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A Trindade em nossa vida

-Demos glória a Deus Pai onipotente


e a seu Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso,
e ao Espírito que habita em nosso peito,
pelos séculos dos séculos. Amém.

Quando S. Bento José Labre falava do mistério da Santíssima Trindade, seu


semblante resplandecia como o sol, ou, então, ele chorava calorosas lágrimas. Certo dia,
um teólogo lhe fez essa pergunta: “Falas tanto da Santíssima Trindade, mas que é que
você sabe a respeito?” São Bento retrucou: “Na verdade, não sei mesmo nada... mas eu
me sinto convulsionado!” E, ao dizer isso, fazia com a mão um gesto ainda mais
expressivo que as palavras. Quanto me agrada essa resposta de São Bento Labre! Se ele
ainda fosse vivo (morreu ao redor de 1780) vos convidaria a ir até ele para lhe perguntar
quem é para ele a Santíssima Trindade. Se olhásseis bem ao vosso redor, ou se
procurásseis em algum mosteiro, encontraríeis ainda certamente alguém convulsionado
pela Trindade, alguém para o qual a Trindade é tudo. Essas pessoas deveriam ser
interrogadas e não os teólogos! Estes últimos poderão descrever-vos a Trindade com
precisão técnica, mas não poderão mostrar-vos a Trindade (ao menos enquanto teólogos,
a não ser que sejam ao mesmo tempo santos). Ao passo que pessoas como São Bento
Labre podem manifestar o que sucede quando a Santíssima Trindade é tudo para alguém.
Quanto mais o fogo da Sarça ardente envolve o coração de alguém, tanto mais
esse alguém é fascinado pela Trindade. Para ele, entretanto, esse mistério se torna sempre
mais obscuro, porque a pessoa se torna cega por causa do excesso de luz.
La Rochefoucauld dizia: “Há duas coisas que não se pode olhar de frente: o sol e
a morte.” Não se pode ver a Deus, que é o Sol da Justiça, sem morrer. Quando se olha de
perto o Sol da Trindade, sem óculos de proteção, os olhos ficam deslumbrados e não se
vê mais o Sol. Enquanto Deus permanece à distância, pode-se ainda contemplá-lo, mas
do momento em que ele se aproxima para abraçar-nos, sobrevem a imobilidade total.
Então deseja-se um pouco de distância. Se, por hipótese, reentrássemos no seio materno
não veríamos mais a mãe, nem a sua face. Quando se entra no seio do Pai, não se vê a
sua face, mas se é sempre mais fascinado e atraído por ele. Uma tal atração não se
explica, ainda que no início de sua vocação alguém tenha recebido muita luz sobre esse
mistério. E quanto mais se avança, mais se entra na treva de Deus.

l. O Segredo de Deus.

Passamos toda nossa vida perscrutando esse mistério da Trindade sem entendê-lo
e tornando-nos sempre mais cegos. E, entretanto, se abre de par em par diante de nós a
felicidade de experimentar a incompreensibilidade de Deus. Como a Jó, se nos fecha a
boca no pó (42,1-6).
No fundo dessa treva, brilha uma pequena luz escondida que é preciso procurar:
é a estrela do segredo de Deus.
Quando vemos brilhar uma estrela no céu profundo da noite, somos mais
impressionados pela obscuridade impenetrável do azul do que pela luz da estrela. Para
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aproximar-nos do mistério da Santíssima Trindade, é preciso pôr-se de joelhos diante do


