Você está na página 1de 108

Ética sexual cristã e ideologia de gênero:

produtos de suas respectivas cosmovisões


Introdução

A ética sexual bíblica é elevadíssima. Ela diz que Deus criou


homem e mulher, macho e fêmea os criou, e que eles deveriam
se unir em uma só carne em imaculado matrimônio a fim de se
multiplicarem e darem efetividade ao cumprimento de seu
mandato cultural. Desse modo, para o cristão, as funções de
cada sexo estão definidas biológica, social e
espiritualmente. É algo, portanto, imutável. O famoso jargão
popular “homem é homem, e mulher é mulher” define muito bem
tal pensamento. Faz parte de sua mentalidade antitética.

Ocorre que a sociedade pós-cristã há muito já não segue esse


entendimento. Há uma aceitação crescente de uma percepção
secular humanista, da qual a ideologia de gênero é mais um
desdobramento. Para essa ideologia não vale o dito popular
acima citado, mas prevalece uma leitura dialética da
realidade e, por conseguinte, da essência do ser humano, em
que sínteses entre dois opostos são aceitas para determinar
a existência, a vida e, até mesmo, a sexualidade, que, por
sua vez, nada mais seria do que uma possibilidade no rastro
da evolução natural da espécie humana dentro de um contexto
em que também a construção social detém atribuição
determinante.

A compreensão das cosmovisões terá um papel importante neste


artigo.[1] A maneira que uma pessoa vê o mundo e nele age de
acordo com que o interpreta são as lentes com as quais as
pessoas absorvem e filtram a realidade. Tanto a ética sexual
cristã como a ideologia de gênero se apresentam como
desdobramentos conclusivos de suas cosmovisões, e, portanto,
são óculos através dos quais compreendem essa área específica
da natureza e das relações humanas.

2
É importante, ainda, destacar que uma visão de mundo se
organiza numa unidade coerente de sentido, que dá forma
àquilo que cada um acredita sobre o cosmos – o mundo
organizado. O estudo das cosmovisões nos revela que as
crenças e disposições básicas não atuam de forma separada,
mas dentro de uma dinâmica interligada e sistemática. Cada
cosmovisão se mostra como um sistema de pensamento completo.
Por isso, os pressupostos metafísicos, ontológicos,
epistemológicos e éticos se conectam de forma indissociável.
De igual modo, as narrativas exercem forte influência sobre
a percepção de mundo do indivíduo, que podem, na prática,
até contrariar os pressupostos racionalmente declarados,
revelando suas crenças mais enraizadas em seus
comportamentos.

Destarte, o objeto deste estudo é uma análise comparativa


entre a ética sexual cristã e a ideologia de gênero a partir
da integralidade das respectivas cosmovisões que as ordenam.

1. Ética cristã: produto de uma cosmovisão coerente

Francis Schaeffer afirmou que “o cristianismo é a verdade


sobre todo o universo”[2]. Esse é um resumo que representa
o pensamento cristão sobre sua maneira de enxergar a vida e
a realidade, tendo o evangelho como verdade absoluta sobre
toda a existência. Tal afirmação é possível porque o
cristianismo também é um sistema completo de crenças e
pressupostos, racional e perfeitamente coerente, que faz
sentido como explicação do todo.

A fé cristã tem a Bíblia como seu documento epistemológico.


As Escrituras Sagradas, ainda que constituídas por 66 livros
escritos em um período de aproximadamente 1500 anos e por
vários autores, apresenta uma metanarrativa que lhe confere
unidade. Uma metanarrativa é a narrativa maior que liga e dá
consistência a todas as outras nela contida. O drama bíblico

3
se inicia em Gênesis, no Jardim do Éden, e desenvolve-se no
plano de redenção, tendo seu desfecho na Nova Jerusalém, o
jardim restaurado em Apocalipse. Desse modo, criação, queda,
redenção e consumação formam a base para aquilo que o cristão
crê sobre Deus, sobre o ser humano, sua origem, seu fim,
sobre como deve viver, sobre a fonte de conhecimento que lhe
assegura a veracidade de todas essas coisas (as próprias
Escrituras), e enfim, fundamentam sua compreensão sobre a
realidade. Não por menos, Herman Dooyeweerd declara que “o
motivo bíblico da religião cristã – criação, queda e redenção
por meio de Cristo Jesus – opera por meio do Espírito de
Deus como força motriz na raiz religiosa da vida
temporal”.[3]

Ora, no arranjo de uma cosmovisão, os pressupostos são


interligados de maneira tal que cada um deles afeta os
demais. Destarte, sempre que uma pessoa muda sua ideia ou
percepção sobre um campo específico de seu pensamento, todo
o resto fica suscetível a sofrer algum tipo de alteração.
Suas aplicações são resultados conclusivos do sistema de
crenças, e nunca o oposto. Pois bem, sendo a Bíblia o
fundamento epistemológico do pensamento cristão, não é por
acaso que o primeiro livro nela contido, o livro de Gênesis
(“Início” ou “Origens”) lança as bases metafísicas de sua
visão de mundo e lhe confere sua sustentação ontológica,
teleológica e ética, inclusive, para o fim que aqui nos
importa, da moralidade sexual. O cristianismo, como
qualquer sistema racional, é um castelo de baralho, no qual
uma carta que seja removida provoca o colapso de toda a
construção. A carta na base do castelo cristão é a narrativa
da criação encontrada em Gênesis.

Em vista disso, se a Bíblia é confiável como fonte de


conhecimento e nos afirma que este mundo teve um início
temporal e foi criado por um ser que está além do espaço-

4
tempo, que tem poder para dar sustento e continuidade a tudo
o que existe, então nenhuma narrativa descrita nas Escrituras
pode carecer de coerência, e nada do que o Criador requer de
suas criaturas é despropositado. A bem da verdade, a primeira
sentença da Bíblia, encontrada em Gênesis 1.1, “No princípio,
criou Deus os céus e a terra”[4], torna possível, exequível
e exigível todo o resto. Um Deus que tudo criou pode fazer
o que quiser e como quiser, mesmo que pareça absurdo e sem
explicação aos olhos da ciência ou das tradições humanas.
Aliás, a ciência é limitada ao que pode observar e testar
empiricamente no âmbito dos fenômenos naturais, e muitos
acontecimentos descritos na Bíblia estão fora do alcance de
sua análise. A criação ex-nihilo foi um evento único, que o
homem pode buscar entender, mas que deve, porém, aceitá-lo
como fato histórico e sobrenatural, antes de ser científico.
A propósito, render-se aos limites humanos é sabedoria, como
concluiu o pregador no Livro de Eclesiastes (8.17): “então,
contemplei toda a obra de Deus e vi que o homem não pode
compreender a obra que se faz debaixo do sol; por mais que
trabalhe o homem para a descobrir, não a entenderá; e, ainda
que diga o sábio que a virá a conhecer, nem por isso a poderá
achar”. E é importante salientar que tudo que o Criador
escolheu revelar tem o propósito de obediência à sua lei,
conforme exortado em Deuteronômio (29:29): “As coisas
encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as
reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para
sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”.
Desse modo, a epistemologia bíblica é autoritativa e por
revelação, carregando, intrinsecamente, um propósito ético
em si.

Destarte, ao compreendermos o ser humano como tendo sido


criado por um Deus que atribuiu propósito, objetivo e
finalidade à sua criação, é possível perceber em sua
revelação variadas instruções para suas criaturas. Diz o

5
salmista, “Vivifica-me, segundo a tua misericórdia, e
guardarei os testemunhos oriundos de tua boca”. – Salmo
119:88. Por isso, uma analogia um tanto quanto simplória,
mas que cumpre papel didático importante neste estudo seria
comparar a Bíblia a um manual do fabricante. O manual de um
produto industrializado nos ajuda a ter uma visão completa
sobre ele, e ignorá-lo certamente não é uma boa ideia. A
explicação do fabricante sobre o material que a mercadoria
é feita, sobre como é montada e como deve ser utilizada, nos
ajuda a entender para que ela serve, como funciona e como
deve ser cuidada. Certamente, um manual de instruções não é
uma cosmovisão, mas temos aí categorizados os seus elementos:
uma fonte de conhecimento considerada confiável acerca da
mercadoria, uma exposição sobre a origem e a natureza do
produto, e, finalmente, sobre como utilizá-lo para melhor
atingir o seu fim. Toda informação que ali consta é de
fundamental importância para o seu uso adequado, para
prolongar e dar qualidade à sua vida útil. Por mais simplista
que seja a analogia, com o ser humano é a mesma coisa! As
informações as quais dermos credibilidade acerca de como, do
que e para que fomos feitos alteram, invariavelmente, o que
acreditamos sobre quem somos, o nosso propósito e, não menos
importante, tem consequências inevitáveis sobre as nossas
concepções éticas. Para a fé cristã, é a Bíblia que nos
informa todas essas coisas.

Jesus demonstra o peso ético das Escrituras ao extrair da


historicidade do relato da criação em Gênesis uma aplicação
moral acerca do casamento e do divórcio:

Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez


homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem
pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma
só carne? De modo que já não são mais dois, porém uma só

6
carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.
(Mateus 19.4-6).

Para Cristo, a narrativa criacional tem relação direta na


instituição e manutenção do casamento. Da mesma maneira que
Paulo traz as bases de sua doutrina da redenção na
historicidade de Adão (Romanos 5.12-21 e I Coríntios 15.20-
22 e 45), Jesus aqui o faz em relação ao que ensina quando
perguntado sobre divórcio. Ou seja, o questionamento ético
dos fariseus é respondido com uma referência metafísica e
ontológica. Contudo, esta passagem não somente apresenta os
fundamentos de uma determinada moralidade acerca do
matrimônio em si, mas é chave para compreendermos a ética
sexual do cristão de maneira integral.

Perguntas tais sobre “como sabemos algo?” e “como podemos


saber que sabemos?” são respondidas pelo campo da
epistemologia. Quando Jesus introduz sua resposta aos seus
inquisidores “não tendes lido?”, ele apresenta a base
epistemológica da ética cristã, isto é, vocês podem saber a
veracidade do que vou lhes dizer sobre a ética do matrimônio
porque são conclusões que partem da Torá. Ao falar sobre “o
Criador”, e “desde o princípio”, Cristo ensina que a
realidade integral não é apenas física, mas é metafísica, ou
seja, sua integralidade vai além daquilo que pode ser
observado neste mundo e no universo, pois há mais do que
matéria, tempo e energia em nossa existência. Este universo
teve um princípio, e antes dele, já havia um Criador que deu
o impulso inicial a tudo o que foi criado, tendo, assim,
direito de governo sobre a criação. Desse modo, a ontologia
de Deus também é destacada, seguida de uma explicação da
ontologia humana, mais especificamente, acerca da sua
natureza sexual: “Os fez homem e mulher, macho e fêmea”.
Para a visão de mundo cristã, não há um terceiro sexo (ou
diversos) além de homem e mulher, que foram feitos como macho

7
e fêmea. Sendo assim, a forma correta de eles se relacionarem
intimamente é através do casamento. Ao afirmar “E ordenou”,
Jesus nada mais fez do que entregar uma conclusão ética
coerente com a metafísica, ontologia e epistemologia
apresentadas em sua reposta: “Por isso o homem deixará pai
e mãe e se unirá à sua mulher; e serão os dois uma só carne…
Assim, não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que
Deus uniu o homem não separe”.

Temos aí, dos lábios do próprio Cristo, uma clara


demonstração de como cada área de uma visão de mundo gera
consequências no campo moral. De igual modo, temos um resumo
perfeito da ética sexual cristã a partir de cada elemento de
sua cosmovisão. Homem e mulher devem cumprir seu papel
familiar e social a partir do que é biologicamente e
espiritualmente definido pelo Criador e conforme revelado
nas Escrituras.

A respeito da importância do relato da criação em Gênesis e


as inevitáveis implicações epistemológicas de sua
relativização, J.P. Moreland, professor de Filosofia na
Universidade de Biola, escreveu um dos artigos do livro
multiautoral “Theistic Evolution – A Scientific,
Philosophical, and Theological Critique”. O título de seu
texto é autoelucidativo: “How Theistic Evolution Kicks
Christianity Out of the Plausibility Structure and Robs
Christians of Confidence that the Bible is a Source of
Knowledge”. No resumo, ele diz:

Nós podemos ter conhecimento (isto é, crença verdadeira


justificada) de uma grande gama de coisas: lógica,
matemática, a verdade do cristianismo, várias doutrinas
bíblicas, verdades éticas, e assim por diante. Ainda que
importante, a ciência é apenas uma das maneiras que os
humanos sabem as coisas. Contudo, devido ao cientificismo

8
largamente difundido – a visão que as ciências duras são a
única ou a maneira vastamente superior de saber as coisas,
especialmente em comparação à teologia e ética – na nossa
cultura, evolucionistas teístas reforçam esta visão ao
revisar constantemente os ensinos bíblicos e interpretações
por causa do que a ciência diz. Assim, ao adotar esta
perspectiva epistemológica não-bíblica, evolucionistas
teístas enfraquecem a autoridade racional do ensino bíblico
entre cristãos e não-cristãos. Como resultado, a Bíblia não
é mais considerada por muitos como uma fonte genuína do
saber, e menos e menos pessoas levam a Bíblia a sério. Dessa
maneira, talvez não intencionalmente, aqueles que adotaram
a evolução teísta, marginalizam as reivindicações da verdade
cristã na igreja e na praça pública.[5]

A crítica do autor é focada no cientificismo que ergue “as


ciências duras”, ou ciências naturais, como uma fonte
superior do saber, diminuindo a importância da teologia e da
ética. Para ele, essa epistemologia gera o enfraquecimento
da autoridade racional dos ensinos bíblicos, levando ao seu
descrédito público. O autor continua explicando em seu artigo
que “o naturalismo científico tem a visão de que o cosmos
físico estudado pela ciência é tudo que existe”. Ao falar da
posição arrogante de um PhD em Física de que “Se você pode
medir e testar cientificamente, então você pode saber”[6],
Moreland chama a atenção para o fato de que a reivindicação
daquele homem é autorrefutável, desde que a reivindicação em
si não pode ser quantificada e testada em laboratório. E ao
fim do seu texto, ele confirma o que estamos analisando neste
estudo, que “devemos chegar à conclusão de que a posição
revisionista do evolucionismo teísta tem feito muito mais
fácil revisar outros ensinos bíblicos quando há pressão
cultural sobre nós para assim fazer”.[7]

9
Ao longo deste estudo, tais ideias serão mais exploradas.
Coube neste item, porém, firmar o enunciado acerca da
importância do relato da criação como pilar da cosmovisão
cristã, bem como, por conseguinte, fazer sua ligação
essencial com a ética sexual bíblica.

2. Antítese e ética sexual cristã

A partir daqui, podemos pensar em outra questão fundamental


da cosmovisão cristã que apresenta reflexos na ética sexual.
Observa-se em todas as Escrituras a reprodução de uma
mentalidade antitética na maneira em que a realidade, a
existência e a história são apresentadas, narradas e
interpretadas. Tal método de pensamento confere à visão de
mundo judaico-cristã uma distinta particularidade: a
possibilidade de se trabalhar a partir de uma verdade única
e eterna, pura, sem mistura e imutável, que sustenta todas
as outras que lhe são derivadas e que seguem o mesmo modelo.

A característica da antitética é a oposição inconciliável de


duas teses. Por sua vez, a dialética é o exercício de gerar
síntese entre dois ou mais objetos. Dooyeweerd ensina que
“considerada em si, a palavra antítese não significa mais
que ‘oposição’”.[8] Se a síntese é o germe de teses opostas
que formam uma nova tese conjunta, a antítese é o antagônico,
o contrário, que não aceita a possibilidade de síntese com
aquilo que lhe é oposto. No pensamento cristão, as verdades
e os pressupostos fundamentais são inegociáveis, e não estão
em progresso de síntese ou em evolução. Veja como a
metanarrativa bíblica apresenta um aspecto de continuidade
linear e repetitiva, bem expressa mais uma vez em Eclesiastes
(1:4-9): “Geração vai e geração vem; mas a terra permanece
para sempre. Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao
seu lugar, onde nasce de novo… O que foi é o que há de ser;
e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo
debaixo do sol”.

10
Não pode haver melhor maneira de analisar a antítese cristã
do que partindo de sua própria Divindade. Quando Moisés
perguntou quem ele deveria dizer que o enviou, a resposta do
Senhor foi: “EU SOU O QUE SOU” (Êxodo 3.14). Não há síntese
em Deus. Nem mesmo pode haver, pois nada há que possa sequer
ser apresentado como antítese para si. Apesar de vivo,
infinito e dinâmico, ELE É O QUE É. Imutabilidade é um de
seus atributos. Sobre a segunda pessoa de Trindade, Hebreus
(13.8) diz: “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será
para sempre”. Tiago (1.17), por sua vez, escreveu: “Toda boa
dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai
das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de
mudança.”. E em Malaquias (3.6) ouvimos da parte do próprio
Deus: “Pois eu, o Senhor, não mudo”.

Pode-se perceber também um modus operandi antitético no ato


da criação quando Gênesis diz que Deus criou “cada animal
segundo a sua espécie”. A Bíblia não declara a origem dos
vários tipos de seres vivos como resultado de um exercício
dialético entre seres orgânicos e a natureza, em um contínuo
processo de adaptação e comportamenteo gerador de novas
espécies. Na narrativa bíblica, não foi da síntese entre
seres pré-existentes e o meio-ambiente que novas espécies
surgiram. Gênesis afirma que cada ser foi criado conforme a
sua espécie.[9] O homem, por sua vez, do barro foi feito,
tendo o espírito de vida soprado em suas narinas, e sua
auxiliadora, a mulher, tendo sido criada de sua costela. A
criação e as criaturas são, assim, formadas prontas, e a
obra criacional é conclusa. Não há na Bíblia a ideia de uma
obra contínua que se estende em constante mutação, pois
“havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera,
descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito”. O
homem criado à imagem e semelhança de Deus também apresenta
uma natureza antitética em sua ontologia, sendo criado
pronto, único, distinto, finalizado e separado em sua

11
natureza do restante da criação, e não uma síntese de outros
animais. E isso, para os fins de nossos estudos neste artigo,
como vemos, carrega consequências.

Herman Dooyeweerd comenta que “a antítese está em todos os


aspectos da própria vida cristã”.[10] Isso é visto claramente
no sermão do monte, por exemplo, no qual Jesus ensina: “Seja,
porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar
vem do maligno” (Mateus 5.37). A ética cristã antitética do
“sim, sim; não, não” é mais um reflexo da mentalidade
encontrada na Bíblia. Na teologia paulina, para citar mais
um exemplo, a antítese também é sempre presente em conceitos
opostos e inconciliáveis: lei versus graça, carne versus
espírito, velho versus novo, pecado versus santidade, vida
versus morte, etc.

Francis Schaeffer, em Como Viveremos – o surgimento e o


declínio do pensamento e cultura do ocidente, descreve as
consequências da mentalidade dialética sobre a concepção da
verdade:

Ao invés de antíteses (que algumas coisas são verdades e


seus opostos inverdades), verdade e retidão moral serão
encontradas, no curso da história, uma síntese delas. Este
conceito venceu não apenas no outro lado da cortina de ferro;
venceu neste lado também. Hoje não somente em filosofia, mas
na política, no governo e na moralidade individual, nossa
geração vê soluções em termos de sínteses e não de absolutos.
Quando isso acontece, a verdade, como as pessoas sempre
pensaram a verdade, já morreu.[11]

Importante salientar que a dialética teórica não é a


problemática tratada aqui, porém é sim aquilo para o qual
Herman Dooyeweerd chama a atenção, de que “na raiz da
supervalorização da dialética teórica subjaz uma dialética

12
religiosa que está escondida daquele que pensa”[12]: A
questão central está nas consequências de se admitir a
dialética como realidade última para explicação de toda
existência. O Deus Criador encontrado na Bíblia não é síntese
de duas ideias, seres ou objetos. Ele é o Ser necessário e
imutável. E a maneira em que ele opera e o que ele criou
seguem o mesmo padrão do seu Ser. Dooyeweerd explica mais
este assunto:

A dialética teórica ocupa-se de opostos relativos. Pelo fato


de esses opostos estarem ligados a uma unidade mais elevada,
eles resistem a qualquer tentativa por parte do pensamento
teórico de torná-los absolutos. Assim, por exemplo a
proposição de que o movimento e o repouso se excluem
mutuamente de modo absoluto não faz sentido; não é difícil
determinar que o movimento e o repouso simplesmente tornam
visível uma mesma realidade temporal de dois modos
diferentes. Em vez de excluírem-se, pressupõem-se
mutuamente. A mútua dependência entre eles aponta para um
terceiro elemento no qual os dois estão unidos, mesmo sendo
eles conceitualmente e mutuamente excludentes. [13]

[..]

A dialética religiosa, por ser religiosa, não consegue


repousar numa relação de mera correlatividade. O resultado
é que ela impulsiona o pensamento e a prática da vida de um
lado para o outro.

Em outras palavras, a dialética religiosa emaranha a vida e


a teoria numa dialética que é totalmente incompreensível
quando medida com a régua da dialética teórica.
Diferentemente da dialética teórica, a dialética religiosa
carece de base para uma síntese real.

13
Nessa busca, ela procura abrigo num dos princípios
antitéticos dentro do motivo básico, dando a ele prioridade
religiosa. Ao mesmo tempo, acaba por rebaixar e desprezar o
princípio oposto. Mas a ambiguidade e a fragmentação do
motivo básico não dão acesso a uma conciliação numa unidade
verdadeira mais elevada. A conciliação torna-se impossível
por causa do próprio motivo básico. Por fim, será necessário
fazer uma escolha.[14]

De fato, na síntese religiosa, um dos opostos acaba sendo


elevado e o outro rejeitado, exatamente como explica o
autor. Jesus ensinou que “Ninguém pode servir a dois
senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro,
ou se devotará a um e desprezará ao outro” – (Mateus
6.24). Note que nos tempos de Cristo, a concepção de
religião de Roma era de que cada região do império poderia
continuar adorando seus deuses, mas se alguém negasse o
senhorio de César, era morto, tornando-se impossível sua
conciliação integral. Isso se dá por causa do próprio motivo
básico – no caso do Império Romano, o poder político
totalitário. No humanismo secular da pós-modernidade, a
ética e a moral devem render-se à razão humana e ao postulado
de que não há verdade absoluta – ainda que essa afirmação
seja em si uma tentativa de se impor uma verdade. Esses dois
casos descritos são exemplos reais do que Dooyeweerd alerta,
conforme citação acima, de que “a dialética religiosa carece
de base para uma síntese real”, que ela “procura abrigo num
dos princípios antitéticos do motivo básico”, que “ao mesmo
tempo, acaba por rebaixar e desprezar o princípio oposto”,
que “a conciliação torna-se impossível por causa do próprio
motivo básico” e que, “por fim, será necessário fazer uma
escolha”. Na questão sexual, objeto deste artigo, a
relativização do sexo e sua desconexão com a natureza
biológica proposta pela ideologia de gênero exigem a rejeição

14
integral do que a Bíblia apresenta acerca da sexualidade
humana e de todo pensamento que lhe dá a base ética.

