Você está na página 1de 108

Introdução à Esquizoanálise

Gregório Baremblitt

Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p

2.edição

Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte:


Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p
Apresentação – 2.a Edição
É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta
a segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt.
Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não
esperávamos, e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e
outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da
mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero
limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira,
muito mais extensa, que está no prelo.
O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual
se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco
desenvolvidos na primeira.
Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela
eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do
presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do
mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli,
Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.

8
In Memoriam de Felix Guattari*

Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é
emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm
sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha
vida cotidiana, pessoal.

Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para


prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que,
fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por
outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a
gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada,
vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no
marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto
em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.

Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver


tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo
curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada
uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho
que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver
ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos,
este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em
muitos sentidos, medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de
uma maneira brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do
heroísmo revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de
heroísmo... um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o
chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante
detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei
que muitas pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer
grandes coisas. É interessante poder

Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92,


como homenagem póstuma a Felix Guattari.

9
Exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que
nós. E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o
mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou.
Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto
passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas
clínicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes,
França. Sua escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia,
mas não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra
Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis,
moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve
contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas
especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação
anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no
tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por outro
lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon,
um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde Pública
da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".

Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo


uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e
psiquiátrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo
experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até
revolucionárias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos
os movimentos alternativos psiquiátricos do mundo.

Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua


oposição aos acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na
Argélia. Participou na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional
Argelina". Escreveu para um periódico comunista relacionado com a Liga
Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela
Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos.
Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve
vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razão da existência
dessa escola, ou seja, a Psicanálise em si mesma. Guattari fundou a Federação de
10
Grupos de Estudo e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia
experts de diferentes disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se
ocupavam em estudar as instituições. Guattari fundou também a revista
"Recherche", que teve um papel importantíssimo na, divulgação das idéias
institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento que se
denominou "Oposição de Esquerda". Participou também da redação das novas teses
da "Oposição de Esquerda", propondo uma ética militante que reunia os
descontentes de todos os partidos políticos de esquerda, particularmente da Liga
Trotskista e do Partido Comunista Francês. Participou na operação de ajuda ao povo
do Vietnã na guerra contra os Estados Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da
Organização de Solidariedade com a Revolução Latino-americana, organização esta
do intelectual Régis Debray, que estava preso na Bolívia. Em maio de 1968,
Guattari associou-se a vários setores protagonistas desse impQrtantíssimo fato
histórico e participou, pessoalmente, de uma das manobras táticas que foi a
ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro de Estudos e Pesquisas de
Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais como "Genealogia dos
Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas publicações na
Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos homossexuais, o
que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. A partir de
1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a primeira das
quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL – Comitê de Iniciativa pelos Novos
Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos
italianos e que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná
Itália, por sua. vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da
candidatura do célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma
grande organização ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente,
fundador da Rede de Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas
psiquiátricas críticas que se estendeu pelo mundo inteiro.

Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não
apenas da cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a
História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado,
Guattari escreveu os seguintes livros: "Psicanálise e Transversalidade", que pertence
ao período em que ainda era psicanalista; "A Revolução Molecular", um belo livro
11
que resume suas propostas de militância política; "O Inconsciente Maquínico", onde
expõe a reformulação que fez da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente
escreveu com Gilles Deleuze, o grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo",
um livro que foi expressivo do movimento político e cultural de maio de 68. Fez um
estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores
expressões de um gênero que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, também
com Deleuze, "Mil Platôs", que é algo assim como o segundo tomo de "O Anti-
Édipo". MaIs recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e
imediatamente antes deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Três
Ecologias", e depois, com Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar
inúmeros artigos publicados em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra
parte, publicou, em português, em colaboração com S. Rolnick,o livro "Cartografias
do Desejo", e, na mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas conversas
com Lula.

Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual,


praticamente autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título
universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu
relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou
três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais,
como na maioria das alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi
criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos
que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o
mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude,
desta transcendência, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920,
de 1930. Estas são figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de
Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se
extinguido. Como também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o
impulso – firme, ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência
decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não
se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a
demonstrar que os ideais não existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém
tem por que reproduzir ou copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um
ideal, não diríamos que Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um
12
exemplo de como se pode viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de
uma forma de criação e de inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito
completamente de nosso cotidiano.
Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção
bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e
espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos
sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua
produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já
configura uma espécie de milagre intelectual que é absolutamente insólito na História
da Cultura. Um comentarista francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma
"filosofia a duas cabeças", fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio
que a obra de Deleuze e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o
fantástico, o assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas
cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a
Filosofia?" (este, o último livro que publicaram), é impossível saber de quem são as
idéias, se de um ou de outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas
cabeças, é criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir
muitos. É a transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não
se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste
coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso
século.
Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra
inclui as ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências
naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a
história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos
elementos da literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a
tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada
fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson,
de Hume. E até contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do
senso comum. Então – para

quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia,
é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza,
que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É
13
uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer
pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de
produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então,
o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política.
Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada
por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma
igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso
propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas
dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula,
uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não
gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou deleuziano assumido,
porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de
idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é e de como devemos nos
comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com
representações, pois está escrita com palavras, não é uma ideologia. Não é um
pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina
fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se
aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente
pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela
capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o
entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que eu acabei
de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os
discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha,
em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re-
ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as
partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos.
Esse discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e
Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma
literalidade nas citações, que chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não
consegue saber como é que dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las
tão bem e extrair delas estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso
próprio, com essa vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda
essa severa lógica, toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante

14
dessa obra. O mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa
capacidade de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente
mágico, um mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os
discursos acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas
religiosas, ou que as promessas políticas. É importante destacar essas características
dos textos e dos discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados
a um tipo particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que
se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente
tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a
proposta analítica desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é
uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz
Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma
"episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um
saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por
objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a
diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol ítica não
está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro
deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a academia, com suas produções
ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica.
Não necessita atuar dentro dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo.
Não precisa dos partidos políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se
eles são corporativos. Não define um campo de esquerda mais ou menos global, que
seria melhor do que o de direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em
todo e qualquer pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a
política dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a
política feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias
raciais, a política dos imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles
que sofrem a exploração, a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não
pertencem necessariamente aos organismos, às entidades molares respeitadas e
consagradas pelo mundo em que vi vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar
como está. É uma política baseada em uma proposta básica que diz que a essência da
realidade é a imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de
Freud, o desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo,

15
de uma força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo
aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de
funcionamento que Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em seu
processo primário. E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo
substancialmente produtivo, é a permanente criação do diferente, a geração constante
do novo. Então, quando Deleuze e Guattari dizem que o processo último da realidade
é produtivo e desejante, eles introduzem a idéia de desejo na materialidade produtiva,
e a idéia de produção neste processo criativo que é o desejo, e que habitualmente se
atribui ou apenas ao campo do psíquico ou às esferas mais ou menos ultraterrenas do
metafísico. Esta proposta da substância da realidade como repetição do diferente, do
diferente radical, esta, chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar
de sua proposta ética. Porque é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta,
em si mesma, é uma fonte inesgotável de criação, é uma potência incoercível de
transformação. Não existe, na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a
essa famosa "pulsão de morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os
físicos o descrevem nos sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir que,
desde a base (se isto se pode chamar "base"), propõe um tipo de vida que confie nisto,
que acredite que somos portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de
um mundo que é simultaneamente físico, natural, humano e maquínico. As separações
que se estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relações são
produto de uma concepção autoritária do universo, que sempre tem que ter algum
setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro.
Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que
cada um dos campos seja igualmente importante.

Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para
ser dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que
devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade
hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,
procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por
outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não
precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma
entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que
somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente
16
guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras
têm criado e promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas,
são feitos por um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores
assumem valente e quase humoristicamente.

Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles pegam de


cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, aquela
engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua máquina teórica e militante,
sem interessar-se por completo pelo rótulo geral que possa ter essa disciplina da qual
pinçaram e "roubaram" um conceito.

Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo
subjetivo e o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos
consagrados, textos adoráveis e discursos insignificantes.

Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos",


foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de
um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo
Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando
elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de
uma religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo
parecida com o que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a
teoria das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química
atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é
feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e
obras de arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo
juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum.
Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de
palavras. E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um
discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente
inventivo. Então, esses ladrões bricoleurs fazem depender essa criatividade
justamente da sua irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão
assombrosa e com um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer
com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor

17
que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem
no livro de Deleuze que se chama "Diálogos", onde o autor define seu método de
criação teórica de uma maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de
aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho
monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer
dizer teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso,
quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste conceito.

Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum
período destinado ao diálogo entre este amável público e eu gostaria de concluir
referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari
estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase
que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho também por
ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas na matéria, aqui, no
público. Mas poderia falar também da relação crítica da Esquizoanálise com o
Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da Esquizoanálise com a
Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepções
capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relação com a
Psicanálise.
Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a
minha leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à
Psicanálise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e
Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do
significante, da concepção estrutural do psiquismo, etc. Mas manifesta uma franca
preocupação política e social, que, como se sabe, estava ausente na obra de Lacan e
na da maioria de seus continuadores. Já quando Guattari escreve, junto com
Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica radical à Psicanálise, que se
pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a ciência que dá conta de um
modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de produção do sujeito psíquico
é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio da estrutura edipiana, que
todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal, que se gera "o sujeito
psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e aberrante. Deleuze e
Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que não existe um modo

18
de produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que existe um modo
historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que, obviamente, é o
edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do psiquismo – vamos
dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens narcisistas,
egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis,
majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do
nosso modo de ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o
único. Não é universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal
no sentido de que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um
modo de produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de
impor-se aos outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja própria
para descrevê-l o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal no sentido
de que ele tem sido capaz de produzir elementos teóricos que lhe permitem fazer sua
autocrítica. E descobrir que não é eterno, descobrir que não é o único possível, e
descobrir que essa dominação que ele impõe sobre os outros é um imperialismo,
como existe o imperialismo político, o imperialismo ideológico, o imperialismo
econômico e até um imperialismo ecológico. Em "O Anti-Edipo", então, o
psicanalista é qualificado de algo assim como um mecânico especialista na
restauração, na reparação de um aparelhinho eletrodoméstico que cumpre uma
função pobre, mas muito difundida.

No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais,
uma reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari
dizem que o inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta,
Laio e companhia, ou está estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo
de palavras cruzadas, dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que
nunca foi pensado como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e
exclusivamente de produção, de uma produção desejante, de uma produção que ao
mesmo tempo que cria, goza. E que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com
aquelas estruturas sócio-econômicopolíticas e psíquicas que vivem da reprodução e
não toleram a produção do novo.
Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em
relação à Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?"

19
Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica
e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa
cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação,
de castração, de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos
vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem,
apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem
de vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a
metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez
acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas
pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas
mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de
seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em
uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.

Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e
porque aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria
concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma
instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de
Psicanálise, Grupos e Instituições que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de
Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da
psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas
Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também, os colegas desta orientação
do Brasil e da América Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive
ocasião de conviver e conversar com ele em várias oportunidades, quando o IBRAPSI
o trouxe novamente e quando outras organizações o trouxeram. Guattari tinha uma
particular simpatia pelo Brasil e parece que o Brasil, também, pelas idéias de Guattari.
Penso que as idéias de Guattari nunca encontraram um campo tão fértil como aqui no
Brasil. Devo dizer que, nessa convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele.
Tivemos polêmicas públicas, em alguns congressos, porque tínhamos algumas
divergências no que se refere à estratégia e à tática no processo de transformação do
panorama da saúde mental. Mas, transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de
constatar que minhas opiniões a respeito eram aparentemente mais realistas que as de
Guattari. Eu prognostiquei, em várias ocasiões, para Guattari, que as transformações
que ele propunha e que pareciam estar se realizando aqui no Brasil, particularmente
20
no campo da saúde mental, e que outros companheiros haviam trazido com igual
energia, por exemplo, Basaglia, não se iam realizar tão rápida e facilmente como eles
pensavam. Bom, isso já tem uns doze a treze anos. E quando examinamos o panorama
da saúde mental aqui, o que se vê ainda é uma dominância da proposta psiquiátrica
clássica, da administração excessiva de psicodrogas, da terapia biológica com
choques e insulina, um tratamento carcerário feito ao doente mental. E vê-se que os
movimentos deflagrados por Guattari e por Basaglia, por Castel, Foucault e por nós
mesmos não têm tido o sucesso que se esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em
que, pode ser que eu tenha tido razão quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil,
porque junto com essa permanência da Psiquiatria clássica, também vemos a
proliferação de um tipo de Psicanálise que, justamente, Deleuze e Guattari criticaram
de maneira irrefutável. Mas devo confessar que não sinto nenhuma satisfação em ter
tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari uma força, um entusiasmo, uma vontade e
um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua obra e com
meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas não
conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu amigo, e
prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por isto que me acompanhe,
porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da organização, pode-se
fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas não se pode fazer a crítica do
desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver em muitos e que continuará vivendo.
Muito obrigado.

Debate
Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia?
Baremblitt: A relação entre o gênero humano e esse campo denominado
natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase
sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é,
ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se
com a natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um
conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental, que
seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça. Acontece
que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida

21
que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e
que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma
relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua
forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade
indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber
que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os
homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de
produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o
capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas
que está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem
pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz
isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que
esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber
científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em
que, dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de
forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais
analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a
natureza a um ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo
capitalista teve que parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o
risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos ou como for. E por
outro lado, o mundo da máquina é um mundo que já tem sido acusado, em diversos
graus, de demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação do universo. Deleuze e
Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que tem muito para ensinar-
nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado dos interesses da
humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na exploração destrutiva da
natureza, que é imanente com a vida humana.
Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da
sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da
sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia
nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo
e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse
trabalho de conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma
entidade que seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma

22
transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão.
P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari
fala muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de
conhecimento.
B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de
Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de
Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é
produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais
substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente
desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que
já diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam.
O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da
regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza,
como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o
que predomina é uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que
formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer
âmbito de que se trate depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso,
das pequenas partículas (como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse
planejamento racional e exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade
sujeitas a leis. O que Guattari propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa,
como forma de atuação ética, como forma de militância política, é a construção de
dispositivos que tenham em conta essa potência produtiva do caos, do acaso, e
elaborem estratégias e técnicas destinadas a produzir forrmações complexas no seio
do acaso. Isto quer dizer formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem
elástica, com uma ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a
emergência do caos criador. Nesse sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da
discussão, Deleuze e Guattari têm muito a ver com a tradição anarquista e com a
tradição autogestiva de todos os movimentos históricos dessa característica. Mas esta
afirmação é feita não apenas desde uma leitura política, mas também de uma leitura
das afirmações da física das nebulosas, ou da física do comportamento das partículas
atômicas, ou de certa característica das combinatórias biológicas, pelas proteínas
alostéricas, ou dos sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann,
enfim, de todos aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a

23
natureza caótica do ser e a importância de construir dispositivos que não sejam
rigidamente ordenados, mas sim que dêem possibilidade da emergência criativa do
caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos
com caos. Isto não quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída e
mantida rigidamente. Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se
refere tanto a esse universo caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao
procedimento pelo qual se pode viver e produzir dentro dele. Existe a palavra
osmose, então, eu imagino que é uma metáfora tomada daí – caos e cosmos
articulados e propostos como procedimento.
P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é
uma ordem que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a
gente sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído?
B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia
socrática, platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme
influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma
característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da
angústia, a que predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de
percepção da ação da pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma
primeira teoria da angústia que era produto do recalque, do impedimento de que a
libido se realizasse em encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas
posturas, existe uma filosofia por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a
percepção de uma força no nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é
constitutiva da realidade no mesmo nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo,
naturalmente, a angústia adquire um estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia
é promovida como necessária, como inevitável e como "atendível", no sentido de que
uma certa dose de angústia é um elemento indicador para levar-nos a um
comportamento adequado, apropriado. Na concepção de Deleuze e Guattari, a
angústia é produto da antiprodução, que o mundo do instituído e do organizado exerce
sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. Em conseqüência, é um efeito
indesejável e contornável. Agora, não há receita contra a angústia. Mas, se sabemos
que essa angústia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda e da
destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita contra a angústia é o

24
entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a plena certeza de que o
que está sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque é novo. Não é que se
desconheça, nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho que se poderia resumir
dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que "a
propaganda é a alma do negócio".

P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto
eu acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não vejo como essa ética
de um desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição
com a ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan,
esse termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição
dele do real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo –
isso está em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo
do final de análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo
que é totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor
estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da
morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com
pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud?
Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na
estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de
uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final
de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um pouquinho
sobre isto.

B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder.


Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele
produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de
articulação entre a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente
diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano.
Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto
Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de
profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise
anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada por Lacan,
depreciativamente, de human engineering, para significar que é uma análise que só

25
serve para a "adaptação", e que o único retomo verdadeiro a Freud é o de Lacan.
Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa
análise, pelo menos, é discutível.
P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo
novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final
de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo
aí nenhuma contradição.
B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o
que foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos,
eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos,
deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo,
Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais
se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso
é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer
passar a questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três
registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma
produção imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-
requisito de toda a produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste
em colocar-se em um lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda,
para que o mecanismo imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o
simbólico. Para Deleuze e Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte
do real. Não existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de
negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não
existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão à lei, não existe a
identificação com a metáfora paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que
tem a mesma essência do real. Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial,
como em Lacan, mas a proposta é a de uma pura diferença, de uma multiplicação
diferencial incoercível. Não se precisa de um procedimento que nos convença de que
o real é impossível, e que, por esse motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo,
"depois" simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria
do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosófica que é a que enfatiza o
Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso não existe,
a não ser no molar. Para estes autores nada é mais absurdo do que afirmar que houve

26
um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que há é
um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica,
pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produção e não de um desejo
como insistência em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental
aí é o estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não
é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta,
de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da dificuldade, não a de um
ser para a resignação.

P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro
conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como
pura diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso,
porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes
conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de
Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma
linguagem", ele não havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse
apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai
extrair toda uma ciência do Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os
falsos maternas, e vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser
Real. Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai
privilegiar o registro do real.

B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para
Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das
quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente
produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então,
falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan
formula as estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca.
Porque você se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o
mundo todo em espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta
lacaniana é uma forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e
Guattari dizem é que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma
subjetivação, ela é produzida como componente de um acontecimento. E não existe
uma forma estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma

27
variação de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não
tem comparação possível. São dois reais diferentes.

P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil


noventa e dois?

B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como
foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que
considerava o Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os
mais incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou
muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo
tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil
com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que
(bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de
uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados
Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina. Eu viajo
freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional
na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista,
Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional
– consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os
democratas cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou
menos nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde
este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte
anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem
a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e
escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque
eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno
e, através de seus representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo –
além disso, ainda existe um partido político que não tem similar em nenhum outro
lugar na América Latina... eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja
para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser.

P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma


estético. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse
paradigma estético.
28
B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do
paradigma estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida
em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem
Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem
de qualquer tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas
passagens da obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais,
pictóricas, estéticas, como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam
as mudanças com muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como
críticos que são do paradigma científico, que é característico da modernidade, essa
proposta de adotar um paradigma estético tem a ver com essa potência que eles
atribuem à produção artística.
P.: Como antecipadora?
B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da vida, da
harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se vê, por exemplo,
na música moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está além de qualquer
descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. Provavelmente o
único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse famoso
pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura.

Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra


ocasião menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.

Livros de autoria de Felix Guattari:


• Psicanálise e Transversalidade
• Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo
• Inconsciente Maquínico
• Cartographies Schizoanalitiques
• As Três Ecologias
• Caosmose. Um Novo Paradigma Estético
Em colaboração com Gilles Deleuze:
• Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
• Poli tique et Psychanalyse

29
• Kafka. Por uma Literatura Menor
• Mil Platôs
• O que é a Filosofia?
Em colaboração com Suely Rolnik:
• Micropolítica – Cartografias do Desejo
Em colaboração com Antonio Negri:
• Novos Espaços de Liberdade
Outros:
• Felix Guattari entrevista Lula

A Última Viagem do Capitão Guattari*


Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no
Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês,
Felix Guattari.
A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de
outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas
extraordinárias idéias e iniciativas.
A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos
últimos quarenta anos.
Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem
associá-la à de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de
boa parte de sua obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos.
Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma
formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto
esplêndida.
Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault,
disse em certa ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou
célebre: – "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que
separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis

30
libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas.
Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte
que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de
uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados,
Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos
escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá
publicamente, Guattarianos de fato.
É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem
como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras
intelectuais (algumas delas brasileiras), porém, cabe ressaltar que toda sua obra
contém certas características, que é imperioso pontuar.

Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a


movimentos e ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a
qualquer forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem
pelo homem.

Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado


em uma especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá-
las de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que de
melhor há em cada um destes campos do saber.

Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu


é repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum
mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado.
Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o
essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição
e de um rigor assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos
de inspiração e refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária
destinada a formar igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de
epígonos, adeptos ou iniciados.

Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o


humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições
descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como
31
proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de
todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para
adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único
motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e
para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser
a Vontade de Potência.
O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de
mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não
tiveram a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.

Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das
novas gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o
sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado.

Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados,


os "homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos
favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari.
Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.

In Memoriam de Gilles Deleuze*


Filósofo Nômade
Senhoras e Senhores,

Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de


Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por
haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze.
Igualmente sou grato ao auditório por sua presença.
Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo
inteiro, e não sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido
nos parece tão discreta quanto necessária e insuficiente.
Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o

32
seguinte: supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em
circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente.

Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa


conferência, devo reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse
monumento do saber é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de
expositor. Não obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm
estudado Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de
um trânsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua própria natureza, é
inesgotável.

Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso
com a famosa sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que
esse formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO".

Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e


escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferência.

Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação?

* Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995


O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que
sempre lhe foi própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e
humorístico.
Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados,
por minha vez, como interrogações:
Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a
reconhecer a obra de Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez,
trata-se de manifestar a esperança de que o período que falta para completar este
século, ou, quem sabe, todo o curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão
concreta das idéias de Deleuze?
Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a
isso me referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente
que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo.
E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor
segurança sobre o assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos
33
antecipa, não apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer
sabemos se será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve
exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à
história de nossa época, é uma tarefa árdua.
Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas
dificuldades: é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto
amigo, também recentemente falecido.
Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar
os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e
Guattari provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova
coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita.
Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica
obra desse autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta
enumeração da bibliografia deleuziana.
Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia
em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou
Filosofia em um liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre
Klossowsky, Michel Butor e Jean
Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de
agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).
A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de
1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se
aposentou.
Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida
intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix
Guattari, em 1969.
Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se
possa traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui
fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio
de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988).
Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às
quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente,

34
acrescentar:
"Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a
dos acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a
Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem
a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista,
nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e
artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan,
Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a
Sófocles, Leonardo ou Shakespeare.
Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem
estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente
marginais. Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas,
os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e
Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich,
Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e
tantos outros".
Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo,
a fabulosa erudição e versatilidade de Deleuze e, em
segundo lugar, dois tipos de relação heurística com as obras e com seus criadores.
Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como
seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um
filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para
fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o
havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que
Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anômalo, aquilo que
está nos limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de
certeza é o que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos.
Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica,
muito mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos
comentários e teses acadêmicas que Deleuze detestava.
Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de
conhecer e circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo

35
saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros
editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora
como indispensável:
• Instinto e Instituição
• Empirismo e Subjetividade
• Nietzsche e a Filosofia
• A Filosofia de Kant
• Proust e os Signos
• NÜ::tzsche
• O Bergsonismo
• Apresentação de Sacher-Masoch
• Espinoza e o Problema da Expressão
• A Lógica do Sentido _
• Diferença e Repetição
• Espinoza, Filosofia Prática
• Espinoza e os Signos
• Francis Bacon: Lógica da Sensação
• Cinema I – A Imagem-Movimento
• CinemaII – A Imagem-Tempo
• Foucault
• Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet
• A Dobra – Leibniz e o Barroco
• Conversações
• Crítica e Clínica
Em colaboração com Felix Guattari escreveu:
• O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
• Kafka. Por uma Literatura Menor
• Mil Platôs
• O que é a Filosofia?
• Politique et Psychanalyse
Em colaboração com Carmelo Bene:

36
• Superposições
Em colaboração com Claire Parnet:
• Diálogos
Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente
A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros
textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas
publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze
podem ser divididos em três grupos.
O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato
aparentemente acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia.
O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais
adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal.
Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de
"Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta.
O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às
Ciências e às Artes.
Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é
inadequada e insuficiente.
Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um
sistema anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e
turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se
pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é
reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma
alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar passando
de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos.
Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada,
porque, segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade
última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do
que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere.
Para esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas,
heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como
atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele,
37
e ele dentro daquelas.
Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico
de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si?
Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que
todo texto ou discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa
apenas por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre
os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria
da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos
espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a
Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o
Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil
confundir essa concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de
significantes, elos ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores,
etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir
paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações,
hermetismos ou mistérios.
Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar
uma opinião pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada.
Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor
de livros de Filosofia.
O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade",
aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários
absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.
Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é
a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza
incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos.
Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto,
com toda clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as
questões que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?"
– fosse um bom enunciado para formular um problema.
Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando
uma vez mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou
38
seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu
funcionamento, por sua Diferença em Ato.
De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que
pensar exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de
novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica,
nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a
pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares
diferentes, originais, inéditos.
É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou
bem acabou não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre
outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo
pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou
esquizoanálise ou pragmática universal. Esses dois termos estão definidos
respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e
Esquizofrenia". O que estou afirmando é que Deleuze e Guattari engendraram algo
que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é Arte... e Política... e Saber
Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente.
Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"?
A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade
tenham incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas
disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes,
Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos.
Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o
inverso), como são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.
Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes,
Maquiavel, Hobbes, etc.
Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas
sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de
Deleuze e Guattari.
Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault,
não por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se
era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista.
39
Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho
introduzir o que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise,
não consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações
com as quais se costuma dividir a Filosofia.
Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer)
e à Axiologia (Teoria dos Valores).
Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma
maneira suportável para o público em geral?
Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e
Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta
tarefa como irrealizável.
Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e
obscuridades do que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.
Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a
culminação de duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia
Ocidental.
A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e
idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra
o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo
paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém).
"Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais
perguntas ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia
Antiga, na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e
Contemporânea.
O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo
Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos,
Materialismos, Agnosticismos, etc.
O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da
Circularidade e da Dialética.
Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que
o Ser (seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da
Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam
40
o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se
atribua à linguagem nessa identidade ou distinção.
Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são
indissociáveis da Gnoseologia), Deleuze postula:

1) o ser é devir.

2) o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da diferença.

3) a essência das diferenças consiste em puras intensidades.

4) por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites
externos difusos, o devir devém como multiplicidades.

5) pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades,


estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim
chamá-las) são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré-
biológicas, pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e
pré-impossíveis, até serem atualizadas.

6) o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim


entendidas, denomina-se individuações.

7) as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades,


multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a
partir desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada
incorporais-sentidos-acontecimentos.

8) as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por


idéias, substâncias ou essências previamente diferenciáveis em espécies ou
gêneros.

9) as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e

41
incorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as
individuações resultantes, não se relacionam como causas e efeitos e não
obedecem a leis.

10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies


imanentes entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de
conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas
singularidades intensivas que mencionamos (máquinas desejantes), dispostas
sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau zero das intensidades).
Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda é a superfície de
registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas,
determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que
predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a
superfície de consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das
individuações de toda índole.
Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma
extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza,
da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade,
assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das
práxis que os metamorfoseiam e os destroem.
Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a
Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos
Filosóficos, como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes
Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição,
o uso disjunto das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a
plena consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem
Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos,
de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de
transmigrações e conjuntos difusos.
Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da
resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade
de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação
permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno,
42
nem baseado em Princípios Transcendentes.
É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes
de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a
propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca
interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e
da Antiprodução... nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal.
Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num
andaime filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas
mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente
exposto?
Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e
reinvenções dos Universais mais caros ao saber do Ocidente. Apenas como exemplo,
mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, de Todo e de Partes, de Razão e
Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de Potência e de Poder, de Vida
e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, de História, de Sociedade, de
Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia, de Lingüística-Semiótica,
de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, de Literatura, de Cinematografia,
Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante.
Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa
simplificação, a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e
Guattari, principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a
medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no
desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos,
não se pode negar que, nas acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari
partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx,
não a restringindo à geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo
ligado à força de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à
infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à
Produção de Produção em "todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a
idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-força que anima
exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato Psíquico freudiano,
cujas características são, como é sabido, em última instância, repetitivas e

43
conservadoras.
Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim
como do Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características
do chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e
tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira.
Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras
acerca de Gilles Deleuze como "homem".
Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano",
encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma
fiel expressão de suas idéias.
Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu
empreendimento, de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma
abertura e de uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de
um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que
levarão décadas para se consumar.
Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-
revolucionárias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas,
foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida.
Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu
pensar e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados
com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a
que é capaz de propor e resolver cada problema.
A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se
interessam por acumular nem por consumir mercadorias.
Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem
essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir
bondoso.

INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 1
A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix

44
Guattari.
Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes
do século.
Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e
aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática
denominada Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a
numerosos grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a
Movimentos Populares de cunhos os mais diversos.
Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira
sempre original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre
cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc.
Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre
Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar
que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo
atual. Também foi jornalista e músico.
Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração
adquiriu características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses
escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia.
Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma
Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?".
A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos.
Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos,
trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira
original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem
abandonar nunca um matiz
*Introdução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário
realizado em Barcelona (1993).
político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia,
para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de
Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos
fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar
conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se
45
encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros,
mas sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não
enquadráveis.
O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de
1968, na França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses
têm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época
sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas,
peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus
entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da
Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao
Socialismo.
Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou
esses autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é
o Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que
se denominou Movimento Instituinte Internacional.
Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em
primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os
contemporâneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em
lugares privilegiados, uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e
de gênios. O exemplo mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência
por certos novelistas anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry
Miller.
O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida,
"O Anti-Édipo", publicado em 1972.
Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja
particularmente retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso
dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante.
Em um sentido um tanto melodramático, pode
se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das
relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a
linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a
família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os valores em
geral, a sexualidade, etc.
46
O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica
edipiana do Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos
e dos desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre
muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.
Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna",
mas, arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que
postulam:
- Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados
pela modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos,
consubstanciais entre si).
- Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto
heterogêneo, está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à
outra. A saber, a Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a
Superfície de Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela
geração de tudo quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias
ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses
elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam
por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é difícil
pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem nem
tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais)
consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o
dizer "todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se.
Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como
substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"...
fórmula essa na qual o múltiplo não é senão a multiplicação do que é um, ou seja,
muitos do mesmo. Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais é
absolutamente diferente das outras: não há nenhum um que sirva de base para
multiplicar-se nos múltiplos que são suas réplicas.
A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de
Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro
devir, estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses
elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está

47
tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a
energia "flui livremente pelas representações", onde não há tempo, não há espaços
clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de
morte, de castração, etc.
Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma
matéria prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho,
gera um produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e
Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si
mesma", seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que,
no caso da Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades,
que são caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de
Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as
coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se
dispõem ao acaso as intensidades... e as intensidades podem ser pensadas como
máquinas inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas
as direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas
órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o
corta e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo
incoercível é o que gera a produção de tudo quanto existe. Outra característica das
máquinas desejantes é serem infinitamente pequenas, por isso se denominam
moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro, que se
chamam molares, e que são as que estamos acostumados a reconhecer, seja qual seja a
materialidade de que se trate, por exemplo: um homem, uma planta, uma
montanha, um país, uma máquina mecânica, uma instituição, etc.
A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de
Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de
Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou
bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção
Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas
a diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para
colocá-lo a serviço da reprodução, da natureza e da sociedade, tal como estão
estruturadas, ou seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status
quo. A Superfície de Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem
48
se transformar radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de
Controle é o denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade
ordenada em cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo
que precisa para evoluir, pelas novidades da superfície de produção.
Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um
funcionamento que pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o
dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à
Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de produção caótico que
caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura".
Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos
ver nas Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas
denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento
que as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a
Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente
centralizadoras. repressivas e antiprodutivas.
A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido
pela Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que
escapa ao controle e se manifesta como novidade radical, invenção e revolução... são
realizados e/ou consumidos, quer dizer, usados e gozados pelos agentes históricos.
Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para
apresentar as tarefas da Esquizoanálise.
A Esquizoanálise será um processo de investigação, de produção de
conhecimentos e de aplicação dos mesmos, para transformar o Mundo (entendido no
sentido tanto da organização social, como política, econômica, da subjetividade dos
homens e ainda das máquinas que modificam por completo a relação homem-
natureza). A Esquizoanálise, que não tem por que ser feita por especialistas e que,
além disso, cada um faz à sua maneira, a partir da inserção social que tenha e da
Causa em que esteja envolvido nas lutas do mundo (sexual, artística, política
alternativa, industrial, militar, etc.) se compõe de duas tarefas fundamentais.
A primeira consiste em uma raspagem, quer dizer, em um trabalho destrutivo
das entidades da Superfície de Registro-Controle que afetem (e da maneira especial
em que afetam) o território em que se movem os interessados. Por exemplo, digamos,

49
na luta pelo direito à existência de uma singularidade sexual: "os homossexuais". Aí se
tratará de entender e denunciar a lógica de dois valores com a qual o Socius define o
que é normal e o que não é normal em matéria de sexo. Mas isso também inclui um
trabalho de destruição das leis que justificam o império da sexualidade pautada em
dois valores, os preconceitos que afetam as singularidades sexuais no trabalho e na
política, etc. As tarefas negativas se superpõem e intrincam as positivas, por
exemplo, a invenção de modos de viver, de critérios de valor, de obras artísticas,
técnicas ou políticas, que são peculiares da singularidade cujo direito à existência se
está procurando reivindicar.
Toda e qualquer montagem que se invente para realizar a
esquizoanálise de toda e qualquer singularidade desejante produtiva, que se
denomina agenciamento ou dispositivo, é aceitável. Todo dispositivo desse tipo
terá de ter um componente pelo qual se constitui em uma "máquina de guerra",
ou seja, em um agenciamento que tem por objetivo defender-se dos ataques da
superfície de registro e/ou destruir os equipamentos com os quais a maquinaria
repressiva tende a reprimir, eliminar ou capturar as singularidades produtivo-
desejantes.
A Esquizoanálise tem ilustrações interessantíssimas de dispositivos
montados, tanto por singularidades sexuais, raciais, nacionais, etárias, lingüísticas,
como classistas, profissionais, artísticas, ecológicas, etc.
É de se esperar que essa introdução abra caminho para poder explicar em que
consiste o esquizodrama, que também temos denominado proliferação dramática
inventiva. Cabe apenas adiantar que se trata da montagem de dispositivos técnicos
que têm por objetivo uma Esquizoanálise praticada com recursos tomados da Arte, do
Teatro, da Pedagogia e da Psicoterapia, tal como eu tenho podido e entendido.

INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 2
No Apontamento n.1 tratei de começar a resumir o que chamei,
figuradamente, a "Concepção do Mundo" dos pensadores Deleuze e Guattari. Cheguei
a expor suas idéias acerca do que poderíamos chamar uma antologia da Realidade.
Pelo menos tratei de esboçar os conceitos mais inclusivos. Resulta, porém, que

50
quando se trata de sintetizar a obras destes autores, tropeça-se em graves dificuldades,
não só devido à fecundidade numérica das publicações (são muitos livros e artigos),
mas também ao processamento que se dá dos termos e noções inventados, à
heterogeneidade alucinante dos saberes ou dos gêneros que se usam como fontes de
"importação" dos conceitos ao seio da Esquizoanálise como "episteme", a
transformação constante da bateria conceitual durante a aparição dos sucessivos
textos, as diferenças de estilo de um texto para outro, etc.
Uma breve referência à questão do estilo já é interessante. Por exemplo: no
primeiro capítulo do Segundo Tomo de "Capitalismo e Esquizofrenia" (o primeiro
tomo é o famoso "O Anti-Édipo", o segundo se chama "Mil Platôs"), cujo título é
"Rizoma", os autores explicam o que é para eles um livro. Apenas como
aproximação, recordemos que, em meu texto anterior, falei da "Totalidade" da
Realidade e de sua composição por três superfícies imanentes entre si: a de Produção,
a de Registro e a de Consumação. Digo totalidade entre aspas porque essa é uma das
primeiras categorias filosóficas que Deleuze e Guattari se propuseram reformular.
Como a realidade é infinita, "cada totalização pensada ou prática que se faz dela
agrega-se a esse todo infinito como uma parte a mais". Segundo me parece, essa
definição já é um bom começo para que aqueles que nunca leram Deleuze e Guattari
comecem a "sentir" a novidade e, ao mesmo tempo, a estranheza que essa imensa
reformulação do pensamento provoca.
Creio que se pode dizer que principalmente a Superfície de Produção devém
segundo o Modelo de um Rizoma. Rizoma é um vegetal de tipo tubérculo, que cresce
subterrâneo, mas muito próximo à superfície, e que se compõe essencialmente de uma
raiz. Esta raiz é estranhíssima porque, quando o exemplar alcança grandes proporções
(há pouco li em um dos jornais diários que nos Estados Unidos havia sido encontrado
um que media vários quilômetros de extensão), é difícil saber quais são seus limites
externos; quer dizer, não há separação entre "uma planta" que constitui essa rede e a
outra que também a integra. Entretanto, no seu interior, o complexo, digamos,
radicular, está composto por células que não têm membrana, e que só podem ser
supostas como unidades porque têm núcleos ao redor dos quais se distribuem trocas
metabólicas e áreas energéticas. Então, pelo menos no sentido tradicional, o Rizoma
não tem limites internos que o compartimentalizem. Aquilo que circula nesse interior
circula em "toda e qualquer" direção, sem obstáculos morfologicamente materiais que
51
o Impeçam.
Em várias mitologias orientais, sumamente antigas, podem-se encontrar
reiteradamente representações do Universo que essas civilizações denominam "Ovo
Cósmico". Curiosamente, modelos similares podem ser encontrados nas mitologias
americanas, por exemplo, na tribo Dogon. O que estes modelos têm em comum é que
o Universo está desenhado como um corpo oval, de limites exteriores muito tênues, e
em cujo interior não se vêem compartimentos definidos senão algo assim como
"áreas" insinuadas por ocupações de forças, permanentemente mutantes, cujo fluxo
incessante mostra "momentos" que podem marcar-se com limiares que sinalizam
configurações fugazes de diferenças de intensidade.
Muitas ramificações ultramodernas das Ciências contemporâneas,
particularmente da micro e macro Física, mas também da Biologia Molecular, da
Matemática e da Geometria, etc., têm descoberto ou inventado universos reais ou
formais que funcionam dessa maneira.
Em certo sentido se pode dizer que para Deleuze e Guattari a Superfície de
Produção desse "todo" real funciona assim, e cada realidade circunscrita de maneira
mais ou menos ortodoxa na Superfície de Registro (por exemplo, um Corpo
Biológico, uma Organização, um Sujeito Psíquico... e o que é mais surpreendente, um
livro) também tem um pólo ou uma dimensão produtiva que funciona dessa maneira.
ou não tem... ou tem "pouco", ou seja, a potência rizomática de

sua composição depende de como estão "construídos interiormente" e de como


conseguem conectar-se e fluir com as forças do "exterior" com as quais se articulam.
Voltando à questão do "estilo" (que a rigor, não é um termo que Deleuze e
Guattari usam demasiadamente), trata-se dessa composição interna rizomática que um
livro pode chegar a ter e que o torna uma espécie de máquina (depois tratarei de
aclarar o que entendem por máquina), que o possibilita fluir interna e externamente,
conectar-se com outras máquinas que podem ser completamente heterogêneas
(máquinas técnicas, sociais, libidinais, biológicas, psíquicas, etc.) e fluir com elas e
entre elas, "formando máquina", "maquinando" com elas novas realidades produtivas
e revolucionárias. Em conseqüência, um livro, como todas as outras "entidades" ou
devires que integram a realidade, não é importante pelo que "quer dizer", senão pelo

52
que consegue "fazer", ou seja, pelos modos pelos quais se agencia ou se dispõe com
outras "máquinas" que transformam (ou melhor, metamorfoseiam, criam o novo
radical) a realidade.
Desta maneira, o que chamamos estilo é, a rigor, o regime de funcionamento
da "máquina livro", seu movimento, sua velocidade, sua longitude e latitude, sua
densidade, sua intensidade, que o permite ou não, contribuir para inventar mundos.
Estes mundos podem ser relatados por espécies de "Diários de Bordo" teóricos, que
não são exatamente "mapas". Melhor dito, são "Cartografias". É sabido que uma carta
de navegação é um "mapa relato", não apenas "objetivo", mas também "subjetivo",
"político", etc., que só serve para uma viagem, que só expressa a singularidade única e
irrepetível dessa viagem, o que não impede que outros viajantes dele se sirvam para
construir sua própria trajetória, sempre experimental, sempre aventureira ..
Por isso, cada livro de Deleuze e Guattari é uma "Cartografia", e está
construído de maneira que supostamente haverá de servir ao maior número de
viajantes possível, a empreender e elaborar sua própria travessia. Ainda que amiúde os
livros de Deleuze e Guattari apresentem recursos (editoriais, semânticos, sintáticos,
retóricas, etc.) convencionais, a idéia primordial é que podem ser utilizados, sem
sistematicidade alguma, por partes ou por totalizações aleatórias, por quem queira e
possa fazê-la. Uma peculiaridade que a obra esses autores apresenta e que, com toda
certeza é ilustrativa e fiel a esses "princípios", é que eles jamais se citam a si
mesmos, e autorizam os leitores a fazerem a mesma coisa.
Apesar de ser uma obra monumental, com uma quantidade de referências
bibliográficas que chega a ser monstruosa por sua amplitude, versatilidade e rigor,
Guattari escreveu um artigo que se intitulou algo assim como "Dez proposições
descartáveis para expor a Esquizoanálise". O descartável implica que não aspiram a
nenhuma permanência, nem paternidade autoral, nem exigência escolástica ou
acadêmica, mas que cada um pode usá-la à vontade, segundo lhe pareça que lhe vai
ser fecundo no que está por fazer ou escrever, ou para as duas coisas, que segundo
Deleuze e Gllattari, sempre ocorrem simultaneamente.
Em outra parte deste primeiro capítulo do Segundo Tomo ("Mil Platôs"),
Deleuze e Guattari explicam que assinaram seus livros pelo "prazer de falar em
primeira pessoa", "como todo mundo", dizer que "hoje saiu o sol" ou qualquer coisa

53
desse tipo, mas que, para serem coerentes, deveriam ter escrito de maneira anônima,
para poder descartar qualquer influência do que Foucault denomina "a função autor",
que é um recurso de Poder que, ainda que se possa usar de maneira estratégica a
serviço da produção, geralmente é empregado para gerar certa subordinação à imagem
do intelectual ou do "professor" prestigioso, etc.
Isso nos permite voltar à única proposta de "Método" que esses autores se
permitem e que, sem que haja referência explícita, tem muito a ver com o que um
grande epistemólogo, Feyerhabend, sustenta em seu livro "Contra o Método", em que
ele faz uma feroz crítica da "Metodologia das Ciências" e afirma algo como uma
"Inventiva Radical". Deleuze e Guattari sustentam que o único "método" é o do
bricoleur, ou seja, o do selvagem que solitariamente limpa o solo em uma clareira da
selva e se põe a juntar galhos, penas, pedras, e acaba construindo um "quadro" que
pode ou não ser apreciado por um "degustador" ou espectador, e cujo grau de beleza
depende do índice em que seus componentes "não têm nada que ver entre si". Dito de
outra maneira, Deleuze e Guattari propõem que em todo empreendimento, aventura,
viagem ou obra, o verdadeiramente importante é a novidade, a diferença e a
singularidade absolutas, que de uma forma ou outra subvertem a maior Instituição de
uma civilização, que é a forma em que esta define o "Horizonte do Possível".
Uma das maneiras de entender, em um sentido amplo, a importância dessa
proposta, é a de referi-la a algumas idéias do filósofo Bergson, particularmente
àquelas que se referem à essência da Realidade.
Bergson diz que a Realidade se compõe do Real (o que já existe), do Possível
(o que pode vir a existir) e do supostamente Impossível, o que, coerentemente com o
que se sabe do existente e do ainda inexistente, não pode ser nem Real nem Possível.
Mas Bergson acrescenta que existe uma dimensão da Realidade que ele denomina
Virtual. O Virtual não existe (não é Real), nem se pode dizer que seja Possível e
Impossível, simplesmente porque não se pode pensá-Io, nem antecipá-Io, nem
predizê-Io, nem negá-Io. O Virtual só é conhecido quando se torna atualizado, ou seja,
quando devém Atual. O que sucede é que o Virtual ainda não atualizado é a parte
mais importante da realidade, mas só se sabe dele quando se Atualiza, e sempre o
faz como a novidade, a diferença absoluta, que não era pensá vel, dizível, nem
previsível com as categorias do real, do possível ou do impossível.

