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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A RAZÃO CRIATIVA EM KANT: O PAPEL


EPISTÊMICO DA FACULDADE DE JULGAR
REFLEXIONANTE TELEOLÓGICA

ADILSON LUIZ QUEVEDO

ORIENTADORA: PATRÍCIA KAUARK-LEITE


Toda a ciência é por si mesma um sistema.

Immanuel Kant
RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo situar a faculdade de julgar reflexionante teleológica dentro
do projeto epistêmico kantiano e com isso mostrar como a criação de teorias científicas
depende tanto de juízos objetivos determinantes quanto de juízos instrumentais, regulativos
e reflexionantes. A pretensão do trabalho é apontar que, de uma perspectiva crítica, a síntese
entre sensibilidade e entendimento, que fornece as bases para o conhecimento empírico da
natureza, é insuficiente para a teorização científica, uma vez que esta depende também de
conceitos sistematizantes, heurísticos e metafísicos não instanciáveis na experiência. Desse
modo, o proceder técnico e artístico da faculdade de julgar, elucidado por Kant em sua
terceira Crítica, constitui uma vigorosa ferramenta epistêmica para compreender a teorização
acerca da natureza em um sentido mais amplo. Essa dimensão reflexionante e criativa da
razão nos permite situar a posição kantiana em uma perspectiva filosófica de análise da
ciência de viés antirrealista, fazendo de Kant um precursor do antirrealismo contemporâneo
em filosofia das ciências.
.

Palavras-chave: faculdade de julgar, juízos reflexionantes, ideias regulativas, técnica da natureza,


teorização científica, filosofia crítica, antirrealismo.
Abstract
This dissertation aims to set the teleological power of judgment within the Kantian epistemic
project in order to show how the creation of scientific theories depends both on objective
determining judgments and on technical reflecting judgments. From this critical perspective
that encompasses the third Critique of Kant, the synthesis between sensitivity and
understanding, which provides the basis for the empirical knowledge of nature, is insufficient
for scientific theorizing. In addition to a correct application of determining judgments to
experience, the scientific process of theorizing depends on this other kind of judgments that
are not directly instantiable in experience. They are based on metaphysical and teleological
concepts and play a fundamental heuristic, systematic, and creative function. The technical
and artistic role of the teleological power of judgment, elucidated by Kant in his third
Critique, constitutes a vigorous epistemic procedure for comprehending the theorizing of
natural science in a more general sense. This reflecting and creative dimension of reason
allows us to place Kantian position within an antirealist framework, which makes Kant one
of precursors of contemporary antirealism in philosophy of science.

Keywords: faculty of judgment, reflective judgments, regulative ideas, nature's technique, scientific
theorizing, critical philosophy, anti-realism.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................6
1. O PAPEL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUTIVOS E REGULATIVOS NA CRÍTICA
DA RAZÃO PURA ...........................................................................................................10
1.1 Considerações iniciais........................................................................................................................10
1.2 Elementos constitutivos da síntese empírica .....................................................................................13
1.3 Princípios matemáticos constitutivos da intuição..............................................................................20
1.3.1 O princípio dos axiomas da intuição...............................................................................................20
1.3.2 O princípio das antecipações da percepção ....................................................................................22
1.4 Princípios dinâmicos regulativos da intuição ....................................................................................24
1.4.1 Analogias da experiência ................................................................................................................25
1.4.2 Postulados do pensamento empírico em geral................................................................................29
1.5 Princípios constitutivos da experiência em geral...............................................................................30
1.6 Princípios regulativos da experiência em geral .................................................................................35
2. CRÍTICA DA FACULDADE DE JULGAR: UMA CRÍTICA DA RAZÃO TÉCNICA
.........................................................................................................................................43
2.1 Considerações iniciais........................................................................................................................43
2.2 A faculdade de julgar e o sistema da crítica da razão pura................................................................46
2.3 A divisão da faculdade de julgar em determinante e reflexionante...................................................49
2.4 Faculdade de julgar determinante ......................................................................................................53
2.5 Faculdade de julgar reflexionante......................................................................................................55
2.6 Os juízos reflexionantes.....................................................................................................................58
2.7 As faculdades superiores e a teorização da natureza .........................................................................62
3. O PAPEL EPISTÊMICO DA FACULDADE DE JULGAR REFLEXIONANTE
TELEOLÓGICA .............................................................................................................67
3.1 Considerações iniciais........................................................................................................................67
3.2 Técnica da natureza ...........................................................................................................................68
3.3 Os pressupostos transcendentais da teleoformidade da natureza.......................................................77
3.4 A relação entre nexus effectivus e nexus finalis.................................................................................82
3.5 A aptidão da faculdade de julgar reflexionante em reconhecer os dois tipos de causalidade ...........88
3.6 O organismo enquanto analogia no Opus Postumum ........................................................................92
3.7 A noção de finalidade e sua inserção em uma doutrina da natureza .................................................97
CONCLUSÃO...............................................................................................................103
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................105
INTRODUÇÃO

A presente dissertação procurou mostrar a importância da faculdade de julgar


reflexionante teleológica na criação de teorias científicas. Para tanto, traçou-se as bases
teóricas dessa faculdade desde a Crítica da razão pura até a conclusão da Crítica da
faculdade de julgar, sem deixar de lado as ressonâncias teóricas no projeto kantiano
subsequente, principalmente no Opus postumum. Por mais que o primeiro capítulo se
detenha basicamente na Crítica da razão pura para fornecer uma base argumentativa ao
restante da dissertação (e não poderia ser de outro modo, devido a importância dessa obra)
minha primeira visão das teorias científicas de uma perspectiva kantiana não aconteceu
quando tive contato com essa obra na disciplina de “História da filosofia moderna”, mas
com uma disciplina optativa ministrada em conjunto pelas professoras Patrícia Kauark-
Leite e Giorgia Cecchinato, que se deteve por várias semanas na árdua leitura da Primeira
introdução à Crítica da faculdade de julgar.
O que me chamou a atenção naquele momento foi a noção de ‘como se’ (als ob),
noção que mereceu, por parte de Hans Vaihinger, um laborioso estudo da obra de Kant,
em A filosofia do como se publicado em 1888. Em resumo, esse livro argumenta que o
termo ficção, de uma perspectiva kantiana, pode ser aplicado a todos os campos teóricos
das ciências, passando pela filosofia, direito, moral, até a religião, e que todo o
funcionamento da cognição e do pensar humanos estariam sob seu jugo. Generalizado o
ficcionalismo a partir de uma leitura acurada do termo como se na obra de Kant, Vaihinger
no entanto não tem por objetivo depreciar o filósofo de Königsberg, mas colocá-lo como
aquele pensador que mais perfeitamente compreendeu a essência do humano: um ser que
se orienta exclusivamente por ficções e pode possuir a consciência de as ter criado.
De acordo com Leonel Ribeiro dos Santos os integrantes das principais escolas
neokantianas da época não reconheceram Vaihinger como um pensador alinhado com
suas perspectivas e pouca atenção deram a sua obra, com a notória exceção de Ernst
Cassirer que, em um ensaio de 1913, ao discutir A filosofia do como se, encontra nela a
seguinte tese: “todo pensamento conceitual possui apenas um caráter ficcional”, e vê
nessa noção de ficção algo que é ao mesmo tempo amplo e redutor, pois não consegue
lidar com a variedade de noções filosóficas na obra de Kant, tais como intencionalidade,
intuições, esquemas, categorias, ideias heurísticas, ideias estéticas, princípios

6
constitutivos e regulativos, e assim por diante.1 Colocar, por exemplo, as teorias
científicas no plano das “ficções necessárias” a partir da noção kantiana de como se tem
a sua pertinência, desde que não se perca a diferença entre o conhecer e o pensar que
marca, entre outras coisas, a diferença entre a conceitualização para o uso objetivo e a
conceitualização para uso subjetivo.
Sendo como for, com o andamento da pesquisa a ideia de que teorias científicas
(e até mesmo as leis científicas) são criações e não descobertas e, nesse sentido, são
ficções e não a mera descrição de uma realidade que independe da nossa subjetividade,
foi se naturalizando no meu horizonte teórico e outros desafios surgiram e passaram a
exercer forte influência nas minhas leituras. O foco central desta dissertação foi o de
defender que as teorias acerca da natureza são criações subjetivas de objetivação do
mundo, o que permite situar Kant no debate contemporâneo sobre o realismo científico
como um representante da vertente antirrealista. Ao assumir essa perspectiva tive que me
deparar com um outro problema, que pode ser considerado de cunho meta-
epistemológico: se as teorias científicas são criações e, portanto, artifícios explicativos
que satisfazem nosso desejo de sistematizar a natureza, essas criações seriam análogas à
criação de outros artifícios, como por exemplo as máquinas, e assim obedeceriam a um
causalidade linear entre as peças (entre os elementos teóricos) ou essas criações não se
limitariam ao âmbito mecânico e seriam o resultado da junção da causalidade linear e de
uma causalidade não linear (ou seja, uma causalidade em que cada parte é ao mesmo
tempo causa e efeito de outras) e, assim, estaríamos diante de criações orgânicas? E
mesmo que se adote uma ou outra perspectiva ainda resta estabelecer o papel constitutivo
da experiência, para não ficarmos em uma discussão meramente sobre o estatuto da
coerência entre elementos teóricos. Foi isso que procurei analisar em um primeiro
momento.
Porém, precisou-se ir além da função constitutiva da experiência. Buscou-se
seguir a diretriz kantiana de que todo conhecimento começa com a experiência, mas não
se limita a ela. Ou seja, qualquer teorização acerca da objetividade deve começar por
analisar o uso constitutivo da cognição para então, demarcado esse campo, analisar em
que medida o uso regulativo pode colaborar na criação de teorias acerca da natureza.
Assim, no primeiro capítulo, analisou-se os princípios constitutivos e os regulativos e a
dinâmica entre ambos. Essa distinção entre princípios permite estabelecer a diferença

1Leonel Ribeiro dos Santos, Ideia de uma heurística transcendental (Lisboa: Esfera do caos, 2012), 179-
180

7
entre a atividade epistêmica de conhecer e a de pensar, e como ambas participam da
teorização científica. A originalidade de Kant em traçar a distinção entre elementos
epistêmicos constitutivos e regulativos não acontece apenas quando se estabelece
respectivamente o papel do entendimento e da razão. Kant estabelece essa distinção
também dentro dos princípios do entendimento puro, uma vez que o conjunto deles é
constitutivo da experiência em geral, mas com relação à intuição os princípios
matemáticos são constitutivos e os dinâmicos são regulativos.
A primeira Crítica, todavia, não expõe completamente o projeto epistemológico
de Kant. Se, por um lado, ele parecia satisfeito com o que desvelara sobre a síntese entre
sensibilidade e entendimento, por outro lado, ainda não o estava com relação à ligação
entre entendimento e razão. Faltava uma faculdade que mediasse essa relação e nesse
intento surge a Crítica da faculdade de julgar. O segundo capítulo, então, procura
compreender essa faculdade em sua função teleológica e seu papel na teorização acerca
da natureza. Na terceira Crítica, Kant retoma a distinção, iniciada na primeira Crítica,
entre ajuizamento determinante, cujos produtos são juízos emitidos com base nas
categorias do entendimento, e ajuizamento reflexionante, próprio da nova função da
faculdade de julgar. Isso é um sinal de que a terceira Crítica tem, a nosso ver, como
principal novidade a faculdade de julgar reflexionante, da qual surgem os juízos estéticos
e os teleológicos.
Procurou-se, a partir do terceiro capítulo, explorar a noção de técnica da natureza,
que nos é apresentada de modo mais detalhado na Primeira introdução à Crítica da
faculdade de julgar. Buscou-se mostrar que é em tal noção, onde Kant coaduna natureza
e arte, que reside o ponto máximo do antirrealismo kantiano. Para se explorar o decisivo
papel da faculdade de julgar reflexionante teleológica na criação de teorias científicas, foi
necessário ligar os pressupostos transcendentais da razão investigados na Crítica da razão
pura com a noção de teleoformidade da natureza da Crítica da faculdade de julgar. Isso
conduziu a pesquisa à noção de organismo e de seu papel quanto ao funcionamento
orgânico da cognoscibilidade humana e, consequentemente, à dinâmica orgânica (se
quisermos, sistêmica) da teorização científica. Foi importante perceber que a causalidade
mecânica é subsumível à causalidade teleológica, o que possibilitou a Kant no Opus
postumum admitir que o nexus finalis é capaz de articular um conjunto de nexus effectivus.
Isso implica diretamente no modo como encaramos as teorias científicas, pois um
conjunto de leis empíricas fundadas na causalidade mecânica pode ser sistematizado

8
através da causalidade teleológica, que postula uma finalidade do todo ao organizar a
relação entre as partes.
Creio que o maior mérito desta pesquisa foi apontar para o vigor do antirrealismo
kantiano ao deparar-se com um fio condutor capaz de ligar a Crítica da razão pura,
Crítica da faculdade de julgar e Opus postumum, usando ainda como recurso adjacente
os Prolegômenos, a Primeira introdução, os Progressos da metafísica entre outros textos
considerados menores.

9
1. O PAPEL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUTIVOS E REGULATIVOS NA
CRÍTICA DA RAZÃO PURA

1.1 Considerações iniciais

Há ao menos duas grandes escolas teóricas sobre a natureza das teorias científicas. Uma
sustenta que as teorias são resultado de descobertas acerca das regularidades subjacentes
aos fenômenos e que tais regularidades existem independentes de nossa subjetividade.
Tal posição é própria dos adeptos do realismo científico. A outra afirma que as teorias
são invenções ou construções a partir de princípios ou leis que visam organizar a
aleatoriedade dos fenômenos e que essas leis ou princípios dependem do nosso aparato
cognitivo. Tais leis ou princípios de certa maneira determinam o modo como o sujeito
conhece um conjunto de dados empíricos, o que confere a essa posição um caráter
antirrealista.
A Crítica da razão pura (edição A de 1781 e edição B de 1787), também
conhecida comumente por primeira Crítica,2 escrita por Immanuel Kant (1724-1804), é
utilizada no debate contemporâneo entre realistas e antirrealistas por ambos os lados.
Como ilustração do uso da filosofia kantiana tanto pela vertente realista como pela
vertente antirrealista, podemos evocar de um lado Robert Hanna com seu livro Kant,
Science and Human Nature, e do outro Patrícia Kauark-Leite com o artigo Kant’s
Empirical Realism and Scientific Realism, no qual propõe uma análise crítica da
interpretação que Hanna faz de Kant. 3 Robert Hanna reivindica a filosofia de Kant para
o realismo ao afirmar que realismo empírico e realismo científico seriam a mesma coisa
se colocados diante de uma ótica kantiana.4 Esses dois realismos teriam uma ligação
direta com o problema das duas imagens do mundo levantado por Wilfrid Sellars em
1963, a imagem manifesta e a imagem científica, duas concepções do mundo

2 Immanuel Kant, Crítica da razão pura, trad. Fernando Costa Mattos (Petrópolis: Vozes; Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012). Usaremos também KrV que é a abreviatura do título
original Kritik der reinen Vernunft. Tanto a abreviatura quanto os números das páginas precedido por A ou
B, que se referem às edições originais A (1781) e B (1787), seguem de acordo com a Akademie-Ausgabe,
a Edição da Academia (Immanuel Kant, Gesammelte Schriften, Berlin, de Gruyter, 1900ss).
3 Não é raro o uso dos textos de Kant por lados opostos em debates filosóficos. O famoso debate em Davos

na Suíça em 1929 entre Cassirer e Heidegger, marcado pela oposição entre filosofia analítica e filosofia
continental, retratado no livro Continental Divide: Heidegger, Cassirer, Davos de Peter E. Gordon
publicado em 2010; e o debate contemporâneo na filosofia kantiana entre conceitualismo e não
conceitualismo ilustrado no texto Kant Conceptualism de Thomas Land publicado em 2011, que coloca,
respectivamente, de um lado John McDowell e do outro Robert Hanna, são alguns exemplos.
4 Robert Hanna, Kant, Science and Human Nature (Nova York: Oxford University Press, 2006), 141.

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aparentemente não conciliáveis.5 Em resumo, para Hanna, o realismo empírico seria a
conjunção de duas subteses: 1) Realismo perceptual direto, e 2) Realismo manifesto. A
primeira afirma que todo indivíduo tem acesso perceptual direto a objetos objetivamente
reais; e a segunda afirma que as propriedades essenciais dos objetos são propriedades
estruturais perceptíveis a qualquer humano ou são propriedades intrínsecas, porém
observáveis.6 E o realismo científico, que compõe o quadro teórico proposto por Hanna,
seria basicamente a tese de que as coisas existem de modo independente em relação a
nossa consciência e que essas coisas ao serem descritas pela ciência teriam “primazia
explanatória” na melhor teoria científica acerca do mundo.7 De acordo com Hanna, tanto
o realismo empírico quanto o realismo científico seriam compatíveis com a epistemologia
kantiana e, consequentemente, extrairíamos disso a solução para o problema das duas
imagens levantado por Sellars. Patrícia Kauark-Leite, no entanto, motivada por uma
intepretação antirrealista da epistemologia kantiana, aponta que a leitura de Hanna não é
coerente com a principal inovação teórica que Kant introduziu na história da filosofia, ou
seja, a tese do idealismo transcendental,8 cuja premissa fundamental seria que o “nosso
conhecimento empírico objetivo do mundo é determinado pela estrutura a priori de nossa
cognição”.9 De acordo com Kauark-Leite o realismo empírico de Kant comporta a
primeira subtese de Hanna, a do realismo perceptual direto, mas não comporta a segunda
sobre o realismo manifesto, e que uma leitura mais acurada tanto da Crítica da razão pura
quanto dos Primeiros princípios metafísicos da ciência natureza nos mostra que “a teoria
do conhecimento científico de Kant é a conjunção de realismo perceptual direto e
antirrealismo científico”. Aponta também para outro problema que Hanna enquanto
defensor de um realismo científico a partir de Kant comete, o de dizer que as faculdades

5 Em linhas gerais a imagem manifesta seria aquela imagem subjetiva que o indivíduo tem do mundo,
marcada pelo mundo manifesto cotidianamente na percepção; e a imagem científica seria aquela imagem
supostamente objetiva fornecida pela ciência, marcada por entidades teóricas não observáveis ou por
propriedades não perceptíveis. Wilfrid Sellars, “Philosophy and the Scientific Image of Man”, in Science,
Perception and Reality, (New York: Humanities Press, 1963), 1-40.
6 Hanna, Kant, Science and Human Nature, 169-170.
7 Hanna, Kant, Science and Human Nature, 141.
8 Na obra de Kant o conceito transcendental é de fundamental importância, uma vez que adquiriu contornos

próprios. De acordo com a KrV, transcendental seria “todo conhecimento que se ocupe não tanto com os
objetos, mas com o nosso modo de conhecer os objetos, na medida em que estes devam ser possíveis a
priori.” (KrV, B 25; Kant, Crítica da razão pura, 60). Desse modo, em termos gerais, transcendental diz
respeito às condições a priori que possibilitam o conhecimento do objeto. O idealismo de Kant, por sua
vez, não pode ser confundido com o idealismo dogmático de Berkeley, tampouco com o idealismo
problemático de Descartes pois, ao contrário destes, o idealismo transcendental não nega a realidade das
coisas físicas, tampouco a coloca em dúvida. Cf. Kant, KrV, B274-275; Crítica da razão pura, 231.
9 Patrícia Kauark-Leite, “Kant’s Empirical Realism and Scientific Realism: A Critical Analysis of Hanna’s

Interpretation of Kant”, Kant e-Prints, Campinas, Série 2, v. 11, n. 1 (jan.-abr., 2016): 21.

11
da sensibilidade e entendimento são as fontes fundamentais do conhecimento, sendo que,
segundo Kauark-Leite, a própria Crítica da razão pura assinala outra faculdade, a
faculdade da razão, igualmente importante na produção de conteúdo para a elaboração de
teorias científicas.10
Ainda teremos ocasião para explorar mais demoradamente tais questões. O que
queremos ressaltar nestas considerações iniciais é que os estudos kantianos referentes à
estruturação das teorias científicas, em um campo teórico realista, centram-se
basicamente na Estética transcendental e na Analítica transcendental (partes constituintes
da Crítica da razão pura cuja explanação faremos abaixo), que exploram as faculdades
da sensibilidade e do entendimento e a síntese entre ambas, síntese responsável, como
veremos, pelas leis científicas ou empíricas. Porém, como é o objetivo do nosso texto,
almejamos destacar que as teorias científicas necessitam de elementos hipotéticos,
heurísticos e especulativos que guiam a investigação empírica para além das leis
científicas, elementos que são capazes de transformar um mero aglomerado de leis
científicas em um sistema teórico de leis, e tais funções são conferidas, seguindo a
orientação da primeira Crítica, à faculdade da razão, da qual surgem conceitos que não
podem ser instanciados na experiência, o que nos possibilita sustentar através da
epistemologia kantiana uma posição antirrealista com relação às teorias científicas. Nossa
interpretação antirrealista da Crítica da razão pura, no entanto, não exclui de sua
fundamentação a dimensão basicamente constitutiva do conhecimento oriunda da síntese
entre a sensibilidade e o entendimento, da qual surgem conceitos ostensivos e de validade
objetiva e da qual também surgem as leis empíricas, mas entende que a teorização no
campo científico exige uma dimensão regulativa capaz de fornecer hipóteses para o
trabalho investigativo, além de fornecer um arcabouço teórico para a sistematização de
leis empíricas. Em outras palavras, uma teoria científica não é feita apenas de conceitos
que tenham validade objetiva, mas também de conceitos meramente instrumentais,
embora imprescindíveis. Portanto, a distinção entre princípios constitutivos e regulativos,
uns de aspecto ostensivo outros de aspecto instrumental, apresentada por Kant na Crítica
da razão pura, é chave para entendermos como as teorias científicas são estruturadas
tanto por conceitos objetivamente válidos quanto por elementos teóricos que não podem
ser realisticamente interpretados.11 Não acreditamos, assim como aponta Otfried Höffe,
que as questões levantadas na Crítica da razão pura referentes a uma epistemologia que

10 Cf. Kauark-Leite, “Kant’s Empirical Realims”, 19-35.


11 Kauark-Leite, “Kant’s Empirical Realims”, 29.

12
forneça, por exemplo, subsídios a física newtoniana tenham sido “relativizadas” ou
“aniquiladas” com os avanços da física, com a superação da física newtoniana pelo
surgimento da teoria da relatividade ou pela teoria quântica, pois entendemos que tais
avanços, na verdade, “revitalizaram” a primeira Crítica, uma vez que esta obra busca
fundamentar o conhecimento objetivo e não apenas uma teoria científica específica, como
a física newtoniana que, além do mais, fora utilizada por Kant a título de ilustração, para
mostrar a aplicabilidade dos princípios teóricos ali expostos e que são utilizáveis por
qualquer teoria que se interesse pela objetividade.12 Desse modo, não compartilhamos da
interpretação sugerida por Karl Popper em seu livro Conjecturas e refutações, no qual
coloca a filosofia de Kant tão intimamente relacionada com a física newtoniana, como se
aquela dependesse desta, como se o filósofo alemão estivesse meramente preocupado em
fornecer as bases filosóficas para a física de Newton ou apenas resolver os problemas que
ela levantou.13 As discussões kantianas atuais em epistemologia ou em filosofia das
ciências demonstram que a Crítica da razão pura não é determinada historicamente, seu
uso nos mais variados debates filosóficos contemporâneos apontam para sua
atemporalidade. Assim, para que possamos entender como a epistemologia kantiana nos
fornece elementos para interpretar a estruturação das teorias científicas a partir de um
ponto de vista antirrealista, vamos começar explorando o papel dos princípios
constitutivos e regulativos que o filósofo alemão expõe na primeira Crítica.

1.2 Elementos constitutivos da síntese empírica

Kant designou a primeira Crítica como uma obra que propõe uma revolução na filosofia
similar à revolução que Copérnico propôs na astronomia. Segundo ele, seria mais
proveitoso à metafísica se assumíssemos que os objetos são regulados pelo nosso
conhecimento, e não que o conhecimento deva regular-se pelos objetos. Seria mais
proveitoso estabelecer quais são as condições a priori que possibilitam o conhecimento
dos objetos antes mesmo que os objetos nos sejam dados. Isso aparece logo no Prefácio
a segunda edição do livro:

12 Otfried Höffe, Immanuel Kant, trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden (São Paulo: Martins
Fontes, 2005), 119.
13 Cf. Karl R. Popper, Conjecturas e refutações: o progresso do conhecimento científico, trad. Sérgio

Bath (Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2008), 203-219.

13
Até hoje se assumiu que todo o nosso conhecimento teria de regular-se
pelos objetos; mas todas as tentativas de descobrir algo sobre eles a
priori, por meio de conceitos, para assim alargar nosso conhecimento,
fracassaram sob essa pressuposição. É preciso verificar pelo menos uma
vez, portanto, se não nos sairemos melhor, nas tarefas da metafísica,
assumindo que os objetos têm de regular-se por nosso conhecimento, o
que já se coaduna melhor com a possibilidade, aí visada, de um
conhecimento a priori dos mesmos capaz de estabelecer algo sobre os
objetos antes mesmos que nos sejam dados. 14

Em vez de o sujeito girar em torno do objeto buscando determinações objetivas, o objeto


é que giraria em torno do sujeito recebendo determinações subjetivas. De acordo com
Kant, qualquer objeto, para que se torne cognoscível para nós, está sujeito às condições
prévias da intuição sensível e aos conceitos inteligíveis – que advêm de duas importantes
faculdades do sujeito: a faculdade da sensibilidade e a faculdade do entendimento.
Essa distinção entre as faculdades se reflete na própria divisão interna da Crítica
da razão pura em duas grandes partes: 1) Estética transcendental, que explora a faculdade
da sensibilidade; e 2) Lógica transcendental, dividida em Analítica (que explora a
faculdade do entendimento) e Dialética (que explora a faculdade da razão).
A sensibilidade possui a capacidade de receber impressões, é uma faculdade
receptiva e passiva, por meio da qual os objetos nos são dados. Para Kant, a sensibilidade
permite um acesso imediato ao objeto, isto é, permite intui-lo sem qualquer recurso
conceitual, embora o faça de acordo com suas condições a priori, que são o espaço e o
tempo. O espaço e o tempo constituem as formas puras da intuição sensível que permitem
à sensibilidade perceber os objetos espaço-temporalmente. O espaço é a forma da intuição
sensível externa que permite o sujeito ter acesso cognitivo aos objetos fora de si
localizáveis e relacionáveis em um espaço. O sentido externo permite que os objetos
exteriores a nós sejam representados espacialmente. O tempo, enquanto forma do sentido
interno, nos permite ordenar temporalmente as percepções, uma vez que estas sucedem-
se umas às outras de acordo com o nosso estado interno. Kant, desse modo, subverte o
modelo tradicional da filosofia, que postulava o espaço e o tempo como entidades reais
ou como substratos reais dos eventos e os apresenta como condições subjetivas a priori
da própria percepção. Através delas o sujeito pode experenciar o mundo e
consequentemente conhecê-lo. Entretanto, para que haja conhecimento, segundo a
filosofia transcendental kantiana, é fundamental a ocorrência de sínteses, que permitem a
ligação entre as intuições e os conceitos do entendimento. São elas: 1) síntese da

14 Kant, KrV, B XVI.

14
apreensão na intuição; 2) síntese da reprodução na imaginação; e 3) síntese do
reconhecimento no conceito. Resumidamente, na Síntese da apreensão na intuição a
intuição fornece a cada fenômeno uma especificidade espacial, através do sentido
externo, e a ligação de uma apreensão a outra somente é possível pelo tempo, que é a
forma do sentido interno. Nessa síntese estabelece-se uma relação entre a condição
espacial do objeto apreendido e o momento temporal da apreensão. A faculdade da
sensibilidade capta diversas sensações e a multiplicidade oriunda dessa ação não pode ser
reproduzida sem a síntese da apreensão. Na definição de Kant a síntese da apreensão é “a
composição do diverso em uma intuição empírica pela qual se torna possível a
percepção”.15 A Síntese da reprodução na imaginação está entre a síntese da apreensão
na intuição e a unificação da apercepção originária, ou seja, entre a intuição sensível e o
poder de conceitualização do entendimento. Essa síntese permite que as representações
fornecidas pela sensibilidade, através da síntese da apreensão na intuição, sejam
relacionadas umas às outras, ou seja, fornece condição a priori para que se possa
estabelecer uma regra de constância, de associação ou sucessão. Por fim, na Síntese do
reconhecimento no conceito o diverso dado na apreensão da intuição e reproduzido pela
imaginação é reunido sob um conceito. A partir desse momento o diverso da intuição
pode ser pensado, pode ser conhecido conceitualmente. Essa unidade do conceito, que
subsumi o diverso da intuição, permite que uma representação dada instantes antes seja
vinculada à representação posterior de um mesmo objeto intuído.16
O processo exposto acima pode também ser divido em duas sínteses: síntese
especiosa e síntese intelectual ou conceitual. Na síntese especiosa acontecem os dois
primeiros estágios, ou seja, a síntese da apreensão e a síntese da reprodução na
imaginação – duas funções conferidas à faculdade da sensibilidade. A síntese intelectual
ou conceitual, que constitui uma função do entendimento, eleva a síntese especiosa a
conceitos.17 Pode-se notar que nesses processos sintéticos há uma espécie de ascensão de
unidade ao múltiplo: a diversidade apreendida sinteticamente na intuição sensível, depois
a síntese do diverso da intuição através da imaginação e finalmente a unidade sintética
em um conceito – como podemos notar na citação seguinte extraída Crítica da razão
pura:

15 Kant, KrV, B160.


16 Kant, KrV, A103.
17 Kant, KrV, B103.

15
A primeira coisa que nos tem de ser dada a priori, com vistas ao
conhecimento de todos os objetos, é o diverso da intuição pura; a
segunda é a síntese desse diverso por meio da imaginação, mas ainda
não fornece conhecimento. Os conceitos que dão unidade a essa síntese
pura, e que consistem tão somente na representação dessa unidade
sintética necessária, constituem a terceira coisa necessária para o
conhecimento de um objeto apresentado e residem no entendimento.18

Para que a variedade de fenômenos que nos são apresentados através da intuição sensível
não seja um mero aglomerado de percepções intermitentes e descontínuas, a
conceitualização do entendimento fornece unidade transcendental aos dados dispersos e
aleatórios da experiência. Se, por um lado, toda experiência deve se conformar aos
conceitos do entendimento, por outro, tais conceitos são adequadamente instanciados na
experiência. A intuição sensível está em contato direto com o conteúdo da experiência e
o entendimento fornece a esse conteúdo conceitos capazes de dar unidade aos fenômenos.
Segundo Andréa Faggion, Kant utiliza a via aberta pelos empiristas, mas não deixa o
conhecimento objetivo apenas alicerçado nas impressões sensoriais, pois passa a
investigar como os conceitos são capazes de lidar com essas impressões. De acordo com
ela:

O peso do conhecimento objetivo não repousará mais apenas nos


ombros das impressões sensoriais, mas também no que os conceitos
podem fazer dessas impressões. Nós deixamos de nos preocupar em
saber se nossas impressões são ou não retratos fidedignos de um mundo
existente além de nós [...] passamos a nos ocupar da constituição de um
mundo objetivo para nós, usando aquelas impressões como material.
Os conceitos então passam a ser nada mais do que formas do nosso
conhecimento, para que se determine um objeto, quando impressões
são fornecidas.19
O entendimento, desse modo, não tem outro uso legítimo senão o de agir sobre a
sensibilidade, uma vez que ela é passiva e necessita do entendimento, que é ativo, para
constituir o objeto conceitualmente. As intuições sensíveis se estabelecem na
receptividade das impressões fenomênicas enquanto os conceitos se estabelecem no
caráter espontâneo do pensamento.20 Sendo o entendimento uma faculdade na qual o
conhecimento se produz através de conceitos, não é sua característica intuir e, portanto,
o conhecimento que ele produz não é de ordem intuitiva, mas conceitual.

