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Introdução ............................................................................ 7
1999
Impresso no Brasil
INTRODUÇÃO
8 9
Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate
em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco colo-
quial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como re-
sultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário
de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate é que uma memória não poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri-
cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço mó-
vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma- MEMÓRIA E PRODUÇÃO DISCURSIVA DO
das, de conflitos de regularização ... Um espaço de desdobra- SENTIDO
mentos, réplicas, polémicas e contra-discursos». Pouco mais de
dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso con-
texto para que produza sentido e memória.
10 li
vido", memória fano-magnética ou registro mecânico. Para isso, memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos. memorização repousaria sobre um consenso. Ora. se olhamos
mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é
Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de
palavra "crescimento" no domínio da Economia Política. Um referência explícita que forneceria a chave. Essa ausênci2. rião
enunciado como: "Neste momento, o crescimento da economia faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um
é da ordem de 0,5 %" faz apelo a um certo número de implíci- trabalho posterior sobre o explícito do que como pré-condição.
tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu- O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen-
zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma "taxa" a um te uma representação.
"crescimento da economia", quer dizer, que a economia pode
ser medida (e não simplesmente "verificada", como se diz da Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é sobre os manuais escolares 1 : ainda que se considere que eles
também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen- constituam urna vulgata em relação a textos mais "elaborados",
tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co-
da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente, locar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica,
nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente. apresentam variações consideráveis de um a outro, são
Em terceiro lugar. pressupõe-se implicitamente que esse cresci- insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi- nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam
derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen- a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra-
te, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe urna
me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais explicitação desta vulgata, jamais ''contém" o que seria neces-
exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação, sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi-
ao país no qual a enunciação se situa. É o que dá a este implícito póteses uma primeira retomada da vulgata.
um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à
"situação" que à ''memória". A "memória" intervém, no entan- Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então
to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio- sobre a base de um imaginário que o representa como memori-
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a
deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun- sua (re)construção, sob a restrição ·'no vazio" de que eles res-
dial") ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em peitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas
um percurso ("em média, no mundo, o crescimento foi ... "). jamais podemos provar ou supor que esse implícito
(re)construído tenha existido em algum lugar como discurso
A representação usual do funcionamento dos implícitos autônomo.
consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é
memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará- Se levamos em conta os elementos enunciativos que es-
frase controlada por esta memorização - no nosso exemplo, ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema
12 13
de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en-
que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico,
"regulagem do praxema" 2 • Com efeito, o funcionamento do dis- um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa-
curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja,
no sentido do CLG)' supõe que os operadores linguageiros só para utilizar um exemplo simples, a série O, 1/2, 2/3, 3/4, ( ... ).
funcionam com relação à imersão4 em uma situação, quer dizer, Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que
levando-se em consideração as práticas de que eles são porta- toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número
dores. De outro modo, o passado, mesmo que realmente memo- finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série
rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per- é da formas= (n - 1)/n, vemos que a vizinhança de I definida
mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en- como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999
contramos. 999/1 000 000 000 e 1 000 000 001/1000000 000 compreende
todos os termos da série exceto um número finito de termos (os
Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio- 1 000 000 000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer
namento linguageiro que comporta apenas um registro que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos pri-
discursivo, e colocar aí o problema do "sentido de uma pala- meiros termos pela regra que permite formular o termo geral.
vra". Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca-
racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma, Sem esta formulação, nada garante que, com relação a
que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De ou- uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exce-
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli- ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade
ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter- de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser-
mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for- vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a
mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons- regra. Em termos lingüísticos, isso corresponde a constatar que
trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a
poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos
suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regu- aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite 6 •
laridade' . É uma regularidade desta ordem que supomos com o
termo ''crescimento" no registro econômico. Essa regularidade, Um procedimento desta ordem parece necessário se que-
no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética, remos abordar a semântica de outro modo que não como uma
ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento, semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni-
a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que "cres- versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória.
cimento" é um termo operador que comanda um certo número, A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa-
fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife- mente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas
rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe- que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re-
lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá gularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo
onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im- de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e
plícito por que elas clamam. constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado,
14 15
não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em mada se localiza nesse nível.
uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão
em vista de um jogo de força de fechamento que o ator social ou O que distingue então o analista de discurso do sujeito
o analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este even- histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A
tual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas análise de discurso é uma posição enunciativa que é também
estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão aquela de um sujeito histórico (seu discurso, uma vez produzi-
eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se
em práticas. esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela-
ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O
A regularização se apóia necessariamente sobre o reco- que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista,
nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo dis-
do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, en-
Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como
que esse perfil gráfico ou fónico corresponde efetivamente à operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a
repetição do mesmo significante. É preciso admitir esse jogo de circulação do discurso. Entre outras conseqüências desta con-
força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e cepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado traba-
de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re- lha através de sua circulação social, o que supõe que sua
petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta- estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia se-
belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. É nessa guindo urna diferenciação das memórias e uma diferenciação
colocação em série dos contextos, não na produção das superfí- das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da única.
regra. De outro modo, é engendrando, a partir do atestado
discursivo, paráfrases, a considerar corno derivações de possí-
veis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor-
rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que
desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são
as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiari-
dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que Pierre Achard
entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re-
lações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois,
ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um
ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas
julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas
operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu-
to do que é provável historicamente, porque a operação de reto-
16 17
BIBLIOGRAFIA
19
NOTAS
2. Lafont, 1978.
3. Saussure, 1964.
21
A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMÓRIA ?
23
com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamen- :\-Iemória social e produções culturais
to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a
reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a
dominância desse funcionamento da memória social ?
Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para
Pensemos, a propósito, numa cerimónia política como que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber
aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insig-
jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó- nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
ria social já existente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de
outro lado. à produção de uma nova memória. Pois o registro do fazer impressão que o termo "lembrança" evoca na linguagem
··acontecimento·· deYe constituir memória, quer dizer: abrir a corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade,
dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar -
uma comemoração 2 . a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como "o
que ainda é vivo na consciência do grupo para o indivíduo e
Com esta alusão rápida a um exemplo político contem- para a comunidade" 4 •
porâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a
memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e Uma segunda constatação complementa a primeira: lem-
a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri- brar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobili-
buída à memória, há toda a distância que separa a "realidade" zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
do "fato de significação". Faria essa distância pensar, em suma, acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu-
que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão do, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de
semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca ? noções comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo
Assim. é em \·ista dessa dupla dimensão da memória so- grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a
cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta- memória coletiva5 • Mas a contrapartida seria que a memória
ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporâ- coletiva "só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de
nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela
algumas palavras o que é preciso entender por memória social não ultrapassa o limite do grupo" 6 •
quando nos interessamos pelos objetos culturais'.
Estas duas constatações convidam a salientar o caráter
paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o
passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na
consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi-
mo. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma
outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não
permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva à
24 25
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história, o "foco da tradição" ao "quadro dos acontecimentos" 7 , monumento de recordação.
a "lembrança" (corrente de pensamento contínua no seio do gru-
po social) ao "conhecimento" (descontínuo e exterior ao pró- Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en-
prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o tre "memória coletiva" e "história" para considerar os objetos
que não pode a memória. culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese. que ~stes
últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de
Se a distinção efetuada por Halbwachs entre "memória urna conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre
coletiva" e "história" permite desse modo compreender melhor memória coletiva e história.
por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obri-
gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in- Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela
troduz acima de tudo em uma problemática dos objetos cultu- não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o
rais considerados como operadores de memória social. Eu me papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os obje-
explico. tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória
social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao
1 Evoquemos novamente o exemplo da emissão funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por
televisionada que "representava" a posse do Presidente da Re- último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o
pública. Compreenderemos muito facilmente a questão política que merece ser examinado; embora não seja questão de preten-
der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria
1 e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de
"casar" história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so-
bre aquilo que autoriza sua formulação.
resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres-
são - vivacidade - da outra. Assim, o acontecimento, como acon-
tecimento "memorizado" poderá entrar na história (a memória É o que veremos a propósito da imagem.
do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos
do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto "his- A imagem, operador de memória social
tórico". ele poderá se tomar, em compensação, elemento vivo
de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou- Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias -
societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão representa a realidade, certamente; mas ela pode também con-
-, por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma o espectador).
espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci-
mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên-
L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo,
cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do
no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato
objeto que o representará (a emissão televisionada, por exem-
do rei expõe em uma viva pintura as qualidades reais descritas -
plo)'. Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e
26 27
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"contadas" - no relato de suas ações; de tal maneira que estas se se poderia esquecer este ponto - com que 2 isager:-. c,:'."'.'-r:'~'e
transformam em substância real. Do relato desse acontecimento um programa de leitura: ela assinala um cerw lugar ao ópecD-
à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos dor (ou melhor: ela regula uma série com a p2:ss2g.:m ce uma a
memorizável (a força), torna-se o mais presente na ocasião da outra posição de receptor no curso da recep,;-2.c e: cc:2 é'::'C:e
representação do personagem histórico do rei. Posso somente "rentabilizar" por si mesma a competência semió,i-.: 2 e: , . : :c·
aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo desse espectador 10 • Este é um fato bastante conhecido pek,s
como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcio- publicitários.
namento9.
Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia sim-
Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa bólica da imagem, duas características semióticas parecem en-
análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade, tão bastante consideráveis.
desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com o enun-
ciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida- Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois
suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos
ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi- mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso,
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note- ficamos sensíveis a c_omposições ou representações de quadros
mos então somente que esses dois exemplos indicam, para cer- da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que
tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva
imagem em poder se inscrever em uma problemática da memó- perdura, enquanto as significações se perdem. Resta uma orga-
ria societal. nização formal que continua a constituir um dispositivo.
Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador
um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem de E. Benveniste, aparecido em Semiótica em 1969, que exis-
pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa- tem dois modos de significação: um semiótica, fundado sobre o
ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela reconhecimento de unidades de significação previamente defi-
efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e
maneira como certa imagem concreta é uma produção cultural - meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do
quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi- de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta- dois modos de significação (somente a língua poderia operar
ção (o que quer dizer que o conteúdo "legível", ou antes "dizível", essa conjunção) e há um largo acordo entre os semioticistas para
pode variar conforme as leituras); mas o que faz também - e não reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-
28 29
al 11 • De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe Esse apagamento da passagem dos componentes à tota-
uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for- lidade tem por conseqüência essencial interditar que se reen-
ma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi-
publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contras- do. A génese se apaga; a (re )construção de uma origem mítica é
te de forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa aderi-
qualidade que distingue um produto dos outros. Essa aproxima- va indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação
ção escamoteia - se posso dizê-lo - um nível intermediário que de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva,
teria por homólogo na linguagem o nível das palavras; a lingua- percebemos que essa busca, essa "reprodução" da significação
gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo
uma imagemr=. Em compensação, essa aproximação possui a dispositivo. Do mesmo modo que a recitação do mito ou os ges-
vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei-
simultaneamente com as relações entre emissor, receptor, men- tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central,
sagêm ê contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispo- ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do
sitiYo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi- espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo-
vo que tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as rizado.
modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer-
gência da significação 13 • E é um dispositivo, lembremo-nos, que Conclusão
por natureza é durável no tempo.
Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera-
Em segundo lugar, a imagem é um operador de dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte-
simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a difi- mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir
segmentar esta_ se deve menos a sua má-formação semiótica do ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos,
que: à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi- isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -
ções formais e instância textual e enunciativa, entre a um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem
matêrialidade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista. Domes-
compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos o mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um
sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen- acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da
tos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaría- existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da
mos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem comunidade e de noções que lhes são comuns 14 ; assim a ima-
pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca-
assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran-
diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen- ça. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva
tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada e social.
em sua totalidade.
30 31
:--•::1:11i::11111111111!1m--■
Restaria, então e enfim, considerar como a imagem in-
tervém concretamente no estabelecimento de uma forma de
memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e
sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que podería-
mos chamar "a memória interna" (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memória externa" (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica15 •
BIBLIOGRAFIA
Jean Davallon
1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte
da memória: "Esta arte visa permitir a memorização graças a uma
técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória".
34 35
- '°' ::-:emória coletiva: "é uma corrente de pensamento contínllo, de Ltma 13. Para a análise detalhada, ver: Davallon, 1983.
