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Por
Elias Gomes da Silva
__________________________________________
Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg
Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
À minha família: minha mãe, minha irmã e meu sobrinho, pelo apoio incondicional aos meus
estudos.
Em particular à Claudia Rodrigues (minha esposa querida) pelo incentivo, compreensão, e
motivação.
Ao meu amigo Admilson Leite pelo companheirismo que fora de grande importância nesta
trajetória.
Ao Prof. Rui, pela orientação, pela paciência, pela confiança, sem as quais não seria possível
a conclusão do curso.
Aos funcionários e professores do Departamento de Ciência da Religião da UMESP, que de
alguma forma contribuíram significadamente neste trabalho.
Ao CAPES, por ter financiado esta pesquisa.
“A condição de alienação do homem moderno é resultado do seu pecado, de um
ato de rebeldia contra o Senhor do Universo. Por causa de uma decisão
voluntária, ele mesmo quebrou suas relações com Deus, e vive alienado da fonte
da vida. Daí decorre também sua alienação com relação ao próximo e a crise
interna em que sempre vive.”
Richard Schaull
SILVA, Elias Gomes da. A dialética do desespero em Kierkegaard e sua influência sobre
o conceito de alienação em Paul Tillich. Dissertação de Mestrado em Ciência da
Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.
RESUMO
ABSTRACT
Their research sought to establish the relationship of influence of the philosophy of Soren
Kierkegaard on the theological construction of Paul Tillich. Therefore, we use as background
or argumentative structure the concept of human despair Kierkegaard, comparing it to the
concept of Transfer of being Tillich. We objectify it, demonstrate the dialogical intertwining
compound in the development of so-called doctrine of sin in both authors. That is, as the
unfolding of Kierkegaard's anthropology problematized the foundations of systematic
theology, especially in the matter of harmatiologia, and how this same questioning, was able
to standardize the modus operandi that led to the drafting done by Tillich on the same subject.
Obviously, that in the course of this research, are not intended to "disqualify" or "eliminate"
the originality of the authors, nor turn their arguments into a kind of conceptual amalgam.
Thus, before a review is supposed to have brought an "arbitrary fusion of ideas" seek, once
again pointing solutions dialectical and common centers, pointing to those elements of
convergence, where in fact, dialogue is possible.
Introdução……………………....…………………..………………………………..………12
4. Considerações finais........................................................................................................132
5. Referências bibliográficas..............................................................................................136
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INTRODUÇÃO
suposta sugestão de poder classificá-lo como sendo uma espécie de indivíduo de “vida
notável”. Porém, ainda continuará sendo perceptível, a relação de dependência que este tem
com os períodos predecessores. [...] a sociedade não é um baile à fantasia, em cada um pode
mudar a máscara ou fantasia a qualquer momento (ELIAS, 1994, p. 34). Desde o
nascimento, estamos “presos” às relações que foram estabelecidas antes de nós e que existem
e se estruturam durante nossa vida (TOMAZI, 2010, p. 15).
Do ponto de vista dos objetivos – gerais e específicos – busca-se descrever a
complexidade do conceito de desespero humano apresentado por Kierkegaard, situando-o
como um resultado de uma empresa argumentativa que se desenvolveu a partir do prisma de
uma construção antropológica, onde em última instância, objetiva-se a formação e a
constituição do eu, marcado por uma relação consigo mesmo (o finito) e com Deus ou a ideia
de Deus (o infinito). Procuramos apontar as principais características daquilo que o autor
chamou de desespero visto sob a categoria do eu relacionado com a problemática da doutrina
do pecado em Paul Tillich. Ainda em um segundo momento, busca-se também especificar os
objetivos da pesquisa, investigando e problematizando se é possível a partir do referido
conceito de desespero apresentado por Kierkegaard, estabelecer ou não concordância ou
equiparação como a concepção da doutrina de pecado (como sendo um estado de “alienação
do ser”) elaborada por Tillich. Nossa hipótese, é que tanto a noção de desespero em
Kierkegaard, como a concepção de pecado em Tillich, possui um intercâmbio fecundo de
relações profundamente relevantes. Ou seja, estamos diante de um processo dialético, visto
que se em Kierkegaard a autoconsciência do eu, remete a doutrina do pecado em Tillich,
teríamos supostamente uma espécie de “processo inverso”.
Do ponto de vista justificativo, a pesquisa demonstra que está de fato, embasada no
reconhecimento de que tanto Kierkegaard quanto Tillich são figuras importantes e
inspiradoras para se pensar uma religiosidade de caráter plural, que seja ao menos capaz de
dialogar com a cultura vigente. Proporcionalmente, o trabalho se consolida na medida em que
o mesmo permite-nos a oportunidade de investigar o conteúdo e as extensões desta
perspectiva, em relação, e entorno da problemática da doutrina do pecado, sobretudo por um
viés teológico-filosófico, colaborando assim, para uma expansão consciente e sistemática da
obra de Kierkegaard e Tillich. É preciso que fique mais uma vez claro, que esta investigação
deve sempre estar sob o prisma de uma perspective análoga, ou seja, que não é uma ousadia,
tampouco uma reviravolta nas interpretações sobre Kierkegaard e Tillich, mas antes a
exigência de uma leitura plural, ciente de suas problemáticas, interlocuções, disposições e
limitações, que coloca a perspectiva de se pensar o respectivo tema, tendo como referencial
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outro solo, nomeadamente ‘extra’, ‘para além’ do solo da tradição “filosófica” ou “teológica”
e suas facetas lógicas, epistemológicas, morais etc. Haja vista, talvez seja esta a grande
inovação de Kierkegaard e Tillich que, de fato, precisa ser compreendida e que justifica este
trabalho, com efeito de interpretar a religiosidade do pensamento ocidental, a partir de uma
“exterioridade”, de outra ótica, – de uma nova ótica –, que justamente por esta “inovação” e
distanciamento sejam capazes de enxergá-la em seu verdadeiro valor, ou seja, enquanto algo
que contribui ou não para a expansão da vida. Nas palavras de Kierkegaard, de forma irônica,
a verdade eterna nunca é facilmente encontrada através de argumentos sistemáticos
(KIERKEGAARD, 2013, p. 46).
Do ponto de vista metodológico, estabelecemos uma abordagem de caráter
bibliográfico. Como será explicitado ao longo do trabalho, o referencial teórico é suficiente
para um levantamento das problemáticas que aqui forem elencadas. Foi feito uma análise
apurada dos textos que contribuíram para o avanço da pesquisa. Criteriosamente estas obras
constituir-se-ão de matérias publicadas em livros, ensaios científicos, artigos e revistas
especializadas. Tudo isso, na tentativa e objetividade de extrair o máximo de avanço através
de uma pesquisa bibliográfica rigorosa das fontes e comentadores. No decorrer desse trabalho,
adotamos como critério, o de procurar estabelecer certa “autonomia” na descrição dos
respectivos capítulos, permitindo assim, ao leitor, a possibilidade de compreender mais
detalhadamente cada autor, de maneira mais individual possível, ou seja, a partir de seus
próprios textos, procurando não fazer nenhuma relação precipitada e imediata. Estruturando o
que fora dito, os respectivos capítulos terão três divisões.
No primeiro capítulo, as reflexões se destinam a analisar e a interpretar a maneira
como Kierkegaard desenvolveu a sua estrutura argumentativa o chamado conceito de
desespero humano. A ideia principal é a de procurar apontar que, segundo esse autor, a
problemática em questão, encontra-se envolvida e entrelaçada a um problema de maior
abrangência de caráter filosófico-antropológico que, por sua vez, deve remeter,
necessariamente, à doutrina e ao dogma do pecado original. No segundo, pretendemos
debruçar nossa atenção, sobre o conceito de alienação no ser de Tillich, relacionando-o a sua
concepção de pecado original; visualizando todos os possíveis desdobramentos apresentados
pelo ator, isto é, a associação que o mesmo faz com conceitos correlatos como: transição,
descrença, hybris e “concupiscência” etc.; objetivando apontar para uma suposta soterologia.
No terceiro, e último capítulo, nossa atenção foi posta em descrever e analisar o
estabelecimento relacional entre da teologia de Paul Tillich com a filosofia de Sören
Kierkegaard. Objetivamos como isso, confirmar nossa argumentação, que de fato existe uma
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1
É necessário considerar que a filosofia nasce passando pelo interior da epopéia homérica e dos poemas de
Hesíodo, de tal modo ou forma que “o começo da filosofia não coincide com o princípio do pensamento racional
nem com o fim do pensamento mítico” (CHAUI, 2006, p. 35). Como também já afirmava J. P. Vernant que não
se trata apenas de encontrar na filosofia o elemento antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo
(VERNANT, 1958, p. 82).
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Segundo Pannenberg (2008), os desdobramentos dessa discussão obrigatoriamente devem remeter a diversos
questionamentos como: O cristianismo como uma espécie de verdadeira filosofia, a filosofia como função da
“razão natural” que se diferencia da revelação sobrenatural, a generalidade racional e subjetividade religiosa,
a supra-função da concepção religiosa no conceito filosófico (PANNENBERG, 2008, p. 20- 29).
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religioso, passa obrigatoriamente pela filosofia e pela literatura. 3 Embora Kierkegaard tenha
se declarado um escritor religioso (KIERKEGAARD, 1986, p. 22), o fenômeno da religião e
da religiosidade em sua obra, só pode ser compreendido quando se reconhece que sua análise
do discurso e abordagem literária não se restringe puramente aos redutos de certa
canonicidade-confessante. Isto é, o estudo da religião em Kierkegaard não é dogmático-
exegético e muito menos ingênuo. Nesse sentido, os aportes teóricos por ele elencados foram
tecidos sobre o emblemático uso da ironia. A ironia em Kierkegaard é pressuposto básico
onde o indivíduo vê a possibilidade de consolidação de sua própria autonomia e liberdade,
sendo essa, detidamente de caráter existencial. Assim, para compreender a construção
filosófica da religiosidade na obra de Kierkegaard é preciso pensá-la como uma espécie de
“espiritualidade vivida”. Para o autor não basta simplesmente dizer que és religioso, é
necessário, sobretudo, vivenciar de fato, essa mesma religiosidade. Não basta simplesmente
nascer cristão é necessário Tornar-se-cristão afirmava Kierkegaard (KIERKEGAARD, 1986,
p. 98). O paradoxo que determina a originalidade da obra de Kierkegaard deve, sobretudo,
repousar em sua perspicácia de procurar demonstrar, que não só perdemos – existencialmente
– a nossa autonomia ou capacidade de se Tornar-se-cristão, como também a de se Tornar-se-
indivíduo.
Do ponto de vista estrutural, o primeiro capítulo terá as seguintes divisões: O desespero
humano como problema antropológico, o problema antropológico como um problema
teológico, pecado e desespero: edificação ou cura. No primeiro tópico, procuramos
demonstrar que para Kierkegaard a temática antropológica é fundamentalmente importante
para compreender sua filosofia. O problema do desespero humano é apresentado pelo autor
como elemento fundante que determina a constituição do Eu. Já no segundo tópico (o
problema antropológico como problema teológico) será abordada a difícil relação entre
4
filosofia e teologia. Embora Kierkegaard não se considere um “filósofo sistemático”, as
diversas categorias da existência que aparecem em sua obra, dentre as quais se destaca o
3
Aqui tocamos o problema do método Kierkegaardiana. A guinada literária de Kierkegaard pode ser sintetizada
nos seguintes termos: sua obra contém elementos de filosofia e religiosidade, cuja estrutura discursiva nos é
apresentada por meio de uma comunicação indireta, a qual dever ser analisada mediante critérios de
interpretação específicos (SILVA, 2012, p. 1). Assim, em Kierkegaard a relação entre teologia, filosofia e
literatura, está posta como uma espécie de amálgama paradoxal.
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Essa ausência de “titularidade filosófica sistêmica” é compreendida na medida em que o autor é abertamente
um crítico da razão moderna que segundo ele é capaz de petrificar a vida em conceitos abstratos (MARTINS,
2010, p. 90), ou seja, ele procura demarcar a incomensurabilidade entre razão e existência. Para Kierkegaard, a
razão é incapaz de dissertar sobre a existência humana, visto que a existência é algo individual e não
mediatizado. Dessa forma, quando um pensador abstrato decide falar sobre a existência singular, ele comete uma
petição de princípio. Inserir a existência no processo de desenvolvimento do espírito, como pretende Hegel é
dissipar o caráter individual para atingir um plano coletivo e geral (MARTINS, 2010, p. 90).
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desespero humano, ao mesmo tempo em que representa uma construção filosófica, ela toca o
problema religioso, nesse caso o problema do pecado. O último tópico ou seção se
entrelaçam. É necessário primeiro compreender – ainda que de forma panorâmica – o
problema teológico do pecado hereditário, sobretudo procurando fazer sempre referência à
originalidade de Kierkegaard na abordagem do tema. Só depois é possível pensar e fazer
referência a uma suposta edificação ou cura.
nada de finito, nem mesmo o mundo inteiro, poderá satisfazer eu de um homem que sente a
grande necessidade do infinito (GRAMMONT, 2003, p. 68).