54
Essa atualização do Virtual que Deleuze e Guattari apresentam com o nome
de acontecimento, termo tomado dos filósofos estóicos, tem uma valor incalculável
como orientador de toda prática, porque o objetivo principal em Deleuze e Guattari é
o de produzir pensamentos e atos (que sempre terão imanentemente uma dimensão
Ética, Estética, Ontológica, Gnoseológica, Política, etc.), montar DISPOSITIVOS,
agenciamentos, sempre complexos, heterólogos (compostos de diferentes saberes),
heterogêneos (compostos de diferentes material idades), heteromorfos (compostos de
formas diversas) e até heteróclitos (bizarros, estranhos, etc.)... que geram e são eles
mesmos partes de acontecimentos singulares.
Por sua vez, essa proposta está estreitamente ligada à idéia do filósofo
Nietzsche, de que se deve viver "Desejando os Acontecimentos", como afirmação
radical da "Vontade de Potência", ou seja, do cultivo, da propiciação daquelas forças
que procuram criar o Novo Absoluto. Em Deleuze e Guattari esse Novo é a
característica da atividade da Superfície de Produção, que sempre é simultaneamente
Revolucionária, Desejante e Produtiva.
Deleuze e Guattari tomaram de Marx a idéia de Produção, de todos os
Utopistas a idéia de Revolução, e da Psicanálise freudiana a idéia do Desejo
Inconsciente. Não obstante, não tomaram essas idéias sem crítica, posto que as
reformularam de tal modo que é difícil sintetizar no presente escrito. Apenas para
dizer algo a respeito, bastaria explicar, por exemplo, que, em Freud, existem dois
conceitos claros de Desejo. Em um deles o Desejo é definido como uma espécie de
força inconsciente que impulsiona os sujeitos a buscarem objetos de prazer que
supostamente tiveram alguma vez e perderam. Essa concepção do Desejo em Freud
sustenta que o que mobiliza essa força é a Falta desse objeto que, a rigor, não existe.
Mas há outras passagens de Freud nas quais o Desejo se define pelas características
daquilo que o criador da Psicanálise denomina Processo Primário, um funcionamento
com base na pura positividade, numa espécie de vontade de invenção, de criação, ou
como se queira chamar, que não se mobiliza pela Falta de Objeto nem pela nostalgia
do Bem perdido, nem pela tentativa de Repetição do Mesmo, senão por um puro
impulso ao Novo Absoluto, ao Retorno da Diferença Essencial que, segundo toda uma
linha da Filosofia, é o único que retoma na Realidade Última, que é a Virtual.

55
INTRODUÇAO A ESQUIZOANALISE
Apontamento N° 3
Nesta oportunidade, gostaria de me referir, como sempre muito
sinteticamente, ao lugar que ocupa na Teoria Esquizoanalítica a questão da
subjetividade.
É sabido que na História da Filosofia Ocidental podem-se reconhecer dois
períodos fundamentais. Durante o largo curso do primeiro deles, o pensamento
filosófico se interrogou persistentemente em torno do Ser. Apesar de que essa reflexão
estivesse sempre matizada, quando não francamente contraposta, ao problema do
Devir, pode-se afirmar provisoriamente que a questão do Ser resultou sempre
vitoriosa, porque, ainda que reconhecesse alguma importância ao Devir, o fez sempre
incluindo o Devir como uma das características ou atributos do Ser.

Já desde Parmênides, um ilustre pré-socrático, a fórmula predileta para


referir-se ao Ser era tautológica ou pleonástica, como dizer que do Ser só se pode
predicar que É. Essa identidade do Ser consigo mesmo adquiria em Parmênides
também a condição da imobilidade e da eternidade. A essa concepção pode-se
contrapor a idéia de Heráclito, de que o Ser devém, ou seja, que se transforma
constantemente; daí a famosa frase que afirmava que "não se pode banhar duas vezes
no mesmo rio".

A interminável sucessão de importantes escolas filosóficas foi-se inclinando


a buscar algo assim como um substrato do Ser, e ainda que tenha havido várias
tentativas a respeito, foi-se impondo a convicção de que a "medula"do Ser era a
Substância (Osia).
Com respeito à Substância, foram-se introduzindo importantes variações,
cujo estudo é do maior interesse, mas, para os efeitos do que aqui quero expor,
daremos um largo salto e diremos que é com o filósofo René Descartes que se gera
uma transformação no centro da problemática filosófica, posto que esse pensador
substitui a preocupação sobre o Ser por uma prioritária acerca do Conhecer, e
particularmente acerca da "sede" ou do protagonista do conhecer, que é o Sujeito do
Pensamento. Como é sabido, Descartes cunha a famosa fórmula "Penso, logo Sou",
fazendo o Sujeito do Pensar o único que pode ter uma certeza, pelo menos inicial, de
56
que é Ele quem está pensando e, portanto, Sendo.
Essa mudança permanece fundamental para toda a Filosofia póscartesiana,
ainda que não de uma maneira exclusiva. Uma de suas vicissitudes posteriores
consiste em que a Psicologia implícita nas considerações filosóficas, assim como a
Psicologia experimental das Faculdades, que é a primeira Psicologia "científica" que
aspira a fundar essa disciplina como tal, desvinculando-a da Filosofia, continua
definindo esse Sujeito autocentrado, coerente, único e homogêneo, como sendo o
objeto principal do estudo psicológico e o protagonista de todas as funções e atos
psicológicos.
Tem-se insistido reiteradamente que, com a Psicanálise, genial invenção
freudiana, essa Imagem de Sujeito foi definitivamente colocada em questão. Atribui-
se à Psicanálise, no campo do psíquico, uma revolução similar à que havia operado
Copérnico com sua teoria Heliocêntrica do Universo, a Darwin com sua Teoria da
Evolução das Espécies, e a Marx com sua Teoria dos Modos de Produção históricos.
Todos esses "descobrimentos" operaram verdadeiras revoluções, e um de
seus efeitos característicos no saber universal consistiu em um descentramento, ou
seja, no destronamento de uma entidade que ocupava um lugar axial nos campos
respectivos, que resultou questionada por esses novos conhecimentos. A Terra não é
mais o centro do Universo, assim como o Homem não é mais que um descendente dos
mamíferos superiores, e os Homens não são, tampouco, os fazedores incondicionais
da História, senão que os modos em que as sociedades se estruturam determina a
influência relativa que os homens podem ter sobre seu funcionamento.
De igual maneira, o Eu, entidade psicológica que, em geral, toma-se
sinônimo do Sujeito consciente, dono do saber acerca de si mesmo, de seus desejos e
de sua vontade, é evidenciado como sendo só uma parte da "personalidade", e não
certamente a mais importante. O Sujeito é conhecido como irreversivelmente dividido
em um Eu consciente e voluntário, por um lado, e em outras instâncias, entre as quais
se destaca o Id, impessoal, inconsciente e involuntário.
Muitos psicanalistas modernos insistem em que o descobrimento freudiano,
que sem dúvida adquiriu uma considerável hegemonia em seu campo específico, ainda
não foi suficientemente adotado e aproveitado, tanto no seio de outras disciplinas
científicas, como inclusive no da Filosofia, Política, etc.

57
Esse descobrimento problematizou, entre outras convicções, a certeza da
coincidência irrestrita entre termos tais como indivíduo, pessoa e sujeito.
Esse complexo de denominações reiteradamente tem sido entendido como
um conjunto de sinônimos, ou seja, cada um desses vocábulos designa mais ou menos
a mesma coisa, ou, pelo menos, são perfeitamente articuláveis entre si, de maneira tal
que, sua agrupação denomina quase tudo o que é a unidade elementar ou fundamental
do ser humano.
Ainda que existam muitas diferenças a respeito, para uma visão um tanto
mais rigorosa, costuma-se fazer certas distinções que já ajudam a discriminar um
pouco essa problemática.
Reserva-se o termo Indivíduo para a unidade mínima elementar de um
exemplar da espécie biológica humana (ou de outras), sendo que a mesma, como seu
nome indica, "não pode ser dividida sem desnaturalizar-se". Tem-se o hábito de usar a
palavra Pessoa para a unidade social e jurídica, igualmente mínima, capaz, por
exemplo, de contrair deveres e direitos e de ocupar lugares e hierarquias sociais
estabelecidas. Por sua vez, costuma-se denominar Sujeito, tanto a essa unidade
mínima homogênea autônoma psíquica a que nos referíamos anteriormente (e assim
também em Lingüística e em Semiótica), como a uma função essencial dentro dos
textos ou discursos (Sujeito do enunciado, Sujeito da enunciação).
Desde logo podemos encontrar muitos outros usos e sentidos do termo
Sujeito (em Teoria Literária, em Estética, em Política, etc.). Mas em todos esses
âmbitos encontramos também uma dualidade ou uma ambigüidade essencial pela qual
Sujeito pode designar tanto o agente, o protagonista, o ator, o causador dos processos,
como igualmente algo ou alguém "sujeitado", ou seja, ignorante, conduzido,
submetido ao efeito de forças e mecanismos que não conhece nem domina.
Obviamente, a anteriormente mencionada relação entre Indivíduo, Pessoa e
Sujeito fica radicalmente relativizada pela postulação de um sujeito essencialmente
dividido, como acabamos de caracterizá-lo. Se já estava claro que esses termos não
são sinônimos e não designam a mesma realidade, a isso devemos acrescentar que
essa condição dividida do Sujeito psíquico exerce influências incalculáveis sobre a
constituição e o funcionamento dos Indivíduos biológicos (seus "corpos"), assim como
sobre as pessoas sociais e jurídicas e os desempenhos de seus "papéis", "status",

58
concepções, atitudes, etc.
Um aspecto essencial deste assunto consiste em que, desde já, todas essas
unidades, às quais nos referimos, não são concebíveis apenas como entidades
separadas. Seja qual for a condição que se atribua à sua associação, é evidente que a
vida humana, tanto biológica, como social, como psiquicamente, desenvolve-se na
forma coletiva.
Essa coletividade ou comunidade essencial, em geral é concebida como a
conexão, relação, interação, ou como se queira chamar-lhe, entre as citadas unidades,
em conjuntos de pequena, média ou grande dimensão.
Daí a importância que têm adquirido diversas agrupações denominadas
intermediárias, tais como o casal, a família, os grupos "secundários" (lúdicos,
escolares, esportivos, etc.), assim como as organizações, os povos, até chegar à
Sociedade ou à Humanidade em seu conjunto.
Apesar de diversos investigadores terem intentado propor a existência de
entidades que não consistem exatamente na associação destas unidades elementares
(muitos já falaram, por exemplo, de Consciência ou Inconsciente Coletivo, de
Ideologia ou de Culturas, Tradições, etc.), em geral as tendências científicas
dominantes atuais parecem adotar ainda essa idéia de uma associação de Sujeitos
(p.ex.), coletivização esta que, ainda que possa engendrar estruturas e processos sui
generis, em última instância tem como substratos as citadas unidades elementares.
Essa posição se enfatiza em algumas postulações psicanalíticas atuais, que sustentam
que tal conexão é, a rigor, ilusória e impossível, ainda que possa estabelecer-se para
fins de criar efeitos de unificação coletiva, dado que os Sujeitos divididos de que se
trata são radicalmente narcisistas, e seu real vínculo com outros é inviável. Para esses
autores, a pseudo-conexão só se produz através de nexos simbólicos, cujo conjunto
constitui a cultura, mas à condição de serem mediatizados e abstraídos pela
linguagem. Desta maneira, os Sujeitos estariam marcados por uma "solidão essencial",
que não é realmente superável por interrelação alguma.
Explicar a proposta Esquizoanalítica a este respeito não é uma tarefa fácil,
particularmente fazê-lo para aqueles que ainda não estão inteirados dos meandros da
Teoria de Deleuze e Guattari.
Uma tentativa que posso fazer sobre o assunto pode basear-se em algumas

59
premissas básicas, apenas enunciáveis, ainda que difíceis de se fundamentar em
poucas linhas.
Em primeiro lugar, como já adiantamos nas outras comunicações, para esses
autores a separação entre Natureza, Cultura, Psiquismo, Sociedade, Máquinas, etc.,
dá-se apenas em um dos níveis ou Superfícies em que a Realidade está organizada.
Esta superfície ou nível é imanente, ínsita, coextensiva, concomitante,
coexistente – ou qualquer outro termo que possa tentar passar a idéia de que uma é
interna à outra –, com a Superfície da Produção Desejante, em que essas realidades
definidas e organizadas não o são como tais, senão como o que eles chamam (entre
outras maneiras) de realidades Pré: 'pré-biológicas, pré-psíquicas, pré-sociais, etc.
Como dissemos em outras aulas, o nível organizado (chamado Superfície de Registro,
Controle, Identidade, etc.) caracteriza-se por se compor de entidades macro, cujos
limites são geralmente perfeitamente definidos e variavelmente articulados entre si.
As diferenças entre essas entidades, se bem existem, não são tão importantes como as
semelhanças ou as igualdades, analogias, similitudes, etc. Por isso é que se pode dizer
que as coletividades são, a rigor, multiplicações. Se o Um é Indivíduo, Pessoa ou
Sujeito, a coletividade é o Múltiplo, muitos... ou bem do Mesmo, ou bem de pequenas
diferenças.
Na Superfície da Produção Desejante, se é que se pode falar de unidades
micro, estas são multiplicidades ou singularidades absolutas, o que quer dizer que
cada uma delas é absoluta e infinitamente diferente das outras. De outro lado, é
bastante difícil entender que essas singularidades não têm extensão nem qualidade,
senão apenas intensidade, por isso é que também podem denominar-se
Singularidades Intensivas.
O poliverso dessas singularidades intensivas, que em outras exposições
dissemos sinônimos da Virtual idade Bergsoniana, ainda
não existem como entidades macro ou moleculares da superfície de registro ou
controle, mas nem por isso deixam de formar a parte potencialmente inovadora
radical da Realidade.
Quando esta Virtualidade Molecular se atualiza, opera sem respeito algum
pelas identidades, limites, territórios, estratos, instituições, organizações ou unidades
elementares da Superfície de Registro.

60
Isto sucede quando emergem novos efeitos e processos, em geral
irreconhecíveis, impensáveis, inclassificáveis e incontroláveis (segundo as leis,
normas e interesses da Superfície de Registro). Essas revoluções, que podem ser
grandes ou pequenas, mas que se caracterizam por serem insólitas, efetuam-se como
encontros entre os corpos materiais e energéticos (isto dito em um sentido muito
amplo) e entre os sentidos e valores como acontecimentos incorporais.
Estes Encontros – Acontecimentos geram transformações que se efetuam
simultaneamente em qualquer ou em todos os domínios instituídos, organizados ou
estabelecidos molares, e podem assim gerar (isto dito incorretamente, por razões
pedagógicas) indivíduos que não pertencem a espécie alguma, novas pessoas que
não coincidem com indivíduos nem se enquadram em categoria social ou jurídica
de nenhuma índole e, para o que aqui nos interessa particularmente, subjetivações
que não se apóiam em indivíduos biológicos delimitados, nem em pessoas sociais
convencionais... nem coincidem com o lugar, perímetro ou condição das unidades
elementares-sujeito, sejam estas divididas como a psicanálise diz ou homogêneas,
como a psicologia tradicional diria.
Essa produção de subjetivações se "materializa" associando "partes" de cada
uma das unidades elementares citadas, em articulações completamente
irreconhecíveis, e com características de funcionamento insólitas, acerca das quais,
apenas para dar um exemplo ilustrativo (ainda que de maneira alguma exaustivo),
pode dizer-se que amiúde se apresentam com rendimentos do tipo do que
denominamos "paranormal", "parapsicológico", ou, com uma terminologia pouco
recomendável, francamente prodigiosos.
Trata-se de verdadeiras invenções, inspirações, criações, ou como se queira
chamá-las para melhor entendê-las, e o fato de que apareçam tomando como cenário
um Sujeito clássico, um Grupo, uma Organização, Movimento ou Massa Social, tem
muito mais a ver com a originalidade da subjetivação criada que com os limites e as
expectativas que habitualmente se atribuem a esses conjuntos.
Para concluir, provisoriamente, não se deve esquecer que essas "montagens",
"dispositivos" ou "agenciamentos" geradores de subjetivações (que podem ser
predominantemente artísticos, políticos, industriais, etc.), sempre são tudo isso ao
mesmo tempo, ainda que, amiúde, seja difícil precisar como cada um desses domínios

61
macro intervém em cada um deles.
Finalmente, retomando a polêmica pré-socrática, não se trata aqui de que o
Ser seja imóvel àu eterno, nem tampouco que o Ser devenha, mas de que o Ser é
Devir... ou o Devir é o Ser.
Dito de outro modo: O SER DO DEVIR É A INCESSANTE
PRODUÇÃO DO NOVO ABSOLUTO.

A REALIZAÇÃO DA REALIDADE *
A Esquizoanálise de Deleuze e Guattari pode ser considerada um saber
"novo", não enquadrável em nenhum dos gêneros anteriormente conhecidos. Ao
mesmo tempo, cabe considerá-la como contendo também parcialmente dimensões
destes gêneros: Filosofia, Ciências, Artes, Política, etc.
Do ponto de vista filosófico convencional, pode-se dizer que a
Esquizoanálise é um materialismo, neo-funcionalista, maquínico. O sentido desta
fórmula irá se aclarando no percurso destas aulas; por hora, trataremos de ver o que é
para Deleuze e Guattari a Realidade, e como a mesma se "faz".
Para Deleuze e Guattari a Realidade é tudo o que na Filosofia Convencional
compreendia o Ser e o Existir, inclui tanto as essências como as aparências, a matéria,
a energia, o espírito, o pensamento e a subjetividade. Segundo uma terminologia
tomada e reformulada do filósofo Bergson, pode-se dizer que compõem o Real: o
Possível, o Impossível, o Virtual e o Atual.
Portanto, deve ser pontualizado que, para Deleuze e Guattari, a "substância"
da Realidade é o Ser do Devir (e não apenas o Ser ou o Devir do Ser). Em outras
palavras, a Realidade consiste em "todos" os devires (processos) que a integram.
O conceito de Todo está colocado entre aspas porque, a rigor, não há Todo
no sentido habitual do termo. Não há um Todo finito, definido e pré-estabeIecido, cujo
interior compreende – e está diversificado – em partes. Os processos da Realidade, em
seu devir, vão constituindo todos. Cada um desses todos vai se agregando sem
totalizar-se nem unificar-se inteiramente nunca, e incluem a subjetividade e a práxis
desde as quais são construídos. Essa definição provém, dentre outras variadas fontes,
da Teoria Física Geral da Relatividade.

62
*Este texto e os 10 que se seguem referem-se a aulas do Programa Âmago de Formação Contínua em
Esquizoanálise, Instituto Felix Guattari, Belo Horizonte, 1996/1998.
A modalidade com que os processos vão realizando a Realidade se denomina
produção. Este conceito está tomado de numerosas fontes teóricas e tem sido
reformulado de maneira a não esgotar-se no sentido que tem em nenhuma delas em
particular. Provisoriamente podemos destacar a origem industrial do termo, tal como
tem sido formulado por Marx, como "prática" ou "processo produtivo de trabalho".
Estes processos exigem: Força de Trabalho, Matérias-Primas, Meios de Produção,
Execução do Trabalho, Produto. Mas, em Deleuze e Guattari, esse processo tem sido
conceitualmente ampliado e complexizado até tomar-se sinônimo de todos os devires
que produzem a Realidade. Essa reformulação inclui especialmente a Imanência e a
Consubstancialidade entre a Produção e o Desejo. Também o conceito de Desejo
está tomado de diversas fontes. Provisoriamente destacaremos entre elas a definição
do Processo Primário, postulado por Freud para o funcionamento do Inconsciente
subjetivo. Mais adiante nos dedicaremos especialmente a esse conceito.
O conceito de Produção em Deleuze e Guattari parte, sem dúvida, da
importância atribuída por eles à Máquina como componente constitutivo presente em
todas as organizações históricas. O conceito de máquina não se limita às
características dos instrumentos primitivos, nem às grandes máquinas hidráulicas, nem
às eólicas, nem às mecânicas, a vapor, a explosão, às elétricas, eletrônicas,
cibernéticas, etc. As máquinas não estão pensadas apenas como extensões dos
"membros" ou do sensório do indivíduo, do sujeito ou das sociedades humanas. Os
conjuntos "difusos" da Natureza, das Sociedades, das Subjetividades, dos Sistemas
Semióticos e das Maquinárias (propriamente ditas) formam grandes Mega-Máquinas
(molares) compostas por infinitas Micro-Máquinas (moleculares, atômicas e
subatômicas) em permanente processo autoprodutivo.
A produção, assim entendida, de alguma maneira inclui e reformula
categorias que vão assumindo o "comando" ou a hegemonia em diferentes Momentos
e Imagens do Pensamento acerca da Realização da Realidade, correspondentes às
respectivas Mega-Máquinas históricas. O conceito de Produção (e mais ainda o de
Produção Desejante) incorpora criticamente as idéias de Criação, Emanação,
Irradiação, Plasmação, Expressão, Manifestação, Processão, etc. Essas
significações, se bem sejam consideravelmente polívocas, denotam ou conotam, em
63
geral, sentidos predominantemente divinos, sobrenaturais, ultraterrenos, míticos,
místicos, religiosos, teológicos e metafísico-transcendentais. Mais adiante trataremos
delas em detalhe.
O conceito de Produção também inclui todas as modalidades de produção
Natural (poiesis, concepção, geração, mutação, transformação, evolução, emergência,
etc.), assim como as de produção humana, industrial, artística, social, mental e
"simbólica", em um sentido amplo (invenção, fabricação, construção, edificação,
inspiração, legiferação, institucionalização, etc.) e ainda outras, particularmente
mágicas ou imaginárias, tais como transmutação, metamorfose, etc.
No que se refere ao capítulo epistemológico do Determinismo, cabe supor
que o conceito de Produção pode incluir todas as modalidades do Determinismo, tanto
as Causalistas como as Não-Causalistas. Como veremos nas aulas seguintes, o
Processo Produção pode ser de Produção de Produção, de Produção de Registro-
Controle, de Produção de Consumação. Também, em outro sentido, falaremos de
Produção de Reprodução e de Produção de Antiprodução. De acordo com as
características de cada um desses Processos, a Produção opera com todas as
modalidades de Determinismo conhecidas. Mas é na Produção de Produção que
apresenta suas novidades mais insólitas, pensadas com originais derivações,
Determinismo Subatômico, Quântico, etc. Recordemos apenas algumas formas de
Determinismo tais como linear, circular, espiral, interacional, fatorial, estrutural,
dialético, probabilístico, organísmico, teleológico, aleatório, etc. Com respeito à
Causalidade, recordemos que é Conveniente diferenciar: a) a Causação (que se refere
à conexão causal geral e particular); b) o Princípio Causal, que é o enunciado da
Causação como Lei Causal (a mesma causa produz sempre o mesmo efeito) e enuncia
a forma do vínculo causal; c) o Determinismo Causal, que afirma a validade geral do
Princípio Causal, ou seja, que TUDO ocorre de acordo com o Princípio Causal.
O conceito de Produção não se reduz à Causação, nem ao Princípio, nem ao
Determinismo Causal, ainda que, como di"zíamos, os inclui em alguns de seus
processos.
Em geral, a categoria antiga e clássica de Causa era própria do pensamento
mítico, místico e teológico, havendo sido substituída na Modernidade pela Lei e na
Esquizoanálise pela Produção.