céu escuro e olhar, sem nos cansar jamais, a estrela do segredo de Deus. Esse segredo
está presente em todo o Evangelho, e a razão última da vinda de Cristo sobre a terra é
para fazer-nos participantes do segredo que era seu desde sempre. Não basta expressar
esse segredo com palavras e idéias, ele é uma pedra preciosa que é preciso descobrir e
que vem a nos encher de júbilo (Mt.13,44-46). Se não estivermos convencidos que é um
segredo “escondido aos sábios e inteligentes e revelado aos pequenos”(Mt.11,25), não
teremos a humildade de pôr-nos de joelhos e de suplicar a Jesus de levantar uma pontinha
do véu que o oculta. Neste ponto Jesus é incisivo: “Ninguém conhece o Filho, senão o
Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo”
(Mt.11,27).
Só Jesus pode des-velar o Pai, como só o Pai pode atrair-nos para Jesus:
“Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair”(Jo.6,44). Tem-se a
impressão, por momentos, que o Pai e o Filho jogam peteca conosco, jogando-nos de um
para o outro, para fazer-nos descobrir a porta estreita do “segredo”, até o momento em
que se compreenderá que estar unidos a uma Pessoa é o mesmo que estar unidos com
toda a Trindade. Ninguém, entretanto, entra em comunicação com o segredo sem ser
expressamente convidado.
Que sentido pode adquirir esse segredo se usarmos de comparações humanas?
Vejamos. Cada um de nós tem uma vida interior, íntima, que podemos chamar de secreta.
O meu coração tem o seu segredo, a minha alma o seu mistério, diz o poeta. Esse segredo
é caraterizado pelo fato que ninguém pode penetrá-lo se nós não o permitimos. Pode-se
ser forçado a dizer coisas materiais, mas ninguém pode obrigar-nos a revelar o íntimo de
nosso coração, se nossa liberdade a isso se recusar. Podemos estudar o caráter de uma
pessoa o mais de perto possível, usando todos os recursos da psicologia, mas se essa
pessoa não quiser revelar o que está no íntimo de seu coração, não chegaremos nunca a
sabê-lo. E isso não depende de nossa insuficiência intelectual, ou da falta de
compreensão, mas depende exclusivamente da liberdade do outro.
Essa comparação é muito importante para se compreender a Revelação, porque
com Deus é a mesma coisa. Se Deus não nos abre a porta, ficaremos sempre do lado de
fora, por maior que seja nossa penetração intelectual a respeito de seu mistério. Com a
ascese, ou a contemplação natural, jamais chegaremos a penetrar no segredo de Deus,
porque ele é uma pessoa livre e somente ele pode abrir-nos ao seu mistério. Através da
criação (Sb.13,1-9) podemos ter um certo conhecimento natural de Deus. “As perfeições
invisíveis de Deus, nos diz S.Paulo, se tornam visíveis à inteligência, por suas
obras”(Rm.1,20). O mundo é absolutamente necessário que tenha um Criador, e as
perfeições da criação são as perfeições do Criador. Mediante a Teodicéia percorremos o
caminho da analogia, que nos permite descobrir os atributos divinos, partindo dos
atributos da criação: beleza, bondade, justiça, simplicidade, etc. Esse conhecimento pode
ser muito vasto e exige uma especial purificação da inteligência e dos sentidos.
Esse tipo de conhecimento, entretanto, nos leva a conhecer de Deus os aspectos
(se assim se pode dizer) em que ele se assemelha a alguma coisa. Se falamos, por
exemplo, de Deus Criador ou Salvador, não designamos Deus em si mesmo, mas
designamos a sua face voltada para o mundo, isto é, aquilo que está “ao redor de Deus”.
Assim também quando se diz que Deus é bom, designamos a Deus pelo aspecto em que
ele se assemelha a alguma coisa do mundo, isto é, na medida em que o homem é bom, à
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imagem de Deus. Entretanto, há um lado de Deus que escapa totalmente às