18 Kant, KrV, B104.


19 Andréa Faggion, “A função do esquema transcendental na prova da realidade objetiva das categorias:
uma abordagem do suposto problema do círculo”, in Kant e o kantismo: heranças interpretativas, ed.
Martins, C. A. and Marques, U. R. de A, (São Paulo: Brasiliense, 2009), 34.
20 Kant, KrV, B93.

16
De acordo com uma possível intepretação da Crítica da razão pura, todo o nosso
conhecimento advém da relação entre intuições e conceitos, pois, como aparece em várias
passagens, um conceito sem uma intuição correspondente ou uma intuição sem conceito
são incapazes de fundar qualquer conhecimento.21 Essa interpretação possível, no
entanto, é controversa no debate contemporâneo acerca da teoria epistemológica kantiana,
já que parece apontar para uma posição conceitualista, e não é plausível ignorar uma
leitura não conceitualista da primeira Crítica, mas, vale dizer que, sendo como for, é o
entendimento que introduz a unidade da síntese no múltiplo da intuição através das
categorias e permite o conhecimento discursivo do objeto.22 De acordo com Joãosinho
Beckenkamp, isso é assim porque:

A representação da unidade da intuição só se torna possível pelo


conceito do objeto em relação ao qual é unificado o múltiplo dado na
intuição. É essencial neste caso ver que o conceito transcendental de
objeto não se define por algo dado pronto na intuição antes de qualquer
interação com o entendimento. Não é dito que no objeto dado na
intuição se encontra unificado o múltiplo, mas que no conceito do
objeto se unifica o múltiplo dado.23

As intuições sensíveis, como vimos, são condicionadas pelas formas puras a priori do
espaço e do tempo. Os objetos fornecidos pela sensibilidade são pensados pelo
entendimento com base na tábua das categorias, na qual Kant elenca quatro classes de
conceitos puros do entendimento. As categorias têm uma aplicação objetiva pois
enformam todo objeto fornecido pela intuição sensível; são elas: 1) da quantidade
(unidade, pluralidade e totalidade); 2) da qualidade (realidade, negação e limitação); 3)
da relação (de inerência e subsistência, de causalidade e dependência e de comunidade);
e, 4) da modalidade (possibilidade-impossibilidade, existência-não existência e
necessidade-contingência).24 As duas primeiras classes são chamadas categorias
matemáticas (dirigem-se aos objetos da intuição pura e empírica) e as duas últimas de
categorias dinâmicas (dirigem-se à existência dos objetos da intuição pura e empírica,

21 Kant, KrV, B 75-77.


22 Para uma aproximação acerca do debate contemporâneo entre conceitualismo e não conceitualismo na
filosofia kantiana consultar: Thomas Land, “Kantian Conceptualism”, in Rethinking Epistemology, ed. G.
Abel et al (Berlin: DeGruyter, 2011), 197-239. & Robert Hanna, “Kant and Nonconceptual Content”,
European Journal of Philosophy 13 (2005): 247 – 290.
23 Joãosinho Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017),

106.
24 Kant, KrV, B106.

17
conforme a relação que os objetos possuem entre si ou na relação deles com o
entendimento).25
Para que tais categorias tenham uma aplicação a qualquer experiência possível é
necessário, segundo Kant, estipular regras para o seu uso objetivo.26 Para tanto, é
necessário encontrar para as categorias os seus princípios. Um trecho da Crítica da razão
pura ilustra esse procedimento:

Que existam princípios é algo que só se pode atribuir ao entendimento


puro, que é não apenas a faculdade das regras em relação a tudo que
acontece, mas também a fonte dos princípios segundo os quais tudo
(que pode apresentar-se a nós como objeto) se subordina
necessariamente a regras, já que sem estas nunca se poderia atribuir aos
fenômenos o conhecimento de um objeto a eles correspondente. [...]
Apenas estes princípios, portanto, fornecem o conceito que contém a
condição e como que o expoente para uma regra em geral, enquanto que
a experiência dá o caso que se subordina à regra.27

A Analítica transcendental é dividida em Analítica dos conceitos – que, como vimos,


explora os conceitos puros do entendimento e sua aplicabilidade aos objetos fornecidos
pela sensibilidade ou, ao menos, aos objetos de uma experiência possível – e Analítica
dos princípios. Nessa segunda parte da Analítica Kant explora os esquemas, produtos da
imaginação, responsáveis pela mediação entre sensibilidade e entendimento. Existem
regras determinadas, segundo Kant, que podem garantir o uso dos conceitos puros do
entendimento, e os esquemas asseguram a objetividade dos conceitos. O esquematismo
possibilita a subsunção de uma intuição sensível em uma categoria do entendimento. Isso
é necessário, de acordo com Kant, porque os conceitos são completamente heterogêneos
em relação às intuições sensíveis, e para que haja uma aplicação dos conceitos às
intuições, ou para que aconteça a subsunção das intuições sob a conceitualização do
entendimento. Nas palavras do filósofo:

É evidente, pois, que tem de haver um terceiro elemento que seja


homogêneo com as categorias, de um lado, e com os fenômenos, de
outro, e que torne possível a aplicação das primeiras aos últimos. Esta
representação mediadora tem de ser pura (sem nenhum elemento
empírico) e, ao mesmo tempo, por um lado intelectual, por outro,
sensível. Tal representação é o esquema transcendental. 28

25 Kant, KrV, B110.


26 Kant, KrV, B 198-200.
27 Kant, KrV, B198.
28 Kant, KrV, B176-177.

18
O esquema deve possuir um viés sensível e um intelectual, funcionando como o terceiro
elemento dessa relação, sem, no entanto, possuir características que definem tanto
sensibilidade quanto entendimento. O esquematismo é aquela função que permite tornar
os conceitos sensíveis e as intuições inteligíveis, através de princípios transcendentais que
permitem aplicar as categorias a qualquer experiência possível. Assim, em nossa
interpretação da Crítica da razão pura, o esquematismo permite a Kant unir duas teses:
a de que o conhecimento começa com a experiência e a de que nem todo conhecimento
se esgota com a experiência, pois o conhecimento humano acerca da natureza não é
apenas moldado por dados empíricos, como quer o empirismo ingênuo, uma vez que, para
Kant, o humano possui uma estrutura cognitiva a priori que lhe confere um modo peculiar
de conhecer e pensar os dados empíricos que lhe são fornecidos pela sensibilidade. O
esquematismo surge dessa necessidade de ligar a estrutura conceitual a priori às intuições
empíricas.
Seguindo adiante com a nossa leitura da primeira Crítica, chegamos ao ponto em
que para cada grupo de categorias há um grupo correspondente de princípios. Isso marca,
no interior da Analítica transcendental, a passagem da Analítica dos conceitos para a
Analítica dos princípios. São eles: 1) axiomas da intuição; 2) antecipações da percepção;
3) analogias da experiência; e 4) postulados do pensamento empírico em geral. Assim
como ocorreu na tábua das categorias uma divisão em categorias matemáticas
(quantidade e qualidade) e categorias dinâmicas (relação e modalidade), tal divisão
também ocorre aqui na tábua dos princípios, ou seja: os princípios matemáticos (axiomas
da intuição e antecipações da percepção) e os princípios dinâmicos (analogias da
experiência e postulados do pensamento empírico em geral).
Tanto os princípios matemáticos quanto os princípios dinâmicos são princípios
constitutivos da experiência. Porém, com relação a intuição apenas os matemáticos são
constitutivos, uma vez que os dinâmicos são considerados regulativos em relação à
intuição. Segue a passagem na qual Kant afirma isso:

Na analítica transcendental nós distinguimos, dentre os princípios do


entendimento, os dinâmicos, como princípios meramente regulativos da
intuição, dos matemáticos, que são constitutivos em relação à última.
Apesar disso, as leis dinâmicas mencionadas são certamente
constitutivas em relação à experiência, já que tornam possíveis, a
priori, os conceitos sem os quais não haveria qualquer experiência.29

29 Kant, KrV, A664/B692.

19
Os princípios matemáticos são constitutivos da intuição devido ao fato de que qualquer
experiência não poder ser possível sem intuição e tais princípios enquanto condições
imprescindíveis a qualquer experiência são incondicionalmente necessários.30 Para que
um objeto possa ser determinado espaço-temporalmente são necessárias condições
apresentadas pelos princípios matemáticos, e para que o objeto nos apareça no que tange
às suas relações com outras aparências ou em relação ao entendimento são necessárias as
condições apresentadas pelos princípios dinâmicos. Isso torna as duas classes de
princípios majoritariamente constitutiva, pois ambos são constitutivos da experiência, os
primeiros por constituírem a intuição que permite a experiência, os demais por tornarem
possível a priori os conceitos sem os quais qualquer experiência seria impossível,31 ainda
que, como podemos notar na citação acima, os princípios dinâmicos tenham um papel
regulativo em relação à intuição.
Feitas essas considerações iniciais, passemos a explanação detalhada das funções
epistêmicas de cada classe de princípios.

1.3 Princípios matemáticos constitutivos da intuição

Os princípios matemáticos dizem respeito aos objetos da intuição pura ou empírica. Tais
princípios abarcam os axiomas da intuição e as antecipações da percepção e são
princípios constitutivos da intuição, pois apresentam condições necessárias para a
determinação conceitual do objeto que se apresenta in concreto à sensibilidade.32 Esses
princípios são considerados matemáticos por três motivos: 1) porque é matemático o
emprego da síntese categorial na aplicabilidade dos conceitos do entendimento à
experiência possível, incidindo sobre a intuição; 2) pelo fato de que tais princípios são
responsáveis por uma certeza intuitiva; e 3) pelo fato de que tais princípios permitem a
aplicação da matemática aos fenômenos.33 Analisemos, pois, a função epistêmica de cada
um dos princípios.

1.3.1 O princípio dos axiomas da intuição

30 Kant, KrV, B199.


31 Kant, KrV, B692.
32 Kant, KrV, A664/B692.
33 Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 127.

20
Os axiomas da intuição, primeiro grupo de princípios matemáticos, têm por princípio que
“todas as intuições são magnitudes extensivas”.34 Uma magnitude extensiva é aquela na
qual a representação das partes antecede e torna possível a representação do todo. Por
meio da síntese sucessiva de partes torna-se possível a cognição do fenômeno na
apreensão, o que faz com que todo fenômeno seja uma magnitude extensiva.35 Todos os
objetos da percepção, tanto do sentido externo quanto no sentido interno, são constituídos
por uma síntese de partes homogêneas e apenas podem ser conhecidos na experiência
enquanto magnitudes extensivas. As partes do espaço e os períodos de tempo são
construídos através de uma síntese sucessiva de partes homogêneas, o que faz com que
tudo o que for intuído tenha necessariamente uma magnitude extensiva.36 Para qualquer
representação do espaço ou do tempo está em jogo uma síntese, o que nos leva a concluir
que toda representação envolve sucessão de partes espaciais ou de segmentos temporais,
e, portanto, é uma quantidade extensiva. A conclusão disso é que, se as intuições,
enquanto percepções formatadas espaço-temporalmente, são passíveis de especificidade
quantitativa.
É necessário ressaltar que os axiomas da intuição não são propriamente axiomas
pelo seu status, mas sim por sua função. Esse princípio não tem a pretensão de ser um
axioma, no sentido lógico do termo, tampouco é um princípio no plural como poderia
suscitar a palavra “axiomas”, mas é um princípio da possibilidade dos axiomas em geral,
que justifica os axiomas da própria matemática. Nas palavras de Kant:

Mencionei na analítica [...], na tábua dos princípios do entendimento


puro, certos axiomas da intuição; mas o princípio ali introduzido não
era ele próprio um axioma, servindo antes para indicar o princípio da
possibilidade dos axiomas em geral, e sendo apenas, ele próprio, um
princípio derivado de conceitos. Pois mesmo a possibilidade da
matemática tem de ser mostrada na filosofia transcendental. A filosofia,
portanto, não tem axiomas e nunca pode impor os seus princípios a
priori de maneira tão absoluta, mas tem antes de contentar-se em
justificar, por meio de uma rigorosa dedução, a sua prerrogativa em
relação a eles.37

Os axiomas da intuição, portanto, têm por função aplicar a matemática à experiência e


estabelecer continuidade nas intuições. Se todos os fenômenos, de acordo com Kant, são
magnitudes ou grandezas extensivas,38 e devemos considerar a matemática como uma

34 Kant, KrV, B202.


35 Kant, KrV, B203-204.
36 Jay F. Rosenberg, Accessing Kant, (Oxford: Oxford University Press, 2005), 170.
37 Kant, KrV B761-2.
38 Kant, KrV, B202.

21
ciência que se ocupa de tais grandezas, então a matemática é aplicável aos fenômenos,
sendo assim constituinte de uma possível ciência dos fenômenos ou da experiência.39

1.3.2 O princípio das antecipações da percepção

O princípio das antecipações da percepção, segundo do grupo de princípios matemáticos,


afirma que “em todos os fenômenos o real, que é um objeto da sensação, tem magnitude
intensiva”, ou seja, um grau.40 No que tange aos objetos da percepção, os fenômenos não
são intuições simplesmente formais, como vimos ser o caso do espaço e do tempo. Há
uma consciência empírica da percepção que engloba simultaneamente a sensação. Isso
resulta que de uma consciência empírica à uma consciência pura exista uma modificação
gradual, que pode ser aplicada a qualquer objeto da sensação um grau de influência sobre
o sentido.41 Desse modo, a categoria de qualidade, junto com a de quantidade, permite
antecipar toda experiência possível. Embora a intensividade da própria percepção não
possa ser postulada a priori, pois depende da matéria da sensação, a noção de
intensividade, enquanto fundamento do princípio a priori das antecipações da percepção,
antecede-se subjetivamente ao fenômeno. As antecipações da percepção relacionam-se
com a possibilidade de antecipar o estado de um objeto em uma possível experiência.42
É, portanto, condição a priori que toda qualidade do fenômeno possua um grau de
realidade.
As noções de magnitude extensiva e intensiva definem em que medida os
princípios matemáticos são constitutivos da intuição, pois oferecem condições
necessárias e a priori para que o objeto seja conceitualmente concebido espaço-
temporalmente. Enquanto os axiomas referem-se “forma” da intuição, as antecipações
referem-se ao real da percepção, à sua “matéria”.43 De acordo com Kant:

os aparecimentos [fenômenos], enquanto meras intuições, que ocupam


uma parte de espaço e de tempo, subordinam-se ao conceito de
grandeza [quantidade] que une sinteticamente e a priori o múltiplo de
intuições segundo regras; e porque, na medida em que a percepção
contém, além da intuição, também sensação [...], o que é real no

39 Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 128.


40 Kant, KrV, B207.
41 Kant, KrV, B207-208.
42 Patrícia Kauark-Leite, “The Transcendental Role of the Principle of Anticipations of Perception in

Quantum Mechanics”, in Constituting Objectivity: Transcendental Perspectives on Modern Physics, ed.


Bitbol, M., Kerszberg, P. and Petitot, (Berlin: Springer, 2009), 206.
43 Rosenberg, Accessing Kant, 165.

22
aparecimento deve ter algum grau [...]. Embora a sensação, enquanto a
qualidade da intuição empírica que especificamente a distingue de
outras sensações, jamais possa ser conhecida a priori, ela pode,
contudo, em uma possível experiência em geral, distinguir-se
intensivamente de qualquer outra do mesmo tipo enquanto grandeza da
percepção, a partir do que, a aplicação da matemática à natureza, no que
respeita à intuição sensorial através da qual ela nos é dada, é em
primeiro lugar tornada possível e determinada.44

Assim, os dois princípios denominados matemáticos, analisados de acordo com a intuição


ou de acordo com o real das percepções, funcionam conforme as regras de uma síntese
matemática, daí o fenômeno possuir magnitude, o que os torna constitutivos da intuição.
Através dos axiomas da intuição o objeto matemático pode ser conceitualmente
construído e através das antecipações da percepção o objeto físico pode ser
conceitualmente percebido. Se o primeiro princípio está ligado a constituição da
matemática em geral, o segundo está ligado à possibilidade efetiva de uma ciência
matemática da natureza. Tais princípios são, nesse sentido, regras que permitem a
elaboração de uma ciência necessária e universal da experiência, através, no primeiro
caso, do esquema do número que vincula a categoria de quantidade à forma pura das
aparências e, no segundo caso, através do esquema do cálculo infinitesimal que vincula a
categoria de qualidade ao ato de percepção da matéria empírica. Não podemos esquecer,
conforme esclarece Kauark-Leite, que:

para a constituição do objeto da intuição em Kant, deve-se


necessariamente considerar os dois princípios matemáticos do
entendimento puro: os axiomas da intuição e as antecipações da
percepção. Esses são os princípios que justificam a constituição de uma
física matemática da natureza e que respondem à questão da
possibilidade de uma descrição matemática da natureza.45

Esses princípios (axiomas da intuição e antecipações da percepção), que Kant denominou


matemáticos, justificam a aplicação da matemática aos fenômenos, ou seja, garantem que
haja a possibilidade dos fenômenos e que os fenômenos são “engendrados de acordo com
as regras de uma síntese matemática”46, daí o emprego da quantidade numérica e da
determinação do fenômeno em sua quantidade extensiva e em sua quantidade intensiva.
Caso diverso acontece com os princípios que Kant designou como dinâmicos.

44 Prol, §26; Immanuel Kant, Prolegômenos, trad. José Oscar de Almeida Marques (São Paulo: Estação
Liberdade, 2014), 86.
45 Patrícia Kauark-Leite, “Redefinindo a curvatura do arco: aspectos transcendentais da racionalidade

quântica”, Analylica 17, no. 01 (2013): 71.


46 Kant, KrV, B221-222.

23
1.4 Princípios dinâmicos regulativos da intuição

De acordo com Kant as analogias da experiência e os postulados do pensamento empírico


em geral, princípios dinâmicos do entendimento, são regulativos em relação à intuição,
pois os fenômenos que são temporalmente distintos devem ser pensados como tendo
alguma relação e deve haver a possibilidade se serem agrupados enquanto momentos de
uma experiência estendida no tempo.47 Se, por um lado, os princípios matemáticos
garantem que os fenômenos possuam ligações de acordo com uma síntese matemática e
assim temos justificada a aplicação da física matemática à natureza, por outro lado, é
necessário que haja, segundo Kant, princípios dinâmicos capazes de fornecer regras a
priori à existência dos fenômenos. Os princípios dinâmicos, segundo Kant, geram leis da
natureza, e para ilustrar isso, vejamos uma passagem dos Prolegômenos na qual o filósofo
desdobra a noção de causalidade para os demais conceitos que estão sob os princípios
dinâmicos da relação, que além da causalidade, apresentam a substância e a comunidade:

No que concerne à relação dos aparecimentos e exclusivamente em


vista de sua existência, a determinação dessa relação não é matemática,
mas dinâmica, e jamais pode ser objetivamente válida e, portanto, útil
para a experiência se não estiver subordinada a princípios a priori que
tornam inicialmente possível uma cognição pela experiência dessa
determinação. Por consequência, aparecimentos devem ser subsumidos
ao conceito de substância, que, enquanto um conceito da própria coisa,
está na base de todas as determinações de existência; ou, em segundo
lugar, no caso em que se encontra uma sucessão de aparecimentos no
tempo, isto é, um evento, ao conceito de um efeito em relação a uma
causa; ou, ainda, no caso em que uma existência simultânea deve ser
conhecida objetivamente, isto é, mediante um juízo de experiência, ao
conceito de comunidade (reciprocidade); e, portanto, princípios a priori
estão na base de juízos que, embora empíricos, são objetivamente
válidos; ou seja, estão na base da possibilidade da experiência na
medida em que esta deve conectar objetos na natureza segundo sua
existência. Esses princípios são as leis, propriamente, da natureza, e
podem ser chamados dinâmicos.48

Pelo fato de os princípios dinâmicos tornarem possível as leis empíricas eles não podem
ser constitutivos em relação à intuição, como é o caso dos matemáticos, pois os princípios
dinâmicos se aplicam a um objeto apropriado ou correspondente ao passo que um
conceito empírico também tenha correspondência em um objeto, e isso apenas pode

47 Kant, B222-223.
48 Kant, Prol. §25.

24
ocorrer quando uma lei empírica é satisfeita.49 As leis proporcionadas pelos princípios
matemáticos são leis matemáticas que regem fenômenos ou percepções e não leis
empíricas que constituem uma relação necessária entre objetos ou fenômenos. Ao
contrário, os princípios dinâmicos são capazes, segundo uma lei empírica, de determinar
a relação entre as intuições. Vejamos como isso ocorre, mais detalhadamente, com relação
às analogias da experiência e aos postulados do pensamento empírico em geral.

1.4.1 Analogias da experiência

As analogias da experiência têm por princípio que “a experiência só é possível por meio
da representação de uma conexão das percepções.”50 A consciência é responsável pela
unidade sintética do diverso das percepções. Essa capacidade de síntese não está contida
nas percepções, mas como condição do sujeito que experiencia. Na experiência as
percepções se agrupam de modo contingencial e a necessidade de conexão entre elas não
pode tornar-se clara a partir das próprias percepções, pois é necessário que haja conceitos
conectivos que as antecedam.51 Para haver conexão entre percepções se faz necessário a
noção de tempo, todavia não podemos colocar acontecimentos no tempo objetivo, como
acreditam alguns, simplesmente observando suas determinações temporais, pois o tempo
não é percebido como um atributo das coisas no tempo, o tempo não tem uma existência
independente com a qual se pode coordenar as coisas.52 Os conceitos conectivos que
antecedem as percepções (e com os quais elas podem ser relacionadas) estão
fundamentados na noção de tempo, que é a forma mais fundamental da sensibilidade.
Kant então apresenta os três modos do tempo – a permanência, a sucessão e a
simultaneidade – que constituem as três analogias da experiência.

A primeira analogia estabelece o princípio da permanência da substância: em toda


modificação dos fenômenos permanece a substância, e seu quantum na natureza não é
nem aumentado nem diminuído.53 Há uma permanência subjacente do objeto no tempo
para que possamos percebe-lo em diversos momentos sem confundirmos cada momento
da percepção como se tratando de um objeto distinto. Mesmo que haja mudanças ou

49 Michael Friedman, “Regulative and Constitutive”. Southern Journal of Philosophy, Vol. XXX
Supplement (2009): 86.
50 Kant, KrV, B218.
51 Kant, KrV, B219.
52 Rosenberg, Accessing Kant, 180.
53 Kant, KrV, B224.

25
modificações, elas apenas são possíveis em relação aquilo que permanece. Cada
modificação, com efeito, pode ser encarada como um modo de existir do objeto, que está
em relação com outros modos de existir do mesmo objeto. Escreve Kant:

Por isso, tudo o que se modifica permanece, e apenas o seu estado


muda. Como essa mudança, portanto, só diz respeito às determinações
que podem cessar ou também iniciar-se, nós podemos então dizer [...]
que apenas o permanente se modifica.54

Assim, conclui-se que devemos representar toda mudança no modo como o objeto se nos
apresenta como a alteração em uma substância que permanece. A substância, todavia, não
é um predicado ontológico, mas refere-se ao modo como em nós as diversas aparências
de um objeto podem ser representadas no tempo como sendo do mesmo objeto. A matéria
modifica-se constantemente, mas a substância que é seu substrato permanece sem que se
quantum seja alterado. Por exemplo: podemos perceber uma determinada folha verde se
desenvolvendo em uma planta. Depois avistamos a mesma folha caída ao solo tonando-
se acinzentada e seca a cada dia que passa. Em semanas a folha se desfaz em pedaços até
estes se tornarem tão miúdos que são absorvidos pela terra. Não houve o surgimento da
algo a partir do nada, nem seu desaparecimento. A matéria modificou-se com o passar do
tempo, mas a substância que lhe serviu de substrato manteve-se sem alterar o quantum
que lhe é inerente. Portanto, o princípio transcendental da substancialidade garante que a
quantidade total da substância em geral permaneça inalterável.55 É mediante a condição
necessária da permanência que os fenômenos podem ser objetos de uma experiência
possível.
A segunda analogia estabelece o princípio da sucessão temporal segundo a lei de
causalidade: “todas as modificações acontecem segundo a lei da conexão de causa e
efeito.”56 Essa analogia trabalha os fenômenos como sucessões temporais, nas quais
podemos estabelecer causas e efeitos, não porque exista a causalidade como um fator
extrínseco a nós, mas porque ordenamos os acontecimentos de acordo com a condição a
priori do tempo e assim podemos encarar os eventos discernindo-os analogamente sob as
noções de causa e efeito. É, portanto, uma característica sintética ligar dois estados
diferentes de um objeto como sendo um antes e outro depois e não que um estado anteceda
o outro no objeto independente da lei causal intrínseca ao sujeito cognoscente. O conceito

54 Kant, KrV, B230.


55 Friedman, “Regulative”, 81.
56 Kant, KrV, B232.

26
da relação de causa e efeito é, assim, um conceito puro do entendimento que fornece
unidade sintética ao ‘antes e depois’ fornecido pela sensibilidade. A causalidade,
enquanto fundamento da segunda analogia da experiência, deve estar sempre relacionada
com a intuição, a lei de causalidade está sempre presente na percepção dos
acontecimentos e reveste de necessidade a ordem das percepções que se seguem umas às
outras, na apreensão de um determinado fenômeno.57
Para os propósitos desta exposição, a reconstrução dos argumentos de Kant, no
que diz respeito à segunda analogia, elaborada por Watkins no livro Kant and the
Metaphysics of Causality, será de grande esclarecimento:

P1 – A sucessão objetiva é a conexão entre duas aparências (entre os


estados de um objeto que pode aparecer para nós).

P2 – A intuição não fornece conhecimento de qualquer conexão.

C1 – A intuição não fornece conhecimento da sucessão objetiva.


(Conclusão a partir de P1 e P2)

P3 – A síntese da imaginação pode representar uma conexão.

P4 – A sucessão objetiva não é exatamente qualquer conexão, mas uma


conexão necessária de acordo com a qual um estado de um objeto deve
preceder o segundo estado do mesmo objeto.

P5 – A síntese da imaginação não pode representar a necessária conexão


entre aparências (i.e., os estados do objeto), uma vez que pode
representar apenas uma relação contingente entre percepções (ou
estados de um objeto).

C2 – A síntese da imaginação não pode representar a sucessão objetiva.


(Conclusão a partir de P4 e P5).

P6 – Há uma disjunção exaustiva entre intuições da sensibilidade,


sínteses da imaginação e categorias do entendimento.

C3 – Apenas as categorias podem representar uma conexão necessária


entre os estados de um objeto. (Conclusão a partir de C1, C2 e P6).

P7 – A única categoria que pode representar uma conexão necessária


entre estados sucessivos de um objeto é a da causalidade.

C4 – A causalidade é uma condição necessária para representar e assim


conhecer a sucessão objetiva. (Conclusão a partir de C3 e P7).58

57Kant, KrV, B238.


58Eric Watkins, Kant and the Metaphysics of Causality (Cambridge: Cambridge University Press, 2005),
208. (Trecho traduzido pelo autor da dissertação).

27
A causalidade, portanto, não é derivada das coisas, mas uma condição a priori do
entendimento que nos permite encontrar a ligação necessária entre eventos e inferir
conhecimento sobre a sucessão objetiva. Essa analogia, assim como as outras, portanto,
é regulativa em relação à intuição porque estabelece a unidade do tempo, ou seja, todos
os momentos de tempo são partes sucessivas de um único tempo enquanto condição
primaria subjetiva de percepção dos objetos. A segunda analogia nos permite o
conhecimento objetivo através da relação causal.59 A unidade temporal a que nos
referimos não surge apenas da sucessão pela qual podemos estabelecer a relação causal,
mas também surge pela permanência (primeira analogia) e simultaneidade (terceira
analogia) que permitem também o estabelecimento de relações temporais entre objetos.
A terceira analogia estabelece o princípio da simultaneidade segundo a lei da
reciprocidade ou comunidade: “todas as substâncias, na medida em que podem ser
percebidas como simultâneas no espaço, estão em completa reciprocidade.”60 A lei de
reciprocidade ou comunidade permite-nos coordenar a coexistência de aparências. Se na
primeira analogia as aparências se relacionavam pelo fato de haver nelas o substrato da
substância que nos permitia percebe-las como oriundas de um mesmo objeto e se na
segunda analogia a sucessão de aparências apenas pode ser inferida pela lei de
causalidade, na terceira analogia a relação entre aparência é pensada em termos de
simultaneidade. Esse princípio é fundamental na experiência pois sem ele não poderíamos
relacionar as coisas que ocupam o mesmo tempo ou espaço. Embora possamos perceber
duas coisas no mesmo espaço, primeiro uma depois a outra, pois a percepção é sequencial,
esse princípio nos permite saber que elas existem simultaneamente no mesmo contexto.
Isso vale também para dois eventos simultâneos no tempo. As representações fornecidas
pela síntese da imaginação, uma a uma, não nos garantiria a simultaneidade; para que isso
ocorra é necessário, segundo a passagem abaixo citada, o conceito do entendimento:

da sequência reciproca das determinações dessas coisas, que existem


simultaneamente umas fora das outras, para dizer que a sequência
recíproca das percepções está fundada no objeto e, assim, representar a
simultaneidade como objetiva.61

Não há necessidade metafísica ou lógica para que objetos independentes interajam, mas
é uma condição a priori que sujeitos cognitivos humanos possam estabelecer a

59 Jonathan James Everett, “Constitutive and regulative principles? The Kantian legacy for contemporary
philosophy of science” (Doctoral thesis, UCL, 2014), 83.
60 Kant, KrV, B256.
61 Kant, KrV, B257.

28
coexistência de objetos – com base no princípio transcendental da simultaneidade –
objetos que em nossas representações aparecem apenas como sucessivos, no tempo ou no
espaço.62
As analogias da experiência, como podemos notar, fornecem unidade à natureza,
pois concatenam os fenômenos de acordo com certos princípios. Essa concatenação se dá
segundo regras necessárias ou leis que tornam a natureza no sentido empírico possível.
Kant enfatiza isso assim que termina a exposição das três analogias:

Em seu conjunto, portanto, elas [as analogias] dizem que todos os


fenômenos residem – e têm de residir – em uma natureza, pois sem essa
unidade a priori não seria possível qualquer unidade da experiência,
portanto também nenhuma determinação dos objetos na mesma.63

Uma vez que, como ainda teremos a oportunidade de analisar detalhadamente, a noção
de unificação em Kant é um ideal regulador, a unificação dos três modos de tempo sob as
Analogias da experiência é um procedimento regulativo que permite a conexão entre a
unidade dos modos de tempo e a unidade da natureza. Isso torna possível que as intuições
sejam unificadas dentro de uma experiência.