_ •;::,;;iidade qLte não tem nada de artificial, pois ela só retém do pas-
,_, qLte dele ainda é i·il·o mi capa: de viver na consciência do
:·:,_~-' que o mantém" Ibid., p. 70. 14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha de um ponto de vista e
sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos da me-
mória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc._
- Ibid.. pp. 74-79, Na seqüência da exposição. empregarei o termo "es-
pectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do es-
Detáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, monta- 15. Com relação à memória coletiva. a memória individual estaria na ver-
gem, ritmo conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. tente oposta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma abordagem
que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948).
l
11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingiiística
geral, t. 2., 1974. Essa dominância do modo semântico e meta-semân-
tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R.
Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises
da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas.
39
1111111111 1 - - - - - - - -
40 41
1mm11.-----------------------------------------------------------~
bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne- mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida
fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o
mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei-
memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon-
nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci- ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car-
dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa- regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila
bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor
oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N. metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio
Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis- dispositivo, o leão não tendo outra significação possível em um
so). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela gran- contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não
deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan- tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representa-
do os valores que servem a isso. do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no
começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver
incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual
Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora
ateniense são anónimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis-
imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que
jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano-
não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não
bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes!). A imagem possui
não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima-
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se
produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa-
possível praticar uma política de memória mais flexível nesse
ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car-
regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio gre-
elementos do dispositivo icónico, é possível mostrar que o guer- go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo
isso diante de vocês.
reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer-
reiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exem-
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec-
referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou tiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra ofici-
motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para na, à nossa própri:i prática memorial, no sistema com memória
retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos. institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades
Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu- onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter-
sa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao
ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações. funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter-
Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco- minar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato
nhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja, de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta-
etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples- belecimento de nossa história republicana gire em torno de per-
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sonagens como Vercingétorix ou Joana d' Are, que eu diria
massivamente "míticos" à grega, é um acaso ou se isso coloca
questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da
instituição que a produz. BIBLIOGRAFIA
Jean-Louis Durand
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NOTAS
1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des héros ... , Revue des Études
grecques, no XVI.
2. Eschyle. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966.
47
PAPEL DA MEMÓRIA
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significação ou suas condições implícitas de interpretação. gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os pro-
cedimentos de montagem e as construções antes que sobre as
Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente, significações? A questão da imagem encontra assim a análise
de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na
taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo
transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas
que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem-
pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória
da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia "perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que
com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou jamais deteve em suas inscrições).
não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco
de que se trata! A questão concerne de fato ao estatuto da lin- A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma
güística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun- imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro-
Loraux "'Tucídides não é um colega", muito citado no decorrer pologia de hoje, o "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que
não obstante um historiador; questão à qual P. Vidal-Naquet res- mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas
pondeu: "Sim, certamente!", o que implica que não há começo visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerá-
histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico, ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um
por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega avião a jato).
não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem
um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato No outro extremo, o choque opaco do acontecimento
à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntar- televisual é também algo que não se inscreve, na medida em
se se há ou não um momento histórico assinalável em que se que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado
pode dizer de alguém ''é um lingüista", não é então colocar um que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exem-
mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari-
lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície
ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí- da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente
voco, ambíguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpre- no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que
tação, desde a história até a psicanálise. estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade.
Fecho este parêntese para retornar à questão da interpre- Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela-
tação em análise de discurso: P. Achard caracterizou esse movi- ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois
mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,
de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos- com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de-
tramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não? signou com o termo "significância"?
Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os
54 55
Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era
tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre-
ferência não era nem um nem outro (quer dizer, nem lingüista,
nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con-
traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pes-
soa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa? NOTAS
Michel Pêcheux
56 57
MAIO DE 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA*
Introdução
59
direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é,
se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio linguístico-histórica. Da interpelação do indivíduo em sujeito
de 68 hoje? pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso,
a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí-
Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos dico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e
referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e histori- deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para
adores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimen- a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico
to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla pelo qual o sujeito se constitui.
forma: a. o acontecimento que escapa à inscrição, que não che-
ga a inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na me- Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre
mória como se não tivesse ocorrido. diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo
Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para
O caso que estou apresentando não se enquadra nem na o assujeitamento ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento
primeira, nem na segunda possibilidade. É uma nuance entre o sujeito não tem controle pois ele se passa "antes, em outro
elas: é como se não tivesse ocorrido (b ), não porque foi absorvi- lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito proces-
do mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na sos que o individualizam e que derivam das diferentes formas
memória (a). É este, penso eu, o caso da censura em geral. Nes- de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um
se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de papel determinante. É nessa instância que se dão as lutas, os
censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreen- confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposi-
são da relação entre memória e censura em geral. ção, de exclusão e os de resistência.