considerações desse gênero. Há um lado invisível de Deus que não se assemelha a nada
daquilo que conhecemos deste mundo.
Fazendo uma comparação muito aproximativa, podemos dizer que Deus é
semelhante à lua que tem uma de suas faces somente visível aos astronautas. O segredo
de Deus é como essa face misteriosa e invisível. E, entretanto, é a contemplação dessa
face misteriosa que fascina o homem, muito mais do que o lado visível. O desejo do
homem, seja ele judeu, grego, mussulmano ou indú, é de ver essa face que não tem
semelhanças e de partilhar a comunhão de seu olhar. Em outras palavras, desejamos
sentar-nos à mesa, face a face com o Criador, sendo que o banquete é o sinal de nossa
comunhão com ele.
Falando da santidade de Deus, a Bíblia deu um nome a essa face. Toda vez que
celebramos a Eucaristia, o banquete messiânico do Reino, proclamamos a santidade de
Deus, evocando a visão de Isaias: “Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus do universo! O
céu e a terra estão cheios de sua Glória!”(Is.6,3).
Dizer que Deus é santo, é afirmar que é separado do mundo, que entre ele e o
homem há uma barreira e um abismo, conforme no-lo afirmaram todos os que afloraram
a santidade de Deus. A santidade de Deus está na raiz do seu segredo e não pode ser
confundida com aquela das outras religiões, pois, no fundamento da fé cristã está a vinda
do Verbo, cuja face estava voltada para a face invisível de Deus (Jo.1,1-2), porque
“ninguém jamais viu a Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o
revelou”(Jo.1,18). Mas, os seus não o receberam (Jo.1,11). O Filho de Deus veio
convidar-nos a cear com o Criador: “Eis que estou à porta, e bato: Se alguém ouvir a
minha voz e me abrir a porta, entrarei em sua casa e cearemos, eu com ele e ele
comigo”(Ap.3,20). Desde muito tempo Deus lança esse convite ao banquete trinitário,
pois, já a Adão, ao lhe falar pela primeira vez, pergunta: “Onde estás?” (Gn.3,9).
Entretanto, o homem é duro para compreender e, por isso, tendo esgotado todos os meios
para fazer ouvir esse convite inefável, por último, enviou seu próprio Filho único (Cfr.a
parábola dos vinhateiros omicidas, Mc.12,1-12). Voltaremos sobre esse des-velamento
do centro da Trindade. Vejamos, antes, o que nos diz Jesus no Evangelho.
Como conclusão deste parágrafo, digamos que o homem é convidado a partilhar
do segredo de Deus, que é a fonte da graça. Deus lhe oferece as coisas mais
inimagináveis, que não têm semelhança com nada deste mundo. Pois, a graça não é
somente uma elevação da criatura, mas é também o dom de Deus em seu segredo.
Quando Jesus fala desse segredo diz em oração: “Sim Pai, eu te bendigo, porque assim
foi do teu agrado”(Mt.11,26). O homem não tem nenhum direito de exigir a revelação
desse segredo, que depende exclusivamente da benevolência do Pai. Muito menos poderá
apoderar-se dele por sua própria conta. Resta-lhe somente a invocação, a oração: Mostra-
me, por piedade, o teu rosto! Diz Gabriel Marcel: “O conhecimento do outro é
invocação!” Ninguém pode obrigar o outro a abrir-lhe o coração, muito menos a
favorecê-lo com sua amizade. Podemos somente pôr-nos de joelhos e suplicar ao outro
que tenha piedade do apelo de nosso carinho. Quem não conheceu o sofrimento do amor
não correspondido? Por isso é preciso, entrar na afetividade de Deus a partir da
afetividade humana, da qual temos experiência.
Devemos, de todo o coração, invocar o Espírito Santo, para que nos des-vele o
rosto do Pai e do Filho; o Espírito Santo que é o beijo de amor entre essas duas Pessoas.
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Trata-se de entrar num mundo que nos supera totalmente. E, entretanto, é através do
Coração humano de Cristo que nós descobrimos o amor trinitário. Todos somos
convidados a esse banquete na sala da casa de Deus e, para adquirir a pedra preciosa do
segredo de Deus, queiramos vender tudo.

2. “Tudo quanto ouvi de meu Pai”(Jo.15,15)