64
Se tomamos como paradigma o termo Criação, veremos que se costuma
analisá-la em quatro sentidos:

1. Produção Humana de algo a partir de uma realidade preexistente, mas de tal forma
que o produzido não se encontra necessariamente nessa realidade prévia.
2. Produção Natural de algo preexistente, mas sem que o efeito esteja necessariamente
incluído na causa, ou sem que haja necessidade de tal efeito.
3. Produção Divina de algo a partir de uma Realidade preexistente que pode ser um
Caos, ou um Cosmos que teve como origem um Caos prévio.
4. Produção Divina de algo a partir do Nada ou Creatio Ex Nihilo.
Para muitos filósofos gregos, a Criação era pensada como um ato de um
Fazedor finito produtor de coisas finitas. O mesmo atuava por procedimentos que
eram, enunciados por analogia com diversas produções humanas (Demiurgo). Para
outros, a Criação é pensada como a produção de algo por parte de um Ser Superior (O
Uno) que se translada e degrada em sua obra (Emanação) ou cuja natureza imutável é
comunicada por inteiro a várias pessoas ou produtos "à sua imagem e semelhança"
(Procissão). Quando nesse procedimento, a parte de Si, preexistente ou não, que o Ser
Superior delega, translada-se como forças energéticas, o faz pela Irradiação, sem
perder nada de sua própria substância. Quando o Ser Superior opera sobre uma
matéria já existente modificando-a, o faz por Transformação. Quando as criações do
Ser Superior são entendidas como um ato de pensamento ou de discurso em que
Aquele é considerado como um Sujeito emissor, se diz que se Expressa em seus
produtos ou efeitos, ou que se torna visível ou inteligível neles (Manifestação), ou
que envolve a apresentação ou que envia uma certa delegação (Representação), ou é
uma abstração que se materializa (Plasmação).
Para a Teologia Negativa, pejo contrário, Deus se manifesta por sua
Ausência em suas Obras.
Em todos esses processos criativos, há um vínculo de relativa exterioridade
ou uma sucessão de antecedência e conseqüência entre o Criador e o Criado. Para
filósofos como Guillermo de Occam e Espinoza, há um contato direto, imediato e
permanente entre ambos os termos, ou seja, uma imanência entre o Criador e o
Criado, sendo a criação um ato contínuo (Panteísmo).
65
Para boa parte da tradição judaico-cristã, a Produção por Criação não pode
ser entendida com nenhuma das analogias racionais das que nos valemos para pensá-la
e só pode ser acedida por Revelação. Trata-se de um Ato de um Ser separado e
diferente de suas obras, as quais se extraem do Nada, em que não preexistiam. Seja
que se trate de um ato pontual ou contínuo, o mesmo não atua por nenhum dos meios
e procedimentos conhecidos. Pelo contrário, as produções naturais e humanas podem
ser entendidas como quase-criações, ou como réplicas imperfeitas e limitadas da
Criação Divina.
Em suma: o que trato de destacar nesta revisão se pode resumir dizendo-se
que, na Esquizoanálise, a Idéia de Produção conceitualiza uma MULTIPLICIDADE
de processos pelos quais toda a realidade se realiza a si mesma como auto-criação
permanente, ou seja, que é seu próprio agente, seus próprios meios e seus
próprios produtos. Entre tais efeitos estão incluídas as realidades transcendentes,
míticas, mágicas, misticas e teológicas, assim como as naturais, as subjetivas, as
sociais e as técnicas.
É a Produção, dita nesse sentido, o que produz "de fato", e produz os
conceitos para pensar, "de direito", a "Criatividade" e as "Criações" ultramundanas...
E NÃO O INVERSO.

REALIDADE E PRODUÇÃO*
Para compreender a importância e o lugar do conceito de Produção na obra
de Deleuze e Guattari, é preciso ir introduzindo alguns outros conceitos que são seus
atributos e propriedades. O principal, por ora, é entender que realidade é "tudo" que
há e existe (Natureza, Sociedade, Subjetividade, Parque Maquínico), mas com os
seguintes agregados. Para Deleuze e Guattari, a realidade última não consiste nas
citadas categorias de Ser e de Existir, senão no Ser do Devir. Se na ontologia antiga,
clássica e moderna dominante, a essência da Realidade é pensada como o Ser (já que
o mesmo é entendido como eternamente imóvel e igual a si mesmo, Idêntico), ou
seja, que lhe admita alguma transformação ou movimento (O Ser que passa a existir
nos Entes ou o Ser que devém), em Deleuze e Guattari se afirma que o Ser é Devir
(pura diferença, permanente movimento e mudança). Em conseqüência, para
Deleuze e Guattari, a "medula" da realidade é devir, a realidade está em incessante

66
realização e essa realização recebe o nome de produção.
Mas como tal produção é Autoprodução, ou seja, não é gerada por nenhuma
entidade exterior à realidade mesma, diz-se que é imanente. O termo Imanência tem
outros valores na obra de Deleuze e Guattari, mas esse primeiro sentido é o mais
importante.
Imanente é um conceito que se opõe radicalmente a Transcendente.
Transcendente é um termo que admite vários significados, mas o que interessa no
sentido de sua oposição com Imanente, consiste em que Transcendente se diz como
sendo "superior" a Imanente, em especial no que se refere à superioridade de toda e
qualquer entidade divina, sobrenatural, ultraterrena, etc., supostamente criadora,
com respeito ao criado por ela.
A idéia é que a divindade transcende o criador, está "mais além",
"sobressai" e, mais ainda: DEUS É TRANSCENDÊNCIA
• Segunda aula do Curso Âmago.
Uma dessas significações é particularmente importante. Refiro-me à que diz que o
Mundo é essencialmente incompleto, que lhe falta Deus. Essa concepção admite
variedades do tipo de que "entre Deus e o Mundo existe um abismo intransponível",
ou que existem "graus de transcendência do Mundo e do Homem que os aproximam
de Deus".
Uma modalidade extrema da Transcendência Absoluta, que é a da Teologia
Negativa (contrária à crença comum de que "Deus está em todas as partes"), é a que
sustenta que o Ser e a Existência de Deus se definem por sua ausência, ou seja,
porque "não está presente em nenhuma parte do Mundo".
Contudo, é preciso recordar que os pensadores panteístas afirmavam que
Deus é "Causa Imanente de todas as coisas", Deus é sua obra; ou seja, sustentam a
Identidade entre o Criador e o criado. Essa posição já pode ser considerada um
antecedente do Materialismo Imanentista Produtivo de Deleuze e Guattari. Algo
parecido acontece com várias Filosofias ou Mitologias primitivas e orientais.
É necessário distinguir entre Transcendente e Transcendental. Apesar de
haver vários significados, no sentido que nos interessa, Transcendental é uma
categoria kantiana, compatível com o pensamento de Deleuze e Guattari. Kant, na
"Crítica da Razão Pura", dedica-se ao empreendimento colossal de estudar quais são
67
as condições necessárias que fazem possível o pensamento correto, ou seja, os a
priori ou pré-requisitos para pensar a Realidade, independentemente de que Realidade
em particular esteja sendo pensada (p.ex., "Sujeito", "Objeto", etc.). Esses são os
Transcendentais Kantianos, alguns dos quais são adotados por Deleuze e Guattari.
Os Transcendentais fazem possível o conhecimento da Experiência do pensador. O
transcendente é o que pretende pensar mais além de toda experiência, o qual
Kant reserva para a teologia ou para a religião, e Deleuze e Guattari rejeitam por
completo. Neste momento, digamos que a Produção em Deleuze e Guattari, na
medida em que é o único processo de realização da realidade, divide-se em
Produção de Produção, Produção de Reprodução, Produção de Consumo e
Consumação, e Produção de Antiprodução.
A PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO é o processo de incessante geração do
novo como engendramento de diferenças-singularidades absolutas de toda e
qualquer realidade (mais adiante definiremos estes termos).
A PRODUÇÃO DE REPRODUÇÃO compreende os processos que
tendem à geração do que já foi produzido e já existe, tal como foi produzido:
produção do mesmo, repetição. Os mesmos tendem a identificar, selecionar,
adequar e reprimir as produções a serviço da manutenção rela tiv a de uma
ordem já produzida.
A PRODUÇÃO DE CONSUMO compõe os processos de uso, usufruto e
gozo das realidades produzidas; enquanto produção de consumação consiste, ao
mesmo tempo, no "apogeu" final e na extinção da trajetória das realidades
produzidas.
A PRODUÇÃO DE ANTIPRODUÇÃO pode definir-se como o processo
de destruição das realidades produzidas ou do impedimento de sua produção.
Todos esses processos são concomitantes, simultâneos, ínsitos, coextensivos
(termos estes, apenas ilustrativos pedagogicamente)... Imanentes, e, segundo as
superfícies, territórios ou estratos da realidade da qual se trata, predominam uns
ou outros.
Muito sintética e provisoriamente, digamos que as idéias de Deleuze e
Guattari tendem a inverter o célebre esquema de Platão, segundo o qual a realidade
estava dividida em três níveis. O nível das Idéias Puras, que são entidades ideais,

68
eternas e invariáveis, dotadas fundamentalmente de Identidade Absoluta, ou seja, de
um Ser imóvel e igual a si mesmo, modelos de Bem e de Virtude. O nível das
Cópias, que tiveram uma convivência com as idéias puras, as quais lhes davam uma
imagem e semelhança com elas, a perderam, conservando apenas a imagem e
perdendo a semelhança. Estas Cópias, que aspiram voltar a Ser como as idéias,
podem consegui-lo através do processo Maiêutico, que é um diálogo com o Filósofo,
capaz de fazer-lhes recuperar seu amor à Verdade e a sua semelhança com as IDÉIAS-
MODELOS. As que o conseguem serão Boas Copias, as que não, serão Más Cópias.
O nível dos Simulacros, sombras demoníacas que carecem de todo Ser, de toda
Identidade e Permanência, de toda Imagem e Semelhança com as Idéias Puras,
assim como não aspiram a recuperar a condição de boas cópias. Assim, Platão os
considera o Mal propriamente dito.
Como se pode entender, os SIMULACROS SÃO PURO DEVIR, seu fluir
está produzindo permanentemente o novo absoluto, a Pura Diferença, a pura
Invenção-Produção.
A proposta de Deleuze e Guattari, baseada nas idéias do filósofo Nietzsche,
consiste em inverter ou subverter o platonismo, ou seja, pensar e propiciar uma
Realidade na qual a dominância seja a dos simulacros (em termos de Deleuze e
Guattari, A Produção) e não a dos modelos vigentes que tendem à reprodução-do-
que-está-aí, mediante a seleção de Boas Cópias e a destruição das Más Cópias e dos
Simulacros.
Para concluir, provisoriamente (há outros conceitos que teremos de deixar
para as aulas seguintes), digamos que a proposta consiste em questionar e desconstruir
as superfícies, territórios, estratos e práticas da realidade em que predomina a
Reprodução e a Antiprodução, para uma transformação revolucionária da
Realidade.
Mais adiante veremos os conceitos que definem como estão compostas as
Superfícies ("regiões") da Realidade, especialmente as que consistem na Pura
Produção, ou, poderíamos dizer, a reformulação que Deleuze e Guattari fazem do
conceito de SIMULACROS: Singularidades, Intensidades, Multiplicidades,
Estidades, Etc.

69
O DESEJO*
O desejo é um termo de larga tradição no pensamento ocidental.
Uma linha dominante na Filosofia antiga e clássica distinguia, por exemplo, entre
DESIDERO, proveniente do substantivo SIDUS, que se referia às estrelas, ao ALTO –
e a seu plural SIDERA (Constelação), no sentido da configuração cósmica que
determinaria o DESTINO de cada um ..
Por esse motivo, era conveniente estar sempre atento ao SIDERA TUS, ou
sejá, à cuidadosa CON-SIDERAÇÃO ou indagação acerca do que os astros
reservavam aos homens. Ao contrário, DESIDERARE consistia em algo assim como
"fechar os olhos" a essa suposta influência – e assumir a própria sorte (Boulesis). Isto
requeria poder lidar com o vazio (Hormé) e correr o perigo (entre outros) de ser
SIDERADO, alcançado por um raio.
Nos Diálogos de Platão, fala-se do célebre Andrógino (que era por sua vez
homem e mulher) e que, por um acidente, se dividiu, sendo que, a partir desse
momento, cada metade continuaria eternamente buscando sua outra parte perdida.
Também nesta Filosofia, a procura da Verdade exigia desprender o Desejo de sua
atração pelos corpos belos, para poder encaminhá-lo em direção às Idéias Puras.
Em Espinoza, o DESIDERIUM consistia no impulso provocado pela
nostalgia correspondente ao objeto de um bom encontro, que foi posteriormente
perdido. A memória do mesmo gera tristeza e a vontade de recuperá-lo é o DESEJO.
Mas, essa paixão triste deve ser corrigida pelo Entendimento, que é capaz de analisar
os novos encontros e escolher, entre eles, os que sejam capazes de aumentar a alegria
e a potência de nossos corpos, evitando os que nos envenenam ou debilitam. Se, ao
contrário, substituímos o Entendimento pela Imaginação, nos entregamos a encontros
fantásticos que obscurecem nossa eleição adequada.
Em Hegel, o Desejo se diferencia da Consciência e é entendido como uma
luta de Consciências (Dialética do Amo e do Escravo).

• Terceira aula do curso Âmago.


O Desejo aponta o que cada ser deseja por si mesmo sem tomar em consideração o
Desejo do outro. Coloca-se assim em uma contradição o que deseja ser reconhecido
pelo outro e não aceita, por sua vez, reconhecê-lo. Esta figura que se estabelece entre
70
o Amo e o Escravo é resolvida dialeticamente, porque o Amo que deseja ser
reconhecido apenas como Senhor da Guerra, não tem medo da Morte, deve aceitar
reconhecer o Desejo do Escravo, enquanto este for imprescindível para a vida, por sua
potência de Trabalho.
Em geral, pode-se dizer que existe uma oposição entre certas filosofias pré e
pós socráticas que entendem o Desejo como uma força vinculante própria do mundo
da Physis (Natureza, Matéria), que se estende ao mundo da Psyche (Alma, Espírito) e
outras, nas quais o Desejo é pensado como próprio do Sujeito ou do Pensamento, seja
do Homem ou da Divindade.
Algo dessa oposição é conservado na polêmica mais moderna entre o
Mecanicismo (para o qual tudo o que existe pode ser entendido como máquina) e o
Vitalismo (para o qual tudo que existe pode ser entendido como organismo vivo); ou a
que opõe diversos Materialismos a diferentes Idealismos e Espiritualismos. Mas, para
entender o conceito de DESEJO na ESQUIZOANÁLISE é importante partir da
significação que adquire na Psicanálise Freudiana.
Freud critica a idéia de que o Sujeito (elemento central da reflexão filosófica
desde Descartes, assim como em muitas psicologias), seja uma entidade unitária,
consciente, racional e voluntária. Para Freud, o sujeito está dividido em um território
consciente-racional-voluntário (sistema pré-consciente – consciente), e outro,
INCONSCIENTE, INVOLUNTÁRIO e IRRACIONAL, ou dotado de uma
RACIONALIDADE diferente. A parte pré-consciente – consciente está radicalmente
separada da inconsciente pela barreira da Repressão (Recalque), de forma tal que o
sujeito consciente não tem acesso cognoscitivo, nem dorrúnio voluntário sobre esta
última.
O Aparato Psíquico freudiano está· instalado sobre o corpo biológico, que é
seu suporte, mas se diferencia essencialmente dele, em sua natureza e nas leis de seu
funcionamento. Por outro lado, o citado Aparato é uma espécie de conector entre o
corpo biológico e os sistemas culturais ou simbólicos, entre os quais se destaca a
Linguagem. Dito de uma maneira simples, o psiquismo é o dispositivo que se
encarrega de que o animal FALE e por esse meio se socialize.
As forças que animam o organismo biológico ou INDIVÍDUO são os
INSTINTOS, tendências estas, indispensáveis à vida, como a fome e a sede (instintos

71
de conservação do indivíduo) e o sexo (ou instinto de reprodução da espécie). As
exigências dos instintos para serem satisfeitos se denominam NECESSIDADE e a
privação dos objetos capazes de satisfazê-la é vivida como TENSÃO DE
NECESSIDADE. Os objetos da necessidade são relativamente fixos, e não se pode
prescindir deles de forma duradoura, sem comprometer a sobrevivência do indivíduo.
Os instintos sexuais são relativamente adiáveis.
As forças que mobilizam o Aparato psíquico são denominadas PULSÕES;
quando as pulsões se inscrevem ou carregam sistemas de marcas ou de representações
psíquicas inconscientes recebem o nome de DESEJO, assim como quando carregam
representações pré-conscientes conscientes são chamadas de INTERESSE OU
ATENÇÃO.
Um dos modelos freudianos mais simples e antigo para caracterizar o
DESEJO (embora depois tenha sido corrigido e ampliado), consiste em dizer que se
trata de uma força que recarrega alucinatoriamente as marcas de memória, deixadas
pelas primeiras experiências de satisfação da necessidade no psiquismo. Dessa forma,
se entende que se o objetivo do instinto é a satisfação, o do desejo é o prazer.
O desejo, assim definido, não tem objeto real, porque seu objeto é uma
representação imaginária; por outro lado, pode-se afirmar que o desejo pode deslocar-
se de uma "alucinação" para outra, ou seja, que não tem objeto fixo, que a rigor nunca
se "realiza" ou satisfaz, e que seu objetivo pode ser consideravelmente postergado.
O Desejo, para ser pseudo-satisfeito ou para tentar infrutiferamente ser
realizado, precisa ativar uma cena imaginária inconsciente que se defj.ne em
Psicanálise como FANTASMA. Só mediante uma série de operações e mecanismos, o
Desejo pode se transformar em interesse ou atenção pré-consciente – consciente e
animar atos mentais, lingüísticas ou comportamentais úteis e sociáveis.
Lacan diferenciou com precisão DEMANDA, de DESEJO, e de NECESSIDADE. A
demanda é uma formulação verbal que leva implícito um pedido de amor e sua
decepção se chama FRUSTRAÇÃO. O desejo
anseia a reativação alucinatória de um fantasma, na qual, de uma forma ou de outra, se
tenta apagar a separação entre sujeito e objeto, restaurando, assim, um estado
narcísico; sua decepção se chama CASTRAÇÃO. A necessidade exige os objetos
materiais específicos capazes de satisfazê-la, e sua insatisfação se chama PRIVAÇÃO.

72
Em um sujeito psíquico, já não se pode especificar as exigências de sua
necessidade (como em um animal) sem considerar a influência que a demanda e o
desejo têm sobre ela.
Como pode ser apreciado, tanto no discurso filosófico como no psicanalítico,
como no sentido comum, é bastante possível encontrar o termo Desejo dotado dos
seguintes atributos: 1) É uma força impulsora ou animadora de processos em um
indivíduo-sujeita-pessoa. 2) Essa força induz o sujeito a obter objetos (que ainda que
também sejam reais ou simbólicos, no fundo, são imaginários, ou seja, que em um
sentido específico, não existem). 3) Os objetos procurados tentam reencontrar um
objeto supostamente tido e perdido, ou seja, anseiam reativar a marca com a qual esse
objeto ficou na memória (consciente ou inconsciente). A vivência que caracteriza o
Desejo é uma espécie de nostalgia. 4) A aparente obtenção de um objeto de Desejo dá
um prazer transitório, mas, como o Desejo não tem, a rigor, objeto, é insaciável. 5)
Tais características fazem com que o Desejo continue interminavelmente sua busca do
objeto, e que essa procura, processada por outras instâncias do sujeito, se transforme
em animadora de outros rendimentos psíquicos e culturais superiores.
Quando Freud descreve as características das instâncias, espaços e sistemas
pré-conscientes e inconscientes, constata que em cada um deles acontecem
funcionamentos, que são chamados de PROCESSOS, que funcionam com
peculiaridades diferentes.
O pré-consciente – consciente funciona segundo o Processo Secundário.
Neste funcionamento, as forças animam representações de acordo com uma lógica que
coincide com a lógica aristotélica, que todos costumamos reconhecer como sendo A
ÚNICA LÓGICA POSSÍVEL. Esta caracteriza-se pelo Princípio de Identidade (A =
A), Princípio de Contradição ( A não é = B), Princípio de Terceiro Excluído ( se A não
é = B e B não é = C, C não é = A). Como se pode ver, no Processo Secundário, existe
afirmação ou positividade, mas também existe negação ou negatividade. É em função
disso que existe idéia e sentimento
de falta, de ausência, de morte, de diferenças quantitativas e qualitativas, de sucessão
temporal, etc.
A partir de uma leitura Esquizoanalítica, é possível distinguir na Obra de
Freud duas caracterizações diversas de Inconsciente e de Processos Primários. Uma

73
delas (que chamaremos estrutural ou edipiana), parece mostrar algumas peculiaridades
originais que não são as mesmas que as do pré-consciente – consciente e do processo
secundário, mas também outras bastante parecidas. Por exemplo, A pode ser A e
NÃO/A, assim como certa Ordem que lhe é própria. Mas também em Freud (em suas
teorizações a respeito na primeira Tópica e na Segunda – Conceito de Id, Ello ou
Isso), encontramos uma conceitualização segundo a qual o Inconsciente – Processo
Primário é DRASTICAMENTE diferente do outro.
O inconsciente – Id – Processo Primário tem a seguinte composição e
funcionamento:
1) Compõe-se de um conjunto infinito de positividades, não tem negação
nem negatividade.
2) Não reconhece falta, ausência, nem nostalgia alguma.
3) Não tem Ordem alguma, é um "caos" que Freud compara a um "caldeirão
fervente de estímulos".
4) Cada um de seus elementos constitutivos é uma "unidade" absolutamente
diferente das outras, que se caracteriza por sua INTENSIDADE (não por
sua qualidade nem por sua quantidade), sendo que sua intensidade pode
se definir como a potência que tem de gerar, a partir dela e de suas
combinações com as outras, algo COMPLETAMENTE NOVO. Essas
unidades nem "são" nem "existem", são puro devir e pura diferença.
5) Não funciona de acordo com um tempo cronológico, nem com uma lógica
aristotélica, nem com nenhuma outra das já conhecidas e aceitas.
6) Se se quer relacionar esse processo com o DESEJO, só se pode dizer
(alegoricamente) que seu único "desejo" é o de PRODUZIR O NOVO.
AGORA ESTAMOS EM MELHORES CONDIÇÕES PARA ENTENDER
A IDÉIA DE DESEJO DE DELEUZE E GUATTARI:
1) o Desejo é o que anima um processo que não é próprio de uma instância,
sistema ou território do
sujeito, senão da realidade mesma e de sua realização.
2) esse processo é o que pre-cede (não lógica nem cronologicamente, senão
ontologicamente) a tudo o que reconhecemos como territórios, ou entidades

74
reais circunscritas e definidas (natureza, sociedade, linguagem e, inclusive,
sujeitos) .
3) a este processo, não lhe falta nada, não pode ser completo nem incompleto
porque não é totalizável , mas sim, infinito, e transcorre intempestiv amente.
4) este processo está protagonizado por elementos que são: intensidades,
diferenças , multiplicidades, "estidades" (depois explicaremos estes termos),
puros.
5) este processo (que a partir do ponto de vista de que estamos tratando pode ser
chamado de desejante), "não é outra coisa", "nada mais é", "não é diferente",
é imanente, com o que em outras aulas conceitualizamos como processo
produtivo – "essência da realidade e de sua auto-realização permanente" ou ser do
devir.
6) Em conseqüência, talvez se possa entender melhor a idéia Esquizoanalítica de
introduzir o Desejo (assim redefinido) na Produção, e a Produção (redefinida,
como já fizemos) no Desejo.

A realidade, em especial sua Superfície da Produção, consiste,


"essencialmente", neste processo Produtivo-Desejante... Desejante-Produtivo .