60 61
quecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas
cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua
foram estancados em um processo histórico-político silenciador.
vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida.
São sentidos que são evitados, de-significados.
São assim enunciados que funcionam em suas relações O interditado que toma a forma do impossível
parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações
ao que pode significar "liberdade":
62 63
ralem que se individualiza a questão da liberdade, destituindo-
e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de
ª da força concreta histórica que ela tinha na outra formação linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento".
discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propu-
Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é
nha em seu programa a necessidade de construção de uma de-
constituída pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz
mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as
M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco,
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex-
de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper o nm o,
plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação
o irrealizado. No movimento contínuo que constitui os sentidos
discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi-
e os sujeitos em suas identidades na história.
nante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da
política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi-
vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi- Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma
nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada, espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se,
individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase". O que dá, se-
exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas. gundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de des-
dobramentos, réplicas, polémicas e contra-discursos (1).
O que é isto companheiro?
Memória e Censura
Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de
José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada
O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A
de romance em filme.
falha é constitutiva da memória, assim como o esquecimento.
No entanto o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não
E a questão é, sem dúvida uma questão de memória. No falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censura-
sentido discursivo. A memória - o interdiscurso, como defini- dos, excluídos para que não haja um já dito, um já significado
mos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com constituído nessa memória de tal modo que isso tornasse, a par-
que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti- tir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) - e não falhas -
tui pelo já-dito que possibilita todo dizer. de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do dis-
curso o que poderia ser significado a partir deles e do esqueci-
Pois bem, como dissemos no início, o su1e1to é mento produzido por eles para que novos sentidos aí significas-
assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por sem. Há, assim, "furos", "buracos" na memória, que são luga-
outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que res, não em que o sentido se "cava" mas, ao contrário, em que o
já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen- sentido "falta" por interdição. Desaparece. Isso acontece por-
te determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo que toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é
fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro-
64 65
duzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto
impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como
Como a memória é, ela mesma, condição do dizível, esses sen- ilegal, indo na direção do que se considera "mobilização soci-
tidos não podem ser lidos. al", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das
espectativas do político.
Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos
nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela Para tenninar, eu gostaria de dizer que o real histórico
repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus cole- faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate-
gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em rial contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desa-
pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ôni- parece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso,
bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas. in-significados e que demandam, na relação com o saber
Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com
os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liber- as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.
dade?
66 67
.,, 'l))l\,1:11,111,
BIBLIOGRAFIA
-,.
José Horta Nunes, in Cadernos de Estudos Lingüísticos , nº .
'
19, IEL, Unicamp, 1990.
69
NOTAS
2. Estou aqui fazendo uma distinção - falha CCll1stitutiva e falta por inter-
dição - que corresponderia, em paralelo, à distinção que faço entre não-
sentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o
sem-sentido (o que já significou e que não faz mais sentido). No caso, a
.
,.
(i falha é o lugar do possível, do sentido a vir: e a falta, é o que foi tirado
do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e,
na maior parte das vezes, não é fácil separá-las. E está aí justamente, do
ponto de vista da ideologia, a eficácia de seus efeitos.
t'---
tn
'T
,....... 3. Mais recentemente, há referências públicas à tortura, mas que permane-
µ, cem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece
o
o; z como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia.
V)
O\ CIJ
C'1
C---1 "D 4. Conferir - a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de
N
o :5 dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode
o
0i "D - perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do
N "D +-'
o
Cl...
-----
u; ü
<1)
E 8
a,
silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros ... )
:=; ? ü
o tA 1) dos corpos - o filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura,
e<'. ~ E- ~ C) fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo .. ) é a
imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas.
71