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A VERSÃO KING JAMES DA BÍBLIA

103 GAUDIUM SCIENDI, Nº 3, JANEIRO 2012


Apresentação

Manuel José do Carmo Ferreira


Universidade de Lisboa
Sociedade Científica

Desenrola-se a exposição da Senhora Professora Maria Laura Bettencourt Pires,


consagrada à versão King James da Bíblia, com que abre o presente seminário
interdisciplinar sobre A Transversalidade Linguístico-Cultural da Bíblia, em dois
momentos distintos, se bem que articulados: num primeiro procura-se contextualizar
os estudos bíblicos no plano de uma hermenêutica histórica segundo linhas
conflituantes na interpretação, e até mesmo no estabelecimento do próprio cânone,
facto que obriga a ter sempre no horizonte as orientações dominantes na esfera
cultural que é a nossa, e ainda atender à produtividade dos modos de recepção na
configuração específica de experiências civilizacionais; num segundo momento, traça-
se como que a pré-história da versão King James, um marco de referência até à
actualidade, quer na vivência religiosa da comunidade anglo-saxónica e suas
ramificações, quer nas criações da literatura e da arte nos países de expressão inglesa,
quer na própria cristalização do património linguístico inglês. Neste capítulo é
igualmente referida a apropriação da Bíblia como instrumento de poder, o que
converte a decisão de traduzi-la, no tempo e no modo de o fazer, num acto político.

A reconstituição da génese próxima e a descrição do investimento científico-


teológico feito na tradução prolongam-se numa reflexão sobre a presença matricial da
versão autorizada na história da língua inglesa, sobre a sua função modelar na prosa e
na poesia, sobre a beleza intemporal do texto estabelecido.

Fica-nos a convicção de que o texto bíblico cresce com a sucessiva emergência


de novas versões que nos restituem a sua infinita abertura de um dizer sempre novo,
que nos convocam de um modo sempre inesperado a ouvir uma Palavra que faz novas
todas as coisas.

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A Versão King James da Bíblia
Maria Laura Bettencourt Pires
Universidade Católica
Sociedade Científica

A Versão King James da Bíblia, como é do conhe cimento geral, é


considera da a mais famosa e influente vers ão inglesa da Sagrada Es critur a e
conseq uentemen te, muito sobre ela se pod eria dizer. Porém - não sendo eu
uma teóloga crede nciada nem espe cialista re co nhecida do tema em geral
como os outros co nferen cistas , nem s equer da tam bém den ominada
Authorized Version - irei limitar-me a ref erir a impor tân cia dos Estu do s
Bíblicos na n ossa a ctualidade tão con turb a da e a inegável contrib uição da
versão King James para a litera tura , a cul tur a, a arte e a língua dos países de
expressão inglesa e também par a o res to do mundo.

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Trata ndo-se de um tema tã o estudad o ao longo d o temp o, e
sobretudo dura nte o a no de 2 01 1, quan do s e celebro u o 4 o cen tenário da s ua
primeira e dição em 16 11 , sei também q ue vou cer tamente repetir algo q ue j á
foi dito pelos grandes exegetas e eruditos estudioso s da Bíblia assim como
por historiadores e espe cialistas das ciências da linguagem que,
recentemen te, cruzar am as suas investigaçõ es.

Quanto à es tru tura da minha comu nica ção , quero , obviamente , com o
membro da So ciedade Científica, começar por felicitar a Direcção p or es ta
iniciativa e, com o orga nizadora do Se minário, agrade cer a todos os
confere ncistas que me deram a ho nra de a ceitar os meus co nvites par a no s
virem falar nas próximas sessões deste Seminário e a todos os presentes p or
nos a compan harem nes tas j ornada s de es tudo. Ao pr ocurar colab orado res
para este Seminário tive em linha de co nta a von tade de represen tar a
diversidade de pe rs pectivas formada s po r d iferentes mod os de in terpre tar a
Sagrada Es critur a, embora es teja cons cien te de que, a pesar disso , muitas
vozes nã o estão re presentadas. Ao co nvidar os conferen cistas , pedi -lhes par a
reflectirem sobre alguns dos fa ctores q ue po ssam ter contribuído par a formar
o seu interesse pela Bíblia e influenciado o seu modo de a interpre tar p ois

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sabemos que , q uand o Católicos, Protes tan tes e Jude us falam da Bíblia, a
vêem de forma diferen te já que o Cânon e da Es critura difere para cada
comunidade não a penas n o númer o e iden tidade dos Livros mas também na
ordem em q ue a parecem.

