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A importância da cadeia de custódia para

preservar a prova penal


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16 de janeiro de 2015, 8h00
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa
Sem dúvida a temática “provas” é o
eixo central do Processo Penal, pois
tudo gira em torno delas como
instrumento recognitivo e persuasivo.
A prova serve, a um só tempo, para
buscar a reconstituição (aproximativa e
parcial) de um fato passado, histórico,
para um juiz ‘ignorante’ (pois ignora os
fatos). É a prova que permite a
atividade recognitiva (e não cognitiva,
pois indireta) do juiz em relação ao fato
histórico (story of the case) narrado
pela acusação. Ao mesmo tempo tem
uma função persuasiva, pois é através
dela que se permite a construção do convencimento, da decisão. Por isso, as provas
servem para obter a captura psíquica do julgador, para formar sua convicção.
A preservação das fontes de prova é, portanto, fundamental, principalmente quando
se trata de provas cuja produção ocorre fora do processo, como é o caso da coleta de
DNA, interceptação telefônica, etc. Trata-se de verdadeira condição de validade da
prova. Nesse tema, a recente obra Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos,
de Geraldo Prado[1], é a referência que serviu de inspiração para nosso texto de
hoje. A obra tem ainda, como pano de fundo, a importante decisão proferida pelo
STJ no HC 160.662-RJ, na qual a tese da quebra da cadeia de custódia de Geraldo
Prado foi acolhida em parecer anexado ao processo.
Explica o autor que a alteração das fontes contamina os meios e que sua não
preservação afeta a credibilidade desses meios. De nada adianta argumentar em
torno do “livre convencimento motivado”, pois existem standards de validade não
disponíveis, que asseguram o caráter racional-legal da decisão e imuniza dos
espaços impróprios da discricionariedade e do decisionismo (o absurdo “decido
conforme a minha consciência”, exaustivamente denunciado por Lenio Streck).
A preservação das fontes de prova, através da manutenção da cadeia de custódia,
situa a discussão no campo da “conexão de antijuridicidade da prova ilícita”,
consagrada no artigo 5º, inciso LVI da Constituição, acarretando a inadmissibilidade
da prova ilícita. Existe, explica Geraldo Prado, um sistema de controle epistêmico da
atividade probatória, que assegura (e exige) a autenticidade de determinados
elementos probatórios

O cuidado é necessário e justificado: quer-se impedir a manipulação indevida da


prova com o propósito de incriminar (ou isentar) alguém de responsabilidade, com
vistas a obter a melhor qualidade da decisão judicial e impedir uma decisão injusta.
Mas o fundamento vai além: não se limita a perquirir a boa ou má-fé dos agentes
policiais/estatais que manusearam a prova. Não se trata nem de presumir a boa-fé,
nem a má-fé, mas sim de objetivamente definir um procedimento que garanta e
acredite a prova independente da problemática em torno do elemento subjetivo do
agente. A discussão acerca da subjetividade deve dar lugar a critérios objetivos,
empiricamente comprováveis, que independam da prova de má-fé ou ‘bondade e
lisura’ do agente estatal.

Do contrário, ficaremos sempre na circularidade ingênua de quem, acreditando na


‘bondade dos bons’ (Agostinho Ramalho Marques Neto), presume a legitimidade de
todo e qualquer ato de poder, exigindo que se demonstre (cabalmente, é claro) uma
conduta criminosa e os ‘motivos’ pelos quais uma ‘autoridade’ manipularia uma
prova... Eis a postura a ser superada.

Essa exigência vai projetar efeitos no segundo momento — no processo — como


forma diminuir o espaço impróprio da discricionariedade judicial, fazendo com que
a decisão não dependa da valoração do juiz acerca da interioridade/subjetividade dos
agentes estatais, sob pena de incorrer numa dupla subjetividade com
incontrolabilidade ao quadrado. Regras claras e objetivas são mecanismos de
proteção contra o decisionismo.