No que diz respeito a nossa pesquisa, a análise do discurso de Anti-Clímacus precisa
ser comparada com a discursividade de outro pseudônimo de Kierkegaard denominado de
Johannes Clímacus. 5 De fato, Clímacus é um pseudônimo que possui uma espécie de
“biografia” com psicologia e lógica própria (REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ele
inclusive é descrito com um autor jovem, de grande capacidade intelectual e especulativa,
sobretudo familiarizado com os gregos, além de leitor atento de Descartes, Leibniz e Espinosa
(REICHMANN; VALLS, 2011, p. 10). Ora, Clímacus se declara ser o único dinamarquês que
não consegue ser cristão, seja pela institucionalidade de uma religião confinada a um simples
fenômeno geográfico, como também pela tentativa hegeliana de síntese entre cristianismo e
filosofia; Anti-Clímacus é diametralmente o oposto deste, sendo considerado e apresentado
por Kierkegaard um autor cristão em grau eminente, por definição (REICHMANN; VALLS,
2011, p. 11).
Em se tratando da obra do pseudônimo Anti-Clímacus O Desespero Humano, a
mesma foi dividida em duas partes principais: (1) A Doença Mortal é o Desespero; (2)
Desespero e Pecado. Estas duas partes por sua vez, estão subdivididas em cinco livros. Cada
livro, dividido em diferentes números de capítulos. Na primeira parte, temos diversos
apontamentos de caráter filosófico-antropológicos, na segunda, diversos aportes de caráter
teológico-religiosos. Na primeira parte, o nosso autor dialoga com a tradição metafísica, por
isso, é comum à utilização de termos como: finito e infinito, necessário e possível, liberdade e
determinação, o eu e o nada (KIERKEGAARD, 2010, p. 25-97). Na segundo parte,
Kierkegaard utiliza-se de alguns termos teológicos como: Deus e a ideia de Deus, pecado e
tentação, o demoníaco, a salvação, a cura, a edificação e a remissão de pecados entre outros
(KIERKEGAARD, 2010, p. 101-166).
Grosso modo, a antropologia kierkegaardiana tem como mola propulsora a ideia
fundamental de que a constituição do eu é determinada por um processo dialético interno de
relação do eu consigo mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p. 25). Trata-se da relação ou inter-
relação entre o finito e o infinito. Para Kierkegaard, o primeiro é identificado como homem, e
5
O respectivo pseudônimo que inspirou Kierkegaard teve uma existência real. Ele teria vivido no ano 600 da Era
Cristã, como monge no Mosteiro do Monto Sinai sendo um inclusive autor místico. Sua principal obra intitula-se
Scala Paradisi. Trata-se de um texto de ascetismo místico, ou como diz o próprio nome, de subida ao paraíso.
Ainda sobre a tensão entre os dois pseudônimos, o próprio Kierkegaard julgava ser ele próprio como alguém que
estaria filosoficamente situado acima de Clímacus, mas abaixo de Anti-Clímacus (PAULA, 2009, p. 37-38).
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o segundo ora como Deus, ora como a ideia de Deus. Esse processo relacional é marcado e
caracterizado por uma mescla sintetizante. Ele diz:
Nesse sentido, ao afirmar que: [...] o eu não existe ainda (KIERKEGAARD, 2010, p.
25) Kierkegaard supostamente teria construído sua antropologia de maneira diferenciada da
tradição filosófica cuja mediação está sempre posta sobre a base do gênero. Isto é, a natureza
ou essência do homem é caracterizada não por uma determinação a priori, mas sim por uma
construção existencialmente autônoma a posteriori. De fato, aparentemente, não é tão simples
de ser percebido aqui o nascimento de um “novo paradigma”. Na tese kierkegaardiana, o eu
possui uma estrutura determinada originalmente – que é a de ser uma síntese, ainda que
complexa – e essa estrutura original é, no sentido próprio do termo, uma natureza ou uma
essência (FERRO, 2011, p. 141). Aparentemente na filosofia de Kierkegaard, portanto, a
essência precederia a existência e Anti-Climacus faria parte de uma tradição antiga, daquela
que parte da Grécia (FERRO, 2011, p. 141). Na tradição filosófica - na qual Aristóteles vai
aparecer como uma espécie de “figura principal” - tornou-se convencional achar que o
conceito de natureza humana é detidamente determinado a partir da ideia de um conjunto de
elementos estruturais fixos na existência humana, elementos que ela não pode dispor, que,
portanto, limitam-se e constrangem, e que constituem o âmbito a partir do qual a vida humana
deve obrigatoriamente se desenrolar (FERRO, 2011, p. 141). Ora, se por natureza se entende
qualquer coisa deste gênero, é certamente claro que Anti-Climacus admite a existência de
uma natureza humana, e que ela possui, como se afirmou, a estrutura de uma síntese (FERRO,
2011, p. 141).
É justamente esse tipo de leitura que precisa ser criticamente refeita ou reelaborada.
Segundo Nuno Ferro (2011), existe uma imprecisão tanto na leitura que fazemos de
Aristóteles, como também – dentro desse contexto – consequentemente de Kierkegaard. É
necessário, sobretudo, fazer uma diferenciação ou comparação entre os diversos sentidos de
natureza dados por Aristóteles no livro no livro Δ da Metafísica, (FERRO, 2011, p. 142)
como os apontamentos que se encontra no livro Θ (FERRO, 2011, p. 143). No livro Δ
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(quinto), Aristóteles criou diversos sentidos de natureza que acabou de certa forma,
determinando o rumo da metafísica essencialista (ARISTÓTELES, 2002, p.199). Em geral,
todos eles estão relacionados com o princípio interno de movimento ou crescimento num ente
(FERRO, 2011, p. 142). Assim, são naturais, neste sentido do termo, aqueles entes que
possuem uma unidade real dinâmica, que são unos e passam a ser o que são a partir de si, de
tal modo que contêm os princípios do seu desenvolvimento que crescem, portanto, a partir de
dentro, passe a redundância (FERRO, 2011, p. 142). Aristóteles, na passagem indicada,
apenas indica que tal princípio é imanente, mas não específica – ou pelo menos não é claro
que o faça – a relação entre o princípio dos atos e os atos condicionados por tal princípio, quer
dizer, que determinação está em causa nesse princípio de unidade e de desenvolvimento
(FERRO, 2011, p. 142-143). Por outro lado, citando também o exemplo apresentado por
Aristóteles no livro Θ (nono), o autor procura mostrar que o quadro muda completamente
(FERRO, 2011, p. 143). Ou seja, nesse livro, Aristóteles expõe a diferença entre potências
racionais e potências não racionais, a saber: potências naturais ou naturezas
(ARISTÓTELES, 2002, p. 399, 401). 6 Proporcionalmente, a diferença consiste no fato das
potências não racionais – as naturezas, como se disse – não admitirem efeitos contrários, e
estarem, portanto, determinadas a um único efeito, a um único ato (FERRO, 2011, p. 143). Já
as chamadas potências racionais são capazes, por si mesmas e não por acidente, de efeitos ou
atos contrários, e não estão, assim, determinadas ontologicamente (FERRO, 2011, p. 143).
Esta diferença entre tipos ou gêneros de potências ocasionará fortes polêmicas, sobretudo a
partir do sec. XIII, que serão decisivas para a compreensão moderna e contemporânea que
temos de nós próprios. Não é obviamente possível seguir a pista destas polêmicas, apesar de
haver nelas traços claros na obra de Kierkegaard (FERRO, 2011, p. 143).
Jean Paul Sartre (2011) entende que o procedimento aqui adotado, permite
compreender que o problema antropológico em Kierkegaard deve remeter a uma mudança de
paradigma no campo filosófico, sobretudo, metafísico. É justamente essa mudança que o
filósofo francês vai valorizar. Sartre reconhece que esse é um dos grandes fatores que ainda
faz Kierkegaard – mesmo depois de sua morte em 1855 – continuar um “ser vivente”,
6
Nas palavras de Aristóteles temos: enquanto as potências racionais são as mesmas para ambos os contrários,
cada uma das irracionais é potências de um único contrário: o quente, por exemplo, só é potência de aquecer,
enquanto a arte média é potência de enfermidade e da saúde. Isso é assim porque a ciência funda-se sobre noções
e a mesma noção manifesta tanto a essência da coisa como a sua privação, embora não do mesmo modo: de fato,
a ciência é ciência de ambos os contrários, mas prioritariamente do positivo. Portanto, é necessário que também
essas potências racionais sejam de ambos os contrários, e que de um dos contrários o sejam por sua própria
natureza, enquanto do outro não o sejam por sua própria natureza [...] Por isso as potências racionais agem de
maneira contrária as potências irracionais, porque com único princípio, isto é, com a razão, envolvem ambos os
contrários (ARTISTÓTELES, 2002, p. 399, 401).
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atualizado e dialogando com a geração contemporânea (SARTRE, 2011, p. 168). Ele diz: [...]
não se trata de se concentrar no problema religioso da encarnação do Cristo, nem nos
problemas metafísicos (SARTRE, 2011, p. 168). O que Sartre busca é se concentrar e
valorizar a questão do [...] paradoxo da existência histórica (SARTRE, 2011, p. 169). A
questão chave, ou seja, o grande diferencial da filosofia kierkegaardiana foi procurar [...]
estabelecer um conhecimento histórico de uma verdade eterna (SARTRE, 2011, p. 169). Essa
noção é chamada por F. Farago (2006) como sendo um processo de criação humana onde o
movimento de transcendência repousa no coração da imanência (FARAGO, 2006, p. 91).
Trata-se de um paradoxo. Perceba, Anti-Clímacus parece ter em mente uma das perguntas
fundamentais levantadas por Kant: o que é o homem? Ele responde: o ser humano é espírito
(ROOS, 2009, p. 69). Mas se ficasse apenas confinado nessa afirmação, aparentemente,
estaríamos de novo naquelas típicas e conhecidas definições confessionais. Mas Anti-
Clímacus não para ai. Ele diz: [...] Mas o que é espírito? Espírito é o eu (self)
(KIERKEGAARD, 2011, p. 25). Em outro lugar: [...] eu não possui existência real, e não é
senão o que será (KIERKEGAARD, 2011, p. 46). A capacidade de valorizar a concretude da
existência humana, eis a grande originalidade de Kierkegaard (SARTRE, 2011, p. 170). Uma
nova antropologia que visa e se preocupa, sobretudo em entender, de maneira diferente a ideia
de ação, reformulando a concepção do sujeito em suas dimensões jurídica, política e
religiosas, bem como as correlatas estratégias ou formas de legitimação do sujeito. Em Rubem
Alves (2012), a legitimação do sujeito é caracterizada pela sua capacidade de não, mas reagir,
mas principalmente responder (ALVES, 2012, p. 57). O reagir é um ato que se localiza na
esfera do biológico. O responder, contudo, pertence à esfera da liberdade (ALVES, 2012, p.
57). No que diz respeito à História da Filosofia Contemporânea focaliza-se o processo de
desconstrução e reconstrução do sujeito, desde a redução do cogito a uma ilusão gramatical
até a uma perspectiva existencialista, fenomenológica ou hermenêutica.
Ora, agora é possível falar sobre o problema do desespero humano. Isto é, a partir do
momento em que se compreende que para Kierkegaard a natureza humana não pode ser
medida de maneira autêntica (Heidegger) sem que o indivíduo seja ao menos capaz de forjar
sua própria existência, é que se pode de fato entender a originalidade do nosso autor em
identificar o drama da existência humana, cujo conceito de desespero é fundamental. No
entanto, o processo de Tornar-se a si mesmo, ou seja, a superação da essência pela existência
só é permitida na liberdade. E liberdade em Kierkegaard é sinônimo de contingência e
possibilidade, e ao mesmo tempo, de desespero e angústia.
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Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são,
também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe
que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação,
uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de
desconhecimento ou que ele nem ousa conhecer, receio de uma eventualidade
exterior ou receio de si próprio; tal como os médicos dizem de um doença, o
homem traz em estado latente uma enfermidade, da qual, por lampejos,
raramente, um medo inexplicável lhe revela a presença interna [...] Não é ser
desesperado que é raro, o raro, o raríssimo, é realmente não ser [...]
Geralmente, quem se não confessa doente passa por são, e mais ainda se é ele
quem se considera saudável. Os médicos, pelo contrário, olham de outro
modo as doenças. Porque têm uma ideia precisa e desenvolvida do que seja a
saúde, e por ela se regulam para julgar nosso estado. Não ignoram que, assim
como há doenças imaginárias, há saúdes imaginárias; por isso receitam
remédios para tornar o mal patente (KIERKEGAARD, 2010, p. 37-38).
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Nessa mesma obra, Kierkegaard sinaliza em uma nota de roda pé, que talvez somente as crianças estivessem
isentas ou imunes ao problema do desespero, sobretudo levando em consideração que nelas a eternidade só
existiria em potência (KIEREKGAARD, 2010, p. 69).
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Ao ter feito alusão à filosofia de Fiche, Kierkegaard possibilitou o desencadeamento de diversas pesquisas.
Vários estudiosos, tanto de Kierkegaard como de Fiche, tem procurado estabelecer certa aproximação entre os
dois. As pesquisas têm avançado desde sua dissertação sobre Ironia, como também a doença para morte. As
faixas de espectro temático têm variado entre a teoria da autoconsciência e a base das reflexões ética a partir de
uma antropologia religiosa. Um bom comentário sobre a relação dos dois autores pode ser encontrado no
trabalho dos alemães J. Stolzenberg e S. Rapic – Kierkegaard und Fichte: praktische und religiöse Subjektivität
(2010) lançado pela editora De Gruyter.
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É interessante observar que o próprio Kierkegaard foi quem classificou o primeiro como sendo uma versão
feminina do desespero e o segundo uma versão masculina. Ainda sobre as duas versões de desespero, o autor
também procurou deixar claro duas coisas: (1) De que as respectivas versões correm o risco de existirem
somente do ponto de vista ideal; (2) Do pensamento ou erro de se achar que na mulher não se possam encontrar
formas masculinas de desespero, e inversamente formas de desespero feminino no homem, todavia, ele insiste
em dizer que se trata de exceções, visto que comumente às versões tendem a seguir a potencialidade dos gêneros
(KIERKEGAARD, 2010, p. 69). Essa suposta “rigidez” de Kierkegaard para com o gênero feminino, tem
levantado diversos debates e questionamento na comunidade acadêmica e inclusive gerado algumas pesquisa.