Esto u, obviamen te, também co nscien te de que a leitura da Bíblia é


uma tarefa que não tem fim, que se re nova e ref resca com cad a nova
comunidade de leitores q ue levantam q ue stões e ap resentam perspe ctivas
alimentadas pelas suas experiên cias. São múltiplas, por tan to , as pergun tas
que surgem a es te p ropó sito , e entre elas , d estaco as seguintes :

 O q ue é a Bíblia?
 Como influencia aq ueles que a conside ram como a norma
para a sua fé e prá tica de vida?
 Como podem os leitores actuais compreen de r a linguagem
dos a ntigos es critores?
 O q ue significa chamar à Bíblia “A Palavra do Senh or”?

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A propósito desta s interroga ções e d o pro cesso de interp reta ção , ou
exegese com o obje ctivo de explicar o texto, sa bemos q ue se trata de algo
que leva muito temp o para a tingir a maturidade mas podem os dizer que
começa com uma leitura cuidad osa e activa, que te nte comp reender o tempo ,
o lugar e o objectivo devido ao qual um livro tão espe cial como a Bíblia foi
escrito , quais as p rincipais preo cup açõe s do s autores e d as comu nidades que
lhe deram forma e os significados d os termos característi cos que
encon tramos no texto p ois todo o pr ocess o de leitura se legitima a partir do
seu ob jecto.

Sabemos também q ue filtramos a quilo que ouvimos e lemos através


da nossa próp ria experiência e q ue, por iss o, a si tuação de um leitor, ou de
um intérpre te modern o, de uma o bra tão a ntiga, como a Bíblia, é complexa
pois o lugar ocupad o pelo leitor na história, na cul tura e na socieda de
influencia inevitavelmente aquilo que ele apreende do tex to e as questões
que lhe p arecem impor tan tes levan tar s obr e a nar rativa e o se u con texto. É
evidente que comen tários e outras ferr amentas de investigação , com o
dicionários da Bíblia, podem aj udar ne ste pr ocesso de leitura e cada um deles
representa o trabalho de leitores habilitad os que p rocuram inte rpreta r os
materiais bíblicos assim como todos os recu rsos que reflectem os ambientes
culturais dos au tores.

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A primeira dimensão da diversidade de que um intérprete deve tomar
cons ciência é a dos próprio s materiais bíblicos. Escritos há mais de um
milénio e coligidos ainda há mais tempo e sendo originários de pe ssoas qu e
viveram em sociedades de diversas dimen sões e formas que vão de pequenas
comunidades tribais a cidades cosmop olitas , os ma teriais bíblicos reflectem
amplamente os diferen tes p ressupo stos s obre f ormas s ociais e valores,
teologia e pr ática religiosa. É impor tan te re conhe cer o con texto espe cífico e ,
tanto q uan to possível, as pressup osições qu e esse con texto transmitia.

Além da referida variedade de contex tos históricos e so ciais dos


materiais, na Bíblia há também uma diversidade de formas de literatura qu e
vai das narrativas à poesia, aos textos legais, epistolografia, can ções e
provérbios , en tre outr os. É importante ta mbém recon hecer que nenhum
intérprete modern o chega directamente à Bíblia pois é herdeiro de leituras
con ceptualizadas e in fluenciad o po r sé culos de interp reta ção , cujos
resultados nã o se po dem pra ticamen te dis tin guir do próp rio texto.