1.4.2 Postulados do pensamento empírico em geral

Os princípios dinâmicos da modalidade, que Kant denomina de os postulados do


pensamento empírico em geral (o quarto e último grupo de conceitos do entendimento),
abarcam os conceitos de: possibilidade, realidade e necessidade. Para que algo seja
possível deve concordar com condições formais da experiência, de acordo com as
intuições e com os conceitos. Algo é real quando pode ser concatenado com as condições
formais da experiência, o real pressupõe a materialidade da experiência. E algo é
necessário quando sua concatenação com o real pode ser determinada de acordo com leis
universais da experiência, ou seja, pode ser expresso em leis.64 Os postulados referem-se
à síntese da intuição (forma do fenômeno), à síntese da percepção (matéria do fenômeno)
e à síntese da experiência (relação entre percepções). Esses princípios possuem um caráter
necessário a priori, mas tal necessidade apenas pode ser provada com a experiência, o
que faz com que tais princípios, ao contrário dos princípios matemáticos, não sejam

62 Paul Guyer, Kant and the Claims of Knowledge (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), 268.
63 Kant, KrV, B263.
64 Kant, KrV, B265-266.

29
apodíticos.65 Essas três modalidades (possibilidade, realidade e necessidade) devem ser
entendidas enquanto condições da experiência e, portanto, em termos de epistemologia,
e não no sentido lógico-formal. Já que não são meros conceitos lógicos ou analíticos, os
postulados adquirem uma função transcendental, uma vez que possiblidade, realidade e
necessidade são conceitos que se reportam à intuição e, consequentemente, aos objetos
da experiência ou à própria experiência. Isso nos leva à conclusão de que os objetos do
conhecimento apenas são fornecidos pela experiência e não meramente pela especulação
lógico-formal. Podemos dizer que ao finalizar a exposição dos princípios do
entendimento puro com os postulados do pensamento empírico em geral o uso das demais
categorias se restringem a aplicabilidade empírica.
Para concluir, na seção 1.3 sublinhamos que os princípios dinâmicos (as analogias
da experiência e os postulados do pensamento empírico em geral) são regulativos em
relação a intuição porque seus conceitos apenas se ligam a um objeto quando há um
conceito empírico particular e este apenas possui um objeto que lhe corresponda na
medida em que uma lei causal empírica é satisfeita.66 Já os princípios matemáticos,
enquanto constitutivos da intuição, possibilitam leis puramente matemáticas que
determinam a extensividade e a intensidade das percepções, sem implicar, no mesmo
sentido que os regulativos, em leis causais empíricas, pois os princípios matemáticos não
implicam nenhuma conexão necessária entre as percepções e, assim, nenhuma lei
dinâmica.67

1.5 Princípios constitutivos da experiência em geral

Os quatro princípios da analítica transcendental (Axiomas da intuição, Antecipações da


percepção, Analogias da experiência e Postulados do pensamento empírico em geral),
separados em matemáticos e dinâmicos, são em conjunto princípios constitutivos da
experiência. De acordo com Otfried Höffe os princípios do entendimento puro exprimem:

não só o último grau da filosofia transcendental de constituição da


experiência, mas também os primeiros princípios estruturais
filosoficamente fundados da investigação das ciências particulares. Eles
constituem tanto a complementação da parte analítica da [primeira]
Crítica como o início de uma metafísica da natureza que Kant

65 Kant, KrV, B199-200.


66 Friedman, “Regulative”, 86.
67 Ibidem.

30
desenvolve em Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft
[Primeiros princípios metafísicos da ciência natureza].68

Devido a isso, logo no início da segunda parte da Crítica da razão pura, quando Kant
passa a esclarecer o que o levou a dividir a Lógica transcendental em analítica e dialética,
ou seja, em entendimento e razão, ele afirma que a analítica se preocupará com princípios
sem os quais nenhum objeto pode ser pensado. A analítica é também, de acordo com ele,
uma lógica da verdade, pois qualquer conhecimento que a contradiga perde seu conteúdo
e, consequentemente, perde toda a referência ao objeto.69 Os princípios ali expostos
devem acomodar-se necessariamente a uma experiência possível. Se, no entanto, o ímpeto
do conhecimento esforça-se por avançar além dos limites da experiência, e passa a julgar
objetos que não foram dados ou que jamais possam ser, o uso do entendimento é dialético
e, propriamente, passa a integrar o campo da razão. A divisão da Lógica transcendental
em analítica e dialética, portanto, é também uma divisão com relação aos princípios
constitutivos e regulativos, uma vez que os conceitos puros do entendimento são
constitutivos da possibilidade da experiência, e a razão é apenas regulativa em relação à
experiência, pois as suas ideias, ao contrário dos conceitos do entendimento, não podem
ser instanciadas em absoluto na experiência.
Como vimos acima a síntese especiosa, que envolve a síntese da apreensão e a
síntese da reprodução, é uma síntese pré-conceitual, que Kant chama de receptividade das
impressões, na qual nos é dado o objeto. Porém, esse objeto é pensado pelo entendimento
através da espontaneidade dos conceitos.70 Por isso, qualquer experiência é passível de
ser constituída conceitualmente pelo entendimento. Toda a experiência, de acordo com
Kant, deve se acomodar aos conceitos do entendimento, os quais, por sua vez, só realizam
plenamente sua função se instanciados na experiência. Esse processo é resumido na
Crítica da razão pura do seguinte modo:

O diverso das representações pode ser dado em uma intuição que é


apenas sensível, i.e., nada além de uma receptividade, e a forma dessa
representação pode residir a priori em nossa faculdade de representação
sem ser algo distinto, porém, do modo pelo qual o sujeito é afetado.
Mas a ligação (conjunctio) de um diverso em geral não pode jamais
chegar a nós através dos sentidos [...] pois é um ato da espontaneidade
do poder de representação e, como este tem de ser denominado

68 Otfried Höffe, Immanuel Kant, 119.


69 Kant, KrV, B87.
70 Kant, KrV, B74.

31
entendimento para diferenciar-se da sensibilidade, então toda ligação
[...] é uma ação do entendimento.71

Ou seja, o trecho designa a própria síntese entre sensibilidade e entendimento, que não é
impulsionada pelos objetos, mas uma atividade do sujeito. Isso nos leva a conclusão de
que toda a experiência do sujeito transcendental possui relações causais, substâncias,
unidade, pluralidade e assim por diante, conforme apontam as doze categorias ou
conceitos puros do entendimento. O entendimento age segundo princípios a priori, de
natureza subjetiva, ou mais precisamente transcendental e que são, ao mesmo tempo,
constitutivos dos fenômenos, proporcionando-lhes validade objetiva. Esses princípios são
constitutivos e possibilitam a experiência em geral, além de serem a fonte das leis
empíricas ou leis da natureza, se preferirmos, leis científicas. Na definição de Kant:

O entendimento é ele próprio a fonte das leis da natureza e, portanto, da


unidade formal da natureza [...] Enquanto tais, as leis empíricas
certamente não podem derivar sua origem do entendimento puro, do
mesmo modo como a incomensurável diversidade dos fenômenos não
pode ser inteiramente compreendida a partir da forma pura da intuição
sensível. Todas as leis empíricas, contudo, são apenas determinações
particulares das leis puras do entendimento, as únicas sob as quais, e
segundo cuja a norma, aquelas são simplesmente possíveis e os
fenômenos assumem uma forma de lei, do mesmo modo como todos os
fenômenos, independentemente da variedade de suas formas empíricas,
têm de ser sempre conforme às condições da forma pura da
sensibilidade.

Os conceitos do entendimento não têm outra aplicabilidade senão aos objetos da


experiência, as leis deles resultantes dão forma nomotética aos fenômenos e, portanto,
constituem leis científicas. Seguindo esse raciocínio, as leis científicas não são fruto da
descoberta de regularidades subjacentes aos fenômenos, mas são subjetivamente
construídas, assim como o objeto é subjetivamente determinado; não são independentes
de nós, mas modos pelos quais explicamos o mundo no qual nos encontramos, ou seja,
nos ensinam o modo pelo qual a nossa subjetividade conhece o mundo. Assim, se a síntese
entre sensibilidade e entendimento origina leis científicas, que são construções subjetivas
que dão forma e regularidade aos fenômenos, tal síntese por si já demonstraria que a
Crítica da razão pura se presta mais coerentemente a uma leitura antirrealista, uma vez
que até mesmo as leis científicas surgem desse jogo entre a capacidade conceitual do

71 Kant, KrV, B129-130.

32
sujeito transcendental e o mundo que lhe é fornecido através da sensibilidade. Isso é
assim, segundo Kant, porque:

Os fenômenos existem não em si, mas apenas relativamente ao sujeito


na medida em que este tem sentidos [e] as leis existem não nos
fenômenos, mas apenas relativamente ao sujeito a que os fenômenos
inerem, na medida em que ele tem entendimento.72

Os conceitos puros do entendimento não são meros constructos artificias de uma


determinada filosofia, mas são elementos indispensáveis em qualquer relação do humano
com a objetividade. Mais adiante isso é decisivamente reiterado quando Kant fala da
unidade da natureza:

Somos nós, portanto, que introduzimos nos fenômenos a ordem e a


regularidade a que denominamos natureza, e não poderíamos encontra-
la neles se nós, ou a natureza de nossa mente, não a tivéssemos
originalmente introduzido. Pois essa unidade da natureza deve ser uma
unidade necessária, i.e., a priori certa, da conexão dos fenômenos.
Como poderíamos nós, contudo, colocar uma unidade sintética a priori
em operação, se os fundamentos subjetivos dessa unidade não
estivessem contidos a priori nas fontes cognitivas originárias de nossa
mente, e se estas condições subjetivas não fossem ao mesmo tempo
objetivamente válidas, constituindo os fundamentos da possibilidade
em geral de conhecer um objeto na experiência?73

Desse modo, os conceitos do entendimento delineiam qualquer experiência possível e,


portanto, qualquer lei científica possível, servindo de base epistêmica para qualquer
sistema teórico científico. Os princípios e conceitos do entendimento são constitutivos
em relação à experiência precisamente por, de algum modo, tornarem os conceitos
empíricos “possíveis a priori”. A causalidade, a título de exemplo, enquanto um conceito
pertencente aos princípios dinâmicos da relação, permite que seja possível o conceito
empírico de uma sucessão de estados ou alteração.74 Na demorada explanação que Kant
faz da segunda analogia podemos notar que a causalidade, enquanto um conceito puro do
entendimento, se refere também a uma ideia mais geral de alteração, que nos permite
encontrar nas modificações dos estados de um objeto a sucessão e, portanto, uma relação
causal. Vejamos como Kant levanta essa questão e imediatamente a responde:

Como pode algo, no entanto, em geral modificar-se? Como é possível


que a um estado em um ponto do tempo se siga um estado oposto em
outro ponto? Quanto a isso nós não temos, a priori, o mínimo conceito.

72 Kant, KrV, B164.


73 Kant, KrV, A125-126.
74 Friedman, “Regulative”, 79-80.

33
Exige-se para isso o conhecimento de forças reais que só podem ser
dadas empiricamente, como, por exemplo as forças motrizes ou, o que
dá no mesmo, certos fenômenos sucessivos (movimentos) que
manifestam essas forças. A forma de cada modificação, no entanto, a
única condição sob a qual ela pode ocorrer como o surgir de um outro
estado (qualquer que seja o seu conteúdo, i. e., o estado que é
modificado), portanto a sucessão dos próprios estado (o ocorrido), é
algo que pode ser tratado a priori segundo a lei da causalidade e as
condições do tempo.75

Os objetos da experiência estão a mercê de modificações que podem ser encaradas


sucessivamente e receber um ordenamento causal. A causalidade enquanto um conceito
puro do entendimento nos permite experienciar os estados sucessivos de um objeto e
fornecer a eles uma relação de causa e efeito, em consonância, é claro, com as condições
do tempo. As mudanças temporais são conformadas a lei causal pois, de acordo com essa
segunda analogia, há uma relação necessária entre a causa e o efeito. Sem uma regra que
impusesse necessidade às sucessões perceptuais a subjetividade não encontraria sentido
no fluxo caótico de intuições sensíveis. Essa regra permite que uma determinada relação
causal subjetiva possa ser também uma relação causal objetiva e assim adquirir o estatuto
de lei causal. As alterações fenomênicas podem ser experenciadas de acordo com a
causalidade, ainda que as motivações reais que fazem com que algo mude de estado
dependa de dados empíricos – conduzindo-nos a uma interpretação não subjetivista da
concepção kantiana de causalidade, interpretação esta da qual o próprio filósofo quer se
distanciar.
De mais a mais, as categorias são fornecidas a um objeto na medida em que um
determinado conceito empírico tem um objeto correspondente, e o conceito empírico
apenas tem um objeto correspondente na medida em que uma lei causal empírica é
satisfeita – por isso são princípios constitutivos em relação à experiência.76
Os conceitos do entendimento constituem regras para que possamos conhecer as
relações determinadas entre os objetos, embora para que tais relações sejam efetivamente
dadas nos objetos é preciso passar do caráter conceitual ao âmbito das sensações, em
relação as quais a constitutividade do entendimento se faz presente. O entendimento é,
portanto, constitutivo da forma da experiência na medida em que objetos lhe são
fornecidos pela sensibilidade. Por isto:

A exigência de que se demonstre a realidade objetiva ou a possibilidade


real dos conceitos puros do entendimento implica uma restrição
75 Kant, KrV, B252-3.
76 Friedman, “Regulative”, 86-87.

34
fundamental do uso destes conceitos, uma vez que esta possibilidade
real é definida como consistindo na concordância com as condições
formais de uma experiência cuja dimensão material é essencialmente
definida pelos dados dos sentidos.77

Partindo do pressuposto que a Crítica da razão pura analisa os fundamentos do


conhecimento empírico, isto é, em outras palavras, os fundamentos da ciência moderna
físico-matemática e, por extensão, nos possibilita a análise da estruturação das teorias
científicas de modo geral, os princípios e conceitos do entendimento agindo
espontaneamente sobre os dados da sensibilidade constituindo os fenômenos, são
responsáveis pelas leis científicas, mas ainda não são suficientes para a construção de
teorias científicas, uma vez que estas requerem uma unidade sistemática de leis empíricas,
e isso é uma função exclusiva da faculdade da razão. Passemos, pois, à análise dos
princípios regulativos da faculdade da razão.

1.6 Princípios regulativos da experiência em geral

Embora a razão tenha um caráter especulativo, deve ser examinada, assim como o fora o
entendimento na dedução das categorias e dos princípios, para constatarmos se pode ser
encarada como uma fonte de conceitos e de que modo eles atuam na subjetividade e no
nosso modo de teorizar o mundo. Como vimos, o entendimento fornece ao conteúdo da
sensibilidade regras que são capazes de dar unidade aos fenômenos – suas categorias e
conceitos puros, enquanto constitutivos da experiência, são passíveis de dedução
transcendental e validade objetiva. A faculdade da razão, por sua vez, fornece unidade às
regras do entendimento, fornece princípios regulativos às leis empíricas constituídas pelo
entendimento. Se através do entendimento é possível transformar o conteúdo da
sensibilidade em leis científicas, eminentemente empíricas, através da faculdade da razão
é possível transformar um aglomerado de leis científicas em um sistema teórico de leis e,
portanto, numa ciência genuína. Desse modo, a causalidade eficiente se dá através do
entendimento e a causalidade final é ensejada pelos postulados da razão.78 De acordo com
Kant:

Se o entendimento é uma faculdade da unidade dos fenômenos por meio


de regras, então a razão é a faculdade da unidade das regras do

Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 143


77
78Leonel Ribeiro dos Santos, “‘Técnica da natureza’. Reflexões sobre um tópico kantiano”, Studia
Kantiana 9, (2009):136-137.

35
entendimento sob princípios. Assim, ela nunca se refere primeiro à
experiência ou a algum objeto, mas ao entendimento, de modo a
fornecer aos diversos conhecimentos deste, por meio de conceitos, uma
unidade a priori.79

Os princípios da razão não têm função constitutiva, nem em relação à experiência,


tampouco em relação à intuição. São premissas que conduzem a ampliação do
conhecimento, servem como um guia na investigação empírica. As ideias da razão
fornecem conceitos de índole heurística, porém não são conceitos ostensivos como podem
ser os do entendimento. Indicam não como o objeto é constituído, mas como devemos
nos orientar na busca pela constituição e conexão dos objetos na experiência em geral:

Todas as ideias [da razão] conduzem à unidade sistemática e ampliam


sempre o conhecimento da experiência, não podendo nunca ser
contrárias a ele, então é uma máxima necessária da razão que se proceda
de acordo com tais ideias. E esta é a dedução transcendental de todas as
ideias da razão especulativa, não como princípios constitutivos da
extensão de nosso conhecimento a mais objetos como aqueles que são
dados na experiência, mas como princípios regulativos da unidade
sistemática do diverso do conhecimento empírico em geral, o qual é
assim, dentro de seus próprios limites, melhor consolidado e corrigido
do que poderia ocorrer, sem tais ideias, através do mero uso dos
princípios do entendimento. 80

Ou seja, não constituem a experiência, mas orientam nossa teorização acerca da


experiência, daí seu caráter estritamente regulativo. Algumas inferências, portanto,
enquanto ideias da razão, procuram reduzir a imensa variedade do conhecimento
proporcionado pelo entendimento através de princípios (condições universais) e assim
abranger cada vez mais a unidade dos princípios, criando conceitos mais elevados e
abarcantes. Ao contrário dos conceitos do entendimento (fundados em princípios que têm
por condição a possibilidade em uma experiência) as ideias da razão não são instanciadas
na experiência, mas orientam-nos na experiência para além das articulações fornecidas
pelo entendimento.
Na Dialética Transcendental nota-se então que, apesar da prévia estipulação de
princípios que regem as categorias do entendimento, essa faculdade é considerada a
faculdade das regras, enquanto a razão será chamada de faculdade dos princípios.81 No
entendimento a noção de princípio está ligada à constituição da intuição e da experiência,
ao modo como a experiência pode ser cognoscível e conhecível. A noção de princípio na

79 Kant, KrV, B359.


80 Kant, KrV, B699.
81 Kant, KrV, B356.

36
faculdade da razão está ligada à de premissa de longo alcance. O entendimento está
envolvido com uma síntese condicionada, por meio de regras aplicáveis diretamente à
experiência, enquanto a razão está envolvida com uma síntese incondicionada, por meio
de princípios que sistematizam as regras do entendimento, mas que não são eles próprios
instanciados na experiência. Um incondicionado, desse modo, pode abarcar toda uma
série de condicionados. Vejamos uma passagem em que Kant sustenta essa afirmação:

os conceitos da razão pura (ideias transcendentais) têm que ver com a


unidade sintética incondicionada de todas as condições em geral. Por
conseguinte, todas as ideias podem ser reduzidas a três classes, das
quais a primeira contém a unidade absoluta (incondicional) do sujeito
pensante, a segunda a unidade absoluta da série das condições do
fenômeno, e a terceira a unidade absoluta das condições de todos os
objetos do pensamento em geral.82

Essas três classes fornecidas pela razão pura nos conduzem assim a uma doutrina
transcendental da alma (a psicologia do sujeito pensante, através de um silogismo
categórico), a uma ciência transcendental do mundo (fornecer um incondicionado, através
de um silogismo hipotético, a uma série de condições dadas) e a um conhecimento
transcendental da natureza, por exemplo, como produto de um demiurgo (enquanto
conceito mais elevado que a subjetividade pode cogitar e assim subsumir todos os outros
conceitos a ele; através de um silogismo disjuntivo elaborar o mais elevado conceito da
razão – o ser de todos os seres).83
Portanto, a razão fornece máximas que estendem o nosso conhecimento para além
do ímpeto constitutivo do entendimento. Há um focus imaginarius que dirige o
entendimento para um fim, que converge regras do entendimento para um âmbito que
extrapola os limites da experiência.84 A razão, além do mais, é responsável pela
sistematização do conhecimento fornecido pelo entendimento, ao elaborar conceitos, não
ligados a objetos, mas conceitos que fornecem unidade completa aos conceitos de objetos.
Como Kant exemplifica, as noções de terra pura, água pura, ar puro, entre outras, são
conceitos que não encontram objeto correspondente na natureza, já que as moléculas de
água, de terra ou de ar na natureza estão misturadas com outras moléculas, mas tais noções
servem como uma espécie de paradigma. No que tange à física nota-se que a ideia
pitagórica, por exemplo, de que a estrutura do universo é matematizável orienta a

82 Kant, KrV, B391.


83 Kant, KrV, B391-393.
84 Kant, KrV, A644/B672.

37
investigação empírica, a qual busca elaborar leis físico-matemáticas para explicar os
fenômenos físicos.
O uso hipotético, heurístico e especulativo da razão é regulativo, procura dar
unidade aos conhecimentos particulares e aproxima-los de uma universalidade. A
experiência nos fornece objetos que em muitos casos são incompreensíveis, surgem
questões acerca deles que extrapolam as meras regras do entendimento ou as leis
empíricas. A razão é responsável por transcender toda a experiência e assim fornecer
conceitos que satisfaçam nosso ímpeto investigativo, que não pode ser satisfeito apenas
pelo entendimento, pois, de acordo com Kant:

Muitas questões a que somos levados pela lei natural, quando alçadas
até certo ponto, embora sempre em conformidade com essas leis, não
podem ser de modo algum resolvidas; por exemplo, de onde provém a
atração mútua dos corpos materiais. Mas, quando abandonamos
completamente a natureza, ou, ao avançar no exame de sua conexão,
transcendemos toda a experiência possível aprofundando-nos em meras
ideias [da razão], não podemos dizer, então, que o objeto nos é
incompreensível e que a natureza das coisas nos confronta com
problemas insolúveis, pois já não estamos mais tratando da natureza,
ou, em geral, de objetos dados, mas somente de conceitos que têm sua
origem apenas em nossa razão [...], com relação aos quais todos os
problemas originados de seus conceitos devem poder ser resolvidos,
pois certamente a razão pode e deve dar uma completa justificação de
seus próprios procedimentos.85

Se, por um lado, o uso das categorias do entendimento se mostra limitado, uma vez que
não ultrapassa as restrições da sensibilidade,86 por outro, o uso da razão parece extrapolar
esses limites, elevando a capacidade de conceitualização acerca da natureza para além do
mero uso objetivo do entendimento. Segue-se então, em termos estritos, que não haveria
conhecimento para além daqueles advindos de uma experiência, ao menos, possível. Isso
parece eliminar qualquer pretensão da metafísica tradicional ao conhecimento, pois suas
noções, que são meras ideias da razão, não poderiam ser instanciadas empiricamente ou,
em outras palavras, seus conceitos não encontrariam objeto correspondente na
sensibilidade. Se nos detivéssemos nesse ponto a conclusão inevitável é que as ideias
metafísicas da razão não poderiam ter qualquer pertinência na estruturação das teorias
científicas, pois seus pressupostos deveriam ter necessariamente um respaldo objetivo.
Daí empreendimentos filosóficos como o de eliminar a metafísica das teorizações

85 Kant, Prol, §56.


86 Kant, KrV, A246/B303.

38
científicas.87 O que Kant quer nos mostrar com a Crítica da razão pura é algo
inteiramente diverso, pois elucidado o papel negativo da metafísica – o de elaborar
conceitos sem validade empírica – é imprescindível entender de que modo as noções
metafísicas se fazem presentes tanto na investigação científica quanto na própria
estruturação das teorias.
Como vimos mais acima, há, segundo Kant, uma relação sintética entre
entendimento e sensibilidade, mais propriamente chamada de esquematismo, que permite
que os conceitos do entendimento estejam relacionados com algum evento intuitivo, uma
vez que isso permite que tais conceitos possam realizar sua função na experiência. Porém,
as ideias da razão, e com elas os conceitos metafísicos, não dispõe do mesmo estatuto,
qual seja, o de possuir um vínculo, assim como o entendimento, com os objetos da
experiência. Como, então, salvar as ideias da razão da acusação de vacuidade ou de serem
consideradas conceitos vazios? É isso, em parte, que ao longo deste item tentamos
responder. Porém, ainda nos resta alguns esclarecimentos. Se entre entendimento e
sensibilidade há o esquematismo transcendental, que permite ao conceito sua validade
empírica, entre a razão e o entendimento haverá também uma espécie de esquematismo,
ainda que sua função não seja a de validar objetivamente o conceito. Kant chamou esse
procedimento de esquematismo simbólico.88 É interessante ressaltar que, apesar de a
razão ultrapassar os limites do entendimento e, por extensão, ultrapassar os limites de
uma experiência possível, ou seja, ultrapassar os limites do sensível até chegar a
patamares suprassensíveis, o seu uso teorético não deve, ao mesmo tempo, se estender
para além dos objetos dos sentidos.89 Nas palavras do filósofo alemão:

Representar um puro conceito do entendimento como pensável num


objecto de experiência possível significa conferir-lhe realidade objetiva
e, em geral, apresenta-lo (darstellen). Quando isso não se pode levar a
cabo, o conceito é vazio, isto é, não chega a nenhum conhecimento.
Esta operação chama-se esquematismo, quando a realidade objectiva é
diretamente (directe) atribuída ao conceito por meio da intuição
sensível a ele correspondente, isto é, quando o conceito é apresentado
imediatamente; se, porém, não puder ser apresentado de modo

87 Para um maior aprofundamento da questão da eliminação da metafísica da ciência, ver as discussões


iniciadas por Rudolf Carnap – com a publicação de A superação da metafísica pela análise lógica da
linguagem – para quem as proposições da metafísica são pseudoproposições porque carecem de sentido
quando submetidas a uma análise lógica rigorosa da linguagem. Seu método, chamado de reducionismo
lógico, consistia em reduzir proposições da ciência a proposições elementares, as quais poderiam ser
confrontadas com o dado empírico extralinguístico. Rudolf Carnap, “La superación de la metafísica
mediante em análisis lógico del lenguaje”, in El positivismo lógico, ed. A. J. Ayer (Cidade do México:
Fundo de Cultura Economica, 1965), 66-87.
88 Immanuel Kant, Os progressos da metafísica, trad. Artur Morão (Lisboa: Edições 70, 1995), 119.
89 Kant, Os progressos da metafísica, 34-35.

39
imediato, mas só suas consequências (indirecte), a operação pode
chamar-se simbolização do conceito. O primeiro caso ocorre nos
conceitos do sensível; o segundo é um recurso de emergência para
conceitos do suprassensível, que, portanto, não podem ser
genuinamente apresentados, nem dados em nenhuma experiência
possível, mas pertencem necessariamente a um conhecimento.90

Os conceitos da razão estariam em relação à experiência de modo análogo ao modo como


os conceitos do entendimento se relacionam com o empírico, mas não de modo similar.
Kant ilustra isso ao falar do homem que cria um relógio e, portanto, é a causa deste objeto,
em analogia com a ideia de um demiurgo que criou a natureza. No primeiro caso a relação
criador/objeto criado é uma relação causal verificável empiricamente, enquanto no
segundo caso a relação causal apenas se dá por analogia. No segundo caso não há, como
no primeiro uma proposição acerca do objeto, mas um ideal regulador, uma máxima da
razão que permite aglutinar sob um conceito mais elevado inúmeros eventos empíricos.
As ideias, em seu ímpeto regulativo, originam-se de:

Máximas da razão, pelas quais apenas se é comandado a procurar a


natureza e a conexão dos objetos, sem que isso implique
necessariamente que o princípio que vale para a investigação deve ser
entendido também como um princípio do próprio objeto. Entendida
nesta função heurística a ideia funciona como um integrador de
máximas de busca ou pesquisa.91

Em vários momentos da primeira Crítica Kant reitera que a metafísica é fruto de uma
necessidade natural da razão.92 Um cientista, por sua vez, não estaria livre desse ímpeto
subjetivo. O que vale ressaltar, todavia, é que os conceitos metafísicos têm uma função
apenas regulativa em relação a investigação empírica da ciência e uma função sistêmica
no que tange à conciliação de leis empíricas fornecidas pela faculdade do entendimento
em uma malha teórica de leis. E isso é assim porque a ciência não se contenta com a
simples descrição dos fenômenos, com uma teoria que simplesmente espelhasse os
“acontecimentos” da natureza, mas se propõe a explica-los, a lançar mão de hipóteses, a
erigir conceitos não empíricos capazes de esclarecer as “forças fundamentais natureza”,
que não são dadas na sensibilidade, mas que são introduzidas para explicar os
fenômenos.93 A ideia de “forças da natureza” ou quaisquer ideias metafísicas ou
reguladoras da razão são introduzidas no sentido metodológico, com um uso regulativo

90 Kant, Os progressos da metafísica, 44-45.


91 Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 216.
92 Ver, em especial, o Apêndice à dialética transcendental. Kant, KrV, B670-697.
93 Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 176.

40
ou sistêmico, tanto da investigação quanto da teorização científicas, e não enquanto
princípios constitutivos, conforme atesta esta passagem da Crítica da razão pura:

O uso hipotético da razão [...] não é propriamente constitutivo, ou seja,


constituído de tal modo que, caso se julgasse com todo esforço, se
seguiria a verdade da regra universal que fora tomada como hipótese;
pois como poderia saber todas as possíveis consequências que,
seguindo-se do mesmo princípio adotado, provaria a sua
universalidade? Na verdade, tal uso da razão é somente regulativo, para,
tão longe quanto seja possível, trazer unidade aos conhecimentos
particulares e, assim, aproximar a regra da universalidade.94

As máximas da razão, portanto, são fundamentais enquanto articulação sistemática na


teoria, não possuindo, assim, qualquer estatuto ontológico. São princípios metodológicos
para os quais não há correspondência empírica, ainda que não dispense uma base sensível,
pois o que se quer explicar são as causas ou as articulações dos fenômenos ou das leis
empíricas.
Falamos até agora em uso hipotético da razão. Se a razão é responsável pela
criação de hipóteses explicativas, então é necessário estipular o papel de tais hipóteses na
construção de teorias científicas. Kant, para tanto, fala de três critérios que dão
fundamento explicativo a uma determinada hipótese; que são:

Sua unidade (sem hipótese auxiliar), a verdade (concordância consigo


mesmo e com a experiência) [...] e, finalmente, a completude do
fundamento de sua explicação, as quais remetem nada mais, nada
menos do que aquilo que foi assumido na hipótese.95

A hipótese, portanto, tem por função dar unidade aos múltiplos conhecimentos advindos
do entendimento; não possuir nenhuma consequência falsa pois a ocorrência de ao menos
uma invalidaria a hipótese; e ser completa em relação a todos dos dados fenomênicos aos
quais se propõe explicar. O que parece inicialmente circular, uma vez que dos dados
fenomênicos deriva-se a hipótese que apenas terá o grau de completude se abarcar em si
todos os dados fenomênicos em questão, é, na verdade, uma autossuficiência na relação
dados fenomênicos/hipótese. Uma hipótese, portanto, para ter “fundamento explicativo”,
nas palavras de Kant, deve possuir relação com os fenômenos que se quer explicar,
embora tal relação seja apenas regulativa e não tenha qualquer validade objetiva como é
o caso dos conceitos do entendimento.

94 Kant, KrV, B675.


95 Kant, KrV, B115.

41
A unidade sistemática que as ideias da razão introduzem no modo como
elaboramos teorias científicas, de acordo com o comentário abaixo, representa:

Um princípio lógico no âmbito da teoria, não sendo constitutivo dos


objetos da experiência. Trata-se de princípios reguladores fundamentais
na constituição da unidade sistemática dos conhecimentos do
entendimento. Numa linguagem epistemológica mais contemporânea,
poder-se-ia dizer que este tipo de conceitos é fundamental para uma
teoria científica. Uma coisa é ocupar-se de fenômenos e descobrir as
regras segundo as quais se apresentam [função do entendimento], outra
é ter uma teoria capaz de dar conta do conjunto de fenômenos e de suas
regularidades. A construção de uma teoria parece exigir certos
conceitos e princípios por si mesma, sem os quais não seria possível
construí-la.96

Como viemos reiterando desde o início, as leis transcendentais do entendimento encaram


a natureza de modo nomotético, ou seja, como se ela fosse apenas governada por leis
mecânicas, como se fosse apenas um mero agregado de fenômenos. Para que possamos
construir teorias científicas sobre esses fenômenos, no entanto, não bastam apenas as
máximas mecânicas do entendimento, mas cooperam para tanto as máximas da razão,
alicerçadas em elementos hipotéticos, heurísticos e especulativos, que encaram a natureza
como uma unidade sistemática, ou, se preferirmos, a razão encara a natureza como
governada por uma legalidade teleológica – em outras palavras, por uma causalidade
finalizada. Porém, estas últimas noções (de legalidade teleológica e causalidade
finalizada) aparecem no sistema crítico epistemológico kantiano com a Crítica da
faculdade de julgar, bem como as discussões acerca do papel epistemológico dos juízos
determinantes e reflexivos em consonância com o entendimento e a razão, que
exploraremos no capítulo seguinte.