No Evangelho encontramos um ponto muito claro, não revelado certamente ao


acaso, presente a cada passo. Cristo diz com freqüência: “O Pai e eu.” E acrescenta: Nós
estamos sempre juntos, porque “aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou
sozinho, porque faço sempre o que é do seu agrado”(Jo.8,29). “O Filho de si mesmo não
pode fazer coisa alguma; ele só faz o que vê fazer o Pai, e tudo o que o Pai faz, fá-lo
também semelhantemente o Filho”(Jo.5,19).
Não diz somente que o Pai está com ele, mas vai mais longe, afirma que é igual
ao Pai (Jo.8,58); afirmação essa que provoca a cólera e o escândalo dos judeus. E chegará
a dizer que um dia eles saberão que ele está no Pai e o Pai está nele: “Naquele dia
conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim e eu em vós”(Jo.14,20). “Para que
todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles
estejam em nós”(Jo.17,21).
São textos, esses, muito fortes e compreende-se que muitos busquem aguá-los, ou
refutá-los, cancelando a filiação divina. Nesse caso, será preciso anular, com um traço de
caneta, todo o Evangelho. Porque Jesus não veio somente para nos ensinar a viver entre
nós como irmãos, mas também para nos revelar que temos um Pai atento às menores
necessidades de seus filhos, e cheio de ternura para com eles. Dizendo essas coisas, Jesus
diz simplesmente tudo quanto viu junto do Pai, porque continuamente contempla a face
do Pai que está nos céus. É o segredo de Deus, do qual viemos falando.
No íntimo de Deus, naquela região para a qual não encontramos comparações, há
algo do qual temos uma idéia extremamente pálida e débil, quando duas pessoas se
dizem: “Tu e eu!” Se quiséssemos expressar essa realidade de outra maneira, poderíamos
dizer que em Deus há dois rostos. Duas Pessoas se olham, se falam, se escutam e se
amam, não na multiplicidade das palavras, mas na unicidade e na intensidade de um só
olhar. Podemos, então, imaginar quem será o seu comum Espírito que os retêm unidos e
no qual nós cremos. Imaginemos duas pessoas que, alcançada uma recíproca
transparência, se contemplam, voltadas uma para a outra e, num dado momento, cruza
entre elas como um relâmpago, uma espécie de faisca elétrica. Em Deus essa
contemplação, esse olhar, é eterno, mas tem a consistência de outro rosto: uma terceira
Pessoa que não é nem o Pai e nem o Filho. Há o Pai, há o Filho e há o amor mútuo, luz
que brilha no encontro do olhar dos dois, que é eterno. Isso que na experiência humana é
precário e inatingível, resulta a terceira Pessoa da Santíssima Trindade.
Em nossa vida, nada é tão importante quanto o encontro de dois rostos e a
comunhão de dois olhares. Basta observar o júbilo invadindo o rosto de quem pode dizer:
Tu e eu! O homem é feito para a ternura e a comunhão dos olhares. Essa é a fonte das
mais profundas alegrias, como das mais horríveis guerras. É realmente impressionante
pensar que, para vislumbrar essa íntima comunhão de Jesus com o Pai, possamos apelar
para as experiências mais simples e quotidianas de nossa vida, como seja, a amizade, a
paternidade, o amor conjugal. E isso para acentuar que o encontro do eu e do tu é a
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grande realidade da vida, ainda que, em nosso tempo, esse encontro seja a coisa mais
difícil de se realizar, porque supõe que no desejo da união mais total seja promovido o
respeito mais absoluto do outro.
Quem poderia ter adivinhado que no íntimo de Deus houvesse um diálogo de
amizade entre dois rostos? Se Cristo não nos tivesse revelado no Evangelho, ninguém
poderia ter imaginado. Não o inventou a Igreja e ainda menos os Santos Padres e os
teólogos. Não estamos em condições de compreender o segredo trinitário mas - aceita por
nós essa nossa incapacidade - é fascinante pensar que em Deus o Pai contempla o Filho
dizendo com amor: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”(Sl.2,7). E o Filho contemplando
o Pai, lhe diz: “Aba! Pai!” Precisaríamos transcrever aqui todas as palavras com as quais
Jesus expressa ao Pai o desejo de fazer a sua vontade. Todas essas palavras se resumem
na oração da agonia: “Aba! Ó Pai! Tudo te é possível; afasta de mim este cálice!
Contudo, não se faça o que eu quero, senão o que tu queres!”(Mc.14,36).
Será bom deter-nos um pouco sobre o modo como Jesus passa a revelar esse