Para um estudo mais sistemático sobre o tema, recomendo dois livros de Kierkegaard: Diário de um Sedutor
(1843); O Banquete (In vino veritas) (1845). Ambos fazem parte de obras maiores do autor. O primeiro está
Either/or (Ou isso, ou aquilo: um fragmento de vida), e o segundo em Esdádios no Caminho da Vida. Sobre os
desdobramentos do Diário de Sedutor, tem o trabalho dissertativo realizado pela filósofa minéria Guiomar de
Grammont, publicado em 2003 pela editora Catedral das Letras como o título: Don Juan, Fauto e o Judeu
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Errante em Kierkegaard. Sobre a figura feminina em o Banquete, a um ensaio publicado por Ana C. C. Barbosa
– In Vino Veritas: o amor em o Banquete kierkegaardiano pela Revista Cadernos UFS – Filosofia (2010).
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A expressão é cunhada da chamada “esquerda hegeliana”. Trata-se de um grupo de estudantes jovens
professores na Universidade Humboldt de Berlim após a morte de Georg Hegel, ocorrida em 1831. Os jovens
hegelianos foram opositores ao popular grupo “hegelianos de direita” os quais detinham as cátedras do
departamento e outras posições de prestígio na universidade e no governo. Habermas (2000) afirma que o maior
representa desse otimismo em relação à racionalidade moderna é Hegel. De modo geral, Hegel vê os tempos
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convergências de uma busca comum, Pannenberg chama nossa atenção defendendo que
Kierkegaard faz parte de um gama de autores cujo pensamento justifica-se sobre a base e
normatividade do princípio antropológico (PANNENBERG, 2008, p. 269). Ora, nesse
sentido, se fizermos uma comparação das reflexões de Kierkegaard como outros autores
também considerados hegelianos de esquerda, vamos nos deparar facilmente com elementos
de caráter correlatos (HABERMAS, 2007, p. 264).
Por exemplo, de maneira análoga, Kierkegaard compartilha com a filosofia de L.
Feuerbach na medida em que também considera a religião sistematicamente construída ou
institucionalizada como sendo nada mais que expressões humanas (PAULA, 2009, p. 21).
Nesse sentido, tanto Kierkegaard como Feuerbach admitem a ineficácia das produções
teológicas. Isto é, a teologia deve ser considerada uma produção distante da realidade em que
afirmapesquisar, estando no âmbito de mera produção humana (PAULA, 2009, p. 22). Porém,
o filósofo dinamarquês, ao contrário da concepção feuerbachiana, não acreditava na ciência
como fator do progresso humano (PAULA, 2009, p. 22). Assim, também, é possível
aproximar suas reflexões como filosofia de K. Marx, sobretudo ao denunciar a consciência de
crise que acompanha uma modernidade inquieta de uma sociedade burguesa (HABERMAS,
2007, p. 264). Não obstante isso, distanciando-se dele, Kierkegaard busca o caminho que
permite sair do pensamento especulativo e da sociedade burguesa corrompida, apegando-se a
subjetividade com verdade, pois para o mesmo, esta não significaria a simples inversão da
relação entre teoria e práxis, mas a confecção autônoma de uma resposta existencial à questão
luterana dirigida a um Deus misericordioso, que frequentemente o atormenta (HABERMAS,
2007, p. 264). 11
Ainda comparando Kierkegaard a Marx, Hannah Arendt continua afirmando que de
modo similar, embora no polo diametralmente oposto, tanto Kierkegaard como Marx,
defendem que o homem poderia “mudar o mundo” ao invés de tentar explicá-lo (ARENDT,
2002, p. 26). Comum a ambos havia o fato de que eles queriam chegar de imediato na
modernos caracterizados por uma estrutura de auto-relação que ele denomina de subjetividade: “o princípio do
mundo moderno é em geral a liberdade da subjetividade, princípio segundo o qual todos os aspectos essências
presentes na totalidade espiritual se desenvolvem para alcançar o seu direito” (HABERMAS, 2000, p. 25). No
entanto, é justamente sobre essa razão objetiva hegeliana que Kierkegaard vai se posicionar contra. O que
também não invalida a teoria que defende que de fato seja impossível uma “compreensão adequada” do
pensamento de Kierkegaard a não ser a partir do pensamento de Hegel. Dentre os que defendem esse impasse é
possível citar T. Adorno. Para o filósofo alemão, Kierkegaard não só depende do pensamento de Hegel com
também desenvolveu seu próprio fazendo uma leitura supostamente “equivocada” de diversos pressupostos
hegelianos (ADORNO, 2011, p. 162).
11
É por isso que Habermas afirma que Kierkegaard deve ser considerado um filósofo pós-moderno, ou seja,
capaz de pensar de maneira pós-metafísica, mas nunca um filósofo pós-cristão (HABERMAS, 2007, p. 161).
Assim, não caberia à razão traçar limites à religião, já que a experiência religiosa indica a razão e o espaço que
ela não pode ultrapassar (HABERMAS, 2007, p. 265).
28
atividade humana, sobretudo por que não aderiram à ideia de começar a filosofia sobre uma
nova base ou sistema, uma vez que passaram a desconfiar e duvidar das respectivas
prerrogativas e da possibilidade de um conhecimento puro e contemplativo (ARENDT, 2002,
p. 26). Porém, a grande diferença – segundo Hannah Arendt – é que Marx supostamente teria
voltado a aceitar a certeza da filosofia hegeliana, filosofia que o seu “por de cabeça para
baixo” mudou menos que o filósofo alemão supôs (ARENDT, 2002, p. 26). Diferente de
Kierkegaard que procurou manter-se ligado ao seu desespero em relação à filosofia, por essa
razão suas reflexões tornaram-se mais importante para o desenvolvimento posterior da própria
filosofia (ARENDT, 2002, p. 27).
Na argumentação que se segue, (próxima sessão) logo perceberemos que as
perspectivas antropológicas de Kierkegaard não se restringem a simples rejeição do conceito
de razão formulado pelo mundo moderno, mas dialoga com outro elemento que também nasce
na modernidade: a crítica da religião (FARAGO, 2006, p. 173-174). Em Kierkegaard, os
elementos antropológicos tipicamente personificados em versões diferentes de desespero
devem de forma geral remeter-nos a elementos teológicos (PANNENBERG, 2008, p. 277).
Isto é, em todas as formulações de sua liberdade, o ser humano individual, segundo
Kierkegaard, tem como referência o eterno. A exposição mais impactante desses fatos feita
por Kierkegaard encontra-se nos seus dois escritos de maior relevância teológica, a saber: O
conceito de Angústia (1844) e, especialmente, a sua obra-prima O desespero Humano – a
doença para a morte (1848). Os dois escritos tratam, no horizonte da doutrina do pecado ou
auto-equivocação quanto à liberdade (PANNENBERG, 2008, p. 279).
Ora, como pode ser observado até agora, para Kierkegaard o problema do desespero é
um problema antropológico, mas, que, por sua vez, deve também remeter a um problema de
caráter teológico, ou seja, o problema do pecado. Ele afirma:
Pecamos quando, perante Deus ou com a ideia de Deus, desesperados, não
queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou
desafio elevando à suprema potência; é, portanto, condenação do desespero.
O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a ideia de Deus; o que faz
do pecado aquilo que os juristas chamam “desespero qualificado” a sua
natureza dialética, ética, religiosa, é a ideia de Deus (KIERKEGAARD,
2010, p. 101).
No primeiro aspecto, costuma-se afirmar que Kierkegaard não poderia ser considerado de
12
maneira imediata um “kierkegaardiano” (HOCHMULLE, 2005, p. 342). Para esses, é
preciso dar a devida atenção ao estudo da obra de Kierkegaard, sobretudo em decorrência de
seu recurso à comunicação indireta, valendo-se de forma simultânea da ironia e da maiêutica
socráticas (HOCHMULLE, 2005, p. 343). Nesse sentido, a própria divisão de suas obras em
veronímicas e heteronímicas, bem como em escritos estéticos e escritos ético-religiosos ou
escritos éticos e escritos religiosos (para além dos estéticos), acentua ainda mais essa
dificuldade (HOCHMULLE, 2005, p. 344). Diante desses pressupostos, a melhor forma de
tentar compreender a obra de Kierkegaard seria estabelecendo uma leitura à moda do próprio
Kierkegaard, ou seja, procurando deixar o leitor o mais próximo de sua própria autonomia
(HOCHMULLE, 2005, p. 345).
Já no segundo aspecto, temos uma crítica mais elaborada produzida pelo filósofo alemão
Theodor Adorno. Ele defende a impossibilidade de tentar confundir a filosofia de
Kierkegaard como poesia, literatura ou teologia (ADORNO, 2010, p. 11). Para esses, ao
lermos a obra de Kierkegaard, a primeira coisa de que precisamos para compreendê-la é
distingui-la da poesia propriamente dita, visto que os fundamentos que norteiam a filosofia de
Kierkegaard, não podem ser necessariamente de imediato, os fundamentos poéticos
(ADORNO, 2010, p. 12). Assim, embora a obra do nórdico esteja carregada de elementos
poéticos, os mesmos devem ser entendidos como metáforas, estratégia e alegorias, que visam
a atingir uma espécie de telos superior (ADORNO, 2010, p. 41). Portanto, não poderíamos
desconsiderar que [...] a seriedade estratégica de Kierkegaard se pretendesse anular a
dignidade da palavra pelo recurso psicológico aos pseudônimos (ADORNO, 2010, p. 40).
Haja vista, a exposição do estético em Kierkegaard possui relevâncias filosóficas
significativas, cujas figuras estéticas devem ser pensadas apenas como metáforas, estratégicas
e alegorias objetivando um telos superior, que não se limita a simples narrativas poéticas ou
literárias (SILVA, 2012, p. 2). O problema é que o leitor pode sentir dificuldades de assimilar
essas afirmações por dois motivos: (1) Embora Kierkegaard tenha buscado estabelecer uma
construção teórica não tão “abstrata”, ou seja, em oposição ao sistema hegeliano que por sua
vez colocava o homem como um simples “predicado” de suas reflexões, ao ter priorizado a
sua atenção na existência humana, Kierkegaard acabou sendo responsável mesmo sem
“pretensão” a uma nova forma de se fazer filosofia. Diante disso, mesmo sendo consideradas
12
Sobre esse ponto, geralmente argumento de refutação é tentativa de afirmar que obra de Kierkegaard embora
não possua a pretensão imediata de criar um sistema filosófico o ato de ter estabelecido a critica filosofia
hegeliana, considerando-a inumana e abstrata por demais, por si mesmo já detonaria elementos embrionários
para uma nova forma de se fazer filosofia, portanto um “novo método”.
31
como “não convencionais”, as análises de Adorno não estariam tão distantes da realidade,
sobretudo, na medida em que, para o autor alemão, embora Kierkegaard tenha escarnecido
incansavelmente de Hegel, o mesmo seria muito mais parecido com ele do que gostaria de
pensar (ADORNO, 2010 p. 234). Por exemplo: os elementos da “resignação infinita” que
compõem a filosofia de Kierkegaard, ainda que hipoteticamente tente excluir essa suposta
totalidade, o mesmo acaba sem perceber remetendo-se à totalidade, comparado inclusive com
os ideais de homem dos projetos de Feuerbach (ADORNO, 2010, p. 235); (2) o fato de
Kierkegaard ter desenvolvido seu pensamento filosófico através de uma construção e
estratégica literária perpassada por diversos elementos como; ambiguidades, ironias,
imaginação, pseudônimos, poética, duplicidades, subjetividade auto-reflexiva, jogos
discursivos e paradoxos, proporcionaram que sua obra fosse sempre lida a partir de uma
perspectiva dialógica e polifônica (SILVA, 2012, p. 3).
Ora, se de fato forem verídicas ou tomadas de maneira unilateral, às conclusões de
Adorno devemos então alterar o modus operandi de nossa pesquisa, sobretudo, na medida em
que o autor não vê como legítima a apropriação da filosofia de Kierkegaard, como novo
método teológico (SILVA, 2011, p. 294). A concepção de existir, na filosofia
kierkegaardiana, se estabelece a partir de sua polêmica com o “cristianismo oficial”, o que
para Adorno faz com que a mesma perca a sua atualidade radical, transformando-se numa
espécie de “situação mental” para a qual a instituição religiosa e a vida do indivíduo há
tempos já saíram da dialética por meio da qual Kierkegaard as encontrou ligadas, embora
ainda permanecendo como potências inimigas (ADORNO, 2010, p. 157). Assim, a
pertinência e a atualidade radical do conceito só podem ser de fato preservadas, quando
desvinculadas majoritariamente da dogmática positiva e das controvérsias com o
protestantismo (SILVA, 2011, p. 295). A pergunta de Kierkegaard sobre a verdade parece ser
mais atual e urgente, quando se remete à realidade da existência [Dasein] sem interferência da
tese dogmática (ADORNO, 2010 p. 157). O grande legado do conceito de existir encontra-se
na questão ontológica. Para Adorno, a questão pelo sentido do ser-aí [Dasein] é o que hoje
mais se busca extrair da leitura de Kierkegaard (SILVA, 2011, p. 295). Nesse sentido, Adorno
continua a sair em defesa de Kierkegaard, principalmente contra alguns pastores e filósofos
que, naquela ocasião na Alemanha, haviam se apropriado da filosofia de Kierkegaard com o
pressuposto de um padroeiro ou de uma espécie de mestre-fundador (ADORNO, 2010, p.
