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O DEVIR ANIMAL EM MAUS DE ART SPIELGEMAN

Discente: Augusto Cezar Barbosa Figliaggi

RESUMO
O trabalho realiza uma abordagem da obra Maus: A História de um Sobrevivente de Art
Spielgeman, realizando pontes de diálogo com o conceito de devir da obra de Gilles
Deleuze. Apontando como o devir animal ocorre na História em Quadrinhos em
questão, traçando diálogos entre teóricos das histórias em quadrinhos e o pensamento
deleuziano. Percebendo como a própria linguagem da HQ passa por atravessamentos, e
como a obra de Spielgeman também abarca a indiscernibilidade entre o ser humano e o
animal.

Palavras Chave: História em Quadrinhos, Devir, Holocausto

figura 01

As histórias em Quadrinhos, também chamadas de HQs (sua forma abreviada),


Arte Sequencial1, ou ainda Banda Desenhada2; apresentam já em sua natureza
composicional características de atravessamento. Isto é, esse tipo de linguagem artística
- aqui chamado de linguagem, pois possui elementos de compreensão próprios que
fogem aos elementos da literatura ou das artes visuais - é um modo de produção de arte
mestiça de outras, que criam no intelecto do espectador uma dualidade de apreensões

1
Como prefere Will Eisner em sua obra Quadrinhos e Arte Sequencial, 1999; ou Scot McCloud em Reiventando os
Quadrinhos, 1995;
2
Esta maneira de referenciar-se é bastante comum em Portugal, mas também utilizada por brasileiros, como é o caso
de Moacy Cirne, em seu livro História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros;
cognitivas. O perceptor desse tipo de arte se depara com elementos imagéticos e
elementos de escrita/fonemas (ainda que palavras, quando estão escritas, também sejam
imagens, quando compreendidas mentalmente se reestruturam no imaginário como
fonemas) e isso acaba já ocorrendo em uma espécie de atravessamento, até porque
atuam em duas áreas distintas do cérebro, áreas que normalmente estão em embates
cognitivos, o lado direito (intuitivo, criativo e propenso ao diálogo com imagens) e o
esquerdo (racional e propenso ao diálogo com os fonemas). Acerca dessa
operacionalidade mental das HQs no cérebro, Andraus faz o seguinte apontamento:

“As histórias em quadrinhos não servem apenas ao auxílio interdisciplinar ou


às aulas de literatura, mas principalmente como agentes artísticos auto-
suficientes literário-imagéticos apresentados de uma maneira própria,
independentemente. Isto se dá, sobretudo, devido à relação intrínseca das
HQs como uma literatura imagética (ou panvisual) e a importância delas
como imprescindível e necessário objeto de estruturação cultural aos povos:
objeto este que auxilia em uma melhor interface dos dois hemisférios
cerebrais: esquerdo: racional (fonético) e direito: intuitivo (imagético).”
(ANDRAUS, 2009, p. 44)

Nesse sentido, pode se afirmar que a relação intrínseca das HQs como uma
literatura imagética apresenta possibilidades daquilo que não é nem imagem e nem
texto, mas ao mesmo tempo são os dois. Uma manifestação que não se distingue onde é
referenciada exatamente pela força motriz da literatura que a abarca, ou pela
plasticidade visual das imagens que estão contidas, somente as duas unidades juntas
fornecerão o sentido do todo. Quase um estado de devir, conforme propõe Menezes
“Ele [o devir] é o próprio processo, um meio, ou seja, uma zona de indiscernibilidade
onde os termos implicados numa relação são arrastados pela própria relação que os
une.” (MENEZES, 2006: p.66).
Apresentamos aqui uma discussão acerca de uma obra de História em
Quadrinhos que, além da linguagem artística embrenhada em outras linguagens, possui
essa presença do devir pela maneira própria que a estética da narrativa se apresenta. O
estilo da narrativa do objeto de análise é chamado de Graphic Novel, que é quando uma
HQ conta uma história como um romance, num arco dramatúrgico que se inicia e acaba
em uma única ou poucas edições; esse termo surgiu para diferenciá-las das Histórias em
Quadrinhos que eram mensais, e raramente finalizavam a curva narrativa em poucas
edições. A obra em questão é Maus: A História de um Sobrevivente (capa da obra na
figura 01) de Arthur (Art) Spielgeman. E para situar esta discussão, trazemos à tona
uma contextualização do objeto artístico.
Spielgeman é um sueco, radicado nos Estados Unidos e filho de um sobrevivente
do holocausto. É justamente seu pai, Vladek, o personagem central de Maus. Art
Spielgeman já chamava atenção no cenário artístico devido aos trabalhos em quadrinhos
que realizava no cenário underground, mas foi com Maus que atraiu a atenção de
diferentes grupos culturais para o âmbito das produções de Histórias em Quadrinhos.
Por tanto reconhecimento, essa obra foi exposta em uma exibição no Museu de Arte
Moderna de Nova York e ganhadora de um prêmio Pulitzer em 19923. A
indiscernibilidade da linguagem artística levou a obra ter recebido um prêmio especial,
visto que não era um trabalho jornalístico ou literário como os que comumente
concorriam ao prêmio.
A relevância desse produto artístico e o que ele implica para as produções que
vieram depois dele é apontado por McCloud da seguinte maneira:

“Maus: A História de um Sobrevivente, de Art Spielgeman, um memorial em


quadrinhos das relações do autor com seu pai e das experiências de seu pai
durante o Holocausto, elevou o padrão para quaisquer esforços subsequentes,
tanto na seriedade de seu propósito como na determinação inflexível de sua
execução.” (MCCLOUD, 2006: p. 29)

Na história de Spielgman, tal como Kafka4, ele transforma seres humanos em animais e
faz a escolhas sobre quais animais representarão os seres humanos a partir dos grupos sociais
que aparecem em sua narrativa. No ambiente da 2ª Guerra mundial que ele cria, os judeus são
retratados como ratos, alemães como gatos, americanos como cachorros, russos como ursos,
franceses como sapos e poloneses como porcos. O recurso de se utilizar da imagem de animais
para construir personagens na Banda Desenhada não é exatamente recente, alguns autores, por
mais que não desenhem o animal em si, utilizam das formas estéticas dos animais para construir
os traços de seus desenhos, como uma maneira de causar uma relação mais rápida entre o
personagem e a idéia de caráter que ele precise evocar, talvez buscando materializar o instinto
animal que os humanos detêm, conforme coloca Eisner, quando afirma acreditar que os:

“... humanos modernos ainda retêm instintos desenvolvidos de quando eram


primitivos. É possível que o reconhecimento de uma pessoa perigosa ou uma
resposta a posturas ameaçadoras sejam resíduos de uma existência primitiva.
Talvez, numa experiência anterior, com a vida animal, as pessoas tenham
aprendido quais posturas e configurações faciais eram ameaçadoras ou
3
Extraído do Portal da Banda Desenhada (http://pt.wikipedia.org/wiki/Portal:Banda_desenhada) acessado em 10 de
julho de 2010;
4
Em A Metamorfose, onde o personagem principal é um ser-humano/barata
amigáveis. Era importante para a sobrevivência reconhecer instantaneamente
quais animais eram perigosos.
Existe a evidência disso na leitura bem-sucedida de imagens baseadas em
animais que os quadrinhos normalmente empregam quando buscam despertar
um reconhecimento do personagem.” (EISNER, 2005: p.24)

Contudo, a obra de Spielgeman não tenta retratar rostos humanos, o traço dos rostos de
seus personagens não é de estética naturalista “baseada” em animais, como colocado por Eisner.
É uma simplificação da estética do próprio rosto do animal, ou seja, uma forma estilizada da
imagem do animal. Mas aí se inicia o atravessamento; por mais que esteja fazendo alusão à
peculiar face do animal, a dramaturgia, as ações, os diálogos são tais como as das histórias de 2ª
Guerra das pessoas que as vivenciaram e não de animais. Em realidade a obra é uma biografia
de um sujeito (o pai do autor) que passou por várias situações complicadas que essa guerra lhe
prestou. E a estética dos animais utilizados por Spielgeman são as maneiras que o autor
encontrou de revelar a apreensão desses dois universos, a de animal e de ser humano. Não se
trata da transformação de um ao outro, mas sim de um casamento de um com o outro, da
paralelidade entre os dois, trata-se do devir, no sentido de Deleuze, pois em Crítica e Clínica, o
autor afirma que a condição do devir:

“... não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar
a zona de vizinhança, de indicernibilidade ou de indiferenciação tal que já
não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma
molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes,
tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa
população.” (DELEUZE, 1997: p.11)

Para Parnet, Deleuze reafirma o seu o pensamento, alegando que o devir jamais é
imitar:
"... nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de
verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se
deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão "o que você
está se tornando?" é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se
torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são
fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de
evolução não paralela, núpcias entre dois reinos." (DELEUZE & PARNET,
1998, p.10)

Os animais colocados na obra de Maus não funcionam apenas como artifícios estéticos
ou estilísticos para prender o espectador na história, mas como um processo simbólico de
demonstração dos devires que se instauram nos personagens da história. Não é apenas a velha
perseguição de cão, gato e rato - que dentro da obra de Spielgeman são os americanos, alemães
e judeus respectivamente – mas é a implicação em se misturar ao rato de tal maneira em que não
é possível perceber as diferenças de comportamento entre o ser humano e o animal, ou, ainda
que essa mistura não se instaure nas ações, é a desterritorialização de âmago do ser - humano
com o rato. Maus busca o animal no carater do ser humano. Por mais que a aparência da matéria
seja de um homem, a sensação de seu estado de espírito é de um rato. E com o pensamento
nessa presentidade da ausência de território entre a essência do sujeito e a do devir é que
buscamos reforço em Zourabichvili quando pondera que:

“...todo devir forma um "bloco", em outras palavras, o encontro ou a relação


de dois termos heterogêneos que se ‘desterritorializam’ mutuamente. Não se
abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma
outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a ‘faz
fugir’.” (ZOURABICHVILI, 2004, p.24-25)

Como Spielgeman fazia uso das Histórias em Quadrinhos, o ponto essencial de seus
personagens pode ganhar visualidade nas formas dos animais. É como se o devir-animal
ganhasse forma visual, e, de alguma maneira, nos aproxima ao embate pelo qual os judeus
passavam. Mas, ainda assim, os personagens retratados não eram os animais propriamente ditos.
Vejamos no exemplo abaixo, uma passagem de Maus onde nota-se que os devires eram uma
coisa e os animais outra, vale apontar, antes de observar a passagem, que a tradução não é
exatamente mal feita, e se configura de maneira a apresentar falhas nas composições
gramaticais pois o tradutor tentou colocar nos quadros de texto o sotaque que o interlocutor do
texto possuía em sua fala:
Figura 02 (SPIELGMAN, 2005:p. 113)

Na História em Quadrinhos os americanos eram retratados como devir-cachorro, mas


nesse momento o devir gato dos alemães carregavam cachorros para farejar a presença do devir
rato dos judeus. Ou seja, diante de um momento onde precisou desenhar a presença do animal
cachorro, o autor fez uso de traços mais potencialmente miméticos com referências indiciais ao
animal em si: quadrúpede, cheio de pêlos, coleira, etc. Mas quando retratava os devires, aí então
utilizava uma composição mais simbólica, estilizada.
Podemos concluir que, na obra, os personagens não são os animais, eles nem se
transformaram ou transformarão nos animais, eles não agem como os animais. Mas, o que o
autor propõe é que, naquele momento, os caminhos, esconderijos, esgotos e campos, pelos quais
os judeus passavam, a pressão que sofriam pelos alemães e as tensões da busca por
sobrevivência os faziam entrar na dinâmica do devir rato e, assim, denunciando os devires
animais dos outros homens.

REFERÊNCIAS

ANDRAUS, Gazy. A Autoria Artística das Histórias em Quadrinhos (HQs) e seu potencial
imagético informacional. In VISUALIDADES – Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual,
V. 07, n. 01. Goiânia: 2009

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.


DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
EISNER, Will. Narrativas Gráficas São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995.
_______________. Reinventando os Quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 2006.
MENEZES, Rodrigo Carqueja. Devir e Agenciamento no pensamento de Gilles Deleuze. Revista
Comum. V. 11 n. 26, Rio de Janeiro:2006.
SPIELGEMAN, Arthur. Maus: A História de um Sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.

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