segredo no Evangelho. Distinguimos para isso três momentos. O primeiro momento o
encontramos no sermão da montanha. Ali Jesus expõe as profundezas da lei do amor,
sendo que não veio abolir nada mas levar tudo à perfeição (Mt.5,17). Com efeito, essa lei
do amor promulgada por Deus no Deuteronômio (6,5) não diz respeito somente aos atos
externos mas sim às intenções profundas do coração, pois, o Pai vê no segredo do
coração e “sabe o que vos é necessário, antes que vós lho peçais” (Mt.6,8). Posto diante
dessas exigências, o homem se dá conta de sua radical incapacidade de praticar a lei.
Tentando praticar a lei, o homem se dá conta da impossibilidade de praticá-la, pois, ele
está “encerrado na desobediência”(Rm. 11,32; cfr. 3 e 7). E, então, o homem pode
escutar a palavra de Jesus que eu adato assim: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos
sob o fardo, buscando praticar a lei sem o conseguirem, e eu vos aliviarei”(Mt. 11,28).
Nessa perspectiva é que Cristo pôde verdadeiramente revelar a salvação que veio trazer
aos homens, apresentando as parábolas do reino com alusões discretas e misteriosas.
E este é o segundo momento em que Jesus passa a revelar o mistério do segredo
de Deus. Ele fala ai do fogo que veio trazer à terra, da água viva, da semente, do
fermento e da pedra preciosa pela qual se vende tudo. Cristo não explicita a realidade que
constitui o segredo. Por isso, fala em parábolas, de forma oculta, velada. Ele bem sabe
que muitos não entenderão o dom inaudito da vida trinitária, como ele viu na
multiplicação dos pães. Pois, o que interessava a Jesus não era tanto de saciar a fome da
multidão, mas de oferecer o pão da vida que é sua carne. E, então, levanta um pouco o
véu do segredo de seu mistério. Isto é, dar a sua carne para que os homens possam entrar
a partilhar da sua relação com o Pai: “Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo
pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne, viverá por mim” (Jo.6,57). De
imediato se evidencia que o segredo desse mistério, a ninguém vai beneficiar, a não ser
àqueles que receberem uma graça de atração: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me
enviou, não o atrair” (Jo.6,44). E, entretanto, este segredo é a única pedra preciosa que
atrai a todos, a menos que, por causa dos desejos das coisas perecíveis, nos venha a faltar
a “fome”.
No terceiro momento, Jesus fala abertamente a seus discípulos, e não mais com
linguagem misteriosa ( Cfr. Os capítulos 13 e 17 de João): “Disse-vos estas coisas em
termos figurados e obscuros. Vem a hora em que já não vos falarei por meio de
comparações e parábolas, mas vos falarei abertamente a respeito do Pai” (Jo.16,25). Nos
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inícios, Jesus não tinha revelado a fundo o seu pensamento a respeito do Pai, porque
estava com os discípulos, mas agora, que está para voltar Àquele que o enviou, trata os
discípulos de amigos, revelando-lhes o seu segredo: “Já não vos chamo de servos, porque
o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer
tudo quanto ouvi do Pai” (Jo.15,15).
É preciso compreender bem o que quis Jesus dizer com a palavra “amigos”. Não
diz: Eu vos chamo de amigos porque vos amo e vós me amais. Não. Chama os seus
discípulos de “amigos” porque condivide, partilha com eles o amor que ele recebe do Pai
e que dá ao Pai. Este é o seu segredo. “Como o Pai me ama, assim também eu vos amo.
Perseverai no meu amor” (Jo.15,9). Estamos diante de um amor que é próprio de Deus: o
amor com o qual o Pai ama o Filho! É um amor divino, eterno, infinito, increado. Jesus
evoca esse amor trinitário quando fala do fogo, da água viva ou da semente. Deu-nos
exatamente esse amor com o qual se amam os Três. Não é apenas um amor que
impulsiona a criatura a amar o Criador, pois é um amor que vem do alto, do “Pai das
luzes, do qual vem todo dom perfeito” (Tg.1,17). Trata-se da presença de Deus Trindade
no coração do homem: “Se alguém me ama...meu Pai o amará, e nós viremos a ele, e
nele faremos nossa morada”(Jo.14,23). A vida cristã consiste em permanecer neste amor.
Partindo desta presença de amor no homem, Jesus passa a falar da vida dos Três em si
mesma. É o núcleo do segredo: “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e
volto para junto do Pai” (Jo.16,28).

