o ato de
esquecer episódios passados significa que as pessoas que dele participaram também foram esquecidas,
como se o individual não mais fizesse parte do coletivo que mantinha aquela lembrança. Ou, ainda,
Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que
estes nos apresentem seus testemunhos; também é preciso que ela não tenha
deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de
contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha
a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39).
Este pensamento retrata o pertencimento que liga o ser ao mundo, já que, ao recordar,
consolidamos a fidelidade aos nossos grupos sociais. Não é apenas compreender o passado “mas,
sobretudo, a interpretação do presente e da maneira pela qual nossa vivência pessoal se insere na
história da coletividade à qual pertencemos” (OLMI, 2006, p. 36). O presente literário, do ano de
1954, marca a realidade literária brasileira afastada temporalmente daquela eclosão do movimento
modernista. É a literatura regional que está em franca exaltação com Graciliano Ramos, João
Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, entre outros. Escrever suas memórias naquele presente
ano seria, para o escritor Oswald de Andrade, momento de reafirmação da literatura antropofágica
por meio da escritura de uma autobiografia irreverente, descontínua e totalmente marginal.
O autor narrador cria uma verdade que não necessariamente é a realidade da sua própria vida
ou do ambiente literário de então, pois condensa conteúdos verossímeis com ficcionais, compacta o
tempo, dando forma diferenciada ao fazer confessional.
Inferimos, assim, que o autor narrador despista o leitor já acostumado à escritura autobiográfica
convencional, deixando rastros em Um homem sem profissão que enfatizam mais a técnica da escritura
literária antropofágica do que a realidade de vida do autor, como se implícito estivesse que com
Observamos, nesta análise, o ziguezague traçado por Oswald de Andrade, tendo esse
movimento como o próprio fruir de sua verdade ou intenção memorialista. O tempo em Um homem
sem profissão é manuseado não como segmento estanque da diacronia da realidade de vida do autor.
Contrariamente, cria sentidos temporais implícitos ou não, que reafirmam sua defesa em manutenção
da literatura antropofágica. Regulariza o discurso autobiográfico convencional nas primeiras páginas
e desregula-o em seguida, dando-lhe outra estética, que não a tradicional, mas a de cinematismo ou
perspectivização sobre múltiplas formas e vários ângulos de percepção.
São flashes que se espocam segundo a disposição do enquadramento da imagem. Ou melhor,
são seleções propositadas entre o que lembrar e o que esquecer. A descontinuidade temporal articula
tempos em redes flexíveis e inesgotáveis, servindo a memória como operadora do social, do coletivo,
do grupo antropofágico. Tem-se, então, a verdade transformando-se em realidade. É transformação
do tabu em totem, como dizia Oswald de Andrade.
Nas primeiras linhas de Um homem sem profissão, o autor narrador diz: “Este livro é uma
matinada. Apesar de ser o meu livro da orfandade” (ANDRADE, 2002, p. 33). A objetiva escolha
do termo “matinada” admite vários sentidos. Entre as acepções possíveis, matinada pode ser o trato
do caráter religioso, já que um homem sem profissão, dentro dos ritos católicos, é aquele que não
professa sua fé nem a reconfirma através dos sacramentos. Matinada é também ação de despertar pela
manhã, como se as memórias se despertassem através do jogo de lembrar e esquecer, daí derivando
outro sentido, o de pensar demoradamente, matutar ou ruminar, ou elaborar, através de técnica
antropofágica, a configuração memorialista de Um homem sem profissão.
Estrondo, ruído, confusão. A matinada oswaldiana tem esse sentido também, deixando antever
que o processo memorialista se dá aos borbotões, as lembranças vêm confusas, mescladas umas às
outras, com relativa força de sentimentos e sensações que cada qual provoca. É ruído que desestrutura
a harmonia sonora do cânone literário confessional brasileiro e incomoda por causar desequilíbrio
nessa orquestração de há muito. É estrondo porque confessadamente está repleta de juventude amorosa
tumultuada e do temperamento impulsivo do autor narrador personagem.