96 Beckenkamp, Introdução à filosofia crítica de Kant, 194.

42
2. CRÍTICA DA FACULDADE DE JULGAR: UMA CRÍTICA DA RAZÃO
TÉCNICA

2.1 Considerações iniciais

A Crítica da faculdade de julgar, a terceira da trilogia das críticas de Kant, foi publicada
originalmente em 1790, teve uma segunda edição, com pequenas correções, publicada em
1793 e uma terceira edição, também com poucas correções, publicada em 1799.97
Algumas das principais noções ali presentes também se encontram expostas em uma
introdução a essa terceira Crítica que, por motivos incertos, Kant a descartou e substituiu
por uma nova introdução efetivamente publicada em 1790. O texto da primeira
introdução, publicado postumamente sob o título de Primeira introdução à Crítica da
faculdade de julgar, contém esclarecimentos importantes para compreensão do sistema
crítico kantiano, principalmente à noção de técnica da natureza, que, não obstante, foram
praticamente suprimidos da versão definitiva. Os textos da edição publicada em 1790 da
terceira Crítica (sobretudo a segunda parte intitulada “Crítica da faculdade de julgar
teleológica”) e o da Primeira Introdução fundamentam as discussões deste capítulo.98
A primeira coisa a ser dita sobre a faculdade de julgar é que ela se estabelece
enquanto uma faculdade intermediária entre entendimento e razão e, portanto, suas
funções concatenam-se tanto com os princípios constitutivos quanto com os regulativos.
Logo no início do prefácio à terceira Crítica Kant apresenta a problemática da seguinte
maneira:

Se a faculdade de julgar, que constitui um meio-termo entre o


entendimento e a razão na ordem de nossas faculdades de conhecer,
também possui princípios a priori para si; se estes são constitutivos ou
meramente regulativos (não estabelecendo um domínio próprio,
portanto); e se fornecem a regra a priori ao sentimento de prazer e
desprazer como meio-termo entre a faculdade de conhecimento e a
faculdade de desejar (assim como o entendimento prescreve leis a

97 Utilizaremos as abreviaturas preparadas pela Kant-Forschungsstelle der Johannes Gutenberg-


Universität Mainz para as citações dos textos publicados na Akademie-Ausgabe (AA), a Edição da
Academia das obras completas de Immanuel Kant (Immanuel Kant, Gesammelte Schriften, Berlin, de
Gruyter, 1900ss), no caso “KU, AA 05”, para Kritik der Urteilskraft (Crítica da faculdade de julgar), obra
publicada no volume 05 da Edição da Academia e “EEKU, AA 20”, para Erste Einleitung in die Kritik der
Urteilskraft, texto publicado no volume 20 da Edição da Academia.
98 Nossas referências a esses textos referem-se à tradução brasileira de Fernando Costa Mattos: Immanuel

Kant, Crítica da faculdade de julgar, trad. Fernando Costa Mattos (Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança
Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016.

43
priori à primeira e a razão à última): é disso que se ocupa a presente
Crítica da faculdade de julgar.99

Desse modo, em seu percurso filosófico, Kant enfrentou a necessidade de estabelecer uma
faculdade intermediária que ligasse a faculdade do entendimento à faculdade da razão. O
entendimento, por um lado, exerce uma função cognitiva eminentemente teórica, fonte
de conceitos puros legisladores da natureza. Por outro lado, a razão exerce positivamente
uma função de ordem prática cuja legislação se dá através do conceito de liberdade. Kant
introduz então uma faculdade que possa servir de meio-termo entre, digamos, a
constituição teórica do mundo natural e suas leis e o mundo subjetivo marcado pela
liberdade.
O sujeito transcendental elaborado na Crítica da razão pura e na Crítica da razão
prática mostrava-se muito esquemático e formalista, muito distante da dinâmica da vida
sensível e afetiva. Todavia, a inserção de elementos afetivos e vivenciais, através da
Critica da faculdade de julgar, não foi feita dispensando os princípios estabelecidos nas
críticas anteriores, tampouco cedeu a um subjetivismo de cunho não conceitual ou
reducionista.100 Assim, como Höffe assinala, a terceira Crítica se relaciona de modo
bastante múltiplo com todo o sistema crítico da razão, o que a torna uma obra
extremamente difícil e desafiadora para os intérpretes.101
A terceira Crítica seria o ponto nevrálgico do sistema kantiano no qual a ideia de
natureza regida segundo leis e a ideia de liberdade humana não desembocariam em uma
incongruência filosófica. Também é válido destacar que a Crítica da faculdade de julgar
corrobora para ampliar nosso conhecimento acerca da natureza, no sentido de refinar uma
teoria sobre a experiência, o que mostra que isso não é função exclusiva apenas da Crítica
da razão pura e dos Primeiros princípios metafísicos da natureza, nos levando a sustentar
que qualquer epistemologia que se pretenda kantiana não pode deixar em segundo plano
as considerações discutidas na terceira Crítica.
Vimos no primeiro capítulo que a conexão dos fenômenos físicos em uma unidade
sistemática requer, por um lado, o uso de leis mecânicas, as quais têm seu fundamento na
síntese entre as categorias a priori do entendimento e a intuição espaço-temporal da

99 Kant, KU, AA 05: 168.


100 Antônio Marques, “A Terceira Crítica como culminação da filosofia transcendental kantiana”, in Crítica

da faculdade do juízo, trad. Marques, A. e Rohden, V., (Lisboa: Imprensa nacional / Casa da moeda, 1992),
9.
101 Otfried Höffe, Immanuel Kant, trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden (São Paulo: Martins

Fontes, 2005), 292-293.

44
sensibilidade,102 e, por outro lado, o uso regulativo de ideias a priori postuladas pela
razão, as quais comportam a noção de finalidade da natureza. Para que haja uma noção
de natureza sistematizada ou de finalidade da natureza é necessário que as leis científicas
fruto da síntese entre entendimento e sensibilidade sejam subordinadas às máximas da
razão. A legislação universal do entendimento concebe a natureza como governada por
uma causalidade mecânica enquanto a razão concebe a natureza como se governada por
uma causalidade final e, assim, apreendida como sistema. Os princípios regulativos da
razão são de natureza teleológica por inserirem a ideia de um fim em comum (telos) entre
congêneres, que sistematiza um mero agregado de partes afins, permitindo transformar
um aglomerado de leis científicas, fundadas epistemicamente nos princípios constitutivos
do entendimento, num sistema teórico de leis unificadas. Isso é o que permite para Kant
a edificação, como já o dissemos em outro momento, de uma ciência genuína da natureza,
pois, uma ciência natural genuína pressupõe a ideia de uma natureza ordenada conforme
fins. O conceito de ordem da natureza surge na passagem das leis para as teorias
científicas. De acordo com Patrícia Kauark-Leite, o conceito de ordem da natureza
permite ultrapassar o mero conjunto fortuito de leis empíricas para a estruturação de
teorias científicas como um sistema coerente de leis unificadas de acordo com
determinados princípios.103
De acordo com Antônio Marques, a Crítica da faculdade de julgar desvelou um
modelo de inteligibilidade humana da natureza capaz de comportar traços mecanicistas,
formalistas e esquemáticos, apresentados principalmente na primeira Crítica, e traços
próprios da liberdade humana em adequar a natureza à razão, segundo princípios
transcendentais, que buscam relações para além da causalidade mecânica, para além do
conhecimento nomotético. Essas relações, conforme Marques ressalta, são construídas
através da ideia de uma natureza estruturada enquanto sistema ou organismo, como se a
própria natureza assim o impusesse104, e fundamentadas pela noção técnica da natureza
responsável por atribuir à natureza e seus produtos qualidades formais que provocam em

102 Kant, KrV, A126.


103 Cf. Patrícia Kauark-Leite, “A Propósito das Distinções Kantianas entre Física e Biologia”, in Kant e a
Biologia, ed. Marques, U. R. de A, (São Paulo: Barcarolla, 2012), 120.
104 A partícula als ob (como se) aparece em muitos momentos da Primeira introdução. Para uma primeira

observação dessa partícula, que adquiriu a estrutura de um conceito filosófico com a publicação de A
filosofia do como se, livro escrito por Hans Vaihinger, publicado em 1888, basta dizer que a subjetividade
se comporta frente a uma teoria da natureza que ela mesma (a subjetividade) criou como se fosse de fato
algo demonstrado pela natureza e não algo subjetivamente determinado. Desse modo, o idealismo
transcendental é capaz de explicar a verossimilhança que a subjetividade encontra entre as teorias que ela
constrói sobre a natureza e o que é fornecido empiricamente.

45
nós o sentimento de harmonia, que é um sentimento de prazer estético.105 Kant se propôs,
desse modo, como fora realizado na Crítica da razão pura, buscar as condições que
validam a priori as funções dessa faculdade conectiva que, inicialmente, parece ser “em
nada autossuficiente” e uma faculdade que “possuí duas partes”106, uma vez que tem tanto
uma ligação com o entendimento quanto uma ligação com a razão. Kant então divide o
procedimento da faculdade de julgar em determinante e reflexionante, relacionando cada
um desses procedimentos com as faculdades superiores (respectivamente, entendimento
e razão). As faculdades de julgar determinante e reflexionante possuem relações estreitas
com os princípios constitutivos e regulativos abordados no capítulo anterior, e as noções
contíguas a elas tais como técnica da natureza, finalidade da natureza e o como se,
completam não apenas os sistema teórico kantiano e suas necessidades intrínsecas, mas
nos fornecem uma poderosa ferramenta para entendermos a função de elementos
ficcionais no modo como conhecemos a natureza e a teorização científica que daí resulta.

2.2 A faculdade de julgar e o sistema da crítica da razão pura

Até a elaboração da terceira Crítica Kant dividira o sistema real da filosofia em filosofia
teórica e filosofia prática. A primeira seria uma filosofia da natureza, preocupada com a
constituição do objeto, alicerçada tanto em princípios a priori quanto em princípios
empíricos. A segunda seria uma filosofia dos costumes, preocupada com o modo de
produzir o objeto, alicerçada somente em princípios puros a priori.107 A legislação da
primeira estaria sob o jugo da faculdade do entendimento, que fornece leis à natureza
enquanto fenômeno. A legislação da segunda estaria sob o jugo da faculdade da razão,
tendo como conceito fundamental a liberdade. A faculdade de julgar seria um meio-termo
entre ambas, suas funções concatenar-se-iam tanto com o entendimento quanto com a
razão.
Tanto na Primeira introdução quanto na introdução definitiva da Crítica da
faculdade de julgar, Kant procurou deixar claro qual é o papel “enciclopédico” dessa
recém descoberta faculdade no sistema crítico transcendental. De acordo com o filósofo,
a introdução da faculdade de julgar não possui o caráter preliminar de uma nova doutrina,
mas o fato de procurar completar o sistema filosófico proposto na primeira Crítica.108

105 Marques, “A Terceira Crítica como culminação”, 9-12.


106 Kant, EEKU, AA 20: 202.
107 Kant, EEKU, AA 20: 195-196.
108 Kant, EEKU, AA 20: 242.

46
Assim, a faculdade de julgar não vem para aumentar a lista de faculdades, como em uma
espécie de catálogo de faculdades que cresce por acúmulos, senão para preencher o
sistema transcendental que Kant julgou ainda estar incompleto. Devemos reiterar,
todavia, que a faculdade de julgar não produz conhecimento, nem teórico (função do
entendimento), nem prático (função da razão), mas somente estabelece a ligação dessas
duas faculdades do conhecimento, não fornecendo “uma parte à filosofia transcendental,
como doutrina objetiva”.109 Isso, de certa forma, aponta para o relativo descaso dos
estudos em epistemologia para com essa faculdade, uma vez que ela parece distante de
uma doutrina da objetividade; e gera também controversas interpretativas, como assinala
Thomas Teufel. De acordo com o comentador, se a terceira Crítica não está preocupada
com o conhecimento empírico, constitutivo, mas apenas com a sistematização (ou
organicidade) de conhecimentos empíricos, como pode ser o caso dos juízos teleológicos,
e preocupada com as analíticas do belo e do sublime, onde se discute os juízos estéticos,
tão reflexionantes quanto os teleológicos, então essa crítica seria uma Crítica da
faculdade de julgar reflexionante, e, assim, a faculdade de julgar determinante, já
explorada na Crítica da razão pura, estaria aqui a título de contraponto e/ou para ser
melhor visualizada no sistema crítico ampliado.110 Não por acaso, dedicaremos a próxima
seção a essa divisão da faculdade de julgar em determinante e reflexionante.
Sendo como for, se por um lado a noção de finalidade da natureza da faculdade
de julgar parece objetivamente contingente, por outro possui um uso legítimo entre as
faculdades superiores do entendimento, pois é “subjetivamente necessária para a
faculdade de conhecimento”, ou seja, essa noção nada pode determinar acerca dos
produtos da natureza, uma vez que cada produto pode possuir empiricamente uma
finalidade “dada a cada caso”, mas nos garante subjetivamente que os produtos possam
ser classificados, sistematizados e organizados, mediante suas participações em um
quadro geral da natureza.111
A faculdade de julgar (reflexionante) possui um princípio de finalidade que
antecede o objeto ou as leis empíricas, podendo assim, inclusive, dar unidade e
concordância às leis em um sistema. Isso conduz a dois tipos de uso da faculdade de julgar
reflexionante: 1) o estético, cujo princípio antecede “qualquer conceito de um objeto”,
sem qualquer intervenção da faculdade de conhecimento (o entendimento) e, portanto, tal

109 Ibdem.
110 Cf. Thomas Teufel, “What Does Kant Mean by ‘Power of Judgement’in his Critique of the Power of
Judgement?”, in Kantian Review 17 (2) (2012): 297-326.
111 Kant, EEKU, AA 20: 243.

47
princípio tem sua fundamentação exclusivamente na faculdade de julgar; 2) o
teleológico, que embora também seja um ajuizamento reflexionante, “não pode ser
elaborado de outro modo senão por meio da ligação da razão com conceitos empíricos”.112
Se a faculdade de julgar reflexionante procede tecnicamente (de acordo com o
princípio da técnica da natureza, que analisaremos pormenorizadamente no terceiro
capítulo) tendo por fundamento a finalidade, esta por sua vez também se divide em dois
modos: a finalidade subjetiva e a finalidade objetiva. A subjetiva não está fundada em
conceitos, é estética, meramente como modo de representação do sujeito. A objetiva, se
relaciona à possibilidade de que a finalidade esteja no próprio objeto, fornecendo à
natureza uma legalidade enquanto um sistema de fins.113 A finalidade subjetiva está ligada
ao sentimento de prazer e desprazer, enquanto a finalidade objetiva procede logicamente
(ou teleologicamente) uma vez que seus juízos devem se relacionar com a possibilidade
interna de um produto da natureza ou com a possibilidade “relativa de suas consequências
externas”, pois, como veremos nas seções seguintes, cada produto da natureza, pensado
de modo reflexionante, possui uma finalidade interna que o define enquanto um sistema
de partes, mas também uma finalidade em relação ao todo da natureza, uma vez que a
própria natureza em geral é um sistema de partes em função de uma finalidade própria.
O sentimento de prazer e desprazer, todavia, possui alguma relação com a
finalidade da natureza. De acordo com Kant, tal sentimento não ocorre quando nos
deparamos com leis empíricas isoladas, pois elas são fruto da relação sintética entre
entendimento e sensibilidade e, portanto, sem qualquer propósito.114 Mas na formação de
sistemas de leis empíricas parece haver algum sentimento de prazer. Kant assinala isso
do seguinte modo:

A unificabilidade descoberta entre duas ou mais leis empíricas e


heterogêneas da natureza, sob um princípio capaz de abarcá-las, é o
fundamento de um prazer bastante perceptível, frequentemente até
mesmo de uma admiração.115

O filósofo, no entanto, adverte que esse prazer encontrado na unificação sistêmica de leis
empíricas acontece somente em dado momento da percepção. Desse modo, segundo ele,
não há mais prazer “perceptível na compreensibilidade da natureza”, ou seja, sentimos
prazer na admiração sobre a harmonia de leis empíricas, formulado em juízos estéticos,

112 Kant, EEKU, AA 20: 243-244


113 Kant, EEKU, AA 20: 248-249.
114 Kant, KU, AA 05: 187.
115 Kant, KU, AA 05: 187

48
mas não possuímos tal prazer na teorização científica sobre essa harmonia, formulada
através de juízos teleológicos. Existem, pois, dois momentos da faculdade de julgar
reflexionante: um, subjetivo, que sente prazer ao contemplar os produtos da natureza e
sua harmonização e outro, objetivo, que procura erigir teorias acerca da heterogeneidade
ou acerca da diversidade de produtos naturais. Nosso enfoque, portanto, se limitará muito
mais a análise da finalidade objetiva e do ajuizamento teleológico, devido a sua evidente
participação na criação de teorias cientificas, propriamente ditas.

2.3 A divisão da faculdade de julgar em determinante e reflexionante

De acordo com Kant a faculdade de julgar tem como função pensar “o particular como
contido no universal.”116 Desse modo, sendo bipartida, ela procederia em dois sentidos:
(I) quando é dado o conceito ou a regra universal e precisa-se encontrar particulares que
se encaixem sob o conceito; e (II) quando apenas são dados os particulares e para os quais
deve-se encontrar um conceito ou regra universal. Acrescenta-se a isso que os conceitos,
por sua vez, estão em relação uns com os outros e, muitas vezes, uns são condições para
outros. Essa relação entre conceitos, Kant já o havia dito na Crítica da razão pura, é
verificável através do uso que deles fazemos na formulação de juízos. O uso de conceitos
em juízos também nos conduz a uma bipartição: (I) juízos referentes aos objetos
fornecidos pela sensibilidade, que se estruturam através das categorias do entendimento
projetadas sobre as intuições sensíveis; e (II) juízos que apenas relacionam conceitos entre
conceitos, por meio da subsunção, sem qualquer participação das intuições sensíveis.117
Na faculdade de julgar determinante o conceito universal está dado e bastam
apenas lhe subsumir particulares, daí seu aspecto majoritariamente constitutivo, com
conceitos empíricos e de validade objetiva. Essas características, de proceder
ostensivamente e de validar conceitos objetivamente, como vimos no capítulo anterior,
provêm do entendimento e, consequentemente, dos princípios constitutivos.118 A
faculdade de julgar determinante procede de acordo com as “leis transcendentais
universais” fornecidas pelo entendimento.119 Ela tem um papel legislativo, seu princípio
de ação é nomotético, pois fornece determinações subjetivas ao objeto — os conceitos

116 Kant, KU, AA 05: 179.


117 Vera Cristina de Andrade Bueno, “Reflexão, juízo e princípio regulativo”, in Kant e o kantismo:
heranças interpretativas, ed. C. A. Martins, e U. R. de A Marques. (São Paulo: Brasiliense, 2009), 27.
118 Kant, KrV, B699.
119 Kant, KU, AA 05: 179.

49
advêm da subjetividade, mas possuem referência objetiva na sensibilidade. Através da
faculdade de julgar determinante acontece o processo de especificação, no qual, a partir
de um conceito dado a divisão progride de um gênero superior (um conceito universal)
aos inferiores (particulares).120
Na faculdade de julgar reflexionante, cujo aspecto fundamental é a sistematização
através de princípios regulativos de cunho heurístico e hipotético, o universal não está
dado, há que, mediante um princípio regulador que postula a unidade, encontrar no
diverso articulações sistemáticas a partir das quais pode-se classificar a diversidade em
conceitos universais. A faculdade de julgar reflexionante tem por princípio a ideia de
“técnica da natureza”, ou seja, a ideia de que os objetos da natureza, às vezes, são
“julgados como se sua possibilidade se fundasse na arte”; não se postula determinações
acerca dos objetos, pensa-se a natureza analogamente à arte e por essa razão não se possui
qualquer referência objetiva.121 A ideia de técnica da natureza é um princípio heurístico
ou hipotético sobre a natureza, que têm utilidade epistêmica para o desenvolvimento e
progressão de teorias científicas ou para fornecer diretrizes para a sua pesquisa.
A faculdade de julgar reflexionante ao classificar os fenômenos segundo a ideia
de “uma ordenação finalística da natureza em um sistema”,122 o faz de modo técnico ou
artístico, ou seja, sem explicar ou determinar nada objetivamente em relação ao
fenômeno.123 Essa máxima é uma mera ideia, um princípio de investigação da natureza,
nada diz objetivamente acerca da natureza, mas ao modo como o sujeito a interpreta. Mas
a faculdade de julgar reflexionante não entenderia a ideia de uma natureza inteiramente
classificável se não preconcebesse que a própria natureza está a especificar tal
classificação,124 isto é, a ideia do als ob, a faculdade procede como se a própria natureza
fosse sistemática, ao passo que na verdade é o princípio a priori da técnica da natureza
que faz do conhecimento desta um “conhecimento artístico” ou técnico, distinto do
conhecimento nomotético advindo das leis transcendentais do entendimento.125 A
legislação universal do entendimento encara a natureza como governada por uma
causalidade mecânica e, portanto, encara a natureza como um mero agregado, enquanto
a razão encara a natureza como governada por uma legalidade teleológica, “como se fosse

120 Kant, EEKU, AA 20: 214-215.


121 Kant, EEKU, AA 20: 200-201.
122 Kant, EEKU, AA 20: 214.
123 Kant, EEKU, AA 20: 204-205.
124 Kant, EEKU, AA 20: 215-216.
125 Ibidem.

50
regida por uma causalidade finalizada” e, portanto, passível de ser apreendida como
sistema.126 Analogamente, a faculdade de julgar determinante constitui a natureza de
modo mecânico e a reflexionante procede de modo técnico ou artístico, a encarar a
natureza como organismo ou sistema.
Dando um passo à frente, em relação à faculdade de julgar reflexionante, Kant diz
que somente ela pode reconhecer na natureza dois tipos de causalidade: a causalidade
eficiente que se dá através das categorias do entendimento; e a causalidade final ensejada
pelos postulados da razão.127 Ao conciliar ambas, a faculdade de julgar reflexionante
articula algo fundamental na estruturação de teorias científicas, pois o conhecimento
científico da natureza concilia leis meramente mecânicas com o conceito de um fim.128 O
ajuizamento teleológico de uma causalidade segundo fins pertencente à faculdade de
julgar reflexionante é, como afirma Kant, “um princípio a mais” que inspeciona a
natureza com regras e chega a patamares investigativos cujas leis puramente mecânicas
não podem chegar.129
A faculdade de julgar determinante procede com princípios a priori do
entendimento que dão legalidade à natureza. A faculdade de julgar reflexionante, por sua
vez, tem por fundamento a priori a finalidade e por produto a natureza como arte ou
técnica. A razão, segundo Kant, tem como princípio a priori também a noção de
finalidade, mas “uma finalidade que é ao mesmo tempo lei” ou obrigatoriedade,130 uma
finalidade que em seu fundamento é prática.131 Ou seja, a faculdade de julgar
reflexionante age hipoteticamente como se a natureza tivesse finalidade, embora tal
finalidade, nesse caso, seja uma ideia reguladora da razão, possui a necessidade de estar
revestida pela noção de legalidade. Percebe-se então, seguindo as considerações de
Leonel Ribeiro dos Santos, que a faculdade de julgar reflexionante possui um aspecto
sistêmico, de uma natureza finalizada enquanto organismo, mas também necessita que a
essa natureza finalizada subjaza alguma legalidade constitutiva ou mecânica.132 No
parágrafo 64 da terceira Crítica intitulado “Do caráter próprio das coisas como fins
naturais”, Kant explica que não devemos buscar a causalidade de uma coisa possível

126 Leonel Ribeiro dos Santos, “‘Técnica da natureza.’ Reflexões em torno de um tópico kantiano”, Studia
Kantiana, 9, 136.
127 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 137.
128 Kant, EEKU, AA 20: 234-235.
129 Kant, KU, AA 05: 360.
130 Kant, EEKU, AA 20: 246.
131 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 151.
132 Kant, EEKU, AA 20: 218.

51
enquanto fim somente no mecanismo da natureza. É necessário, ainda que seu
conhecimento não seja de ordem empírica, os conceitos da razão, pois a causalidade final
somente é possível enquanto pressuposto da razão, já que ela é “a faculdade de atuar
segundo fins”.133
Para o conhecimento da natureza, o pesquisador busca instituir relações causais
empíricas, segundo leis mecânicas. Porém, adverte Kant, encontra-se nos produtos da
natureza uma tão extensa relação de causas eficientes que “nós temos de fundar em um
fim”.134 O conceito de um fim faz com que cada objeto da natureza possua uma relação
com o todo da natureza, relação construída subjetivamente. Kant ilustra isso ao discutir,
no parágrafo 65 da terceira Crítica, a relação do todo com as partes e vice-versa,
elaborando a noção de que as coisas, enquanto fins naturais, podem ser análogas à ideia
de um ser organizado. Elabora-se teorias que internamente articulem as coisas enquanto
organismo, entendendo que os próprios objetos, enquanto tais, igualmente se articulem
como organismo, em primeiro lugar pela causa eficiente que liga as partes, em segundo
pela causalidade final que fundamenta a ideia de todo.135
A faculdade de julgar, portanto, tem como papel a ligação entre natureza e
liberdade (ou, entre a síntese entendimento/sensibilidade e a razão) e passa a ter uma
função não apenas determinante, como o fora na Analítica Transcendental da Crítica da
razão pura, mas também uma função reflexiva.136 Desse modo, a faculdade de julgar é
capaz de abordar a natureza através de modalidades diversas: como se a natureza
possuísse uma técnica, uma técnica capaz de diferenciar os produtos da natureza em
gêneros e espécies; como se a natureza fosse regida por princípios de unidade, que
unificariam suas inúmeras leis; como se as formas da natureza provocassem no sujeito o
sentimento de prazer estético por possuírem certas qualidades; etc.137 Essa função
reflexiva possibilita a classificação do diverso e torna possível a sistematização de leis
científicas em uma rede teórica conceitual mais ampla que as meras leis empíricas, se
pensadas isoladamente ou como meros agregados. O sujeito humano se depara com uma
heterogeneidade tão vasta de leis empíricas que surge a necessidade de unifica-las sob
camadas conceituais cada vez mais universalizantes. Os conceitos do entendimento por
serem de uma intencionalidade objetiva, pois apenas fazem sentido se aplicados às

133 Kant, KU, AA: 05: 370-372.


134 Kant, EEKU, AA 20: 235.
135 Kant, KU, AA 05: 372-376.
136 Bueno, “Reflexão, juízo e princípio regulativo”, 21.
137 Marques, “A Terceira Crítica como culminação”, 12.

52
intuições sensíveis, não conseguem estipular relações sistêmicas entre leis empíricas, uma
vez que tais relações dependem de uma intencionalidade subjetiva, produto da faculdade
de julgar reflexionante com pressupostos transcendentais da razão.

2.4 Faculdade de julgar determinante

O entendimento, como vimos no primeiro capítulo, permite constituir em consonância


com a faculdade da sensibilidade as leis empíricas da natureza. As ações do entendimento,
diz Kant da Crítica da razão pura, podem ser todas reduzidas a juízos, chegando à
conclusão de que o entendimento é uma faculdade de julgar.138 O uso que o entendimento
faz de seus conceitos, portanto, é um uso judicativo. Como vimos, o fio condutor que leva
ao estabelecimento da tábua das categorias do entendimento parte da tábua dos juízos
lógicos abstraindo-se de todo o seu conteúdo (ver Cap. 1, seção 1.2). Na terceira Crítica,
no entanto, Kant nos esclarece que faculdade de julgar explorada na primeira Crítica
falava apenas da faculdade de julgar determinante. Assim, parece-nos que a diferença
entre a faculdade do entendimento, exposta na primeira Crítica, e a faculdade de julgar
determinante, exposta na terceira, é apenas terminológica. Thomas Teufel, no entanto,
considera que a faculdade de julgar exposta na Crítica da razão pura era precursora da
faculdade de julgar determinante, uma vez que, todo juízo emitido pelo entendimento
determina algo acerca do objeto.139 Talvez a novidade da terceira Crítica seja a noção de
subsunção da faculdade de julgar determinante, para a qual o conceito universal está dado
e basta apenas lhe subsumir particulares. Nos termos da Crítica da razão pura, isso
implica dizer que para os conceitos puros a priori do entendimento é necessário
estabelecer uma síntese com as intuições sensíveis, caso contrário serão conceitos vazios.
É esse procedimento de especificação ou de sensibilização das categorias do
entendimento que Kant atribui à faculdade de julgar determinante da terceira Crítica.
“Todo juízo determinante é lógico, pois seu predicado é um conceito objetivo dado”,
escreve Kant na Primeira introdução.140 O caráter nomotético do entendimento
fundamenta o processo de especificação da faculdade de julgar determinante. Desse

138 Kant, KrV, B94.


139 Teufel, “What Does Kant Mean by ‘Power of Judgement’in his Critique of the Power of Judgement?”,
297-326.
140 Kant, EEKU, AA 20: 223-224.

53
modo, a natureza, se pensarmos nela como um conjunto dos objetos da experiência, seria
constituída de acordo com leis transcendentais fornecidas a priori pelo entendimento.141
Outra característica básica da faculdade de julgar determinante é que ela procede
dogmaticamente. O procedimento dogmático é aquele no qual pretende-se objetivamente
dizer algo sobre o objeto, pois somente assim poderíamos subsumir qualquer coisa da
natureza a esse conceito.142 Desse modo, Kant pode falar de um princípio objetivo que
rege a faculdade de julgar determinante cuja função é descobrir algo acerca do objeto. Da
perspectiva dessa faculdade, quando admitido um conceito deve-se provar sua realidade
objetiva.
A faculdade de julgar determinante não serve, no entanto, para pensar a
possibilidade de uma natureza produzida intencionalmente por uma causa suprema pois,
devido ao procedimento dogmático dessa faculdade, cairíamos em uma antinomia, ora
afirmando ora negando a noção de causa suprema.143
Os seres vivos, por sua vez, não podem ser conhecidos de modo suficiente se
apelarmos exclusivamente para princípios meramente mecânicos ou, em outras palavras,
a constituição dos seres vivos como seres organizados exige uma explicação que
transcende as leis empíricas surgidas através do entendimento em consonância com a
faculdade de julgar determinante; exige uma explicação que coloque uma intenção
organizadora, embora tal intenção seja apenas uma máxima heurística da razão ou fruto
da sistematização da faculdade de julgar reflexionante. De acordo com Kant:

É inteiramente certo que não podemos, segundo meros princípios


mecânicos da natureza, conhecer suficientemente os seres organizados
e sua possibilidade interna, muito menos explica-los; e tão certo, com
efeito que se pode dizer sem hesitação que é absurdo para seres
humanos sequer conceber esse projeto, ou esperar que possa surgir um
Newton capaz de explicar a geração de um talo de grama que seja
segundo leis naturais que nenhuma intenção tenha ordenado; é preciso
antes negar esse saber aos seres humanos.144

Assim, a faculdade de julgar determinante é incapaz de fornecer uma explicação à


constituição dos seres organizados e também incapaz de pensar a totalidade das leis
científicas ou empíricas como um sistema orgânico. Essa faculdade, todavia, fornece o

141 Kant, EEKU, AA 20: 209.


142 Kant, KU, AA 05: 396.
143 Kant, KU, AA 05: 399.
144 Kant, KU, AA 05: 400.

54
estofo para as teorias científicas, um estofo sem qualquer organização sistêmica. Para
tanto, se faz necessário a participação da faculdade de julgar reflexionante.