DIFERENÇA E REPETIÇÃO*
Nesta aula trataremos de resumir o que na obra de Deleuze e Guattari
significam os conceitos de Diferença e Repetição, relacionando-os com os de Ser e
Devir, Desejo e Produção. Pode-se dizer, sinteticamente, que toda a tradição filosófica
do Ocidente está atravessada pela oposição entre duas categorias, a de Ser e a de
Devir. Se recordarmos os pré-socráticos, diremos que, para Parmênides, o Ser se
define como eterno, invariável e idêntico a si mesmo. Em conseqüência, o Ser é igual
a si mesmo e sua duração se evidencia como a repetição do mesmo.
Ao contrário, Heráclito sustentava que o Ser devém, ou seja, que flui
constantemente, de forma tal que "não podemos nos banhar duas vezes em um mesmo
rio". Apesar disso, Heráclito aceita que o Ser tem uma duração e uma continuidade
que o torna reconhecível através de sua constante variação. Há no Ser algo que se
mantém igual a si mesmo durante o Devir.
75
Diversas tradições mitológicas e religiosas oscilam entre sustentar que tudo
se repete igual a si mesmo em ciclos temporais de diferente duração, e outras
insinuam que existem trocas de maior ou menor magnitude, muitas das quais se
produzem ao acaso. Se recordarmos o que já tratamos com respeito à estratificação
proposta por Platão, saberemos que as Idéias Puras, que são o Ser, são em número
limitado, idênticas a si mesmas e se repetem eternamente iguais. As Boas e Más
Cópias aspiram a recuperar ou alcançar as características das Idéias Puras, sem jamais'
alcançá-lo plenamente. Por sua vez, os simulacros são Puras Diferenças, sempre
diversas e carentes de toda identidade, ou seja, são o Puro Devir, e não aspiram à
identidade, eternidade ou igualdade.
Demócrito, os Sofistas, os Estóicos e os Epicuristas, cada um a sua maneira,
apresentam modalidades de categorizar o Devir como
• Quarta aula do curso Âmago.
prevalecente com respeito ao Ser, especialmente no campo da Physis, que mais ou
menos corresponde ao que chamaríamos Natureza.
Dando um grande salto na história da filosofia, digamos que Hegel sustenta a
idéia de que o Ser, cuja Totalidade é o Espírito Absoluto, protagoniza um processo
pelo qual no princípio é o Ser em Si. Este Ser sai de Si e em todos os campos do real
inicia uma grande trajetória, que se processa de maneira dialética (Afirmação,
Negação – e Negação da Negação, ou Tese, Antítese e Síntese), para recuperar-se ao
final, plenamente realizado, como Espírito para Si. Como se vê, em Hegel, o Ser é,
mas Devém dialeticamente, para concluir sendo plenamente Si Mesmo.
Com Kierkgaard e os filósofos existencialistas, o Ser continua tendo algo de
estável e de idêntico, mas devém em um ir-se fazendo a si mesmo constantemente.
Privilegiam, portanto a Existência e não a Essência.
Mas é com o Panteísmo Espinoziano (em que o Ser é imanente à Substância
e se auto-realiza sem parar nunca), assim como no permanente fluir da Vontade de
Potência em Nietzsche – e na incessante atualização do Virtual em Bergson (que vai
mais além do Real, do Possível e do Impossível), que podemos dizer que se prepara o
conceito de Deleuze e Guattari sobre a questão.
Já dissemos que estes autores tomam principalmente a idéia de Processo
Primário em Freud e a de Produção como Trabalho Abstrato em Marx. A partir delas

76
encontram que a "essência universal" da Realidade é a variação incessante, que o que
se repete é Diferença Absoluta, o que os leva a afirmar não só que o Ser não é estático,
nem sequer que devém, senão QUE O SER É O DEVIR.
A rigor, esse Devir, como geração contínua do Novo Absoluto e da Pura
Diferença, acontece incessantemente no que eles chamam Superfície da Produção, e
se manifesta em todos os campos da Realidade com características caóticas. Não
obstante, devemos recordar que para Deleuze e Guattari, esse Caos produtivo é
imanente a um Caos ordenado, que é produto da atividade produtiva, ou de outra
maneira, que a Produção também produz a Reprodução (aquilo que se repete como O
Mesmo), assim como a Antiprodução (aquilo que destrói o produzido ou impede ou
seleciona a Produção). Conseqüentemente, a chamada Superfície de Registro detecta,
localiza e identifica as produções da Superfície de Produção, reprime o que não
conseguira Incorporar, captura o que lhe é tolerável e destrói o que poderia exceder
sua capacidade de manter-se segundo a ordem que ela domina.
Recordaremos também que isto acontece tanto no nível da subjetividade,
como da sociedade, da política, da história, dos sistemas semióticos, da natureza e do
parque maquínico técnico. A emergência do Novo Absoluto, efeito da Superfície da
Produção, expressa-o por linhas de fuga que escapam ao controle da Superfície de
Registro, ou melhor, por estalos, acontecimentos, revoluções e grandes metamorfoses
dos territórios e estratos da superfície de Registro (em outras palavras, do Instituído,
Organizado, Estabelecido, etc.)
A importância destas postulações é de incalculável valor e de difícil
exposição sintética, mas podemos resumir dizendo que se trata de uma Ontologia que
fundamenta uma Gnoseologia, uma Ética, uma Estética e, sobretudo, uma Política, ou
seja, uma orientação de Vida, uma Práxis, isso dito no sentido mais amplo possível.
O valor Supremo da mesma consiste na certeza de que a "essência" última da
Realidade é o Retomo da Diferença, a Produção e o Devir e que, conseqüentemente,
se trata de viver "apostando" na invenção, na "criação" e na luta, ou como diria
Nietzsche, em "viver perigosamente", se por perigosamente se entende a
desmistificação da "segurança", da "estabilidade" e da "conservação" do já
consagrado.
Nas próximas aulas tentaremos ver como está composta essa Superfície da

77
Produção, "por quê" a de Registro tende ao Controle, e dentro de certos limites muito
precisos, "como se pode fazer para viver inventivamente" .

O MAQUÍNICO*
Na última aula do semestre anterior, deixamos colocada a denominada
Tópica da Realidade, ou seja, uma das cartografias que Deleuze e Guattari elaboraram
para dar conta da Realidade. Recordamos que se tratava de três superfícies, que, para
fins pedagógicos, desenhamos separadamente, mas que, a rigor, são imanentes entre
si: Superfície da Produção, de Registro-Controle e de Consumo-Consumação.
Dissemos que os processos nessas três superfícies eram diferentes, ou, dito
de outra maneira, que os predominantes em cada uma das superfícies tinham
prevalência de Produção, de Reprodução e de Antiprodução. O que hoje começarei a
fazer é uma tentativa de caracterizar os "elementos" (por assim dizer) que compõem o
processo da Superfície de Produção. Isto de "elementos" é apenas uma concessão
pedagógica, porque quando virmos os sinônimos ou as diversas maneiras de definir
esses elementos, compreenderemos que se trata mais de movimentos que de
elementos, ou seja, são "unidades" que não se podem "fixar" ou "deter" como o
faríamos com uma fotografia.
Em outros momentos destas aulas nos referimos à polêmica entre duas
correntes filosóficas, o Vitalismo e o Mecanicismo. Falamos que cada uma delas
tratava de propor um Modelo Universal para as diferentes regiões e componentes da
Realidade. Para os Mecanicistas, o Modelo era a Máquina, e dada a época em que essa
corrente teve sucesso, tratava-se da Máquina Mecânica (a vapor, p.ex.). De sua parte,
os Vitalistas diziam que o Modelo geral devia ser o de um Organismo Vivo, tal como
a Biologia dos Séculos XVIII-IX os havia estudado.
Apesar de uma série de diferenças que justificavam a discussão, ocorria que,
considerados no nível "macroscópico", estes Modelos tinham muito em comum.
Ambos postulavam que uma Unidade, mecânica ou orgânica, estava composta de
peças ou de órgãos que tinham que ter um contato entre si, que transmitisse o
movimento e as funções, e devia ter limites externos bem definidos, que permitissem
separar essa
*Quinta aula do curso Âmago

78
unidade de outras similares ou do resto da realidade. Essa unidade devia estar animada
por uma energia-força, que no caso das máquinas mecânicas podia ser, p.ex., a da
combustão, a da explosão, etc. Por seu lado, o Vitalismo dizia que essa energia-força
estava dada por um "Elã" (expressão tomada de Bergson), ou seja, uma energia vital que
era impulsora de todo movimento e troca.
Como também é óbvio, p.ex., que uma máquina mecânica não era produzida
pela conjugação de duas máquinas iguais a ela. Entretanto, um organismo biológico
superior, p.ex., um mamífero, geralmente era engendrado pela cópula entre dois animais
muito similares a ele.
Para o Mecanicismo, os organismos vivos eram tão máquinas como as demais,
apenas mais complexos, e para o Vitalismo, no caso do Animal Superior de todas as
espécies, o Homem, as máquinas eram prolongações de seus membros ou de suas
funções mentais.
Deleuze e Guattari, estudando as contribuições de várias filosofias, constroem
uma proposta que reúne e transforma as duas posições antes descritas. Também incluem
nessa revisão as contribuições de todas as disciplinas constituídas, na medida em que as
mesmas começam a "descobrir", em seus respectivos campos, o que se passou a chamar
"Novo Paradigma".
Em geral, este consiste em que, no nível microscópico ou submicroscópico das
respectivas materialidades com as quais trabalham, aparece uma série de insuspeitávies
peculiaridades. Resumindo ao máximo, as mesmas passam pelo fato de que, subjazendo
a todas as "entidades" "macro" que eles investigam, encontram-se com um "Caos"
"preliminar" de átomos ou partículas, onde não têm vigência as leis do determinismo
causal, e que está composto por minúsculos "elementos" que se combinam a
velocidades enormes, que se convertem de matéria em energia e o inverso, e que
comportam uma força de auto-produção que lhes permite gerar as entidades "macro"
que compõem. Em termos filosóficos, poder-se-la dizer que se trata de um Materialismo
Neo-Funcionalista Molecular. Basicamente consiste em que, se tomarmos as unidades
naturais, viventes ou não – e as máquinas de qualquer característica, a nível molecular
ou "micro", chega-se à conclusão de que o "Modelo" da Realidade consiste em que esta
é constituída por minúsculas "Máquinas" que se formam por si mesmas ao mesmo
tempo em que funcionam, que estão completamente dispersas, embora conectadas por

79
sínteses peculiares, e que ainda não estão caracterizadas como as especificidades que
vão vir a formar no nível "macro".
Esses "elementos" micro não são perceptíveis nem pensáveis em termos de
extensão, quantidade e qualidade, como o são as entidades "Macro". São pensáveis e
detectáveis porque dotadas de uma série de propriedades que fomos estudando no
curso destas aulas, a partir de uma série de conceitos especulativos filosóficos. São
Puras Intensidades, são Multiplicidades, são Hecceidades ou Estidades, são Devires,
são Fluxos.
Deleuze e Guattari as designam pelo nome de Máquinas Desejantes, que
estão dotadas de todas as peculiaridades que os conceitos antes expostos detêm.
Essa denominação de máquinas desejantes está tomada de um estudioso das
esculturas modernas animadas, chamadas gadgets, que são maquininhas elétricas ou
eletrônicas, organizadas ciberneticamente, cujo funcionamento persegue apenas um
efeito estético. Entre essas maquininhas estão algumas denominadas "Celibes" ou
também "Máquinas de não-fazer-nada", etc. Nestas máquinas o traço essencial é que
funcionam apenas "por funcionar", ou seja, o funcionar é seu único e último sentido.
Mas Deleuze e Guattari vêem no funcionamento das Micro-Máquinas que
compõem essa Realidade pluripotencial – "Pré-liminar" à sua integração molar, que
constitui as unidades "Macro", o processo de "Realização da Realidade". Algumas das
características desse Processo são as do Processo Primário descoberto por Freud no
Inconsciente do Sujeito Psíquico, a que já nos referimos. Daí provém a denominação
de Desejantes (que não tem nada a ver com que "algo" ou "alguém" deseje seu
funcionamento), cujo único sentido é a Produção.
As máquinas desejantes podem diferenciar-se em Máquinas Fontes (que
geram um fluxo energético) e Máquinas Órgão (que o cortam). As máquinas
Desejantes se conectam entre si (baseados nessas duas operações de Fluxo e Corte),
em infinitas direções e combinações, segundo sínteses diversas, que acabam dando os
processos macro de Produção, Registro e Consumação-Consumo.
Estas sínteses se realizam sobre uma superfície chamada "Corpo sem
Órgãos", que veremos nas aulas seguintes. Por hora,só deixaremos colocadas as
denominações de tais sínteses: Síntese Conectiva de Produção, Síntese Disjuntiva de
Registro e Síntese Conjuntiva de Consumo-Consumação. O processo Produtivo que

80
protagonizam as Máquinas Desejantes é denominado Processo Esquizoonte, em
homenagem ao funcionamento "psíquico" dos esquizofrênicos, mas entendido não
como uma entidade nosográfica já deteriorada e doente que a Psiquiatria classifica e
trata, mas sim considerado como um funcionamento que, pelo menos a princípio, se
dá na experiência e vivência esquizofrênica.

AS MÁQUINAS DESEJANTES*
Em aulas anteriores estivemos falando das três superfícies que compõem a
Tópica da Realidade, segundo Deleuze e Guattari. Também conversamos em
diferentes contextos sobre alguns temas que são típicos destes autores. Nesta
oportunidade tentaremos uma introdução acerca dos "elementos" que integram a
superfície da Produção. Estes elementos, de difícil compreensão, apreendem as
características que comentamos acerca da diferença, dos simulacros, das intensidades,
dos devires, das estidades, das multiplicidades, etc. De forma que, apesar de ser
complicado definir os mencionados elementos, não o é tanto se recordarmos todos
esses termos explicados em aulas anteriores.
A Superfície da Produção está "povoada" por duas "entidades" (muito
estranhas por certo). Elas são as MÁQUINAS DESEJANTES e o CORPO SEM
ÓRGÃOS. As MÁQUINAS DESEJANTES (MD) são elementos de regime binário e
de "natureza" intensiva e singular. São multiplicidades cuja combinação se efetua
como sendo tudo o que compõe a realidade. Nesse sentido é que se pode dizer que são
"Pré": "Pré-naturais", "Pré-sociais", "Pré-subjetivas", "Pré-semióticas", "Pré-
Maquinárias ou Tecnológicas".
Esse termo foi tomado de um livro de M. Courreges, um especialista em
crítica Estética, e se refere às esculturas modernas e pósmodernas, que freqüentemente
se formam com maquininhas cibernéticas, animadas elétrica ou eletronicamente. Um
nome que essas maquininhas recebem é o de gadgets. Entre essas esculturas estão
algumas muito curiosas, como "A máquina de não fazer nada", "A máquina Celibe",
etc. O interessante dessas máquinas é que, usando elementos da tecnologia moderna,
produzem exclusivamente um efeito estético, que entre outras peculiaridades possui a
capacidade de desvinculá-las por completo de suas finalidades "práticas" ou utilitárias
no mundo contemporâneo. Por outro lado, algumas delas são capazes de construir-se

81
ou destruir-se a si mesmas, de "formar-se" ou de "transformar-se" ao mesmo tempo
em que funcionam.
• Sexta aula do Curso Âmago
É preciso, para pensar as MD, tratar de descartar por completo as imagens de
forma, estrutura, conteúdo e função que todos evocamos quando pensamos em uma
máquina qualquer de nossa cultura. As MD se dividem em dois tipos: máquina "fonte"
e máquina "órgão". A máquina fonte extrai e emite um fluxo "energético", a máquina
órgão o corta. Mas a máquina que funcionou como cortadora de fluxo na primeira
combinação pode, por sua vez, converter-se em uma máquina fonte de fluxo em uma
segunda combinação. As MD podem, então, combinar-se em todas as direções e em
um tempo que é próprio a elas e que não se confunde com o tempo cronológico, nem
com o retroativo. Como se pode imaginar, as Máquinas Desejantes formam um
Rizoma (rede vegetal da qual já falamos). A rigor, sua conceituação pode ser
entendida como uma tentativa de pensar modalidades de Ordem próprias do Caos,
sobretudo apontando que desse Caos vão surgir todas as "entidades claramente
ordenadas" das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo, que já
conhecemos e que habituamos a considerar como sendo a realidade em si mesma.
As Máquinas Desejantes, na Superfície da Produção, se acoplam pela Síntese
Conectiva de Produção e é por meio delas que geram todas as realidades "pré" àsquais
já nos referimos. Esse regime de acoplamento pode ser verbalizado por meio da
conjunção "E". É isto "E" o outro "E" os demais, etc. Também cada MD é, assim, uma
singularidade, e integra um poliverso infinito de diferenças positivas absolutas. Não só
que o que as une são fluxos, mas que elas também se formam e se transformam na
medida em que funcionam (devires). Seu conjunto, então, integra esse poliverso
aberto de infinitos todos, a que cada nova parte produzida se agrega como "uma parte
a mais". Nesta superfície é que se dá o tipo de "organização" que Deleuze e Guattari
denominam "Molecular" ou "Micro".
Este tipo não tem a ver exatamente com "o pequeno", entendido como uma
dimensão extensiva e temporal da Superfície de Registro. Mas são as mesmas
máquinas que, quando integram a Superfície de RegistroConsumo, fazem-no
mudando seu regime, por meio de Síntese Disjuntiva, pelas quais geram territórios,
meios, estratos, assim como todas as entidades que conhecemos clara e

82
separadamente. Neste plano, as sínteses funcionam separada e optativamente. As
entidades da Superfície de Registro são "ou" isto, "ou" aquilo, "ou"... assim
sucessivamente.
Esta conceituação está tomada da Filosofia de Kant. Kant disse que a
entidade suprema desta Superfície é Deus, como "Senhor do Silogismo Disjuntivo"
que é o recurso básico para pensar as coisas do mundo separada e ordenadamente.
Algo similar ocorre na Superfície de Consumação-Consumo, em que as MD
funcionam em base às Sínteses Conjuntivas. Nela, as entidades chegam à sua
realização total ou a seu consumo umas pelas outras, o qual fecha seu ciclo. Este nível,
das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo é o "Macro" ou
"Molar", que não tem a ver, necessariamente, com o que é "grande", mas com um
modo de organização dos conjuntos chamados, na física, "Molares", que obedecem às
leis dos grandes números, assim como a um determinismo causal preciso.
As MD na Superfície de Produção se dispõem sobre um "sustentáculo" (ou
poderíamos dizer, um "não-espaço") denominado Corpo sem Órgãos. O CsOs (Corpo
Sem Orgãos) é o "Grau Zero das Intensidades", o "improdutivo", o "incriado" da
Produção. Seu conceito está construído a partir das Idéias previstas pelas religiões
hinduístas, que falam de um "Ovo Tântrico". Também contribui a mitologia de uma
comunidade primitiva, os Dogon, que falam do Universo como um "Ovo Cósmico".
Finalmente, intervêm também os descobrimentos da Biologia Molecular Moderna,
que fala do Ovo Genético. Todo estes "ovos" têm a peculiaridade de gerar tudo, mas
de estar, em si mesmos, compostos não de "partes" morfologicamente determináveis,
mas de "eixos", "limiares", "graus" de força gerativa pluripotente. Dessa maneira, é
impossível saber que "região" destes virá gerar cada parte das realidades circunscritas
que são capazes de produzir.
Como veremos mais adiante, as relações entre o CsOs e as MD são
complexas (atração, repulsão). De acordo com o predomínio de algumas delas, o
papel do CsOs na Superfície de Produção é diferente da de Registro. Na Superfície de
Registro, o CsOs funciona como "Corpo Cheio", uma entidade que se apropria de toda
a Produção e a faz aparecer como gerada exclusivamente por ele de uma maneira
milagrosa. O CsOs não se opõe conceitualmente ao Corpo (biológico, p.ex.) nem aos
orgãos, senão ao "organismo", ou seja, ao Corpo já ordenado da Superfície de
Registro.
83
As relações na Superfície de Produção entre o CsOs e as MD concluem por
produzir tudo o que existe. No nível da Superfície de Registro essas produções se
evidericiam como "linhas de fuga", "desterritorializações" e "acontecimentos" de
qualquer "natureza", que são os responsáveis por todas as mudanças revolucionárias-
desejantes que metamorfoseiam a realidade tal como podemos vê-la na Superfície de
Registro-Controle. Essas "novidades" radicais se apresentam como "Individuações",
ou seja, como novas entidades que não pertencem a nenhuma espécie conhecida. São
o "anômalo", o que não é nem normal, nem anormal.