3. O humanismo secular e a Ideologia de Gênero

A Bíblia foi o documento de constituição da cultura ocidental


cristã, a qual erigiu o Deus da Bíblia ao centro da
existência. As Escrituras ditaram por dois milênios as
definições do bom e do mau, da justiça e da esperança, do
certo e do errado. Elas ensinaram a pensar de um determinado
modo. Enquanto não se questionava sua autoridade, as pessoas
absorviam sua narrativa, seus princípios morais, sua ética.
A Bíblia era, enfim, a fonte inquestionável de conhecimento
da verdade, o documento epistemológico da cristandade.

No momento em que a autoridade das Escrituras foi deposta


pelo racionalismo iluminista, uma verdadeira revolução se
sucedeu no campo da epistemologia, e a cosmovisão geral deste
lado do globo sofreu significativas alterações. O
cristianismo, gradualmente, foi sendo substituído pelo
humanismo secular. O ser humano, até então percebido como
uma criatura à imagem e semelhança de Deus, munido de
propósitos pré-definidos, foi o deixando de ser. As
concepções ontológicas outrora aceitas já não faziam mais
sentido. De fato, não poderia ser diferente. O homem agora
instável e maleável por natureza, ao olhar para dentro de si
e da própria razão como fonte do conhecimento, torna-se em
uma imagem líquida (utilizando-se da linguagem de Zygmunt
Bauman), com propósitos líquidos, subsistindo em uma
sociedade líquida. Não menos importante, o abandono da fé
cristã em sua integralidade teve desdobramentos éticos, e no
campo da afetividade produziu uma sexualidade líquida. Não
é à toa que o gênero fluído é mais uma das possíveis
identidades sexuais entre as tantas encontradas na ideologia
de gênero[15].

15
Em The Universe Next door, James W. Sire faz uma reflexão
sobre as cosmovisões básicas que determinam o modo pelo qual
pensamos – tais como deísmo, naturalismo, niilismo,
existencialismo e pós-modernismo, e traça um panorama
histórico de como elas se desenvolveram desde o declínio da
visão teísta até o advento da pós-modernidade. O autor
demonstra que o naturalismo, a visão de que toda a lei e
toda a força operando no universo é natural (ou seja, todos
os fenômenos da realidade devem ser explicados a partir de
leis naturais e físicas), tem fornecido a crença básica que
suporta visões alternativas à explicação cristã da realidade
nos motivos básicos de criação, queda, redenção e
consumação, bem como “concede a moldura para a maioria do
estudos científicos”.[16]

O humanismo secular é hoje o sistema de pensamento dominante


no Ocidente, que começou a ser forjado no declínio da
cristandade, sendo uma síntese das ideias que excluíram o
motivo cristão do centro da cultura a partir da Renascença,
e que também depende de se apoiar no naturalismo filosófico.
Segundo John Frame, humanismo é “uma tendência cultural
enfatizando a preocupação e a natureza humana. Prominente no
período da Renascença. Humanismo tornou-se altamente
secularizado no período moderno tardio”[17]. Ocorre que ao
propor uma visão integral do homem, os pressupostos e valores
do humanismo também dependem de fundamentos que sustentem
suas aplicações éticas, derivados justamente das respostas
para as perguntas fundamentais acerca da existência e do
significado da vida: de onde viemos, para onde vamos, qual
o propósito do ser humano, como devemos viver, etc. É seguro
dizer que o que ocorreu na sociedade pós-cristã não foi o
abandono da religião, mas sim a troca dela. Nem mesmo o
humanista ateu é capaz de refutar a dimensão religiosa de
sua visão de mundo, haja vista que, na prática, esta também
apresenta uma metanarrativa peculiar e pressupostos que não

16
podem ser observados empiricamente. Tim Keller, autor e
pastor presbiteriano, em sua aclamada obra The Reason for
God, escreveu:

O que, então, é religião? É um grupo de crenças que explica


a vida, quem nós somos, e as coisas mais importantes nas
quais os seres humanos deveriam investir seu tempo. Por
exemplo, algumas pessoas pensam que este mundo material é
tudo que existe, que nós estamos aqui por acidente e que
quando morremos nós simplesmente apodrecemos, e portanto a
coisa mais importante é escolher fazer o que te faz feliz e
não deixar que os outros imponham suas crenças sobre ti.
Note que, ainda que isso não seja explicito, contém uma
narrativa mestre, um conto sobre o significado de vida junto
com a recomendação de como se viver baseado nessa narrativa
das coisas.[18]

E Robert L. Thoburn diz:

O humanismo secular se tornou a nova religião estabelecida


nos Estados Unidos, e as escolas públicas se tornaram a
igreja estabelecida. Os impostos são usados para sustentar
essa igreja estabelecida. Os professores se tornaram os
sacerdotes e sacerdotisas dessa nova igreja. Até mesmo a
beca preta, associada a sacerdotes e juízes, têm sido
apropriada pelas escolas para simbolizar suas
reivindicações, embora vistam apenas no dia da graduação ou
em ocasiões especiais.[19]

Bem destaca James Sire ao citar a Parábola do Homem Louco de


Nietzche, “leva um longo tempo para as ideias afundarem na
cultura”. Ainda que tenha demorado, o humanismo claramente
dá os seus frutos agora no século XXI. No contexto dessa
nova cosmovisão a ideologia de gênero pôde ser concebida,
amadurecer e florescer. Ela jamais criaria raízes na cultura

17
da cristandade, mas encontrou solo fértil na era do humanismo
secular. E por que se afirma isso?

Sire considera a metafísica (ou ontologia) “a fundação de


todas cosmovisões”. Afirma ele: “Ser é anterior ao saber. Se
não há nada, então nada pode ser sabido”. Ele continua
dizendo: “O teísmo coloca o ser antes do saber. O naturalismo
Iluminista coloca o saber antes do ser”. Essa é ordem dos
fatores do Iluminismo, exposta pelo método de Descartes,
“penso, logo existo”, que transforma o homem em “uma coisa
que pensa”. O autor, então, aponta para o que ele diz ser “a
essência do moderno: a autonomia da razão humana”. E a partir
disso, escreve:

A noção de autonomia da razão humana liberou a mente humana


da autoridade dos antigos. Progresso científico e
intelectual não vinha das noções reveladas nas Escrituras,
mas da presunção que a razão humana poderia, de fato,
encontrar seu caminho em direção à verdade. Tal conhecimento
era poder, poder instrumental, poder sobre a natureza, poder
para conseguir o que queremos. Na ciência, os resultados
foram estrelares. Na filosofia, entretanto, o movimento de
ser para saber, da primazia de Deus que cria e revela para
a primazia do indivíduo que sabe por si só, foi fatal.[20]

Esse é o motivo por que ao tratar da cosmovisão cristã


destacou-se anteriormente a narrativa criacional como seu
pilar. Há uma lógica a ser seguida aqui. Para o cristianismo,
é a sua base metafísica e ontológica que determina a sua
epistemologia, que, por sua vez, revela seus pressupostos
éticos, inclusive referente à sexualidade. Na visão de mundo
judaico-cristã, você crê numa fonte de conhecimento porque
crê em quem a revelou: “No princípio criou Deus os céus e a
terra”, diz a primeira frase da Bíblia. É esse enunciado que
sustenta a metanarrativa, e esta deve ser coerente com sua

18
primeira afirmação (como de fato o é), proporcionando
validade a todo resto do livro. Ao se apresentar para Moisés
como o “Eu Sou”, Deus, ao mesmo tempo que confirma Gênesis
1.1, confere legitimidade à revelação que entrega ao profeta.
Uma cadeia de confirmações das Escrituras ocorre a partir
dos textos mosaicos, cujo primeiro princípio hermenêutico é
que as escrituras interpretam as escrituras. Igualmente, do
modo que o Criador em sua essência se apresenta (como
espírito, infinito, pessoal e pré-existente) para dar
autoridade ao que revela, é também pelo modo que a criatura
é introduzida aos cosmos criado que podemos ter
confiabilidade no que se requer dela.

Ora, por isso não há espaço para a ideologia de gênero na


ética sexual extraída dos dois primeiros capítulos da Bíblia.
Primeiro, porque sua ética advém de seus pressupostos
metafísicos. Segundo, porque a narrativa bíblica é muito
rígida no quesito ontologia humana para permitir o que a
referida ideologia pretende. Sobre os papéis distintos,
definidos e permanentes dos dois sexos na teologia de
Gênesis, já tratamos nos itens anteriores. Então, resta claro
que para os proponentes da relativização dos sexos faz-se
necessário um enfraquecimento dessa narrativa metafísica a
fim de proporcionar uma ontologia do homem que autorize as
suas ideias.

Ora, se o ser vem antes do saber, o enfraquecimento da


narrativa de Gênesis traz consigo inevitáveis problemas
epistemológicos, que irão servir muito bem à nova religião
humanista que deseja ter a autonomia da razão, e da qual
depende, por sua vez, a ideologia de gênero. Por conseguinte,
aproveitam-se os defensores da diversidade sexual da
maleabilidade do saber humano, a fim de serem livres
intelectualmente para construir e difundir suas teses sem as
amarras ontológicas de uma interpretação histórico-literal

19
da criação na Bíblia. É verdade que por conta da influência
bíblica na cultura do Ocidente pelo período milenar da
cristandade, as Escrituras não podem ser ignoradas, nem mesmo
na sociedade pós-cristã. Logo, a opção se dá por uma
interpretação metafórica ou simbólica do livro que revela a
origem da humanidade. Pois, se suas afirmações, por mais
categóricas e absolutas que sejam, podem ser compreendidas
através de uma leitura simbólica, esvazia-se o significado
e as aplicações pretendidos pelo autor original. Ninguém lê
a bula de um remédio como metáfora. Se o fizer, corre o risco
de não ver surtir o efeito de cura esperado, vez que poderá
administrar dose menor que o necessário, ou, até mesmo,
provocar um óbito por overdose. Aliás, se numa bula medicinal
você lesse uma instrução hermenêutica do tipo: “As instruções
aqui contidas são metafóricas, e não devem ser interpretadas
de forma literal”, você não daria o mesmo nível de atenção
nem para o que está ali escrito e nem mesmo para o remédio
que ela pretende prescrever. Essa é uma ilustração pequena
de um conflito epistemológico que surge quando se muda um
método interpretativo de um livro. Ainda que na Bíblia exista
todo tipo de gênero de literatura, cada livro nela contido
deve ser lido dentro de seu estilo literário. Assim, por
que, então, dar-se-ia valor empírico a um livro histórico do
qual não podemos saber se está lidando com fatos reais? Ora,
nada mais conveniente para quem não quer se submeter à ética
bíblica e busca ter a própria razão como árbitro do que deve
ser levado em conta no texto. Prato cheio para um ambiente
intelectual propício à ideologia de gênero, que simplesmente
não pode se debruçar em Adão e Eva históricos.

Natammy Bonissoni, em sua tese de doutorado “A inviabilidade


de subsistência de um ambiente multicultural Laico”, assim
escreveu:

20
Ao negar uma moralidade fundamentada na ordenança divina, o
homem é entregue a axiomas imanentes e se vê obrigado a
sustentar normas objetivas morais. A partir disso, houve
tentativas de erigir uma explicação sólida e coerente de uma
moralidade norteadora das normas dissociada de qualquer base
transcendental. Entretanto, ao negar a existência de Deus,
de acordo com a Cosmovisão Cristã, o homem é encontrado em
um mundo resultante da evolução natural (tempo, matéria e
acaso). Neste ponto, o problema está na tentativa de se
extrair normas morais objetivas de fatos empíricos.[21]

Pois bem, supondo que Adão e Eva não são personagens


históricas, ou, pelo menos que não se pode ter certeza da
historicidade de alguns acontecimentos de suas vidas, por
exemplo, acerca de como e do que exatamente vieram a existir,
alguma alternativa deverá preencher o vazio. Na pós-
modernidade, esse papel é tomado pela macroevolução, fazendo
com que deveres, inevitavelmente, sejam abandonados
juntamente com a ontologia da antiga visão de mundo
rejeitada, dentre eles os deveres relacionados à sexualidade
humana. A ética sexual que relativiza a função dos gêneros
depende de uma narrativa metafísica e ontológica derivada de
uma teoria das origens que permita ou, no mínimo, que torne
aceitável a diversidade sem ferir a natureza humana. A teoria
da evolução das espécies é muito útil nesse sentido, ao passo
que apresenta homem e mulher como seres em constante mutação.

Alguns anos atrás, a BBC News publicou em seu site uma


reportagem sobre a tentativa da ciência de explicar o
homossexualismo a partir de uma de uma leitura evolucionista
da biologia, em cuja introdução se lê:

Nas duas últimas décadas, dezenas de papers científicos têm


sido publicados acerca das origens biológicas da
homossexualidade – outro anúncio foi feito semana passada.

21
Está se tornando ortodoxia científica. Mas como isso se
encaixa na teoria da evolução de Darwin?[22]

O questionamento lançado sobre “como isso se encaixa na


teoria de evolução de Darwin?” é a pergunta para a qual
estamos apontando. Não se pretende respondê-la aqui, mas
somente demonstrar o fato de que há compatibilidade de
narrativas. Esse é o ponto principal: só pode haver
justificativa para a relativização da sexualidade se houver
uma teoria da origem do ser humano que a torne plausível.
Ainda que não se está propondo a literalidade de Gênesis
como um teste de ortodoxia cristã, o problema é abrir a
brecha da possibilidade. A interpretação literal histórica
dos acontecimentos no Éden é totalmente incompatível com a
ideologia de gênero. Todavia, uma narrativa macroevolutiva
das espécies é perfeitamente compatível, em qualquer
corrente que se apresente: neodarwinismo, teoevolucionismo
(afinal, qual theos?), etc. A afirmação de que está se
tornando ortodoxia científica não deveria surpreender,
portanto.

O cantor britânico Sam Smith recentemente veio a público em


sua conta no twitter para anunciar “my pronouns are
they/them”. Assim ele postou na sua rede social:

Today is a good day so here goes. I’ve decided I am changing


my pronouns to THEY/THEM after a lifetime of being at war
with my gender I’ve decided to embrace myself for who I am,
inside and out…

[…]

P.s. I am at no stage just yet to eloquently speak at length


about what it means to be non binary but I can’t wait for
the day that I am. So for now I just want to be VISIBLE and

22
open. If you have questions and are wondering what this all
means I’ll try my best to explain…

These are activists and leaders of the non binary/trans


community that have helped me and given me so much clarity
and understanding.[23]

Pois bem, mais uma vez, como já exaustivamente exposto, se


a ideia de diversidade sexual não encontra espaço no
entendimento binário da narrativa criacional e da ética
cristã, ela, necessariamente, irá depender de uma nova visão
de mundo: uma que permita seu desenvolvimento lógico, na
qual uma explicação viável acerca da natureza ser humano se
encaixe na formatação dialética da ideologia de gênero. O
humanismo secular oferece essa condição, pois parte de uma
narrativa de síntese para a origem da vida e da natureza
humana fundada no naturalismo científico. James Sire chama
o humanismo secular de “naturalismo na prática”[24]. Abrem-
se as portas necessárias para o estabelecimento de
identidades sexuais não binárias. As definições de
identidades não-binárias do movimento LGBT+ é uma expressão
exata desse fato. O “não-binarianismo sexual” é a síntese
dialética da sexualidade humana. Conforme o caso de Sam
Smith, nos países de língua inglesa, as pessoas que assim se
identificam desejam ser chamadas de “they/them”, pois esse
é um pronome plural da terceira pessoa que vale para homens,
mulheres, ou grupo de ambos os sexos, uma síntese de gêneros.

Fato é que a homossexualidade sempre existiu na história da


humanidade, o que a própria Bíblia relata já em Gênesis 19.
Contudo, em várias culturas era vista como um ato, ou um
estilo de viver. Para a moralidade judaico-cristã, trata-se
de um pecado, resultado da queda. A correlação com a
identidade do indivíduo desligada de sua biologia é algo
novo que ocorre na sociedade ocidental da atualidade. Isso

23
é fruto de uma cultura que absorveu uma maneira peculiar de
ver e interpretar o mundo, a existência, o ser humano, a si
mesmo. Uma cosmovisão majoritária que oferece uma
metanarrativa de começo impessoal, regida pelo acaso,
resumida à matéria, sem propósitos previamente
estabelecidos, e em constante transformação, enseja tal
leitura dialética da sexualidade.

No filme A Origem (título original, Inception) – Dominick


Cobb, personagem de Leonardo DiCaprio, é pago para colocar
na cabeça de um jovem executivo, por meio de sonhos
induzidos, uma ideia que irá comprometer o império econômico
legado de seu pai. No início do longa-metragem, podemos
encontrar as seguintes linhas:

Qual o parasita mais resistente? Uma bactéria, um vírus, um


verme intestinal? A ideia! Uma vez que a ideia controla sua
mente, é quase impossível resistir. […]

A questão não é de profundidade. Você precisa da versão mais


simples da ideia a fim de que ela cresça naturalmente na
mente do seu sujeito. É um ato sutil.[25]

Juntamente com outros conceitos acolhidos pelo humanismo


secularista, a ideia de um ser humano como síntese de
mutações biológicas trouxe consequências à civilização
ocidental, pois colaborou para o enfraquecimento do legado
ético de uma cultura que até então havia resistido por
milênios. O abalo foi sentindo em todas as áreas da natureza
e das relações humanas. A sexualidade não saiu ilesa. [26]

Conclusão

No primeiro item do artigo restou demonstrada que a ética


sexual cristã é uma conclusão coerente de sua cosmovisão. A

24
importância de cada elemento de uma visão de mundo se dá
pelos desdobramentos lógicos de seus enunciados. Os
pressupostos metafísicos, ontológicos, epistemológicos e
éticos se conectam de forma indissociável. A fé cristã tem
seus quatro pilares fundamentais na metanarrativa da
criação, queda, redenção e consumação. A moralidade
relacionada às relações humanas parte da sua teologia
criacional. Adão e Eva históricos criados à imagem e
semelhança de Deus com propósitos biológicos, sociais e
espirituais pré-definidos e permanentes entregam à
humanidade uma natureza definida de gênero, bem como o
cumprimento de certa ética em sua sexualidade.

Na segunda parte do texto, buscou-se destacar a antítese


como outro aspecto fundamental da cosmovisão cristã com
consequências diretas na sua ética sexual. A característica
da antitética é a oposição inconciliável de duas teses. Ela
é, na definição simples de Dooyeweerd, oposição. Se a
antítese é o antagônico, o contrário que não aceita a
possibilidade de mistura com aquilo que lhe é oposto, a
síntese, por sua vez, é o germe de teses opostas que formam
uma nova tese conjunta. No pensamento cristão, as verdades
e os pressupostos fundamentais são antitéticos,
inegociáveis, e jamais a síntese do exercício dialético.

O terceiro ponto deste trabalho expôs que a ideologia de


gênero não poderia ter desenvolvido sua tese de diversidade
sexual em uma cultura majoritariamente cristã, justamente
por causa da rigidez da ética cristã sexual derivada do livro
de Gênesis e da mentalidade antitética que permeava a
cristandade. Foi somente com advento do humanismo secular,
como resultado tardio das bases históricas no movimento
Renascentista e no Iluminismo Racionalista, que a ideologia
em questão encontrou solo para produção intelectual e
aceitação na sociedade. Deste ponto, podemos, então, partir

25
para algumas reflexões conclusivas importantes a respeito da
temática proposta.

O humanismo secular e pós-cristão apresenta-se como adepto


necessário da dialética religiosa, nos termos apresentados
por Dooyeweerd, em que “o resultado é que ela impulsiona o
pensamento e a prática da vida de um lado para o outro”.
Muito interessante o reconhecimento do Movimento Nacional
Holandês, que, em 12 de maio de 1945, “fez um apelo aos
holandeses num manifesto que decisivamente rejeitava a
antítese cristã”[27], no seguintes termos:

Para promover a sua própria comunidade nacional e para manter


um lugar digno entre as nações, o povo dos Países Baixos
precisa, acima de tudo, de uma renovação espiritual
alimentada pelas nascentes do cristianismo e do humanismo
que sempre foram nossas fontes de força. […] Especificamente,
a antítese cristã e a luta de classes postulada pelo marxismo
já não são princípios úteis para a solução dos problemas
sociais de hoje…

Herman Dooyeweerd abre sua obra Raízes da Cultura Ocidental


justamente comentando a declaração acima, demonstrando a
importância do tema para a obra:

O apelo do Movimento Nacional Holandês, de fato, deu-lhes


uma forma específica. Em vez de uma antítese entre as visões
cristãs e humanistas da vida, o apelo recomendava uma
síntese. Isso apelava para a unificação, em vez de para uma
oposição absoluta, de modo que a força da nação holandesa,
que tinha sido alimentada pelas tradições espirituais tanto
do cristianismo quanto do humanismo, pudesse então ser
agrupada novamente na unidade nacional.[28]

26
Ora, isso que o Movimento Nacional Holandês propôs no século
passado nada mais é do que a repetição do culto ao Imperador
de Roma: cada um poderia adorar seus deuses locais, mas todos
teriam de declarar que César é κύριος. O culto romano e o
humanismo da Holanda pós-guerra apresentam propostas
idênticas de síntese entre suas cosmovisões e o cristianismo.
E a tensão entre César e Cristo é a mesma que hoje existe
entre o humanismo secular e a antítese cristã. Porém, como
Dooyeweerd destaca, a dialética religiosa carece de síntese
real, posto que “a conciliação torna-se impossível por causa
do próprio motivo básico”. Tanto para César como para o
Movimento Nacional Holandês, não há que se combater o que se
pode imiscuir, pois promiscuidade é parte dos seus axiomas
dialéticos. Ou seja, a síntese proposta é, na verdade, a
imposição dos seus próprios valores.

Jordan Peterson, psicólogo canadense e professor


universitário, ganhou notoriedade ao se recusar a utilizar
os pronomes neutros em cumprimento do Bill C-16, aprovado
pelo Parlamento do Canadá, que proíbe discriminação com base
de identidade de gênero e expressão, conforme a Lei de
Direitos Humanos do Canadá. Veja como o professor revela o
que aqui estamos a destacar, de que apesar de a ideologia de
gênero apresentar uma leitura dialética da natureza e da
sexualidade humana, ela acaba por tentar se impor sobre que
lhe opõe. Segundo reportagem da BBC, esta é a posição de Dr.
Peterson:

Dr. Peterson diz que ele não se opõe às pessoas trans ou à


escolha de qual pronome tradicional eles preferem.

“Se a pessoa transexual padrão deseja ser considerada como


ele ou ela, meu senso é que eu irei me referir a você de
acordo com a parte que você parece estar atuando”, ele disse.