2.5 Faculdade de julgar reflexionante

A faculdade de julgar reflexionante é aquela que postula que para todas as coisas da
natureza é possível encontrar conceitos. Assim, refletir é a função que compara e mantém
juntas certas representações, umas com as outras ou em relação à faculdade do
conhecimento, mas sempre em relação a um conceito.145 Essa reflexão não diz nada
diretamente em relação aos objetos, mas ao modo como a subjetividade procede quando,
para além dos conceitos constitutivos, precisa encontrar articulações sistêmicas entre os
produtos da natureza. O princípio dessa reflexão, como veremos na próxima seção, é o da
técnica da natureza, que permite pensar a natureza enquanto arte, a fim de concebê-la
artificialmente como um sistema empírico que contém uma finalidade, segundo uma lei
subjetiva, sem que para tanto seja necessário um fundamento de determinação objetiva
para tais conceitos resultantes desse processo. De acordo com Kant:

A faculdade de julgar reflexionante procede com fenômenos dados,


portanto, para colocá-los sob conceitos empíricos de coisas
determinadas da natureza não esquematicamente, mas tecnicamente;
não de maneira meramente mecânica, por assim dizer, como um
instrumento sob a condução do entendimento e dos sentidos, mas
artisticamente, segundo um princípio universal – mas ao mesmo tempo
indeterminado – de uma ordenação finalística da natureza em um
sistema, como que em benefício de nossa faculdade de julgar, na
adequação de suas leis particulares (sobre as quais o entendimento nada
diz) à possibilidade da experiência como um sistema – pressuposição
sem a qual não poderíamos esperar orientar-nos em um labirinto da
diversidade de leis particulares possíveis. 146

Essa faculdade é responsável pela classificação do diverso, ou seja, é responsável pela


comparação entre classes, que são subsumidas em classes superiores, ou gêneros se
preferirmos, até encontrarmos o gênero mais elevado ou o conceito mais elevado que
abarca a classificação inteira.147 Isso acontece tendo em vista que a faculdade de julgar
reflexionante age como se a própria natureza estivesse especificando as afinidades ou o

145 Kant, EEKU, AA 20: 211.


146 Kant, EEKU, AA 20: 213-214.
147 Kant, EEKU, AA 20: 214-216.

55
parentesco entre as leis empíricas, mas que na verdade é um procedimento artístico da
subjetividade que julga a natureza como arte, de modo técnico e não apenas nomotético.
A faculdade de julgar determinante pelas limitações que os princípios
constitutivos lhe impõem elabora conceitos menos extensos, embora tais conceitos
tenham uma relação objetiva dada através do fenômeno na sensibilidade. A faculdade de
julgar reflexionante elabora conceitos mais extensos capazes de subsumir os conceitos
mais limitados oriundos do entendimento. Nas palavras de Vera Bueno:

A relação dos conceitos entre si, pelo fato de conceitos serem


representações universais e pressuporem sob si representações menos
universais, ou seja, pressuporem conceitos com extensão menor,
possibilita a subsunção de conceitos menos extensos sob outros mais
extensos.148

Como viemos ressaltando, a estruturação de uma teoria científica depende de conceitos


constitutivos que limitam fenômenos empíricos específicos, mas necessita de conceitos
mais elevados responsáveis por articular fenômenos em uma rede teórica mais
abrangente, sistematizante, ainda que tais conceitos, por escaparem dos limites do
entendimento, não possam ser empiricamente verificados. Se tomarmos somente essa
perspectiva, esse conjunto de leis seria apenas um agregado, sem que entre as leis
houvesse qualquer ligação sistemática, pois, esta função é atribuída à faculdade de julgar
reflexionante. A legalidade da natureza, digamos assim, é fundada nos princípios a priori
do entendimento, mas seu aspecto sistêmico e orgânico não.
Na Primeira introdução Kant utiliza uma metáfora para ilustrar tanto a noção de
agregado (ou o modo mecânico pelo qual procede o entendimento) quanto a noção de
sistema ou de organismo. Pensemos, sugere Kant, na formação de uma cidade quando tal
processo ocorre sem qualquer prévio delineamento de suas terras e os colonos dividem
seu território de acordo com a intenção de cada sujeito. Se assim for, a cidade surgiu de
um mero acúmulo de propriedades delimitadas de modo contingente. Se, por outro lado,
houvesse uma prévia demarcação do território, de acordo com certos princípios que
regessem tal demarcação, a relação das partes entre si teria um caráter sistemático.
Vejamos como Kant esclarece:

Caso se considere como já completamente dadas as partes para esse


todo possível, a divisão ocorre mecanicamente, a partir de uma mera
comparação, e o todo se torna agregado (mais ou menos como ocorre
com as cidades quando [...] um solo é dividido entre colonos que se

148 Bueno, “Reflexão, juízo e princípio regulativo”, 26.

56
apresentam, cada qual segundo seus propósitos). Se podemos e
devemos, contudo, pressupor a ideia de um todo segundo um certo
princípio antes da determinação das partes, a divisão tem de acontecer
cientificamente, e somente assim o todo se torna um sistema.149

Podemos notar então que, a síntese entre entendimento e sensibilidade, que ocorre quando
conceitos a priori do entendimento são projetados sobre as intuições sensíveis, é uma
síntese insuficiente no que tange a estruturação de uma teoria científica, pois para que
esta se configure é necessário a participação da faculdade de julgar reflexionante
(teleológica, principalmente) que transforma um conjunto de leis empíricas ou científicas
em um sistema teórico de leis e portanto em uma ciência genuína. A faculdade de julgar
reflexionante possuí, segundo Kant, autonomia, pois motivada pela faculdade da razão
tem validade meramente subjetiva, enquanto a faculdade de julgar determinante possuí
heteronomia, pois está submetida às leis universais fornecidas pelo entendimento.150Em
contrapartida, como veremos adiante, a faculdade de julgar reflexionante procede
criticamente, pois o procedimento se dá em relação às nossas faculdades de
conhecimento, em relação às condições exclusivamente subjetivas, por isso a noção de
fim natural, por exemplo, não possui validade objetiva. O conceito de algo enquanto fim
natural transcende a faculdade de julgar determinante, por isso tal conceito não possui
qualquer relação com a realidade objetiva.151 A faculdade de julgar determinante procede
em relação à causalidade mecânica e não em relação à causalidade finalizada.
O problema central para a faculdade de julgar reflexionante é o particular. Esse
particular é, no entanto, dado através da sensibilidade e formatado pelas leis do
entendimento, pela ação da faculdade de julgar determinante, para o qual estipula-se
certas ligações com outros particulares. Essas ligações entre particulares estão também
sujeitas a sistematização que apenas são possíveis quando conceitos mais gerais,
conceitos sem validade objetiva, articulam os particulares em um sistema exclusivamente
subjetivo. As ligações aí encontradas não são empiricamente verificáveis e são, além do
mais, cambiáveis, uma vez que a sistematização de particulares pode ser rearranjada de
outro modo quando a investigação científica assim o achar necessário. António Marques
nos chama atenção para o fato de que a aporia, levantada por Aristóteles, relativa à
insuficiência dos conceitos para abarcar a infinidade de particulares, se resolve em Kant

149 Kant, EEKU, AA 20: 247-248.


150 Kant, KU, AA 05: 389.
151 Kant, KU, AA 05: 397.

57
através da faculdade de julgar reflexionante152. Isso porque, para essa faculdade, a
multiplicidade de particulares é, na verdade, o que torna vasta a especulação científica e
as teorias daí resultantes. Na multiplicidade infinita de indivíduos a heurística
transcendental encontra seu terreno mais fértil.153 Quanto mais vasta for a multiplicidade
de indivíduos maior será o número de organismos conceituais sistêmicos postuláveis pela
faculdade de julgar reflexionante. É claro que, como temos visto, tal sistematicidade deve
ser logicamente necessária e, em certo sentido, empiricamente plausível, pois a faculdade
de julgar reflexionante se comporta, em relação aos conceitos que ela criou para
orquestrar os objetos da natureza, como se a própria natureza estivesse “insinuando” tais
relações sistêmicas. Esse procedimento da faculdade de julgar reflexionante está
intimamente relacionado aos princípios regulativos da razão, que se apresentam sob a
forma de juízos reflexionantes, cujos conceitos daí resultantes não possuem validade
constitutiva e contém pressupostos que lhe são próprios. A especificidade desses juízos
será objeto da próxima seção deste capítulo.

2.6 Os juízos reflexionantes

De acordo com Paul Guyer, Kant teria descrito na Crítica da faculdade de julgar ao
menos cinco formas distintas de juízos reflexionantes que surgem do procedimento dessa
faculdade: 1) o juízo reflexionante estético do belo; 2) o juízo reflexionante estético sobre
o sublime; 3) o juízo reflexionante teleológico de que os organismos na natureza possuem
uma organização final e não meramente mecânica, ou seja, o organismo seria um sistema
final de partes; 4) o juízo reflexionante teleológico de que a natureza como um todo
constitui um único sistema tendo em vista um fim determinado; e, 5) o juízo reflexionante
que visa articular um sistema de conceitos, de leis científicas ou de leis empíricas.154 Se
o conceito de finalidade está na base das funções reflexionantes da faculdade de julgar,

152 António Marques, Organismo e sistema em Kant (Lisboa: Editora presença, 1987), 37.
153 A noção de heurística transcendental foi explorada por Leonel Ribeiro dos Santos. Segundo ele, o
pensamento kantiano não esteve apenas “preocupado em descrever a constituição da maquinaria
transcendental das faculdades do conhecimento humano nos seus respectivos elementos, mas empenhado
em mostrar como funciona essa maquinaria no conhecimento efetivo da natureza, pondo-se em destaque
[...] o Kant epistemólogo, ocupado mesmo com os tópicos de meta-epistemologia, indagando e
inventariando os pressupostos da investigação, da invenção e da descoberta científicas, a que reconheceu
irrecusável pertinência e que foi nomeado na sua função ora como princípios regulativos, como princípios
arquitetônicos, ou como máximas de economia imanente da razão”. Leonel Ribeiro dos Santos, Ideia de
uma heurística transcendental (Lisboa: Esfera do caos, 2012), 10
154 Paul Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, Dianoia: Anuario de Filosofia, México, v. 17

(1966): 3.

58
então as cinco formas de juízos se dividem em dois grupos: as duas primeiras formas
(juízos reflexionantes estéticos do belo e do sublime) sob a noção de “finalidade
subjetiva”, analisados na primeira metade da Crítica da faculdade de julgar; e as outras
três formas de juízos (teleológicos, responsáveis pela sistematicidade) sob a noção de
“finalidade objetiva”, analisados na segunda parte da terceira Crítica. Essas duas
finalidades também são chamadas, respectivamente, por Kant, de finalidade formal e
finalidade real, a primeira é uma finalidade sem fim e a segunda é uma finalidade que
necessita o conceito de um fim.155 Nos deteremos nos juízos que se referem à finalidade
objetiva, ou seja, os três últimos juízos listados por Guyer, pois tais juízos são nitidamente
teóricos, ligam-se diretamente com a teorização científica, enquanto os dois primeiros
estão ligados ao ajuizamento estético dos objetos.
A terceira forma de juízo reflexionante elencada por Guyer, o juízo reflexionante
teleológico de que os organismos na natureza possuem uma organização final e não
meramente mecânica, postula o organismo enquanto um sistema final de partes. Os
objetos da natureza que consideramos organismos possuem, para a subjetividade, uma
estrutura sistemática interna, que pode ser percebida em seus produtos. De acordo com
Kant, nos organismos ou criaturas da natureza, a preservação de uma parte depende da
preservação de outra parte do mesmo indivíduo e vice-versa; a desfolhagem contínua de
uma árvore, ilustra Kant, pode levá-la a morte.156 As partes de um organismo formam,
portanto, um sistema de partes codependentes. Isso nos serve, por analogia, para pensar
a articulação entre leis empíricas aos moldes de um organismo. Porém, as criaturas são
constituídas organicamente de partes, enquanto um conjunto de leis empíricas pode
formar um organismo na medida em que a faculdade de julgar reflexionante articula tais
partes com a função heurística de sistematizá-las como se fossem constituintes de uma
estrutura orgânica. Desse modo, o conceito de organismo, em relação às leis empíricas,
serve na medida em que sua aplicação possa se dar em um âmbito heurístico. A
causalidade mecânica do entendimento não é capaz de explicar a relação das partes, pois
em um organismo a relação das partes se dá reciprocamente e em relação ao todo, por
isso a noção de sistema enquanto fruto de uma causalidade teleológica. Segundo Guyer:

No caso dos organismos, o que julgamos é que a existência e condição


de uma parte de um organismo não é apenas a causa senão também o
efeito de outra condição que a sucede, e que a existência e função de

155 Kant, KU, AA 05: 189-195.


156 Kant, KU, AA 05: 371-372.

59
todo o organismo não é apenas o efeito senão também a causa da
existência e função das partes que precedem a existência do todo.157

Já que essa causalidade não é mecânica e, portanto, não é admissível pelo entendimento,
como seria por exemplo a relação entre as partes de um mecanismo de relojoaria, o único
modo de compreender a causalidade recíproca é apelando à noção de força formativa.
Nas palavras de Kant:

Para um corpo, portanto, que deve ser julgado, em si mesmo e segundo


a sua possibilidade interna, como fim da natureza, requer-se que suas
partes produzam todas umas às outras reciprocamente, tanto no que diz
respeito à sua forma como à sua ligação entre si, e que, assim produzam
por sua própria causalidade o todo cujo conceito, por seu turno [...],
poderia, inversamente, ser considerado causa desse todo segundo um
princípio; e, por conseguinte, a conexão das causas eficientes poderia
ser considerada ao mesmo tempo o efeito mediante causas finais [...]
Um ser organizado não é, portanto, uma mera máquina, já que esta tem
apenas força movente, ao passo que ele tem força formativa [...] uma
força, portanto, que se propaga, e que não pode ser explicada somente
pela faculdade motora (o mecanismo).158

Isso conduz a subjetividade, através dos juízos reflexionantes teleológicos, a projetar


sobre os seres organizados uma causalidade inteligente ou, em outras palavras, como se
eles fossem produtos de uma intencionalidade suprema. Porém, o apelo teleológico por
causas finais é apenas um fio condutor da investigação da natureza, que nos conduz a
patamares explicativos mais elevados que as explicações meramente mecanicistas
motivadas pelo entendimento. Pensar os organismos como desenhos inteligentemente
realizados, além de não contradizer nenhum princípio constitutivo da natureza, expande
o nosso conhecimento teórico da mesma.159
A quarta forma de juízo reflexionante teleológico que gostaríamos de destacar
postula que a natureza como um todo constitui um único sistema tendo em vista um fim
determinado. Isso quer dizer que se observarmos a natureza sem o uso reflexionante da
faculdade de julgar não seríamos capazes de vê-la como um todo sistemático. Esse
argumento avança com relação ao último argumento acerca da sistematização interna dos
seres organizados. Ou seja, se a subjetividade é capaz de supor que os seres organizados
são sistemas segundo fins, pode também postular que a natureza como um todo é um
sistema organizado segundo fins. Desse modo, é possível à subjetividade humana
encontrar parentescos e afinidades entre os produtos da natureza e, mediante essa função

157 Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, 47. (Trecho traduzido pelo autor da dissertação).
158 Kant, KU, AA 05: 373-374.
159 Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, 50.

60
heurística, inventariar ligações entre os objetos naturais de tal modo a nos parecer
razoável que a natureza como um todo forme um sistema único.
A quinta forma de juízo reflexionante, aludida acima, busca um universal
desconhecido para um particular dado, formando um sistema hierárquico de conceitos.
Isso é possível graças a três princípios: homogeneidade (quando é possível subsumir o
diverso sob gêneros superiores), especificidade (a variedade do homogêneo sob espécies
inferiores) e afinidade (entre os conceitos que possuem gradativas e crescentes
diferenças).160 O primeiro princípio seria responsável pela não dispersão do diverso; o
segundo princípio impede que o ímpeto de uniformidade apague as diferenças de
subespécies e o terceiro princípio combina os dois anteriores ao prescrever, diante da
multiplicidade, “a homogeneidade através da passagem gradativa de uma espécie à outra,
o que indica um tipo de afinidade entre os diferentes ramos, na medida em que brotam
todos de um mesmo tronco”.161 Essa classificação do diverso, todavia, apenas faz sentido
para nossa subjetividade se os produtos da natureza se prestarem a tal hierarquização
conceitual. Por mais que tais princípios sejam lógicos, como aponta Kant, a nossa
representação científica do mundo procura que as coisas da natureza correspondam à
sistematização, como se esta fosse originariamente imposta pelo mundo e não um mero
traço subjetivo. Isso é uma condição essencial para que haja a crença nos postulados de
uma teoria científica. Como escreve Guyer:

A organização sistemática dos objetos da natureza mesma é uma


condição da possibilidade de nosso êxito na ciência – de modo que
nossa crença em tal organização sistemática é uma condição da
racionalidade de nossos empreendimentos na busca científica – mas não
é mais que a condição da possibilidade desse êxito.162

Para que um sistema hierárquico de conceitos possa fazer sentido na busca científica é
necessário que a própria natureza seja conveniente à ação da faculdade de julgar
reflexionante. Podemos notar a partir disso, que a função sistematizante de tal faculdade
não nos deixa procurando às cegas leis necessárias que estabeleçam elos entre os objetos
da natureza, mas, mediante as máximas da razão, somos dotados subjetivamente de guias
que nos conduzem na sistematização da natureza através de uma rede ascendente de
conceitos. Veremos na próxima seção de que forma as faculdades superiores se integram
para produzir a teorização sobre a natureza.

160 Kant, KrV, B 685-686.


161 Kant, KrV, B688.
162 Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, 28 (Tradução nossa).

61
2.7 As faculdades superiores e a teorização da natureza

Sob leis universais transcendentais fornecidas pelo entendimento, temos a faculdade de


julgar determinante que apenas subsumi o particular, uma vez que a lei indicada a priori
lhe é suficiente e tal faculdade não sente necessidade de pensar uma lei para si mesma.163
A faculdade de julgar reflexionante por sua vez, que tem por função elevar o particular
ao universal, precisa de um princípio – a técnica da natureza –, que não é retirado da
experiência, nem pode ser prescrito à natureza, mas sim retirado da própria faculdade, o
que não pode ser feito pela faculdade de julgar determinante que recebe seus conceitos
universais do entendimento.164 A faculdade de julgar reflexionante tem por objetivo
básico buscar universais desconhecidos para particulares dados. Essa faculdade aplica aos
particulares oriundos da experiência formas de sistematicidade motivadas pela razão.165
Assim, pode-se notar, que a faculdade de julgar reflexionante não possui leis universais
a priori que possam ser imputadas à natureza, mas apenas um princípio a priori que lhe
serve de guia na sistematização da natureza, exclusivamente de acordo com a
subjetividade. O a priori aqui se refere às máximas da faculdade de julgar reflexionante
que fundamentam uma investigação da natureza e não as categorias do entendimento que
fundamentam a faculdade de julgar determinante, que por sua vez também são a priori.
Kant ilustra tais máximas da faculdade de julgar reflexionante com os seguintes
exemplos:

“a natureza escolhe o caminho mais curto”, “ela não faz nada em vão”,
“ela não dá saltos na diversidade das formas” (continnum formarum),
“ela é rica em espécies, mas parcimoniosa em gêneros”.166

Essas máximas orientam a subjetividade para além das leis empíricas fundamentadas pelo
entendimento. Se o entendimento, juntamente com a faculdade de julgar determinante,
diz que toda mudança tem uma causa, o que Kant chama de “lei da natureza universal”,
isso é meramente uma causalidade mecânica (nexus effectivus), que não consegue
articular a vasta contingência de fenômenos e formas naturais. Assim, tudo aquilo que é
contingente para a subjetividade segundo as leis empíricas, deve ser pensado enquanto
uma unidade, não uma unidade que possa ser sondada, mas apenas pensável, algo que
permite ligar subjetivamente o múltiplo, daí a necessidade de uma causalidade teleológica

163 Kant, EEKU, AA 20: 209.


164 Kant, EEKU, AA 20: 210.
165 Cf. Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, 20.
166 Kant, KU, AA 20: 210-211.

62
(nexus finalis). Há, portanto, uma variedade infinita de leis empíricas cuja articulação
escapa às categorias do entendimento. A unidade das leis empíricas apenas pode ser
postulada pela faculdade de julgar reflexionante, ainda que a subjetividade atue como se
a própria natureza estivesse insinuando o parentesco e a afinidade de seus objetos. De
acordo com Guyer:

postulamos não apenas uma organização interna aos nossos


pensamentos, senão também uma organização correspondente de
objetos de nossos pensamentos que torna possível representá-los como
ordenados desse modo, e ademais, um fundamento real dessa
possibilidade.167

As coisas na natureza podem servir umas às outras, como se pudessem servir de meios
para fins, cuja possibilidade apenas é possível mediante a ideia de causalidade teleológica.
Se pensássemos a natureza apenas como um simples mecanismo, de acordo com as
categorias do entendimento, não poderíamos lançar mão de nenhuma teoria científica,
pois não teríamos os elementos imprescindíveis para a elaboração destas como por
exemplo a finalidade, a unidade, a articulação sistêmica, etc. Até mesmo a noção de
natureza, enquanto a soma de todos os objetos da experiência168, não poderia ser
postulada, pois precisamos partir de um pressuposto heurístico de que tudo aquilo que
não é artefato da produção humana está sob o domínio da natureza, que todos os objetos
da natureza possuem em certa medida alguma ligação. Sobre esse ponto Kant nos diz que:

O conceito de conexões e formas da natureza segundo fins é ao menos


um princípio a mais para submeter os seus fenômenos a regras ali onde
as leis da causalidade segundo o seu mero mecanismo não são
suficientes. Pois nós adotamos um fundamento teleológico quando
atribuímos ao conceito do objeto, como se ele se encontrasse na
natureza (não em nós), causalidade em vista de um objeto, ou antes
quando concebemos a possibilidade do objeto por analogia com essa
causalidade (do tipo que encontramos em nós) e, portanto, pensamos a
natureza como técnica.169

A ideia de uma natureza segundo fins é algo introduzido pela subjetividade, enquanto
pressuposição da razão, ou seja, é algo que sucede no nosso modo de representação do
que é dado exteriormente e não algo exterior que empiricamente ensina, ou nos faz
descobrir, aquela conformidade a fins. Porém, se tomarmos a faculdade de julgar
reflexionante em sua acepção teleológica, há nela a capacidade de vincular a razão a

167 Guyer, “Los princípios del juicio reflexionante”, 21 (Tradução nossa).


168 Immanuel Kant, Prol. AA 04: 74-75.
169 Kant, KU, AA 05: 360.

63
conceitos empíricos, pois a faculdade de julgar teleológica exerce a articulação necessária
entre o aspecto constitutivo (responsável pelos conceitos empíricos) e o aspecto sistêmico
fundamentado na razão, articulação necessária a qualquer teoria científica. Os juízos
reflexionantes teleológicos, produzidos por essa faculdade, subordinam máximas
mecânica às máximas da razão, ou seja, sob a causalidade final que fundamenta a ideia
de todo existem partes fundamentadas, se tomadas de modo isolado, pela causalidade
mecânica (poderíamos dizer que a natureza é um sistema teleológico de sistemas
mecânicos). De acordo com Leonel Ribeiro dos Santos:

Seguidamente, Kant mostra como a boa pressuposição (a que é feita


para uso imanente da razão) dos fins da natureza, em vez de prejudicar,
pode antes ser muito útil para a investigação da natureza até segundo os
princípios mecânicos da mesma, sendo possível conciliar a técnica da
natureza ou o princípio da teleologia, pressupostos pela faculdade de
julgar reflexionante com a mecânica da mesma ou os princípios do
mecanicismo, segundo a legislação do entendimento.170

Notemos, então, que a faculdade de julgar teleológica é o ponto fulcral da nossa discussão,
pois exerce a conexão entre os princípios constitutivos do entendimento e os princípios
regulativos da razão, ou se preferirmos, entre natureza e liberdade. Levando-se em conta
isso, a Crítica da faculdade de julgar pode ser interpretada como a culminação do sistema
filosófico transcendental kantiano. Leonel Ribeiro dos Santos, ao se referir à importância
da terceira Crítica, assim expõe:

O autor das três Críticas podia assim ver por fim todos os princípios da
sua filosofia reconduzidos às três faculdades fundamentais do espírito
– o entendimento, a razão e o juízo reflexionante –, cabendo a esta
última dar conta não só da apreciação estética da arte e da natureza
como também da consideração teleológica da natureza, mediante o seu
princípio de finalidade ou de conformidade a fins.171

A faculdade de julgar reflexionante atribui à natureza certa causalidade intrínseca (nexus


finalis), embora tal atribuição tenha apenas um uso subjetivo, como se a natureza operasse
de acordo com uma finalidade autoproposta,172 ou seja, a faculdade de julgar
reflexionante atribui à natureza uma finalidade como se a própria natureza estivesse
agindo segundo fins que ela mesma (a natureza) se propôs. Assim, essa finalidade nada

170 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 144.


171 Leonel Ribeiro dos Santos, “Da experiência estético-teleológica da natureza à consciência ecológica:
uma leitura da Crítica do juízo de Kant”, in: Trans/Form/Ação, São Paulo, 29(1), (2006): 8.
172 Leonel Ribeiro dos Santos, “‘Técnica da natureza.’ Reflexões em torno de um tópico kantiano”, Studia

Kantiana, 9, 126.

64
diz de determinante acerca da natureza, mas expressa o modo como a subjetividade
estrutura as premissas e hipóteses que orientam a formulação das teorias científicas.
Pensar a natureza, em sua multiplicidade e heterogeneidade, como um sistema de leis
empíricas, somente é possível devido ao princípio transcendental da técnica da natureza
ou da teleoformidade da natureza, que encontra ligações (sistêmicas e não mecânicas)
entre as leis empíricas. As leis empíricas são constituídas através do entendimento,
através da intencionalidade objetiva, e, portanto, são leis com validade empírica. Já a
sistematização de leis empíricas em uma teoria científica exige a participação da
faculdade de julgar reflexionante, através da intencionalidade subjetiva, que projeta
afinidades entre os produtos da natureza, como se tais produtos interagissem não apenas
mecanicamente, mas como se interagissem dentro de um sistema no qual cada parte
possui uma finalidade intrínseca e a ligação entre as partes estivesse de acordo com uma
finalidade do todo, que é a própria noção de natureza, apresentada por Kant nos
Prolegômenos, como a totalidade de todos os objetos da experiência. Natureza, na
acepção kantiana, seria o conjunto dos fenômenos e suas correlações subjetivamente
postuladas. As leis científicas, oriundas da relação sintética entre entendimento e
sensibilidade, necessitam de uma unidade mediante a qual seja possível a ideia de uma
natureza sistematizada. Aqui é imprescindível o uso regulativo da razão que nos
possibilita sistematizar as leis científicas em um campo teórico inalcançável pelo uso
limitado e determinante do entendimento. Leonel Ribeiro dos Santos afirma que a
faculdade de julgar reflexionante possui uma função lógico-sistemática. De acordo com
o comentador isso permite:

A representação da natureza na diversidade das suas leis empíricas para


constituir um sistema lógico para a faculdade de julgar e a de, na
pressuposição de um tal sistema, progredir no conhecimento empírico
de uma natureza que se oferece em toda a sua multiplicidade e
heterogeneidade de formas e seres [...] A natureza, considerada em toda
a extrema diversidade das suas formas e seres, revela, ao deixar-se
compreender pela faculdade de julgar reflexionante como se
constituísse por si mesma um sistema lógico de leis empíricas.173

Com as investigações filosóficas propostas pela terceira Crítica Kant teria encontrado na
faculdade de julgar não apenas uma função mediadora entre razão e entendimento, mas a
conciliação entre as funções de ambas, realizada através da faculdade de julgar
teleológica. Os fenômenos da natureza já não podem ser vistos apenas sob o viés

173 Santos, “Técnica da natureza”, 134-136.

65
mecanicista do entendimento, a natureza já não pode mais ser encarada como um
mecanismo de relojoaria, pois a diversidade de suas formas exige da subjetividade, além
do nexus effectivus, o nexus finalis. Quem sabe o grande insight kantiano foi perceber que
a explicação mecânica pressupõe uma teleologia para que o mecanicismo possa adquirir
algum sentido para a subjetividade.
A faculdade de julgar reflexionante em sua relação com as demais faculdades é
assim capaz de unir (ou de subsumir) princípios determinantes aos princípios regulativos,
leis empíricas às leis subjetivas, causalidade mecânica à causalidade finalizada,
fornecendo organicidade à aleatoriedade e tornando sistêmico o que a princípio se
apresentava como um mero agregado. Feitas essas considerações acerca da faculdade de
julgar reflexionante e de suas complexas funções, passemos ao aprofundamento das
noções de técnica da natureza, nexus finalis e organicidade, e seus pressupostos
transcendentais.

66
3. O PAPEL EPISTÊMICO DA FACULDADE DE JULGAR REFLEXIONANTE
TELEOLÓGICA

3.1 Considerações iniciais

Trataremos neste capítulo da dimensão propriamente reflexionante teleológica da


revolução copernicana proposta por Kant, a qual tirou do centro epistêmico o objeto e pôs
em seu lugar o humano e seu aparato cognitivo a priori. Esse aparato subjetivo
proporciona ao objeto, paradoxalmente, tanto determinações constitutivas da sua própria
objetividade quanto regulações sistematizantes. Constitutivamente, tanto a sensibilidade,
com as formas a priori do espaço e do tempo, quanto o entendimento, com suas doze
categorias, determinam o modo como o humano percebe e conceitualiza o objeto. O
objeto formatado espaço-temporalmente recebe determinações categorias dos conceitos
puros do entendimento. Através dessa síntese entre intuições sensíveis e conceitos,
intermediada pelos esquemas da faculdade da imaginação, surge o conhecimento
empírico acerca da natureza. Esse conhecimento é, em linhas gerais, a base para qualquer
teoria científica. Todavia, a razão humana em suas especulações teóricas acerca dos
produtos da natureza não se satisfaz apenas com leis empíricas desagregadas,
determinações nomotéticas estritas e explicações meramente mecânicas. A ação desta
faculdade cognitiva se mostra demasiadamente limitada para as investidas especulativas
da razão, cujo ímpeto investigativo baseia-se em uma liberdade de ação
incomensuravelmente superior à da espontaneidade do entendimento, na medida em que
não se restringe às determinações da sensibilidade. Kant amplia assim as ações cognitivas
do sujeito, tornando também legítimo, para além do uso constitutivo do entendimento, o
uso regulativo da faculdade da razão.
A teorização científica, portanto, deve se valer dos produtos da natureza e das leis
empíricas como se formassem um sistema teórico de partes cuja relação possui uma
necessidade diferente da necessidade nomotética. A causalidade teleológica permite
organizar um conjunto de objetos que foram já formatados pela causalidade efetiva. Um
organismo teórico, vamos chamá-lo assim, tem partes fundadas na causalidade mecânica
e organizadas sistemicamente através da causalidade teleológica. Isso faz com que a teoria
científica, além de altamente verossímil com a experiência, satisfaça a subjetividade, pois
está de acordo com as características fundamentais das faculdades da mente humana.