CORPO SEM ÓRGÃOS*


Temos falado prevalentemente, nas aulas anteriores, das Máquinas
Desejantes (MD); nesta, trataremos sinteticamente do Corpo sem Órgãos (CsOs).
O CsOs, usando uma metáfora pedagógica, é uma espécie de "suporte" das
MD. Também pode-se dizer, mais corretamente, que é um Pré-plano sobre o qual se
agenciam as MD, é dizer, sobre o qual efetuam suas sínteses.
Cada dispositivo ou agenciamento, tanto quanto grandes configurações como
o Estado, se "maquinam" sobre um CsOs. Cada uma delas constrói um, e ainda que
Deleuze e Guattari sustenham que pode haver um CsOs que reúne a todos, esse ponto
não parece inteiramente esclarecido. Também se diz que o CsOs é o "grau zero" de
intensidade. Talvez essa afirmação possa ser entendida como significando que o CsOs
é o que ainda não começou a desdobrar-se como MD.
Em princípio, a Idéia de CsOs está tomada de um poema de Artaud, no qual
o genial autor critica tudo aquilo que seja organismo, dito no sentido de organizado.
Refere-se principalmente ao corpo biopsíquico, mas parece aludir a tudo o que é
ordenado e organizado. Artaud postula construir um corpo composto de "sangue e de
ossos"; obviamente, é um corpo impossível, mas contribui para sugerir a Idéia de que
existe um corpo potencial, que não é inimigo dos órgãos, senão da organização,
considerada como inapelável ou única.
Em segunda instância, Deleuze e Guattari tomam a Idéia de CsOs das
religiões hinduístas (Corpo Tântrico) e da mitologia da comunidade Dogon (Ovo
Cósmico). Estes "corpos" se caracterizam por estarem percorridos por fluxos, que
84
cursam de acordo com eixos, que se distribuem em gradientes e que formam áreas
energéticas móveis caracterizadas por graus de intensidade. É a partir desses "ovos"
que vai diferenciar-se tudo aquilo que integra o que chamamos "Realidade", mas isso
não implica que no nível do Ovo vigore propriamente uma indiferenciação. Pelo
contrário, as diferenças intensivas do CsOs são as

• Sétima aula do Curso Âmago


puras e reais diferenças, apenas não estão dadas nas dimensões da temporal idade e da
espacial idade, senão na dimensão da potência.
O ovo genético também pode ser entendido dessa maneira; apesar de que o
repertório genético já tenha sido identificado e classificado pontualmente, em SEU
CONJUNTO, opera como um CsOs, dado que, por exemplo, a partir dele, não se pode
determinar que "parte" do ovo irá dar em cada órgão ou membro. Primeiro se
diferencia, digamos, um braço, e só depois se decide se haverá de ser direito ou
esquerdo. Também o funcionamento do Cérebro, p.ex., pode ser entendido desta
maneira.
Na Filosofia de Espinoza, a Substância é o conceito que parece reunir
características similares. A Substância é geradora de tudo o que É. Ela tem infinitos
atributos (que são traços que definem a Substância), que se vão realizar como um
número limitado de Modos. A Substância é onipotente, e nela estão potencialmente
incluídas suas produções. Por isso é que se qualifica a Filosofia de Espinoza como
panteísta, dado que uma Substância tem os mesmos poderes que Deus, é Deus.
O filósofo Leibniz afirma que a realidade está composta por unidades
incomunicáveis entre si, cada uma das quais "vê o mundo" desde seu "ponto de vista".
Dentro dessa pluralidade de mundos (mundos a-paralelos) vão adquirir realidade os
mundos que serão "compossíveis" ou "co-possíveis". A unidade dessas mônadas se
faz em Deus, Mônada das mônadas, que é quem decide qual dos mundos
compossíveis é o melhor. As mônadas estão distribuídas em capas, cada uma delas
infinitamente dobrada. Deleuze tem estudado como a arte Barroca tem uma
modalidade típica perfeitamente articulável com a Filosofia de Leibniz.
O filósofo Kant escreveu que a Matéria tem quantidade e qualidade, mas que
existe uma "terceira dimensão" que são as "qualidades intensivas". É o que Deleuze e

85
Guattari tomam para postular as Intensidades Puras, que só se realizam como
"individuações" inusitadas, cuja originalidade só pode ser medida como um "grau",
por exemplo, uma cor, ou um som, ou um verão. Cada uma dessas realizações tem
uma singularidade que só pode ser identificada como sendo um "grau de si mesma".
Nietzsche sustentava que a toda realidade subjaz uma capacidade, que
denomina Vontade de Potência. Não se trata de que esta Vontade seja de algum
Sujeito. A Vontade de Potência pode até constituir sujeitos, animais, etc. A Vontade
de Potência se distribui em Forças (Forças Ativas e Forças Reativas). As Forças
Ativas tendem a gerar o Novo. As Forças Reativas se opõem a esta produtividade.
Nietzsche faz uma formidável crítica dos valores vigentes no Ocidente, especialmente
na medida em que os considera como expressões do triunfo das Forças Reativas que
podem conduzir a Vontade de Potência ao extremo de ser V ontade de "Nada". Propõe
uma trans-valoração de todos os valores a serviço dessa invenção e dessa Vida.
Do filósofo Bergson já temos falado em várias oportunidades. Sua idéia é
que a Realidade é mais que o Real (admitido por todos), o Possível e o Impossível.
Diz que o Impossível se define como o que não é Possível, e este se define como o
que "pode vir a ser Real", quer dizer, define-se desde o Real. Real e Possível têm
assim um mesmo conceito. Mas a Realidade está composta também pelo Virtual, ou
seja, pelo que ainda não se atualizou. Sendo que, ao atualizar-se, transforma
radicalmente o que se considerava Real, Possível e Impossível. Acontece que o
Virtual, ainda sendo a parte mais importante da Realidade, é impensável,
impredizível, dado que tem outro conceito que o de Real, o de Possível, etc.
Como se vê, todas estas Idéias são aplicáveis à construção do conceito de
CsOs. Em suma, o CsOs, em Deleuze e Guattari, é outro dos recursos para tratar de
pensar o Caos e sua relação com o Cosmos. O Caos vai ser pensado como
positividade, e não apenas como falta ou ausência das características do Cosmos-
Ordem.
O CsOs, no nível da Superfície de Registro-Controle, vai ser modulado
como Corpo Cheio, ao qual nos referiremos, mais detalhadamente, nas aulas
seguintes.

86
SUPERFÍCIES*
Nas aulas anteriores temos deixado caracterizadas as Superfícies de
Produção, de Registro Controle e de Consumo Consumação.
Temos explicado como estas superfícies são imanentes entre si e
compreendem tudo o que pode ser incluído na Realidade.
Nas diversas Superfícies transcorrem diferentes Processos, ou seja, o
andamento ou movimento próprio de cada uma delas.
Os diferentes Processos também são imanentes entre si, de maneira que, no
nível de alguns de seus efeitos circunscritos, o que se pode detectar é o predomínio
relativo de um ou outro dos Processos com suas respectivas peculiaridades.
Na Superfície da Produção, acontece um Funcionamento que é próprio do
chamado Processo Produtivo-Desejante. Os "elementos" que estão em jogo nesse
processo, como já é sabido, são as Máquinas Desejantes e o Corpo sem Órgãos. O
processo Produtivo-Desejante corresponde a uma dimensão que Deleuze e Guattari
chamam de Molecular. A rigor, à nossa maneira de ver, o termo Molecular não é
exatamente o mais apropriado, talvez fosse melhor falar de "subatômico" ou de
"particulário". Esse processo reúne certas características que são próprias do mundo
das partículas subatômicas (elétron, neutrino, neutron, próton, etc.). De toda forma,
nessa dimensão se operam fenômenos que são inteiramente insólitos, tanto para a
Macrofísica, como para o observador leigo. É sabido que, a essa escala, é impossível
determinar, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma partícula (princípio de
Indeterminação de Heisemberg). É conhecido que nessa dimensão pode-se constar a
transformação entre massa material e energia, a existência de "paquetes" de energia,
chamados "Quantas", a coexistência e interconversibilidade de "corpúsculos" e de
"ondas", etc. Também a experimentação com esses sub-microelementos permite
afirmar que os mesmos "se formam ao mesmo tempo em que funcionam ou operam" e
que "carecem" da especificidade que adquirem nos Conjuntos Molares da Superfície
de Registro-Controle ou de Consumo-Consumação. Neste
*Oitava aula do curso Âmago
nível Molecular, existem super-catalisadores (ou seja, elementos tais como a chamada,
em Biologia Molecular, "Proteína Alostérica", que é capaz de propiciar combinações
entre elementos que não têm, normalmente, afinidade química, de maneira que essas

87
uniões podem produzir substâncias superiores que são "quimicamente impossíveis".
Outra característica surpreendente do Processo Molecular é que, nos espaços
em que este se desenvolve, pode se dar um fenômeno local, que gere outro que lhe é
correlativo a uma considerável distância, sem que se possa determinar qual é o
veículo ou o substra to condutor dessa influência causal (ação à distância). Por
outra parte, as conexões entre os mencionados "elementos" são realizadas em todas as
direções e de maneira incessante, de forma tal que estão produzindo infinitas
novidades materiais sem interrupção.
Por sua parte, o Processo Molar está regido pelo que se conhece em
estatística como leis dos Grandes Números. Como são os Processos próprios da
Superfície de Registro-Controle e de Consumo-Consumação, os "elementos" se
agrupam para constituir as unidades amplamente conhecidas como constituindo as
partes dos grandes conjuntos molares com suas respectivas especificidades (Naturais,
Sociais, Subjetivas, Maquinais ou Tecnológicas). Neste processo regem perfeitamente
as leis da causalidade e do determinismo (Causalidade Linear, Monocausalidade,
Policausalidade, Causalidade Circular, Interacional, Fatorial, Dialética, etc.). Esses
conjuntos são totalizáveis e reconhecem limites bem circunscritos. Os conjuntos
podem estar delimitados como Estratos, Substratos, Paraestratos, Territórios, etc.
Como se vê, os termos usados são de origem Geológica e Etológica. O andamento do
processo Molar, no nível de cada uma das entidades circunscritas da Superfície de
Registro-Controle, nós o temos denominado Função. As funções são eminentemente
reprodutivas e antiprodutivas, tanto quanto os funcionamentos moleculares são
produtivos.
Ao funcionamento do Molecular, Deleuze e Guattari o chamam Inconsciente
(pensamos que como alegoria do Sistema Inconsciente do Aparato Psíquico, segundo
a Psicanálise). Cada dispositivo que se pode montar como invenção na Realidade tem
um Inconsciente, dado pelo processo desejante-produtivo molecular, que se produz a
si mesmo, na

forma de um Ciclo em que só se repetem as diferenças. Isto é, "cada Inconsciente" é


diferente do outro.
O que estudamos como Corpo sem Órgãos forma, no nível das entidades

88
predominantes da Superfície de Registro-Controle, um Corpo Pleno. Este subjaz a
uma entidade chamada Eminente, que varia em cada formação histórica de soberania,
a qual se apropria de todo o Desejo e de toda a Produção de uma Era ou de uma
Época. Nas Formações Primitivas era a Terra; nas Imperiais, o Corpo Pleno do
Imperador-Divino; no Capitalismo é o Corpo Pleno do Capital Dinheiro. A entidade
correspondente ao Corpo Cheio de cada Era propicia certa produção da Superfície de
Produção e dela se apropria; no entanto, inibe ou destrói todas as outras que não possa
detectar, classificar e incorporar.
Quando predomina o funcionamento sobre a função, ou seja, a Superfície de
Produção sobre a de Registro-Controle, as entidades da Superfície de Registro-
Controle se desterritorializam e desestratificam, dando lugar à aparição de novidades
como linhas de fuga e acontecimentos que, em suma, são emergências do Novo
Absoluto, que sempre tem um caráter Revolucionário, seja qual for a peculiaridade
que adquiram segundo o campo do Registrado em que surjam.
Brevemente nos referiremos à Representação, dizendo que é o processo pelo
qual uma realidade considerada ausente se re-apresenta em outra, que supostamente a
substitui. Bons exemplos desse processo estão dados por certa concepção da
linguagem falada ou escrita, assim como das Artes, que afirmam que os sistemas
semióticos ou estéticos são formas de EXPRESSÃO de um sujeito ou de
REPRESENTAÇÃO da realidade. Outro exemplo são os sistemas políticos em que se
supõe que as bases ou o "povo" participam na condução política através de seus
"representantes", escolhidos eleitoralmente ou não. Daí o termo Democracias
Representativas, que, segundo podemos ver, não são autenticamente representativas
de seus representados, seus desejos e interesses. Deleuzee Guattari formam parte de
um conjunto de pensadores que criticam a idéia de representação e são partidários de
pensar em termos de como cada entidade funciona, e não o que representa.

CAOS E COSMOS*
A proposta Esquizoanalítica, como já reiteramos, é a de uma composição de
fragmentos tomados de diversos saberes e de diferentes práticas. Estes fragmentos são
tomados de seus Sistemas de origem, sem preocupação pelo significado exato que têm
dentro da citada sistematicidade. Amiúde, esses fragmentos inseridos no contexto dos

89
escritos Esquizoanalíticos conservam certa similitude com o sentido que tinham
primeiramente, mas já funcionam de uma maneira diferente nesse novo contexto.
Outras vezes, essa inserção lhes proporciona um valor completamente diferente, e,
sobretudo, inteiramente novo. Como já dissemos também, o texto Esquizoanalítico
tem uma vocação que podemos resumir, muito precariamente, como enfatizado no
TRANS e no PRÉ.
É PRÉ no sentido de Pré-ontológico, ou seja, trata-se de um enorme esforço
para conseguir pensar e expressar como funciona "a realidade", "antes" de constituir-
se como tal, segundo as formas materiais ou ideais que conhecemos e aceitamos e
segundo as energias já vetorizadas como forças, que animam essas formas.
É Transdisciplinar porque trabalha com uma transversalidade conceitual que
interpenetra as diversas disciplinas epistemologicamente consagradas como tais.
Também é TRANS no sentido de incluir fragmentos filosóficos, literários, místicos e
até leigos, dito no sentido muito amplo, que chega até no aproveitamento de
elementos dos discursos e escritos "delirantes".
De toda forma é importante entender que o texto Esquizoanalítico não se
propõe como um META ou um SUPRA MODELO, que seria válido para reger
quaisquer dos territórios do saber estabelecido. Poderíamos dizer que se coloca "ao
lado", ou penetrando nos mesmos para infundir-lhes novas dimensões.
No campo das disciplinas científicas constituídas como tais, é sabido que
existe o momento da Fundação de uma Ciência, que algumas Epistemologias
denominam de Ruptura ou Corte Epistemológico,

• Nona aula do Curso Âmago


segundo o qual uma Ciência começa – e o faz diferenciando-se da Ideologia pré-
científica que a precedia.
Logo chegam períodos de re-fundação ou de desenvolvimento e
aperfeiçoamento da citada ciência, que pode chegar até a ser substituída, por uma
Nova Ruptura e nascimento de uma outra Ciência. Alguns historiadores da Ciência e
da Epistemologia sustentam que o devir do panorama científico, considerado em
geral, permite reconhecer uma espécie de Modelo Geral ou Paradigma que resulta de
uma abstração das características principais e sui generis que apresenta o conjunto das
90
ciências em determinado momento. Esse Paradigma se estabelece em etapas nas quais
as ciências parecem coincidir em certos traços lógicos de seus esquemas teóricos.
Estas eras são consideradas revolucionárias porque o novo Paradigma que se impõe
vem substituir criticamente um anterior. Logo, o devir das ciências entra em períodos
que se podem chamar "normais", durante os quais se aprofundam, se detalham e se
aplicam os novos achados, mas nos quais as transformações não chegam a ser de uma
magnitude que altera o Paradigma estabelecido.
É freqüente que o Novo Paradigma se estabeleça a partir das invenções de
UMA das ciências da Época, que opera uma ruptura pregnante e que influi sobre as
outras ciências que lhe são contemporâneas, contribuindo notavelmente na
implantação do Novo Paradigma Geral.
Já destacamos que, a partir das chamadas grandes revoluções científicas, tais
como a Copemicana (completada por Galileu e Newton), assim como a Darwiniana, a
Marxista, a Freudiana, a Saussureana, dentre outras, formou-se um Paradigma
determinista predominantemente causal, que tem regido há quase quatrocentos anos o
panorama disciplinar mundial.
Há mais ou menos cinco décadas, e especialmente nas últimas duas, os
avanços da Macro e da Microfísica, tanto quanto os da Biologia Molecular, da
Microquímica e das Ciências Exatas (Matemática, Geometria e Lógica), assim como
suas repercussões nas Ciências Humanas, vêm formando um Novo Paradigma. Pela
via da chamada causalidade fatorial, da probabilística e da aleatória, se vêm abrindo
outras formas de pensar a Produção, que, sem chegar a ser totalmente Indeterministas,
questionam seriamente as formas clássicas da causalidade.
Essa metamorfose tem ido bastante mais além até chegar a caracterizações
transdisciplinares que adquirem a peculiaridade que Deleuze e Guattari atribuem a
vários saberes, dentre eles a Esquizoanálise mesma. Trata-se de teorizações e de
modos de operar "Anexactos, mas rigorosos". Um pequeno exemplo tomado da
Geometria pode ilustrar essa idéia. Um círculo, por exemplo, é uma entidade
geométrica formal abstrata perfeita. Uma circunferência, já objetivamente traçada, é
um caso formal concreto que não tem a "perfeição", nem admite um tratamento
puramente formal como o primeiro. Agora, um redondel é uma singularidade única e
irrepetível, que só admite uma abordagem relativamente única, que pode chegar a ser

91
"anexacta, mas rigorosa". Rigorosa, digo, no sentido de inteligível, comunicável, mas
não repetível com total exatidão.
O universo do Novo Paradigma, essa individuação, esse "concretado" ou
"objetivado", questiona o Modelo de funcionamento totalmente calculável, ordenado,
previsível e explicável causalmente. Trata-se de reconhecer o Poder criativo das
Realidades ou das Pré-Realidades caóticas ou caósmicas, que, vistas desde os
territórios convencionais, seriam irregulares, desordenadas, imprevisíveis,
inexplicáveis, indeterminadas, a-racionais, etc.
Tanto nas Ciências Exatas, como nas Naturais e, por extensão, nas chamadas
Humanas e Sociais, tem-se desenvolvido, desde há mais de vinte anos, uma série de
estudos sobre o funcionamento acidental, incidental, ocasional, catastrófico,
turbulento, etc. Esses termos, mais ou menos, explicam por si mesmos a natureza e o
tema dessas investigações.
Por exemplo, na dinâmica dos fluidos ou dos gases, das correntes elétricas ou
das magnéticas, assim como nas passagens de estado, de gasoso para líquido, líquido
para sólido, de regular e ordenado para turbulento, etc., os cientistas; têm-se dedicado
a estudar o que chamam de Interface, ou seja, a passagem de uma condição ordenada e
determinista a uma desordenada e caótica, e vice-versa. Têm encontrado, assim, em
diferentes áreas da realidade, que é durante essa passagem que se destroem entidades
específicas e que surgem outras qualitativamente novas. Têm compreendido que é a
partir do Caos ou do semi-caos, onde os elementos estão animados de um movimento
turbulento e de velocidades incalculáveis, que acabam se produzindo as formas,
substâncias e forças que geram entidades inéditas.
Muitas neo-disciplinas (setoriais de outras convencionaIs ou inteiramente
originais) têm emergido desta inspiração, tais como a teoria das Catástrofes, as teorias
dos Jogos, a teoria dos Objetos Fractais, as teorias do Caos, etc. Em outras palavras,
tem-se aprendido a revalorizar, dentro da oposição Cosmos-Caos, a importância
geradora do Caos, tanto quanto as funções seletivas e repressoras do Cosmos e a
importância dos estados intermediários entre uma e outra destas realidades.
É claro que os pesquisadores procuram formas determinísticas de dar conta
das vicissitudes de tais relações, pois a peculiar essência do Caos os vem obrigando a
pensar outros conceitos, funções e variáveis que permitam entender essa dinâmica, e

92
que carecem da exatidão postulada pelo Paradigma da Ordem e do Determinismo.
Um dos fenômenos estudados se denomina Autopoiesis, que, apesar de ser
originário da Biologia, tem-se transladado a outros campos para denominar os
fenômenos de autoprodução e de auto-crescimento que muitas entidades demonstram.
Isso tem influenciado também a idéia de Tempo, sendo que o Tempo atribuído a esses
processos funciona como uma flecha irreversivelmente progressiva que não obedece,
por exemplo, às leis da Inércia nem da Entropia, leis clássicas da Termodinâmica.
Só para concluir, digamos que, na Esquizoanálise, a Superfície da Produção
está animada por esse tipo de funcionamento que o "Novo Paradigma" e estes novos
ramos da ciência estão "descobrindo". Neste ponto cabe colocar que, quando falamos
que o Corpo Sem Órgãos se converte, no nível da Superfície de Registro Controle de
algumas formações históricas, em Corpo Cheio, o mesmo funciona como o que
Deleuze e Guattari chamam de Quase-Causa. Isso está dito no sentido de que esse
Corpo Cheio, na realidade, tem sido produzido pela Superfície de Produção e em si
mesmo é bastante improdutivo, pois como se apropria da Produção de toda uma
Época, se atribui a si mesmo toda a Produção e acaba sendo considerado como se
fosse uma Causa ou uma Com-Causa ou Quase-Causa de tudo o que existe.

SUJEITO E SUBJETIVAÇÃO*
Nas aulas anteriores temos explicado que a Esquizoanálise parte, para definir
o Sujeito, principalmente das postulações Psicanalíticas a respeito.
Na obra freudiana, sucessivos Modelos do Psiquismo são expostos, desde o
"Projeto de uma Psicologia para Neurólogos" até a "Segunda Tópica", passando pela
Primeira Tópica, a Teoria Pulsional e, principalmente, pelo Complexo de Édipo.
Sabemos que, atravessando todos esses modelos, há duas operações que são as
principais constituintes do Sujeito, segundo a Psicanálise: A IDENTIFICAÇÃO E O
INVESTIMENTO. O investimento é a aplicacão da Libido aos objetos que lhe vão
correspondendo durante a chamada "Evolução Psicossexual" do Sujeito. A partir dessa
etapa inicial do chamado Estado Autoerótico (em que o pré-sujeito é um conjunto não
unificado de zonas erógenas, cada uma das quais gera uma pulsão parcial que se
descarrega na própria fonte ou em qualquer das outras), o sujeito entra no Narcisismo
Primário, que é a primeira forma da unificação que conquista. Nesta forma, o Sujeito

93
se identifica com uma imagem que se denomina "materna", à qual atribui todas as
potências e com a qual se confunde. Esse primeiro Ego Ideal é separado da imagem
materna pelo Complexo de Castração e só a partir desse momento é que se inicia a
seqüência do Complexo de Édipo, que se compõe do Complexo da Mãe, do Complexo
do Pai e do de Castração. Em suma, todo esse processo se dá sobre a constante de que,
em cada etapa, houve investimento nos respectivos objetos, é preciso renunciar aos
mesmos, e, cada vez que se opera uma renúncia, o objeto é incorporado ao Sujeito,
formando sua própria "substância".
Por isso é que se diz em Psicanálise que "onde houve um investimento, resta
uma identificação". O aparato psíquico do Sujeito é, assim, um precipitado, um
decantado, de investimentos e de objetos perdidos .
• Decima aula do curso Âmago
Em cada um desses modelos, existe uma parte, um sistema, uma região e um
processo que denominamos Inconsciente.
A formulação Estruturalista do Sujeito Psíquico consegue separar
definitivamente a confusão que se estabelece, amiúde, entre os lugares que integram a
estrutura e os agentes empíricos ou papéis sociais que eventualmente a ocupam.
Recorde-se a polêmica entre o antropólogo Malinowsky e o psicanalista Jones, que foi
a primeira versão dessa discussão. A Psicanálise estruturalista afirma que a estrutura é
especificamente "psíquica" e que as imagens ou figuras que eventualmente podem
desempenhar suas funções são variáveis e não determinantes.
De toda forma, o que Deleuze e Guattari vão tratar de demonstrar é que,
mesmo tomando em conta essa distinção, a estrutura do sujeito está "calcada" dos
lugares constitutivos da ORGANIZAÇÃO FAMILIAR, mais ainda, da modalidade
burguesa nuclear da família. Sabemos que, historicamente, existem inúmeras
modalidades de composição familiar e que a forma Nuclear Burguesa é uma forma
dominante que a civilização ocidental capitalista vem consagrando como universal. A
formulação estrutural do Aparato Psíquico não consegue desvincular-se por completo
dessa estrutura da organização familiar e assim reproduz as limitações de sua
consagração como universal.
Isso faz com que a formulação psicanalítica não possa evitar uma série de
erros teóricos, que depois se objetivam em erros técnicos de manejo. Por exemplo,

94
quando se trata de responder à pergunta acerca de "como a forma edipiana-
familiarista" começou (mas não no caso de um sujeito individual atual), ou seja, no
caso dos começos históricos dessa estrutura, a Psicanálise responde projetando
especulativamente a forma edipiana-familiarista contemporânea em uma suposta pré-
história mítica, em que o proto-pai da horda primitiva excluía seus filhos do comércio
sexual com as mulheres (conservando-as para si), e aqueles se reuniram, mataram o
pai e o comeram. Tal "fato", real ou miticamente acontecido, foi introjetado, deixando
como resultado a implantação das leis de proibição do incesto e do parricídio que
compõem o sistema totemista de organização social, que é o primeiro conhecido, e
que seria o de passagem da natureza à cultura humana .
Por outra parte, quando a Psicanálise propõe explicar as formações coletivas
de socialidade, nada mais faz que multiplicar o Sujeito edípico, postulando conexões
em "série" ou em "paralelo" entre uma coletividade de sujeitos e seu líder. Essa
dimensão social, e portanto política, cultural, da subjetividade, acontece em um tempo
cronológico posterior à dinâmica familiar, que seria o conteúdo das primeiras
vicissitudes da vida do Sujeito. É dizer que o social sempre vem "depois". O mesmo
acontece com as produções sublimadas do sujeito, ou seja, a geração de obras
socialmente valiosas, distanciadas da problemática edipiana; a esse respeito a
Psicanálise insiste em que se trata de efeitos dessexualizados ou neutralizados da
libido que se geram tardiamente no desenvolvimento do sujeito.
A estas peculiaridades da explicação psicanaiítica, a Esquizoanálise chama
"Paralogismos", ou seja, deformações lógicas que resultam de premissas erradas.
O Inconsciente psicanalítico, apesar de incluir entre suas explicações teóricas
recursos energéticos (economia e dinâmica), centrase principalmente nas
representações, ou seja, nos significados ou significantes que compõem os fantasmas
reprimidos. Assim, então, o Inconsciente psicanalítico, principalmente construído
como metáfora da Tragédia Edipiana, por sua vez tomada por Sófocles de uma versão
do Mito edipiano da Grécia Antiga, é um inconsciente "teatral" antigo. No caso dos
estruturalistas, o que eles dizem não é demasiado diferente do que afirmar que o
inconsciente está estruturado, por sua vez, pelas coordenadas formalizadas do drama
edipiano. Esse Inconsciente deve ser, então, interpretado, decifrado, como se tratasse
de um manuscrito arcaico. Esse Inconsciente é uma entidade representativa, tanto no
sentido de que está composto por representações linguísticas como no sentido de que
95
sua dinâmica se modeliza como uma representação teatral antiga. Todos os outros
territórios da realidade podem até se articular com o psíquico-inconsciente, mas lhe
são externos, lhe são alheios, e justamente têm de ser colocados entre parêntesis pelo
dispositivo teórico-técnico psicanalítico para poder entender o psíquico, em si e por si
mesmo*.
* A mudança de "representações" por "significantes" não soluciona o citado problema,
apenas o abstrai.
Para a Esquizoanálise, tanto o aparato psíquico como o resto da Realidade
estão constituídos como máquinas, com a peculiaridade de que não se trata de
máquinas mecânicas, nem cibernéticas, nem elétrico eletrônicas. Trata-se de máquinas
maquínicas, que, como já sabemos, têm as peculiaridades de certas máquinas
estéticas, ou, melhor ainda, da "maquinaria microfísica" das partículas atômicas ou da
biologia molecular.
O Inconsciente Esquizoanalítico não é especificamente psíquico, nem de
nenhuma outra material idade "última", sendo que é préontológico, dito em um
sentido amplo. É na Superfície de Registro que, no sujeito convencional, o
Inconsciente vai tornar-se psíquico, mas já não será propriamente o Inconsciente
Esquizoanalítico, senão um préconsciente de uma entidade subjetiva já instituída e
dominante. Por outra parte, o Inconsciente Esquizoanalítico estará pensado como um
Processo Produtivo Puro, não formado de representações nem de forças econômico-
dinâmicas que mobilizam as representações ou papéis, seja de um Teatro ou de uma
Linguagem, sendo como um incessante produzir caótico que, ademais, se produz a si
mesmo e produz a realidade como renovados Todos.
É um Inconsciente Virtual, no sentido que já estudamos e que Bergson dava
a esse termo. É um Inconsciente pluripotencial, no sentido que Espinoza atribuía à
Substância Universal, ou é um Inconsciente composto de Vontades de Potência, no
sentido que Nietzsche dava a esse conceito.
Para a Esquizoanálise, então, uma "Psiquiatria Materialista" terá que pensar
a "normalidade" ou os quadros psicopatológicos em função desse Inconsciente
Maquínico e não do Inconsciente Representativo – Teatral ou Estrutural.