27
Mas ele argumenta que termos como “identidade de gênero”, e
“expressão de gênero” são muito amplos, são as “proposições
de construcionismos sociais radicais”, e estão sendo usados
para intimidar oponentes à submissão.[29]

Hoje é comum ouvirmos falar da modalidade de cristão gay, e


isso ao mesmo tempo que se nota um combate à ideia de família
tradicional cristã. Isto é, há uma ideia de síntese entre
cristianismo e diversidade sexual que sucumbe à realidade de
que são teses inconciliáveis. É preciso estar atento ao fato
de que, assim como Roma tentou colocar os primeiros cristãos
debaixo de seu guarda-chuva por meio da mistura de religiões,
e na Holanda se propôs a uma síntese da antítese cristã com
o humanismo a fim de uma suposta unidade nacional, a síntese
da ética sexual cristã com a ideologia de gênero nada mais
faz que submeter a fé à ideologia.

Rosaria Butterfield, em seu artigo What is wrong with gay


Christianity? What is Side A and Side B anyway?[30], traz-
nos esse fato de maneira de maneira pontual:

No início dos anos 2000, pessoas com atração persistente e


duradoura pelo mesmo sexo se juntaram debaixo do guarda-
chuva do termo cristão gay. Eles são apoiados pelo Gay
Christian Network, ou Side A (que sanciona casamento do mesmo
sexo e acredita que homossexualidade é apenas uma das muitas
formas da diversa sexualidade que a igreja deveria aceitar),
e a comunidade inter-rede de Amizade Espiritual, ou Lado B
(que acredita que homossexualidade não é uma questão
moralmente culpável, ainda que seja uma consequência do
quebrantamento da Queda; Side B ensina contra a prática
sexual homossexual, mas somente por respeito à tradição
Cristã). Enquanto o Side B busca abraçar padrões sexuais
bíblicos, porque vê orientação sexual como uma categoria
acurada da personalidade (i.e., existe tal coisa qual uma

28
pessoa gay – essa condição de gay descreve quem alguém é na
essência), sua teologia não permite de qualquer maneira um
entendimento de por que homossexualidade, até mesmo em nível
do desejo, é pecaminoso e necessita de graça e
arrependimento. Para o Cristão Side B, homossexualidade é
uma sexualidade – uma de muitas.

[…]

Ao passar dos anos, nós temos visto muitos Cristãos do Side


B desertar para o Side A, declarando que Deus sanciona
uniões gays. E eu predigo que veremos muitos mais desertores,
desde que a teologia atrás do Side B é biblicamente
insustentável. Como qualquer um de nós pode lutar contra um
pecado que não odiamos? Ao mesmo tempo, precisamos separar-
nos do pecado que odiamos. Isso pode ser um problema muito
desafiador para um cristão que experimenta atração pelo mesmo
sexo, um problema que se torna excessivamente mais desafiador
se alguém pressupõe a identidade social de “cristão gay”.

A religião é antitética por natureza. E sendo a ideologia de


gênero parte de uma visão de mundo particular, ela, de igual
modo, acaba por revelar sua antítese religiosa, pois o
próprio emprego de uma leitura dialética da realidade em sua
integralidade torna-se antitético. Os que se enveredam para
outras visões de mundo, ao mesmo tempo que tentam manter o
passo em dois caminhos, acabam caindo completamente para um
dos lados. Como Dooyeweerd sinalizou: “a dialética religiosa
carece de síntese real”. Por isso, Butterfield foi ao âmago
da questão: “a teologia atrás do Side B é biblicamente
insustentável. Como qualquer um de nós pode lutar contra um
pecado que não odiamos?”.

Encaminhando-se ao final destas reflexões conclusivas, vale


citar a lição de John Frame, em seu livro “A History of

29
Western Philosophy and Theology”, no qual o autor ensina que
as heresias na história da Igreja seguem um padrão que se
inicia na síntese entre as Escrituras com uma filosofia não-
cristã. Logo, então, vem a urgência de lidar com o problema,
emergindo um reformador para liderar os ortodoxos através
das verdades fundamentais, e finalmente um consolidador após
a controvérsia para repensar a teologia a partir do
conhecimento adquirido.[31]

O que deve preocupar os pensadores cristãos da atualidade,


portanto, não é a ideologia de gênero em si, sua cosmovisão
humanista, ou a sua leitura dialética da natureza humana.
Esses são, na verdade, problemas dos secularistas que creem
nessas coisas. O que precisa ocupar nossos estudos é a pureza
da Palavra de Deus e a atenção permanente contra tentativas
de síntese da fé cristã com outras filosofias, dentre as
quais, o naturalismo filosófico e o humanismo secular, que
se apresentam como as maiores ameaças da atualidade à
cosmovisão cristã.[32]

Neste artigo expomos a visão de mundo que sustenta a


ideologia de gênero a fim de alcançarmos uma compreensão
mínima que sua complexidade merece, contrastá-la com a ética
sexual cristã e, finalmente, demonstrar que a fidelidade à
autoridade das Escrituras não oferece espaço para distorções
no ensino bíblico a respeito de homem, mulher e seus papéis
designados pelo Criador. Homossexualidade não é algo novo na
história da humanidade, e combatê-la não é o objetivo final
do cristão, mas sim o é erguer o estandarte do puro evangelho
que carrega a verdade que, por si só, tem o poder de afastar
todo o erro e pecados que lhe são opostos, inclusive aqueles
relacionados à sexualidade. Todavia, é momento de enfrentar
o enfraquecimento epistemológico que o cristianismo enfrenta
por conta de tentativas de síntese com o cientificismo
humanista secular.

30
É louvável a iniciativa de muitos cristãos sinceros em
desejar participação efetiva no mundo científico. Seus
esforços nos campos específicos do conhecimento devem ser
respeitados e encorajados. No entanto, a mesma suspeita que
cientistas podem ter de uma aproximação amadora dos teólogos
acerca de pesquisas científicas complexas, os teólogos podem
ter dos cientistas quando estes lidam com teorias que possuem
profundas implicações teológicas, filosóficas e éticas.

Cabe-nos, assim, ressoar o alerta de J.P. Moreland, quando


diz que “a adoção da evolução teísta tem minado a autoridade
da doutrina e do ensino ético bíblico”. Trata-se de um ponto
delicado, e que toca a convicção de muitos estudiosos
cristãos, seja das ciências naturais, da teologia, ou da
filosofia. A macroevolução tem sido considerada por mais de
um século como uma explicação plausível (talvez a única na
academia científica) para o desenvolvimento da vida na terra
e da humanidade, mas que até hoje não encontrou sua prova
cabal. Design inteligente e a complexidade irredutível, por
sua vez, são teorias que têm ganhado força e conquistado
adeptos no meio científico, e oferecem uma alternativa de
aproximação ao criacionismo cristão ortodoxo, ainda que não
sejam necessariamente ligadas a uma divindade específica. Fé
e ciência são compatíveis. Até porque a verdadeira ciência
só pode ser derivada de Deus, pois ele é a metafísica
infinita, revelador da verdadeira epistemologia, que confere
ordem à criação, a única base da boa ética, reflexo do
caráter do seu ser.

Enfim, os desdobramentos éticos das hipóteses sobre as


origens não podem ser negados. No caso deste estudo, tais
implicações foram aplicadas ao campo da sexualidade,
buscando-se desvendar suas consequências tanto para a moral
cristã quanto para o surgimento da ideologia de gênero. Tal
discussão é inevitável, devendo os cristãos dar continuidade

31
a ela nos diversos campos de estudo e da ciência em que estão
envolvidos, proporcionando diálogos saudáveis e produtivos
em todas as áreas do saber da natureza e das relações
humanas, especialmente acerca deste tópico da sexualidade.
Espera-se que o presente artigo acabe por estimular o bom
debate.

Fé, ética e ciência são amigas inseparáveis quando submetidas


às verdades das Escrituras reveladas pelas três Testemunhas
da criação.

SDG

_________________________
[1] SIRE, James W. The Universe Next Door: a basic worldview
catalog. 4ª ed. Downers Gove/IL, InterVarsity Press, 2004.
Os conceitos apresentados neste artigo sobre cosmovisão são
tratados nesta obra.

[2] BARRS, Jerram. Francis Shaeffer: the man and his message.
Reformation 21: The Online Magazine of the Alliance of
Confessing Evangelicals. Edição de novembro de 2006.
Disponível em https://www.covenantseminary.edu/francis-
schaeffer-the-man-and-his-message/. Acesso em 20 de setembro
de 2018.

[3] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São


Paulo, Ed. Cultura Cristã, 2015, p. 55.

[4] Todas citações bíblicas neste artigo são extraídas da


versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada.
Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/ara. Acesso
em 29 de setembro de 2019.

32
[5] MORELAND, J.P. How Theistic Evolution Kicks Christianity
Out of the Plausibility Structure and Robs Christians of
Confidence that the Bible is a Source of Knowledge. En
(editores). MORELAND, J.P.; MEYER, Stephen C.; SHAW,
Christopher; GAUGER, Ann K.; GRUDEM, Wayne. Theistic
Evolution – A Scientific, Philosophical, and Theological
Critique. Wheaton/IL, Crossway, 2017, p. 633. (Tradução
minha)

[6] Idem, p. 635 e 636.

[7] Ibidem, p. 658.

[8] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São


Paulo, Ed. Cultura Cristã., 2015, p. 20.

[9] A macroevolução, na qual o surgimento de novas espécies


se dá a partir de espécies pré-existentes, é uma teoria que
carece de prova definitiva. O ponto que se faz neste artigo
acerca do assunto ao tratar de Gênesis e criação é que há um
inegável preço teológico, filosófico e ético a ser pago pelo
teoevolucionismo, com implicações ao tema que aqui nos
interessa acerca da moralidade sexual.

[10] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São


Paulo, Ed. Cultura Cristã. 2015, p. 16.

[11] SCHAEFFER, Francis A. How Showld We Then Live? The rise


and decline of western thought and culture. Wheaton/IL,
Crossway, 1983, p. 163. (Tradução minha)

[12] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São


Paulo, Ed. Cultura Cristã, 2015, p. 27.

[13] Idem, p 25.

33
[14] Ibidem, p. 27.

[15] No Facebook do Reino Unido, por exemplo, já em 2014, 71


possibilidades de identidade sexual eram encontradas na
configuração de perfil pessoal. Disponível em
https://www.telegraph.co.uk/technology/facebook/10930654/Fa
cebooks-71-gender-options-come-to-UK-users.html, acesso em
21 de setembro de 2019.

[16] SIRE, James W. The Universe Next Door: a basic worldview


catalog. 4a ed. Downers Gove/IL, InterVarsity Press, 2004,
p 84.

[17] FRAME, John M. A History of Western Philosophy and


Theology. Phillisburg/NJ, P&R Publishing, 2015, p. 756.
(Tradução minha).

[18] KELLER, Timothy. The Reason For God: belief in an age


of skepticism. New York/NY, Penguin Group, 2008, p. 13.

[19] ROBERT L. Thoburn. The Children Trap: The Biblical


Blueprint for Education. Oregon City, Dominion Press, 1986,
pg. 81-82. Tradução do trecho de Felipe Sabino, disponível
em: http://www.monergismo.com/textos/educacao/todo-mundo-
religiao_robert-thoburn.pdf, acesso em 21 de setembro de
2019.

[20] SIRE, James W. The Universe Next Door: a basic worldview


catalog. 4a ed. Downers Gove/IL, InterVarsity Press, 2004,
p. 215. (Tradução minha).

[21] BONISSONI, Natammy Luana de Aguiar. A inviabilidade de


subsistência de um ambiente multicultural Laico. Tese
submetida ao curso de Doutorado em Ciência Jurídica da
Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, em dupla titulação

34
com o Douttorato di ricerca in Scienze Giuridique, da
Universidade de Perugia, como requisito parcial à obtenção
de título de Doutor em Ciência Jurídica, 2017, p. 52.

[22] Disponível em: https://www.bbc.com/news/magazine-


26089486. Acesso em 17 de setembro de 2019. (Tradução minha).

[23] Disponível em:


https://twitter.com/samsmith/status/1172519872464662530.
Acesso em 21 de setembro de 2019.

[24] SIRE, James W. The Universe Next Door: a basic worldview


catalog. 4a ed. Downers Gove/IL, InterVarsity Press, 2004,
p 76.

[25] A ORIGEM (Título original: Inception). Direção:


Chistopher Nolan. EUA/Reino Unido. Legendary Pictures,
Syncopy Films, 2010. 148 min. (Tradução minha)

[26] O autor deste artigo está ciente de importantes teólogos


e instituições cristãs que defendem o evolucionismo teísta,
portanto não se tem a intenção de atacar a credibilidade
destes, que, inclusive, subscrevem à ética sexual cristã
histórica e até militam contra a ideologia de gênero. O ponto
é demonstrar que a possibilidade de desdobramento lógico
inexistente na interpretação literal de Gênesis no que diz
respeito a “cada animal segundo a sua espécie” torna-se
plausível se entendermos que o ser humano é uma espécie em
evolução, abrindo a brecha de narrativa necessária para a
ideologia de gênero. Inclusive, Tim Keller, em seu artigo
“Criação, Evolução e Cristãos Leigos”, publicado no Brasil
pela Associação de Cristãos na Ciência
(https://www.cristaosnaciencia.org.br/recursos/criacao-
evolucao-e-cristaos-leigos-tim-keller-parte-1/) defende que
é possível crer em evolução como um processo biológico sem

35
ter de, necessariamente, acreditar na Grande Teria da
Evolução, ou seja, em evolucionismo como uma cosmovisão. É
digno ainda de menção o argumento evolucionário contra o
naturalismo, de Alvin Plantinga, que também é explicado no
artigo citado. No entanto, o que o presente texto pretende
colocar no tocante ao tema em debate é a possibilidade de
racionalização de uma narrativa que a teoria da evolução
proporciona para a relativização da ética sexual.

[27] DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São


Paulo, Ed. Cultura Cristã. 2015, p. 13

[28] Idem, p. 13-14.

[29] Disponível em https://www.bbc.com/news/world-us-


canada-37875695. Acesso em 25 de setembro de 2019. (Tradução
minha).

[30] Butterfield, Rosaria C. What is wrong with gay


Christianity? What is Side A and Side B anyway? Disponível
no site https://rosariabutterfield.com/new-
blog/2018/2/14/what-is-wrong-with-gay-christianity-what-is-
side-a-and-side-b-anyway. Acesso em 06 de junho de 2019.
(Tradução minha).

[31] FRAME, John M. A History of Western Philosophy and


Theology. Phillisburg/NJ, P&R Publishing, 2015, p. 170-171.
(Tradução minha).

[32] Frame aponta que o platonismo cristão de Orígenes levou


à visão de Ário que o Filho de Deus é um ser criado; Atanásio
tem uma luta histórica contra um Império arianizado, seguida
pela reconstrução teológica de Agostinho. No paralelo do
século XVI, o escolásticismo medieval se apresentava como
uma síntese entre a Bíblia, Platão e Aristóteles, o que levou

36
à heresia da salvação pelas obras – com seu extremo em
Tetzel. Lutero forçou o princípio da justificação pela fé
somente, e Calvino consolidou a doutrina. Aliás, Frame aponta
que a própria disputa entre Galileu Galilei e a Igreja
Católica não foi um debate entre a Bíblia e a ciência, e sim
entre os modelos cosmológicos de Aristóteles e Copérnico: “A
Renascença não foi um tempo de descrença. Todos os pensadores
que eu mencionei professavam o Cristianismo. Mas a Bíblia
não tinha um papel central nos seus pensamentos (exceto como
um objeto para os acadêmicos textuais analisarem). No famoso
encontro entre Galileu e a igreja sobre heliocentrismo,
nenhuma das partes se referia muito às Escrituras. O conflito
não era tanto sobre a ciência e a Bíblia quanto o era sobre
a ciência e a cosmologia Aristotélica que a igreja tinha
imposto sobre a Bíblia. Ainda que os pensadores da Renascença
tivessem novas ferramentas linguísticas e textuais para
entender as Escrituras, nenhum deles (até a Reforma) desafiou
as pressuposições filosóficas e culturais com a cosmovisão
da Bíblia.” FRAME, John M. A History of Western Philosophy
and Theology. Phillisburg/NJ, P&R Publishing, 2015, p. 167.
(Tradução minha). Ou seja, não se tratava de um conflito
entre fé e ciência, e sim de um problema advindo da síntese
das Escrituras com filosofia humana que se tomou como
ciência. Ainda, é bom lembrar que o próprio Galileu foi um
Cristão devoto até o fim de sua vida, e nunca viu um divórcio
da religião e ciência, mas apenas um casamento saudável. Nas
suas palavras, “Deus é conhecido pela natureza em suas obras,
e pela doutrina na Palavra revelada”. Ou seja, Galileu
Galilei, que defendeu o heliocentrismo, acreditava na
Bíblia.

37
O drama dos refugiados: caridade e
responsabilidade
A sabedoria indica que, ao procurarmos opinar sobre qualquer
assunto, devemos fugir de conclusões precipitadas e sem
embasamento prático e teórico. O conciliar de teoria e
prática – em linguagem teológica, ortodoxia e ortopraxia –,
temperando o discurso com experiências pessoais e sempre com
a virtude em mente, podemos incentivar os outros em prol da
mesma causa, mais especificamente, a promoção do bem comum.

O papa João XXIII, na carta encíclica Pacem in Terris,


levando em conta qual a perspectiva bíblica e confessional
sobre a vida em comunidade e quais métodos deveriam ser
utilizados para construção e manutenção de uma civilização
saudável, equilibrada e crente em Deus – refletindo tais
atributos em suas vidas, instituições, construção de leis e
trato uns para com os outros – preleciona a respeito da
natureza do bem comum aplicada na ordem entre os seres
humanos:

Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é


fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa;
isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por
essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam
direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se,
por conseguinte, de direitos e deveres universais,
invioláveis, e inalienáveis. E se contemplarmos a dignidade
da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos
deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior. Trata-se,
com efeito, de pessoas remidas pelo Sangue de Cristo, as
quais com a graça se tornaram filhas e amigas de Deus,
herdeiras da glória eterna.[1]

Uma análise saudável, quer no aspecto jurídico, quer no


político, está na pirâmide que tem por lista de prioridades:

38
1. O fim supremo e principal do homem; 2. A dignidade da
pessoa humana; 3. Consciência da nossa condição pecaminosa;
4. Qual a função do Estado para garantir uma vida honesta ao
seu povo, sem deixar de exercer práticas de caridade, em
nome da efetivação do bem comum a nível internacional; 5.
Cooperar internacionalmente, sem abandonar a soberania
nacional e a responsabilidade, equilibrando benevolência,
preservação cultural e segurança nacional.

Quando o tema é “refugiados”, ficamos em dúvida por qual


caminho seguir: 1) os ultranacionalistas que defendem o
fechamento das fronteiras em nível integral (antes que se
queira utilizar o presidente Donald Trump como exemplo,
explicaremos mais para a frente que o presidente dos Estados
Unidos não se encaixa nessa categoria); e 2) os progressistas
que defendem uma abertura desregrada e aparentemente
benevolente para abrigar todos os necessitados.

Houve vários debates no Brasil por causa da portaria nº 666


de 2019 do Ministro da Justiça Sergio Moro[2] – uma medida
importante para o debate sobre a migração, no sentido de
concretizar uma ação equilibrada e prudente dentro da
República brasileira. Longe de uma análise meramente
ideológica, podemos falar sobre o tema com base na realidade
empírica, seleção de riscos, medição da empatia, e percepção
da verdadeira piedade, sem descartar a responsabilidade que
deve estar presente nas medidas tomadas pelo governante, e
dos nossos requerimentos enquanto cidadãos e cristãos.

O primeiro ponto importante que nós, enquanto brasileiros,


devemos considerar, é a lição que David Platt nos deixa em
seu livro Contracultura, escrito para tratar da natureza do
chamado compassivo que deve nos acompanhar: esta convocação
deve influenciar diretamente nossas pautas políticas e
avaliações legislativas, o que nos faz estar “amparados pela

39
sabedoria de Deus, como cidadãos compassivos, temos de amar
as almas imigrantes em nossa comunidade. […] É preciso
considerar como aplicar o evangelho no âmbito de uma
multiplicidade de cores e culturas para a glória de Deus.”[3]
Isto não implica em esquecer que o governo é instrumento de
Deus para “punir os praticantes do mal e honrar os que fazem
o bem” (1Pe 2.14) – se o governo tem a função perante o seu
povo, da mesma forma ele deverá agir com aqueles que desejam
viver em um determinado país, a saber, o estrangeiro.

1. O Estrangeiro na perspectiva das Sagradas Escrituras

Na Escritura encontramos diversas situações em que o estranho


participa da rotina do povo de Israel. Quer seja para
descrever uma nação pecaminosa, como em Isaías 1.7 (“A vossa
terra está assolada, as vossas cidades, consumidas pelo fogo;
a vossa lavoura os estranhos devoram em vossa presença; e a
terra se acha devastada como numa subversão de estranhos”),
ou para retratar nossa condição universal perante Deus,
conforme 1Crônicas 29.15 (“Porque somos estranhos diante de
ti e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são
os nossos dias sobre a terra, e não temos permanência”).
Trazer apenas um dos lados da moeda empobrece o debate e não
produz os frutos necessários para que alcancemos uma
concepção sóbria a respeito do assunto: precisamos entender
o conceito de refugiados no sentido bíblico e responder até
aonde vai a aplicação do princípio da dignidade da pessoa
humana.

Ao olhar para esses textos e seu chamado para amar o


peregrino ou estrangeiro, no entanto, é preciso ter cuidado
para não se transferir para o estrangeiro uma interpretação
contemporânea ou lê-los de maneira anacrônica. Uma abordagem
comum a tais textos das Escrituras hoje tenderia a argumentar
que o amor ao próximo imigrante nas Escrituras supera
preocupações importantes relacionadas à lei de imigração.

40
Deve-se notar, no entanto, que os imigrantes nos tempos do
Antigo Testamento não viviam em nossa era moderna de Estados-
nação soberanos onde a imigração de estrangeiros é
discutivelmente muito mais regulamentada de acordo com a lei
estatal. Embora os mandatos bíblicos de amar e acolher o
estrangeiro em nosso meio como nosso vizinho permaneçam como
a lei de Deus, não podemos ignorar as demandas que as leis
civis impõem aos cidadãos e imigrantes nos contextos
contemporâneos dos EUA e internacionais. Além disso, devemos
afirmar o direito do Estado de estabelecer leis e políticas
relativas a assuntos como imigração, incluindo leis que
limitam a imigração de várias maneiras para a proteção e
bem-estar de seus cidadãos. Assuntos como segurança nacional
e tráfico de pessoas, por exemplo, são áreas legítimas e
necessárias de governança, que buscam restringir o mal e
promover o bem (Rom. 13: 3-4).[4]

O primeiro ponto importante, é que a pauta dos refugiados


vai muito além das questões econômicas e de conflitos – além
do problema que pode envolver os refugiados, é importante
reconhecer que nas Sagradas Escrituras encontraremos as
devidas ponderações para que a ordem não seja subvertida em
face da recepção do estrangeiro. Por este motivo, a Bíblia
orienta em tratar as experiências no quesito dos movimentos
migratórios. Em Deuteronômio 26.5 encontramos o povo de Deus
como estrangeiro, sofrendo maus tratos, aflição e
perseguição por parte do povo egípcio – tais termos,
naturalmente, possuem uma conotação negativa a respeito da
perseguição e atraem o livramento de Deus para o povo de
Israel, conforme disposto no versículo 8.