67
É importante destacar que a teleologia investigada por Kant é a analógica e não a
atributiva. Em suma, como o próprio nome sugere, a teleologia atributiva é aquela que
atribui fins aos próprios produtos da natureza enquanto uma característica em si de tais
produtos. Para Kant, no entanto, que procurou extrair o máximo de consequências teóricas
da “revolução copernicana”, os fins não são atribuídos à natureza, são guias
reflexionantes, capazes de ampliar nosso modo de pensar a natureza. Daí o caráter
analógico: é a faculdade de julgar reflexionante teleológica que atua segundo fins e, por
analogia, encara a natureza como se esta agisse de acordo com fins intrínsecos, mas que
na verdade são frutos da ação da subjetividade. Isso só é possível graças à noção de
técnica da natureza, introduzida por Kant na Crítica da faculdade de julgar, que
passamos em seguida a analisar.

3.2 Técnica da natureza

O conceito de técnica da natureza mereceu um destaque especial no texto que Kant


redigiu na década de 1780 e que hoje chamamos de Primeira introdução à Crítica da
faculdade de julgar. De acordo com seu editor e aluno Jacob Sigismund Beck, Kant teria
talvez considerado o conteúdo da Primeira introdução demasiadamente longo e que por
isso deveria ser resumido.174 O texto não foi apenas resumido como engavetado e em seu
lugar Kant redigiu uma nova introdução. Não é propósito do nosso trabalho cotejar o
conteúdo de ambas as introduções. Em nosso entender a Primeira introdução, apesar de
sua gestação intimamente ligada a terceira Crítica, adquiriu na filosofia kantiana uma
autonomia (há traduções que intitulam o texto como, por exemplo, La filosofia como
sistema)175 ao apresentar distinções importantes como a bipartição da faculdade de julgar
e noções originais como a de técnica da natureza, que foi praticamente suprimida da
versão definitiva da introdução à Crítica da faculdade de julgar.
Em uma primeira observação pode-se notar que a noção de técnica da natureza
(Technik der Natur) parece combinar conceitos que na tradição filosófica foram
considerados antagônicos: téchnê / phýsis ou, em outros termos, arte / natureza.176 A

174 Kant, Br, AA 11: 122; Br, AA 11: 441.


175 Immanuel Kant, La filosofia como sistema, trad. P. von Haselberg, (Buenos Aires: Instituto de Filosofia
de la Facultad de Filosofia y Letras, 1948).
176 É curioso notar, no entanto, que no século de Kant já havia certo interesse em confrontar natureza e arte,

embora sem a investigação minuciosa que o filósofo de Konigsberg dedica ao tema na terceira Crítica¸
tampouco tendo em vista as consequências da “revolução copernicana”. Voltaire, à título de exemplo, em
seu Dicionário filosófico, no verbete natureza, escreve um diálogo entre um filósofo e a natureza. Em certo

68
técnica é classicamente encarada como um conjunto de regras que tem por objetivo
direcionar com eficácia a capacidade humana de produzir um artefato qualquer, e que
está, portanto, associada a um modo de produção artificial e intencional. Já a noção de
natureza seria utilizada para definir tudo aquilo que não foi obra do ser humano, associada
a um modo de produção natural e espontâneo. 177
Na obra kantiana a noção de técnica da natureza surge da investigação sobre o
impulso da subjetividade em sistematizar. Se na Crítica da razão pura esse impulso de
sistematização fora imputado à razão, na Crítica da faculdade de julgar passou a ser uma
função específica da faculdade de julgar reflexionante. Embora esta faculdade esteja
vinculada à razão, a sistematização passa a ser não um trabalho da razão como um todo,
mas de um viés específico dentre outros que integram o seu domínio. A faculdade de
julgar reflexionante age de acordo com um princípio chamado “teleoformidade da
natureza”, ao qual Kant também se refere como técnica da natureza. Esse princípio
transcendental, assim como outras de suas noções filosóficas, não diz nada de
determinado acerca da natureza ou dos objetos em si mesmos, mas apenas revela como a
subjetividade procede em relação a eles. A “teleoformidade da natureza” ou a técnica da
natureza, enquanto princípio do juízo reflexionante, se destaca por ser um princípio
fundamentalmente heurístico, um princípio que tem como base a classificação do diverso,
um modo de postular a unidade e, portanto, encontrar no diverso articulações sistemáticas.
A citação abaixo deixa claro a intenção de Kant ao combinar as noções de
“técnica” e de “natureza”, a partir da qual poderemos definir a Technik der Natur:

Nos serviremos da expressão “técnica” quando os objetos da natureza


somente podem ser julgados como se sua possibilidade se fundasse na
arte, caso em que os juízos não são nem teoréticos nem práticos [...],
porque não determinam nada a respeito da constituição do objeto ou do
modo de produzi-lo, mas permitem julgar a própria natureza – ainda
que apenas por analogia com uma arte, e numa referência subjetiva à
nossa faculdade de conhecimento, não numa referência objetiva aos
objetos.178

Esse pequeno trecho contém alguns elementos importantes como a diferença entre juízos
teoréticos e práticos e a partícula como se.

momento a natureza diz que o nome dado a ela é impróprio, pois ela se considera arte. Voltaire,
Philosophical Dictionary, (Nova Iorque: Projeto Gutenberg, 2006), 97.
177 O próprio Kant no § 43 da terceira Crítica escreve: “chama-se a algo um produto de arte simplesmente

para diferenciá-lo de um efeito da natureza”. Kant, KU, AA 05: 303.


178 Kant, EEKU, AA 20: 200-201.

69
O primeiro parágrafo da Primeira introdução inicia-se com a problemática sobre
a diferenciação entre filosofia teórica e prática. A primeira refere-se à filosofia da
natureza enquanto a segunda refere-se à filosofia da liberdade; uma pode conter princípios
empíricos e a outra apenas princípios subjetivos.179 Na introdução definitiva, a filosofia
prática bifurca-se na distinção entre princípios moralmente-práticos e princípios
tecnicamente- práticos180: os primeiros geram proposições práticas que decorrem da
noção de liberdade e que se referem à moralidade e os segundos geram proposições
técnicas que estão ligadas ao conhecimento teórico de qualquer ciência.181 Se as duas
principais investidas filosóficas de Kant até a Crítica da faculdade de julgar poderíamos
chamar de “Crítica da razão teorética” e “Crítica da razão prática”, com o texto da
Primeira introdução, segundo Gerhard Lehmann, poderíamos dizer que o filósofo
pretendesse iniciar a “Crítica da razão técnica”.182 Desse modo, a noção de técnica da
natureza separa-se do conhecimento teorético do entendimento e da razão prática
objetivamente finalizada e coloca-se na reflexividade do sujeito ensejada pela faculdade
de julgar reflexionante, que por sua vez difere-se da faculdade de julgar determinante à
qual se incorpora as funções teorética e lógica. Esse poder reflexionante da subjetividade
faz com que o sujeito contemple e aprecie (Beurteilung) a natureza, principalmente aquilo
que nela consideramos belo, como por exemplo os seres organizados, não com a simples
razão e seu caráter eminentemente subjetivo/transcendental, mas como se a própria
natureza fosse regida por uma ordem própria de fins.183 Os objetos da natureza são vistos
como belos, com certa organização intrínseca, com certos traços de afinidade que permite
classificar espécies em gêneros, como se fossem criações artística ou análogos à arte
humana, sem qualquer implicação objetiva de conhecimento, mas meramente enquanto
um traço subjetivo. Desse modo, encontra-se, entre a faculdade da razão e a faculdade do
entendimento, uma faculdade mediadora, a faculdade de julgar, que procede
tecnicamente, capaz de ligar Natureza e Liberdade, isto é, capaz de ligar a parte teorética
da filosofia e a parte prática.
A natureza enquanto um todo de leis empíricas que se apresenta como um sistema
orgânico, só é possível graças ao ímpeto sistematizante motivado pela ideia de técnica da

179 Kant, EEKU, AA 20: 195.


180 Kant, KU, AA 05: 172.
181 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 127-128.
182 Gerhard Lehmann, “Die Technik der Natur”, in: Idem, Beiträge zur Geschichte und Interpretation der

Philosophie Kants, (Berlin, Walter de Gruyter, 1969), 289-294. Extraído de: Leonel Ribeiro dos Santos,
“‘Técnica da natureza.’ Reflexões em torno de um tópico kantiano”, Studia Kantiana, 9, 121.
183 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 130.

70
natureza. Para além da diversidade e heterogeneidade de leis da natureza, constituídas
pela ação do entendimento, é necessário uma pressuposição transcendental subjetiva que
encontre afinidades nas formas naturais e na inquietante disparidade dessas leis.184 Essa
pressuposição, segundo Kant, é um princípio da faculdade de julgar, que busca não
subsumir particulares a partir de um universal já dado (função do juízo determinante em
consonância com o entendimento), mas encontrar na variedade de particulares um
universal que possa especificá-la (função do juízo reflexionante em consonância com as
máximas da razão). O princípio da técnica da natureza torna possível o conceito de
natureza, com sua heterogeneidade e multiplicidade de formas, objetos e leis, com uma
função lógico-sistemática, que é também uma função heurística pois permite a criação de
teorias científicas a partir das afinidades entre as formas e objetos encontrados na
natureza, afinidade que a subjetividade projeta sobre a natureza como se fosse a própria
natureza que estivesse mostrando ligações sistemáticas para a nossa contemplação.
Kant aponta que o Systema Naturae de Carl von Linné fora motivado pela
classificação do reino animal ou vegetal levando em conta certos critérios que
estabeleceram afinidades e parentescos entre as espécies. Foi possível estabelecer uma
classificação ascendente que ia desde a espécie, passando pelo gênero, família, ordem,
classe, filo, até o reino, em um típico exemplo do uso classificatório do juízo
reflexionante. Com relação às plantas, seu modo de classificação foi mais surpreendente
ainda entre os seus contemporâneos, pois Linné elegeu a flor como critério de
classificação e assim estabeleceu, com base no número, proporção e posição dos estames
em relação aos pistilos, 24 classes de plantas.185 Segundo Kant, isso é possível graças à:

analogia das formas, na medida em que estas, apesar de toda a sua


diversidade, parecem geradas segundo um arquétipo comum originário,
fortalece a suspeita de um parentesco efetivo na geração por uma mãe
comum originária, pela aproximação em graus de uma espécie animal
à outra186

Temos a sensação de que a própria natureza está a especificar suas formas, como se a
finalidade que a subjetividade projeta sobre a natureza fosse, na verdade, uma imposição
da natureza ao nosso conhecimento e que as afinidades e parentescos de seus produtos

184 Kant, EEKU, AA 20: 209.


185 Cf. a propósito do sistema de classificação de Linné: Maria Elice B. Prestes et al, “As origens da
classificação de plantas de Carl von Linné no ensino de biologia”, in Filosofia e História da Biologia, v. 4,
(2009), 108.
186 Kant, KU, AA 05: 418-419.

71
fossem meras descobertas, mas que no fundo são modos do ser humano organizar a
diversidade e heterogeneidade da natureza. Dessa maneira, continua Kant:

vemos terras, pedras, minerais etc., sem qualquer forma conforme a


fins, como meros agregados, mas, no que diz respeito ao seu caráter
interno e aos fundamentos para conhecer sua possibilidade, como tão
aparentados que, em meio às leis empíricas, são adequados para uma
classificação das coisas e um sistema da natureza sem, todavia, mostrar
uma forma do sistema neles mesmos.187

É através do procedimento técnico ou artístico da faculdade de julgar que podemos pensar


a natureza para além de sua necessidade mecânica. Sem esse procedimento não
poderíamos dar unidade sistemática à classificação completa das afinidades e parentescos
entre os objetos da natureza, ainda que tal função dessa faculdade nada diga quanto à
determinação objetiva das ligações sistemáticas. Desse modo, é o procedimento técnico
que fundamenta a ideia de uma técnica da natureza e não uma determinação imposta pela
natureza e descoberta pela subjetividade.
Kant então se questiona no parágrafo VII da Primeira introdução de que modo a
noção de técnica da natureza, sendo um princípio subjetivo, se deixa perceber em seus
produtos, já que a noção de finalidade (cuja pressuposição embasa a unidade sistemática)
não é um conceito constitutivo da experiência, isto é, uma categoria do entendimento. A
faculdade de julgar reflexionante postula a finalidade, pois, como dissemos acima, tal
faculdade é propriamente técnica ou artística. A natureza assim pode ser representada por
essa faculdade tecnicamente ou artisticamente na medida em que ela se ajusta a esse
procedimento de modo, além do mais, necessário. A finalidade pode ser aplicada à
representação do objeto como se estivesse posta no objeto, ou seja, é a nossa subjetividade
que introduz finalidade nas coisas e não extrai da percepção das coisas uma finalidade.188
Na dinâmica cognitiva Kant considera que para cada conceito empírico são necessárias
três ações: 1) a apreensão do diverso na intuição, para a qual é exigida a imaginação; 2)
a compreensão ou a “unidade sintética da consciência desse diverso no conceito de um
objeto”, para a qual exige-se o entendimento; e 3) a exposição de um objeto na intuição
que corresponda a esse conceito, para a qual exige-se a faculdade de julgar determinante
pois trata-se de um conceito empírico.189 Porém, projeção sobre a percepção de um juízo
reflexionante não constitui um conceito determinado, mas apenas uma regra da razão. Ou

187 Kant, EEKU, AA 20: 217.


188 Kant, EEKU, AA 20: 219.
189 Kant, EEKU, AA 20: 220.

72
seja, não há a exposição de um objeto na intuição correspondente ao conceito no juízo
reflexionante, pois a finalidade que embasa a unidade sintética impõe uma conformação
meramente subjetiva.190 . Portanto, como sustenta Leonel Ribeiro dos Santos, a técnica
da natureza projeta sobre a natureza um procedimento que a subjetividade (mais
precisamente aquela vinculada à faculdade de julgar reflexionante) realiza em si própria
e para si própria.191
Kant, no entanto, ressalta no parágrafo IX da Primeira introdução dois tipos de
técnica da natureza: a subjetiva-formal e a objetiva-real. A primeira, que fundamenta o
juízo estético, considera as coisas enquanto formas naturais (a forma propriamente
estética da técnica da natureza), e a segunda, que fundamenta o juízo teleológico,
considera as coisas enquanto fim natural. Na explicação de Santos:

a primeira forma de «técnica da natureza» corresponde à que se


surpreende na apreciação das formas belas da natureza apreciadas num
juízo de reflexão estético que tem por objeto a mera forma das coisas
apreendidas numa intuição ou representação, sem qualquer conceito do
objeto representado; a segunda corresponde à apreciação da
teleoformidade da natureza num juízo teleológico, o qual, sendo embora
em si mesmo um juízo de conhecimento, é todavia subjetivamente
reflexionante e não objetivamente determinante.192

A divisão entre técnica formal e técnica real implica a diferenciação entre conformidade
a fins – na qual imaginação e entendimento concordam possibilitando a formação de um
conceito – e fim natural – no qual as coisas são vistas como se sua possibilidade interna
pressupusesse um fim que está no próprio fundamento causal de sua produção.193 Desse
modo, a arte pode ser pensada como análoga à natureza e vice-versa. A arte deve ser, de
acordo com Kant, tão espontânea quanto os produtos da natureza. E a natureza deve ser
encarada tecnicamente, como se seus produtos fossem oriundos de uma intencionalidade
organizadora. Assim a natureza não seria simplesmente reduzida à arte, tampouco a arte
seria apenas uma mimetização da natureza. Ao unir dois conceitos aparentemente
antagônicos (técnica e natureza), Kant ampliou tanto a concepção de natureza quanto a
concepção de arte.
Se a diferenciação entre técnica formal e real implica na própria divisão da
faculdade de julgar em estética e teleológica, podemos então perceber que tanto a noção

190 Kant, EEKU, AA 20: 221.


191 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 137.
192 Santos, “‘Técnica da natureza’”, 140.
193 Kant, EEKU, AA 20: 232-233.

73
de belo quanto a noção de finalidade nos objetos da natureza têm pretensão à validade
universal, diferentemente, por exemplo, daquilo que seria agradável apenas para um
indivíduo ou então daquilo que teria alguma finalidade apenas em relação a uma pessoa.
O belo, reitera Kant inúmeras vezes, não pode ser apenas aquilo que é belo para mim,
mas como se fosse uma propriedade dos objetos. Assim o indivíduo possui “a consciência
[de que o seu juízo] está desprovido de todo e qualquer interesse [pessoal], uma pretensão
à validade para todos sem uma universalidade baseada em objetos, isto é, ele [o juízo]
tem de estar ligado a uma pretensão à universalidade subjetiva.”194 Isso aponta, entre
outras coisas, para a diferenciação entre a universalidade dos conceitos do entendimento,
que por estarem em contato com a sensibilidade pretendem validar-se objetivamente, e a
universalidade da razão, de uso estritamente subjetivo. Sem o princípio subjetivo da
finalidade os produtos da natureza estariam interagindo entre si às cegas, apenas
vinculados através da causalidade efetiva, que bem pode ser conhecida pelo uso
constitutivo do entendimento. Mas o humano percebe na natureza uma tão variada gama
de objetos, alguns possuindo certas afinidades que escapam à causalidade mecânica, que
se faz necessário postular que eles sejam orquestrados por uma causalidade intencional,
por uma finalidade que não pode ser intuída na natureza, mas que serve como princípio
para organizar a contingência em segmentos teóricos. Isso apenas é possível quando a
faculdade de julgar reflexionante teleológica atua sobre os objetos oriundos da síntese
entre entendimento e sensibilidade, de modo a lançar tais objetos determinados pelo
entendimento ao uso irrestrito e ilimitado da razão. Diferentemente dos princípios e
categorias do entendimento puro, cuja tábua se finda em doze categorias insubstituíveis,
as ideias da razão podem ser substituídas conforme o avanço da atividade teórica.
A noção de técnica da natureza, como dissemos, é bem menos recorrente na
introdução definitiva. Seu campo conceitual, todavia, é ampliado na segunda parte da
Crítica da faculdade de julgar, pois tal noção é subsumida ao conceito de teleoformidade
da natureza ou, mais precisamente, à conformidade a fins da natureza.195 Essa
equivalência conceitual, no entanto, não é sinonímica e merece alguns esclarecimentos.
Se na noção de técnica da natureza parece haver um procedimento artístico da própria
natureza, embora apenas em analogia com o nosso procedimento artístico, a noção de
conformidade a fins parece centrar-se em uma finalidade da natureza em relação à nossa
subjetividade. A técnica da natureza permite entender como a natureza é julgada como

194 Kant, KU, AA 05: 212.


195 Santos, “‘Técnica da natureza’, 120.

74
arte e enfatiza o aspecto estético do ajuizamento humano (o que fica claro ao considerar-
se a natureza como se fosse arte e a arte como se fosse natureza), enquanto a conformidade
a fins enfatiza o aspecto teleológico do ajuizamento. No entanto, a conjunção de ambas
as noções em um mesmo campo conceitual é fundamental para entender como nós
harmonizamos (sistematizamos) teoricamente os produtos naturais. Nas palavras de Kant:

A beleza natural autossuficiente nos revela uma técnica da natureza que


a torna representável como um sistema segundo leis cujo princípio, que
não encontramos em toda a nossa faculdade do entendimento, é o de
uma finalidade relativa ao uso da faculdade de julgar em vista dos
fenômenos, de tal modo que estes não tenham de ser julgados apenas
como pertencentes à natureza em seu mecanismo sem fins, mas também
em analogia com a arte.196

Ou seja, quando contemplamos esteticamente a natureza e projetamos sobre esta certa


harmonia, certa arte demiúrgica intrínseca, podemos criar um sistema de espécies e
gêneros, porque cada objeto da natureza nos parece ter sido produzido tecnicamente e
mediante causas finais. Assim, a noção de técnica da natureza, como ressaltamos acima,
surge nos momentos em que o ajuizamento representa a natureza enquanto arte; e a noção
de conformidade a fins surge mais precisamente quando se quer entender como os
produtos da natureza se adequam à faculdade de julgar. Isso, no entanto, não coloca essas
noções em lados opostos, porque a técnica da natureza está na base da apreciação estética,
da apreciação teleológica e da representação sistêmica da natureza.
O conceito de técnica da natureza auxilia-nos na teorização ao subsumir os
produtos da natureza sob uma causalidade apenas pertencente à razão. Segundo o próprio
Kant, entendimento e faculdade de julgar determinante procedem dogmaticamente, ao
contrário da razão e da faculdade de julgar reflexionante, cujo procedimento é crítico.
Sendo assim, o conceito de técnica da natureza não pode ser tratado dogmaticamente,
uma vez que, de acordo com a segunda parte da Crítica da faculdade de julgar:

Procedemos dogmaticamente com um conceito (mesmo que ele devesse


ser empiricamente limitado) quando o consideramos contido sob outro
conceito do objeto, que constitui um princípio da razão, e o
determinamos de acordo com esse conceito. Por outro lado, procedemos
criticamente com ele quando o consideramos em relação às nossas
faculdades de conhecimento, portanto às condições subjetivas para
pensá-lo, sem tentar decidir algo sobre o seu objeto. O procedimento
dogmático com um conceito é aquele, portanto, que convém à faculdade

196 Kant, KU, AA 05: 246.

75
de julgar determinante, e o procedimento crítico é aquele que convém
à reflexionante.197

O conceito em questão não pode ter sua realidade objetiva demonstrada pela razão e,
portanto, não é constitutivo da experiência. Tanto o conceito de técnica da natureza
quanto o de teleoformidade da natureza não são conceitos atributivos, ou seja, não
podemos atribuí-los à natureza em si, pois incorreríamos em um procedimento dogmático
e, tais conceitos, são de nível meramente crítico, sem qualquer validade objetiva. O
procedimento analógico do juízo reflexionante teleológico, devidamente recolocado na
teorização científica, nos serve, de acordo com Kant, para sistematizar aquilo que para o
entendimento é contingente, embora através de juízos tão-somente problemáticos
intrínsecos à espécie humana.198
No parágrafo 78 da Crítica da faculdade de julgar Kant enfim aborda a união do
mecanismo universal da natureza com o princípio teleológico sob a noção de técnica da
natureza. Se, como vimos, a causalidade segundo fins, não é constitutiva na compreensão
da natureza, o mecânico e o teleológico não podem ser unidos “como princípios de
explicação”, pois assumiríamos ambos enquanto “princípios dogmáticos da compreensão
da natureza” em função da faculdade de julgar determinante.199 Por isso a união de ambos
deve se basear não em um fundamento de explicação, mas de “exposição dessa
possibilidade para a faculdade de julgar reflexionante”.200 O princípio que fundamenta
essa exposição é de ordem suprassensível, ou seja, a união da causalidade mecânica e da
causalidade teleológica se dá em um âmbito subjetivo meramente regulativo,
reflexionante. A técnica da natureza permite então que ambas as causalidades tenham um
uso subjetivo, sem que uma ocupe o lugar da outra. Essa união, de acordo com Kant,
acontece mediante a subsunção do mecanismo ao tecnicismo teleológico intencional.201
Assim, as leis físicas que regem a matéria são subssumíveis à conformidade a fins quando
se quer teorizar acerca dos organismos. Com a causalidade finalizada não temos uma
explicação sobre a natureza dos organismos, mas uma exposição sistemática, crítica,
reflexionante.
A causalidade finalizada (nexus finalis) na natureza não é pressuposta nem através
do entendimento nem através da razão. É uma função da faculdade de julgar reflexionante

197 Kant, KU, AA 05: 395.


198 Kant, KU, AA 05: 397-401.
199 Kant, KU, AA 05: 411.
200 Kant, KU, AA 05: 412.
201 Kant, KU, AA 05: 414.

76
teleológica. Isso marca, entre outras coisas, a diferença entre essa última finalidade
“descoberta” no âmbito das faculdades superiores (a finalidade técnica) e a finalidade
“prática”, pertencente à razão. De acordo com Leonel Ribeiro dos Santos, há, no entanto,
uma relação entre a finalidade da razão e a finalidade da faculdade de julgar, pois a
finalidade para a natureza pressupõe, ainda que de modo reflexionante e subjetivo, uma
analogia com a finalidade que a razão projeta às realizações humanas finalizadas.202
Existe, portanto, uma relação íntima entre a faculdade de julgar reflexionante teleológica
e a faculdade da razão, pois ambas pressupõem a noção de finalidade, a primeira em
relação aos produtos da natureza, a segunda em relação aos produtos da humanidade. Para
entendermos o papel da faculdade de julgar teleológica no sistema crítico kantiano e,
particularmente, em uma filosofia crítica das ciências, vamos retomar a argumentação dos
capítulos anteriores, partindo da arquitetônica da razão até o ajuizamento teleológico, a
fim de vislumbrar a noção de sistematização orgânica, que culminará no Opus postumum,
com a noção de organismo tida tanto como um esquema de ordenação do mundo, como
um modo de ilustrar o funcionamento da razão enquanto motivada por uma vitalidade
orgânica.203

3.3 Os pressupostos transcendentais da teleoformidade da natureza

De acordo com Leonel Ribeiro dos Santos os três pressupostos transcendentais da razão
expostos na primeira Crítica — da unidade ou homogeneidade (que visa o máximo de
unidade), o da variedade ou da especificação (que visa o máximo de variedade) e o da
afinidade ou de continuidade (que harmoniza os outros princípios, sem deixar que o
primeiro nos conduza a uma unidade muito geral e vazia de conteúdo, ou que o segundo
nos conduza a uma dispersão de conhecimentos empíricos) — são reduzidos na terceira
Crítica a um único princípio transcendental: a teleoformidade da natureza da faculdade
de julgar reflexionante.204 A comentadora Nuria Sánchez Madrid parece apontar na
mesma direção ao dizer que o princípio transcendental da finalidade lembra certas
características dos princípios da razão, entre elas: não procede da experiência; essa

202 Santos, “Técnica da natureza”, 142-143.


203 Pedro Paulo Pimenta, A trama da natureza: organismo e finalidade na época da ilustração (São
Paulo: Editora Unesp, 2018), 336.
204 Leonel Ribeiro dos Santos, Ideia de uma heurística transcendental (Lisboa: Esfera do caos, 2012), 71-

90.

77
finalidade não é demonstrada in concreto; colabora na sistematização embora seja um
conhecimento artificial; é um princípio transcendental, mas indeterminado.205 Para
entendermos até que ponto isso condiz com a exposição de Kant, vamos começar por
retomar certas considerações da Crítica da razão pura.
A discussão sobre os três pressupostos transcendentais da razão aparece,
principalmente, no Apêndice à Dialética Transcendental da primeira Crítica. De acordo
com Kant a razão possui uma propensão natural em ultrapassar os limites do
entendimento, suas inferências pretendem ir além do campo da experiência.206 Por mais
natural que seja esse procedimento da razão, ele nos conduz a dois tipos de uso: o
ilegítimo e o legítimo. Se tomarmos as ideias da razão enquanto conceitos que se refiram
diretamente a coisas reais, ou seja, se dermos a essas ideias um uso constitutivo, nossas
inferências serão infundadas e nos levarão ao engano. Nesse caso, faríamos um uso
ilegítimo da razão. Em contrapartida, se quisermos fazer um uso legítimo da razão,
devemos entender que suas ideias não se reportam diretamente à experiência, mas apenas
aos conceitos do entendimento. Esse uso legítimo, também chamado por Kant de uso
imanente ou interno, tem por objetivo dar unidade aos conceitos do entendimento,
portanto é um uso regulativo que direciona o entendimento.207 É notável, todavia, que
Kant ao detectar o uso ilegítimo da razão não o descarta da teorização acerca da natureza,
colocando-o, inclusive, como necessário:

As ideias transcendentais nunca têm um uso constitutivo. [...] Por outro


lado, no entanto, elas tem um uso regulativo excelente [...] de direcionar
o entendimento a uma certa meta, em vista da qual as linhas direcionais
de todas as suas regras convergem para um ponto [...] Agora, disso
surge realmente, para nós, a ilusão de que essas linhas direcionais
partiriam do próprio objeto que estivesse além do campo do
conhecimento empiricamente possível; [...] mas essa ilusão (que
pode, todavia, impedir que nos engane) é também indispensavelmente
necessária.208

É possível sugerir que na citação acima a noção do como se, que seria explorada no
advento da terceira Crítica, já estivesse no horizonte teórico kantiano. O engano não
estaria no fato de as ideias da razão serem encaradas como se correspondessem à natureza
das coisas, essa pressuposição da razão é o que fornece verossimilhança às teorias, mas

205 Nuria Sánchez Madrid, “Uma ampliação hermenêutica da Lógica Transcendental”, in Kant e a biologia,
ed. Ubirajara R. de A. Marques, (São Paulo: Barcarola, 2012), 165.
206 Kant, KrV, B670.
207 Kant, KrV, B671-672.
208 Kant, KrV, B672-673. Grifos feitos pelo autor da dissertação.

