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O Birras também aparece na sua casa?

Artigo publicado no jornal Público


https://www.publico.pt/2019/12/11/impar/opiniao/birras-tambem-aparece-casa-1896835

Imagine que a Clara está aos gritos no supermercado porque quer, à viva força,
que o pai lhe dê uma boneca. Esta situação repete-se quase diariamente, com pedidos,
gritos e insistência que parecem não ter fim. Que imagem criámos da Clara? Como a
descreveríamos? Se tivéssemos de identificar alguém que represente o problema, quem
seria?
Facilmente olhamos para a Clara como uma criança difícil e birrenta, que carrega
consigo um problema. Como se sentiria a Clara face a esta descrição de si própria?
Como é que a Clara se vê a si própria?
Agora, tente observá-la usando uma linguagem diferente daquela a que estamos
habituados, pondo o problema (chamemos-lhe o Birras) num espaço em que se torna
possível desafiá-lo e, consequentemente, procurar outras soluções. Ou seja, vamos
separar o Birras da Clara, porque eles não são a mesma pessoa. Então, tente
imaginar a Clara separada do Birras. Como a vê? E ao Birras? Quem é ele? Como é que
o Birras faz a Clara comportar-se? Há algo no ambiente que está a reforçar o Birras?
Sem explicações aprofundadas sobre o modelo teórico da Psicologia que está por detrás
desta proposta, sugere-se que, ao invés de dizer à criança que ela é mal-comportada ou
criticá-la de outra forma mais ou menos subtil (És birrenta, És chata, etc.), os adultos
podem optar por explicar-lhe que algumas vezes pode agir sob a influência de uma
personagem desagradável que gosta de ver a família em dificuldade: o Birras. E quando
ele está presente e a criança lhe obedece, há confusão, gritos e desentendimentos com os
pais ou outros adultos.
Na verdade, esta abordagem pretende tornar os conflitos normais e próprios
do desenvolvimento das crianças (como as birras), mais fáceis de gerir e menos
culpabilizadores tanto para os mais pequenos como para quem tem de lidar diariamente
com este desafio. Por sua vez, o facto da criança acreditar que o problema lhe pertence,
ou seja, que é desobediente, impede a sua mudança, porque, por um lado, a sua
identidade está contaminada por essa definição (é desobediente e age em consonância),
e, por outro, porque é difícil agirmos contra nós próprios.
Depois da separação da criança e do Birras, torna-se possível opor-se-lhe, sem que isto
comprometa a relação do adulto com ela, porque preserva a sua identidade ao vê-la
separada do problema. A criança é a criança e o Birras representa uma personagem
indesejada que se aproveita da correria do dia a dia dos pais, da falta de paciência
e de algumas crenças sociais para impor a sua presença. Assim, torna-se mais fácil
lutar contra o problema e não contra a criança, de quem tanto gostamos.
Perceber que o Birras pode estar a aproveitar-se das circunstâncias da vida dos pais e
das características da própria criança para manter-se presente, aponta uma saída para
esta situação: enfrentar o Birras e procurar reduzir a sua influência.

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Muitas vezes, o que acontece numa situação onde o Birras está presente é uma escalada
que acaba mal para ambas as partes. Sendo a maior parte das birras um pedido de
autonomia da criança, os pais encontram-se por vezes num dilema: não podem deixar a
criança fazer tudo o que ela quer, mas não ganham nada em hostilizar as suas tentativas
de se afirmar como pessoa autónoma, com vontade própria. Ao perguntar à criança, por
exemplo, se o Birras está por perto, ela tem a possibilidade de mudar o seu
comportamento, sem admitir abertamente que está a ceder, mas, sim, que está a agir de
acordo com a sua própria vontade, não fazendo o que ele manda e quebrando o ciclo de
dificuldade. Estimula-se, assim, a vontade de independência da criança, sendo dado
espaço a que ela faça a escolha: entrar nesta espécie de jogo e desobedecer ao Birras (ou
seja, parar) ou continuar e manter o conflito, sofrendo as consequências. À medida que
for compreendido que a família está unida contra o problema e não contra ela, vai
também colaborar, facilitando a sua resolução.
Fundamental é que se compreenda que não se trata da desculpabilização do
comportamento desajustado, mas antes de uma forma distinta de olhar para o
problema, onde a relação da criança com os seus pais e a sua identidade são
preservadas. Os pais têm também de adotar atitudes diferentes, sobretudo, se a birra
gera conflito, gritos, impaciência e inconsistência. Oscilar entre momentos em que a
criança ouve os pais aos gritos: “Faz já imediatamente!” e, outros, em que dizem: “Faz
como quiseres” só desgasta a relação com a criança e gera mais dificuldade em lidar
com ela (porque aprende que há momentos em que os pais vão ceder e continua a
insistir). Quanto mais inconsistência, mais insistência.
Algumas ideias são importantes para que esta linguagem funcione: não ameace a
criança com o Birras; cumpra o que disser à criança; ajude a criança a livrar-se do Birras
(por exemplo, com os mais novos resulta sugerir que o ponha no caixote de lixo); seja
consistente; não desautorize o seu companheiro; ajude a criança a encontrar
comportamentos alternativos (por exemplo, não podes jogar a bola, mas podes brincar
com os legos), encontre tempo para brincar com a criança e para ter momentos de afeto.
Algumas birras são uma forma que a criança encontra de expressar necessidade de
proximidade. É preciso estar atento às necessidades das crianças, porque quando os pais
dispensam algum do seu tempo para os seus filhos (sem estar a fazer outras atividades
ao mesmo tempo, como ver o telemóvel) tudo pode mudar. As crianças precisam de
alguém que a ajude a expressar e a controlar as emoções que saem de forma
descontrolada.
E não pensem os pais que irão anular o Birras de um momento para o outro!
Adotar novas atitudes é o primeiro passo para o vencer, mas é preciso aliar-se à
persistência, porque o Birras não desiste com facilidade...

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