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Lipovetsky - em uma resposta no Programa Roda Viva – TV Cultura

Gilles Lipovetsky: Eu agradeço. Para tentar ser claro, vou responder da seguinte
maneira: quando eu falo de autonomia ou de livre controle de si mesmo, é claro
que você tem razão em dizer: "Mas vivemos numa sociedade, há certas
determinações...". Isso é evidente. Mas o que isso quer dizer? Quer dizer que,
dentro da sociedade hiperindividualista - como dizer? - os enquadramentos das
classes se tornaram mais flexíveis. Antes havia uma concentração de grupos de
idade, de grupos de religião, de grupos de fortunas. Não quer dizer que esse
fenômeno não exista mais. Quer dizer que temos normas diferentes que existem e
que permitem que os indivíduos tenham a vantagem – vou usar uma expressão
que você não usou, que está na moda - de "se inventar" a si mesmo. Vou dar
exemplos. O primeiro é a questão das mulheres. Se há um fenômeno marcante, é
a questão das mulheres, que se encontram agora numa situação em que seu
destino, daqui para frente, está aberto. Não quer dizer que ocorre o equivalente
com os homens. Não é isso. Seria como num jogo de cartas. Você tem uma
atitude que antigamente não existia. Para entender bem a questão da autonomia,
precisamos nos reportar às sociedades mais antigas, nas quais o seu destino, de
alguma forma, era pré-traçado. Você tinha uma existência social e outra individual
que avançavam juntas. Hoje você é formado pela sociedade, segue um modelo,
só que existem vários modelos. Quando você está numa sociedade em que há
apenas uma religião, sua adesão à religião não vai ser nenhum problema, porque
é evidente. Mas quando você está numa sociedade em que existem ateus, isso
muda, porque, num certo momento, você vai começar a se perguntar sobre a
pertinência dessa adesão. E o que acontece hoje em dia? Perceba que a
individualização não leva ao ateísmo. Ela leva a quê. É bem o termo que você
usou: à autonomização. Frente a quê? Frente às igrejas. Quer dizer que
continuamos sendo cristãos, por exemplo, mas aceitamos isto e recusamos aquilo.
Há uma certa espécie de distanciamento que se instala e que permite, hoje em
dia, a uma pessoa que tenha fé, de existir, de viver sua religião de outra maneira.
A autonomia não quer dizer mais do que isso. Não quer dizer "fora da sociedade",
não quer dizer "uma invenção absoluta de si mesmo". Quer dizer "uma retomada
da sua própria existência com os elementos de que você dispõe". Pegue o
exemplo do judaísmo. Como vocês sabem, após os anos 70, houve o chamado
retorno ao judaísmo. E esse retorno não tem nada a ver com a religiosidade
tradicional. O que é esse retorno ao judaísmo? É uma construção de si mesmo. O
indivíduo se pergunta: "O que é ser judeu?” E então, ele vai procurar livros, ele vai
se questionar. É o contrário da religião tradicional, em que você é judeu, ou
cristão, de pai para filho. Eu sou cristão, sem problema, porque meu pai era
cristão, meu avô era cristão, e eu sou cristão. Nesse caso não há reflexão. O que
chamo de autonomia é também a reflexão do indivíduo. E por que essa reflexão?
Porque hoje ele está num mundo aberto, no qual há a possibilidade de viver de
outras maneiras. Vamos pegar um último exemplo: o fenômeno homossexual.
Com o homossexualismo não se trata de algo recente. O problema é que, hoje em
dia, os homossexuais se questionam sobre a sua identidade. E não apenas se
questionam sobre ela como querem fazer com que essa identidade seja
reconhecida. Por outro lado, querem construir, de certa forma, uma identidade. E
por que essa vontade de construí-la? Porque estão à procura de auto-estima, de
orgulho de si mesmos, que é ultrajado pela sociedade contemporânea. Por assim
dizer, eu acho que a sociedade individualista é o indivíduo que se coloca, em
princípio, como o legislador de si mesmo, mas não a partir de nada, a partir da
História, a partir daquilo que a História nos fez. Não podemos partir do zero. A
partir disso, o caso das mulheres, que é uma coisa à qual dedico muito tempo, é
extremamente interessante. Há uma revolução extraordinária acontecendo que, ao
mesmo tempo, não parte de nada. As mulheres tomam distância de certo número
de normas sociais às quais estavam submetidas, que as definiram simplesmente.
E hoje em dia, elas dizem sim ou não. E nesse momento, não vejo outra palavra
melhor que "autonomia", mas note que é autonomia no interior de um mundo
social, não é uma autonomia fora da sociedade.

http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/567/entrevistados/gilles_lipovetsky_2004.htm

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