78
cometeríamos um crasso engano se encarássemos tais ideias como sendo constitutivas,
quando na verdade elas são meramente regulativas. Se as linhas direcionais não fossem
encaradas como se partissem dos próprios objetos não teríamos crença epistêmica nas
ideias da razão.
As ideias da razão, como vimos no primeiro capítulo, são responsáveis pela
sistematicidade dos conhecimentos fornecidos pelo entendimento. Fornecem unidade
sistêmica ao que nos é apresentado como um mero agregado. Assim, valendo-nos de um
exemplo de Kant, a ideia da razão de água pura não é encontrável na natureza. Até mesmo
as fontes de água mais isoladas da interferência de homens e animais possuem uma
variação mineral inerente a posição geográfica. Todavia, a ideia de água pura nos serve
como diretriz, como ideia reguladora, para abarcar sobre o mesmo conceito as substâncias
aquosas cognoscíveis dos mares, rios, lagos, lençóis freáticos, chuva, etc. Definir um rio,
por exemplo, como um curso natural de água, constituído majoritariamente pela molécula
H2O (para usar uma designação atual, que não existia na época de Kant), é afirmar que a
composição fundamental do rio é a água, ainda que esta não seja constituída apenas de
moléculas de água. Um mar, por sua vez, embora contenha água salgada, também terá
por composição fundamental a água. São, portanto, diferentes condições empíricas, mas
que ainda assim são subsumidas sob uma única ideia da razão que assume a função de
uma força fundamental cognitiva de explicação. Kant esclarece esse procedimento:

As forças fundamentais comparativas têm de ser, por seu turno,


comparadas entre si para que, na medida em que se descubra a sua
concordância, sejam aproximadas de uma única força fundamental
radical, i.e., absoluta. Essa unidade da razão, contudo, é meramente
hipotética. Não se afirma que ela possa ser de fato encontrada, mas que
tem de ser buscada em benefício da razão, como seja, para o
estabelecimento de certos princípios para as regras que a experiência
possa oferecer, e que se produza desse modo, onde seja possível fazê-
lo, uma unidade sistemática no conhecimento.209

Mesmo que as ideias da razão sejam criações da razão para organizar a experiência em
conceitos sem que sejam intuídas empiricamente, mas com o intuito de dar unidade
racional, é necessário pressupor, como vimos com o als ob, que essas ideias sejam
inerentes ao conhecimento objetivo da natureza, pois, para Kant, uma ideia da razão não
deve contradizer inteiramente a constituição da natureza fornecida pelo entendimento.210
É com a razão que podemos fazer um uso coerente do entendimento. Essa função da razão

209 Kant, KrV, B677-678.


210 Kant, KrV, B679.

79
de concatenar os diversos objetos conhecidos pelo entendimento é estruturada através de
três princípios: homogeneidade, especificação e continuidade. O primeiro se refere ao
processo de colocar o diverso sob gêneros superiores; o segundo se refere à variedade
daquilo que é homogêneo em espécies inferiores; e o terceiro se refere à afinidade que há
entre uma espécie e outra e à diferença entre espécies através de um “crescimento
gradativo das diferenças”.211 Esses princípios da razão não fornecem um conhecimento
objetivo da natureza, mas nos auxiliam enquanto pressuposições subjetivas para
investigação científica, são expectativas que orientam o entendimento em seu
conhecimento efetivo da natureza; não advêm da experiência e, portanto, não constituem
um conhecimento verdadeiro acerca da natureza212, por isso embasam somente
ajuizamentos reflexionantes. O uso desses princípios, todavia, não está distante do
entendimento, nem separados deste tão nitidamente como suscitam algumas partes mais
didáticas da Crítica da razão pura, pois existem outras partes, como a que citaremos
abaixo, que demonstram que a faculdade da razão e a do entendimento mesclam-se na
atividade subjetiva sobre a experiência:

O que é admirável nesses princípios, e a única coisa que nos interessa,


é que eles parecem ser transcendentais, e, mesmo que contenham
apenas ideias para regular o uso empírico da razão [...] eles ainda assim
possuem, como proposições sintéticas a priori, uma validade objetiva,
ainda que indeterminada, e servem de regra à experiência possível,
podendo inclusive ser empregados como princípios heurísticos, com
sucesso, na efetiva elaboração da mesma.213

Nota-se a grande intimidade que o uso da razão possui com o uso do entendimento em
relação à experiência, pois a razão age sobre o processo de conceitualização do
entendimento dando-lhe unidade através de ideias reguladoras. Certamente os conceitos
da razão carecem de objetos na experiência, mas, como alerta Kant, não se referem a
objetos necessariamente inventados – são conceitos problemáticos, ficções heurísticas,
sua função regulativa sistematiza o uso do entendimento.214
Os três pressupostos transcendentais da razão, além do mais, nos permite
compreender aquilo que Kant denomina arte dos sistemas ou a arquitetônica da razão
pura. A unidade da razão (que pressupõe a variedade dos particulares que estão sob ela e
suas afinidades) é uma ideia que permite sistematizar os diversos conhecimentos advindo

211 Kant, KrV, B685-686.


212 Santos, Heurística transcendental, 74.
213 Kant, KrV, B691.
214 Kant, KrV, B799.

80
da síntese entendimento-sensibilidade. Essa ideia, portanto, transforma um mero
amontoado (coacervatio) em um todo articulado (articulatio) que cresce internamente aos
moldes de um organismo, sistemicamente.215 Em certos momentos, Kant admite que sem
essa ideia fundamental, digamos assim, a própria ciência seria impossível:

Ninguém tenta produzir uma ciência sem ter uma ideia por fundamento.
No seu desenvolvimento, contudo, raramente o esquema, ou mesmo a
definição de ciência que ele oferece no princípio, correspondem à sua
ideia; pois esta reside na razão como um germe cujas partes se
encontram ainda muito pouco desenvolvidas e quase irreconhecíveis à
observação microscópica. Por isso é preciso determinar e definir as
ciências, que são todas concebidas desde o ponto de vista de um certo
interesse universal, não segundo a descrição que dela faz seu criador,
mas segundo a ideia que, a partir da unidade natural das partes que ele
reuniu, pode ser encontrada na própria razão. Pois então se verificará
que o criador de uma ciência, e com frequência também os seus
seguidores mais tardios, giram em torno de uma ideia que eles mesmos
não têm clara, não podendo, portanto, determinar seu conteúdo próprio,
sua articulação (unidade sistemática) ou seus limites.216

Essa ideia inicial teria a função de uma hipótese ou de uma ideia heurística, que em muitos
casos, adverte o filósofo, atravessa gerações de cientistas até que os conhecimentos que
aí se avançou ganhem o verniz de um todo articulado sistematicamente, tecnicamente, e
assim a ideia, que de início estava imersa na obscuridade seja trazida à luz, de acordo com
os fins da razão, e então pode-se observar como o todo é arquitetado. Na Arquitetônica
da razão, capítulo do qual foi extraído a passagem acima, é abundante em metáforas
extraídas do naturalismo. São elas: a ideia enquanto um “germe originário”; “estágio de
desenvolvimento”; conhecimentos articulados “como membros de um todo”; o todo, de
um conhecimento científico, “pode crescer internamente tal como um corpo de animal”;
“a raiz universal” de nossas faculdades cognitivas que se divide em “dois ramos dos quais
um é a razão”; a “fisiologia da razão pura”.217 Essas metáforas extraídas do “pensamento
biológico” setecentista apontam para esse processo orgânico da razão e instruem os
filósofos no modo como devem confeccionar os seus sistemas e no modo como devem
interpretar qualquer teorização acerca da natureza.218 Para tanto, é necessário entender
como Kant encarou a problemática de sua época entre mecanismo (nexus effectivus) e
organismo (nexus finalis).

215 Kant, KrV, B860-861


216 Kant, KrV, B862.
217 Kant, KrV, B860-879.
218 Pimenta, A trama da natureza, 124.

81
3.4 A relação entre nexus effectivus e nexus finalis

Os três pressupostos transcendentais da razão (unidade, variedade e afinidade) nos


serviriam, seguindo o raciocínio até aqui exposto, como base para entender a noção de
finalidade exposta na terceira Crítica. A natureza como um todo possui uma finalidade,
portanto todos os produtos da natureza estão conforme esse fim último de toda a natureza
— isso é regido pelo princípio da unidade da razão. Porém, cada produto da natureza
possui uma finalidade própria — isso é garantido pelo princípio da variedade. E,
finalmente, certos produtos da natureza possuem uma finalidade muito próxima a de
outros produtos e uma distância gradativa em relação a produtos da natureza cuja
finalidade é consideravelmente diversa — tudo isso conforme o princípio de afinidade e
continuidade entre as diversidades. Cada produto da natureza possui uma finalidade
própria, mas como todos compartilham a mesma finalidade última da natureza como um
todo, possuem entre si alguma relação; essa relação é explicitada pela graduação de
diferenças e semelhanças entre produtos. Ainda que a noção de finalidade seja um
princípio da faculdade de julgar teleológica e não propriamente da razão, como Kant
adverte no parágrafo IX da Primeira introdução, o fato de os juízos teleológicos serem
de ordem regulativa, assim como as ideias da razão, nos permite colocar os pressupostos
transcendentais da razão em consonância com o uso reflexionante teleológico da
faculdade de julgar.
A concepção de Kant de uma natureza teleológica e orgânica em consonância com
uma natureza meramente mecânica, ganha corpo, justamente, quando o filósofo alemão
entra no debate setecentista sobre a gênese dos seres vivos e sobre o funcionamento
interno dos seres organizados, dos organismos vivos.219
No século XVIII discutia-se muito se as leis da mecânica eram suficientes para
explicar o funcionamento dos seres vivos e a interação entre eles no quadro geral da
natureza. O impacto das leis de Newton na filosofia levou muitos naturalistas a considerar
a ideia de que tudo na natureza poderia ser explicado através do mecanismo, até mesmo
à geração dos seres vivos. Colaborava, ainda, o peso da argumentação cartesiana,
principalmente o paradigma do animal-máquina, proposto por ele nos Princípios da
filosofia, aproximadamente quarenta anos antes da criação das leis de Newton:

219Para uma apreciação do debate sobre os organismos vivos entre os naturalistas do século XVIII ver
Santos, Ideia de uma heurística transcendental, 131-175.

82
Não vejo, efetivamente, nenhuma diferença entre as máquinas feitas
pelos artesãos e os diversos corpos formados exclusivamente pela
natureza [...] todas as regras de mecânica pertencem à física, de modo
que todas as coisas artificiais são, por isso, naturais. Por exemplo,
quando um relógio marca as horas por meio das rodas que o compõem,
isso não lhe é menos natural do que uma árvore produzir frutos.220

Em 1683 Bernard Le Bouvier de Fontenelle propõe aos naturalistas adeptos do


mecanicismo um desafio espirituoso e bem-humorado: “Dizeis que os animais são
máquinas da mesma forma que os relógios o são? Colocai um cão-máquina e uma cadela-
máquina ao pé um da outra e eventualmente o resultado poderá ser uma terceira pequena
máquina; ao passo que dois relógios podem ser colocados ao lado um do outro toda a sua
vida sem que produzam um terceiro relógio.”221
Outro debate importante na época foi entre George Ernest Stahl (1659-1734) e
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), o primeiro defendendo uma diferença ontológica
subjacente entre os processos mecânicos e os orgânicos, e o segundo advogando que o
animal seria um caso especial de mecanismo.222 Para Stahl as coisas vivas:

São formadas e colocadas em operação por uma determinação interna


que necessariamente desdobra-se através de séries continuas de
processos. Essa determinação é teleológica, uma vez que resulta em
uma integração específica de partes e movimentos a fim de
conservação, reparação e reprodução do ser envolvido. Uma distinção
ontológica subjacente intervém aqui entre os processos casuais e os
teleológicos, os primeiros produzindo mecanismos, e os últimos,
organismos, como modos de ser.223

Em suas respostas, Leibniz até aceita a ideia de uma teleologia, mas apenas no sentido de
que os fins desta sejam apenas os desígnios de Deus. E entende os organismos como
máquinas da natureza, oriundas de uma pré-formação divina. Desse modo Leibniz opta
por identificar o organismo com uma máquina:

O organismo é um mecanismo que se desdobra em corpos orgânicos


entendidos como máquinas da natureza. Resultando da pré-formação
divina, as máquinas da natureza revelam suas razões internas
suficientes para a infinidade por intermédio de suas disposições
orgânicas. [...] Mas, embora ilustrem a suprema habilidade de Deus,
elas obedecem a leis regulares da natureza física.224

220 René Descartes, Princípios da filosofia, trad. João Gama (Lisboa: Edições 70, 2006), 274-275.
221 Citado por Santos, Ideia de uma heurística transcendental, 142.
222 G. W. Leibniz, Leibniz-Stahl-Controversy, edited by François Duchesneau and Justin E. H. Smith

(New Haven: Yale University Press, 2016).


223 Leibniz, Leibniz-Stahl-Controversy, lv.
224 Leibniz, Leibniz-Stahl-Controversy, lv-lvi.

83
O caráter antinômico do debate não deve ter passado despercebido a Kant, pois não são
poucos os momentos em que os dois pensadores atribuem valor ontológico ou realista a
ideias meramente regulativas, no vocabulário kantiano, e, portanto, fazendo delas um uso
ilegítimo. E mais, a ideia de que ambos os modelos de certo modo deveriam ser
compatibilizados, pois na observação e teorização acerca da natureza ambos parecem
imprescindíveis. O problema é elucidar o papel da causalidade mecânica e da teleológica
e como elas podem coexistir em um mesmo modelo teórico.
Em relação a noção de animal-máquina (ou, em todo caso, de qualquer organismo
vivo enquanto máquina) Kant também lançou um chiste, afirmando que é impossível
surgir um Newton capaz de explicar a geração de um talo de grama. Mas, devido a
envergadura de seu projeto filosófico, Kant apresenta uma refutação mais robusta do
mecanicismo no parágrafo 65 da Crítica da faculdade de julgar:

Em um relógio, uma parte é o instrumento do movimento de outra, mas


uma roda não é a causa eficiente de outra; uma parte existe, de fato, em
função da outra, mas não graças à outra. Eis por que a causa que produz
a sua forma também não está contida na natureza (dessa matéria), mas
fora dela, em um ser que pode efetuar segundo ideias um todo que é
possível através de sua causalidade. Eis por que uma roda no relógio
não produz a outra, e um relógio menos ainda outro relógio, de tal
maneira que utilizassem para isso outra matéria (organizando-a); eis por
que ele não substitui por si mesmo as partes que lhe tenham sido
retiradas, nem compensa a falta delas na sua primeira montagem pelo
acréscimo de outras, nem se conserta por si mesmo, por assim dizer,
quando está estragado; coisas que, no entanto, podemos esperar da
natureza organizada. — Um ser organizado não é, portanto, uma mera
máquina, já que esta tem apenas força movente, ao passo que ele tem
força formativa — e uma força tal que ele pode comunicar às matérias
que não a possuem (organizando-as); uma força, portanto, que se forma
e se propaga, e que não pode ser explicada somente pela faculdade
motora (o mecanismo).225

Não há em Kant, portanto, uma tentativa de opor mecanismo e organismo, mas de


discernir qual é o uso explicativo cada noção desempenha no conhecimento e a que
objetos podem se referir.
Apesar de todas as nuances do debate, o que estava em jogo na época e o que nos
interessa aqui em particular, como ressaltamos em vários instantes, é se as teorizações da
ciência podem ser apenas alicerçadas na causalidade mecânica, na causalidade
determinante, por assim dizer, nessa causalidade que tem como base um princípio
constitutivo do entendimento ou se as teorizações da ciência, em seus patamares

225 Kant, KU, AA 05: 374.

84
explicativos mais elevados, necessitam extrapolar os limites impostos ao conhecimento
pela faculdade do entendimento e lançar mão de outro tipo de causalidade, a causalidade
teleológica, proveniente da faculdade de julgar reflexionante, tendo por princípio a
teleoformidade da natureza ou, nas palavras da Primeira introdução, o princípio da
técnica da natureza. A resposta de Kant pode ser ilustrada com um exemplo que o próprio
filósofo usa na segunda metade da terceira Crítica:

É sabido que os anatomistas das plantas e animais, para investigar a sua


estrutura e compreender por que e com que fim lhes foram dadas tais
partes, tal disposição e combinação das partes, e justamente essa forma
interna, admitem como indispensavelmente necessária a máxima de que
nada é em vão em tal criatura, e assumem como princípio fundamental
da doutrina geral da natureza que nada acontece por acaso. De fato,
eles não podem dispensar esse princípio teleológico tão pouco como
podem dispensar o princípio físico universal, pois, assim como no
abandono deste último não sobraria qualquer experiência, no abandono
do primeiro princípio não sobraria nenhum fio condutor para a
observação de um tipo de coisa natural que concebemos
teleologicamente sob o conceito de fim da natureza.226

É curioso o modo sútil como Kant passa da análise das partes de um organismo para a
noção de um fim da natureza. Aqui já se começa a flertar com uma ideia que aparecerá
claramente no Opus postumum: a ideia de que a natureza e suas partes também podem
ser interpretadas por analogia a um organismo (ver item 3.5).
A relação entre produtos da natureza (partes da natureza) e a própria natureza (uma
totalidade que engloba todos os seus produtos) também nos remete ao problema da
relação todo-partes, que Kant utiliza na segunda parte da terceira Crítica para esclarecer
o ajuizamento teleológico.227 O filósofo alemão apresenta o problema da seguinte
maneira:

Para uma coisa como fim da natureza se requer primeiramente que as


partes (no que diz respeito à sua existência e à sua forma) somente
sejam possíveis por sua relação com o todo. Pois a própria coisa é um
fim e, por conseguinte, está compreendida sob um conceito e ideia que
tem de determinar a priori tudo o que deve estar contido nela. [...] Se
uma coisa deve, porém, como produto da natureza, conter em si mesma
e em sua possibilidade interna uma relação a fins, isto é, somente ser
possível como fim da natureza [...] então se requer, em segundo lugar,
que as suas partes se liguem à unidade de um todo em virtude de serem
reciprocamente causa e efeitos umas das outras.228

226 Kant, KU, AA 05: 376.


227 António Marques, Organismo e sistema em Kant (Lisboa: Editora presença, 1987), 190.
228 Immanuel Kant, KU, AA 05: 373.

85
A existência de uma determinada parte e sua forma, embora tenha o seu fim intrínseco
próprio, são determinadas pela sua relação com todo, uma vez que o todo também possui
um fim (que lhe proporciona unidade) e isso impõe às partes uma relação de causa e
efeito.229 Desse modo, qualquer produto da natureza enquanto parte de um todo é causa e
é efeito em relação a outros produtos, e essa relação influi diretamente na forma interna
de cada produto.230 Cada produto da natureza, não estaria a deriva em um amálgama de
produtos, pois cada produto possui uma finalidade interna formatada pela sua participação
na finalidade do todo. Assim, vale acrescentar, a causalidade final parece antecipar-se à
causalidade mecânica231, já que a finalidade (e, por conseguinte, as noções de
sistematicidade e organicidade) está pressuposta na ação da subjetividade sobre os objetos
fornecidos pela experiência. O poder de articulação da razão não se contenta com o
conhecimento fornecido pelo entendimento. As pretensões da razão são muito mais
abrangentes e dominantes que a conceitualização restrita do entendimento.232
A causalidade, portanto, que faz interagir produtos da natureza dentro de um
sistema total da natureza, é a causalidade teleológica (nexus finalis) ligada a noção de
força formadora e não penas a causalidade mecânica (nexus effectivus) ligada a noção de
força motora. Kant ainda as nomeia como causalidade ideal e causalidade real para marcar
o papel regulativo da razão e o papel constitutivo do entendimento. Kant explica isso
suscintamente e chega à conclusão de que existem apenas essas duas espécies de
causalidade:

A conexão causal, na medida em que só é pensada pelo entendimento,


é uma conexão que constitui uma série (de causas e efeitos) sempre
descendente; e as próprias coisas que, como efeitos, pressupõem outras
coisas como causas, não podem ser ao mesmo tempo, reciprocamente,
causas destas. Esta conexão causal é denominada conexão das causas
eficientes (nexus effectivus). Em contrapartida, no entanto, pode
também ser pensada uma conexão causal segundo um conceito da razão
(de fins) que, se considerada como uma série, traria consigo uma
dependência tanto ascendente como descendente, na qual a coisa que é
em um momento caracterizada como efeito também merece, na

229 Isso, em certa medida, é análogo ao funcionamento de um ser vivo: “Pois tudo sugere, na observação
dos seres vivos, que suas partes se dispõem de tal maneira que cada uma se refere às demais, numa
articulação que remete a um todo, ao mesmo tempo que parece ser determinada por este.” Pimenta, A trama
da natureza, 238.
230 Marques, Organismo e sistema em Kant, 192.
231 Cf. Kant, EEKU, AA 20: 247-248, onde o filósofo escreve: “Se podemos e devemos, contudo, pressupor

a ideia de um todo segundo um certo princípio antes da determinação das partes, a divisão tem de acontecer
cientificamente, e somente assim o todo se torna um sistema.”
232 Nas palavras de Nuria Sánchez Madrid: “O nexus finalis precederá a todo momento o nexus effectivus,

como se o primeiro fosse uma espécie de juízo provisório para o segundo, ao qual não poderemos atribuir
nenhum conteúdo positivo”. Madrid, “Uma ampliação hermenêutica da Lógica Transcendental”, 170-171.

86
ascendente, o nome de uma causa daquela coisa de que é efeito. [...]
Poder-se-ia, de maneira talvez mais apropriada, chamar a primeira de
conexão das causas reais, e a última de conexão das causas ideais, pois
essa denominação já inclui a ideia de que não pode haver mais do que
essas duas espécies de causalidade.233

Desse modo, fica evidente que para Kant, a confecção de uma teoria acerca da natureza
necessita de ambas as causalidades. Uma teoria científica, portanto, seguindo os passos
dessa analogia, não seria um mecanismo de sentenças empíricas, baseado unicamente no
princípio físico universal da causalidade mecânica. Mas seria, como temos ressaltado
juntamente com Kant, um organismo de sentenças empíricas, hipóteses, ideias
heurísticas, ideias metafísicas, noções de finalidade, juízos determinantes e
reflexionantes, etc. Há, portanto, em Kant, uma clivagem entre mecanismo e organismo,
e não uma oposição, pois os produtos da natureza enquanto fenômenos empíricos
explicados à luz das considerações mecânicas deixa a razão insatisfeita, permeada pela
inquietude de seus questionamentos, e isso faz com que a razão projete nos produtos
naturais algo a mais que o entendimento – ou seja, uma organização sistemática
teleológica.234
O “pensamento biológico” de Kant, segundo a expressão de Leonel Ribeiro dos
Santos em seu livro Ideias para uma heurística transcendental, além de proporcionar
valiosas sugestões filosóficas ao naturalismo da época e elucidar o papel da razão e do
ajuizamento teleológico na teorização da natureza, só pode ser assim e não de outro modo,
pois a própria razão se circunscreve enquanto um organismo e, portanto, não consegue
proceder senão organicamente. Um trecho dos Prolegômenos deixa isso claro:

A razão pura é uma esfera [...] tão completamente unificada em si, que
não se pode tocar em nenhuma parte sem afetar todas as outras, e que
nada se pode fazer sem primeiramente ter determinado o lugar de cada
uma e a sua influência sobre as outras; porque, nada existindo fora dela
que possa corrigir o nosso juízo interior, a validade e o uso de cada parte
depende da relação em que ela se encontra com as outras na própria
razão tal como, na estrutura de um corpo organizado, o fim de cada
membro só pode deduzir-se do conceito geral do todo.235

Sendo a razão humana análoga a uma esfera, suas partes se interligam e procedem dentro
de certos limites. Dentro dos limites desse corpo organizado surgem hipóteses, ideias
heurísticas, conjecturas, etc., que não podem ser corrigidas por nada externo, ou seja, não

233 Kant, KU, AA 05: 372-373.


234 Cf. Pimenta, A trama da natureza, 6.
235 Kant, Prol. AA 04: 19-20.

87
podem ser instanciadas ou validadas empiricamente. Servem, como já o salientamos em
vários momentos desta dissertação, como guias da investigação científica, não são nem
verdadeiras nem falsas, são juízos reflexionantes instigados por princípios meramente
regulativos. São insuficientes para a teorização científica, pois esta se propõe explicar a
objetividade, sem desconsiderar o que é fornecido pela sensibilidade, mas a ciência não
pode prescindir de tais juízos, pois o próprio ser humano não pode prescindir do aparato
cognitivo orgânico que lhe é inerente.

3.5 A aptidão da faculdade de julgar reflexionante em reconhecer os dois tipos de


causalidade

Vimos nas seções anteriores que, em linhas gerais, a faculdade de julgar determinante é
responsável pelo aspecto construtivo do conhecimento teórico da natureza e a faculdade
de julgar reflexionante pelo aspecto sistêmico. Porém, essa divisão das funções no interior
da faculdade de julgar (uma divisão, aliás, didática, para efeito de clareza), pode levar a
certos equívocos. Em primeiro lugar, vale destacar, que uma teoria é um emaranhado
orgânico de ajuizamentos (determinantes e reflexionantes) e de conceitos constitutivos e
ideias regulativas, cujo discernimento em classes ou hierarquização de funções não se
pode levar a cabo sem um esforço homérico por parte do epistemólogo.236 Em segundo
lugar, se a teorização científica possui um dinamismo orgânico, isso ocorre porque o
trabalho entre as faculdades da mente é o trabalho de um organismo cognoscitivo.237
Desse modo, são raros os momentos que uma faculdade exerce suas funções
isoladamente, pois as faculdades estão em constante interação. Se o próprio Kant por
vezes dissocia as faculdades é para uma melhor exposição das funções específicas que
competem a cada uma. Recortar um pedaço de seu sistema filosófico e tentar explicá-lo
isoladamente é como tentar explicar uma parte de um organismo sem levar em

236 Para uma visão aprofundada sobre a intrincada relação entre os juízos na filosofia crítica de Kant, ver:
Konstantin Pollok, Kant's Theory of Normativity: Exploring the Space of Reason, (Cambridge: Cambridge
University Press, 2017).
237 “Um exemplo é o conceito de organismo como o sentido de corporeidade humana, que, por ser

constituído pelo próprio homem, possibilita apreender o sistema orgânico da experiência, supondo nele
uma estrutura teleológica”. Cléia Aparecida Martins, “Organismo no Opus Postumum”, in Kant e a
biologia, ed. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques (São Paulo: Barcarola, 2012), 204.

88
consideração sua função dentro do todo. Kant era consciente dos perigos teóricos em
recortar sistemas filosóficos como o seu, basta verificarmos o trecho abaixo extraído do
Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura:

Todo sistema filosófico é vulnerável em pontos isolados [...] sem que a


estrutura do sistema, no entanto, considerada como uma unidade, corra
com isso qualquer perigo [...] Se, além disso, trechos particulares são
retirados de seus contextos e comparados uns aos outros [...] podem
surgir contradições aparentes que [...] lançam uma luz prejudicial ao
texto, mas são facilmente solucionáveis para quem se apropriou da ideia
em seu todo.238

Se o trabalho entre as faculdades no sistema filosófico kantiano é um trabalho orgânico,


quanto mais superior for uma faculdade mais aptidão ela terá de reconhecer além de suas
próprias funções, as funções das faculdades inferiores. No que tange aos propósitos desta
seção, de mostrar que a faculdade de julgar reflexionante é capaz de reconhecer tanto a
sua causalidade (a teleológica) quanto a causalidade ensejada pela faculdade de julgar
determinante, Kant é explícito em afirmar que:

Em relação a seus produtos como agregados a natureza procede


mecanicamente, como mera natureza; mas, em relação aos mesmos
produtos como sistemas – por exemplo, formações cristalinas, a variada
configuração das flores, ou a estrutura interna dos vegetais e animais –,
ela procede tecnicamente, isto é, ao mesmo tempo como arte. A distinção
entre esses dois modos de julgar os seres naturais é feita apenas pela
faculdade de julgar reflexionante239

A faculdade de julgar reflexionante explica a natureza de modo técnico, teleológico, sem


abrir mão da explicação mecânica, que está na base da cognição dos fenômenos. Kant
reitera isso no parágrafo 77 da terceira Crítica:

Consideraríamos aquilo que é nela [na natureza] necessário como


objeto dos sentidos segundo leis mecânicas, mas, ao mesmo tempo,
consideraríamos segundo leis teleológicas, na natureza como objeto da
razão (o todo da natureza como sistema), a concordância e a unidade
das leis particulares e das formas a elas correspondentes (que temos de
julgar contingentes segundo as leis mecânicas), e as julgaríamos
segundo dois tipos de princípios, sem que o modo de explicação
mecânico seja excluído pelo teleológico.240

Portanto, a faculdade de julgar reflexionante é responsável pela subordinação de máximas


mecânicas às máximas teleológicas. Se até o final do século XVIII a maioria dos filósofos

238 Kant, KrV, B xliv.


239 Kant, EEKU, AA 20: 217-218.
240 Kant, KU, AA 05: 409.

89
e naturalistas procurava reduzir explicativamente o organismo a um mero mecanismo
natural, com a filosofia crítica de Kant é o mecanismo que é subsumido em um todo
orgânico. Essa articulação entre o aspecto mecânico da natureza cognoscível no
fenômeno e a sistematização ensejada pelo procedimento técnico da faculdade de julgar
teleológica define, em nosso parecer, o modo como são criadas as teorias científicas. A
criação de teorias acerca da natureza procederia, como vimos, em dois sentidos: ou há um
conjunto de fenômenos formatados pela causalidade eficiente que precisam ser
articulados, sistematizados, organizados (no sentido orgânico de Kant), ou seja, receber
alguma unidade que o entendimento e o ajuizamento determinante não podem fornecer;
ou há então uma ideia da razão, uma hipótese, uma ideia heurística, para a qual necessita-
se de fenômenos que possam ser subsumidos de acordo com o que se pretende explicar.
Esse modo de julgar a natureza tanto através de explicações mecânicas quanto com
explicações teleológicas (e a junção de ambas) permite a Kant, entre outras coisas,
resolver a antinomia da faculdade de julgar teleológica.

No parágrafo 70 da Crítica da faculdade de julgar (dentro da seção intitulada


Dialética da faculdade de julgar teleológica) Kant apresenta uma antinomia oriunda da
necessidade de compatibilizar a coexistência de duas máximas: uma oferecida pelo
entendimento a priori e a outra pela razão. A primeira máxima é a tese de que:

Toda a geração de coisas materiais e de suas formas tem de ser julgada


como sendo possível segundo leis meramente mecânicas.

A segunda máxima é a antítese:

Alguns produtos da natureza material não podem ser julgados como


possíveis segundo leis meramente mecânicas (seu julgamento requer
uma lei inteiramente diversa da causalidade, a saber, a das causas
finais).

E, em seguida, Kant chama essas duas máximas de “princípios regulativos para a


investigação” e que, se acaso quiséssemos converte-las sob princípios constitutivos, essas
máximas se apresentariam do seguinte modo:

Tese: toda geração de coisas materiais é possível segundo leis


meramente mecânicas.

90
Antítese: a geração de algumas dessas coisas não é possível segundo
leis meramente mecânicas. 241

À luz do que expomos até agora podemos notar que, no primeiro caso, em se tratando de
duas máximas regulativas da razão não haveria qualquer problema na coexistência de
ambas, como o próprio Kant sugere na sequência, uma vez que são modos de julgar,
operados pela noção do como se (“julgada como sendo possível”); e no segundo caso, no
qual daríamos às máximas o estatuto constitutivo, estaríamos infringindo algo que fora
exposto na Crítica da razão pura, sobre o uso ilegítimo da razão, quando queremos
fornecer às ideias da razão um valor cognitivo que elas não possuem. Se houver uma
disputa dogmática entre qual explicação (mecânica ou teleológica) será a melhor para
teorizarmos acerca da natureza, e se nessa disputa uma causalidade necessariamente
exclui a outra, o conhecimento fica entravado em uma antinomia. No entanto, ao
considerar que a causalidade mecânica responsável pela fundamentação nomotética dos
fenômenos possui um limite explicativo a partir do qual é necessário evocar a causalidade
teleológica (embora problematicamente), não para excluir a mecânica, mas para abarca-
la e seguir adiante, não há mais uma incompatibilidade entre ambas, mas um acordo
crítico para a expansão das explicações científicas.242 Desse modo, não se procura uma
validade realista (no sentido empregado pelo realismo científico) nem da causalidade
mecânica – pois é oriunda de um princípio constitutivo do entendimento para
formatarmos os fenômenos empíricos – tampouco da causalidade teleológica (caso
contrário seria uma causalidade teleológica atributiva), mas procura-se, com a filosofia
crítica de Kant, entender como ambas são utilizadas pelas faculdades da mente humana,
e assim fazer um “uso seguro da razão”.243 Esse uso seguro nada mais é do que a profícua
constatação de que a explicação mecânica deve ser subsumida à explicação teleológica,
sem que para tanto se confunda o papel epistêmico de cada uma. Nas palavras de José
Henrique Santos:

Kant expressa a ideia de que o mecanismo da natureza pode ser


subsumido numa causalidade livre, isto é, teleológica. Embora essa
teleologia não possua qualquer valor determinante ou constitutivo, ela

241 Kant, KU, AA 05: 387.


242 A força formadora, atribuída aos seres organizados, oriunda da noção teleológica de finalidade em Kant,
e a força mecânica atribuída à matéria inanimada, não estão em conflito dentro de um quadro teórico da
natureza: “O conceito de uma ‘força formadora que se propaga a si mesma, a qual não é explicável por
meio da faculdade motora (mecanismo)’ é o conceito de uma força intrínseca à matéria, espontânea, que
não produz movimento, mas tão somente organização, ou melhor, que organiza a matéria seguindo as leis
do mecanismo, mas de acordo com um fim”. Pimenta, A trama da natureza, 282.
243 Kant, KU, AA 05: 391-392, n.41.