É uma matinada de vozerio a ressurgir na lembrança, revivificando a presença daquelas
personagens que foram mais caras a Oswald de Andrade. Inúmeras vozes evocadas para ratificar
a devoração do outro proposta pelo escritor. É multiplicidade de vozes sem hierarquia. O processo
cumulativo de procedimentos técnicos é o canto do passaredo ao amanhecer, com diversas melodias,
ritmos, timbres, velocidades. É falatório que articula qualidade estética e ideologia em relação à arte,
à cultura e à política. É falatório, dado que não podemos ignorar a crítica tecida por alguns que
avaliaram negativamente essa obra. Ademais, serve de espaço, neste estudo, para construirmos novo
falatório.
Matinada equivale também ao ato de mentir. Nesse sentido, corrobora a intenção ficcional
dada a Um homem sem profissão. É ação de madrugar, e nessa matinada percebemos que Oswald
de Andrade se despertou muito cedo, daí o ineditismo da obra que pertence a meados do século
XX. Ele se despiu da aparente realidade que vestia o fazer autobiográfico brasileiro, dando-lhe novas
The devoration of time in A man with no profession, memories and confessions, and
under mom’s command, de Oswald de Andrade
ABSTRACT:
This article presents a reflection on the devoration of time in A man with no
profession, Memories and confessions, and Under mom’s command (1954), by
Oswald de Andrade, in view of the theory of Genette (1979), supported by
the Cannibalist Manifesto (1928) and theorists of confessional writing such as
Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) and Halbswachs
(2006). As a result, we highlight the uniqueness of the writing of the author’s
memories, regarded as anthropophagic in the sense that it surpasses (or devours)
a static model of former rewriting.
Notas explicativas
*
Sheila Dias Maciel é Doutora em Letras, pela UNESP, desde 2001 e professora de Teoria da Literatura do
Departamento de Letras da UFMT, campus de Rondonópolis. Publicou, dentre outras obras, em co-autoria, Memória
e Utopia: experiências de linguagem (2011), pela Editora da UFMT.
**
Silvana Aparecida Teixeira é Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, Foi
docente substituta naquela Instituição Federal, no curso de Letras, nas disciplinas de Língua e Literatura Espanholas.
1
No original: “Este esfuerzo (creativo) opera, además, dentro de unas convenciones o categorías estéticas cuya función
es liberar el deseo o la necesidad de expresar ideas o emociones transformándolas en algo superior e imperecedero. En
este sentido, la relación del lector con la obra no se dará en términos de veracidad (imposible) sino de verosimilitud,
o sea, de apariencia de verdad” (CABALLÉ, 1995, p. 33). Tradução, no corpo do texto, realizado pelas autoras.
2
No original: “Y no es perfectamente posible que un texto, una vez que se refiere en última instancia al orden
cronológico de la biografía clásica, sea construido siguiendo otro orden?” (LEJEUNE, 1994, p. 196). Tradução, no
corpo do texto, realizada pelas autoras.
Referências
ANDRADE, O. DE. Manifesto da poesia pau-brasil. Manifesto antropófago. O rei da vela. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996. 112 p. (Coleção Leitura).
_. Memórias sentimentais de João Miramar. Prefácio de Mário de Andrade. São Paulo: Globo,
2004. 186 p. (Obras completas de Oswald de Andrade)
_. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 2007. 232 p. (Obras completas de Oswald de
Andrade)
Ipotesi, Juiz de Fora , v.17, n.1, p. 139-152, jan./jun. 2013 151
_. Um homem sem profissão. Memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. 2. ed. São
Paulo: Globo, 2002. 236 p. (Obras completas de Oswald de Andrade).
CABALLÉ, Anna. Narcisos de tinta. Ensayo sobre la literatura autobiográfica en lengua castellana
(siglo XIX y XX). Madrid: Megazul, 1995. 233 p.
GENETTE, Genette. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Direção, prefácio e revisão de
tradução: Maria Alzira Seixo. 782. ed. Lisboa: Editions Du Seuil, 1979. 275 p. (Colecção Práticas
de Leitura).
HALBWACHS. Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,
2006. 222 p.
KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1993.
1635 p.
LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul-Endymion, 1994.
441 p.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos. São Paulo: EdUSP / Belo Horizonte: EdUFMG, 1995.
176 p.
OLMI, Alba. Memória e memórias: dimensões e perspectivas da Literatura Memorialista. Santa
Cruz do Sul/Porto Alegre: EDUNISC, 2006. 162 p.
TODOROV, Tzevtan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Ed. Paidós. 2000. 61 p.