Após esta breve in trod uçã o, a ntes de e ntrar propriamente no tema d a


minha palestra , como é ha bitual nes tes cas os, v ou fa zer algumas re ferências
ao títul o do Seminário até p or ter sido in ter pelada n esse sen tido p or um d os
participa ntes. Designámos este ciclo de pal estras como "Seminário" por que
pretendemos que todos o s presen tes possa m participar n os deba tes no fina l
das sessões e se sintam com pleno direito de o fazer; o adje ctivo

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"Interdis ciplinar" indi ca, evidentemen te, qu e preten demos q ue haja olhares
cruza dos e diferente s pon tos de vista nas no ssas reflexões sobre a Bíblia pois
é evidente que as várias abordagens dão resultados ou con clusões distintas
que enrique cem a nossa visão e nos levam a re cusar a ideia de um a
objectividade pura e a estar abertos à possibilidade de leituras
con temporâne as que têm em linha de conta a polifonia dos pon tos de vista
acumulados na obr a p ois a narra tiva nã o é o resultad o de ú nico olhar mas da
acumulaçã o de olhares diversos e por vezes discorda ntes. Quan to à no ção de
"Tra nsversalidade", cu ja etimologia latina é transversus, e que é descrita nos
dicionários como "qualidade do que p assa através ", "linha tra nsversal q ue
atravessa , que se esten de através " e algo que "é interse ccional a um sistema
de outras linhas", q ueremos com isso dize r que a Bíblia "tem impacto, diz
respeito e é comum", tanto de um ponto de vista da sua influência religiosa
como também linguística e civilizacional, p ois tem um papel cultural comum -
que já foi até designado como "atmo sférico " por estar no ar que respiramos
mesmo que não ten hamos consciên cia da s ua presença ou po der - tan to n a
Cristandade como n o Judaísmo.

Quanto ao último vo cábulo do n osso título , a Bíblia, que é


considera da como um d os mais fabulosos tes ouros da história da humanidad e
é também, como sabemos , um d os mais difíceis de interpre tar , send o mesmo
motivo de co nflitos pois todas as s uas in ter preta ções re flectem perspe ctivas
apaixonadas q ue afectam não apenas a religião mas tam bém a política, a ar te
e até a ciên cia. Por o utr o lado , sen do o principal livro a dop tado pelas
religiões cristãs e judaica, são tan tos os es tudos fei tos e as o bras publicad as
ao longo do tempo , desde a Antiguidade, q ue apenas poderei fazer -lhe aq ui
umas singelas referên cias genéri cas.

Seguindo a f orma tradicion al d e ab ordar um assun to , po demo s


começar por indagar a origem etimológica dos vocá bulos que us amos e
verificamos assim que biblia era o termo grego para livros. Pensa -se q ue
deriva da cidade Byblos, de onde eram exporta das grandes quan tidades de
papiros. Bibl os significava "papel", "livro" e "papiro ". Sendo este o materia l
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de escrita pr oduzid o a partir de tiras s obr epostas e cruzad as do ca ule da
planta Papyrus é a origem da nossa palavr a papel. Pergaminho é um o utr o
tipo de supor te de material de escrita pre pa rado a partir da pele de animais,
que foi desenvolvido por uma biblioteca situada na cidade de Pergamum, na
Ásia Menor. Por seu lado , Escritura , q ue e ra o termo mais us ado no Nov o
Testamen to , corres ponde ao vo cábulo grego para es crita.

Papiro

São inúmeros os eru ditos que se têm debru çado so bre aquilo que já
foi designado como "o mistério da Bíblia" e pode dizer -se que - além do
con teúdo e de se r a Palavra de Deus - ele d eriva do seu estilo inimitável, da
beleza do som dos te rmos usad os e do aparato ora tó rio que tan to
impressionam os leitores assim como do incon testável encan to da his tóri a
narrada. Com efeito, as narra tivas bíblicas - que foram duran te muito temp o
aperfeiçoa das oralmen te an tes de serem re d igidas - obedecem a sub tis regras

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de composiçã o e, por de trás das histórias aparentemen te ingénuas,
escondem -se a s estra tégias perspica zes d os narrad ores. Para jus tificar o
interesse e a admiração causad os pela Bíblia, basta pensarmos q ue, embor a
os materiais em que as Es critu ras origin ais foram escri tas n ã o te nham
resistido ao tempo - devido a o uso co nstan te, aos climas húmidos , às guerras
e ao fogo - as p alavras sagradas , p or exe mplo, dos 10 Man damento s (no
Êxodo 34 :28 e n o Deu teron ómio 10: 4) têm d ado forma ao mun do e ao sistema
ético desde há 3.50 0 a nos.