91
vale no entanto como conceito regulativo e reflexivo, permitindo pensar
– mas não conhecer, no sentido estrito de conhecimento científico – que
a natureza obedece a uma finalidade interna, irredutível à causalidade
mecânica [...] Não podemos conhecer a razão teleológica, mas por meio
da reflexão lhe atribuímos ao menos um crédito de “como se”: tudo
acontece no mundo vivo como se houvesse uma finalidade imanente,
um sentido último.244

Se a teorização científica ficasse restrita ao conhecimento limitado pelas categorias do


entendimento não conseguiríamos apaziguar os anseios da razão de explicar a exuberante
diversidade da natureza. É necessário lançar mão dessa causalidade livre, dessa noção de
finalidade imperscrutável para o entendimento, capaz de elevar as explicações acerca da
natureza aos patamares teóricos desmesurados da faculdade de julgar reflexionante, sem
amarras cognitivas.

3.6 O organismo enquanto analogia no Opus Postumum

Se o procedimento das faculdades chamadas superiores é pensado por analogia a um


organismo desde a arquitetônica da razão até a terceira Crítica, a noção de organismo no
Opus postumum servirá para pensar a participação do humano na natureza, que por ser
um organismo vivo, não pode deixar de ter uma participação orgânica no mundo, como
também para pensar o mundo como um todo orgânico e, por extensão, o próprio universo.
Para Pedro Paulo Pimenta, a Crítica da faculdade de julgar abre caminho para o Opus
postumum, “em que o organismo desponta, por um lado, como esquema da ordem do
todo, e, por outro, como modelo de uma razão ela mesma propulsionada por uma força
vital.”245 Desse modo, a noção de organismo no Opus postumum é mais abrangente que
o uso dessa noção nos textos anteriores.246 O que não a torna menos problemática, pois
em alguns momentos Kant relaciona organismo e máquina dizendo que “organismo é a
forma de um corpo considerado máquina”247, o que parece remeter aos debates
simplificados da época, que procuravam reduzir o organismo a uma mera máquina – isso

244 José Henrique Santos, “O lugar da Crítica da faculdade do juízo na filosofia de Kant”, in Belo, sublime
e Kant, ed. Rodrigo Duarte (Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998), 28.
245 Pimenta, A trama da natureza, 336.
246 Martins, “Organismo no Opus Postumum”, 183-184.
247 Kant, OP AA 21: 185. Todos os trechos da Opus postumum que constituem esta dissertação foram

traduzidos pelo autor da dissertação a partir da edição: Eckart Foster (Ed.) e Michael Rosen (Trad), Opus
Postumum (New York: Cambridge University Press, 1993).

92
se não lermos os derradeiros textos de Kant tendo em vista os ganhos do sistema crítico.
Em alguns momentos do Opus postumum surgem ressalvas, no estilo da terceira Crítica,
que não nos deixam esquecer o caráter problemático de certas noções:

A divisão das forças móveis da matéria, na medida em que esta tem a


tendência a formar corpos orgânicos [organismo] ou inorgânicos
[mecanismo], também pertencem a forma da combinação dessas forças
em um sistema. Isso é, no entanto, apenas um princípio para a
investigação da natureza que, como uma ideia, precede a [investigação]
empírica, e não pode faltar na completa divisão da transição dos
fundamentos metafísicos da ciência natural para a física – apesar do fato
de que é apenas problemática.248

Não é do nosso interesse nesta dissertação inventariar todas as ocorrências da noção


organismo no Opus postumum e seus contextos argumentativos. Interessa-nos em
especial dois usos: organismo enquanto corporeidade humana e, por extensão, o
funcionamento orgânico do pensar (assunto, aliás, trabalhado ao longo deste capítulo); e,
organismo enquanto o conceito de um todo orgânico do mundo e, por extensão, entender
como as próprias leis físicas se entrelaçam organicamente; sem deixar de lado,
certamente, o fato de que sejam apenas ideias heurísticas.
O ser humano enquanto organismo possui, de acordo com Kant, “um princípio de
vida: portanto também espontaneidade, não mera receptividade”.249 Espontaneidade,
como vimos no primeiro capítulo, é a característica fundamental do entendimento que,
dentre as chamadas faculdades superiores, é a que se relaciona diretamente com a
sensibilidade.250 Mas, como vimos durante esta dissertação, o funcionamento das
faculdades superiores (entendimento, faculdade de julgar e razão) forma um sistema
orgânico e, portanto, todas elas têm um papel espontâneo. Espontaneidade implica
liberdade e por isso Kant pode escrever no Opus postumum, “eu sou um princípio de auto-
determinação sintética para mim mesmo, não meramente de acordo com uma lei da
receptividade da natureza, mas também de acordo com o princípio da espontaneidade da
liberdade.”251 Portanto, no vocabulário que adotamos, a participação orgânica do humano
no mundo não se faz apenas através da causalidade mecânica que surge na síntese entre

248 Ibidem.
249 Kant, OP AA 21: 60.
250 Não é o momento para entrarmos na discussão de quantas faculdades há na filosofia crítica de Kant.

Basta, para ilustramos nosso ponto de vista adotado neste terceiro capítulo, a divisão sistemática que Kant
faz da “faculdade de pensar” em três: entendimento, faculdade de julgar e razão. Essa divisão aparece
justamente no segundo parágrafo da Primeira introdução intitulado “Do sistema das faculdades superiores
de conhecimento que serve de fundamento à filosofia”. Kant, EEKU, AA 20: 201-202.
251 Kant, OP AA 22: 131.

93
entendimento e sensibilidade, mas também através de uma causalidade própria, oriunda
de sua liberdade. Por outro lado, se o organismo humano também é receptividade, as
faculdades superiores não estão isoladas do mundo, pois “espontaneidade e receptividade
são combinados em um sistema”.252 Embora seja possível identificar aqui um sistema da
experiência e uma sistemática da razão, tais funções se estruturam na organicidade
humana. Uma bela passagem de Cléia Aparecida Martins ilustra essa complexidade da
participação humana no mundo:

O indivíduo tem a experiência do organismo em seu corpo. A


experiência do organismo na natureza é obtida pelo homem, mediante
sua corporeidade. No corpo mesmo é estabelecida a relação entre
espaço e tempo, entre exterior e interior. E, com isso, coloca-se a base
para a ação externa do sujeito – o movimento corporal humano é
organizador, além de organizado [...] O corpo orgânico, o sujeito como
organismo, é a condição possibilitadora da ação e da objetividade. O
organismo relativo ao corpo humano, contudo, não parece ser um
conceito objetivo do entendimento, ao menos Kant não oferece
elementos para que dessa forma o interpretemos. E o uso constante
desse conceito como metáfora assim o atesta.253

A ideia de organismo em Kant, embora esteja intimamente relacionada com o modo do


indivíduo pensar sua relação com o mundo e o funcionamento de si mesmo enquanto
corpo, é meramente uma ideia regulativa, um elemento judicativo reflexionante. Nem
mesmo quando o indivíduo “experencia” em si a noção de organismo ela terá um viés
constitutivo. Todavia, a consciência de que suas próprias faculdades possuem um
funcionamento orgânico, advertido na arquitetônica da razão, e de que não há outra
causalidade reflexionante além da teleológica (que possa satisfazer a vontade da razão em
encontrar explicações para os seres vivos além das explicações mecânica), é o que torna
possível projetar sobre a natureza um sistema orgânico. Vivenciar o próprio corpo
enquanto organismo não valida o conceito para um uso constitutivo, apenas o reitera
como sumamente imprescindível para o autoconhecimento e o conhecimento da natureza,
pois esse conceito alcança patamares explicativos nos quais as noções mecânicas ficam
aquém.
Seguindo essas considerações se faz necessário notar que há uma diferença
elementar entre usar o conceito de organismo para se referir ao aparato cognitivo e aquele
conceito de organismo para o planeta terra – o primeiro se refere a ação do sujeito no
mundo e o modo como ele teoriza a natureza e o segundo se refere ao lugar onde todos

252 Kant, OP AA 21: 22.


253 Martins, “Organismo no Opus postumum”, 193.

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os organismo interagem em um todo sistemático. Kant usa a expressão “corpo mundial
organizado”254 e não deixa de fora as coisas inanimadas, pois “o mundo é o todo de todos
os objetos dos sentidos, pensados não em um agregado, mas em um sistema”255. A terra
não pode ser pensada enquanto um ser vivente, mas enquanto um lugar que possibilita a
vida orgânica, porque justamente se mantém enquanto um todo orgânico e sistemático.256
Assim, as plantas, os animais e os inorgânicos teriam cada qual a sua finalidade e
compartilhariam uma finalidade do todo, já que a interação entre esses produtos é
sistematicamente teleológica. Essas considerações contribuíram para inúmeras teorias
acerca da biologia.257 Mas o que queremos ressaltar nesse instante é a importância dessa
noção de organismo para a física se extrapolarmos os limites da terra e sugerirmos que o
universo seria um todo sistemático e orgânico. Se não há diferença entre a física sublunar
e a supralunar258 e se as coisas inorgânicas sistematizadas também figuram em um todo
orgânico, então somos levados a pensar que o próprio universo é um “corpo organizado”.
As leis físicas, se pensadas isoladamente, são fundadas na causalidade mecânica, mas a
interação de leis físicas no universo como um todo somente poderia ser pensada a partir
da causalidade teleológica que principia o conceito de organismo em Kant.
A ideia de um universo pensado enquanto um organismo foi bastante explorada
no século XVIII por David Hume (1711-1776) nos Diálogos sobre a religião natural,
que mesmo tendo sido publicados postumamente em 1779 não devem ter passado
desapercebidos às sondagens de Kant. Nesse curioso texto aparecem três personagens:
Cleantes, que defende que o mundo se parece com uma máquina e por isso acredita que
fora criado por um artífice; Filo, que defende que o mundo se parece com um animal, no
qual não há causa primeira, mas atividade constante, movimento; e, por fim, Demea, que
em poucas ocasiões faz algumas considerações e pontuações acerca do que os outros dois
personagens dialogam. Os argumentos são inúmeros, tanto a favor da criação (Cleantes)
quanto a favor da geração (Filo). Mas o que nos interessa aqui, a título de ilustração, é
uma passagem em que Filo afirma que o universo se parece com um animal:

254 Kant, OP AA 22: 504.


255 Kant, OP AA 22: 115.
256 Martins, “Organismo do Opus Postumum”, 195-196.
257 Cf. Ubirajara Rancan de Azevedo Marques (Org.), Kant e a biologia (São Paulo: Barcarola, 2012).
258 Para uma história de como o pensamento ocidental passou de uma divisão da física em sublunar e

supralunar para uma física “universal” conferir Alexandre Koyre, Do mundo fechado ao universo infinito,
trad. de Donaldson N. Garschagen (Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. da Universidade
de São Paulo, 1979).

95
Ora, se inspecionarmos o Universo até onde nos é dado apreendê-lo,
veremos que ele guarda uma grande semelhança com um animal ou
corpo organizado e parece obedecer a um princípio semelhante de vida
e movimento. Assim, uma contínua circulação de matéria não produz
nele desordem alguma; o constante desgaste de todas as partes é
incessantemente compensado; observa-se, através de todo o sistema, a
mais estreita interdependência, e cada parte ou membro, ao
desempenhar suas funções próprias, atua tanto em favor de sua própria
preservação como em favor da preservação do todo. Infiro, portanto,
que o mundo é um animal.259

Lendo esse trecho de um ponto de vista kantiano, ou seja, desconsiderando o caráter


atributivo da teleologia, e tomando tais considerações analogamente, como quer Kant na
filosofia crítica, é fácil perceber o quanto essas ideias possuem um caráter heurístico e
explicativo muito mais potente que as explicações meramente mecânicas, pois a partir
delas é possível sistematizar a diversidade e a contingência. O máximo da unidade que a
razão humana pode chegar é pensar o universo como um todo, constituído de partes cujo
ajuste se dá imperfeitamente (aponta para isso a diversidade de astros, de sistemas solares,
de fenômenos cosmológicos desmedidos e desordenados, bem como a própria
diversidade contingente da vida orgânica e inorgânica no mundo). A imperfeição do
ajuste entre as partes do universo apenas pode nos suscitar a imagem de um imenso
organismo e não a de uma máquina bem regulada, como tendem a ser as máquinas em
seu pleno funcionamento.260 Em outro momento Filo afirma que é mais produtivo
teoricamente pensar que o universo se assemelhe mais a um corpo humano do que se
assemelharia às obras de arte do engenho humano.261 Essa semelhança é capaz de explicar
fenômenos que as explicações mecânicas não conseguem. Em certo momento do diálogo
Filo acrescenta que nada na experiência é capaz de endossar tanto a tese mecanicista de
Cleantes tampouco a tese do organismo do próprio Filo. Essa afirmação surge no
momento em que Demea intervém dizendo que tais suposições, as de que o universo se
comportaria ou como animal ou como planta (teses de Filo sobre a estrutura orgânica do
mundo), “são desatinadas e arbitrárias”, e solicita a Filo os dados que ele dispõe para
chegar a essas conclusões. Justamente aí Filo acrescenta que não existem dados
suficientes para decidir a veracidade de qualquer sistema de cosmogonia.262 A
experiência, diz ele, possui inúmeros limites e devemos acrescentar a ela conjecturas

259 David Hume, Diálogos sobre a religião natural, trad. José Oscar de Almeida Marques (São Paulo;
Martins Fontes, 1992), VI, 82.
260 Pimenta, A trama da natureza, 89.
261 Hume, Diálogos sobre a religião natural, VI, 83.
262 Isso, em termos kantianos, aponta para a antinomia que abordamos no item 3.5.

96
plausíveis, hipóteses. Se as plantas e os animais, conclui Filo, são produtos do mundo,
por que não utilizá-los (em detrimento da analogia com as máquinas de criação humana,
sugerida por Cleantes) como modus operandi de hipóteses acerca do funcionamento
orgânico do mundo e consequentemente do próprio universo?263
O desenvolvimento em conjunto de espécies orgânicas no mundo, o ajuste de cada
uma em seu contexto (ou até mesmo a extinção de uma ou outra), o ajuste geológico do
planeta que comporta inúmeras rochas, minérios e tipos de solo, a coexistência de gases,
de sólidos e de líquidos, e a expansão do universo no qual surgem e desaparecem astros,
esses fenômenos apenas podem ser pensados se extrapolarmos as leis mecânicas, a força
motora, e lançarmos mão da ideia de uma força formadora orgânica que, em termos do
Opus postumum, é a alma do mundo (Weltseele), uma mera ideia reguladora da razão, um
modo de unificar o que para o entendimento é disperso.

3.7 A noção de finalidade e sua inserção em uma doutrina da natureza

Se, como vimos nas seções anteriores, as leis mecanicistas têm seu fundamento na
faculdade do entendimento e, portanto, participam da constitutividade dos fenômenos
naturais, e a causalidade técnica, teleológica, pode ser encarada como uma ideia da razão
e, portanto, subjetiva, reflexiva, sem instanciação na experiência, então resta ainda
compatibilizar ambas as noções (mecânica e teleológica) de modo que a relação entre elas
não seja meramente contingencial e que possa, de algum modo, contribuir para uma
doutrina da natureza. Kant levanta a problemática no início do apêndice à Crítica da
faculdade de julgar:

Propriamente falando, a atribuição de fins da natureza aos seus


produtos, na medida em que eles constituem um sistema, pertence
apenas à descrição da natureza, que é estabelecida segundo um fio
condutor particular – uma atividade magnificamente instrutiva da razão
e, do ponto de vista prático, conforme a fins em muitos aspectos, mas
incapaz de fornecer explicações acerca do surgimento e da
possibilidade interna dessas formas (um assunto que, em todo caso, é
próprio à ciência teórica da natureza).264

Se a finalidade não participa de uma ciência teórica da natureza, poderia ela possuir algum
estatuto epistêmico? Poderia integrar uma doutrina da natureza? A teleologia integraria o

263 Hume, Diálogos sobre a religião natural, VII, 95-96.


264 Kant, KU AA 05: 417.

97
conhecimento científico? Há um contrassenso interno ao próprio pensamento kantiano,
que perturba comentadores e abre espaço para divergências interpretativas. Se, por um
lado, é inegável que tanto para a primeira Crítica¸ quanto para a terceira, o conhecimento
estritamente científico é calcado na síntese entendimento/sensibilidade e na formulação
de ajuizamentos determinantes, por outro lado, também é inegável, levando em conta os
mesmos textos de Kant, que a teorização científica não se limita a um âmbito meramente
constitutivo, pois sua investigação depende tanto de ideias heurísticas (que são regulativas
e derivam-se, portanto, da razão) quanto de ajuizamentos reflexionantes que, embora
estritamente subjetivos, são imprescindíveis na sistematização e na criação de conceitos
cada vez mais abarcantes, que não podem ser instanciados na experiência. Ainda é válido
reiterar que a causalidade teleológica fornece explicações, embora não constitutivas, para
produtos da natureza que não podem ser explicados somente por leis mecânicas.
A finalidade, portanto, fornece explicação para certos produtos da natureza mas
não substitui inteiramente as leis mecânicas, pois estas devem estar na base de qualquer
explicação. As leis mecânicas constituem a “força de formação” (bildungskraft) e,
portanto, fazem parte da não-intencionalidade, e a causalidade técnica, que se refere ao
“impulso de formação” (bildungstrieb) é um ajuizamento dotado de intencionalidade.265
A noção de finalidade não é um conceito constitutivo do entendimento, tampouco está
propriamente ligada à teleologia da razão, que é uma teleologia moral, prática. Essa noção
se refere a uma teleologia física, natural, embora não seja atributiva e sim analógica. Ou
seja, enquanto a razão age de acordo com um fim prático a faculdade de julgar
reflexionante age de acordo com um fim da natureza. A faculdade de julgar encara a
natureza como se ela tivesse uma vontade que propõe fins, por analogia a razão que assim
procede. Mas, se extrapolamos os limites da analogia e passarmos a encarar a natureza
como detentora de uma vontade que se autodetermina em fins, atingimos a especulação
metafísica dogmática.
Está claro para Kant que os produtos naturais não são explicados inteiramente por
leis mecânicas, uma vez que uma explicação satisfatória sobre tais produtos deve
subsumir leis mecânicas ao princípio teleológico.266 Que o investigador da natureza deva
buscar ao máximo explicá-la através do mecanismo é indubitável, pois a causalidade
mecânica está entre os fundamentos da cognoscibilidade humana. Mas a faculdade da

265 Pedro Paulo Pimenta, “Reflexão e finalidade: a finitude da razão na Crítica do juízo”, Discurso (32),
2001: 197.
266 Kant, KU, AA 05: 417.

98
razão necessita extrapolar essa limitação explicativa, pois encara os produtos da natureza
como engendrados por uma força que ultrapassa a conceitualização mecânica. Essa
finalidade interna dos produtos naturais enquanto uma finalidade que se refere à própria
possibilidade de tais produtos, todavia, deve ter um estatuto teórico diverso da finalidade
externa, que figurou nos modelos teleológicos clássicos. Se a finalidade interna é
aceitável enquanto um princípio reflexionante, de uso estritamente subjetivo, que visa
fornecer uma explicação à geração e disseminação de seres organizados, a finalidade
externa parece muito mais ligada a um arranjo fortuito de conceitos diversos, um arranjo
que se dá contingencialmente e depende, na maioria dos casos, do contexto. O fato de a
pele de um urso polar fornecer material para o agasalho de um humano que vive em
condições climáticas extremas não parece figurar entre uma explicação aceitável da
participação dessa espécie de animal em um quadro geral da natureza. A utilidade,
portanto, que os humanos encontram para certos produtos naturais não deve ser
confundida com o lugar natural que esses produtos possuem. Seria interessante destacar,
embora essa discussão seja alheia aos objetivos desta dissertação, que uma história da
teorização científica, seguindo essa linha de raciocínio, difere-se da história de como o
humano manufatura os produtos da natureza. Na primeira está em jogo a busca pela
finalidade interna e consequentemente pela participação dessa finalidade em um sistema
de fins (o todo da natureza) enquanto na segunda está em jogo a conveniência que o
humano encontra para o uso de certos produtos naturais.267
Sendo como for, muitos comentadores kantianos consideram que a noção de
finalidade da natureza é um dos acréscimos mais essenciais que Kant faz em seu sistema
teórico com a publicação da terceira Crítica.268 Ao conceito de finalidade podemos
encontrar várias linhas mestras interpretativas, como a que adotamos no item 2.6 quando
falamos dos juízos reflexionantes.269 O que gostaríamos de frisar é que tal noção apesar
de não ser de ordem constitutiva, tampouco determinante, é uma espécie de garantia

267 Marques, Organismo e sistema em Kant, 344.


268 Cf. Renato Valois Cordeiro, “O princípio da finalidade formal como um princípio regulativo-
transcendental da faculdade de julgar reflexiva”, Studia Kantiana, 12 (2012): 145-174.
269 É importante ressaltar, todavia, que esse conceito, de acordo com Renato Valois Cordeiro, possui uma

miríade de significados entre os comentadores mais difundidos: “Stadler acredita que não há qualquer
relação entre os conceitos de finalidade formal e finalidade estética; Zocher, por sua vez, acredita que o
princípio da finalidade formal não pertence nem à filosofia teórica, nem à filosofia prática; Wogau entende
que as finalidades teleológica e estética talvez tenham alguma relação, mas não vê qualquer indicação clara
disto; Biemel distingue os conceitos de finalidade formal, estética e teleológica, atribuindo o primeiro à
esfera da teleologia; Bauch defende a ideia de que a finalidade estética, por assim dizer, fundamenta as
finalidades formal e teleológica; por fim, Ungerer investiga em seu trabalho a fundamentação da finalidade
estética através da formal.” Cf. Cordeiro, “O princípio da finalidade formal como um princípio regulativo-
transcendental da faculdade de julgar reflexiva”, 147.

99
subjetiva para que possamos sistematizar nosso conhecimento empírico. Em suma, esse
princípio deve exercer duas funções básicas, uma de cunho sistemático e outra de cunho
crítico. Queremos dizer com isso que no primeiro caso o princípio da finalidade, que
fornece unidade sistemática a um conjunto de leis empíricas, deve se evidenciar como
condição transcendental dessa unidade; e no segundo caso, entender o locus desse
princípio no sistema crítico kantiano. Se de fato ele é um “acréscimo”, como pensam
alguns, ou se ele tem sua função delineada, de algum modo, desde a primeira Crítica.
No item 1.6, ao abordarmos os “Princípios regulativos da experiência em geral”,
mencionamos as principais características da razão. As ideias da razão enquanto ficções
heurísticas, com o nítido papel de ampliar as investigações empíricas para além do âmbito
restrito do entendimento. As máximas da razão cujo focus imaginarius dirige o
entendimento para um certo fim, extrapolando os limites da experiência. Enfim, falamos
do uso hipotético e especulativo da razão que fornece unidade aos conhecimentos
particulares da síntese entendimento/sensibilidade. A articulação sistêmica tanto dos
fenômenos empíricos quanto das assertivas no interior de um campo teórico é um dos
principais contributos da razão na teorização acerca da natureza. Vimos também no item
3.3 que os pressupostos transcendentais da razão (unidade ou homogeneidade, variedade
ou especificação e afinidade ou continuidade) são reduzidos na terceira Crítica a um único
princípio, o da teleoformidade da natureza pertencente à faculdade de julgar
reflexionante. Percebe-se então que desde a virada crítica Kant esteve preocupado com
caráter sistematizador da nossa subjetividade e com as possibilidades e restrições do seu
uso e, portanto, a noção de finalidade, embora não fosse trabalhada diretamente nos
primeiros textos críticos, começava a ter o seu bojo conceitual formulado. Os
pressupostos transcendentais da razão são integrados tanto ao princípio de teleoformidade
da natureza quanto ao princípio da finalidade da natureza, isso porque, no fundo, são
variações conceituais de um similar uso subjetivo. Independente disso, resta saber se há
uma prova, seja ela subjetiva ou objetiva, do uso desse princípio. E aqui se faz necessário
algumas palavras sobre a diferenciação entre princípios transcendentais que possuem
necessidade objetiva ou necessidade subjetiva.270 Vimos no primeiro capítulo que os
conceitos puros do entendimento são passíveis de dedução transcendental e que essa
dedução prova a necessidade e o uso objetivo desses conceitos. Nesse capítulo
assinalamos também que Kant afirma que as ideias da razão são passíveis de dedução

270 Kant, EEKU, AA 20: 209-210.

100
transcendental, embora tal dedução não possa ocorrer do mesmo modo com o qual se
estabeleceu as categorias do entendimento. Isso é assim porque as ideias da razão
possuem uma dedução transcendental que estipula sua necessidade meramente subjetiva
cuja validade objetiva é indeterminada. O uso do termo transcendental, portanto, possui
uma ambiguidade ou, em todo caso, possui ao menos dois aspectos: dedução de princípios
transcendentais cuja necessidade é objetiva e dedução de princípios transcendentais cuja
necessidade é meramente subjetiva.
No item 3.2 abordamos que a técnica da natureza possui um papel fundamental
enquanto necessidade subjetiva que possibilita sistematizar a diversidade, subsumindo
particulares em universais, como se um quadro geral da natureza e a participação nele de
cada produto natural fosse orquestrado artisticamente. De acordo com Cordeiro:

Com a suposição de uma técnica da natureza é pensada a ordem do


múltiplo da natureza num sistema lógico, de maneira que a faculdade
de julgar pode avaliar a natureza como determinável a partir do seu ato
de subsunção de particulares sob universais. Com isso é pressuposto
que a natureza é apresentável (compreensível) em suas diferenças e, por
assim dizer, final relativamente às nossas faculdades de conhecimento.
271

O todo da natureza enquanto um sistema de partes, entre as quais opera além da


causalidade mecânica a causalidade teleológica (ou seja, a reciprocidade causal entre
partes, tendo em vista uma finalidade do todo, fazendo com que cada parte seja ao mesmo
tempo causa e efeito de outras) permite receber da subjetividade uma gama de
articulações que vão criando camadas conceituais, que unificam congêneres, até uma
unidade absoluta incondicionada. Essa unidade absoluta é, para os nossos propósitos
dissertativos, aquilo que discutimos no item 2.7 a partir dos Prolegômenos, a própria
natureza enquanto totalidade de todos os objetos da experiência. Se cada objeto da
experiência é passível de receber uma conceitualização constitutiva, as relações
sistêmicas entre objetos da experiência somente são possíveis com o uso de conceitos
regulativos, justamente através dos pressupostos transcendentais da razão (unidade ou
homogeneidade, variedade ou especificação e afinidade ou continuidade). A técnica da
natureza, esse proceder artístico da faculdade de julgar reflexionante, que pode nos
fornecer uma natureza sistematizada em espécies e gêneros, pressupõe a noção de
finalidade, porque todos os produtos da natureza possuem uma finalidade intrínseca que

271Cordeiro, “O princípio da finalidade formal como um princípio regulativo-transcendental da faculdade


de julgar reflexiva”, 158-159.

101
de alguma forma se relaciona com outras finalidades, já que a natureza como um todo é
um sistema de fins, e isso abre espaço para o proceder técnico da faculdade de julgar. Em
outras palavras, o proceder técnico depende de um sistema de fins. Subjetivamente,
portanto, temos a garantia de que tudo pode ser em alguma medida classificável. Os
pressupostos transcendentais da razão são fundamentados pela noção de finalidade e
assim a natureza pode ser teorizada enquanto um sistema congruentemente organizado,
tecnicamente e artisticamente organizável.
Para finalizar, gostaríamos de dizer que sem a noção de finalidade que nos fornece
meios subjetivos para sistematizar a natureza, não seria possível qualquer teoria
científica, tudo nos parecia caótico, contingencial e dado ao acaso. Cada produto da
natureza seria um mero objeto singular, sem qualquer afinidade ou relação com outros
produtos. A natureza seria meramente confusa na qual não encontraríamos qualquer
relação sistemática. De acordo com Kant “sem uma ordenação finalísitica da natureza em
um sistema [...], na ordenação de partes” não poderíamos sistematizar a experiência e
assim não teríamos como nos orientar “em um labirinto da diversidade de leis particulares
possíveis.”272 Se a nossa estrutura cognitiva a priori fosse apenas constituída pelo
entendimento e a sensibilidade, sem a razão ou a faculdade de julgar reflexionante,
poderíamos até formular leis científicas, uma vez que estas não dependessem de um
procedimento heurístico, mas não teríamos ciência propriamente, pois a ciência depende
do procedimento técnico, de um sistema de fins, de uma arquitetônica conceitual, sem a
qual não poderíamos criar teorias acerca da natureza.

272 Kant. EEKU, AA 20: 214.

102
CONCLUSÃO

Nesta dissertação procuramos mostrar que a faculdade de julgar reflexionante teleológica


não se circunscreve nos limites teóricos da terceira Crítica, uma vez que seus
pressupostos transcendentais são entrevistos já na Crítica da razão pura, e suas
consequências filosóficas acompanham Kant até os derradeiros textos, o que se evidencia
no Opus postumum. Compreender o papel da causalidade teleológica não seria
“multiplicar causas desnecessárias”, contrariamente ao que disse Hume em referência à
teleologia de Leibniz. O nexus finalis, para Kant, é algo desejável e até mesmo necessário
para a subjetividade pensar certos produtos da natureza. Sua eliminação de qualquer
teorização científica pode acarretar uma considerável perda do viés explicativo e
sistêmico.
No início da dissertação procuramos estabelecer a base epistêmica kantiana a
partir de uma leitura em muitos momentos exegética da primeira Crítica, ainda que tal
leitura não seja de modo algum exaustiva. Procuramos destacar que tanto o entendimento
(e suas dozes categorias a priori) quanto a sensibilidade (e suas formas a priori)
constituem a estrutura cognitiva humana sem a qual nenhum conhecimento nos seria
possível.
Na Crítica da razão pura, contudo, o sujeito transcendental possui um caráter
bastante formalista e esquemático, faltando ainda compreender o modo como ele se insere
em um quadro geral da natureza e de que modo ele pensa a contingência, sobre a qual
projeta uma dinâmica sistemática teleológica. No segundo capítulo, procuramos inserir a
faculdade de julgar reflexionante no sistema da primeira Crítica e mostrar como o sistema
filosófico kantiano “cresce internamente tal como o corpo de um animal”, segundo o
próprio filósofo. Isso aponta que a construção teórica de Kant obedece muito mais a um
viés orgânico que mecânico, muito mais dinâmico que formalista. Surge assim
consequências teóricas importantíssimas como a noção de subsunção: a causalidade
teleológica subsume à causalidade mecânica, as leis subjetivas subsumem às leis
empíricas, e o que inicialmente é nos apresentado enquanto agregado recebe uma
articulação sistêmica.
É possível para a subjetividade pensar a natureza como um conjunto de objetos
ligados em uma cadeia teleológica. De acordo com Kant nosso Einsicht percorre os
produtos da natureza sistematizando-os, mas ao fim encontrando na própria subjetividade

103
a intenção demiúrgica que se projetou sobre o mundo. Encaramos a natureza como se ela
fosse desenhada segundo um desígnio que, na verdade, está no próprio cerne da
cognoscibilidade humana. Por isso destacamos no terceiro capítulo o ponto culminante
de seu projeto crítico: a noção de técnica da natureza e suas ressonâncias epistemológicas.
Sem a noção de técnica da natureza e consequentemente sem a noção de
finalidade, a experiência jamais poderia ser sistematizada e viveríamos perdidos no
labirinto da contingência. Admitir a contingência na diversidade da natureza é admitir o
papel imprescindível da teorização científica: a criação de camadas conceituais que nos
auxiliam na organização da experiência. Camadas conceituais que podem ser
modificadas, assim que nossa razão desejante estiver insatisfeita.

104
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