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ANTÓNIO RAMOS ROSA

BIOGRAFIA
António Ramos Rosa nasceu em Faro, em 1924, e morreu em Lisboa, em 2013. Estudou em Faro, mas
não concluiu o ensino secundário por questões de saúde.
Em 1958, funda a revista Cadernos do meio-dia, que em 1960 encerra a edição por ordem da polícia
política. Foi também um dos fundadores da revista de poesia Árvore existente entre 1951 e 1953.
Colaborou ainda em várias outras revistas.
O seu nome foi dado à Biblioteca Municipal de Faro. Em 2003, a Universidade do Algarve atribui-lhe o
grau de Doutor Honoris Causa.

[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século


não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
5 sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço


que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

10 Não posso adiar


ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
15 nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

ANTÓNIO RAMOS ROSA, O grito claro, Faro, Tipografia Cácima, 1958.

1. Explique a importância da anáfora «Não posso» para a construção do sentido do poema.

2. Comprove a existência de duas forças opostas na composição poética e justifique com expressões
textuais.

3. Atente nos versos 3 a 12 e explicite a simbologia dos elementos neles referenciados.

4. Identifique o recurso estilístico presente no passo «este abraço / que é uma arma de dois gumes»
(vv. 7 e 8) e comente a sua expressividade.

5. Apresente uma interpretação para a ausência de pontuação no poema.


O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos


dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
5 as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
10 Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
15 tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
20 Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
25 São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Viagem através duma nebulosa, Lisboa, Ática, 1960.

1. Caracterize o estado de espírito do sujeito poético e relacione-o com a situação por ele vivida.

2. Explique a importância que as referências espaciais assumem no poema.

3. Nos versos 19 e 20, o sujeito poético apresenta duas interrogações retóricas.


3.1 Interprete a sua expressividade.

4. Explicite o significado do passo «o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em
frente» (v. 16).

5. Interprete a referência aos nomes «flor», «rapariga», «amigo», «menino», «irmão», «beijo»,
«namorada», «mãe», «estrela», «música», nos versos 22 a 24, tendo em conta a globalidade
do poema.
Nuvens

Encantei-me com as nuvens, como se fossem calmas


locuções de um pensamento aberto. No vazio de tudo
eram frontes do universo deslumbrantes.
Em silêncio via-as deslizar num gozo obscuro
5 e luminoso, tão suave na visão que se dilata.

Que clamor, que clamores mas em silêncio


na brancura unânime! Um sopro do desejo
que repousa no seio do movimento, que modela
as formas amorosas, os cavalos, os barcos
10 com as cabeças e as proas na luz que é toda sonho.

Unificado olho as nuvens no seu suave dinamismo.


Sou mais que um corpo, sou um corpo que se eleva
ao espaço inteiro, à luz ilimitada.
No gozo de ver num sono transparente
navego em centro aberto, o olhar e o sonho.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Volante verde, Lisboa, Moraes Editores, 1986.

1. Divida ao poema em partes lógicas e sintetize o conteúdo de cada uma delas.

2. O sujeito poético expressa o seu encantamento pelas nuvens.


2.1 Explicite quatro das razões que justificam esse encantamento e justifique com expressões
textuais.

3. Identifique um recurso estilístico presente em «Que clamor, que clamores / mas em silêncio na
brancura unânime!» (vv. 6 e 7) e interprete a sua expressividade.

4. Na última estrofe, o sujeito poético apresenta as suas reações à observação das nuvens.
4.1 Explicite essas reações.

5. No poema, estão presentes diferentes sensações.


5.1 Identifique-as e justifique a sua resposta com expressões textuais.
[Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem]

Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem


ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
5 vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
10 e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
15 Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo
para acompanhar o fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
20 sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
25 e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, Delta, seguido de Pela primeira vez, Lisboa, Quetzal, 1996.

1. Identifique o tema da composição poética e justifique com expressões textuais.

2. Explicite o sentido dos três primeiros versos do poema.

3. Tendo em conta os versos 7 a 11, clarifique a relação que se estabelece entre a palavra e o leitor.

4. Atente no passo «Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona» (v. 21).
4.1 Identifique o recurso estilístico aqui presente e comente a sua expressividade.

5. Interprete o sentido dos versos 23 a 28.

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