Pode ver-se a Bíblia como uma colecçã o de tex tos "can ónicos"
inúmeras vezes referidos n ou tras litera tura s e cujos valo res (tal como têm
sido interp retad os p or indivíduos ou grupos poderos os o u domina ntes) deram
forma tan to a filoso fias como a sis tem as lega is. Para consideramos a
influência da Bíblia na arte e na litera tura , basta pensa rmos nos es cultores
de Chartres , em Miguel Ângelo ou n os mosa icos de Ravena o u n os n omes d e
Montaigne, G oethe , Nietzsche o u Dante.

Ao debruçarmo-n os mais especificamen te sob re as tradu ções e as


versões con temporâ neas da Bíblia, vemos que, ao longo dos séculos, os
sacerdo tes e os erudi tos assumiram o pape l de "intérprete s" po r pensare m
que os leigos eram in capazes de compreen der a Palavra d o Senh or , ten do

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vindo a ser feitas vá rias vers ões des tinadas à Igreja ante s de se co nsiderar
que era importante que a Bíblia fosse tra duz ida em verná culo.

Por seu lado, a história das tradu ções da Bíblia para língua inglesa é
muito longa e complexa e, por isso, apen as a poderei referir brev emente
aqui. Segundo a tradiçã o, o his toriad or conhecid o como Ve nerável Bede
estava a fazer a tr adu ção da Bíblia para Anglo -Saxão q uand o morreu em 73 5 e
algumas partes da S agrada Escritura , tal co mo os Dez Mandamen tos , tre ch os
do Êx odo ( 21- 23) e dos A ctos dos Ap óstolos (15) e alguns Salmos te riam sido
tradu zidas pelo rei Alfred, the Great ( 84 9 - 901) . Mais tarde , no sé culo X ,
Aelfric (955- 102 0), o Abade d o mosteiro de Eynsham , per to de Oxford ,
também tra duziu par a Anglo-S axónico ex cer tos d o An tigo Tes tamento assim
como os Evangelhos e alguns livros do Novo Testamen to. Em cerca de 13 00
foram também tra duzid os em Middle English fragmentos dos S almos e do
Novo Tes tamento. Es tas tra duções f oram as precurs oras das f amo sas vers ões
que, segun do a tradi ção , estã o asso ciadas com John Wy cliffe (13 20 - 13 84) e
que se baseavam na Vulgata de S. Jerónimo (346 -42 0) do V século d. C., que
era a versão latina da Bíblia ofi cialmente pr omulgada pela Igreja Católica ao
longo da Idade Mé dia e que tinha sido enco mendada pelo Papa Dâmaso I em
382.

"Wycliffe Reading his Transla tion of the New Tes tament"

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É evidente que vários aco nte cimentos impo rtan tes q ue o corre ram na
Euro pa tiveram também um impacto significativo na histó ria da Bíblia inglesa.
Antes de mais há que referir o movimento cultu ral do Renas cimento , que
trouxe consigo um interesse renova do pelo estudo d o Hebreu e do Grego, a s
línguas originais da Bíblia e, em segundo lugar, a invenção de Joha nne s
Gutenberg de uma tipogra fia com uma imp ressora com cara cteres de me tal
móveis e a sua decisão, em 1455 , de que o 1º texto a ser nela impresso seria
a Bíblia. Esta in ovaçã o veio pr ovoca r uma verdadeira expansã o n o ace sso à
Sagrada Escri tura , que chego u a Inglate rra quando a p rimeira impressora de
Bíblias ali se estabeleceu em 147 6. O 3º a con tecimento a referir é ,
obviamente, a Refo rma Prote stan te , iniciad a, como é s abido , pelo facto de
Luter o ter a fixado as s uas 93 teses na por ta da igreja de Wittenberg em 15 17.