343). Através dos trabalhos de tradução de Christoph Schrempf, Theodor Haecker, a obra de
Kierkegaard se tornou uma espécie de estandarte do protestantismo, sobretudo nos trabalhos
do teólogo Karl Barth (SILVA, 2011, p. 296). Por outro lado, tendo em vista as duas camadas
32
(teológico filosófica) que compõem a obra de Kierkegaard, pode-se observar que em meados
dos 1920 suas reflexões foram destacadas por Heidegger e Jaspers, sendo direcionadas para
uma ontologia antropológica (ADORNO, 2010, p. 344), legando com isso a Kierkegaard os
atributos de um filosófico clássico. Para Adorno, essa trajetória de “vitória” constitui-se uma
espécie de inverdade, sobretudo em relação às máximas e aos conteúdos doutrinários do
próprio Kierkegaard (ADORNO, 2010, p. 347).
No entanto, esses dois posicionamentos, precisam ser comparados como o posicionamento
do próprio Kierkegaard. Não podemos nos esquecer de que estamos lindando com uma
espécie de “pensador existencial” (PONTES, 2011, p. 174). Nesse sentido, ao refletir sobre o
seu método, o autor procurou afirmar que sua principal intenção não poderia ser mais clara:
pregar o cristianismo em meio à cristandade (PONTES, 2011, p. 176). Ora, de maneira
estratégica inspirado em Sócrates: de modo indireto, fazendo-se mais ou menos ignorante, ou,
quando muito, apenas “bem informado” (PONTES, 2011, p. 176), ou seja, constrói-se uma
ilusão para lidar com outra ilusão, sendo a primeira a serviço da verdade ou de Deus
(PONTES, 2011, p. 177). Assim, Kierkegaard, reconhece estar sozinho nesta empreitada, pois
não buscava o reconhecimento de ninguém, embora o futuro pudesse ser-lhe mais clemente
(KIERKEGARD, 1986, p. 22). Do ponto de vista da análise do discurso, é como Kierkegaard
supostamente procurasse “desaparecer” até para si mesmo como escritor (FOUCALT, 1992,
p. 23). Nota-se que, em seus textos “estéticos” (aqueles assinados por pseudônimos) deixam
um espaço, em si mesmo, para outro que não existe de fato, sendo, talvez, a ilusão de um ideal
pessoal não realizado ou de como se processaria as “etapas no caminho de tornar-se
indivíduo”, quem sabe (PONTES, 2011, p. 176). Ora, por exemplo: voltemos para o objeto de
13
nossa pesquisa. Vejamos o conceito de pecado, isto é, a doutrina do pecado original. Como
ela aparece nos escritos Anti-Climacus (O Desespero Humano)? Ela foi sistematicamente
elaborada por meio de um discurso de uma teologia acadêmica ou de uma exegese bíblica? Os
pressupostos apresentados pelo autor dinamarquês são confessionalmente claros? Obviamente
que não. É, por isso, que a postura literária de Kierkegaard nem sempre agrada os teólogos
tradicionais. Como veremos a seguir, essa suposta não convencionalidade do discurso
13
Não podemos deixar de afirma que a temática do pecado, não se restringe ao livro de Anti-Clímacus
(Desespero Humano), mas deve perpassar a maior parte da obras Kierkegaard. Sobre isso, W. G. Kirkconnell
(2011) realizou um estudo preciso onde o mesmo pode demonstrar a presença temática do pecado em diversas
partes do corpus kierkegaardiano. Em seu Kierkegaard on Sin and Salvation o problema do pecado está presente
em diversas obras. Seguindo a mesma sequência apresentada pelo autor, as principais são: Migalhas Filosóficas,
O Conceito de Angústia, Discursos Edificante, Pós-Escrito não Cientifico as Milhas filosóficas entre outras. A
originalidade de Kirkconnell reside em estabelecer sua pesquisa observando todas elas concomitantemente como
a questão soterológica.
33
14
A Expressão deve sempre pairar sob o âmbito hipotético tendo em vista que Kierkegaard não teria proposto –
pelo menos não de formar direta – uma síntese em sua dialética. É justamente essa “ausência de síntese” que
renderia ao autor o seu distanciamento de Hegel. Por outro, o mudos operandi de seus discursos filosóficos
permite-nos pensar no convite de uma síntese forja pelo próprio leitor.
34
É nítido aqui o convite que Kierkegaard nos faz aos seus modos de existência. 15 Na
primeira parte do livro, temos a presença dos elementos estéticos e éticos, já na segundo parte,
os elementos religiosos. Na primeira parte, o eu que ainda não tem consciência de si, procura
se apagar na aparência da imediaticidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 46). Seja por se
mergulhar na infinitude da imaginação (KIERKEGAARD, 2010, p. 47). Seja por estar
fechado ou preso nas armadilhas da finitude (KIERKEGAARD, 2010, p. 50). Quando não,
pode também optar entre a necessidade ou possibilidade, nunca sendo capaz de possuí-las de
forma simultânea. É nesse sentido, que eu possui características estéticas. Ainda na primeira
parte, (Capítulo II) Anti-Clímacus afirma que eu passa a ter consciência de si, podendo
inclusive perfeitamente optar entre querer ser ou não a si mesmo (KIERKEGAARD, 2010, p.
60). A capacidade de optar por isso ou aquilo determinam a existência ética do eu. Por fim, a
criação e a nomenclatura de um eu teológico deve apontar para aquilo que o dinamarquês
chamava de existência religiosa, ou como bem costumava falar outro pseudônimo de
Kierkegaard (Johannes de Silentio) a suspensão teológica da moralidade (KIERKEGAARD,
2012, p. 61).
Roos (2009) aponta também para outro fator determinante na filosofia de Kierkegaard,
sobretudo em relação ao eu teológico e o dogma do pecado. Trata-se do entrelaçamento que o
mesmo faz entre conceito de desespero e conceito de angústia. Embora reconhecessem que
nossa pesquisa está sobreposta ao primeiro conceito e a obra de Anti-Clímacus, de fato, não
podemos ignorar a maneira como eles se complementam (ROOS, 2009, p. 1). Isto é, assim,
como pseudônimo Anti-Clímacus chama o processo de má relação consigo mesmo de
desespero – na primeira parte do seu livro – e de pecado na segunda (KIEKREGAARD, 2010,
p. 28-29), em O Conceito de Angústia, o autor pseudônimo Vigilius Haufniensis procura
enfatizar que o indivíduo é responsável pela própria desestabilização da síntese, o que de
15
Kierkegaard afirma haver três estágios nos quais o eu é inserido de acordo com sua visão e experiências
individuais. Isto é, estético, ético e religioso (GARDINER, 2001, p. 50). Segundo Gardiner (2001) os dois
primeiro estágios (estético e ético) foram interpretados por alguns estudiosos através de termos de contrates
teóricos mais familiares como hedonismo e moralismo convencional. Outros a partir da típica distinção kantiana
da inclinação sensual e exigência imperativa da razão (GARDINER, 2001, p. 51). Do ponto de vista de uma
suposta predileção em seu livro Temor e Tremor de 1843, o pseudônimo Johannes de Silentio embora permaneça
no âmbito do ético, demonstra-se plenamente consciente das visíveis limitações da esfera à qual pertence,
sobretudo, mais especificamente, ele está preocupado com a inabilidade dele em procurar abranger os fenômenos
da fé (GARDINER, 2001, p. 63). O objetivo de Kierkegaard era estabelecer, vividamente, o caráter
desconcertante dessas exigências do estádio religioso, onde somente os escândalo e paradoxo da existência são
possível (GARDINER, 2001, p. 64).
35
acordo com a terminologia teológica usada na obra será chamado de pecado – e que Anti-
Climacus descreverá como desespero em toda a primeira parte de A Doença para a Morte
chamando-o de pecado somente na segunda parte (ROOS, 2009, p. 2).
Proporcionalmente, se a angústia é o desencadeamento da relação do homem como
mundo de possibilidade, o desespero é resultado do homem em sua relação consigo mesmo.
Para Kierkegaard, o desespero é culpa do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua
profundidade. Trata-se de uma doença morta: [...] eterno morrer sem, no entanto morrer
(KIERKEGAARD, 2010, p. 20) visto que, do ponto de vista cristão, nem mesmo a morte
deve ser de fato considerada uma doença mortal, muito menos qualquer outro tipo de
sofrimento terreno temporal (KIERKEGAARD, 2010, p. 20). Ora, se quisermos falar de uma
doença mortal no sentido estrito, dever-se-ia tratar de uma doença mortal, cujo fim fosse à
morte em que a morte fosse o fim, pois paradoxalmente o desespero é viver a morte do eu
(KIEREKGAARD, 2010, p. 21).
Portanto, no texto de Vigilius Haufniensis, Kierkegaard procura dar ênfase no conceito
de liberdade atrelado ao conceito responsabilidade, sobretudo, no que diz respeito à
desestabilização da síntese (ROOS, 2009, p. 2). É justamente esta questão que deve ser
retomada nos escritos de Anti-Climacus, ganhando forma também no que diz respeito a
realizar a síntese corretamente (ROOS, 2009, p. 3). Há que se perceber que a responsabilidade
(ante a face de Deus ou da ideia de Deus) implicada no processo de desestabilização da
síntese corresponderá à responsabilidade implicada justamente no processo de tornar-se
um indivíduo procurando restabelecer a síntese que constitui o ser humano em sua devida
relação consigo mesmo e com Deus (ROOS, 2009, p. 3).
Ainda que Kierkegaard não se ocupe ainda primordialmente na sua concepção de angústia
com a nomenclatura, “desespero humano”, que deu nome ao livro Anti-Clímacus, é bem
apropriado o estabelecer dessa relação, pois se trata para Kierkegaard de elementos
primordiais e fundantes da sua antropologia.
Massimo Iiritano (1999) nos lembra que o conceito de desespero em Kierkegaard
sempre vai desencadear a falta de Fé (IIRITANO, 1999, p. 26-27). Essa ausência de fé reside
no fato do eu se escandalizar de ter que estar diante de Deus (IIRITANO, 1999, p. 27). Outro
lembrete feito pelo autor italiano, é que essa ausência de fé capaz de gerar o escândalo, tem
profunda semelhança como aquilo que Kierkegaard chamou de demoníaco (IIRITANO, 1999,
16
p. 101). Assim, o escândalo passa adquirir categoria cristã, pois a ausência de fé determina
a possibilidade do escândalo, ao mesmo tempo, em que a presença do escândalo no eu
determina a possibilidade do paradoxo soterológico do cristo (IIRITANO, 1999, p. 155). O
nascimento do eu, a possibilidade do pecado, a presença do escândalo e convite para fé, são
entendidos como elementos interligados (IIRITANO, 1999, p. 156). O indivíduo e o
indivíduo, o indivíduo e Deus ou a relação do indivíduo consigo mesmo, e como Deus, eis os
temas da antropologia kierkegaardiana (IIRITANO, 1999, p. 155).
Depois desses argumentos de Iiritano, S. F. Berardini (2010) também advoga a ideia
de estabelecermos uma espécie de relação entre o conceito de desespero de Anti-Clímacus, o
problema do demoníaco de Virgilius Haufniensis (BERARDINI, 2010, p. 114). Trata-se de
assumir diversas formas correlatas de uma mesma problemática. A estratégia de procurar
associar a concepção de desespero ao problema do demoníaco acabou por potencializar a
própria noção de desespero como sendo de fato pecado (BERARDINI, 2010, p. 114). Nesse
estado de existência, o eu, pela instrumentalidade do pecado, passa a possuir traços de
hipocrisia ou de rebelião contra o bem, ou seja, contra Deus ou a ideia de Deus
(BERARDINI, 2010, p. 115). Mergulha-se numa espécie de “abismo de si mesmo”, resistindo
ao bem ardentemente. Ora, esse desespero caracterizado como sendo a resistência ao bem,
que está sendo relacionado ao demoníaco, pode também ser comparada a incapacidade ou
ausência do arrependimento no eu (BERARDINI, p. 116). Após ou diante do desafio de –
estar isoladamente de ante a face de Deus ou a ideia de Deus – ao invés de se humilhar e
16
As considerações feitas na pesquisa de M. Iiritano devem ser a sério. A associação entre o demoníaco, a
descrença e o escândalo são válidas. Sobre esse aspecto, Kierkegaard demonstra-nos uma espécie de movimento
dialético que determina o interior dessa “angústia diante do bem”. Para o autor, a mesma é caracterizada por uma
ausência da interioridade do eu (KIERKEGAARD, 2011, p. 156). Os principais esquemas desse fenômeno têm
como ingredientes elementos como: descrença/crendice; hipocrisia/escândalo; orgulho/covardia
(KIERKEGAARD, 2011, p, 157-158). Assim, o demoníaco nega o eterno no homem. Para Kierkegaard o
homem pode negar o eterno tanto quanto quiser, o que ele não consegue, é separar-se totalmente a sua existência
do eterno (KIERKEGAARD, 2011, p. 164).
38
Por outro lado, paradoxalmente – como um pouco de ironia – sobre a pena de Anti-
Clímacus se defende também, que é possível que exista uma espécie de “função pedagógica”
no escândalo (KIERKEGAARD, 2010, p. 111). No primeiro caso, como já apontamos acima,
para Kierkegaard, o escândalo seria uma espécie de critério de validade ou validação do
próprio cristianismo (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). O segundo aspecto repousa sobre essa
função pedagógica do escândalo, ou seja, o não “escandalizar-se do eu”, diante do Cristo.