3. “O Espírito da verdade, ensinar-vos-á toda a verdade” (Jo.16,13)

Diante da afirmação de Jesus a respeito de sua relação única com o Pai, os


discípulos lhe dizem: “Eis que agora falas claramente e a tua linguagem já não é figurada
e obscura. Agora sabemos que conheces as coisas e que não necessitas que alguém te
pergunte. Por isso cremos que saíste de Deus” (Jo.16,29-30). Portanto, os discípulos
foram introduzidos no mistério de Jesus em relação ao Pai. Agora já sabem que ele saiu
do Pai e que retorna ao Pai, como relata com propriedade São João, no início do grande
discurso após a ceia (Jo. 13,3). Nada mais resta a eles do que partilhar o segredo com
todos quantos hão de crer em Cristo ressuscitado. Mas, por se tratar de um segredo, eles
não podem ainda compreendê-lo em profundidade. Conhecem com palavras e idéias o
conteúdo material desse segredo, mas não podem ainda terem uma compreensão
espiritual perfeita. Por isso, o mistério da Santíssima Trindade permanece para eles um
segredo, pois ele mergulha no oceano do infinito. Nesse sentido é absolutamente
impossível compreendê-lo. Mesmo quando o veremos como é, esse mistério permanecerá
um oceano no qual a nossa inteligência se perderá sem poder compreendê-lo. Cristo o
disse claramente aos seus: “Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas não as podeis
suportar agora. Quando vier o Paráclito, o Espírito da verdade, ensinar-vos-á toda a
verdade, porque não falará por si mesmo, mas dirá o que ouvir, e anunciar-vos-á as
coisas que virão” (Jo.16,12-13).
Ainda que Jesus tenha transmitido aos discípulos tudo o que tem ouvido do Pai
(Jo.15,15), eles são incapazes, no estado em que estão, de compreender a importância e
as exigências disso tudo. Precisarão do Espírito Santo para entrar na inteligência
espiritual desse mistério incompreensível que Cristo lhes havia manifestado. É sempre o
Espírito Santo que nos fará entrar no seio do Pai. Como nos diz S. Paulo, o Espírito
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Santo nos foi dado para que conheçamos as coisas de Deus, os dons que Deus nos fez (1
Cr.2,10-12). E o dom por excelência é a vida trinitária.
Os discípulos devem compreender que tudo o que Cristo lhes disse sobre esse
mistério não é um absurdo, mas uma realidade excessivamente luminosa, tão luminosa a
ponto de os tornar cegos. O conhecimento que têm os místicos nos dá a impressão de
uma descoberta da Santíssima Trindade em contínua re-criação. Os sentimentos que se
pensava já adquiridos desde muito tempo, são sempre novos como uma contínua
descoberta. Eles fazem experiência da santidade de Deus em uma profundidade interior
desconhecida até o presente momento. Em seu diário Santo Inácio de Loiola diz ter
recebido uma “visita insigne e entre todas a mais excelente”, por tê-la recebido com um
amor que não lhe era habitual. Para os místicos tudo é movimento, tudo é novidade, tudo
é maravilhoso. Vai-se de “uma novidade a outra novidade, para uma novidade que não
tem fim” ( São Gregório de Nissa). Como os namorados não se cansam de se olharem e
de se confessarem, por horas e horas, o seu amor, assim os místicos não se cansam nunca
no seu relacionamento com a Trindade.
Os Santos Padres e os teólogos nos fazem bonitas sínteses sobre esse mistério e,
depois de dois mil anos, ainda se nos apresentam formulações como esta: O Pai gera um
Filho e nos deu o seu Amor e esse Amor é uma Pessoa, o Espírito Santo. O Pai é Deus, o
Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus. São bem distintos: o Pai não é o Filho, e o Filho
não é o Espírito Santo. E, entretanto, não são três Deus, mas um só Deus...
Diante dessa árida formulação, somos tentados a pensar que ela não influi na
nossa oração e no concreto de nossa vida. Entretanto, para os Santo Padres essas são
palavras afogueadas de uma experiência que não tem limites. Santo Agostinho meditando
sobre esse mistério sofreu a tentação de esquecer que ele é um oceano. Por isso, um anjo
o chama à ordem, sob as aparências de uma criança que está tentando transvasar toda a
água do mar para uma pequena cova na areia. - Que fazes? perguntou Agostinho.