A combinaçã o destas ocorrên cias deu um impulso considerável à


tradu ção da Bíblia em várias línguas mo dernas. L uter o traduziu o Nov o
Testamen to do Greg o para o Alemão em 152 2 e William Tyndale traduziu -o do
Grego para Inglês, em 1 525.

Bíblia de Gu tenberg

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Tyndale, que tinha fugido para Anvers , f oi pr eso e execu tad o em 15 35
justamen te po r ter tra duzido a Bíblia em ver náculo. É, alias, ju sto referir q ue
quase to das as tra duções inglesas do sé culo seguinte se basear am no
trabalho de Ty ndale, in cluindo a King James Version de 1611. An tes da quela
que viria a ser o marco de referên cia na his tória das Bíblias inglesas de que
nos o cupamos hoje , ho uve, con tud o ou tras traduções como a de Cover dale de
153 5 e a versão geralmente den ominada Matthew’s Bible de 15 37. Ambas
estas versõe s ob tiveram a a uto rizaçã o real em 15 37. Seguiu -se , d ois an os
mais tarde, a Great Bible, assim chamada d evido às suas grandes dimensões ,
que era uma revisã o da Matthew ’s Bible feita por Cover dale, e que, por
decreto real de Henry VIII, devia ser lida em voz alta em todas as igrejas em
Inglaterra. Es ta versã o foi prepara da p or M yles Coverdale, po r or dem de Sir
Thomas Cromwell, o Secretário de Henry VIII e Vicar General. Em 153 8,
Cromwell deu directivas ao clero para q ue providencia ssem um grande
volume da Bíblia em Inglês, que deveria esta r num local conve niente na igreja
para q ue os par oquianos o pudessem ler co modamente. É também conhe cida
como: Cromwell Bible , por Thomas Cromwell ter ordenado a sua publica ção ;
Whitchurch's Bible devido ao nome do impr essor; Chained Bible, por ter de
estar aco rrentada para nã o ser roubad a da s igrejas e Cranmer's Bible, por
Thomas Cranmer ter es crito um prefá cio par a a segu nda e dição.

Duran te o reino de Elizabeth I foram produz idas mais duas Bíblia s em


Inglês, que eram respectivamen te: a Geneva Bible , assim designada por ter
sido publicada , em 1560 , em Genève, pro duzida por Pro testa ntes ingleses
auto-exilado s naquela cidade suí ça dura nte o reinado da rainha católica M ary
Tudor e que tinh a uma dedica tória a Elizab eth I e era muito po pular, tend o
sido a Bíblia usada por S hakespeare e , em 156 8, a Bishops’ Bible, (que teve
uma 2ª edição em 15 72) considera da uma melhor tradu ção do que a Grea t
Bible.

No fim do século XVI, os Protestante s ingleses tinham, por tanto, esta s


duas Bíblias que compe tiam pelo 1 º lugar e o problema s ó fico u resolvido , na
Conferência de Hampto n Court, em 160 4, qu ando o rei James I (que era James
VI da Escócia) , tend o reunido um grupo de bispos e puritanos , autorizou que
fosse feita uma nova tradu ção mas pr oibiu especificamente o u so de no tas

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marginais que comentassem que stões de do utrina , embora fossem permitida s
notas so bre o sen tido das palavras , que têm , aliás, muito interesse his tórico,
como todos compr ovamos qua ndo vemos u m orig inal da King James Version .
Verificamos também , ao ler as páginas XXV I e XXVII da Introduçã o, que os
tradu tores tra balhavam so b severas restriçõ es impostas por James I e que, na
Epistle Dedicatory , citam as suas críticas à Geneva Bible, que continha
censuras à autoridade mon árquica e que o r ei considerava "a pior Bíblia qu e
já tinha visto ". Vale também a pena ler as já referidas notas originais dos
tradu tores , nas qu ais falam das dificulda des que enco ntravam enq uan to
procuravam ser tã o precis os quan to p ossí vel quando trad uziam do Hebreu , do
Aramaico e do Grego, seguindo as restritivas normas reais.

Geneva Bible

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Gradualmente es ta tra duçã o veio a estab elecer -se como a Bíbli a
Inglesa por excelência e a Geneva Bible foi publicada pela última vez em
164 4.