A discussão acerca da quebra da cadeia de custódia adquire especial relevância nas


provas que tem pretensão de ‘evidência’, verdadeiros atalhos para obtenção da tão
almejada (e ilusória) “verdade”, que sedam os sentidos e tem a pretensão de bastar-
se por si só, de serem autorreferenciadas, tais como as interceptações telefônicas ou
o DNA. São provas que acabam por sedar os sentidos e anular o contraditório.
Nestas situações, por serem obtidas ‘fora do processo’, é crucial que se demonstre
de forma documentada a cadeia de custódia e toda a trajetória feita, da coleta até a
inserção no processo e valoração judicial.

É o que Geraldo Prado nos traz como exigência dos princípios da “mesmidade”[2] e
da “desconfiança”. Por “mesmidade” (forma aproximada a empregada na língua
espanhola, que não possui correspondente em português e não pode ser traduzido
como ‘mesmice’), entende-se a garantia de que a prova valorada é exatamente e
integralmente aquela que foi colhida, correspondendo portanto “a mesma”. Não
raras vezes, por diferentes filtros e manipulações feitas pelas autoridades que
colhem/custodiam a prova, o que é trazido para o processo não obedece a exigência
de “mesmidade”, senão que corresponde ao signo de ‘parte do’, que constitui, em
última análise, ‘a outro’ e não ‘ao mesmo’.
Questão recorrente nas interceptações telefônicas está na violação da “mesmidade”
e, por via de consequência, do direito da defesa de ter acesso a integralidade da
prova na sua originalidade (manifestação do contraditório=direito a informação e
paridade de armas), na medida em que a prova é ‘filtrada’ pela autoridade policial
ou órgão acusador, que traz para o processo (e submete ao contraditório diferido)
apenas o que lhe interessa. Não é ‘a mesma’ prova colhida, mas apenas aquela que
interessa ao acusador, subtraindo o acesso da defesa. A manipulação (e aqui se
emprega no sentido físico do vocábulo, sem juízo de desvalor ou atribuição de má-fé
ao ‘manipulador’) é feita durante a custódia e viola exatamente as regras de
preservação da idoneidade.

Já a “desconfiança” (decorrência salutar em democracia, onde se desconfia do


poder, que precisa ser legitimado sempre) consiste na exigência de que a prova
(documentos, DNA, áudios etc.) devam ser ‘acreditados’, submetidos a um
procedimento que demonstre que tais objetos correspondem ao que a parte alega ser.
Como explica Prado[3], o tema de provas exige a intervenção de regras de
“acreditação”, pois nem tudo que ingressa no processo pode ter valor probatório, há
que ser “acreditado”, legitimado, valorado desde sua coleta até a produção em juízo
para ter valor probatório.
A cadeia de custódia exige o estabelecimento de um procedimento regrado e
formalizado, documentando toda a cronologia existencial daquela prova, para
permitir a posterior validação em juízo e exercício do controle epistêmico.

A preservação da cadeia de custódia exige grande cautela por parte dos agentes do
estado, da coleta à análise, de modo que se exige o menor número de custódios
possível e a menor manipulação do material. O menor número de pessoas
manipulando o material faz com que seja menos manipulado e a menor
manipulação, conduz a menor exposição. Expor menos é proteção e defesa da
credibilidade do material probatório.

Provas dessa natureza (DNA, interceptações telefônicas, etc.) são muito importantes
para o processo, mas trazem consigo um perigoso alucinógeno: a evidência. Como
muito bem analisado por Rui Cunha Martins[4], o ‘ponto cego’ do direito é o
evidente, pois ele seda os sentidos e tem um alto grau de alucinação. O ‘evidente’
cega, pois não nos permite ver, ele é “simulacro de autorreferencialidade” e se basta
por si só. Erroneamente, somos levados a crer que o ‘evidente’ dispensa prova,
afinal, é evidente! E aqui está o perigo: o desamor do contraditório (Cunha Martins).
O processo penal então deve ser um instrumento de correção do caráter alucinatório
do evidente, instaurando o contraditório e submetendo tudo ao fair play, ao jogo
limpo de prova e contra-prova, exigindo do juiz um alto grau de maturidade psíquica
para não se deixar sedar e cegar pelo evidente. Eis uma questão extremamente
complexa e que vai cobrar um alto preço em vários pontos do processo penal, como
por exemplo, na prisão em flagrante (afinal, não são poucos os que mentalmente
operam assim: se foi ‘pego em flagrante’, para quê processo penal?), ou diante de
uma ‘evidencia’ do DNA.
Se o material genético do suspeito foi encontrado no local do delito, está provado! É
evidente que foi ele... Infelizmente esse atalho para o lugar de conforto
proporcionado pelo binômio evidente=verdade é o sonho de consumo de todo ato
decisório (especialmente na cultura inquisitória vigente), valorizando a “cadeia de
custódia” como espaço apto ao contraditório e ao julgamento justo. Não podemos
tomar o atalho DNA=evidente=verdade sem antes fazer uma profunda perquirição
acerca dos meios de obtenção desta prova e todo o iter procedimental de coleta,
armazenagem e análise desta amostra.
É a discussão sobre a validação científica dos métodos de análise, ou seja, o
questionamento acerca da validade dos testes a partir da natureza das amostras
biológicas utilizadas, por exemplo. É sabido, por exemplo, que as amostras
encontradas em superfícies não estéreis (como sói ocorrer) podem sofrer danos após
o contato com a luz solar, micro-organismos e solventes naturais, podendo levar a
equívocos na interpretação ou diminuição da confiabilidade dos resultados.