Já em Josué 17.12, Juízes 1.21, assim como em outras


passagens do Antigo Testamento, encontraremos situações
envolvendo a participação de estrangeiros no meio do povo de
Israel. Entretanto, a acolhida também implicava que o

41
estrangeiro observasse as leis do país – como por exemplo em
Neemias 13.15-22, em que o profeta percebe a não observância
do sábado – inclusive por parte dos tírios que traziam
mercadorias para vender – e age a fim de que todos comportem-
se em observância à lei, vedando a ida dos comerciantes
estrangeiros no sábado para realizar as práticas de mercado.
Eles deveriam estar sujeitos à lei civil do povo de Israel.
Logo após, nos versículos 23 até o 29, encontraremos a
reprovação do profeta ao casamento misto, e, em seguida, o
que Neemias elenca como limpeza de toda estrangeirice.[5]

Este cuidado com todos os aspectos da vida se dá pois o


Israel do Antigo Testamento é uma nação em aliança com o
Deus eterno, e este pacto é regido por um código de leis
revelado, a Lei (Torah).

Ela contém 613 leis – 248 positivas e 365 negativas – e


abrange as esferas moral, social e cerimonial. Nenhuma área
da vida deixou de ser tratada pela Lei. Por que Deus sentiu
a necessidade de estar tão intimamente envolvido em todos os
detalhes da vida dos israelitas? […] Os teólogos estabelecem
[…] razões básicas: Israel deveria ser: […] separado para um
propósito. […] Israel deveria ser separado das nações para
que pudesse ser uma luz para as nações, uma luz que tornasse
conhecida a glória e grandeza de Deus.[6]

A passagem chave para tratar da responsabilidade que deveria


ser cumprida, tanto por parte de quem recebia, quanto do
estrangeiro que era recebido, está em Gênesis 17.9-14, que
trata da constituição da circuncisão como obrigatória para
o povo da aliança, e para qualquer pessoa que não fosse da
estirpe israelita.

Dentre as provisões do Pacto da Lei, percebe-se que há uma


série de motivos para que a legislação fosse cuidadosa com

42
os estrangeiros. Assim como o estrangeiro deveria ser tratado
com justiça e equidade, a comunidade israelita deveria ter
sua crença e integridade preservadas, o que consiste em uma
cobertura dos aspectos econômicos, religiosos e políticos:
(1) Era proibida a associação entre israelitas e estrangeiros
(Êx 23.23-25; Dt 7.16-26 – isto para que o povo não se
afastasse da revelação bíblica de que existe um único e
soberano Deus eterno; (2) Os israelitas não poderiam firmar
pactos com outros povos, e principalmente, com os deuses
destes povos (Dt 7.2); (3) O povo foi recomendado a não
pesquisar, ou efetuar qualquer enlace ou imitação, com os
estrangeiros (como na Cartago, norte da África, em que havia
o sacrifício de crianças), conforme disposição de
Deuteronômio 12.29-31. (4) O estrangeiro não podia
participar da vida política, mais especificamente no quesito
de eleição e deveres do rei (Dt 17.15).

Apesar de tais considerações, encontramos argumentos que


taxam como inválido para análise da pauta dos refugiados
aquilo que está disposto no Antigo Testamento – o que é um
equívoco. Se analisarmos as motivações que estão no interior
de todas as decisões legais presentes no arcabouço do povo
de Israel, teremos esclarecida uma série de fatos que
continuam a mover as diferentes legislações, a nível
internacional, sobre o equilíbrio entre recepção responsável
dos refugiados, e firmeza para imposição da penitência, em
caso de necessidade.

Que a legislação presente no Antigo Testamento possui um


caráter pedagógico isso é um fato.[7] Entretanto, indo mais
além de questões de orientação para os nossos dias, o Novo
Testamento corrobora aquilo que está no Antigo Testamento.
Das situações mais proeminentes que confirmam tal assertiva,
podemos colher o ensino de Cristo presente em Mateus 5.17-
18, onde Cristo salienta a sua missão primaz de cumprir a

43
lei. Na mesma toada, a passagem de Mateus 22.34-40, que faz
menção e reverbera o conteúdo presente na lei do Antigo
Testamento. A estrutura base da questão legislativa no Antigo
Testamento gira em torno de mandamentos de ordem política e
social, motivados por princípios éticos e teológicos.
Buscamos inspiração tendo em vista que a lei temporal, a de
ontem e a de hoje, tem inspiração na lei eterna – cabe a nós
perceber e filtrar o tema de forma equilibrada:

Como afirmado acima, ao usar mandatos bíblicos na igreja


para amar e acolher o estranho, não podemos ignorar a
distinção entre reinos espirituais e temporais. É também o
caso que, ao desenhar distinções entre Israel e os
estrangeiros, o Antigo Testamento não oferece posições
vinculativas ou políticas sobre a lei de imigração em geral
ou ‘ilegal’ à imigração estritamente falando. Algumas
abordagens para os textos das Escrituras que lidam com
imigrantes podem tentar usar os dados bíblicos para defender
ou justificar formas particulares de aplicação da imigração
hoje. Os cristãos não devem usar o Antigo Testamento, no
entanto, para argumentar por amor do imigrante de maneiras
que diminuem o significado do Estado de Direito como ele
funciona nos Estados-nação hoje. Da mesma forma, os cristãos
devem ser cautelosos sobre o uso de distinções particulares
entre Israel e os estrangeiros feitos no Antigo Testamento
para defender formas particulares de lei de imigração ou de
aplicação da lei hoje, ou para argumentar que tais distinções
bíblicas antigas podem ou devem ser replicadas em termos de
relação entre cidadãos e nacionais estrangeiros em Estados-
nação contemporâneos.[8]

No mesmo sentido que utilizamos a lei do Antigo Testamento


para justificar modelos governamentais que são úteis para os
nossos dias, o tratamento equilibrado entre justiça e piedade
é um imperativo básico para o nosso pensamento enquanto

44
cristãos em busca do efetivo engajamento cultural na política
do nosso país.

Longe de ser um artigo que busca defender apenas um lado da


moeda, vale ressaltar como a visão luterana trata a respeito
do tema, entendimento este que guarda estrita semelhança com
várias igrejas evangélicas históricas, dedicando-se no
debate sobre a imigração de forma sóbria, nas palavras de
Gerald B. Kieschnick:

Deus, em Sua Palavra, mostra consistentemente Sua


preocupação amorosa com ‘o estrangeiro em nosso meio’ e
direciona Seu povo a fazer o mesmo. […] Para cumprir nossa
obrigação cristã, também solicitamos que o ato de caridade
de prestar assistência a estrangeiros sem documentos que não
estejam envolvidos em atividades ilegais não seja
criminalizado ipso facto.[9]

Tais questões não se confundem com a perspectiva salvífica


do Novo Testamento, que esclarece o alcance do sacrifício de
Cristo no mundo, a saber, todos os povos, sem exceção, devido
ao ganho de uma nova personalidade cristã, como se aprende
em Colossenses 3.10-11.

2. Implicações no século XXI

Assim como a legislação do Antigo Testamento não deixou de


equilibrar a recepção dos refugiados com a repressão em casos
de necessidade, o ordenamento jurídico brasileiro, temperado
com questões específicas do nosso tempo presente, também é
regido por alguns moldes semelhantes ao da antiguidade
judaico-cristã. Quando percebemos a preocupação do
legislador em o povo não perder sua fé em Deus para crenças
pagãs no Antigo Testamento, logo lembramos da ameaça do
multiculturalismo hoje, que tem como centro de seu objetivo

45
a perseguição cultural local tradicional, conforme
preleciona Theodore Dalrymple: “na imaginação empobrecida
dos multiculturalistas, […] todos os que não pertencem, por
nascimento, à cultura predominante estão empenhados numa
luta conjunta contra a tirania opressiva e ilegítima”[10] –
por este motivo nossa legislação entende que deve ser
impedido, sumariamente, a permanência de pessoas perigosas,
que tenham praticado atos contrários aos princípios e
objetivos dispostos na Constituição brasileira – assim como
cidadãos brasileiros, os estrangeiros que vivem aqui, se não
andarem conforme as vias legais, estão passiveis de
deportação sumária.

A política de imigração ilimitada na Europa, patrocinada por


esquerdistas, deveria servir de lição de que o
multiculturalismo dá certo até que um país receba uma cultura
intolerante, como o islamismo – como se evidencia no aumento
de crimes sexuais cometidos por refugiados islamitas na
Alemanha e que não aparecem nas estatísticas oficiais, para
não alimentar sentimentos anti-imigração.

Quando imigrantes não querem se integrar à sociedade,


forçando o país hospedeiro a aceitar rituais e crenças
externas, ao mesmo tempo que a cultura do país é destruída,
com os nacionais se tornando marginalizados em seu próprio
país, tem-se o fim de qualquer economia, da democracia, e o
próprio colapso da cultura da nação hospedeira – o que
caracteriza suicídio civilizacional.

Não faz sentido preparar a nação para o recebimento de


refugiados, sem manter os cuidados necessários para que a
liberdade religiosa e segurança sejam preservados. A
necessidade deve ser encarada sob alguns pilares
importantes, a saber, (1) o refugiado pode vir por motivos

46
de perseguição religiosa – como os cristãos que estão fugindo
da situação de países que:

[…] perseguem e restringem a liberdade de culto e pregação


cristã […] Afeganistão, Arábia Saudita, Somália, Sudão,
Turquia, Iêmen, Índia, Nigéria, Filipinas, República Popular
da China, Cuba, Coreia do Norte e Vietnã. Hoje em dia, 200
milhões de cristãos vivem sob a ameaça de assédio, prisão,
tortura e execução.[11]

O refugiado religioso vem em razão da opressão sofrida em


seu país de origem – sua composição vem no quesito de
necessidade, busca por proteção e disposição para o
cumprimento das leis brasileiras, o que não se confunde com
aquele que vem fantasiado de refugiado, utilizando a falsa
condição apenas como fachada para efetivar atos como o
estabelecimento de religiões que autorizam ou fomentam
práticas violentas.

A diferença entre a antiguidade e nosso tempo presente é que


a ameaça de mudança religiosa e cultural vem vestida de boas
intenções, ou se aproveita da cooperação internacional para
efetivar seus intentos. Não se trata de pessoas de diferentes
religiões ou nacionalidades vivendo em paz, no mesmo solo.
A questão atual está na desestabilização da soberania
nacional e na varredura da cultura cristã ocidental, bem
como de sua religiosidade.

A motivação para isso não pode ser definida como proselitismo


religioso, em que a pregação e o convencimento para a mudança
de religião pode acontecer – isto é permitido por lei e um
dos pilares do Estado laico colaborativo brasileiro. Na
verdade, o multiculturalismo é orientado por pura aversão ao
cristianismo, onde determinados grupos políticos e
religiosos se utilizam das leis migratórias e do acolhimento

47
como meio para alcançar um fim: promover uma mudança
geopolítica.

A média anual de cristãos mortos desde 1950 chega a 270 mil.


Na atualidade, os cristãos continuam a ser perseguidos,
especialmente em áreas onde o comunismo, o totalitarismo
islâmico e o hinduísmo político tomaram o poder,
respectivamente, na América Latina, na África e na Ásia. […]
No Ocidente, o radicalismo iluminista luta para privatizar
a fé cristã, gerando intolerância e discriminação.[12]

Quando um grupo religioso ou político atenta contra a


soberania nacional e a dignidade da pessoa humana (nomes
extensivos para abraçar a religião, a liberdade de pensamento
e expressão), eles devem ser tratados conforme a legislação
em caráter repressivo (o que não difere do objetivo do
legislador no Antigo Testamento que buscava a preservação do
povo, de sua fé e de suas práticas).

(2) O refugiado econômico: aquele que vem devido a situação


financeira precária do seu país de origem, em busca de
emprego e renda para sustentar a si mesmo e aos familiares.
Um exemplo é a imigração haitiana no Brasil, que iniciou com
força em 2010, devido a questões da natureza, como a
sequência de terremotos – fato este que tirou o mínimo de
estabilidade do povo haitiano –, além de questões políticas.
Estes motivos levaram o povo haitiano a recorrer à imigração,
buscando refúgio no Brasil, sobretudo, em busca de
oportunidades de trabalho.

Para tratar desta modalidade de refugiado, é mister


reconhecer que o discurso progressista não está naquilo que
podemos considerar como efetivo no combate à injustiças e a
pobreza. Quando a pauta dos refugiados ultrapassa aquilo que
no Direito entendemos como cooperação internacional[13] e é

48
orquestrada para consolidação do multiculturalismo e do
progressismo, encontramos, mais uma vez, a subversão de um
bom instituto.[14]

Aquilo que, por natureza, deveria ser uma busca pela redução
da pobreza, torna-se um meio de ressignificação da cultura,
além de estratégia para consolidar pautas como a legalização
do aborto e propagação do ideal gnóstico feminista. A mesma
causa fundamental e subjacente que deu origem à pobreza (a
saber, o pecado), ganha mais corpo no coração da militância
que se utiliza dela como instrumento político. As questões
econômicas que dão ensejo à pobreza material, podem ser
utilizadas como estratégia para consolidar outras
cosmovisões simpáticas ao sistema progressista, o que já é
o caso de países como os Estados Unidos:

Nesse cenário, uma nova recessão econômica atingiu as


principais economias ocidentais, deixando os mercados
mundiais em polvorosa. Como desdobramento do Iluminismo e do
racionalismo, o secularismo se tornou a cosmovisão dominante
na Europa Central e no norte dos Estados Unidos. Com isso,
as novas palavras de ordem se tornaram o relativismo, o
politicamente correto, o multiculturalismo e a compreensão
de laicismo oriunda da revolução francesa, apregoando a
liberdade da religião.[15]

2.1 O que não é acolhimento efetivo de refugiados

É importante dizer o que efetivamente não é projeto com fim


de promover a dignidade da pessoa humana por meio da
imigração. Quando pessoas de outras origens religiosas e
políticas se utilizam da cadeira pública para ditar
sutilmente interesses que são contrários aos pilares
fundacionais de uma nação, precisamos compreender os riscos.

49
O que ocorre no Congresso norte-americano é um exemplo
preocupante. Já temos uma congressista de origem porto-
riquenha, Alexandria Ocasio Cortez, que defende a abolição
da Agência de Imigração e Fiscalização Aduaneira do governo;
outra de origem somali, Ilhan Omar, que acusou a Comissão de
Assuntos Americanos de pagar para influenciar políticas pró-
Israel, uma terceira de origem palestina, Rashida Tlaib, que
vestiu um traje palestino tradicional em seu juramento, e
Ayanna Pressley – ferrenha defensora do aborto.[16]

O que estas figuras têm em comum? Todas são comprometidas


com uma agenda de repaginação confessional dos EUA, mediante
o preenchimento dos centros de poder. Foram beneficiadas
transversalmente pela política de migração, e se utilizam
desta bandeira para afrontar as raízes estadunidenses. São
severamente contrárias à gestão Trump, condenando a
estrutura que tem por objetivo valorizar a cultura cristã no
país.[17]

Diferente do que os movimentos progressistas asseveram, o


rigor da nova política de migração norte-americana não
extinguiu o direito dos imigrantes de ter acesso ao devido
processo legal, muito menos de buscar os meios necessários
para validar sua permanência nos EUA – as deportações não
são feitas de maneira arbitrária, e o imigrante que busca
validar sua situação no país tem total apoio da comunidade
norte-americana.[18] Existem, inclusive, as chamadas Office
for Immigrant Advancement (Clínicas de Imigração),[19] onde
advogados de imigração avaliam os casos, sem custo.[20]

A imigração legal e controlada é algo bom e benéfico, mas o


que se vê nos Estados Unidos e sobretudo na Europa é uma
invasão. Somente em 2015 entraram cerca de 2 a 3 milhões de
imigrantes na Europa, e desde 2000 cerca de 1 milhão de
imigrantes tem tentado entrar todo ano nos Estados Unidos

50
(onde há hoje 37 milhões de imigrantes ilegais). A continuar
assim, que se escancarem logo as fronteiras, acabe-se com os
Estados-nação e que se estabeleça logo um governo mundial
sob a ONU, que imponha a “ditadura do pensamento único” e do
“fascismo do bem”.

3. Caridade e responsabilidade

A premissa de Deuteronômio 15.4-6 é muito importante para


orientar nosso diálogo a respeito dos refugiados. Tratar
sobre cosmovisão cristã implica em lembrar da figura de
linguagem tecida por Cornelius Van Til, que traz o pecado
como óculos amarelados que inviabilizam a visão límpida que
Deus deu ao homem. Tal subjetividade não pode afetar nossa
visão a respeito dos refugiados, tanto para nos lembrar que
devemos estar engajados em promover refúgio aos
necessitados, quanto para proteger a nação contra qualquer
tentativa estrangeira de dominação.

Entretanto, não haverá pobre algum no teu meio (pois o Senhor


certamente abençoará na terra que o Senhor teu Deus, te dá
por herança para possuíres), desde que ouças com atenção a
voz do Senhor, teu Deus, cuidando para cumprir todo este
mandamento que hoje te ordeno. Porque o Senhor, teu Deus, te
abençoará, como te prometeu. Assim, emprestarás a muitas
nações, mas não tomarás emprestado; e dominarás muitas
nações, mas elas não te dominarão.

O mesmo povo orientado por Deus a amar o estrangeiro (Dt


10.17-19) é conduzido a não perder sua soberania. Tal fato
nos indica que também não devemos deixar toda a
responsabilidade de auxiliar os verdadeiros refugiados nas
mãos do Estado.[21] É função do Estado viabilizar a proteção
à pessoa humana, e reprimir em casos de inobservância da
lei. E nós, no alcance das nossas relações, no âmbito da

51
nossa vocação, também podemos cumprir esta missão dada por
Deus.

Usar a ferramenta do empreendedorismo como forte instrumento


de inclusão é um dos meios que beneficiam pessoas em situação
de risco a viver uma vida com trabalho e dignidade,
beneficiando refugiados políticos, religiosos e econômicos.
Trata-se de investir em pessoas que possuem soluções
inovadoras para os maiores desafios sociais, culturais e
ambientais da atualidade.[22] Longe do Estado
assistencialista que haverá de arcar com altíssimos custos,
tal modalidade de empreendedorismo contribui para a formação
de pessoas independentes e conta com o apoio de empresários
que desejam investir na formação de pessoas e preservação da
dignidade da pessoa humana.

Quando tratamos de liberalismo econômico, duas preocupações


são colocadas na mesa: o trato para com os mais pobres, e a
metodologia de crescimento econômico para os refugiados.
Ambas as questões, nunca foram devidamente resolvidas com
políticas socialistas que: (1) aos mais pobres, fornece
programas de assistência social defasados, existentes em
detrimento dos altos impostos e incapazes de atender toda a
demanda; (2) não fornece uma condição de vida digna aos
refugiados, que, salvo tenham alguma ideia fenomenal e apoio
privado para criar uma microempresa, ficam dependendo dos
mesmos programas fracassados do governo que são oferecidos
aos mais pobres nacionais. Tanto para a questão da pobreza,
quanto para refrear o fracasso de algumas políticas para
refugiados, a condução para independência financeira é o
segundo passo importante que nós, enquanto participantes do
governo, eleitores e fiéis, devemos estar preparados para
promover.

52
O primeiro passo essencial é um bom mecanismo de filtragem
– análise de necessidade, facilitação de regularização para
pessoas honestas e verdadeiramente necessitadas, firmeza
para agir com os mecanismos penais em caso de perigo à
soberania nacional. O segundo passo é saber como manter, de
forma viável, os nossos hóspedes, ensinando-os a caminhar
com independência financeira em relação ao Estado, além de
possibilitar o retorno à máquina pública, com a geração de
novos empregos, o aumento de empreendedores que atendam a
classe baixa, média e alta, e assim por diante. São pontos
que podem ser explorados por líderes religiosos,
economistas, cientistas políticos e afins – mas só surtirão
efeito longe de análise socialista, que alimenta uma
dependência doentia ao Estado.[23] Pois o verdadeiro amor
pode oferecer um peixe, mas, sobretudo, ensinará a pescar.

_________________________
[1] João XXIII, Carta Encíclica Pacem in terris:
http://w2.vatican.va/content/john-
xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-
xxiii_enc_11041963_pacem.html.

[2] A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu ao


Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão da portaria,
através de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), alegando que a portaria viola princípios
constitucionais e promove tratamento injusto ao estrangeiro.
Discordamos da posição da Procuradora, por se tratar de uma
portaria que vem para garantir proteção ao Brasil contra
qualquer ameaça terrorista, assim como atos que venham a
ferir a soberania nacional em face de pessoas perigosas e
desobedientes às leis do Brasil. 2.1 A portaria também sofreu
alterações depois de muita pressão de instituições
progressistas; o termo “deportação sumária” foi retirado –

53
veja mais em: < https://www.oantagonista.com/brasil/moro-
altera-portaria-666/ >

[3] David Platt, Contracultura (São Paulo: Vida Nova, 2016),


p. 218.

[4] “Immigrants Among Us – A report of the commission on


theology and church relations. A Lutheran Framework for
Addressing Immigration Issues”, The Lutheran Church-Missouri
Synod, p. 12 (tradução livre).

[5] Roland De Vaux, Instituições de Israel no Antigo


Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 100: “Do ponto
de vista religioso, Dt 14.21 certamente diz que um ger pode
comer de um animal morto, mas Lv 17.15 proíbe isto aos
estrangeiros residentes como aos israelitas. Por outro lado,
estão sujeitos às mesmas prescrições de pureza, Lv 17.8-13;
18.26; Nm 19.10. Devem observar o sábado, Êx 20.10; Dt 5.14,
o jejum do Dia da Expiação, Lv 16.29. Eles podem oferecer
sacrifícios, Lv 17.8; 22.18; Nm 15.15,16 e 29, e tomam parte
nas festas religiosas, Dt 16.11-14. Eles até podem celebrar
a Páscoa com os israelitas, desde que sejam circuncidados,
Êx 12.48,49; cf. Nm 9.14.”

[6] Aaron Armstrong, O fim da pobreza: o Evangelho, a nova


criação e a necessidade de um Salvador (São Paulo: Vida Nova,
2015), p. 57.

[7] Não deixa de ser irônico alguns “cristãos progressistas”


defenderem a imigração porque estrangeiros eram protegidos
no Antigo Testamento, ao mesmo tempo que a Bíblia Hebraica
também ensina temas que causam horror a estes: a legítima
defesa, a guerra justa e a pena de morte. Assim também, a
balança enganosa e o juiz que aceita peita são duramente
condenados no texto bíblico; será que estes estão também

54
empenhados em atacar a corrupção, pecado que indiretamente
leva à miséria e degradação humana?

[8] “Immigrants Among Us – A report of the commission on


theology and church relations. A Lutheran Framework for
Addressing Immigration Issues”, The Lutheran Church-Missouri
Synod, p. 14 (tradução livre).

[9] Dr. Gerald B. Kieschnick and Rev. Matthew Harrison, A


Statement Regarding Immigration Concerns (June 2, 2006).
(tradução livre).