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A Authorized Vers ion , geralmente designada como King J ames Versio n ,
King James Bi ble o u abreviadamen te KJ V, é a tra duçã o inglesa feita pela
Igreja Anglicana que , tendo sido ini ciada e m 160 4, apenas foi terminada em
161 1. Foi publicada pelo impressor real Robert Barker, send o assim a terceira
tradu ção o ficial em língua inglesa , após a j á referida Great Bible, mandada
fazer no reino de Henry VIII, e a Bishop's Bible de 1568, que veio a servir de
texto base para a Authorized King James Version de 1 611.

Como acima mencionad o, f oi em Janeiro de 160 4, q ue o rei James I


reuniu a Hamp ton Court Conferen ce com o obje ctivo de fa zer uma nova
versão inglesa em resposta aos problem as encon trad os nas anteri ores
tradu ções pelos Puri tanos , uma facção da Igreja Anglica na. A Authorized
Version de 1611 é , por tan to , o res ultado final de cerca de 1 00 an os de
prepara ção que envolveu o estu do intens o de textos hebreus e gregos. As
cinco edições gregas de Er asmo, as qua tro d e Step hanus , ou R obert Estienne ,
as nove de Theo dore Beza , pr opor cionar a m aos trad uto res uma base de
trabalho bem represen tativa da maioria do s manuscritos e que , além disso ,
tinha sido reconhe cida (S. Joã o 16 :1 3) pe lo povo de Deus ao longo dos
séculos.

Houve sete tra duções inglesas que prepa rar am e servir am de alicerce
ao original da King James Version : Tyndale, Coverdale, Matthews, Great Bible,
Taverners (que era uma revisão da Matthew 's, Geneva e Bishops'. É também
de referir que os tradutores da versão autoriza da eram homens de uma
erudição sem paralelo , que represen tavam o poder in telectual combinado das
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duas mais impor tan tes u niversidades ingles as: Oxford e Cambridge. Ao dar
aos tradu tores ins tru ções precisas o rei tin ha o objectivo de garantir que a
nova versão iria respeitar a eclesiologia e reflecti r a estrutura episcop al da
Church of England , visto que a tr adu ção foi feita por 47 e ruditos, to dos
Anglicanos. Tal como nas ou tras tradu ções do período , o N. T. foi traduzid o
do Grego, o A.T. do texto hebrai co e os Apócrifos do Grego e do La tim. No
Book o f Common Prayer (1662) , que esta belece as leitur as par a as orações e
serviços religiosos, os textos da Authorized Version substituíram os da Grea t
Bible – relativos às leituras das Epístolas e dos Evangelhos – sendo assim
autoriza dos p or Decreto do Parlamento. Na 1ª metade do século XVIII, a
Authorized Version era já efectivamente a única tra dução inglesa usada nas
igrejas Anglicanas e Protes tantes , tendo vi ndo a su plantar a Vulgata Latina
como versão padrã o da Escri tura para os eru ditos de língua inglesa.

É também de referir q ue trad uzir a Bíblia em vernáculo no sé culo XV I


era não só difícil mas também perigoso. P or ou tro lado , a Bíblia em Inglês
ameaçava o p oder d o mona rca e da Igreja . Os primeiros tr adu tores , como
Tyndale, cujo trabalho muito influen ciou a VKJ, foram perseguidos e
executa dos mas apesar disso o desej o por Bíblias em vernáculo con tinuou a
aumentar. Com efeito, f oi a popularidad e da Genev a Bible, com o seu
con teúdo an timonárqui co que even tualmente terá levad o James I a san cionar
a sua própria tradu ção que não a tacava o p oder real. Foi devido à existência
de alguns erros nas primeiras versões e às preferên cias dos Puritan os pela
Bíblia de G enebra que inicialmente atrasa ram a aceita ção da King James
Version , que, com o disse , a cabo u p or se to r nar a trad uçã o defini tiva da Bíblia
em Inglês.