A luta pela qualidade da decisão judicial passa pela melhor prova possível. Nesse
terreno, a estrita observância do acusatório, com claro afastamento das funções de
acusar e julgar, mas, principalmente, pela imposição de que a iniciativa probatória
seja das partes e não do juiz (recusa ao ativismo judicial), bem como pela
maximização do contraditório, são fundamentais. Outra premissa básica neste tema
(e em todo processo penal) é: forma é garantia e limite de poder. A importância da
“tipicidade processual” é novamente evidenciada.

A manutenção da cadeia de custódia garante a “mesmidade”, evitando que alguém


seja julgado não com base no “mesmo”, mas no “selecionado” pela acusação. A
defesa tem o direito de ter conhecimento e acesso as fontes de prova e não ao
material “que permita” a acusação (ou autoridade policial). Não se pode mais
admitir o desequilíbrio inquisitório, com a seleção e uso arbitrário de elementos
probatórios pela acusação ou agentes estatais.

Tema diretamente vinculado, ensina Prado, é o da ‘conexão de antijuridicidade’,


onde a contaminação deve ser ponderada através da causalidade naturalística ou da
causalidade normativa. A primeira (naturalística), faz com que toda prova derivada
(nexo causal físico, naturalístico) seja necessariamente declarada ilícita e excluída
do processo. Já a causalidade normativa interdita o emprego do conhecimento obtido
pela prova ilícita para interpretar provas aparentemente produzidas sem uma filiação
direta e imediata com a prova declarada ilícita. É por isso que uma vez reconhecida
a ilicitude de uma prova, não se pode, por exemplo, fazer posteriormente perguntas
para testemunhas sobre o mesmo objeto, buscando validar por via transversa. Ainda
que a prova testemunhal seja válida e não derive da ilícita (não há causalidade
naturalística), existe um impedimento decorrente da causalidade normativa, que
veda o emprego do conhecimento ilicitamente obtido. É um mecanismo com
ambição de evitar a “lavagem da prova ilícita”.

Questão final é: qual a consequência da quebra da cadeia de custódia (break on the


chain of custody)? Sem dúvida deve ser a proibição de valoração probatória com a
consequente exclusão física dela e de toda a derivada. É a “pena de inutilizzabilità”
consagrada pelo direito italiano[5]. Mas é importante que não se confunda a “teoria
das nulidades” com a “teoria da prova ilícita”, ainda que ambas se situem o campo
da ilicitude processual, guardam identidades genéticas distintas. É por isso que não
se aplicam às provas ilícitas as teorias da preclusão ou do prejuízo. Esse é um
diferencial crucial, não raras vezes esquecido.
Concluindo, a proibição de valoração probatória e o princípio da contaminação,
podem conduzir a um questionamento final sobre o ‘preço a ser pago’. A resposta,
para além de tudo o que já se disse sobre o valor e imprescindibilidade de estrito
respeito às “regras do jogo”[6], está na necessidade de incorporar um “efeito
dissuasório” (deterrent effect) que serve de desestímulo às agências repressivas
quanto à tentação de recorrerem a práticas ilegais para obter a punição” (Geraldo
Prado).

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