[10] Theodore Dalrymple, A vida na sarjeta: o círculo vicioso


da miséria moral (São Paulo: É Realizações, 2015), passim.

[11] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das


origens aos dias atuais (São Paulo: Vida Nova, 2013), p.
308-309.

[12] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das


origens aos dias atuais, p. 308-309.

[13] Princípio da cooperação internacional: um ato de mútua


ajuda entre dois ou mais Estados-Nação para a finalidade de
um objetivo em comum, que pode ser das mais diversas
espécies: políticos, culturais, estratégicos, humanitários,
econômicos. Veja mais em:
https://jus.com.br/artigos/26542/principio-da-cooperacao-
internacional.

[14] Também deve-se lembrar que a Síria, a Venezuela e o


Haiti são exemplos de “estados falidos”. Estes não possuem
os meios para controlar o fluxo de entrada e saída de seu
território, de garantir a autenticidade dos documentos de
seus nacionais, e de uma série de outras capacidades

55
necessárias para a avaliação eficiente dos riscos envolvidos
na admissão de um estrangeiro em outro país. A Europa já não
está pagando preço alto por políticas migratórias de teor
parecido?

[15] Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na história: das


origens aos dias atuais, p. 308.

[16] As congressistas são consideras pela mídia como


“esquadrão alvo” de críticas feitas pelo presidente Trump.
Veja mais em: https://noticias.r7.com/internacional/quem-
sao-as-4-jovens-congressistas-que-trump-atacou-com-
mensagens-consideradas-racistas-16072019.

[17] O deputado democrata Ted Deutch, da Flórida, fundador


de uma força–tarefa bipartidária para combater o
antissemitismo, disse que algumas das declarações de Omar e
Tlaib “coincidem com argumentos antissemitas tradicionais”.
Ver mais em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/deputadas-
muculmanas-dos-eua-sao-acusadas-de-antissemitismo-por-
republicanos.shtml.

[18] Aliás, a atual lei anti-imigração dos Estados Unidos –


que reza que as pessoas encontradas entrando ilegalmente no
país pelas forças de imigração são alvo de um processo
criminal e permanecem detidas até uma decisão judicial – foi
criada por Bill Clinton, aplicada por George W. Bush, Barack
Obama e, agora, Donald Trump. A situação ocorrida em junho
de 2018, quando imigrantes ilegais adultos foram separados
dos menores, ocorreu porque o governo americano foi
processado por mantê-los juntos, daí a origem do Flores
Agreement, de 1997, durante o mandato de Clinton. Obama
transformou a legislação para deportação em uma bagunça. E

56
Trump terminou por revogar esse Acordo por meio de uma ordem
executiva.

[19] “Nova Política de Imigração nos Estados Unidos”,


Consulado Geral do Brasil (Boston). Disponível em:
https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Boston/pt-
br/file/Material%20informativo%20imigra%C3%A7%C3%A3o%20-
%20fachada.pdf.

[20] Em abril de 2017 o Senado Federal, comandado pelo PMDB


e PSDB, aprovou uma nova Lei de Migração, apoiada
majoritariamente por partidos, ONGs e lobistas adeptos da
esquerda e extrema-esquerda. Esta preconizava, segundo o
Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), tornar o Brasil o
único país do mundo a igualar o imigrante ao cidadão. A lei
estabelecia “condições de igualdade” entre brasileiros e
estrangeiros, como o direito à Previdência Social, escolas
e universidades públicas, atendimento no SUS, carteira de
trabalho, bolsa família, seguro-desemprego e título de
eleitor. Inclusive foi retirada da lei um inciso que incluía
a proteção ao mercado de trabalho nacional. Em maio de 2017
o então presidente Michel Temer sancionou a Lei de Migração,
com cerca de 30 vetos, dentre eles o artigo que liberava o
trânsito de indígenas na fronteira, o que revogava as
expulsões sumárias de quem houvesse cometido crime no Brasil
e a anistia a ilegais que entraram no Brasil até julho de
2016. Temer, que ouviu as queixas da PF, do Ministério da
Defesa e de diferentes setores da sociedade, também vetou a
permissão para estrangeiros ocuparem cargos públicos. Foi
suprimida, ainda, a concessão de residência a criminosos em
liberdade provisória e a extensão do benefício a pessoas sem
vínculo familiar direto. Em dezembro de 2018 foi lançado no
Marrocos pela ONU o Pacto Global para a Imigração, que passa
a considerar a imigração como um direito fundamental, orienta
os estados signatários a fomentá-la e determina, até mesmo,

57
a perseguição das opiniões contrárias a ele. Entre os países
que se retiraram do acordo estão Estados Unidos, Chile,
Israel, Itália, Liechtenstein, Hungria, Eslováquia, Polônia,
Croácia, Bulgária, Romênia, Letônia, República Checa,
Áustria, Austrália, Singapura e Argélia. Mas em telegrama
emitido em 8 de janeiro de 2019, o Ministério das Relações
Exteriores pediu a diplomatas brasileiros que comuniquem à
ONU que o país saiu do Pacto Global para a Imigração. Ernesto
Araújo, o novo ministro das Relações Exteriores, classificou
o documento como “instrumento inadequado para lidar com o
problema”. Para ele, “imigração não deve ser tratada como
questão global, mas sim de acordo com a realidade e a
soberania de cada país”. Esse Pacto é uma interferência na
soberania das nações. Aceitar um imigrante é uma prerrogativa
do país anfitrião. Ninguém pode obrigar uma nação a receber
imigrantes, como ocorreu na União Europeia.

[21] Em 2014 – quando já havia 42 mil imigrantes recebendo


o benefício do Bolsa Família no país – a Secretaria Municipal
de Direitos Humanos estimava que havia cerca de 370 mil
imigrantes irregulares na cidade de São Paulo. Na atualidade
o número de imigrantes irregulares nesta cidade pode chegar
a um milhão. Em 2016 o número de imigrantes registrados pela
Polícia Federal em todo o país teve um aumento de 160% em
dez anos. O Estado brasileiro é incapaz de resolver seus
problemas humanitários, milhares de pessoas morrendo na fila
do SUS, cerca de 13,5 milhões de desempregados e violência
sem controle. Desde quando um país neste estado tem condições
de receber fluxo imigratório?

[22] Veja mais em: https://www.ashoka.org/pt-


br/focus/empreendedorismo-social.

[23] Se já é preocupante, do ponto de vista da ética cristã


do trabalho, a distribuição do bolsa família aos brasileiros

58
sem critérios razoáveis que estimulem o beneficiário a sair
da dependência do Estado, quanto mais perigoso é receber
imigrantes iludindo-os com programas sociais que lhes
garantiriam a sobrevivência. Na prática, a “terceirização”
do amor ao próximo para o Estado está sendo estendida também
à assistência e ao cuidado pelo estrangeiro.

Heméra Kyríou e parousía: a última fase


da exaltação do crucificado

Introdução

Neste artigo serão dados todos os passos para a realização


de uma pesquisa exegética com vistas a saber o significado
e as implicações teológicas da frase “ἡμέρα κυρίου” – “o dia
do Senhor” em 1 Tessalonicenses 5.2. Será empreendido um
estudo sobre o contexto literário, teológico e canônico para
se entender a razão da mudança vocabular na referida
passagem: Paulo vinha usando o termo “παρουσία”, como, por
exemplo, em 2.19; 3.13; 4.15, mas, em 5.2, passa a usar
“ἡμέρα κυρίου”, por que o apóstolo fez isso? Queria ele
rememorar um ensino teológico conhecido do Antigo Testamento
e ecoado em Isaías e Amós (só para citas dois autores)?
Sabemos que em Amós e Isaías (‫“ )ליהוה יום‬o dia do Senhor”
indicava o juízo divino (ver: 5.18), quando os soberbos (‫)גאה‬
e orgulhosos (‫ )ורם‬seriam humilhados (‫וׁשפל‬- ver: Isaías
2.12): é esse o sentido que Paulo tem em mente em 1
Tessalonicenses 5.2? Carregaria a frase “ἡμέρα κυρίου” as
mesmas implicações teológicas de seu antecedente
veterotestamentário: “‫ ?”ליהוה יום‬Esta pesquisa pretender
responder a essa pergunta.

Estudo contextual

59
Contexto histórico da passagem

Tessalônica[1] já existia há 365 anos e era uma cidade livre


por mais de um século quando o apóstolo Paulo a visitou pela
primeira vez. Seu status de cidade livre provavelmente tenha
sido conquistado quando ela na segunda guerra civil tomou o
lado de Otávio.[2] Na condição de cidade livre preservava
sua autonomia e tinha a sua administração própria conduzida
pelos “πολιτάρχης” –“politárchês” (Lucas 17.6).[3] Segundo
Estrabão[4] a cidade foi fundada por Cassandro que lhe deu
o nome de sua esposa, que era irmã de Alexandre o Grande.[5]
A cidade se encontrava sobre a via Egnatia, uma via expressa
que se estendia desde o Diráquio sobre o Adriático até
Constantinopla sobre o Bósforo, e dali para a Ásia Menor e
o Oriente. A rua principal de Tessalônica era parte da mesma
rota que unia Roma com o Oriente.[6]

O Oriente e o Ocidente convergiam em Tessalônica, dizia-se


que estava “na saia” do império romano.[7] Sua população era
de mais de 200.000 habitantes. Durante algum tempo disputou
com Constantinopla a condição de candidata a capital do
mundo.[8]

Os habitantes de Tessalônica eram na sua maioria de origem


grega, mas havia também alguns romanos e muitos orientais.[9]
Por sua localização favorável junto ao mar e a grande estrada
imperial romana, Tessalônica experimentou um bom
desenvolvimento portuário e comercial. Por causa dessas
condições muitos judeus eram atraídos para ali. Em
Tessalônica eles fundaram uma sinagoga e exerceram uma forte
influência sobre os pagãos, fazendo com que alguns
frequentassem a sinagoga e se tornassem “tementes a
Deus”.[10] A cidade era um lugar estratégico na pretensão do
cristianismo de se tornar uma religião mundial:[11]

60
É impossível exagerar a importância da chegada do
cristianismo a Tessalônica. Se o cristianismo se estabelecia
em Tessalônica estava também destinado a estender-se ao
oriente pela Via Egnatia até conquistar toda a Ásia […]. O
advento do cristianismo a Tessalônica foi um passo crucial
na transformação do cristianismo em religião mundial

O Evangelho chegou a Tessalônica por meio de Paulo e Silas,


provavelmente no início do ano 50 d.C.[12] Eles haviam sido
forçados por motivo de perseguição a sair prematuramente da
cidade de Filipos (Atos 16.35-40). Dali eles partiram para
Tessalônica pela via Egnatia, uma viagem de aproximadamente
160 km, passando por Anfípolis e Apolônia.[13]

Contexto literário da passagem

Uma leitura atenta da primeira carta aos Tessalonicenses


poderá revelar um dos principais motivos para essa
correspondência escrita do apóstolo Paulo: os destinatários
originais da carta tinham muita dificuldade com escatologia
individual. Estavam confusos quanto a real condição dos
crentes que morreram: “Eles pensavam que os crentes que já
haviam morrido estivessem, no retorno de Cristo, de alguma
forma em desvantagem com relação aos que ainda estavam
vivos”.[14] Com o objetivo de desfazer esse mal-entendido,
Paulo afirma: “… nós os vivos… de modo algum precederemos os
que dormem” (1 Ts. 4.15). Com essas palavras o apóstolo deixa
claro que os mortos em Cristo não estão em desvantagem em
relação aos crentes vivos por ocasião da segunda Vinda.
Aliás, o retorno de Cristo é um tema que recebe muito
destaque na Primeira carta, um a cada oito versos menciona
a vinda do Senhor. Dos oitenta e nove versos de Primeira
Tessalonicenses em onze deles é possível encontrar uma menção
a Segunda Vinda, ver: 1.10; 2.19; 3.13; 4.13-18; 5.1-
4,23.[15]

61
Esboço da estrutura literária da epístola

1.1-Saudação inicial

1.2-1 – Ação de graças

2.1-16 – O procedimento dos missionários em Tessalônica

2.17-3.13- A preocupação contínua de Paulo pela igreja

4.1-12-Encorajamento para o progresso ético

4.13-5.11- Instruções e encorajamento acerca da segunda


vinda de Cristo

5.12-24- Instruções para a vida na igreja

5.25-28- Pedidos e Saudações finais.[16]

Contexto canônico

Tem sido afirmado que não ocorre uma única citação textual
do Antigo Testamento na Primeira carta aos Tessalonicenses,
contudo, ainda assim é possível dizer que Paulo ao escrever
essa epístola estava tão dependente do Antigo Testamento,
quanto estava de algumas passagens do Novo Testamento (ver:
Mt. 24.43; Lc. 12.39,40). Um exemplo claro dessa dependência
pode ser visto na expressão “o dia do Senhor”, um conceito
bem conhecido do Antigo Testamento, ver: Is. 2.1-4.6-12; Jr.
46.10; Ez. 30.2,3; Sf. 1.14-18; Zc. 14; Am. 5.18-20. [17]

Estudo textual

Texto grego

62
GNT 4ª Ed. Revisada: αυτοι γαρ ακριβως οιδατε οτι ημερα
κυριου ως κλεπτης εν νυκτι ουτως ερχεται.

Tradução literal

“Vós mesmos, pois com precisão sabeis que o dia do Senhor


como ladrão em (a) noite vem”.

Tradução Dinâmica

“Vocês sabem com muita certeza que o dia do Senhor virá como
um ladrão a noite”.

Estrutura clausal do texto

L1 αυτοι γαρ ακριβως οιδατε

L2 οτι ημερα κυριου ως κλεπτης

L3 εν νυκτι ουτως ερχεται.

Justificação dos limites e divisões da perícope

O início da perícope é demarcado pela expressão: “Οὐ


θέλομεν”, “não queremos” (4.13); o final da perícope é fixado
pelo vocábulo: “ποιεῖτε”, “fazeis” (5.11).

A perícope (1 Ts 4.13- 5.11): duas seções importantes

A primeira seção se inicia no verso 13 (do capítulo 4) e


termina no verso 18, ela se desenvolve em torno dos seguintes
assuntos: (1) a real situação dos mortos em Cristo por
ocasião da vinda de Cristo; (2) a importância da crença na
morte e ressurreição de Jesus; (3) e o encontro dos remidos
com o senhor nos ares. A segunda seção, se inicia no verso

63
1 e termina no verso 11 do capítulo 5, ela abarca os
seguintes assuntos: (1) o dia do Senhor e (2) a necessidades
dos crentes viverem como filhos da luz.

A crítica literária da primeira carta aos Tessalonicenses

A autenticidade da primeira carta é atestada por Irineu,


Clemente de Alexandria, Tertuliano, Eusébio e Orígenes.[18]
Entretanto, alguns pesquisadores da escola de Tubingen têm
feito objeções à autoria paulina, mas Carson [et al] tem
afirmado que estas objeções não têm sido aceitas. É dado
como certo por muitos autores que Paulo escreveu esta carta
de Corinto perto do ano 50 d.C.[19]

O vocabulário da carta

Com base no texto grego de Westcott/Hort James Frame levantou


o vocabulário de I Tessalonicenses. Segundo Frame o
vocabulário da carta consistia de 362 palavras incluindo 30
partículas e 15 preposições.[20]

Comentário

O leitor da primeira carta aos Tessalonicenses tem como


construir a partir das informações que encontra ali, um
quadro muito nítido da preocupação escatológica mais
inquietante daqueles crentes: alguns achavam que Cristo
voltaria logo e, quando alguns deles morreram, os
sobreviventes acharam que os falecidos perderiam todas as
maravilhas da parúsia.[21] Entretanto, o apóstolo afirma que
os crentes vivos não estarão à frente dos crentes mortos no
evento da parousia, e para dar certeza a isso, ele usa a
mais forte negação possível de um acontecimento futuro: “οὐ
μὴ φθάσωμεν”, “de modo nenhum precederemos”. [22]

64
A crítica textual

Bruce M. Metzger[23] aponta dezenove lugares no texto da


Primeira carta aos Tessalonicenses com variantes textuais:
1.1; 1.5; 1.7; 2.7; 2.12; 2.15; 2.16; 3.2; 3.13; 4.1;
4.9; 4.11; 4.13; 4.17; 5.4; 5.25;
5.27; 5.28; 5.28. Roger L. Omanson[24] em Variantes
Textuais do Novo Testamento (uma adaptação do comentário
textual de Bruce Metzger) destacou seis segmentações
importantes no texto da Primeira carta aos Tessalonicenses:
1.2; 1.2; 3.6; 5.16; 5.20; 5.2.

O conceito veterotestamentário de ἡμέρα κυρίου

O termo hebraico para “o dia do Senhor” é ‫ – ליהוה יום‬nem


sempre faz referência a eventos escatológicos, mas pode
referir-se “a qualquer momento em que Yavé realiza uma ação
importante e decisiva”.[25] A frase aparece com frequência
nos escritos rabínicos em referência aos sofrimentos que
precedem o estabelecimento da era messiânica.[26]

‫ ליהוה יום‬no Antigo Testamento

Há muitos “Yom Yavé” narrados no Antigo Testamento: Is. 2.1-


4.6-12; Jr 46.10; Ez 30.2,3; Sf 1.14-18; Zc 14 e Amós 5.18-
20. Contudo, alguns autores acreditam que a reserva
escatológica contida na expressão “dia do Senhor” apontava
para um futuro, quando Deus virá punir os ímpios.[27]

ἡμέρα κυρίου e a luz da justiça divina

Para alguns autores o conceito “o dia do Senhor” deve ser


visto como associado ao surgimento da luz (que simboliza a
revelação e justiça divina). O contraste entre luz e trevas
fica evidente em (1 Ts 5.4). Enquanto os incrédulos buscarão

65
correr e se esconder desse dia (o dia do Senhor), em razão
dos pecados que comentem sob o mandato da escuridão, os
filhos da luz não terão o que temer.[28] Donald Guthrie
concorda que Paulo expressa a ideia de “dia” em vínculo com
a luz (…), e acrescenta: “a vinda do Senhor e a vinda da
alvorada estão intimamente associadas (…).[29] O contraste
entre luz e trevas, graça e juízo, sempre caracterizou a
mensagem profética autêntica. Pois como observa J. Jeremias:
“Há profundas razões para ser assim: graça e juízo andam
juntos”. [30]

ἡμέρα κυρίου e a escatologia pré-profética

Geerhadus Voz argumentou que a frase “o dia do Senhor” é uma


das provas para a existência de uma antiga escatologia pré-
profética no Antigo Testamento. Ele reconheceu que ela se
torna muito importante para a revelação do Novo Testamento
como “o dia do Senhor”.[31]

A importância da frase “o dia do Senhor” para a escatologia


neotestamentária é realmente muito grande. Será inglório
tentar entender as descrições do Novo Testamento sobre a
segunda Vinda sem relacionar esse evento com àquilo que os
escritores do Antigo Testamento falaram sobre “o dia do
Senhor”. Certo autor afirmou, inclusive, que todas as figuras
e construções que pertencem a esse evento foram ligadas à
segunda Vinda.[32]

ἡμέρα κυρίου: O dia de Cristo

Herman Ridderbos ressaltou que quando a expressão “o dia do


Senhor” ocorre, sobretudo, em Paulo “e bem provável que por
“Senhor” deva-se entender sempre “Cristo”. Essa mudança
indicava como o apóstolo via o futuro glorioso concentrando-
se em torno da pessoa de Cristo, ainda que a terminologia

66
não fosse originalmente messiânica, mas sim teológica.[33]
É possível ainda que tal mudança tivesse como objetivo
lembrar o papel de Cristo como o agente divino para a
aplicação do juízo final.[34]

O significado de ἡμέρα κυρίου em 1 Ts. 5.2

Parece não haver dúvida que a expressão (‫( – )ליהוה יום‬O dia
do Senhor) indicava dois aspectos importantes da mensagem
profética veterotestamentária, quais sejam: o juízo e a
salvação. O Novo Testamento parece preservar essa mesma
perspectiva, isto é, que “o dia do Senhor” será um dia de
punição para os descrentes e salvação para os crentes. É o
dia da visitação final, quando Cristo estabelecerá o Reino
de Deus no mundo, pondo fim a esse século e inaugurando um
novo.[35] Esse não será um simples dia no calendário, mas um
período inteiro que testemunhará a visitação redentora final
de Deus em Cristo”.[36] Os primeiros cristãos olhavam para
um futuro, quando Cristo virá como justificador e juiz.[37]
Ele será o responsável (como agente divino) em aplicar o
juízo final no mundo.[38] A ideia de um julgamento
relacionado a parousia realmente parece emergir em (5.3.):
“Quando andarem dizendo: paz e segurança (…) virá repentina
destruição (…) de modo nenhum escaparão”. Com a “Vinda” vem
também “o juízo”- (o dia do Senhor). Assim, para alguns
autores a expressão “de modo nenhum escaparão”, indica a
inevitabilidade do juízo para os ímpios.[39] Se esta for a
interpretação correta, então, para Paulo “o dia do Senhor”
significava “o grande ponto decisivo na história, quando
grandes eventos escatológicos coincidirão: ressurreição
física dos mortos, juízo final etc.”.[40] Para Charles Hodge
a Vinda de Cristo para Julgar o mundo é o último passo em
sua exaltação:[41]

67
Aquele que compareceu como um criminoso perante Pilatos, e
fui injustamente condenado. E, que entre cruéis escárnios
foi crucificado com malfeitores, voltará com grande poder e
glória. Diante dele se reunirá todas as nações e todas as
gerações dos homens, para receber de seus lábios sua
definitiva sentença. Ele será então exaltado ante todas as
inteligências como seu soberano juiz visível

Estudo teológico

Mensagem para todas as épocas

O dia do Senhor em Paulo aponta para uma época futura, em


que Cristo virá para punir os ímpios e justificar seus
seguidores.

Teologia do texto

O juízo divino está associado com o retorno de Cristo.

Implicações para a teologia bíblica

Apocalíptica: O Dia do Senhor – Vinda do Senhor -Teologia


paulina.

Implicações para a Teologia Sistemática

Escatologia: Vinda do Senhor e Julgamento final.

Implicações para a teologia prática

O cristão deve se esforçar para viver em um padrão de vida


moral e eticamente elevado. Ele deve estar ciente que Deus
um dia castigará todos os homens ímpios.

68
Sermão

Tema: O dia do Senhor

1. Será um dia de juízo


2. Será um dia de consolo
3. Será o início de um novo dia

Conclusão

Nesta breve pesquisa buscou-se levantar qual o significado


e teologia de “hemera Kyriou” em 1 Tessalonicenses 5.12.
Para tanto, empreendeu-se uma pesquisa do contexto
histórico, literário e canônico dessa passagem. Esse último
mostrou que Paulo ao escrever essa carta dependeu de certos
ensinos do Antigo Testamento, um exemplo claro dessa
dependência pode ser visto no uso da expressão “o dia do
Senhor”.[42]

O Estudo textual iniciou-se com a apresentação do texto


grego, a versão usada foi a GNT 4ª E.d. Revisada. Apresentou-
se também uma tradução literal e dinâmica a partir do texto
grego. Em seguida exibiu-se a estrutura clausal do texto
grego, a qual foi seguida de tradução literal; fez-se também
a justificação dos limites e divisões da perícope. Na parte
que tratou da crítica literária aplicada a 1 Tessalonicenses,
afirmou-se que para alguns autores, os questionamentos
levantados contra a autoria paulina não se sustentam.