-Transvaso a água do mar para esta pequena cova, respondeu a criança. -Mas, não o
conseguirás nunca, retrucou Agostinho. E a criança: É mais fácil transvasar a água do
mar para esta pequena cova do que o mistério da Santíssima Trindade para a tua cabeça.
Poder-se-ia tentar expressar esse mistério de um modo mais metafísico, partindo
da noção da revelação da Trindade, como Cristo o fez no Evangelho. Que quer dizer
revelar-se? Significa exprimir a própria substância ou o próprio ser. O homem se revela
falando, quando expressa um pensamento. Mas não expressa o fundo de seu ser, ele é
incapaz disso. Por isso, as pessoas que estão continuamente em busca de confidências se
angustiam, porque nenhuma criatura pode exprimir a própria substância, revelar o
próprio mistério. Somente em Deus, pensamento e substância coincidem. Ele é, portanto,
o único a poder exprimir-se totalmente. Só Deus pode revelar-se perfeitamente, porque
nele a Palavra, o Verbo, sai dele e exprime a sua substância, como diz o autor da carta
aos Hebreus: “Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos
profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho...esplendor da glória (de Deus) e imagem
do seu ser...”(Hb.1,1-3).
O Verbo de Deus não é somente palavra de Deus, mas também Filho, porque
procede do seio do Pai. Em Deus o Verbo, a Palavra, coincide com a substância. Por isso
a revelação do Pai pelo Filho é perfeita e infinita. Quando Deus Pai profere o seu Verbo,
em eterno silêncio, gera seu Filho unigênito. Por isso, a alma deve escutar em silêncio
(São João da Cruz), e não com muitas palavras que é coisa própria do homem. Em Jesus
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temos a revelação do ser íntimo de Deus que comunica a Jesus a sua Glória e a sua
substância: “Ó Sabedoria, que brotas da boca do Altíssimo, anunciada pelos profetas” (
Antífona “Ó” do dia 17 de dezembro, da novena do Natal).
Disso tudo decorre uma conseqüência muito simples para a oração e a escuta da
Palavra de Deus: Quando Deus fala, exprime o seu segredo trinitário, mesmo que o
homem seja incapaz de compreendê-lo na sua totalidade. Da parte de Deus a revelação
trinitária é total, da parte do homem há uma maior ou menor preparação pelas virtudes
teologais da fé, esperança e caridade, para acolher essa revelação.
É importante voltar com freqüência a considerar o mistério da unidade e da
distinção entre as três Pessoas em Deus. Na verdade, a sua união é infinita, como também
a sua distinção, pois, tudo o que diz respeito às pessoas divinas é infinito. Devemos
reconhecer que não é fácil aceitar essa realidade, já que muitos pensam que somos uns
abomináveis politeistas, porque estaríamos a adorar três deuses.
Conscientes que esse mistério transcende a nossa inteligência, não devemos,
porem, esquecer que a mesma inteligência pode colher daí algo de vital, tanto para a
nossa vida pessoal, como para a vida fraterna. A Igreja, a vida consagrada, a família e a
vida comunitária em geral, têm a sua origem na vida trinitária e por ela são plasmadas. É
o mistério da pessoa destinada a viver em comunhão, comunhão e solidão.
Depois do Concílio, a Igreja fez um grande esforço de renovação no plano
doutrinal, litúrgico, ético e espiritual. A vida consagrada voltou a encontrar as suas raízes
evangélicas, redescobrindo o carisma dos fundadores. Surgem por toda a parte grupos de
oração, comunidades de vida e partilha, sem falar nos jovens que partem para o terceiro
mundo a oferecer alguns anos de sua vida ao serviço dos mais pobres. Poderíamos nos
perguntar se esse esforço ingente de renovação e de generosidade, que já trouxe tantos
frutos, não teria dado frutos ainda mais abundantes e mais ricos, se tivesse sido mais
fundamentado em uma busca teológico-espiritual do mistério trinitário. Todo progresso
na vida da Igreja, na missão e na vida espiritual de cada pessoa tem sempre como ponto
de partida a descoberta vital do mistério da Santíssima Trindade, como fonte de toda
fecundidade.
( Tradução do capítulo 9 do livro de Jean Lafrance, na sua tradução italiana,
“Perseveranti nella preghiera”, Editrice Àncora, Milano, 1989)