A história da prod uçã o da King James Version comprova o po der da


Bíblia e relata a sua influência na língua inglesa moderna, na histó ria de
Inglaterra e sobre a fé de milhões de leitore s desde a sua publica ção em 1 611
até h oje quatro séculos dep ois.

Outr o dos aspectos des ta versão que merece reflexão e análise é o da


língua pois pode dizer -se q ue ela preserva o mais alto nível e o mais elevado

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uso da língua inglesa que o mundo conhe ce u. Há quem considere que o facto
de, ap ós qua tro sé culos , haver tão p ouco de arcaico nes ta tra dução nã o é
apenas um a cidente de erudi ção literá ria mas corres ponde a um a cto d a
providência divina pois embora , obviamente, existam profu ndas diferen ças
entre o Inglês falado actualmente e o Ingl ês isabelino, a verdade é que se
pode dizer a KJV não es tá exa ctamen te em língua inglesa elizabetana. Com
efeito, o Inglês em que está es c rita a KJV é mais preciso do que o de qualquer
documen to legal da época , mais belo do que qualquer outr a obra literária do
seu temp o e é mais fa cilmente memoriza do d o q ue o de qualquer ou tra
tradu ção. A KJV foi um p on to de referên cia no desenv olvimento da pros a
inglesa, o seu estilo elegante mas natural, q ue já foi classificado com o Inglês
Bíblico, teve uma enorme influên cia nos e scritore s de língua inglesa. Isto
explica em par te p or q ue a Authorized Version mantém a sua frescura e
lucidez en quan to ou tras o bras d o mesmo per íodo sã o difíceis de ler.

Ao pensarmos no texto de origem desta versão vemos q ue o Greg o


Koine do N. T. era já bíblico devido a uma fo rte influência heb raica. Não era a
língua falada nas ruas mas, no se u tempo , er a uma língua franca embor a h oje
seja uma língua morta pois os melhores e ruditos gregos nã o pensam nem
pregam ou rezam nela. Por seu lado, a Inglês é actualmente falado p or mais
pessoas d o que qualquer ou tra língua, sub stituiu o Grego e o La tim como
língua mundial e pode co nsiderar -se que a h onra da da a Deus pela KJV é uma
das prin cipais ra zões para esse s ucess o.

As tradu ções da Bíblia foram todas decer to inspiradas mas a Bíblia


inglesa ultrapassou - as em beleza e emoção e pode dizer -se q ue através dela a
língua inglesa se formou pelas mãos de Deu s e recebe u express ões heb raicas
e gregas, pass ando formas idiomáticas hebr aicas a serem formas idiomá ticas
inglesas que vieram enrique cer sua língu a por que o s tradu tores da KJV
respeitaram fielmente e seguiram a ordem d as palavras do Hebreu 1.

É inegável que o Inglês é mais eficiente, compacto e expressivo do


que qualquer ou tra língua. É o que temos hoje de mais semelhante a uma
1
"It came to pass," "a man after his own heart," "as a lamb to the slaughter," "the salt of the earth,"
"thorn in the flesh," and "gave up the ghost" são alguns dos exemplos que vieram enriquecer a língua
inglesa.
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língua universal. Mais de 35 0 milhões de pe ssoas falam -n o como 1ª língua e
mais ainda o usam como segunda língua. Tem um maior vocab u lário do que
qualquer ou tra língua (55 0,000 e ntra d as no Webster's Third New
International Dictionary ) e tornou-se a língua diplomática e a mais usada na
ciência, na tecnologia, na economia e nas comunica ções. Neste âmbito , é
também de referir a inegável in fluência da KJV na literatura inglesa, que foi,
sem dúvida, marcada pelo seu es tilo como é evidente, en tre ou tros , nas obr as
de Shakespeare , Bunyan , Milton e Dryden e mais recentemente , Walter Sco tt,
William Blake, J. R. Tolkien e C. S. Lewis.