No comentário da passagem afirmou-se que os crentes


tessalonicenses viviam uma inquietante preocupação
escatológica acerca da condição dos crentes mortos por
ocasião da Vinda de Cristo.

O estudo teológico teve início com uma apresentação da


mensagem da passagem para todas as épocas, em seguida foi

69
apresentada a teologia do texto; a implicação da passagem
para a teologia Bíblica, Sistemática e Prática. Por fim,
apresentou-se um esboço de sermão sobre o texto ora referido.

Ao final desta breve pesquisa pode-se afirmar que Paulo podia


usar como intercambiáveis os termos: “ἡμέρα κυρίου” e
“παρουσία”, pois ambos os eventos descritos por esses
vocábulos estão interligados e são interdependentes. Além
disso, a mudança vocabular tinha por objetivo dar ênfase ao
juízo divino quando do retorno de Cristo: não é possível
falar sobre a “Segunda Vinda” sem dar destaque à função de
Cristo como agente divino do juízo final. E, finalmente,
concordamos com Charles Hodge quando ele afirma “que a Vinda
de Cristo para Julgar o mundo é o último passo em sua
exaltação”.

Referências bibliográficas

BARCLAY, William. Comentário do Novo Testamento. [s.l.];


[s.d.].

BAVINCK, Hermann. Teologia Sistemática. SOCEP, 2001.

BENWARE, Paul N. Panoroma Del Nuevo Testamento. Editorial


Portavoz, 1993.

BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura


Cristã, 2012.

BRUCE, F.F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamento.


São Paulo: Editora Vida, 2008.

BUSWELL, Jr, J. Oliver. Teología Sistemática. Logoi, Inc.


2da. Edición, 2005.

70
CARSON, D. A. .[et al.] Comentário Bíblico: Vida Nova: São
Paulo: Vida Nova, 2009.

CARSON, D.A.; MOO, Douglas J; MORRIS Leon. Introdução ao


Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.

CARSON, D.A; BEALE, G.K. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014.

FIELDS, Wilbur. A New Commentary Work book: Thinking Through


Thessalonians. College Press, Joplin, Missouri. Copyright,
1963 (reprint 1971).

FRAME, James Everett. The International Critical Commentary


A Critical and Exegetical Commentary on the Epistles of St.
Paul To The Thessalonians. Edinburgh T.&T. Clark, 1912.

GUTHRIE, Donald. Teologia do Novo Testamento. São Paulo:


Cultura Cristã, 2011.

HAUBECK, Wilfrid; VON SIEBENTHAL, Heinrich. Nova chave


linguística do Novo Testamento Grego: Mateus – Apocalipse.
São Paulo: Targumim: Hagnos, 2009.

HENDRINKSEN, William. Comentario al Nuevo Testamento.


Exposición de 1 y 2 Tesalonicenses. Libros Desafío. 2000.

HODGE, Charles. Teología Sistemática, Volumen II. Editorial


Clie,1991.

JAMIESON, Robert; Fausset, A. R; Brown, David. Comentario


Exegetico y Explicativo de La Biblia Tomo II: El Nuevo
Testamento. Casa Bautista de Publicaciones, 2002.

71
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos,
2008.

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento: Edição


Revisada:Tradutor : Degmar Ribas Júnior. São Paulo, Hagnos,
2003.

METZGER, Bruce. Un Comentario Textual Al Nuevo Testamento


Griego. Sociedades Bíblicas Unidas.

MILLIGAN, George. St Paul’l Epistles to the Thessalonians


the Greek Text with Introduction and Notes. Macmillan and
Co., Limited St. Martin’s Street, London, 1908.

OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento.


Análise e avaliação do aparato crítico de “O Novo Testamento
Grego”. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

PACKER, J. I. Teologia Concisa. Campinas – SP: Luz Para o


Caminho, 1998.

RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo:


Cultura Cristã, 2013.

ROBERTSON, A. T. Comentario al texto Griego Del Nuevo


Testamento. Editorial Clie,2003.

STOTT, John. The Message of Thessalonians. Inter-Varsity


Press 1991.

The Greek New Testament. Sociedades Bíblicas Unidas, 1994.

VOS, Geerhadus. Teologia Bíblica. São Paulo: Cultura Cristã,


2010.

72
_________________________________
[1] FRAME, James Everett. The International Critical
Commentary A Critical and Exegetical Commentary on the
Epistles of St. Paul To The Thessalonians. Edinburgh T.&T.
Clark, 38 George Street 1912, p.2. Quando Paulo e seus
companheiros visitaram Tessalônica ela já era uma cidade bem
estabelecida com uma longa história, Cf.: STOTT, John. The
Message of Thessalonians. Inter-Varsity Press 1991. A
cidade Tessalônica abrigou duas religiões de ministérios bem
conhecidas: a religião de Dionísio, e a de Orfeu. Ambas
praticavam o chamado culto da fertilidade (orgias
selvagens), e tinham em comum o uso de símbolos fálicos e a
prática de êxtases extravagantes, assim em: FIELDS, Wilbur.
A New Commentary Work book: Thinking Through Thessalonians.
College Press, Joplin, Missouri. Copyright, 1963(reprint
1971), p. 15.

[2] FRAME, James Everett. 1912, p.2.

[3] πολιτάρχης – Desse modo eram designados os membros das


instâncias superiores das cidades macedônias. Cf. Wilfrid
Haubeck & Heinrich von Siebenthal, Nova chave lingüística do
Novo Testamento Grego: Mateus-Apocalipse. São Paulo:
Targumim: Hagnos, 2009. p.821. Segundo alguns autores o
número de politarches no tempo de Augustus era cinco e no
tempo de Antoninus e Marcus Aurelius era seis, assim em:
FRAME, James Everett. The International Critical Commentary
A Critical and Exegetical Commentary on the Epistles of St.
Paul To The Thessalonians. Edinburgh T.&T. Clark, 38 George
Street 1912, p.2.

[4] Apud em FRAME, James Everett. 1912, p.2.

[5] Segundo William Barclay seu nome original era Therma que
significa “fontes quentes”, dando o nome ao golfo onde se

73
encontrava. A cidade foi reedificada com o nome de
Tessalônica em 315 antes de Cristo por Cassandro. Barclay
ainda afirma que seiscentos anos antes Heródoto a descrevia
como uma grande cidade. Ali Xerxes o persa havia estabelecido
sua base naval ao invadir a Europa, e até na época dos
romanos era um dos maiores arsenais do mundo. Cf. BARCLAY,
William. Comentário do Novo Testamento. [s.l.], p. 11. Ver
também: Fields, Wilbur. A New Commentary Work book: Thinking
Through Thessalonians. College Press, Joplin, Missouri.
Copyright, 1963 (reprint 1971), p.15.

[6] Próximo de Tessalônica estava o monte Olimpo, o mítico


monte dos deuses, e isto, explicava a devoção aos deuses do
panteão grego. Ver: BENWARE, Paul N. Panoroma del Nuevo
Testamento. Editorial Portavoz, 1993.p. 171.

[7] BARCLAY, William. Comentário do Novo Testamento [s.l.],


p12.

[8] Ibid.,p.11.

[9] Cf. HENDRINKSEN, William. Comentario al Nuevo


Testamento. Exposición de 1 y 2 Tesalonicenses. Libros
Desafío. 2000.p.8.

[10] Ibid.,p.8.

[11] BARCLAY, William. Comentário do Novo Testamento [s.l.],


p.12

[12] FRAME, James Everett. The International Critical


Commentary A Critical and Exegetical Commentary on the
Epistles of St. Paul To The Thessalonians. Edinburgh T.&T.
Clark, 1912, p.2.

74
[13] HENDRINKSEN, William. Comentario al Nuevo Testamento.
Exposición de 1 y 2 Tesalonicenses. Libros Desafío. 2000.p.7.

[14] CARSON, D.A; BEALE, G.K. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014,
p.1086. “Quando Paulo esteve em Tessalônica havia ensinado
que um dia o Senhor retornaria, e que isso iria ocorrer de
súbito a todos os crentes. Evidentemente, havia ensinado que
esse evento poderia acontecer a qualquer momento. Ocorre que
quando morriam alguns crentes daquela comunidade, a igreja
sentia-se tomada pela tristeza por acreditar que os mortos
perderiam o lugar na parousia”, Cf: BENWARE, Paul N. Panoroma
Del Nuevo Testamento. Editorial Portavoz, 1993. p.173.

[15] FIELDS, Wilbur. A New Commentary Work Book: Thinking


Through Thessalonians. College Press, Joplin, Missouri.
Copyright, 1963 (reprint 1971), p.12. Ver também: D. A.
Carson, Douglas J. Moo, Leon Morris, Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997. p.393. Essa carta é
uma fonte importante para se compreender como viviam os
primeiros cristãos e quais eram suas expectativas e
inquietações. Além disso, ela (mas também a segunda) tem uma
importância vital para a compreensão de uma interpretação
mais desenvolvida do pensamento cristão em Paulo assim em:
MILLIGAN, George. St. Paul’l Epistles to the Thessalonians
the Greek Text with Introduction and Notes. Macmillan and
Co., Limited St. Martin’s Street, London, 1908, p.vii. A
Primeira carta aos Tessalonicenses permite ao leitor ter uma
melhor visão da expectativa do apóstolo dos gentios em
relação ao futuro e a sua visão da história, assim em:
RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo:
Cultura Cristã, 2ª edição, 2013, p.586. Embora nem todos
possuam convicções claras acerca deste assunto (parousia),
como observa Wilbur Fields, para Paulo, todavia, era uma
verdade tremendamente importante (…) por causa da sua

75
influência sobre os corações e as vidas das pessoas amadas
por Deus, Cf.: FIELDS, Wilbur. A New Commentary Work book:
Thinking Through Thessalonians. College Press, Joplin,
Missouri. Copyright, 1963 (reprint 1971), p.12-13. Outros
motivos para a composição de 1 Tessalonicenses seriam: (1)
assegurar os crentes Tessalonicenses acerca do amor e
interesse de Paulo por eles. (2) E encorajá-los a viver uma
vida santa e agradável ao senhor. O apóstolo estava feliz
pelo crescimento deles na vida cristã, porém, desejava que
eles avançassem mais e mais, Cf.: BENWARE, Paul N. Panoroma
Del Nuevo Testamento. Editorial Portavoz, 1993. p.170- 171.

[16] Esboço de 1ª Tessalonicenses foi proposto por I. Howard


Marshall ver: D. A. CARSON et al., Comentário bíblico: Vida
Nova. São Paulo: Vida Nova, 2009. p.1921,1922. A comunicação
de Paulo com a igreja de Tessalônica era importante porque
sua ausência estava sendo destacada como um sinal da falta
de interesse pela igreja, e ele e os outros missionários
estavam sendo objeto de uma campanha de boatos que tinham a
intenção de mostrar que eles não eram nada melhores do que
os bandos comuns de charlatães mágico-filosóficos (1 Ts 2.3-
12,17-20), assim em: BRUCE, F.F. Comentário Bíblico NVI:
Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008.
p.2029. Além disso, alguns judeus alegavam que Paulo
interessava-se apenas por ser bajulado pelos tessalonicenses
e tinha falsos pretextos para cobrir a sua ganância. E o
golpe fatal contra a reputação do apóstolo teria sido: “ele
não retornou porque não se importava com os convertidos
tessalonicenses. Todas essas investidas contra a reputação
de Paulo precisavam ser dirimidas e o instrumento para fazê-
lo teria sido a escrituração de 1 Tessalonicenses, ver:
FRAME, James Everett. The International Critical Commentary
A Critical and Exegetical Commentary on the Epistles of St.
Paul To The Thessalonians. Edinburgh T.&T. Clark, 1912, p.10.

76
[17] Jeffrey A. D. Weima afirma enfaticamente que não há
sequer uma única citação textual do Antigo Testamento nas
duas cartas aos Tessalonicenses. Contudo, ele observa que 1
Tessalonicenses(mas também 2 Tessalonicenses) tem uma
significativa dívida para com as Escrituras hebraicas(…) “o
vocabulário de Paulo, as metáforas e a estrutura teológica
na correspondência aos Tessalonicenses revelam a influência
do Antigo Testamento em aspectos tanto de pouca importância
quanto mais significativos”. Cf. G. K. Beale e D. A. Carson
(org.), Comentário do uso do Antigo Testamento no Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.1076-1087.

[18] JAMIESON, Robert; FAUSSET, A. R; BROWN, David.


Comentario Exegetico y Explicativo de La Biblia Tomo II: El
Nuevo Testamento. Casa Bautista de Publicacione, 2002.p.581.

[19] CARSON, D.A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução


ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997. p.378-382.

[20] FRAME, James Everett,1912, p.28-37.

[21] CARSON, D.A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon,1997. p.388.


O ensino de Paulo sobre a parousia realmente foi muito mal-
entendido pelos Tessalonicenses: “Alguns diziam que Paulo
havia declarado que Jesus iria retornar de imediato, e disso
tiraram algumas conclusões que os levaram à ociosidade e ao
fanatismo”, assim em: ROBERTSON, A. T. Comentario al texto
Griego Del Nuevo Testamento. Editorial Clie, 2003. p.522.

[22] Assim em: Haubeck, Wilfrid, Siebenthal, Heinrich von.


Nova chave linguística do Novo Testamento Grego: Mateus-
Apocalipse. São Paulo: Targumim: Hagnos, 2009, p.1150. Stott
observa que os dois problemas distintos que mais têm
fascinado a mente cristã e não-cristã são: o que acontece
após a morte. E (…) veremos os mortos novamente? A segunda

77
diz respeito ao que irá ocorrer no final do mundo. Existe um
dia do acerto de contas, e se é assim, como podemos nos
preparar para isso? O primeiro é o problema do luto, e diz
respeito a outros que já morreram. O segundo é o problema do
julgamento, e nos preocupa também, ver: STOTT, John, The
Message of Thessalonians. Inter-Varsity Press 1991. [n.p.].

[23] METZGER, Bruce. Un Comentario Textual Al Nuevo


Testamento Griego. Cuarta edición revisada. Sociedades
Bíblicas Unidas. p.557-562.

[24] OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento.


Análise e avaliação do aparato crítico de “O Novo Testamento
Grego”. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.
p.436-442.

[25] BUSWELL, Jr, J. Oliver. Teología Sistemática. 2005


Logoi, Inc. 2da. Edición.p.740.

[26] BRUCE, F.F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo


Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008.p.2036-2037.

[27] CARSON, D.A; BEALE, G.K. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2014.p.1087. Como Berkhof observou, “o dia do Senhor é o
grande ponto decisivo na história… Nessa ocasião Deus
destruirá todos os poderes hostis ao reino de Deus, ver:
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 4ª edição Revisada:
São Paulo: Cultura Cristã,2012. p.651.

[28] CARSON, D.A [ et. al.]. Comentário Bíblico Vida Nova.


São Paulo: Vida Nova,2009.p.1929.

[29] GUTHRIE, Donald. Teologia do Novo Testamento. São Paulo:


Cultura Cristã, 2011. p.808-809.

78
[30] JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento: Nova Edição
Revisada e Atualizada. São Paulo: Hagnos, 2008, p.195.

[31] VOS, Geerhadus. Teologia Bíblica. São Paulo: Cultura


Cristã, 2010.p.352.

[32] Cf. BARCLAY, William. Comentário do Novo Testamento


[s.l.].

[33] RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo. Cultura


Cristã, 2013.p.589. Peter E. Cousins também defende que não
se deve fazer qualquer distinção entre “o dia do Senhor” e
“o dia de Jesus Cristo”: “…Em vista do fato de que Jesus é
chamado Senhor em todo o Novo Testamento, é desnecessário
distinguir entre “o dia do Senhor” e “ o dia de (nosso Senhor
Jesus) Cristo”, ver: BRUCE, F.F. Comentário Bíblico NVI:
Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida,
2008.p.2037.

[34] CARSON, D.A.; BEALE, G.K. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2014.p.1087. J. I. Packer ainda argumentou: Por toda a
Escritura, a indignação, ira, fúria de Deus, de que se fala
com frequência é judicativa; estas palavras sempre indicam
o Santo Criador julgando ativamente o pecado, do modo como
a ira faz aqui, e conclui: A mensagem do juízo vindouro para
toda a humanidade, com Jesus Cristo completando a obra de
seu reino mediatário, agindo como juiz em nome de seu Pai,
estende-se por todo o Novo Testamento, ver: PACKER, J. I.
Teologia Concisa. Campinas –SP: Luz Para o Caminho, 1998.
p.234,235.

[35] Cf. LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento.


São Paulo, Hagnos, 2003.p.742. John Stott argumentou que foi
por conta da iminência do juízo que os tessalonicenses

79
estavam perguntando a Paulo acerca do tempo (chronoi) e da
data (Kairoi), como os discípulos haviam perguntado a Jesus
em outro momento. Normalmente chronos significa um período
de tempo e kairos um ponto do tempo: uma crise ou
oportunidade. Mas, Stott observa, “não parece que Paulo está
fazendo esta distinção aqui”. Por que, então, os
Tessalonicenses foram levantar essa questão? Não, ao que
parece, por curiosidade, mas sim por uma razão muito prática:
eles queriam fazer os preparativos adequados para o dia do
julgamento. Eles pensavam que poderiam mais facilmente se
preparar para a vinda de Cristo no julgamento se eles
pudessem saber quando isso fosse ocorrer. Isso era ingênuo,
mas, perfeitamente compreensível, assim em: STOTT, John. The
Message of Thessalonians. Inter-Varsity Press 1991. [s.p.].

[36] LADD, George Eldon, 2003, p.742.

[37] CARSON, D.A.; BEALE, G.K. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2014.p.1087.

[38] Guthrie afirma que não é sempre fácil dar este


significado à frase “o dia do Senhor”, ver: GUTHRIE, Donald.
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
p.808-809. Hermann Bavinck argumentou “no seu retorno,
Cristo virá para julgar e dividir”, ver: BAVINCK, Hermann.
Teologia Sistemática. SOCEP, 2001. p.609

[39] CARSON, D.A. et al. Comentário do uso do Antigo


Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2014.
p.1088-1089.

[40] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo:


Cultura Cristã, 2012. p.651.

80
[41] HODGE, Charles. Teología Sistemática. Volumen II.
Editorial Clie, 1991.p.251.

[42] Acreditamos que Paulo em 1 Tessalonicenses 5.2 está


realmente rememorando e ampliando um ensino do Antigo
Testamento. Essa opinião parece válida mesmo diante do
argumento de que o apóstolo não está citando àquela parte
das Escrituras textualmente, pois em muitos outros casos no
Novo Testamento há alusões a ensinos do Antigo Testamento,
mesmo sem haver a citação textual. O Apocalipse, por exemplo,
é o livro do Novo Testamento mais dependente do Antigo
Testamento, em quase todos os seus versículos são encontrados
ecos e alusões, mas, como se sabe, poucas são as citações de
forma de direta, como observam G. K. Beale e Sean M.
McDonough, ver: CARSON, D.A.; BEALE, G.K. Comentário do uso
do Antigo Testamento no Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2014.p.1318.

81
“Amarrando o valente”: interpretação de
Marcos 3.27 em seu contexto original

Uma das expressões bíblicas


mais populares na atualidade é, sem sombra de dúvida,
“amarrar o diabo” (ou o demônio). O contexto evangélico
moderno tem enfatizado o uso dessa frase como arma
imprescindível para qualquer confrontação com as forças
espirituais do mal, mormente nos exorcismos. Com frequência,
no entanto, perguntas importantes são levantadas quanto ao
uso e, por que não dizer, “abuso” dessa frase. Por exemplo,
o que a expressão significou em seu contexto original, quando
Jesus a utilizou? Temos ou não aqui um mandamento para nós
hoje, quando enfrentamos a “batalha espiritual”? Diante de
tais questionamentos, portanto, faz-se necessário um estudo
sério do texto de Marcos 3.27 no contexto em que foi
originalmente inserido, bem como de seus paralelos nos
evangelhos sinópticos. Por uma questão de espaço nos
concentraremos aqui em Marcos 3.27, conferindo sempre que
necessário seus paralelos.

Para conduzir o leitor neste estudo propomos de início a


metodologia por nós empregada. Primeiramente, serão
oferecidas algumas observações preliminares sobre o
evangelho de Marcos, sobre sua estrutura literária e sobre
sua percepção teológica. Em segundo lugar, apresentaremos
algumas considerações quanto ao lugar dos milagres na
cristologia do segundo evangelho, com especial atenção aos

82
exorcismos. Em terceiro lugar, será analisada a estrutura da
passagem contextual de Marcos 3.27, i.e., Marcos 3.20-30. Em
quarto lugar, serão examinados Marcos 3.27 como parte da
argumentação de Jesus no contexto da controvérsia sobre
Belzebu, seus paralelos na literatura judaica e as
implicações para os primeiros leitores do evangelho. A última
parte conterá conclusões e implicações decorrentes do estudo
feito para o cristão e para a igreja de hoje.

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O EVANGELHO DE MARCOS

O evangelho de Marcos merece ser lido e estudado como uma


unidade literária independente, na qual o evangelista houve
por bem registrar a história de Jesus – o Messias Filho de
Deus (Mc 1.1) – de uma perspectiva própria. Isso significa
que o escritor tem seus propósitos, interesses e estilo
diferentes dos de Mateus ou dos de Lucas. Marcos é um
evangelho que tem como público uma igreja predominantemente
gentia, segundo o testemunho claro das expressões aramaicas
que ele traduz (e. g., Mc 5.41; 7.34; 14.36; 15.22) e dos
costumes judaicos que ele explica a seus leitores (e. g., Mc
7.2-4).

Verifica-se no evangelho de Marcos certa tensão entre duas


ênfases no quadro de Jesus que o autor apresenta. Na primeira
metade (caps. 1-8), Marcos destaca a autoridade e o poder de
Jesus ao enfrentar e vencer as forças sobrenaturais que se
levantam contra ele, enquanto na segunda metade (caps. 9-16)
ele ressalta o fato de Jesus se render às autoridades
temporais do judaísmo. Há pelo menos três considerações
importantes sobre isso:

1. Existe nas linhas da narrativa de Marcos o desenvolvimento


claro de um estágio preliminar do ministério de Jesus – que
inclui seus exorcismos, suas curas e seu ensino – até o
estágio final em que ele encontra o sofrimento e a morte.

83
Esses dois aspectos fazem parte da história que Marcos conta;
não são (como alguns entendem[1]) ênfases conflitantes. São
duas fases complementares do drama que ele apresenta.

2. Enquanto o destaque na primeira metade do evangelho está


na questão da identidade de Jesus (Mc 1.1, 11, 24, 27, 34;
3.11s; 4.41; 6.14-16; 8.27-30) — portanto cristológica — a
ênfase na segunda metade é na inevitabilidade de seu
sofrimento e morte, e as implicações soteriológicas que daí
decorrem (Mc 8.31; 9.9-13, 30-32; 10.32-34, 45; caps. 14 e
15).