A Fisionomia espiritual de S.Vicente Pallotti

Introdução
É certamente importante para nós meditarmos de contínuo sobre a fisionomia
espiritual de nosso Fundador, porque ele nos é proposto pelo divina Providência
como modelo de nosso vida. Ele é como o espelho para nós. Por isso, continuamente
devemos voltar a essa meditação. Tendo começado essa meditação nos seus escritos
espirituais, I Lumi, volume X das Obras Completas, e tendo comparado os mesmos
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com obras clássicas dos grandes místicos, entre elas, as de Guilherme de Saint
Thierry, o livro do autor anônimo “A nuvem do não-saber”, as obras de Santa Tereza
de Ávila e as de S. João da Cruz, ouso propor algumas colocações sobre a fisionomia
espiritual de S.Vicente Pallotti. Outros poderão continuá-las, ou melhorá-las ou até
contestá-las.
1.Vida mística-experiência de Deus
A concepção a respeito da fisionomia espiritual de um santo, parece que está
marcada pelo modo como se encara a relação entre os dois momentos da vida e
crescimento espiritual, o ascético e o místico. Com efeito, ou se encara a fisionomia
espiritual do santo a partir do esforço ascético que ele empreendeu para alcançar
aquele nível de perfeição que o faz ser santo, ou se encara essa fisionomia a partir do
dom gratuito de Deus concedido a essa “alma”, que a faz desabrochar também em
esforços e ações santificadoras.
Parece que é mais condizente com a realidade da vida dos santos que em vez de a
ascese anteceder a mística foi a mística que antecedeu a ascese. Neste caso, a ascese
não é ela que nos faz merecer, como um prêmio, a experiência mística, mas, uma vez
que esta nos é dada, a ascese passa a ser o exercício da mesma. Portanto, a mística
seria o dom anterior e fundante da ascese (Cfr. Guerra, Augusto, Da Mística à
Ascética, trad.do espanhol, em Grande Sinal, no.5,1996,614-623).
Isso parece mais evidente em relação à religião cristã. Outras religiões
privilegiam o esforço ascético, desenvolvido em exercícios vários para se atingir
determinado nível de perfeição, ou determinada aproximação da divindade. No
cristianismo, ao contrário, privilegia-se a iniciativa de Deus em vir até nós, com o
dom de sua presença santificadora. Dá-se, portanto, precedência à mística, entendida
como ação e iniciativa de Deus santificador.
Há quem dê outro sentido à mística. Entende-a como a chamada idéia-força, uma
idéia que nos venha a entusiasmar para a ação. E neste caso se a tem identificado
também como ideologia. Parece evidente que este sentido não corresponde com a
realidade da mística cristã. Esta, tem-se melhor caracterizado no sentido da
experiência que a pessoa faz da presença de Deus em seu ser. Por isso tem-se falado
também de presença ou proximidade de Deus. É um fato, um acontecer e não uma
idéia. E esse acontecer se traduz psicologicamente em forma de uma experiência.
Hoje, fala-se muito de experiência de Deus como fenômeno psicológico da
mística. Trata-se de uma verdadeira experiência, de um experimentar que já foi
caracterizado por um saborear. Por exemplo, o oremos, em latim, da invocação do
Espírito Santo diz “recta sapere”, isto é, saborear retamente e não apreciar retamente,
como foi traduzido. Tomás de Aquino na Suma Teológica traduz a palavra sabedoria
como “sapida scientia”, quer dizer, ciência saborosa (I, q. 43,a 5, ad 2).
Certamente que esse saborear, esse experimentar não é ao nível material. Mas
também não é ao nível da racionalidade, à semelhança de uma reflexão lógica ou
teológica. É uma experiência sui gêneris. Abrange em nós a mente que se ilumina,
sem ser por um processo de reflexão lógica, e o coração, o afeto, que é movido. O
efeito da graça, nos diz Santo Tomás, é duplo: “illuminatio intellectus et inflamatio
affectus”(I,q.43, a 5, ad 3). Poderíamos, aliás, acrescentar um terceiro efeito da
graça que é de mover nossas mãos e nossos pés. Visto isso, poder-se-ia caracterizar a
experiência de Deus com a seguinte formulação: É a presença de Deus que invade
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nosso ser e se faz perceber por nós em forma de luz da mente e afeto do coração e
força no agir.
Essa presença que nos invade, produz em nós variadas experiências. Em primeiro
lugar ela se manifesta como um experimentar amor. Ele me ama! É o fenômeno mais
fundamental. A esse fenômeno seguem-se vários outros: Se ele me ama, ele também
me perdoa; e se ele me ama e me perdoa, eu posso confiar nele; e se posso confiar
nele, desaparecem em mim os temores (“O Senhor é minha luz e salvação, de quem
eu terei medo? Sl.26,1; Sl.90) e me invade um sentimento de alegria e de paz. A
confiança também me dá uma sensibilidade grande de perceber que ele age em mim,
na comunidade, na história, no mundo. Eleva, com isso, a fé a um nível superior,
como diz Cirilo de Jerusalém (Cfr.Liturgia das Horas, Vl.IV, 419). Por fim, a
experiência de Deus, que é experiência de ser amado por Deus, me põe em
comunhão com toda a criação, com o cosmos, que também está impregnado do
mesmo amor.

2.Pallotti místico

Se buscarmos a fisionomia espiritual de S. Vicente Pallotti parece que se deva


privilegiar nele a experiência mística de Deus, da qual ele viveu a vida inteira. Não
se percebe em sua biografia um momento espetacular de conversão, como aconteceu,
por exemplo, com Santo Inácio de Loiola, ou outros santos. Mas a experiência
mística de Deus em Pallotti foi um processo continuado que foi se explicitando
sempre mais no decorrer de toda a sua vida. Sobre essa experiência, creio que
devemos apontar se queremos ter uma compreensão adequada da alma de Pallotti e
não sobre elementos da ascese que nele são como uma conseqüência.
É bastante generalizado o costume de apresentar Pallotti a partir de seus esforços
ascéticos. Por exemplo, um dos mais conceituados autores que escrevem sobre
Pallotti opina que se entende bem a alma de Pallotti a partir de sua “inabalável
determinação”. Em Escritos Selecionados, edição espanhola, à página 290,
encontramos: “...Quanto mais se desprendia Pallotti de si mesmo, tanto mais se
adentrava em Deus”. Não será que é porque estamos acostumados a pensar que a
perspectiva ascética antecede à mística, que na tradução Propósitos e Aspirações, em
vez de se traduzir que Maria se dignou de fazer com Pallotti os esposalícios
espirituais, se traduziu que Maria aceitou de fazer o casamento espiritual, como se
este fosse uma proposta de Pallotti?

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