Trata-se de uma decisão, sobretudo na medida em que o pecado não é uma simples negação,
mas sim uma posição (KIERKEGAARD, 2010, p. 124). Isto é, a verdadeira ciência do
escândalo é caracterizada quando se apreende estudando a inveja humana. Para o autor, a
inveja é uma admiração que dissimula (KIERKEGARD, 2010, p. 112). Sobre essa suposta
pedagogia do escândalo que, quando não entendida corretamente, nos reprova, Kierkegaard
afirma:
39
17
Essas ideias foram expostas por Kierkegaard na sua obra Temor e Tremor (1843). Nesta obra, nosso autor
procurou fazer uma relação entre o Herói Trágico e o Cavaleiro da Fé (KIERKEGAARD, 2012, p. 62). A ideia
de Kierkegaard foi utilizar o exemplo de Agamêmnon, personagem descrito por Eurípedes na obra, Ifigênia em
Áulide, comparando-o com Abrão, personagem descrito no livro Gêneses. O enredo desta obra diz respeito ao
sacrifício de Ifigênia, cuja causa imediata se encontra no enamoramento avassalador mutuamente correspondido
entre Helena e Paris. Tal enamoramento, como é sabido, culminou no sequestro imediato de Helena. O agravante
desta história consiste no seguinte: Agamêmnon, pai de Ifigênia, teria que aceitar que ela fosse sacrificada, uma
vez que a previsão do oráculo tinha tornado-se pública (PEREIRA, 2011, p. 85). Ao fim e ao cabo do sacrifício,
não obstante, ele seria aclamado e louvado como herói acrescido do adjetivo trágico, segundo Kierkegaard, pois,
além deste modelo, Kierkegaard apresenta, nesta mesma obra, o cavalheiro da Fé, cuja representação é a figura
de Abrão (KIERKEGAARD, 1974, 287). Através do sacrifício Abraão está intimamente ligado a Deus; a atitude
de executar Isaac é uma vontade do ser absoluto. Com efeito, a moralidade é suspensa e Abraão não pode se
tornar assassino (BARROS, 2007, p. 4). Sobre o ponto de vista ético, a atitude do sacerdote é imoral. Sobre o
ponto de vista religioso, Abraão deve fazer aquilo que Deus lhe ordena. Neste contexto, encontramos ainda o
paradoxo da ética. Abraão deve agir de acordo com as leis morais ou de acordo com a vontade de Deus? Como
agir? Desta forma, podemos encontrar um conflito ético no momento em que Deus pede para que se cometa um
ato julgado imoral (BARROS, 2007, p. 5).
40
paradoxo da fé. O grande erro de Sócrates em relação à doutrina cristã de pecado foi ter se
18
apegado por demais intelectualidade, quando o problema está na vontade (desejo) do
homem. Nas palavras de Kierkegaard temos:
Que faltou então a Sócrates na sua determinação de pecado? À vontade, o
desejo! A intelectualidade grega era demasiando feliz; demasiado ingênua,
demasiado estética, demasiado irônica, demasiado maliciosa [...] demasiado
pecadora para chegar a compreender que alguém tendo o seu saber,
conhecendo o justo, pudesse cometer o injusto. O helenismo dita um
imperativo categórico da inteligência. Eis uma verdade a não desdenhar, e
que é mesmo bom acentuar em tempo como o nosso, extraviado em muita e
vã ciência empolada e estéril, se é verdade que no de Sócrates e mais ainda
em nossos dias a humanidade precisa de ligeira dieta de socratismo
(KIERKEGAARD, 2010, p. 116).
Patrícia Dip (2011) defende que não é possível compreender o diálogo de Anti-
Clímacus com Sócrates, sem que antes se reconheça que o conceito de pecado
kierkegaardiano deve ser de fato entendido, a partir de uma perspectiva dialética entre o
paganismo e o cristianismo, entre o ético e o religioso (DIP, 2011, p. 63). Por outro lado, Dip
trabalha com hipótese de que Kierkegaard desenvolveu uma espécie de “visão
fenomenológica do pecado” (DIP, 2011, p. 62). [...] o fenomenológico apresentado na
Doença Mortal é o desespero do eu diante do eterno transformado em pecado (DIP, 2011, p.
62). Fazendo comparação com fenomenologia de Hegel, a autora afirma que enquanto Hegel
18
Ao ter tocado na questão do desejo em sua concepção antropológica de pecado, Kierkegaard passaria a
dialogar com a tradição agostiniana. Tal diálogo não é fácil, visto que o pecado em Agostinho está no âmbito de
gênero humano, enquanto que na filosofia de Kierkegaard o mesmo perpassa categoria do indivíduo. Para
Kierkegaard o pecado ocorrido não se trata de um fenômeno na essência e sim da existência. Segundo Ricardo
Quatros Gouveia (1999) embora a relação entre o bispo de Hipona e o vigia de Copenhague (Valls) tem sido
abordada de forma esporádica por alguns pesquisadores, não há dúvida da influência de Agostinho sobre
Kierkegaard, ainda que esta muitas vezes tenha surgido a partir da crítica (GOUVEIA, 1999, p. 2). Para Gouveia,
existem pelo menos dois grandes movimentos de Kierkegaard em direção à filosofia de Agostinho. No primeiro
movimento – de caráter mais positivo – o autor reconhece a existência de uma espécie de similaridade em
ambos, sobretudo, na chamada metafísica do individuo, nesse aporte, Gouveia contou como referencial os
trabalhos de Peter Wust (discípulo de Max Scheler), onde o mesmo faz uma comparação entre as Confissões de
Agostinho e o Desespero Humano de Kierkegaard (GOUVEIA, 1999, p. 2). O segundo movimento – talvez
menos amistoso – o autor procurou demonstrar algumas críticas feitas pelo próprio dinamarquês a Agostinho. As
principais são: (1) A versão luterana agostiniana: onde Agostinho nos é apresentado preferencialmente, a partir
de uma visão anti-pelagiana, oponente da justificação pelas obras e proclamadora da corrupção humana pelo
pecado original e a salvação mediante a graça e o decreto divino (predestinação); (2) A problemática entre a
predestinação e o livre-arbítrio via calvinismo: nesse ponto, apesar de sua insistência no governo divino e na
providência (Temor e Tremor) Kierkegaard teria afirmado que o grande erro de Agostinho via calvinismo, foi ter
elaborado predestinacionismo mecanicista e fatalista onde a autonomia do indivíduo não seria tanto valorizada
(GOVEIA, 1999, p. 3); (3) A objeção da fé por conta de uma dogmática: Kierkegaard afirma que a concepção
de fé de Agostinho é extremamente platônica- aristotélica, portanto, pagã e desprovida da categoria cristã. Do
ponto de vista grego o conceito de fé está no âmbito intelectual, ou seja, estamos diante de uma fé que procura
probabilidades. Trata-se de uma espécie de fé-ciência ou fé-conhecimento. Já do ponto de vista cristã, o
definição de fé esta posta sobre o existente. Para Kierkegaard Deus não nos aparece como um professor
assistente recheado de vários axiomas, onde primeiro ele nos leva a crer para só depois entendermos (GOVEIA,
1999, p. 7). Todavia, seja como for, é impossível de fazer aqui uma comparação profunda e sistematizada entre
os autores, o que de certa forma renderia sem dúvida, uma dissertação a parte.
43
1. 3 Desespero e Salvação
não se propôs a fazer “teologia tradicional”, o que faz como que toda inferência ao tema seja
pensada de forma análoga.
Sobre esse aspecto, o texto de Kirkconnel (2012) procurou fazer diversos aportes.
Apenas como elemento de ilustração no quadro abaixo, apontaremos de maneira bem
compacta, as obras de Kierkegaard, que o autor americano procurou apresentar:
19
KIRCONNELL, 2012, p. 4-5
20
KIRCONNELL, 2012, p. 6
21
KIRCONNELL, 2012, p. 6-7
45
22
KIRCONNELL, 2012, p. 8-9
23
KIRCONNELL, 2012, p. 12-15
24
KIRCONNELL, 2012, p. 41-43
25
KIRCONNELL, 2012, p. 65-67
46
26
KIRCONNELL, 2012, p. 95-97
47
A problemática aqui é caracterizada pela insistência do eu que não quer receber oferta
divina: a remissão do nosso pecado através de seu Cristo (KIERKEGARD, 2010, p. 147).
Essa insistência em não aceitar a remissão do pecado é chamada por Kierkegaard com sendo
um Escândalo. Esta terminologia é empregada amplamente na segunda parte do livro de Anti-
Clímacus. Metodologicamente ela se processa sempre em conexão com a fé no tratamento
que o eu dá em relação às propostas do cristianismo. Ora, de acordo com o que se viu até
aqui, o problema do desespero está posto sobre aquele indivíduo isolado que se encontrou
50
perplexo frente à face de Deus ou da ideia de Deus, tendo ainda, sua perplexidade dobrada
quando esta frente à face de Cristo (KIERKEGAARD, 2010, p. 146). Nesse estado de
desespero, o homem se desespera escandalizado em ter que crer no Cristo.
Concentrando-se em um pequeno círculo de argumentos, Anti-Clímacus termina o seu
livro apresentado dois tipos de atitudes em relação ao escândalo do cristianismo. O primeiro
aspecto deles, é caracterizado pelo seu caráter institucional (KIERKEGARD, 2010, p. 149).
Trata-se daquela atitude forjada pela própria teologia tradicional. Kierkegaard chama-o de
dogma do homem-deus. Sua crítica à cristandade é severa, sobretudo para com o modelo de
igreja triunfante, que segundo ele parece ocultar o genuíno testemunho do cristianismo, ou
seja, aquele cristianismo cuja cruz é um escândalo ao que não crê, transformando-o em
assunto de mera análise especulativa e filosófica (KIERKEGAARD, 2010, p. 150). Para
Kierkegaard o grande erro da cristandade de sua época, foi o de tentar anular a seriedade do
conceito de pecado, isto é, de maneira abstrata, anula-se a necessidade de se crer ou de se
entender a seriedade do pecado no indivíduo, limitando-se ao gênero. Ainda, sobre o
problema essa cristologia meramente abstrata, Kierkegaard teceu diversos pormenores
dizendo que:
Contudo, o cristianismo, desde o seu começo, tomou as precauções. Parte da
doutrina do pecado, cuja categoria é precisamente a do indivíduo. O pecado
não é objeto de pensamento especulativo. Com efeito, o indivíduo, mas sim
apenas o seu conceito. Logo nos teólogos se precipitaram sobre a doutrina da
preponderância da geração sobre o indivíduo: porque fazer-lhe confessar a
impotência do conceito em face do real, isso seria perdi-lhes demasiado.
Como não se pensa um indivíduo, tampouco se pode pensar um pecado
individual; pode-se pensar o pecado (que se torna então uma negão), mas não
um pecador isoladamente. Mas, é isso mesmo que tira ao pecado toda
seriedade, se nos limitarmos a pensá-lo. Porque o que é sério, é sermos, vós e
eu, pecadores; não é o pecado geral que é sério, mas o acento recaindo sobre
o pecador, isto é, sobre o indivíduo (KIERKEGAARD, 2010, p. 151-152).
Dessa forma, a categoria do indivíduo não é ajudada pela especulação teológica. Isto é,
o eu não consegue desenvolver a sua verdadeira interioridade. Portanto, nesse contexto, não
há lugar, nem ao mesmo motivo para se crer quanto a essa necessidade de remissão dos
pecados. Todavia, Kierkegaard insiste em dizer que:
Como pode ser observada na sessão anterior, a hipótese de que existe uma espécie de
“cura” ou salvação para o desespero é paradoxal. Nesse sentido, ela só pode ser entendida se
for absorvida da maneira dialética. Talvez ela só seja de fato possível, quando pensada a partir
da ideia da Edificação. Por exemplo, no decorre do prefácio do livro, Anti-Clímacus procurou
deixar ao seu leitor a existência de um telos superior em sua obra, que seria caracterizado
como sendo uma Edificação. Inclusive, o autor chegou até mesmo a dizer que, caso haja uma
ausência do elemento de edificação em seu livro, tal ausência deveria ser considerada por todo
o leitor uma espécie de “defeito” constitutivo. Assim, Anti-Clímacus/Kierkegaard afirma:
52
27
Hegel diz: “Quem só busca a edificação, que pretende envolver na névoa a variedade terrena de ser-ai e de
seus pensamentos, e espera o prazer indeterminado daquela divindade indeterminada, veja bem onde é que se
podem encontrar tudo isso; vai achar facilmente o meio de fantasiar algo e fica assim bem pago. Mas a filosofia
deve guardar-se de querer se edificante” (HEGEL, 19992, p.25). Contudo, Kierkegaard nunca conseguiu
compreender a recusa hegeliana ao edificante, como se pode atestar nos Diários: “Estranho esse ódio de Hegel
pelo edificante, que transparece em pouco em todos os lugares: no entanto, bem longe de ser um narcótico que
acalma, o edificante é o amém do espírito acabado e é, portanto, um aspecto do conhecimento que não
deveríamos negligenciar (KIERKEGAARD, 1997, p. 183).