3. É em Marcos 10.45 que encontramos uma chave teológica


para entender o evangelho de Marcos como um todo. Este
versículo constitui o clímax das instruções de Jesus aos
seus discípulos; aqui sua carreira pode ser vista da
perspectiva correta: “Pois nem mesmo o Filho do homem veio
para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate
por muitos” (NVI).[2] O ministério de Jesus até este ponto
do evangelho (exorcismos, curas e ensino) e também seu
sofrimento e morte ainda por vir são caracterizados pela
expressão grega διακονία (diakonia), i.e., “serviço”. A
palavra “serviço” descreve o cuidado de Jesus com a
comunidade (suas palavras e obras – primeira parte do
evangelho), bem como o significado da morte de Jesus que o
evangelista narra na história da paixão. Assim, Marcos 10.45
estabelece uma importante ligação entre a cruz/ressurreição
e o ministério de Jesus como um todo.

O LUGAR DOS MILAGRES NA CRISTOLOGIA DE MARCOS

Os exorcismos fazem parte do material sobre milagres de Jesus


que Marcos utilizou em seu evangelho. Esse material compõe
nada menos que 31% do total do livro.[3] A maior parte dos
milagres registrados em Marcos aparece na primeira metade do
evangelho, exatamente na seção do livro que trata das

84
atividades do ministério de Jesus uma vez que a segunda
parte concentra-se nos eventos em Jerusalém que levam à sua
paixão (sofrimento, morte e ressurreição). Consequentemente,
sem os milagres de Jesus (incluindo, é claro, seus
exorcismos) a história da cruz se tornaria completamente sem
sentido e ininteligível.

Marcos é o evangelista que apresenta o maior e mais detalhado


número de narrativas e referências a exorcismos entre os
sinópticos – João sequer apresenta algum exorcismo. Por causa
disso, o estudo da atividade exorcista de Jesus em Marcos
torna-se ainda mais relevante. As narrativas sobre
exorcismos encontram-se em Marcos 1.21-28; 5.1-20; 7.24-30;
9.14-29, além dos sumários marcanos sobre as atividades de
Jesus que os destacam (1.32-39 e 3.7-12).

A ESTRUTURA DE MARCOS 3.20-30

Mateus e Lucas introduzem em seus evangelhos o evento


relatado em Marcos 3.20-30 com a descrição do exorcismo de
um homem cego e mudo (Mt 12.22s; Lc 11.14). Marcos não
menciona esse exorcismo em seu evangelho e, ao contrário de
Mateus e Lucas, tem em vista a atividade exorcista de Jesus
como um todo (cf. especialmente Mc 3.11-12). A perícope de
Marcos 3.20-30 tem como tema central uma controvérsia entre
Jesus e os escribas que o acusam diante da atividade dele
como exorcista. A narrativa, porém, começa com a descrição
da atitude da família de Jesus em relação a ele mesmo e a
seu ministério. Provavelmente Marcos 3.20 forneça a razão
(embora talvez não a única) da forte reação da família de
Jesus, descrita em 3.21: ele não tem tempo nem para comer
tal é o assédio das multidões sobre ele e seus discípulos.
A família de Jesus chega com isso à conclusão: “Ele está
fora de si” (ἑξέστη [exestē]). Os familiares de Jesus, sua
mãe e irmãos, pensam que ele está louco – pelo menos a essa
altura do ministério dele (cf. Jo 7.1-5). É importante notar

85
que imediatamente depois da controvérsia de Marcos 3.20-30
a família de Jesus reaparece em cena e, então, é apresentado
o desfecho apropriado quanto à atitude deles (Mc 3.31-35):
enquanto os que estão sentados à volta de Jesus são a sua
família de facto, sua família natural não faz a vontade de
Deus, pois não segue a Jesus (cf. 3.34 e s.). O que vemos
aqui, portanto, são duas histórias mescladas na mesma
narrativa; uma interpolação ou “sanduíche” marcano. A
narrativa começa com uma história que permanece inconclusa
enquanto outra história é introduzida, ao fim da qual a
anterior é retomada e concluída. Essa atitude da família de
Jesus é colocada em paralelo com a dos escribas em Marcos
3.22. Existe uma simetria deliberada na construção das duas
frases em 3.21 e 3.22: ελεγ́
ον γὰρ ὅτι ἐξέστη (elegon gar
hoti exestē, 3.21) … ελεγ́
ον γὰρ ὅτι Βεελζεβούλ ἔχει (elegon
hoti Beelzeboul echei, 3.22). As duas frases tratam, é claro,
de opiniões até certo ponto semelhantes acerca de Jesus. O
propósito de Marcos parece ser o de destacar o fato de que
enquanto alguns simplesmente não entendem o que Jesus está
fazendo (e. g., sua família), outros o rejeitam, conscientes
da identidade e da missão dele (e. g., os escribas).

A estrutura exegética do texto de Marcos 3.22-30, que


particularmente nos interessa por conter a afirmação de Jesus
sobre o “valente”, pode ser visualizada da seguinte forma:

1. As acusações dos escribas revelam sua rejeição absoluta


de Jesus (3.22)

a. Os escribas acusam Jesus de estar possesso por Belzebu


(3.22a)

b. Os escribas acusam Jesus de expelir demônios pelo


principal demônio (3.22b)

86
2. A resposta de Jesus às acusações demonstra o absurdo do
raciocínio dos escribas e estabelece a sua própria autoridade
(3.23-29)

a. A premissa ilógica das acusações dos escribas (3.23b)

b. Duas parábolas ilustram o erro dos escribas (3.24 e s.)

c. A conclusão ilógica do argumento dos escribas (3.26)

d. A parábola do “valente” é usada por Jesus para reivindicar


sua autoridade para expelir demônios (3.27)

e. A advertência sobre a blasfêmia contra o Espírito aponta


para a verdadeira fonte da autoridade de Jesus (3.28-30)

i. A declaração do perdão irrestrito para todo tipo de pecado


(3.28)

ii. A declaração de condenação eterna por blasfêmia contra


o Espírito (3.29 e s.)

A importância de compreender o contexto dessa passagem,


juntamente com a estrutura, é fundamental para o entendimento
de Marcos 3.27. É o que procuraremos fazer a seguir.

ANÁLISE EXEGÉTICA DE MARCOS 3.27 NO CONTEXTO ORIGINAL

As Acusações dos Escribas Revelam sua Rejeição Absoluta de


Jesus (3.22)

Os escribas[4] de nossa passagem “haviam descido de


Jerusalém” (οἱ γραμματεῖς οἱ ἀπό Ἱεροσολύμων καταβάντες[5]
[hoi grammateis hoi apo Ierosolymōn katabantes]). Isso
sugere que formavam um grupo com aparente autoridade oficial
que foi de Jerusalém até a Galileia investigar as atividades

87
de Jesus de Nazaré e dar o seu veredicto sobre ele. Os
escribas, é claro, faziam parte do Sinédrio, o supremo
tribunal e o parlamento máximo dos judeus.[6] Serão eles que
mais tarde, juntamente com os outros dois grupos membros do
Sinédrio, os fariseus e os chefes dos sacerdotes, o
condenarão à morte de cruz.

Mas quais seriam, afinal, as razões que levaram os escribas


a lançar suas acusações (3.22) contra Jesus? O contexto
anterior a Marcos 3.22 parece fornecer algumas pistas.
Primeira, talvez a reação do povo ao ensino autoritário de
Jesus – expressamente contrastado com o ensino dos escribas
em Marcos 1.21-28 – aponte para uma emergente oposição dos
escribas locais (em Cafarnaum) que culminaria, mais tarde,
com a intervenção dos escribas de Jerusalém. Segunda, os
debates entre Jesus e as autoridades religiosas da Galileia
(Mc 2.1-3.6) mostram que a oposição a Jesus cresce a ponto
de chegar ao estágio de conspiração (3.6).
Significativamente, é depois da menção da conspiração (entre
os fariseus e os herodianos[7]) que é feita referência aos
escribas de Jerusalém, o que justificaria uma delegação
especial vinda do centro político e religioso de Israel para
investigar Jesus na Galileia. Terceira, outra razão poderia
ter sido a crescente fama de Jesus, especialmente por causa
das curas e exorcismos (cf. 1.28, 32-34, 35-39; 3.7-12).
Isso certamente teria chamado a atenção das autoridades
religiosas em Jerusalém. Quarta, a atitude não-conformista
de Jesus em relação às tradições dos escribas (Mc 7.1-13) e
à rígida observância de alguns aspectos da lei (e. g., Mc
2.23-28) pode também ter servido de pretexto para o forte
antagonismo deles à pessoa de Jesus. Parece que naquela época
os escribas não tinham controle sobre a Galileia no mesmo
grau em que tinham no sul, na Judeia. Assim, eles teriam
ainda mais motivo para se colocar contra Jesus, pois ele

88
estaria interferindo nos seus interesses numa região em que
sua influência era menor do que a desejada.[8]

A natureza da acusação dos escribas deve ser observada na


forma dupla em que Marcos a apresenta na passagem:

Primeiramente, Jesus é acusado de estar possesso por Belzebu


(Βεελζεβούλ ἔχει [Beelzeboul echei], 3.22b). Essa parte da
acusação não se encontra nos paralelos de Mateus e Lucas,
mas há algo parecido em João 7.20; 8.48 e s. e 10.20 e s. O
comentário que Marcos faz no final da perícope, em 3.30, ὅτι
ελεγ́
ον, Πνεῦμα ἀκάθαρτον ἔχει [hoti elegon, Pneuma
akatharton echei], que é um equivalente inequívoco de 3.22b,
indica que para Marcos a primeira parte da acusação é
significante. Em outras palavras, os escribas estão dizendo
que, porque Jesus está possesso por Belzebu, ele é capaz de
expelir demônios. Belzebu era um título comum para Satanás
no judaísmo do primeiro século. Porém, nem seu significado
nem sua pronúncia são certos.[9] Baseado em Mateus 10.25,
entretanto, é possível deduzir que o sentido da expressão na
época de Jesus pode ter sido “senhor da casa”. Mateus l0.25b
tem uma fraseologia parecida com a de Marcos 3.25, 27: εἰ
τον οικοδεσπότη Βεελζεβούλ επεκάλεσαν,
πόσῳ μᾶλλον τοὺς οἰκιακοὺς αὐτοῦ (ei ton oikodespotēn
Beelzeboul epekalesan posō mallon tous oikiakous autou) —
“Se chamaram Belzebu ao dono (senhor) da casa, quanto mais
aos seus domésticos (servos da casa)”. Οἰκοδεσπότην
(oikodespotēn), que significa “dono, senhor da casa”, na
língua grega, aqui é aplicado diretamente a Jesus,
correspondendo ao aramaico Beelzeboul.[10] Como Jesus falava
em aramaico com seus discípulos, não é difícil perceber aqui
um jogo de palavras deliberado:

89
<img data-attachment-
id="3325" data-
permalink="https://teologiabrasileira.com.br/amarrando-o-
valente-interpretacao-de-marcos-3-27-em-seu-contexto-
original/belzebu/" data-orig-
file="https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?fit=347%2C133&amp;ssl=1
" data-orig-size="347,133" data-comments-opened="1" data-
image-
meta="{&quot;aperture&quot;:&quot;0&quot;,&quot;credit&quot
;:&quot;&quot;,&quot;camera&quot;:&quot;&quot;,&quot;captio
n&quot;:&quot;&quot;,&quot;created_timestamp&quot;:&quot;0&
quot;,&quot;copyright&quot;:&quot;&quot;,&quot;focal_length
&quot;:&quot;0&quot;,&quot;iso&quot;:&quot;0&quot;,&quot;sh
utter_speed&quot;:&quot;0&quot;,&quot;title&quot;:&quot;&qu
ot;,&quot;orientation&quot;:&quot;0&quot;}" data-image-
title="belzebu" data-image-description="" data-medium-
file="https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?fit=324%2C124&amp;ssl=1
" data-large-
file="https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?fit=347%2C133&amp;ssl=1
" class="size-full wp-image-3325 aligncenter"
src="https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?resize=347%2C133&#038;s
sl=1" alt="" width="347" height="133"
srcset="https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?w=347&amp;ssl=1 347w,
https://i1.wp.com/teologiabrasileira.com.br/wp-
content/uploads/2020/02/belzebu.png?resize=324%2C124&amp;ss
l=1 324w" sizes="(max-width: 347px) 100vw, 347px" data-

90
recalc-dims="1" />Em segundo lugar, Jesus é acusado de
expelir demônios pela agência do principal (príncipe) dos
demônios, i.e., o suposto supremo poder do mal que estaria
em Jesus era a fonte de poder e autoridade por ele exibidos
nos exorcismos (ἐν τῷ ἄρχοντι
τῶν δαιμονίων ἐκβάλλει τὰ δαιμόνια [en tō archonti tōn
daimoniōn ekballei ta daimonia]).[11] O que esta acusação
sinaliza em Marcos é que os escribas reconhecem que a fonte
do poder exercido por Jesus é sobrenatural. Entretanto, como
Jesus não se enquadra na teologia dos escribas nem se submete
à sua autoridade, eles o tacham de oposição. Dizer que Jesus
é capaz de realizar seus exorcismos só com a assistência do
principal demônio explicaria adequadamente o fenômeno; i.e.,
ele está debaixo do controle e da influência das forças que
se opõem a Deus, submisso à sua própria liderança. De fato,
na literatura rabínica posterior (terceiro século em diante)
aparece uma acusação contra Jesus semelhante a esta, só que
atribuindo o poder de Jesus às artes mágicas: “E um mestre
disse: Jesus de Nazaré praticou magia e desviou Israel”.[12]
Entretanto, isso não permite concluir que a acusação feita
pelos escribas foi imediatamente entendida dessa forma pelos
seus adversários. Pelo contrário, diante das expressões
registra das por Marcos, é possível pensar que a acusação
dos escribas era mais extrema do que chamá-lo de “mago”. Ao
dizer que Jesus estava possesso por Belzebu, o príncipe dos
demônios, os escribas poderiam estar considerando Jesus o
agente máximo do poder demoníaco.É provável que Marcos não
tenha pretendido que seus leitores gentios captassem uma
sofisticação linguística como este jogo de palavras de Mateus
10.25 em sua narrativa da controvérsia sobre Belzebu. Mas,
é igualmente provável que o segundo evangelista tenha
preservado fielmente a tradição sobre o evento que remontava
ao Sitz-im-Leben original. Qualquer que seja o caso, fica
evidente que a primeira parte da acusação implica afirmar

91
que Jesus está possesso pelo próprio poder do mal, Satanás
(cf. 3.23b).

A Resposta de Jesus às Acusações dos Escribas Demonstra o


Absurdo do Raciocínio dos Escribas e Estabelece a Sua Própria
Autoridade (3.23-29)

Jesus responde por meio de parábolas às acusações que lhe


foram feitas – o que é expressamente declarado por Marcos no
versículo 23a. Tal fato é importante a essa altura da
narrativa de Marcos, pois o capítulo seguinte (4) contém uma
coleção de parábolas que Jesus contou em diversas ocasiões
e uma explicação do uso das parábolas em seu ministério. Em
Marcos 4.11, 12 Jesus diz que para os de fora (τοῖς ἔξω) ele
fala tudo por parábolas, enquanto a seus discípulos o
“mistério do reino” é dado, i.e., interpretado e explicado.
Portanto, ao responder com parábolas a seus acusadores, Jesus
deixa claro que estes se lhe opõem não como resultado de
falta de entendimento (como os discípulos e a parábola do
semeador, por exemplo, cf. 4.13 e ss.), mas consciente e
deliberadamente rejeitam sua missão.

Marcos sinaliza que deseja que toda essa seção, 3.22-30,


seja entendida como uma unidade, ao iniciá-la e concluí-la
com a acusação (3.22 e 3.30). Assim, devemos estar atentos
ao fato de que os detalhes aqui, incluindo Marcos 3.27,
precisam ser vistos diante do todo da passagem – é dessa
forma que Marcos a construiu. Isolar Marcos 3.28 e s. desse
contexto é um exemplo muito conhecido do perigo de fazer uma
exegese fragmentada, que leva a sérios problemas
doutrinários.

Jesus começa sua resposta propondo uma questão simples de


lógica: “Como pode Satanás expelir Satanás?” Em outras
palavras, se é o próprio Satanás (Belzebu) quem está agindo

92
em Jesus e por ele nas expulsões de demônios (seus agentes),
então ele, na realidade, estaria praticando o suicídio, pois
estaria destruindo a sua própria obra. Jesus estabelece,
desde o início de sua resposta, que a acusação dos escribas
carece de qualquer base lógica. Como seria possível Jesus
ser um agente satânico e ao mesmo tempo destruir as obras de
Satanás? O argumento de Jesus é ampliado nos versículos
seguintes (incluindo 3.27). A ênfase de Jesus aqui, no
entanto, está em demonstrar que exorcizar os servos de
Satanás só pode ser uma realização dos inimigos de Satanás,
não de seus aliados.[13]

A primeira parábola fala, precisamente, de uma guerra civil,


de um reino dividido contra si mesmo (3.24). É evidente que
o resultado dessa divisão será o colapso e a autodestruição
desse reino. A segunda parábola continua a mesma linha de
argumentação. Qualquer casa ou família dividida por
inimizade entre os seus membros também não poderá subsistir
(3.25). O resultado invariável será a desintegração da
família.

No versículo 26, Jesus leva as duas parábolas às últimas


consequências, aplicando o princípio da divisão interna, que
inexoravelmente conduz à desintegração, a Satanás e aos
demônios. O final de 3.26, ἀλλὰ τέλος ἔχει (ala telos echei),
traz à tona a conclusão lógica da acusação “ilógica” dos
escribas: divisão entre os aliados de Satanás decretaria seu
fim, sua destruição completa. Se isso fosse verdade, a esfera
de influência de Satanás estaria totalmente acabada; ele já
não estaria mais ativo. O caso, porém, não é esse. Satanás
não foi destruído (ainda). A acusação dos escribas é tola e
desprovida de qualquer fundamento empírico. Contudo, convém
observar que, ao referir-se ao “fim” de Satanás, Marcos
(citando Jesus) estabelece uma conexão direta entre os
versículos 3.23b e a parábola do valente em 3.27.14.[14]

93
Embora a parábola de 3.27 traga uma nota distinta na
argumentação de Jesus, ainda assim leva ao corolário lógico.
A base para a atividade exorcista de Jesus é estabelecida,
pelo menos em parte, em 3.27, que passaremos a examinar em
detalhe agora.

A resposta de Jesus, a partir de Marcos 3.27, assume agora


contornos de contra-ataque. Jesus usa ainda outra parábola
(provérbio), não para simplesmente se defender das acusações
infundadas dos escribas, mas para estabelecer a sua própria
autoridade messiânica. As palavras de Jesus aqui têm de ser
entendidas dentro do fluxo da argumentação do texto: a) ele
ainda está falando aos escribas, não diretamente aos
discípulos; b) a forma de expressão de Jesus ainda é
figurada, parabólica ou proverbial; ele continua a analogia
usada nas parábolas anteriores (3.25); c) ele está explicando
porque é capaz de expulsar demônios. Há divergência quanto
à interpretação dos detalhes dessa parábola. Numa coisa,
porém, há concordância: na identificação do “valente”
(ἰσχυρός) com Satanás, e daquele que é capaz de amarrá-lo e
despojá-lo com Jesus.[15]

Faremos agora uma análise do contexto literário de Marcos


3.27 e das alternativas exegéticas para a interpretação do
versículo.

O Contexto Literário de Marcos 3.27

Muitos estudiosos acreditam que o texto de Isaías 49.24 e


s., é o fundamento das palavras de Jesus em Marcos 3.27:
“Tirar-se-ia a presa ao valente? Acaso os presos poderiam
fugir ao tirano? Mas assim diz o SENHOR: Por certo que os
presos se tirarão ao valente, e a presa do tirano
fugirá…”.[16] Certa correspondência entre ἰσχυρός (Mc 3.27a)
e o hebraico gibbôr do Texto Massorético (TM) (e o particípio
ἰσχύοντος na Septuaginta [LXX] de Isaías 49.25a), além da

94
natureza alegórica das duas passagens, tudo isso é visto
como indicação de que Isaías 49.24 e s. influenciou as
palavras de Marcos 3.27.[17] Temos de observar, no entanto,
que uma suposta influência de Isaías 49.24 e s. em Marcos
3.27a não pode ser tida como direta, i.e., como citação ou
alusão explícita. Embora haja certa equivalência verbal
entre as duas passagens (cf. acima), qualquer tentativa de
demonstrar dependência verbal de nossa passagem com Isaías
cai por terra. Mesmo o texto grego da LXX não permite tal
conclusão; ᾿Εάν τις αἰχμαλωτεύσῃ γίγαντα, λήμψεται σκῦλα δὲ
παρὰ ἰσχύοντος σωθήσεται (Is 49.24 e s.).

Em vez de ver uma relação direta entre as duas passagens,


podemos afirmar que existe em Marcos uma expressão indireta
da mesma ideia. Jesus não está, portanto, citando Isaías
49.24 e s. nem fazendo alusão a esse texto. Marcos, porém,
mostra Jesus utilizando a mesma figura que Isaías 49.24 e s.
apresenta, i.e., do valente despojado de sua presa. Ambos os
textos refletem simplesmente o mesmo tipo de linguagem.[18]

A mesma coisa pode-se dizer sobre a ideia de uma influência


direta de Isaías 53.12 em Marcos 3.27a. Naquela passagem, o
próprio contexto mostra que qualquer associação linguística
entre as duas passagens é meramente incidental. Isaías 53.12
refere-se à ideia da recompensa a ser recebida pelo “Servo
de YHWH” depois de seu sofrimento e não a conflito como é o
caso em Marcos 3.27.[19]

A passagem que, aparentemente, usa o mesmo tipo de linguagem


e vocabulário de Marcos 3.27 encontra-se na literatura
pseudepigráfíca.[20] Salmos de Salomão 5.3: “Porque ninguém
toma a presa ao valente…” (ou γαρ ληψεται σκυλα παρα ανδρὸ
δυνατου…) Esse texto pode ter sido influenciado por Isaías
49.24 e s. e, nesse sentido, ilustrar o fato de que um dito
proverbial desenvolveu-se a partir de Isaías 49.24 e s. ou

95
era a fonte de ambas as passagens (Is 49.24 e s. e SI.
Salomão 5.3). Entretanto, por falta de maiores informações,
não podemos decidir quanto a essa questão específica.