Os tradu tores da KJV , afirmam que apre nderam na oração como


Moisés foi ensinado por Deu s a ser eloquen te quando lhe diz "Agora vai e Eu
estarei na tu a bo ca e ensinar - te-ei o que dizer" (Êx odo 4: 12) e traduziram a
Bíblia num estilo e ca tegoria de Inglês elevado e bíbl ico, moldad o lentamente
e formado pelo Grego e Hebreu d os MSS bíb licos, tal como estes tinham sido
tradu zidos para o utras línguas muitos sé cul os antes , e assim a língua inglesa
tomou a sua melhor forma no século XVI. Apesar da referida influência do
Grego e d o L atim, sabemos que alguns versículos na KJV 2 dependem
principalmente de a ntigos manus critos em h ebraico.

Ao reflectirmos sobre a tradu ção , vemos qu e esta tem sido sempre o


meio de preservação das Escri turas. A Bíblia tem sido tradu zida, p ublica da em
forma escrita e prégada des de que: "To dos f icaram repletos do Espírito Sa nto
e começa ram a falar em o utr as línguas…" co mo lemos no Livro dos A ctos dos
Apóstolos ( 2:4 -18) ou na 1ª Carta a os Cor intos "Eu desej o que todos vó s
faleis línguas" (1 4:5 -22 ). Lemos referên cias semelhantes também nas Cartas
aos Colossen ces (1: 5 -6) e aos Romanos (1 0: 1 7 e 16 :26).

Ao terminar es tas breves reflexões so bre a King James Version , que


foi universalmente considerad a com o "Pr ovavelmente a mais belo texto de
toda a litera tura d o mundo", cito H. L. Mencken , (1 88 0-1 956) que , no
prefácio da obra de Gus tavus Paine The Learned Men dedicada aos tradutores
da KJV, afirma:

2
I João 5:7, Actos 8:37, Actos 9:5-6, Actos 20:28 e Mateus 27:35.
121 GAUDIUM SCIENDI, Nº 3, JANEIRO 2012
"É a mais bela de toda s as tra duções d a Bíblia... Em 18 85 foi
publicada uma Versã o Revista e uma American Revised Version em 1901, e
desde então muitos homens cul tos mas imprudentes têm ten tad o faze r
tradu ções que fo ssem matematicamen te cor rectas , e em linguagem coloquial.
Mas a Authorized Version nunca cede u o se u lugar cimeiro a qualquer delas
porque é o bvia e comprovadamen te melhor do que elas, tal como é melhor
do que o N. T. Grego o u a Vulgata ou a Sep tuaginta. O seu Inglês é
extraordin ariamente simples, pur o, eloque nte, en can tado r. É uma mina de
poesia magnífica e incomparável, que é a mais emocionante e comove dora
que já se ouviu."

Com efeito, como é do co nhecimen to geral, há traduções vernáculas


em outras línguas como Po rtuguês , Fra ncês , Alemão, Italiano e Espanh ol que
seguem de perto a KJV mas nenhuma delas tem a mesma prosódia, arte d a
versificação , es trutura métrica, rima e form a de versos. É de referir que todo
o A.T., escrito em Hebreu em forma métrica, se destinava a ser cantad o, e
que a notaçã o do canto é especifica da nos acen tos in cluídos no texto
original. A versificação d o A. T. também está no texto. Há, por isso , exegetas
que consideram que , sendo o tex to divinamente inspirado , Deus queria que
as suas palavras n os fos sem transmitida s em forma poéti ca e musical, tal
como aconte ce na KJV.

Com efeito, as cara cterís ticas p r osó dicas da Authorized Version


parecem levar -nos a con cluir que se trata de uma traduçã o que teria sido
feita para cativar a alma e o cora ção d os fal antes de Inglês em todo o mund o
enquan to invo ca a fé e a au toridade nas suas vidas, aumenta ndo a ssim a
nossa admiração pela beleza e pr ofundida de da Palavra de De us.

Termino citando Longino que , em Do Sublime, afirmo u: "… quan d o


homens que diferem nos se us o bjectivos, m odos de vida, ambi ções , idades e
línguas, pensam todos de maneira semelh ante a cer ca d as mesma s obras ,
então , a opinião unâ nime de quem tem tão pouco em comum induz uma fé
forte e inab alável no obje cto de admiração."

122 GAUDIUM SCIENDI, Nº 3, JANEIRO 2012


Sieger K ödel, Espírito Santo

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