53
Digo que, se a razão iluminista pela instrumentalidade dos trabalhos de Kant e Hegel
procura objetivar absurdamente a subjetividade humana, transformando-a numa espécie de
arcabouço teórico desconectado da existência concreta, não há dúvida que através das
propostas de Kierkegaard temos um contra ponto (OLIVEIRA, 2009, p. 16). Isto é,
Kierkegaard procurou tecer suas críticas a essa empreitada iluminista, chamando-nos de novo
a atenção para o fato de que existe uma diferença abismal entre as verdades abstratas da razão,
e a paradoxal realidade concreta do indivíduo (OLIVEIRA, 2009, p. 17). Ora, à reflexão
moderna de que a subjetividade é a verdade, segue-se uma segunda reflexão, para o pensador
subjetivo, paradoxalmente, ela também é a não-verdade, e , portanto, essa negatividade
subjetiva é o reflexo do abismo entre o pensamento e a realidade, tão absurdamente largo e
cartesianamente interiorizado no plano do pensamento que a consciência tende a se iludir
como se fosse ele mesmo uma ponte (OLIVEIRA, 2009, p. 17).
Oliveira (2009) defende que, proporcionalmente, ao mesmo tempo é possível que as
propostas de Kierkegaard, de tentar forjar uma verdade a partir da subjetividade, sofram
algum tipo de oposição ou questionamento, seja por acharem que se trata de uma espécie de
versão “falsificada da verdade” baseada numa “racionalidade infundada”, ou quem sabe por
acharem que a mesma encontra-se “desconectada” da concretude histórica (OLIVEIRA, 2009,
p. 18). Ora, as propostas do nosso pensador subjetivo, não podem ser consideradas
racionalmente infundadas, visto que a mesma se impõe sobre a racionalidade moderna pela
instrumentalidade da própria razão, cujas lacunas são latentes. Isto é, as críticas de
Kierkegaard ao método da racionalidade moderna, utilizam-se de um expediente
argumentativo de pura dialética (OLIVEIRA, 2009, p. 18). Tampouco deve ser considerada
uma espécie de verdade transcendente à história, pois pressupõe uma infinitude atrás de si a
cada instante em que busca propriamente por as condições de um salto com infinito devir
interior em direção a um inteiramente outro (OLIVEIRA, 2009, p. 18). Assim, o autor
situando-se melancolicamente diante dessa histórica inversão real, transformou-se em um
humorista, ou seja, fazendo-se repetidas vezes, faz passar dialeticamente uma verdadeira
seriedade ética com a qual a subjetividade se efetiva a si mesma, pela efetiva resistência a essa
racionalidade atual em cada instante que lhe é mais próximo (OLIVEIRA, 2009, p. 18).
É justamente esse tipo de pensamento subjetivo que é capaz de gerar aquilo que
Kierkegaard chama de edificação. Haja vista que o mesmo, busca atingir não só os elementos
periféricos da existência humana, mas, sobretudo, os fundamentos, ou seja, as matrizes
constitutivas do eu, cujas instâncias devem estar postas sobre as bases do amor, visto que o
amor tudo edifica (KIERKEGAARD, 2009, p. 243). Ele diz:
54
Onde quer que esteja o edificante está o amor; e onde quer que esteja o amor,
está o edificante. É por isso que o apóstolo Paul diz que um homem sem
amor, mesmo que falasse a língua dos homens e dos anjos, é contundo como
o bronze que ressoa e o címbalo que retine O que haveria de menos edificante
que um címbalo que retine? As coisas do mundo, por mais magnífica ou
barulhenta que sejam, são sem amor e, por mais conseguinte, elas não são
edificante; a mínima palavra pronunciada com amor, a mínima ação realizada
com amor ou no amor são edificantes. É por isso que o conhecimento só faz
inflar. E, no entanto, o conhecimento e a comunicação do conhecimento
também podem se edificantes; mas é que então amor os acompanha. [...] A
cada instante vive uma multidão inumerável de seres humanos; é possível que
tudo o que cada um se propõe a fazer, tudo o que cada homem diz possa ser
edificante: no entanto, ai! é tão raro ver ou ouvir algo edificante
(KIERKEGAARD, 2009, p. 246).
28
PAULA, 2009, p. 152
29
PAULA, 2009, p. 153
55
30
Ser “pensador de fronteira” é o reconhecimento que a produção teológica, não deve ser encarada de maneira
restritiva e sim ampla e dialogal. No entanto, as fronteiras significam não somente o espaço-limite entre as
diversas disciplinas e saberes, mas também a interface fecunda entre os mesmos. As propostas de Tillich
buscavam estabelecer um pensamento rico e complexo, multi e interdisciplinar, que antecipa de forma
surpreendente muito da atual discussão sobre inter e transdisciplinaridade (MUELLER; BEIMS, 2005, p. 24).
31
Tillich procura em sua Teologia da Cultura, diminuir a distância existente entre a fé e a cultura, mostrando
que, diferente do que muitos possam pensar, o físico e o material são profundamente afetados pela
espiritualidade humana. Isto é, para se entender a cultura é necessário perceber a teologia que percorre por
debaixo da superfície das expressões humanas e vice versa (ARAÚJO, 2010, p. 179).
56
sagrada com a situação cultural vigente. Isto é, repensá-los através de eventos culturais
fundamentais que agitam o espírito humano tais como: arte, economia, filosofia, política,
religião entre outros (PINHEIRO, 2009, p. 22).
A grande contribuição de Tillich quanto à consolidação de um método teológico de
caráter interdisciplinar, pode ser de fato medida, a partir de dois aspectos principais: (1) Pela
proposta de uma teologia culturalmente dialogal; (2) Pela proposta de uma teologia sensível
a linguagem simbólica. Sobre o primeiro aspecto, predomina-se de maneira latente, a tentativa
tillichiana de procurar sempre dialogar com a cultura de sua época. A capacidade de diálogo
com o mundo vigente consolida a sua proposta de uma teologia da cultura. Nesse sentido,
costuma-se atribuir esse tão desejoso comportamento, sobretudo, ao ambiente acadêmico em
que o próprio Tillich teria sido forjado (MUELLER, 2006, p. 75). Isto é, segundo alguns
pesquisadores – dentre os quais se destaca os trabalhos do teólogo brasileiro Enio Mueller – o
período em que Tillich trabalhou como professor na cátedra de filosofia na Universidade de
Frankfurt deve ser considerado o mais rico da vida de autor (MUELLER, 2006, p. 76). Ali
Tillich teria encontrado uma espécie de “caldo ideal” que serve como elemento embrionário
para a fermentação de sua ideia e suas amplas perspectivas, ou seja, teria sido justamente em
Frankfurt, que o autor pode ver de perto uma vivência cultural intensa e um ambiente
interdisciplinar fecundo, como inclusive raramente se viu em toda a história da cultura
32
acadêmica alemã (MUELLER, 2006, p. 77). Proporcionalmente, a proposta de uma
teologia da cultura, está em defender que não podemos ignorar ou esquecer a importância da
religião, na construção e na manutenção do mundo da cultura. A religião é estímulo primário
da cultura, ao mesmo tempo em que a cultura passa ser forma integral da religião. Isto é, não
existe religião em si mesmo, só existe religião a partir de suas formas culturais. As categorias
religiosas na espera prática se desenvolvem a partir da cultura (TILLICH, 1973, p. 103).
Portanto, o teólogo da cultura não poderia ignorar os acontecimentos significativos de época –
32
Trata-se de atmosfera vital, progressista e liberal na universidade. Não havia divisões artificiais entre as
faculdades de medicina, filosofia e ciências sociais: cada instituto relacionava-se com facilidade com os outros.
Professores visitavam os seminários uns dos outros de maneira informal, ou os dirigiam em conjunto
(MUELLER, 2006, p. 76). A universidade também contava com uma forte presença de intelectuais judeus, e
quase todos de esquerda. Frankfurt era um dos grandes centros do judaísmo da Alemanha, ao que concorria o
fato de começar a se tornar a capital financeira do país. A universidade era financiada, mormente por instituições
privadas, nas quais a presença judaica era forte. Para E. Mueller, a forte presença judaica, seria o elemento
detonador - responsável pelo clima interdisciplinar que reinava na universidade e nos intelectuais e institutos que
gravitavam ao seu redor. Assim, além das atividades curriculares normais, impressiona, desde o ponto de vista
de nossas conjunturas acadêmica atuais, a intensa vida intelectual que se nutria e cristalizava em relacionamentos
pessoais e em círculos informais de discussão. No caso de Frankfurt, isso significava ainda um amplo espectro
interdisciplinar, que regularmente debatia ideias em perspectiva multidisplinares e mesmo transdisciplinares
(MUELLER, 2006, p. 78-79).
57
mas ser capaz de dialogar com eles – tais como: o racionalismo, o iluminismo e os avanços
tecnológicos entre outros.
Ao mesmo tempo Tillich descobre haver muito mais realismo significativo na
linguagem simbólica das expressões religiosas do que na linguagem do liberalismo teológico
do século XIX. O segundo aspecto do seu método (a proposta de uma teologia sensível à
linguagem simbólica) permitiu, por exemplo, que Tillich se diferenciasse das propostas de R.
Bultmann, de tentar estabelecer uma espécie de adequação absolutizante da teologia cristã a
cosmovisão moderna, denominada por ele de demitologização (BULTMANN, 1999, p. 63). 33
Grosso modo, temos que considerar outras hipóteses: [...] a de que substituição da religião
pela ciência tenha sido algo semelhante à troca de uma mágica fraca por uma mágica forte,
de uma mágica destituída de status e progressivamente marginalizada, por outra que do
status e atualmente ocupa lugar central (ALVES, 2008, p. 86-87). Para Tillich é preciso
redescobrir a importância da linguagem simbólica da religião (TILLICH, 1996, p. 32). Ora,
não podemos nos esquecer de que o fenômeno religioso sempre será ambíguo e ambivalente.
A própria religião reconhece este fato. Ela se refere a deuses e demônio, à fé e à idolatria – o
que de fato indica que ela se dá conta das dinâmicas contraditórias e paradoxais que se
movem no seu próprio meio (ALVES, 2008, p. 84). É justamente nesse sentido que Tillich
defende a importância da linguagem simbólica na compreensão do fenômeno. O símbolo por
sua vez, além de indicar, participa daquilo que indica (PIRES, 2006, p. 31). Por esse motivo,
convenções não podem promover alterações significativas no símbolo. A função da teologia é
reinterpretar os símbolos e não abandoná-los ou trocá-los (PIRES, 2006, p. 31). O símbolo,
afirma Tillich, nos proporciona níveis de realidade, que de outra forma, nos seriam
inacessíveis. Nesse sentido, “a preocupação última ou suprema do ser humano deve ser
expressa simbolicamente” (TILLICH, 1996, p. 33).
Sobre a questão da distribuição da sessão, o respectivo capítulo será dividido em três
partes principais. Na primeira sessão, faremos uma análise apurada do segundo conceito-
chave da nossa pesquisa: alienação, e como o mesmo foi abordado por Tillich. Avançaremos
nessa direção, acompanhando a linha de raciocínio tillichiano em sua Teologia Sistemática
onde o mesmo conceito é estrategicamente comparado à constituição existencial e da finitude
humana, bem como as ambiguidades da vida. Já na segunda sessão, o problema antropológico
da alienação é comparado à doutrina do pecado. Isto é, com intensa dialética, o autor utiliza-
33
Paul Tillich também trata desta questão em sua Teologia Sistemática, sobretudo quando afirma o fracasso
desta investigação tendo em vista que não é possível a completa desmitologização quando se fala a respeito do
divino (TILLICH, 2005, p. 392-393).
58
A utilização da palavra alienação para fins antropológicos foi cunhada e aplicada pela
primeira vez no inicio do século XIX através do pensamento do filósofo alemão G. W. F.
Hegel (1770-1831). 34 Segundo o próprio Tillich, o modo como Hegel vai tratar o respectivo
conceito possui duas variantes principais (TIILICH, 2005, p. 339). Em se tratando do
primeiro aspecto, o termo está presente principalmente nos seus fragmentos de juventude, 35
onde Hegel procurava estabelecer os processos vitais antropológicos dotados de certa unidade
original que seria supostamente destruída pela divisão entre subjetividade e objetividade ou
pela substituição do amor pela lei (TILLICH, 2005, p. 339). Já no segundo aspecto, o mesmo
conceito encontra-se especialmente em sua filosofia da natureza como espírito (Geist)
alienado e é caracterizado como sendo uma espécie de consciência infeliz (TILLICH, 2005, p.
339). Grosso modo, para Hegel o conceito de alienação é caracterizado como uma espécie de
processo essencial pelo qual a consciência ainda ingênua, convencida de que a realidade do
mundo é independente dela mesma, chega a tornar-se consciência de si (HEGEL, 2002, p.
44). Para Hegel, o concreto reside na unidade dos termos contraditórios que entram em
confronto. Cada termo é a negação de seu próprio oposto, sendo o movimento interno do
34
Segundo Abbagnano (2007) na linguagem comum, esse termo significa perda de posse, de um afeto ou dos
poderes mentais e foi empregado pelos filósofos com certos significados específicos. O autor também procurou
deixar claro, que antes das especificações feitas por Hegel e Marx, o conceito foi também empregado na Idade
Média, sobretudo usado para indicar um grau de ascensão mística em direção a Deus. Ainda é possível encontrar
no Contrato Social, de J. J. Rousseau, o uso da palavra para indicar a cessão dos direitos naturais à comunidade,
efetuada com o contrato social. "As cláusulas deste contrato reduzem-se a uma só: a Alienação total de cada
associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade" (ABBAGNANO, 2007, p. 26).
35
Sobretudo em seu livro O Espírito do Cristianismo e o seu Destino [Der Geist des Christentums und sein
Schicksal] que ora segue constitui, no dizer de Dilthey, uma das mais belas passagens escritas por Hegel. No
entanto, é questionável se a obra constitui um todo acabado, já que Hegel interrompeu várias vezes sua redação,
deixando linhas em branco e reiniciando o parágrafo com uma nova linha de pensamento. Nohl juntou em um
texto homogêneo um composto de cinco fragmentos separados (N, 243-60, 261-75, 276-301, 302-24, 325-42).