Os textos discutidos acima, especialmente Isaías 49.24 e s.


e SI. Salomão 5.3, mostram que, embora o dito de Marcos 3.27a
não venha como citação direta (ou alusão) qualquer uma das
duas tem em comum com ela duas coisas: a) a das três passagens
é figurada; b) as três passagens utilizam linguagem figurada
para ilustrar lições diferentes: enquanto em Isaías 49.24 e
s. YHWH é quem vai restaurar o seu povo deportado por seus
conquistadores (o “valente”), em SI. Salomão 5.3 YHWH é
comparado ao valente (“homem forte”) de quem ninguém pode
tirar coisa alguma, a não ser que ele mesmo escolha dá-la,
e em Marcos 3.27a é Satanás quem é apresentado como o
“valente” conquistado e saqueado.[21] Essa segunda
observação certamente apoia a ideia de que o dito sobre o
“valente” é um provérbio cuja lição é indicar que a
interferência com um poder estabelecido depende da
possibilidade de poder maior ser exercido. Jesus, ao empregar
essa linguagem do valente/homem forte imobilizado, está
implicitamente alegando ser superior a Satanás; afinal, está
invadindo a esfera de atuação de Satanás e destruindo sua
obra com os exorcismos que realiza.

A Interpretação de Marcos 3.27

O quadro mental apresentado em Marcos 3.27 é autoexplicável:


somente alguém mais forte do que o valente poderia entrar em
sua casa e saquear seus bens depois de tê-lo amarrado. Jesus,
em seus exorcismos, demonstra ser mais forte do que Satanás.
Também o contexto não deixa dúvidas de que ele é superior a
Satanás.[22] O que precisa ser mais bem definido é como essa
passagem deve ser vista no contexto do evangelho de Marcos
como um todo e como isso se encaixa no conflito entre Jesus
e Satanás nesse evangelho. Há aqui opiniões divergentes entre

96
os eruditos. Por um lado, encontramos a perspectiva que
Ernest Best advoga (entre outros), afirmando que Marcos 3.27
remete ao episódio da tentação de Jesus (1.12 e s.) em que
Satanás teria sido amarrado por Jesus.[23] O principal
aspecto dessa ideia é que, uma vez que no evangelho de Marcos
não há uma conclusão definitiva para o evento – e essa é a
primeira referência a Satanás antes de 3.22b, 26 – Marcos
3.27 expressaria, então, a conclusão da tentação: Satanás
foi amarrado por Jesus.

Por outro lado, James M. Robinson acredita que os exorcismos


de Jesus em Marcos fazem parte de um “conflito cósmico” entre
Deus e as forças do mal.[24] Marcos 3.27 deveria ser
apreciado, portanto, em termos de um conflito cósmico entre
o Espírito (em Jesus) e Satanás, um conflito que começa com
a tentação. Essa interpretação preconiza que o resultado dos
exorcismos de Jesus antecipa a vitória final sobre Satanás
que seria conquistada no evento cruz/ressurreição.

Outras sugestões para a interpretação de Marcos 3.27 têm


sido publicadas. W. Hendriksen, por exemplo, crê que a ideia
de “amarrar” Satanás deve ser vista como um processo que
envolve a encarnação, a tentação, o ministério de Jesus em
geral e os exorcismos em particular, sua cruz e
ressurreição.[25] Leivestad declara que Marcos 3.27 e seus
paralelos em Mateus 12.28 e Lucas 10.18 são “afirmações
marcantes de uma escatologia realizada”, i.e., o “reino” de
Satanás já chegou ao fim na vinda de Jesus, mas a “batalha
final ainda terá de acontecer”. Essa “batalha final”, de
acordo com ele, é o julgamento de Cristo em sua segunda
vinda.[26] Também G. Twelftree estudou com atenção as ideias
judaicas sobre a destruição de Satanás (cf. Is 49.24 e s.;
Jubileus 5.5-10; 1 Enoque 21) e concluiu que a perspectiva
encontrada nos evangelhos é bem semelhante a elas. Por isso,
Twelftree fala de uma derrota do mal em dois estágios: Marcos

97
3.27 representaria o primeiro estágio em que Satanás é
amarrado, e a derrota definitiva aconteceria no juízo final
(cf. Mateus 13 .30).[27]

Esses pontos de vista sobre Marcos 3.27 levantam uma séria


questão hermenêutica que queremos avaliar agora. A pergunta
é: até que ponto interpretações como as expostas acima são
resultado da alegorização dos detalhes em Marcos 3.27? Será
que a ideia de que Marcos apresenta Jesus instruindo seus
discípulos a “amarrar” os demônios ou o diabo não vem também
da alegorização dos detalhes do versículo? Já mencionamos
acima que Marcos 3.27 é parte das parábolas que Jesus usou
para rebater as acusações dos escribas. Reconhecer que
trabalhamos aqui com uma parábola que deve nos alertar de
que certos cuidados são necessários para não extrapolarmos
a intenção de Marcos [Jesus]. Nossa preocupação não é tanto
a classificação de Marcos 3.27 como parábola, como alegoria
ou como qualquer outra figura, mas com a alegorização na
interpretação do texto.[28] Algumas coisas ditas sobre
Marcos 3.27 parecem abertas a interpretações exegeticamente
sustentadas com muita dificuldade. Em alguns casos essas
interpretações chegam muito perto da alegorização. George B.
Caird faz uma distinção muito instrutiva entre alegoria e
alegorização:

UMA ALEGORIA É UMA HISTÓRIA EM QUE O AUTOR PRETENDE

TRANSMITIR UM SENTIDO OCULTO, E É CORRETAMENTE INTERPRETADA

QUANDO ESSE SENTIDO OCULTO É PERCEBIDO. ALEGORIZAR É IMPOR

A UMA HISTÓRIA SENTIDOS OCULTOS QUE O AUTOR ORIGINAL NÃO

PRETENDIA COMUNICAR NEM MESMO VISLUMBROU; É TRATAR COMO

ALEGORIA AQUILO QUE NÃO É PRETENDIDO COMO ALEGORIA.[29]

98
Haveria qualquer base para dizer, portanto, que em Marcos
3.27 temos uma “afirmação clara” de Marcos de que a luta
entre Jesus e Satanás já teria terminado, de que “amarrar”
(δέω) refere-se ao conceito achado na literatura
apocalíptica? Concordamos com Best em que há indícios da
ideia de “amarrar Satanás” tanto na literatura apocalíptica
como no NT, cf. Tobias 8.3; 1 Enoque 10.4 e s.; 18.12-19.2;
21.2-6; 54.4 e s.; Testamento de Levi 18.12; Jubileus 48.15;
Apocalipse 20.2 e s.[30] Mas a existência de terminologia
similar num dito parabólico, como Marcos 3.27, não pode por
si só justificar o pensamento de que se trata da mesma ideia.
É importante observar que quando a linguagem de “amarrar” é
empregada, tanto no apocalipsismo como no NT, sempre há
indicação clara da identidade dos que são amarrados: o
demônio Asmodeus em Tobias 8.3; os demônios Azazel e Semiaz
em 1 Enoque 10.4-7, 11 e s.; Beliar no Testamento de Levi
18.12; nove décimos dos demônios em Jubileus 10.7-9; Mastema
em Jubileus 48.15 e s.; Satanás em Apocalipse 20.2 e s.

Alguém poderia sugerir que, tendo identificado Satanás com


o “valente”, seria permissível trabalhar os detalhes mais a
fundo. Entretanto, ainda que a comparação de Satanás com o
“valente” e de Jesus com o que o imobiliza seja nitidamente
indicada pelo contexto, o mesmo não se pode dizer dos outros
detalhes em Marcos 3.27.[31] Nem mesmo o segundo evangelho
como um todo parece fornecer os indícios necessários para
isso. É exegeticamente mais honesto e seguro tomar Marcos
3.27 como uma parábola que, em seu próprio contexto, é usada
por Marcos para demonstrar a superioridade de Jesus sobre
Satanás. Embora a linguagem utilizada lembre outras
passagens que falam da derrota e da destruição de Satanás,
Marcos 3.27 é primariamente linguagem figurada empregada
para comunicar a ideia da autoridade superior de Jesus.

99
Diante da discussão exegética sobre “amarrar” (acima), como
se pode entender a aplicação para hoje do que Jesus diz em
Marcos 3.27? Como observamos no início deste ensaio, essa
expressão de Jesus tem sido objeto de muita controvérsia
atualmente – controvérsia esta estimulada principalmente por
aqueles que veem aqui a “chave” para a batalha espiritual.
Encontramos na literatura evangélica mais recente afirmações
do tipo “…Jesus disse que temos de, primeiro, amarrar o homem
forte, para poder sacar as propriedades da casa (Lc 11.21,
22)”;[32] O Senhor declara que temos que ‘amarrar o homem
forte’. Apesar de o verbo ‘amarrar’ não estar no imperativo,
ele acaba tendo o efeito de uma ordem”.[33] Nossa avaliação
dessas asseverações pode ser assim sintetizada:

Em primeiro lugar, o verbo “amarrar” (grego δέω) não deve


ser alegorizado. O uso da palavra nas declarações acima, de
fato, alegoriza a alegoria. Não há quaisquer indícios no
texto que permitam ao leitor interpretar o que Jesus diz
além dos limites impostos pelo fluxo de argumentação do
texto. Portanto, esse versículo não está dando um mandamento
aos crentes nem fornecendo instruções sobre como se deve
exorcizar um demônio (as únicas instruções de Jesus para
seus discípulos quanto a exorcismos são encontradas em Marcos
9.28 e s.; Mateus 17.19-21). Lucas 11.21 e s., que consta da
primeira citação acima e é o paralelo lucano de Marcos 3.27,
ajuda-nos a entender que o propósito de Jesus não era nem
destacar o verbo “amarrar” – que está ausente do texto – mas
sim usar uma ilustração de seu poder superior: “Quando um
homem forte, bem armado, guarda sua casa, seus bens estão
seguros. Mas quando alguém mais forte o ataca e vence, tira-
lhe a armadura em que confiava e divide os despojos” (NVI).
Lucas não deixa nenhuma dúvida quanto ao propósito de Jesus
com a figura.

100
Em segundo lugar, num sentido mais amplo, deve-se entender
que o que Jesus descreve em Marcos 3.27, usando linguagem
figurada, serve para ilustrar apenas que a encarnação do
Filho de Deus representa o início da vitória de Deus sobre
as forças espirituais do mal. Essa vitória só terá caráter
definitivo no fim dos tempos (CI2.15; Hb 2.14 e s., cf. Ap
20.1-10).

Em terceiro lugar, se há pessoas que hoje têm tido vitórias


usando a ordem de amarrar o demônio para depois expulsá-lo,
ou de amarrar o inimigo em sua atuação em alguma área, isso
se deve não ao uso de alguma fórmula para exorcismo (“eu te
amarro em nome de Jesus”), mas à misericórdia e à graça de
Deus. Não há dúvida de que ele age e trabalha apesar de nós,
de nossas limitações e de nossa falta de sabedoria. Porém,
ao ler as narrativas de exorcismo nos evangelhos, vemos que
Jesus nunca usou nenhum tipo de fórmula de exorcismo da qual
dependesse seu sucesso como exorcista (cf. Mc 1.25; 5.8;
7.29; 9.25 e os paralelos em Mateus e Lucas). Jesus usava
somente uma simples palavra de ordem: “saia” (ἔξελθε). Assim
também os apóstolos no livro de Atos colocam-se em nítido
contraste com aqueles que pretendiam usar o nome de Jesus
como fórmula mágica ou amuleto; (cf. At 19.13-16).
Paradoxalmente, era no paganismo que ocorria a ideia expressa
de “amarrar” demônios. Esse fato é testemunhado por muitas
referências nos chamados Papiros Mágicos Gregos (PGM),[34]
além de escritos judaicos não-bíblicos (cf. Tobias 8.3; 1
Enoque 10.4-7; Testamento de Levi 18.12; Jubileus 10.7-9;
48.15 e s.).

Uma última observação deve ser feita a respeito da


advertência de Jesus nos versículos 28 e 29. Certamente não
há espaço neste ensaio para explorar os detalhes da
interpretação dessa parte do texto. Limitamo-nos, portanto,
a estabelecer o lugar da advertência sobre a blasfêmia contra

101
o Espírito Santo na exposição de Jesus. A menção do Espírito
é extremamente importante no fluxo do argumento de Jesus,
uma vez que no período interbíblico o Espírito havia
permanecido “em silêncio” – por isso, o período é também
denominado “400 anos de silêncio”. Agora, porém, o Espírito
reaparece, agindo poderosamente na pessoa de Jesus de Nazaré,
o Messias (cf. Is 11.1-5; 61.1 e s.). Desde que Jesus não se
conformava à teologia e à tradição dos escribas, e desde que
o Espírito só se manifestaria de novo (segundo criam) no fim
dos tempos, era difícil encaixar Jesus nas categorias que
haviam estabelecido. Assim, não é de admirar que os escribas
acusassem Jesus ao ponto de identificá-lo com o diabo.
Algumas observações feitas acima esclarecem a adequação do
que Jesus diz aqui ao contexto da controvérsia: a) Jesus
adverte os escribas sobre a blasfêmia contra o Espírito; ele
não fala disso, nem aqui nem em qualquer outro lugar, em
relação aos discípulos. São os escribas, sua oposição, que
se tornaram passíveis da advertência de Jesus; b) os escribas
mantêm uma posição de rejeição absoluta de Jesus, o que faz
com que identifiquem maliciosamente seus exorcismos como
obra do inimigo (cf. Is 5.20: “Ai dos que ao mal chamam bem,
e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz, e da luz
escuridade; põem o amargo por doce, e o doce por amargo”).
A advertência de Jesus é específica para os escribas e válida
somente durante a encarnação de Cristo, quando ainda era
possível afirmar sobre a pessoa de Jesus e sobre o seu
ministério humano o que os escribas estavam dizendo.

CONCLUSÃO

Chegamos ao fim de nossa pesquisa sobre a interpretação


contextual de Marcos 3.27. Ao longo do percurso, já apontamos
para as possíveis implicações das diversas posições
perscrutadas. Resta-nos resumir nossas conclusões do estudo
exegético do texto – é com base nelas que se pode desenvolver
uma abordagem do assunto que possa ser considerada “bíblica”.

102
Nossa convicção é de que precisamos sempre ouvir o texto
bíblico, deixar que fale de si mesmo, de seu próprio
contexto. Não cremos que seja salutar e honesto fazer o texto
dizer o que desejamos que ele diga. Três observações são
importantes aqui:

1. A dureza e o absurdo da acusação dos escribas traem o seu


desejo de achar alguma explicação, que não seja o poder de
Deus, para justificar o sucesso de Jesus como exorcista.

2. A descrição da resposta de Jesus, como Marcos a registrou,


demonstra que seus exorcismos devem ser vistos como uma
incursão para dentro do domínio de Satanás e como uma vitória
sobre o seu “reino”.

3. A ênfase maior nesse texto é sobre a autoridade e sobre


o poder de Jesus, o que é confirmado pelo fato de ele ser
cheio do Espírito. Essa autoridade superior foi o que
ocasionou a acusação dos escribas, e a resposta de Jesus é
consoante a tal desafio.

___________________

[1] CROSSAN, J. D., Mark and the relatives of Jesus, Nov.


T., 15:81-113; e WEEDEN, T. J., Mark: Traditions in Conflict,
Fortress, 1971.

[2] Nova Versão Internacional.

3] RICHARDSON, A., The Miracle-Stories of the Gospels, SCM,


1941, p. 36. A atividade miraculosa de Jesus pode ser
dividida em: a) milagres terapêuticos (“curas” – Mc 1.29-
31,40-45; 2.1-12; 3.1-6; 5.21-43; 7.31-37; 8.22-26; 10.46-
52); b) milagres na natureza (Mc 4.35-41; 6.35-44, 45-52;

103
8.1-10; 11.12-14,20 e s.): e c) exorcismos (cf. lista
abaixo).

[4] Para um excelente resumo a respeito dos escribas do


judaísmo no primeiro século, veja JEREMIAS, J., Jerusalém no
Tempo de Jesus, Paulinas, 1986, p. 317-333.

[5] Em Mc 7.1 um grupo de escribas reaparece, juntamente com


os fariseus, com uma designação semelhante,
τινες τῶν γραμματέων ἐλθόντες ἀπὸ Ἱεροσολύμων,
aparentemente com a mesma missão.

[6] JEREMIAS, J., Jerusalém no Tempo de Jesus, p. 107.

[7] Os herodianos formavam uma espécie de partido local de


apoio a Herodes, o tetrarca da Galileia.

[8] Veja especialmente FREYNÉ, S., Galilee: From Alexander


the Great to Hadrian, 325 B. C. E. to 135 C. E., UP, 1980,
p. 322. Depois de analisar o NT e o material judaico
contemporâneo, Freyné conclui que, à parte de poucas
incursões na Galileia antes de 70 A. D., não havia grande
penetração dos ensinos dos escribas e dos fariseus naquela
área.

[9] As sugestões tradicionais são: a) “Senhor da casa


(celestial)”, b) “Senhor do esterco”, que seria um jogo de
palavras com o nome do deus de Ecrom, Baal-Zebude, de 2 Rs
1.2, com Baal-Zibul, em hebraico “esterco”, “excremento”; c)
“Senhor da inimizade”. Veja AUNE, D. E., International
Standard Bible Encyclopedia, 1:447; e LANGTON, E.,
Essentials of Demonology, Epworth, 1949, p. 166 e s.

[10] Veja, por exemplo, CRANFIELD, C. E. B., The Gospel


According to Saint Mark, CUP, 1983, p. 136; BARTLETI, D. L.,

104
The Exorcism Stories in the Gospel of Mark, tese de doutorado
não-publícada, 1973, p. 178 e s.

[11] Lucas tem exatamente as mesmas palavras de Marcos mais


a expressão Belzebu, Lc 11.15b. Mateus introduz a acusação
com εἰ μή (ei mē), o que enfatiza a conclusão definitiva,
por parte dos fariseus (em Mateus), de que é somente por
Belzebu que Jesus é capaz de exorcizar.

[12] b.Sanh. 107 (Baraita).

[13] SIMPSON, R. T., The Major Agreements of Matthew and


Luke against Mark, NTS, 12:280 e s.

[14] GNILKA, J., EI Evangelio Segun San Marcos: Mc 1-8, 26,


trad. espanhola do original alemão Das Evangelium nach Markus
(MK 1-8, 26), Sigueme, 1986, p. 170.

[15] Veja GRUNDMANN, W., Theological Dictionary of the New


Testament, III:400 e s., e Das Evangelium nach Markus,
Evangelische Verlagsanstalt, 1962, p. 84; TAYLOR, V., The
Gospel According to St. Mark, MacMillan, 1980 p. 241;
CRANFIELD, C. E. B., The Gospel According to St. Mark, p.
137-39; e BEST, E., The Temptation and the Passion: The
Markan Soteriology, CUP, 1965, p. 12.

[16] Veja, e. g. GRUNDMANN, Theological Dictionary of the


New Testament, III:400 e S; BULTMANN, R., The History of the
Synoptic Tradition, Blackwell, 1963, p. 98; TAYLOR, V., The
Gospel According to St. Mark, p. 241; CRANFIELD, C. E. B.,
The Gospel According to St. Mark, p. 138; BARRETI, C. K.,
The Holy Spirit in the Gospel Tradition, SPCK, 1947, p. 62;
FRANCE, R. T., Jesus and the Old Testament, Tyndale, 1971,
p. 259; e MARSHALL, J. H., The Gospel of Luke. A Commentary
of the Greek Text, Paternoster, 1978, p. 477.

105
[17] Veja, e. g. PESCH, R., Das Markusevangelium, Herder,
1976-77,1:215 e s.

[18] GRIMM, W., Die Verkündigung Jesu und Deuterojesaja,


Peter Lang, 1981, p. 90, observa que a figura expressa por
gibbôr em Isaías 49.24 e s. refere-se ao poder dos reis da
Babilônia – o que pode ser facilmente transferido para
Satanás e seu poder. Sobre a exegese do texto hebraico de
Isaías 49.24 e s., veja WESTERMANN, C., Isaiah 40-66, SCM,
1969, p. 221; WHYBRAY, R. N., Isaiah 40-66, Oliphants, 1975,
p. 147.

[19] Quanto à discussão sobre a relação do paralelo em Lucas


11.21 e s. e Isaías 53.12, veja GRIMM, Die Verkündigung Jesu
und Deuterojesaja, p. 93-96; e HIERS. R. H., The Kingdom of
God and the Synoptic Tradition, Univ. Florida Press, 1970,
p. 43.

[20] É a literatura judaica escrita no período interbíblico


e nos primeiros séculos da era cristã. Uma das
características desse tipo de literatura (não-bíblica) é o
uso “descarado” de nomes de personagens bíblicos importantes
como supostos autores dos livros.

[21] Veja MICHAELS, J. R., Servant and Son. Jesus in Parable


and Gospel, Knox, 1981, p. 250, que se refere à parábola de
Marcos 3.27 como reflexo de um imaginário flexível usado em
diferentes contextos.

[22] Alguns estudiosos argumentam que a referência a Jesus


como ἰσχυρότερός em Marcos 1.7 antecipa o pensamento de
Marcos 3.27, e. g. LANE, W. L., Commentary on the Gospel of
Mark, Eerdmans, 1974, p. 143, n. 92. Mas isso não pode ser
assim, porque em Marcos 1.7 o comparativo é aplicado apenas
ao relacionamento entre Jesus e João Batista. O paralelo de

106
Lucas, no entanto, introduz o comparativo ἰσχυρότερός, cf.
11.22.

[23] BEST, E., The Temptation and the Passion, p. 11-13;


Mark: The Gospel as Story, T. & T. Clark, 1983, p. 56 e s:
e JEREMIAS, J., As Parábolas de Jesus, Paulinas, 1986, p.
124 e s.

[24] ROBINSON, J. M., The Problem of History in Mark, SCM,


1957, p. 78, 83.

[25] HENDRIKSEN, W., A Commentary on the Gospel of Mark,


Eerdmans, 1975, p. 136.

[26] LEIVESTAD, R., Christ the Conqueror, SPCK, 1954, p. 48,


289.

[27] TWELFTREE, G., Christ Triumphant, p. 81 e s.

[28] CAIRD, G. B., The Language and the Imagery of the Bible,
Duckworth, 1980, p. 160-67, argumenta que os evangelistas
tinham um conceito mais amplo do que é uma parábola e que,
em alguns casos, não pode ser feita uma distinção mais rígida
entre parábola e alegoria.

[29] CAIRD, The Language and the Imagery of the Bible, p.


165.

[30] Para outras passagens, veja CHARLES, R. H., The


Revelation of St. John, T. & T. Clark, 1920, II: 141 e s.

[31] BEST, Temptation and Passion, p. 13 e s., menciona a


questão da interpretação de ta\ skeu/h em relação ao problema
de alegorização. LAGRANGE, M. -J., Évangile Selon Saint Marc,
Gabalda, 1947, p. 73 e s., critica Loisy por exagerar nos

107
detalhes da parábola. Lagrange insiste que Isaías 49.24 e s.
é o texto que constitui a fonte da parábola.

[32] ITIOKA, N., Os Deuses da Umbanda. O Baixo Espiritismo:


Implicações Teológicas e Pastorais, ABU, 1987, p. 183 (cf.
205). O livro de Itioka, todavia, contém excelente pesquisa
sobre a formação do espiritismo no Brasil.

[33] PICKERING, W., Spiritual Warfare, ensaio não-publicado,


1990, p. 64.

[34] Papyri-Graecae Magicae. Die Griechischen Zauberpapyri,


ed. por K. Preisendanz, 1928-31

108

Você também pode gostar