96
A HISTÓRIA*
A Esquizoanálise tem uma leitura muito especial da História. Capítulos tais
como "Bárbaros, Selvagens e Civilizados", de "O Anti-Édipo", assim como capítulos
de "Mil Platôs": "Micropolítica e Segmentaridade" e "A Máquina de Guerra",
configuram uma extraordinária síntese da História Universal. A História Universal é
um saber imperiosamente necessário para entender a situação na qual o mundo está
contemporaneamente e para intentar prever quais são as tendências de seu futuro. Isto,
por sua vez, é indispensável para se poder desenhar as estratégias de vida e de
militância que sejam propícias para a realização de nossas Utopias Ativas.
Agora bem: existem tantas versões da História, orientadas no sentido que
convém aos setores sociais que as fazem, que é preciso encontrar uma certa
"inocência" para poder ver a História de uma maneira inovadora e revolucionária.
A Esquizoanálise propõe que a História Universal deve ser feita tomando os
seguintes cuidados: em primeiro lugar é preciso que esteja claro que a História é feita
desde nossos dias para um suposto passado e que, nessa medida, leremos uma História
que está inevitavelmente sujeitada a como nos situamos no panorama atual, ou seja, a
História não é cronológico-genético-evolutiva, senão retrospectiva, é lida a partir de
suas instâncias ativas no panorama presente. Em segundo lugar, se uma formação
social como a nossa está em condições de fazer História Universal, é porque tem
chegado a um grau de aperfeiçoamento e de universalidade que lhe dá os instrumentos
e os critérios para fazê-la; mas isso só será fecundo se nossa atualidade for capaz de
tomar uma certa distância de si mesma que lhe possibilite fazer sua alltocrítica e assim
tendê-la ao passado.
Por outra parte, e talvez como componente dessa capacidade crítica, a
História Universal tem que ser irônica, ou seja, capaz de um certo sentido de humor
que consiga dessacralizar o ocorrido, sem atribllirlhe nenhum caráter solene, infalível
ou divino. Marx dizia que a História

*Décima primeira aula do curso Âmago


se repete "a primeira vez como Tragédia e a segunda como Comédia". Por último, é
importante destacar que, assim como é preciso estudar a parte da História que obedece
a leis, ou seja, que está regulada por um certo determinismo, não é menos importante

97
recordar que o que realmente constitui o motor da História como devir permanente é o
Acaso, são os grandes encontros e acontecimentos inesperados, imprevisíveis,
radicalmente novos. Acrescentemos que não existe Uma História Universal Unitária,
sendo que a mesma é uma abstração destinada a dar coerência a um transcurso que na
realidade está composto de inumeráveis processos diferentes, cada um dos quais tem
seu Tempo sui generis, e cujas correlações mútuas às vezes é possível e outras vezes é
impossível efetuar; são intempestivos. Por último, é preciso diferenciar claramente o
que é a Historiografia, ou seja, uma pretensão de DESCREVER os fatos históricos "tal
como ocorreram", do verdadeiro trabalho do historiador, que invariavelmente é uma
interpretação de dados e uma invenção de conceitos e versões do acontecido.
É completamente inviável resumir aqui a enorme quantidade de
conhecimentos e de postulações originalíssimos que estão incluídas nos capítulos
mencionados. Trataremos apenas de deixar pontualizados alguns aspectos que nos
parecem ser os mais importantes.
Em primeiro lugar, digamos que a conceitualização usada por Deleuze e
Guattari está tomada das mais diversas fontes, mas que, a nosso entender, as mais
importantes provêm do Materialismo Histórico, de algumas obras de Nietzsche e de
valiosas contribuições de antropólogos heterodoxos.
Em suma, e muito pobremente sintetizado, a Esquizoanálise reconhece a
existência de uma Formação Territorial Primitiva, de uma Imperial-Bárbara, Asiática,
Despótica ou Escravocrata; depois a Formação dos Impérios "constitucionais" gregos
ou de sua peculiar "Democracia"; logo de uma Medieval, Feudal ou Servil, assim
como a correspondente nas Monarquias Absolutas Européias, para culminar no
Capitalismo e na Democracia Burguesa Incipiente, no Capitalismo Industrial Clássico
e no Capitalismo Transnacional Globalizado ou Fase Superior do Capitalismo
Mundial Integrado. Em alguns momentos, é possível encontrar em Deleuze e Guattari
a referência a formações de difícil colocação (que se demonstraram essenciais), tais
como o Modo Comum ou Comunal Germânico e uma divisão geral entre Nômades e
Sedentários (esta última configura uma redefinição geral de toda a História Universal).
Dentro dos limites desta aula, o que podemos resumir é que cada uma dessas
formações Histórico-Sociais se caracteriza pela distribuição que nelas se realiza das
relações e da configuração das Superfícies de Produção, de Registro-Controle e de

98
Consumo-Consumação. Os diversos aspectos de cada formação compõem,
principalmente, os processos de produção de bens materiais indispensáveis para a
vida, de meios de produção, a produção de formas sui generis de governo, assim como
as peculiaridades da produção de subjetividades, individualidades, pessoas e agentes
de todos os processos. Segundo esta postulação, TODOS os componentes da História
de cada uma dessas formações sociais são PRODUZIDOS, REPRODUZIDOS E
ANTIPRODUZIDOS SEGUNDO MODALIDADES SUI GENERIS. Em outras
palavras, não tem nada que seja eterno e dado de uma vez para sempre e apenas
modulado pelas peculiaridades, segundo se costumava dizer, do "contexto" histórico.
É importante considerar, também, que toda Formação Histórica é uma
maneira de produzir um Socius que "ordene e controle" o Processo Produtivo-
Desejante, que tende permanentemente à desterritorialização absoluta. O problema
consiste em como e quanto cada socius consiga aproveitar produtivamente, e paralisar
reprodutivamente ou destruir antiprodutivamente suas potências produtivas. A
Superfície de RegistroControle de cada Formação Histórica está regida por uma
entidade chamada "Corpo Cheio", que varia de uma na outra e que tem a peculiaridade
de atribuir-se todas as forças produtivas e aproveitar esse mecanismo para dominar
toda a realidade de cada Formação. Na Formação Territorial Primitiva é o Corpo
Cheio da Terra, na Imperial é o Corpo Cheio do Imperador e no Capitalismo é o
Corpo Cheio do Capital Dinheiro, que configura uma Axiomática que torna todos os
elementos da realidade histórica como equivalentes na forma dinheiro.
Por último, é importante destacar que as modalidades da subjetividade
também varia de uma formação social a outra. A estrutura do "Sujeito Edipiano", tal
como a Psicanálise a encontra no Capitalismo e que insiste em declarar universal,
ubíqua e invariável, não é assim nas diferentes Formações Sociais.
Em realidade, prepara-se como tal no Modo Territorial Primitivo, instala-se
como tal no Sujeito Imperador e na Família Imperial das Formações Despóticas na
"pessoa" do Imperador, e EMIGRA na interioridade do sujeito burguês privado da
Modernidade, compondo o "Homem Íntimo", que nós cremos como sendo a única
imagem universal e eterna do "Homem". Assim lida, a História abre a possibilidade de
outras Formações Históricas e outras subjetivações desejantesrevolucionárias, não
sujeitadas à reprodução e à antiprodução dos Corpos Cheios Históricos vigentes.

99
AS KLÍNICAS ESQUIZOANALÍTICAS*
Respeitamos sinceramente as denominações (que pretendem "determinar"
um estatuto) e as periodizações (que atribuem uma ou outra ordem seqüencial) à Obra
de Deleuze e Guattari. Mas sabemos que se trata de um Rizoma não totalizável, sendo
que cada um lhe dá o nome que lhe é mais expressivo, e cada um o percorre segundo
itinerários cartográficos únicos e irrepetíveis.
Para nós, o Nome é: Esquizoanálise ou Pragmática Universal (segundo
constam em "O Anti-Édipo" e em "Mil Platôs", respectivamente), volumes que
consideramos como sendo os dois vórtices desse oceano turbulento de máquinas-
livros. E que TAMBÉM pode-se dizer deles que são Filosofia... e Ciência... e Arte
(sobretudo Literatura)... e Política... e Clínica... e... não nos estranha: o importante é
que "depois" desse Acontecimento... já nada será como "antes"... e que esse Advento
merece, além de "todos os nomes da História", um Nome Próprio. Algo assim como
"O Efeito Clínico D e G". Mas, além disso, é preciso perguntar-se: "depois" desta
INDIVIDUAÇÃO, "todos" os nomes-estatutos e os "inventários de diferenças", tanto
quanto suas "periodizações-hierarquizações" (p.ex., as "Especificidades" e as
"Profissionalidades") não tendem a tornarem-se irreversíveis e transversalmente
mutantes ?
O que denominamos habitualmente (Psico) Clínica, pode SER
Esquizoanalítica? Parece evidente que NÃO; mas pode DEVIR ou já TERÁ DEVIDO
Esquizoanalítica? POR QUE NÃO? E ainda, se DEVEIO e se seguirá DEVINDO
Esquizoanalítica, o fará, inevitavelmente, de maneiras SINGULARES, e como
MULTIPLICIDADES, ou seja, sempre como O OUTRO de uma suposta
ESQUIZOANÁLISE PRINCEPS.
Por isso, os Deleuzianos-Guattarianos "de carteirinha", assim como os
pudorosos reativos a essa presuntiva ortodoxia impossível, podem dormir tranqüilos.
O problema não é esse. A questão consiste em como aprender a sonhar acordados.

• Artigo inédito. 1997.


As Klínicas Esquizoanalíticas, que obviamente têm tudo a ver com o
Klinamen e quase nada com o Klinos, não serão importantes demais para constituir
um patrimônio dos clínicos convencionais?... Particularmente dos que ostentam

100
antigos e diversos títulos que os consagram como tais? E em especial, os que se
proclamam, digamos, Psicanalistas... Holistas Sistêmicos... ou-não- sei-o-quê?
Não se pode desconhecer que muitos desses clínicos devêm ocasionalmente
Esquizoanalistas sem sabê-lo ( e que talvez nem precisem inteirar-se disso). A partir
da Idéia de Heterogênese, jamais conseguiremos ignorar a infinita variedade dos
dispositivos Klínicos, assim como a dos efeitos Klínicos dos agenciamentos que,
desde a superfície de Registro-Controle, não se identificam como Klínicos. Mas
tampouco cabe desconhecer que há quem se acha Esquizoanalista e se apresenta p.ex.,
como Psicanalista, o qual não aparenta propriamente ser o disfarce segundo o qual um
Simulacro se fantasie de "Boa Cópia"; mais parecem ser "Más Cópias" que aspiram
aos benefícios que, na "República", estão reservados aos "autênticos pretendentes".
Tudo isso, será que "não dá a pensar" que, devir um Klínico Esquizoanalista,
não passa pelos títulos que legitimam ou "autorizam" essa condição, mas que passa
muito mais por um modo de klinicar, por um modo de viver... desejante, produtivo,
revolucionário? Será que para conceitualizar esse modo de viver, basta a,
indubitavelmente magnífica, fórmula: "Não Fascista"? Ou é preciso acrescentar, p.ex.:
"Não Neo-Liberal" e até "Não Social-Democrata? Ou seja, "Não-Heterogestor" e
"Não- Heteroanalítico"?
Será que para um viver assim, fazer Klínica Esquizoanalítica exige delimitar
qual parte do afetar e ser afetado da existência do "expert" corresponde ao "ofício" de
klínico?
Nós já ouvimos e até escrevemos que na formulação das perguntas estão
implícitas as respostas. Mas gostaríamos muito que o leitor não tomasse estas
interrogações, pelo menos, como deliberadamente retóricas. Porque, é acaso "ponto
pacífico" como devêm e devirão as "ofertas", as "demandas", os "contratos", as
"implicações", as "caixas de ferramentas", os "diagnósticos" e as "curas" nas Klínicas
Esquizoanalíticas? É por acaso "ponto pacífico" quais serão os "espaços" e os
"tempos", os "personagens klinicais" (tanto por parte dos "agentes", como pela dos
"pacientes"): "individuais, "coletivos", "equipes",
"grupos", "organizações", "civilizações"? Como seria a Formação de um Klínico
esquizoanalista, como seriam suas "Sociedades Científicas ou Acadêmicas", suas
"Comunicações Bibliográficas", seus "Conselhos e Sindicatos"?

101
Por um lado: faz sentido colocar estas perguntas, boa parte de cujas
formulações, que já começam obsoletas para a Nova Klínica (tanto como conceitos
como enquanto recursos) são, exatamente, o que há que criticar e recriar? E, não
obstante: faz sentido tratar de prever o imprevisível, de dizer o indizível, de
conceitualizar o Virtual recém Atualizado ou por Atualizar? As Klínicas
Esquizoanalíticas como transmutação?... ou como elegante aggiornamento subliminar
homeopático, mais ou menos assumido?
Mais substancialmente: as Klínicas Esquizoanalíticas – estarão destinadas às
Elites Pagantes... ou ao Povo... embora seja um ,"Povo que está Por Vir"?
Sabemos que "Máquina de Guerra" não significa "Artefato Bélico", mas,
assim como os "Mundos" estão genocidas: vale a pena qualquer Maquinação, que não
tenha, pelo menos, UMA dimensão guerreira?
Interessa, p.ex., interrogar-se o QUE NÃO seria Klínica Esquizoanalítica,
embora a negação não seja um recurso "criativo"?
É bom recordar que das proposições indecidíveis surgem as conexões
inventivo-revolucionárias e TAMBÉM pode surgir a geléia Pós-Moderna.
Nessa Catedral flutuante, chamada "O Anti-Édipo", construída por dois
geniais compagnons, estão prescritos dois tipos de Tarefas para a Esquizoanálise: as
Negativas e as Positivas. Será arbitrário demais imaginar que todos os escritos
"anteriores" e "posteriores" (enfatizando Mil Platôs), não fazem outra coisa mais que
cumprir "Lisa" e "Aionicamente" com essas duas tarefas? Que outra coisa podemos
fazer, os Klínicos Esquizoanalíticos, que continuar reinventando esses trabalhos?
Uma Klínica com um Paradigma Estético, uma Estética Klínica, ou uma
Klínica Estética sem Paradigma algum? Uma Ciência Menor dita em uma Língua
Menor, que se transversalize com uma Literatura Menor... uma Filosofia sem
Fundamento, um Pensamento sem Imagem, uma Micropolítica do Desejo... uma
Práxis da Diferença, de conexões que parem as Singularidades Intensivas, da
Proliferação de Multiplicidades incapturáveis, da geração de Estidades irredutíveis, da
concepção de Individuações inclassificáveis... o certo é que todos esses Conceitos,
Funções e Variações são para nós, contemporâneos, um inapreciável "presente dos
Deuses"... a condição de que nos inteiremos de que as valiosas instruções acerca de
"Como fazer um Corpo sem Órgãos"(ou "Como montar Dispositivos Caósmicos") são

102
capítulos maravilhosos que narram o "Que se passou"... mas não o que "está se
passando", nem o que "está por passar",
Uma Klínica como uma Desabituação dos Hábitos e uma Canalização das
Afinidades? Uma Klínica como uma desmitificação das Semelhanças, das Analogias,
das Contradições, da Representação e do Conceito, assim como da Afirmação da
Diferença? Uma Klínica como a promoção de um Novo Entendimento para gestar
"Bons Encontros"? Uma Klínica como uma Nova Arte do uso Disjunto das
Faculdades? Uma Klínica como geração do Sentido? Uma Klínica como uma Nova
Lógica da Sensação? Uma Klínica como assunção da univocidade do Ser e do Eterno
Retorno da Diferença, tanto quanto como da Transvalorização dos Valores? Uma
Klínica como reformulação de "falsos problemas" e como "estratégias" para a
Atualização do Virtual? Uma Klínica com a inclusão de Semióticas A-significantes?
Uma Klínica Nômade dos Espaços Lisos, das Dobras Infinitas, do Pensamento do
Fora, do Diagrama e não do Programa, da Desterritorialização, das Linhas de Fuga, do
Acontecimento, dos Novos Ritornelos, contra a brusca interrupção ou a aceleração ao
infinito do Processo Esquizofrênico, contra as Reterritorializações Normais,
Neuróticas, Perversas (de divã), Paranóicas, Melancólicas e Esquizofrênicas (de
Manicômio), contra o Edipismo, o Familiarismo, o Estatismo... o Organismo? Uma
Klínica Maquínica? Uma Crítica e Klínica... uma Noologia Klínica... uma Klínica do
Devir Animal, do Devir Célula, do Devir Imperceptível, do Devir Cérebro?...