Pelas pesquisas de G. Schüler e Ch Jamme a obra se desenvolve em duas fases distintas, tendo como ponto de
partida o outono/inverno de 1798 para 1799, período de Frankfurt. É neste período que Hegel procura desvendar
a origem da positividade das leis morais religiosas judaicas que o cristianismo procura superar pelo amor. Pelo
espírito do cristianismo, Hegel ensaia uma resposta à questão da unidade, que passa a ser veiculada pelos
impulsos naturais da vontade (FEILER, 2011, p. 238).
59
sujeito a "negação da negação" (HEGEL, 2002, p. 44). A luta desses opostos é mortal, pois o
ser de cada um deles está no outro, que o desafia e nega (SCHIO, 2008, p. 60). A posse de si
mesmo fica assim condicionada à destruição do outro, que detém a verdade e o absoluto
(SCHIO, 2008, p. 60). Concebida nesses termos, a alienação é, portanto, além de profunda,
necessariamente intrínseca e primordial: o ser de cada indivíduo não reside em si próprio e
sim em seu oposto, no qual corre o risco de se diluir (SCHIO, 2008, p. 61).
É nesse sentido, que se predomina o legado de Hegel, ou seja, embora o conceito de
fato tenha ganhado visibilidade emblemática a partir da filosofia marxista esta, por sua vez, só
pode ser compreendida quando dialogada com as propostas de Hegel, sobretudo do jovem
Hegel. Isto é, Karl Marx – e a maior parte dos pensadores da chamada esquerda hegeliana –
constroem seus pressupostos na tentativa de rejeitar a posição hegeliana de que a alienação é
supostamente superada na história pela reconciliação (TILLICH, 2005, p. 339). Isto é, dentro
da perspectiva marxista o indivíduo está alienado e não reconciliado; a sociedade está
alienada e não reconciliada; a existência é alienada (TILLICH, 2005, p. 339).
Proporcionalmente munidos desta percepção a esquerda hegeliana passou a adotar uma
atitude revolucionária contra o mundo tal como ele existia, podendo inclusive ser
considerados “existencialistas” muito antes de começar o século XX (TILLICH, 2005, p.
339).
Segundo a interpretação tillichiana, não é possível compreender de fato os
36
pressupostos defendidos por Marx sem estabelecermos o diálogo com Hegel. Sobre a
apropriação do conceito de alienação feita por Marx, Tillich, afirma:
A alienação, no sentido em que o termo foi usado pelos anti-hegelianos, indica a
característica fundamental da condição humana. O ser humano, tal como existe, não é
aquilo que é em sua essência e o que deveria ser. Ele está alienado de seu verdadeiro
ser. A profundidade do termo “alienação” reside na implicação de pertencermos
essencialmente àquilo de estamos separados. O ser humano não é estranho o seu
verdadeiro ser, pois pertence a ele. Ele é julgado por seu ser, mas não pode se separar
completamente dele, mesmo que lhe seja hostil (TILLICH, 2005, p. 340).
Ora, à esquerda hegeliana, sobretudo pelos pressupostos construídos por Marx deve
preferencialmente não considerar tanto a questão do indivíduo, mas sim a questão da
sociedade (TILLICH, 2010, p. 193). Marx procura falar da situação alienada do homem na
estrutura social da sociedade burguesa. Ele não emprega a palavra “alienação” do ponto de
vista individual (Kierkegaard), mas sim do ponto de vista social (TILLICH, 2010, p. 193).
36
Sobre esse ponto Tillich é ainda mais emblemático. Em seu curso de História de Pensamento Cristão (1955),
ministrado no Union Theological Seminary em Nova York, ele defende que: nem Marx, nem Kierkegaard, nem
Nietzsche, nem o existencialismo, nem os movimentos revolucionários seriam entendidos se não fosse visto
direta ou indiretamente em relação a Hegel (TILLICH, 2010, p. 134).
60
Segundo Tillich, sobre esse aspecto não há dúvida da importância teológica do conceito
marxista de alienação. Isto é, ao falamos das consequências do pecado original, nos
esquecemos de nos dirigirmos ao povo e sua realidade concreta. Como uma espécie de
prelúdio da chamada Teologia da Libertação, a salvação se encontra no nível histórico, e o
37
problema do pecado está posto no âmbito do social. Assim, ao denunciar o estado alienante
do homem Marx buscava o restabelecimento da verdadeira humanidade capaz de substituir a
desumanização da sociedade alienada (TIILICH, 2010, p. 194). Tillich ainda aponta que no
entendimento de Marx a ideia de desumanização é que o homem se transformou em apenas
mais num dente da engrenagem no processo da produção e do consumo. Haja vista que, no
processo da produção, o trabalhador individual é considerado simplesmente uma coisa, ou
seja, mero instrumento e mercadoria comprada e vendida no mercado. O indivíduo tem que se
vender para sobreviver (TILLICH, 2010, p. 194). Como bem resume Tillich:
A descrição de Marx da desumanização ou da forma particular de alienação
existente na sociedade capitalista contradiz complemente sua herança clássica
humanista. Não podia haver reconciliação. Na realidade social existe apenas
desumanização e alienação [...] Consequentemente, perdia-se o caráter
essencial do homem nesse tipo de sociedade. O homem deforma-se nos dois
lados do conflito pelas condições da existência. Só voltaremos a saber o que
o homem realmente é quando essas condições forem superadas [...] A
alienação não se refere apenas às relações humanas, caracterizadas pela
separação entre as classes, mas também à relação do homem com natureza.
38
Retira-se do homem o eros. A natureza passa a ser apenas matéria do onde
se fazem instrumentos, para a manufatura dos bens de consumo. A natureza
deixa de ser um sujeito como o qual nós, também sujeitos, podemos nos unir
em termos de eros, daquele amor que vê na natureza o poder interior do ser, o
fundamento do ser criativamente ativo por meio da natureza. Na sociedade
industrial transformamos a natureza na matéria do onde fazemos as coisas
para comprar e vender (TILLICH, 2010, p. 194).
37
Em sua tese de doutoramento Rubem Alves nos apontava sobre essa dimensão social de pecado. Para o
teólogo brasileiro, o conceito bíblico de salvação é equiparado a uma espécie de “processo de libertação” da
opressão e da injustiça. Pecado é definido em termos de desumanidade do homem para homem (ALVES, 2012,
p. 171). Libertação da teologia para todos os efeitos práticos equivale a amar Deus como o seu vizinho. Deus é
encontrado em nosso vizinho, e a salvação é identificada com a história de "tornar-se homem." A história da
salvação passa a ser a salvação da história abrangendo todo o processo de humanização. História bíblica é
importante na medida em que os modelos ilustram esta busca da justiça e da dignidade humana. Retirada de
Israel da libertação do Egito, no Êxodo e Jesus, vida e morte se destacam como os protótipos para a luta pela
libertação humana contemporânea. Estes eventos significam os bíblicos significados espirituais da secular luta de
libertação (ALVES, 2012, p. 192).
38
O problema do amor deve remeter a questão da justiça e do poder. Para Tillich, os conceitos de amor, poder e
justiça deveriam ter lugar preponderante na reconstrução da essência humana, pois só assim a alienação
existencial poderia ser de fato superada (SANT’ANNA, 2004, p. 10) Ver também (TILLICH, 2004, p. 29-30).
61
portar elementos de caráter profético (TILLICH, 2010, p. 198). Para Tillich, não podemos
ignorar o tom messiânico dos escritos de Marx. Trata-se de uma espécie de “profeta secular”
cuja voz pode ser comparada como os antigos profetas de Israel. Ora, sendo judeu, Marx
estava pautado na tradição judaica que costumava criticar o comportamento dos reis e
sacerdotes (lideres políticos) caracterizados pela injustiça social. O verdadeiro profeta deve
39
preferencialmente estar nas ruas , ou seja, em profunda conexão e enraizado com o seu
contexto histórico (FÁBIO, 1990, p. 24).
Fazendo um paralelo ou comparação entre Marx e os profetas bíblicos, Tillich que diz
que a diferença entre o profetismo secularizado de Marx e o dos profetas do Velho
Testamento é que estes últimos sempre tiveram em mente a linha vertical, não confiando nos
grupos humanos nem nas necessidades lógicas ou econômicas de desenvolvimento, como
Marx. Fora isso, Tillich valida de forma absoluta o movimento marxista como sendo quase-
religioso (TILLICH, 2010, p. 199). Todavia, Tillich defende seus argumentos em favor de
Marx, afirmando que o mesmo não deve ser considerado um pensamento pseudo-religioso,
visto que, segundo o autor, pseudo-religioso, poderia caracterizá-lo como sendo algo
“enganoso” ou “mentiroso”. Para Tillich, o ideal é considerar o momento marxista como
quase-religioso porque conserva em seu interior a estrutura do profetismo, embora com a
perda da linha vertical e transcendente (TILLICH, 2010, p. 1999). Noutros termos, a ausência
da linha transcendente explica a trágica situação em que se encontram os momentos
revolucionários criados a base do pensamento de Marx para libertar toda uma classe social:
[...] em vez dessa liberdade, chega-se a uma nova escravidão totalitária como encontramos
hoje nos sistemas comunistas (TILLICH, 2010, p. 200).
Em sua Era protestante de 1948, Tillich apontou para o entrelaçamento entre o
socialismo religioso e a análise marxista (TILLICH, 1992, P. 271). Isto é, os socialistas
religiosos aceitam inúmeros resultados científicos da análise marxista da sociedade,
especialmente da economia, simplesmente porque parecem verdadeiros. Assim, a ideia de
verdade no cristianismo e no marxismo vai além da separação entre teoria e prática
(TILLICH, 1992, p. 269). Ora, nesse contexto, a verdade para ser de fato reconhecida, precisa
ser “feita” ou realizada. Sem a transformação da realidade não se reconhece a realidade.
39
Talvez apenas a título de uma perspectiva confessional é possível destacar aqui o livro do Reverendo Caio
Fábio: Elias está nas Ruas (1990), onde ele defende a pertinência política do mistério profético de Elias, onde o
mesmo estava profundamente enraizado numa dimensão histórico-político de sua época. Entre os pontos de
convergência ao abuso do capitalismo, a sociedade brasileira. Fábio destaca os seguintes pressupostos: (1)
dependência externa fomentada pela corrupção política; (2) concentração de recursos, caracterizadas pela
injustiça social; (3) uso indevido de recursos naturais, demonstrando pouca importância à saúde ecológica do
planeta (FÁBIO, 1990, p. 23-25).
62
Portanto, a verdade aparece e pode ser praticada quando todos os véus ideológicos são
rasgados e o engano próprio já não é mais possível (TILLICH, 1992, p. 269). Trata-se de uma
espécie de verdade que só será plenamente revelada quando de fato for praticada.
Comparando-as: o protesto dos reformadores contra os deuses “feitos-por-mãos-humanas” ou
ídolos, e o protesto de Marx contra as ideias ou ideologias que nós fabricamos são correlatas.
Ele diz: [...] a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de
vontade política (TILLICH, 1992, p. 269).
Gross (2006) – problematizando – defende que o diálogo entre Tillich e Marx é
complexo, e relativamente pouco explorado pelos pesquisadores (GROSS, 2006, p. 55). No
entanto, antes de prosseguirmos, para as outras sessões, é preciso apontar para os elementos
de convergência e divergência ente eles. Nesse sentido, é extremamente importante
compreendermos os desdobramentos da antropologia tillichiana, assim, objetivamos
estabelecer , às principais diferenciações entre o método da correlação (Tillich) e o
materialismo histórico (Marx) (GROSS, 2006, p, 64-65). Vejamos:
Primeiro no que diz respeito à questão do profetismo marxista. O mesmo só pode ser
tillichianamente ensinado quando reconhecemos que o significado do conceito de profetismo
na obra de Tillich é abrangente e não se encontra sobre a tutela do senso comum (GROSS,
2006, p. 60). Quando fazemos uma varredura nos seus escritos mais antigos, percebemos que
a noção do principio profético em Tillich está posta sobre outro conceito, a saber: princípio
protestante (ADAMS, 1992, p. 287). Fazendo uma comparação entre princípio e essência, o
autor defende que enquanto o segundo só poderia ser compreendido ou tratado com uma
realidade alheia à história e ao tempo, o conceito de principio é utilizado para marcar com
força o caráter sempre histórico e dinâmico, no entanto, não reducionista (GROSS, 2004, p.
60). Assim, ao falar de principio profético e mais tarde de principio protestante Tillich tem
em mente a preocupação em procurar demonstrar que, esse deve ser entendido como: [...] a
dinâmica crítica que se rebela contra a dotação de um caráter absoluto a uma realidade
finita (GROSS, 2004, p. 60). Ele estava presente na atuação dos antigos profetas de Israel que
criticava as injustiças sociais e a idolatria. Ele é o princípio que atuou no início do
cristianismo frente à sociedade judaica e mesmo ao culto ao imperador no Império Romano.
Como também, na reforma protestante como princípio que reagiu contra a erosão da
fundamentação divina na institucionalização eclesiástica (GROSS, 2004, p. 60). Somente
assim, é possível chegar às manifestações filosóficas do principio profético, ou seja, é fácil
perceber as implicações da caracterização de Marx como profeta (GROSS, 2004, p. 61).