"ARS LONGA, VITA BREVIS",


Introdução à Esquizoanálise Apêndice – Segunda Edição
O propósito essencialmente pedagógico que guia esta introdução nos leva a
acrescentar, nesta segunda edição, este breve apêndice panorâmico. Trata-se de uma
nova tentativa de síntese cuja intenção é facilitar ao máximo possível o trânsito do
leitor pelo complexo rizoma que constitui a Esquizoanálise. Escolhemos a modalidade
expositiva de uma seqüência de pontos numerados, assim como formulações
simplificadas, com uma expectativa esquemática que supomos didática. Não
comentaremos todos os capítulos dos livros (o Anti-édipo e Mil Platôs) e a escolha
dos sintetizados deve-se apenas à importância que lhes atribuímos segundo nosso
critério cartográfico:

103
1. No percurso da obra de G, Deleuze e F. Guattari, os mesmos autores lhe dão denom
inações diversas que podem ser consideradas complementares, embora não sejam
sinônimas: Esquizoanálise, Pragmática Universal, Ecosofia, Nomadologia,
Micropolítica, etc. De nossa parte, temos sugerido outras, tais como: Concepção da
Realidade, Ecopraxe, Nomadopraxe, etc.
2. Quanto a uma "classificação disciplinar" dessa obra, que consideramos irredutível às
especificidades conhecidas, temos optado por empregar uma expressão disjuntiva
inclusa, dizendo que se trata de filosofia... e também de ciência .. , e também de arte e
literatura... e também de crítica estética... e também de política... e também de
mitologia... e também de um certo delírio... e assim sucessiva e não conclusivamente.
Seja como for, a Esquizoanálise afirma, como seu valor principal, o uso que se faz
dela.
3. Como um ensaio, tão discutível como o do ponto anterior, de nos aproximarmos de
uma classificação gnosiológica da Esquizoanálise, propomos que se trata de um
realismo, materialista, diferencialista e imanentista, molecular, intensivista,
neofuncionalista maquínico. Realismo porque o "Ser" (em toda a sua diversidade e
infinitude) é realidade e não aceita nem se opõe a um não-ser. Materialista porque a
"natureza" desse ser inclui toda entidade ideal ou espiritual. Diferencialista porque
trabalha sobre e desde o Ser das diferenças e o Ser
como diferença. Imanentista porque as diferentes realidades que define não estão em
uma relação de separação e nenhuma é transcendente nem eminente com respeito a
outra. Molecular porque o campo da realidade ao qual atribuem essa condição é o de
maior potência em termos de metamorfose. Intensivista porque essa dimensão da
realidade é a geradora da potência citada no ponto anterior. Neofuncionalista porque
problematiza como essa realidade (material, diferencial, intensiva etc) funciona, e não
o que é. Maquínico porque atribui à tecno-esfera uma realidade própria, imanente às
outras e constitutiva de um modo de funcionamento antes citado, e digna de formar
parte privilegiada de um metamodelo da realidade.
4. A Esquizoanálise é um vastíssimo e interminável estudo acerca de como os processos
de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, imanentes à realidade
antes definida, interrelacionam-se para gerá-la inovadoramente, para repeti-la ou para
destruí-la em todos seus campos, potências, forças, estratos, territórios, códigos,

104
sobrecódigos, axiomáticas etc. Tais estudos são imanentes aos atos e ações
revolucionárias e inventivas, que os exigem para assim poder "desmontar" o que inibe,
distorce ou impede a produção, escapar desses limites e deflagrar o novo a serviço da
diversidade infinita da Vida, contra toda forma de exploração, dominação e
mistificação.
5. Os livros que compõem a obra esquizoanalítica passam dos quarenta volumes, sem
contar numerosos artigos e até gravações fonomagnéticas, vídeos etc. Seus autores
insistem que esse conjunto pode ser percorrido na ordem e na direção que cada leitor
escolher, configurando sua cartografia singular e irrepetivel. Respeitando essa
recomendação, consideramos que os tomos do livro "Capitalismo e Esquizofrenia"
são, dentro da multiplicidade que a obra constitui, algo como um conglomerado
principal do qual, ou bem se parte, ou bem se deve fazer uma passagem preferencial.
Temos essa convicção não apenas porque se trata de duas exposições especialmente
panorâmicas e abrangentes, mas também porque, se como Deleuze e Guattari afirmam
que "uma coisa é louvar a multiplicidade, outra coisa é fazê-la", acreditamos que esse
escrito é o mais bem sucedido nesse sentido. Por outra parte, segundo nossa "paixão"
própria, acreditamos que é nesses livros onde fica mais enfática e indissoluvelmente
imanente a vertente política da Esquizoanálise: a revolução molecular.
6. No "Anti-édipo", que nos permitimos denominar a primeira dessas topologias e
processualísticas da realidade:
a) Os campos da mesma são as superfícies de produção, registro-controle e consumo,
consumação.
b) Seus "povoadores" são as máqu inas desejantes (elementos intensivos que se
autoproduzem, s.e diferenciam e se acoplam incessante e comutativamente em
máquina-fonte e máquina-órgão, segundo síntese: conectivas de produção (superfície
da produção), disjuntivas inclusas e exclusas (superfície de registro-controle) e de
conjunção (superfície de consumo-consumação). Em cada superfície, a energia que
anima os processos se denomina respectivamente libido, numen e voluptas. Como as
superfícies são imanentes entre si, cada uma delas funciona em uma tônica molar e em
uma molecular, simultaneamente.
c) A "entidade" típica da superfície da produção é o Corpo sem Órgãos (ao mesmo tempo
continente virtual de todas as potências produtivas e grau zero de intensidade sobre o

105
qual se montam e se acoplam as máquinas desejantes). Recordamos que a idéia de
superfície em esquizoanálise é vital para a proposta de tratar a realidade como
conjuntos difusos de diferenças, fazendo mostrar-se e funcionar todas as
singularidades de sentido e de devir num mesmo plano. Essas diferenças, que
implicam novidades absolutas de individuação por hecceidade ou de atualização do
virtual, são negligenciadas pelo pensamento e a praxe da representação. Ou bem são
excluídas e colocadas na obscuridade do indefinido, indeterminado e indecidível, ou
bem são declaradas semsentidos, "nadas" ou vazios, entendidos como faltas. A
esquizonálise não espera que essas diferenças adquiram sentido ou sejam atualizadas
por nenhum fundamento residente nas alturas transcendentes, nem nas profundezas
românticas, nem nas estruturas "estruturantes".
d) A "entidade" típica da superfície de registro-controle é o Corpo Cheio (que se pseudo
apropria de todas as potências produtivas e as captura, efetua, inibe ou acelera ao
infinito segundo a complexão do modo de produção, da formação de soberania e do
sistema da representação histórica de que se trate. A superfície de registro-controle
tem como operadores característicos da sua função normatizante ou legalizadora a
nível do sistema de representação os códigos, sobrecódigos e axiomáticas.
e) A superfície do consumo-consumação tem a seu cargo tanto o acabamento dos
produtos como seu consumo, ambos modulados por determinações do Corpo Cheio
em pauta.
7. O interjogo dos processos de produção de produção, de reprodução e de antiprodução,
em e entre cada superfície, anima os movimentos de estratificação e desestratificação,
de territorialização e desterritorialização, de codificação e descodificação, de
sobrecodificação e des-sobrecodificação, de axiomatização e desaxiomatização, as
segmentações, as linhas de fuga, as emissões de subpartículas, quantas, vibrações e
fluxos cuja distribuição e dinâmica determina a "natureza" e os destinos variáveis do
interjogo dos processos. Como sabemos, a Esquizoanálise não separa nessas
realidades as "naturezas" e denominações das diferentes entidades e movimentos da
realidade. Desse modo atribui aos movimentos "objetivos" as características e nomes
de uma Clínica Universal que redefine e emprega para isso os nomes da nosologia
psicopatológica.
8. No limite da realidade com o "fora" absoluto, os processos podem se dirigir para a

106
esquizofrenia, com predomínio da produção de antiprodução, ou para uma direção
esquizonte, ou seja, para a Nova Terra ou a Utopia Ativa da revolução molecular.
Perante essas tendências, o conjunto da realidade pode regredir para a reprodução, em
qualquer ou em todos os seus âmbitos, de configurações melancólicas, maníacas,
paranóicas, perversas, neuróticas ou "normativizadas". Nesse sentido, a
Esquizoanálise entende a loucura e o delírio como reveladores, não tanto de conflitos
familiares ou edipianos, mas sim como cartografias históricas universais.
9. No segundo volume de "Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia ", a topologia e a
dinâmica da realidade está composta não pelas três superfícies, mas por inúmeras
"plataformas" intensivas que se conectam através de fluxos de intensidades em
inúmeras direções. Tanto os capítulos do livro como os conjuntos de realidades têm
essa mesma configuração e funcionamento. Cada Platô é uma multiplicidade (ou seja,
seus elementos e movimentos não correspondem a categorias do Uno nem do
Múltiplo). As multiplicidades podem serde diversas índoles (um livro mesmo pode ser
uma muItiplicidade), mas o exemplo que Deleuze e Guattari preferem é o de um
vegetal do tipo dos tubérculos denominado rizoma. Uma multiplicidade é um conjunto
que cresce por divisões não dicotômicas e que não se divide sem mudarde "natureza".
O rizoma, por exemplo, não tem um centro ou tronco a partir do qual se desenvolve,
seus tubérculos estão disseminados e intrincados com suas prolongações, talos e
raizinhas. Seus limites externos não são passíveis de serem circunscritos, suas células
não têm membranas e seus processos metabólicos apresentam causas que se
expressam em efeitos à distância sem que seja possível determinar os mecanismos e
veículos de transmissão. O rizoma serve como modelo contraposto à arvore (com
raízes, tronco, folhagem), e os autores mostram como esses modelos penneiam toda a
realidade entendida como molecular ou como molar.
10. Cada capítulo-platô de "Mil Platôs" contêm parcialmente os outros, e o leitor pode
passar de um para qualquer outro, segundo a trajetória da cartografia escolhida, ou
melhor dito, inventada por cada viajante. Não obstante, cada platô tem uma certa
ênfase em algum tema em especial. Listaremos e caracterizaremos muito sucintamente
os mais importantes:
a) Os rizomas de todo tipo e o livro como um deles.
b) A partir da Esquizoanálise do "Homem dos Lobos" (célebre caso clínico de Sigmund

107
Freud) reformula-se a produção de subjetividade e subjetivação, entendida como
multiplicidades das quais os sujeitos, seja o da psicologia ou o da psicanálise, são
apenas "peças" visíveis. O inconsciente é reafirmado como sendo um "conjunto n" de
elementos cuja nota em comum é não ter nada em comum " (ou seja, nada em comum
entre si segundo a especificidade de uma disciplina, por exemplo os componentes
estruturais edipianos).
c) Escrita como a crônica de uma conferência proferida por um extravagante professor,
surge uma cartografia de formidável abrangência, como uma das versões da imanência
entre as distintas regiões da realidade. Essa crônica mostra a distinção e
interpenetração entre as distintas esferas segundo a divisão molar das mesmas: geo-
esfera (físico-química), bio-esfera (vegetal, animal), noosfera ("humana", social,
subjetiva, "comunicacional", política, econômica etc) e tecno-esfera (científico-
técnica). Destaca-se a coexistência entre todas elas e a inconveniência de se
estabelecer uma ordem hierárquica entre as mesmas. Trabalha-se especialmente a geo
e a biosfera e os processos de passagem da uma a outra. Mas, por outra parte, estuda-
se a imanência entre essas esferas e a realidade molecular intensiva que Ihes é
imanente. Descrevem-se as formações molares e moleculares parcialmente próprias de
cada esfera, responsáveis tanto pela estabilidade como pela mutação, tais como
estratos, paraestratos, subestratos e metaestratos. Define-se, por exemplo, os cristais
como focos de passagem do inorgânico ao orgânico. Expõe-se uma notável concepção
da produção das espécies, baseando-se numa célebre polêmica entre os biólogos
Geoffrey de Saint Hillaire e Cuvier. Nessa discussão, o primeiro defende a idéia de
um mundo biológico composto por um "animal único" que, por dobras e desdobras
moleculares e redistribuição de órgãos, compõe a diversidade molar das espécies.
Hillaire abre, assim, a perspectiva da constante produção de interespécies simbióticas
"anômalas" e da "involução criativa", segundo a qual traços e funções aparentemente
menos desenvolvidas se compõem para dar organismos "mais competentes para
sobreviver". Cuvier opõe a essa idéia a de uma seqüência evolutiva na qual cada
espécie é uma transformação estanque em relação às outras. Destaca-se a contribuição
do "papel" das "populações" micro e macroscopicamente consideradas e da relação
das mesmas com o meios (externos e internos) que elas contêm e que as contêm na
determinação das transformações específicas. Igualmente se privilegia a função
determinante das "manadas" sobre as características de cada um de seus exemplares.
108
Mostra-se como um elemento trazido de um campo ou "nível" para outro detennina a
conversão dos conjuntos de estratos em territórios e como os territórios constituem
seus animais de território, e não o inverso. Destaca-se como recursos e traços
morfológicos e funcionais elementares e de reprodução ou de sobrevivência dos
espécimes (cores, cantos, cerimoniais) deslocamse e transformam-se em recursos
expressivos (como os ritornelos) que acrescentam às suas diversas finalidades a de
marcar o território como maneira de conjurar o caos que sempre ameaça a constituição
meta-estável da suas realidades. Essas produções preparam o tratamento que novos
platôs (e também capítulos· do livro) vão dar à "natureza" e à função da linguagem e
das semióticas não lingüísticas, aos regimes sociais de signos.
d) O capítulo-platô destinado à crítica dos postulados da lingüística constitui um
profundo questionamento à primazia outorgada pelo Ocidente à linguagem falada e
escrita e às disciplinas que dela tratam. Deleuze e Guattari se baseiam na confrontação
entre autores como Saussure e seus seguidores, entre eles Martinet, por uma lado, e
Hjemlev, Bathkine, Labove, Ducrot e Searle por outro. Mostra como, a partir dos
ritornelos etológicos, são constituídos sistemas de expressão semióticos de enorme
variedade, entre os quais a linguagem, ao que denominam semiologia do significante,
que é apenas um a mais e não deve atribuir-se-lhe nenhuma eminência evolutiva.
Mostra como a Lingüística científica (especialmente a de inspiração estruturalista)
privilegia o tratamento da sintaxe (relações gramaticais entre signos) e a semântica
(relações entre signos e referentes ou significados), procurando nessas áreas as
constantes da linguagem que explicariam todas as suas variáveis expressivas. De
acordo com essa leitura, a pragmática (que é o estudo do emprego concreto da língua
em circunstâncias particulares) se mostra insuficiente. Assim, essa leitura atribui o
funcionamento da língua a instâncias exteriores à linguagem, buscando sua solução
nas contribuições de outras disciplinas (psicolingüística, sociolingüística etc). Essa
concepção da lingüística atribui à linguagem funções de informação, comunicação,
intercâmbio etc. Deleuze e Guattari mostram que toda linguagem se origina no
discurso indireto, e dizer se compõe do que se diz acerca do que foi ouvido, e ainda
que, em última instância, a principal função da linguagem é transmitir palavras de
ordem, consignas, mandatos. Mas essa transmissão, devido ao caráter performativo e
ilocutório da linguagem, realiza a ordem no mesmo ato de transmiti-la, como
acontece, por exemplo, com a sentença de um juiz. A sociedade inclui em si
109
montagens que são agenciamentos coletivos de enunciação que emitem essas ordens
para ser enunciadas pelos sujeitos de enunciados (os falantes), que assim as obedecem
de jure e de fato. A Esquizoanálise postula, assim, que a pragmática é a abordagem
essencial da Lingüística, e que as chamadas constantes sintáxicas e semânticas são
variáveis a serviço circunstancial das funções pragmáticas. Destaca que a Lingüística
convencional e seu objeto, a linguagem, têm por finalidade normatizar, qualificando a
correção gramatical ou a a-gramatical idade da imensa diversidade das línguas, que
sempre são invenções pragmáticas. Os autores distinguem, assim, línguas maiores ou
de Estado, e línguas menores, que são as criadas pelas minorias singulares.
Não se trata exatamente das lutas entre línguas "oficiais" e dialetos, mas da
capacidade das minorias e dos literatos de colocar em estado de variação contínua sua
língua "natal" ou outra adquirida, de maneira a escapar por linhas de fuga expressivas
aos mandatos dos agenciamentos coletivos de enunciação e regulação dos poderes da
gramatical idade. Por outra parte, Deleuze e Guattari insistem na origem imperial da
linguagem falada e escrita e reivindicam a liberdade e a valorização de todas as
semióticas não significantes (corporais, dramáticas, pictóricas etc), revalorização essa
que culmina na profunda importância atribuída pelos autores à música como semiótica
expressiva, assim como modelo teórico para analisar as semióticas e semiologias em
geral.
e) Um importante capítulo-platô refere-se à segmentação do socius e à praxe
micropolítica que a Esquizoanálise pode aportar nesse campo. Todas as sociedades,
seus agentes, grupos, organizações etc (como se antecipava na teorização da
Superfície de Registro) estão divididas e ordenadas segundo várias modalidades de
delimitação. Tais formas de segmentação se resumem a três: as binárias, as circulares
e as lineares. Exemplo das primeiras são as duplas homem/mulher, humano/animal,
menores/adultos etc. Exemplo das segundas são os espaços locais, os provinciais, os
nacionais, os regionais, a sociedade civil, o Estado etc, que se costuma pensar como
círculos incluídos em outros, com seus respectivos centros subordinados entre si. A
terceira modalidade é a linear, cujo exemplo poderia ser todo tipo de seqüências,
desde as temporais etárias às sucessões de pertencimento organizacional etc, as linhas
de montagem etc. Todos esses segmentos podem ser, segundo o complexo histórico
onde são encontrados, duros ou moles, rígidos ou flexíveis. Os segmentos binários são
característicos das formações primitivas territoriais por serem flexíveis, tendentes à
110
fusão, facilmente comunicáveis ainda entre os segmentos mais heterogêneos. Já nas
sociedades modernas, são duramente binarizados, embora opcionais, e
homogeneizados por uma equivalência mercantil generalizada. O segmento circular
existe nas sociedades primitivas, mas não unificado, hierarquizado, centralizado,
concêntrico, e os centros que existem não ressoam entre si. Nas sociedades modernas,
esta segmentação é unificada, hierarquizada, centralizada, concêntrica e todos os
centros ressoam entre sim, sendo o Estado sua "caixa de ressonância" principal. O
segmento de tipo linear e flexível nas sociedades primitivas e rígido nas modernas.
Mas em todas as sociedades, entre os termos formalmente segmentados, acontecem e
devém incessantemente processos moleculares produtivo-desejantes que tendem às
micro e (nos momentos propícios) às macromudanças extraordinárias. Fluxos,
subpartículas, partículas, quantas, linhas abstratas que não determinam contornos,
linhas de fuga escapam de todas as unidades de segmentação, apesar de que devem
evitar os buracos negros de absorção e recuperação, os muros de compactação com os
que o registro-controle tende a neutralizá-los. Igualmente existe o perigo de que, por
exemplo, as linhas de fuga se transformem em linhas de escapismo e de
marginalidade, ou ainda de pura abolição ou morte.

f) Como veremos um pouco mais adiante, as sociedades primitivas são atualizações de


Máquinas Abstratas de Guerra (que não têm a guerra por finalidade) e que não
precisam do dispositivo Estado para realizar-se. Nas sociedades modernas, a Máquina
Abstrata do Capitalismo se realiza através do Estado, que se apropria da Máquina de
Guerra primitiva para colocá-la a seu serviço, através de Forças Armadas profissionais
visando a guerra (entre outras funções) como objetivo em si mesmo.

g) Neste platô, fica especialmente claro que haveria macro e micro: economia,
sociologia, antropologia, semiótica etc, destacando-se a macro e micro-história e a
macro e micropolítica. Neste capítulo, as tarefas da Esquizoanálise são caracterizadas
como: traçar planos (conjuntos cartográficos e não cópias), traçar diagramas
(caracterizar jogos de forças ainda não vetorizadas e de materiais ainda não formados)
e dizer que não são programas, diagnosticar os tipos de segmentação e propiciar as
linhas de fuga, as emissões quânticas, a conexão de fluxos etc.

h) Devido aos limites deste apêndice, apenas condensaremos uma quantidade de outros
capítulos-cartografias, esperando poder desenvolvê-los mais adequadamente em
111
futuras publicações. Por exemplo, em "Como se fazer um Corpo Sem Órgãos", os
autores voltam a definir essa "entidade":

i. Como sinônimo de plano de consistência da montagem de dispositivos.


ii. Como campo de intensidade sinônimo do inconsciente em Esquizoanálise,
recorrido por intensidades que constituem órgãos intensivos pré-biológicos, pré-
subjetivos e pré-sociais que preparam as individuações por hecceidade, os devires-
acontecimentos. Esses corpos singulares não se confundem com o corpo erógeno da
Psicanálise, nem com o esquema corporal neuropsicológico, nem com o corpo vivido
dos fenomenólogos.
iii Como grau zero das intensidades e como limite de todo corpo (social, subjetivo etc).
Num sentido biológico, trata-se do plano de composição virtual de todos os seres
vivos e constitui um rizoma no qual todas as conexões transversais entre espécies são
viáveis e não vigoram as diferenças evolutivas incompatíveis, de maneira que se
podem produzir novas convivências além ou aquém das possíveis.
iv. No campo social, o CsO é também o limite de toda formação social, e consiste num
plano de imanência (planômeno) no qual podem ser gestadas as mais extraordinárias
organizações sociais (ecúmenos), dependendo do grau de afin idade que exista entre o
corpo social vigente e o CsO que lhe e imanente.
Tentaremos concluir provisoriamente, definindo como se compõem e
funcionam os dispositivos e agenciamentos e as máquinas abstratas. Se voltamos a
uma distinção essencial dentro da teoria esquizoanalítica, a de caos, caosmos e
cosmos, procuraremos caracterizar os conceitos de dispositivo ou agenciamento e o de
máquinas abstratas e concretas, relacionando-as com a tríade antes mencionada.
Acreditamos poder sintetizar esses complexos conceitos dizendo que, no
campo do caosmos, podem-se instalar dois tipos de máquinas que processam a
passagem de caos a cosmos, extraindo componentes heterogêneos desses domínios e
operando conexões insólitas que podem gerar o novo revolucionário e inventivo.
Trata-se das máquinas abstratas e das concretas.
As máquinas concretas são os dispositivos agenciamentos. As máquinas
abstratas podem ser entendidas num sentido propriamente dito ou apresentam os dois
tipos: Máquinas de Guerra e Máquina de Estado.
Um dispositivo agenciamento ou máquina concreta é uma rede múltipla e
112
heterogênea de conexões, montada sobre um plano de consistência. Tal plano é o que
"com pactua" os componentes do dispositivo e confere ao mesmo persistência,
insistência etc. O dispositivo conecta e faz funcionar fragmentos tomados dos estratos
(biológicos) chamados halo-
plásticos, que são, por assim dizer, os que são capazes de efetuar translações que
mudam sua "natureza". Mas o dispositivo extrai dos meios onde estão submersos os
organismos outros fragmentos, montando-os com esses dois tipos de componentes
territórios. O território é uma composição que excede na sua essência ao organismo e
ao meio e às suas relações, mas que permanece ligado a eles. Os componentes
decodificados de estratos (órgãos funções) assim como os dos meios (por exemplo,
ritmos ou compassos que afetam os meios) tornam-se assim "propriedades" do
dispositivo. Com eles o dispositivo constrói seus aspetos de conteúdo e de expressão.
Mas esses dois aspectos já adquirem uma condição diferencial e nova, tornam-se
respectivamente sistemas semióticos ou de signos e sistemas de ações e paixões ou
pragmáticos. Por isso, todo agenciamento é, por um lado, agenciamento de
enunciação, e pelo outro, de conteúdo. O que se faz é o que se diz. Mas neste
momento, os enunciados ou expressões exprimem transformações incorporais ou
sentidos que se atribuem aos conteúdos-corpos. Aqui nos tem parecido viável uma
formulação nossa que é a seguinte: se, segundo o que acabamos de expor, o
dispositivo, por um aspecto, continua ligado aos estratos e aos territórios (que são
componentes do cosmos), por outro lado, continua também permeável às
peculiaridades do caos, e é por isso que o consideramos uma "entidade" típica do
caosmos. O caos continua operando sobre ele, decodificando os enunciados e
desterritorializando os conteúdos. Tal potência é a que consegue incidir para voltar a
fazer indistintos expressões e conteúdos e introduzir neles matérias não formadas,
energias inespecíficas, forças não vetorizadas. Esse movimento leva o dispositivo a
seu máximo de decodificação, desestratificação e desterritorialização que é o que
constitui a Máquina Abstrata que o dispositivo efetua, sendo que, por outro lado, essa
Máquina Abstrata pode ser considerada também como um dos aspectos do dispositivo.
Mas uma Máquina Abstrata que, em um sentido, é o quarto aspecto do
dispositivo, seu máximo de decodificação e de desterritorialização, caracteriza-se por
ignorar as formas e as substâncias. Essa Máquina se compõe de matérias não formadas
e de funções não formais filum e diagrama). A matéria se torna matéria movimento e
113
as funções não formadas (o diagrama) são uma expressividade movimento. As
máquinas abstratas não são abstratas no sentido das idéias platônicas transcendentes,
universais e eternas, nem têm o significado lógico da abstração como unificação
formalizada de atributos ou caracteres comuns induzidos de um conjunto de
indivíduos. As máquinas abstratas são reais, embora não sejam ideais nem concretas, e
atuais, embora não sejam efetuadas. São singulares e criativas, sendo que para se
concretizarem e se efetuarem, elas precisam de conformar-se em um plano de
consistência animado de uma variação intensiva contínua, a cujo nível conteúdo e
expressão se tornam indiscerníveis. Mas essa máquina abstrata pura pode modular o
agenciamento no sentido de uma máquina de guerra metamórfica (multiplicidade
emissora de linhas de fuga e de vida, singularidades, quantas etc). Essa máquina de
guerra, que como modalidade de existência e organização era típica dos nômades,
pode abrir o dispositivo a outras máquinas criativas de música, escritura, amor etc.
Mas a máquina abstrata pode se transformar em máquina de morte ou de
destruição, tornar-se máquina de Estado que captura a de Guerra e toma a guerra por
objeto, induzindo o dispositivo a perder toda sua capacidade de metamorfose. Em
nosso entender, é no seio da imprevisível e multipolar combinatória de caos, caosmos,
cosmos com produção, reprodução e antiprodução que as Máquinas Abstratas e seus
dispositivos efetuadores se montam, e seu valor criativo ou letal se decide.

114

Você também pode gostar