Mormente, nossa análise precisa em absoluto, ir além da atribuição de uma “aura religiosa”
63
marxista, que o próprio Marx rejeitaria. Trata-se apenas de uma postura tillichiana de destacar
o elemento (princípio) crítico de fato, perceptivo no pensamento marxista. Portanto, o
princípio profético de Marx, só pode ser efetivado na medida em que a finitude passa a ser
considerada infinitude, o que de fato constitui um fenômeno teologicamente arriscado
(GROSS, 2004, p. 61).
Proporcionalmente, o mesmo teve que ser dito sobre o segundo aspecto, a saber: a
utopia da nova sociedade. Isto é, a defesa marxista caracterizada com a busca ou o
surgimento de uma nova sociedade é considerado por Tillich como sendo uma opção ingênua
(GROSS, 2004, p. 64). Nesse sentido, o marxismo é só imanente. Para Tillich, falta explicar,
de onde vem o poder para o milagre da transformação a ser operada pelo processo
revolucionário (GROSS, 2004, p. 65). Tal utopia é justificada pela tentativa de convencermos
de que essas novas estruturas econômicas engendram tais transformações de forma
automática, o que de fato não convence Tillich. Para o teólogo alemão, esses tipos de utopias
têm um efeito psicológico poderoso, sobretudo por causa do poder inerente de anseio humano
(preocupação última) pelo eterno, ou seja, mesmo inconscientemente esse movimento possui
um fundamento religioso (GROSS, 2004, p. 65). Nesse sentido, a limitação absoluta à finitude
sempre foi tão criticável e perigosa quanto o escapismo para utopias fundamentalistas
negadoras do mundo (GROSS, 2004, p. 66).
40
Para um estudo detalhado sobre o conceito de autoconsciência temos o capítulo 9 do livro Era Protestante,
onde Tillich apresentou um panorama histórico do tema, tais como: o surgimento da consciência (TILLICH,
1992, p. 160); a consciência na literatura Bíblica (TILLICH, 1992, p. 161); a interpretação da consciência na
teologia medieval e na teologia sectária (TILLICH, p. 163); doutrinas filosóficas modernas da consciência
(TILLICH, 1992, p. 165); a ideia da consciência transmoral (TILLICH, 1992, p. 167).
64
p. 198). Segundo Tillich, ela não pode ser derivada, mas apenas descrita. Proporcionalmente,
pensar o conceito de alienação a partir da noção de finitude é reconhecê-lo como sendo
41
participante do não-ser. Ora todo o homem ontologicamente é participante do ser. Nesse
sentido, ele possui o poder de ser. De maneira paradoxal tudo que participa do poder ser deve
também estar mesclado como o não-ser (TILLICH, 2005, p. 198). A alienação então deve ser
entendida como resultado latente da própria finitude humana. Isto é, como homem (ser finito)
eu posso compreender (autoconsciência) mentalmente os meandros que norteiam a infinitude
do ser, mas ao mesmo tempo eu não pode se concretizar fora da minha mente (TILLICH,
2005, p. 199). Trata-se de uma antinomia da razão (Kant).
Diferentemente dos animais que não possuem consciência de si, o homem é
autoconsciente (TILLICH, 2005, p. 198). Paradoxalmente, é justamente esta capacidade de
autoconsciência que vai determinar a sua capacidade de poder medir a dimensão e a
proporção de seu próprio estado de alienação. A alienação seria então uma espécie de
“substrato indireto” da racionalidade humana, ou seja, de sua capacidade de
autotranscendência (TILLICH, 2005, p. 198). Grosso modo, o processo de autotranscendência
comporta um duplo sentido: prazeroso e doloroso ao mesmo tempo. Para Tillich, trata-se
simultaneamente de um aumento e um decréscimo no poder de ser. Ele diz:
Para experimentar sua finitude, o ser humano deve olhar para si mesmo do
ponto de vista de infinitude potencial. Para ser consciente de que caminha
para a morte, o ser humano deve olhar por cima de seu ser finito como um
todo; de certa forma, ele deve estar para além dele. Ele também deve ser
capaz de imaginar infinitude. E é capaz de fazê-lo, embora não em termos
concretos, mas tão-somente como uma possibilidade abstrata. O eu finito se
defronta com um mundo; o indivíduo finito possui o poder de participação
universal; a vitalidade do ser humano está unida a uma intencionalidade
essencialmente ilimitada; como liberdade finita, o ser humano está envolvido
em um destino englobante. Todas as estruturas da finitude obrigam o ser
finito a transcender-se a si mesmo e, exatamente por essa razão, a tomar
consciência de si mesmo como finito (TILLICH, 2005, p. 199).
Uma vez compreendido isso, Tillich faz ainda, mais duas outras afirmações sobre a
correlação entre finitude humana e Alienação do ser que são: (1) A interdependência da
alienação do ser, como um reflexo do desdobramento do confronto da finitude humana como
41
Dentro da historiografia filosófica, a problemática do não-ser é um dos maiores entraves. Em geral,
nossa linguagem costuma estar voltada ou associada para a questão do ser (Parmênides); e por isso existe certa
confusão quando tentamos compreender ou falar sobre o não-ser (TIILICH, 2001, p. 26). Ora, o que é o não-ser?
Parece não haver uma resposta objetiva a essa pergunta, pois a mesma parece não ter sentido. É como se o "Não-
ser" fosse de fato sinônimo do "que não é", assim como ser, no sentido de ente, é sinônimo de "o que é". Nesse
sentido, a respectiva pergunta pode ser entendida como "O que é o que não é?" Parece que não podemos tratar
diretamente do não-ser, pois não podemos dizer que ele é coisa alguma, nem que ele é o não-ser. Para Tillich, a
maneira mais coerente para entender o problema é pensar o não-ser como sendo metaforicamente interligado ao
ser. Ele diz: O ser tem o não-ser “dentro” de si mesmo, de modo que essa problemática é eternamente presente
e eternamente superada no processo [...] (TILLICH, 2001, p. 27).
65
43
autocausadas; elas foram “lançadas” no ser (Heidegger). A atitude técnica de se perguntar
sobre a origem das coisas é universal, ao mesmo tempo o substrato desta resposta (TILLICH,
2005, p. 204). Esse substrato é expresso por sua implicação: tudo é conduzido para além de si
mesmo até sua causa, e as causas, por sua vez, para além de si mesma, para sua própria causa.
Não existe a menor possibilidade de se chegar a uma conclusão plausível a não ser a uma
regressão indefinida onde a única expressão é o poderoso abismo do não-ser em todas as
coisas (TILLICH, 2005, p. 204). Sobre a categoria da substância, o problema do não-ser
aparece ainda de forma mais latente. Ora o conceito de substância busca aquilo que não
possui fluxo das aparências, ou seja, algo que seja relativamente estático e completo em si
mesmo (TILLICH, 2005, p, 205). Porém, como pensar o absolutamente estático em se
tratando da finitude humana? Tillich diz: [...] Não existe substância sem acidente (TILLICH,
2005, p. 205).
E, assim nasce o estado de alienação existencial. Tillich defende que a presença desse
dualismo entre o ser e o não-ser é responsável por esse sintoma. Ora todas as vezes que a
finitude humana expõe a inerência do não-ser em si mesma, através do elemento negativo das
categorias ontológicas, ela demonstra a sua alienação de si mesmo (TILLICH, 2005, p. 365).
Portanto, a alienação em Tillich é uma alienação no ser, ou seja, no estado de alienação, a
dimensão da última é excluída, fazendo a situação mudar (TILLICH, 2005, p. 366). Estamos
alienados de si mesmo, pois não somos o que essencialmente deveríamos ser (MARTIN,
1963, p. 112). Ou seja, alienação é caracterizada como sendo o distanciamento existencial do
homem de sua estrutura ontológica (MARTIN, 1963, p. 112). Trata-se da perda do eu, um
estado existencial que possui caráter destrutivo de insegurança e dúvida. É nesse sentido, que
para muitos autores do mundo contemporâneo a existência é trágica.
Tillich demonstra:
A natureza categorial da finitude – tempo, espaço, causalidade e substância –
é validade como estrutura da totalidade da criação. Mas a função das
categorias da finitude muda sob as condições da existência. Nas categorias,
manifesta-se a unidade do ser e do não-ser em todos os seres finitos [...] No
estado de alienação, perde-se a relação como o poder último do ser. Nesse
estado, as categorias controlam a existência e produzem uma dupla relação
em relação a elas – resistência e desespero [...] Os conflitos nas polaridades
43
Segundo Martin Heidegger, o homem deve ser compreendido como um projeto, ou seja, com um ente que se
encontra lançado no mundo. Ele diz: [...] Para se ver o mundo é, pois necessário visualizar o ser-no-mundo
cotidiano em sua sustentação fenomenal (HEIDEGGER, 2006, p.113). Para o filósofo brasileiro Guilherme P.
Ferreira (2007), é necessário compreender que a indagação pelo sentido do ser, proposta por Martin Heidegger,
assumirá a forma de uma analítica existencial do ente humano concebido como presença. Assim, compreende-se
tal analítica como o estudo dos momentos estruturais da presença. Dentro desta analítica o fenômeno do mundo
quase impõe como fundamental isto porque o principal modo da presença se projetar na existência é como ser-
no-mundo – é no fenômeno do mundo que a presença ganha seu ser através de um fazer. In. (FERREIRA, 2007,
p. 1).
67
44
Continuando: o segundo aspecto apontado nessa seção por Tillich é Angústia. Essa
angústia existencial também denominada por Tillich como Ansiedade (TILLICH, 2001, p. 25-
59) deve permear todas as categorias ontológicas aqui apresentadas. Em relação ao tempo,
existencialmente nos angustiamos diante da possibilidade da transitoriedade, sobretudo
quando a mesma desemboca no conceito da morte. Isto é, a consciência melancólica do
movimento do ser em direção ao não ser, deve alcançar sua concretude máxima na
antecipação da própria morte do sujeito finito (TILLICH, 2005, p. 202). Em relação ao
espaço, existencialmente nos angustiamos diante do fato de que nenhum ser finito pode
depositar sua confiança no espaço, pois ele é “peregrino sobre a terra”, ou seja, a angústia
nasce, pois temos que vivenciar a realidade de que finitude significa não ter lugar definitivo,
pois ser finito é viver na insegurança espacial (TILLICH, 2005, p. 203). O ser humano vive
44
Segundo Abbagnano (2006), no seu significado filosófico, isto é, como atitude do homem em face de sua
situação no mundo, esse termo foi introduzido por Kierkegaard em Conceito de angústia (1844). A raiz desse
conceito é a existência como possibilidade. Ao contrário do temor e de outros estados análogos, que se refere a
algo determinado, a angústia não se refere a nada preciso: é o sentimento puro da possibilidade (ABBAGNANO,
2007, p. 60). O homem como ser livre vive de possibilidade, já que a possibilidade é a dimensão do futuro e o
homem vive continuamente debruçado sobre o futuro. Mas as possibilidades que se apresentam ao homem não
têm nenhuma garantia de realização. Só por piedosa ilusão elas se lhe apresentam como possibilidades
agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como possibilidades humanas, não oferecem garantia alguma e
ocultam sempre a alternativa imanente do insucesso, do fracasso e da morte. Ele diz: "No possível tudo é
possível" (KIERKEGAARD, 2007, p. 60), pois uma possibilidade favorável não tem maior segurança do que a
possibilidade mais desastrosa e horrível. Na filosofia contemporânea, Heidegger centrou na angústia a sua
análise existencial. Para o respectivo autor a angústia deve ser pensada como uma espécie de situação afetiva
fundamental, "que pode manter aberta a contínua e radical ameaça que vem do ser mais próprio e isolado do
homem": isto é, a ameaça da morte (HEIDEGGER, 2007, p. 60). Isto é, na angústia, o homem "sente-se em
presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência" (HEIDEGGER, 2007, p. 61). O alemão
costumava chamá-la de "o ser para a morte", isto é, a aceitação da morte como "a possibilidade absolutamente
própria, incondicional e insuperável do homem" (HEIDEGGER, 2006, p. 61). Mas nem por isso a angústia é o
medo da morte ou dos perigos que podem provocá-la. "O medo tem assento no ente de que se cuida dentro do
mundo, já a angústia brota do próprio Ser-aí (HEIDEGEER, 2007, p. 61). Todavia, não foi só a filosofia
existencialista que considerou a angústia como revelação emocional da situação humana no mundo. Por
exemplo: para psicanálise o caráter onipresente da angústia, que é diferente do medo, do temor e de outros
estados emocionais de caráter episódico que se referem a situações particulares (ABBGNANO, 2007, p. 61). Ora
a angústia parece, ao contrário, um ingrediente constante da situação humana do mundo, seja qual for à
explicação dada à sua origem. Freud inicialmente foi remontar ao ato do nascimento, isto é, ao ato "em que se
acham reunidas todas as sensações penosas, todas as tendências e as sensações corpóreas, cujo conjunto se
tornou o protótipo do efeito produzido por um perigo grave" (FREUD, 2007, 61). Em seguida, mais
genericamente, considerou a Angústia como a "reação do Ego ao perigo", ou melhor, "à própria essência do
perigo"; essa situação é também definida por Freud como "uma situação de impotência". Diz Freud: "Estou na
expectativa de que se verifique uma situação de impotência; ou então a situação presente me lembra um
acontecimento traumático já vivido. Assim, antecipo esse trauma, comporto-me como se já estivesse aqui,
enquanto houver tempo para afastá-lo. Portanto, para Freud “a angústia é, de um lado, expectativa do trauma e,
de outro, uma repetição atenuada deste" (FREUD, 2007, p. 61). Em seu seminário 10 Jacques Lacan também
trabalho exaustivamente o tema. Tal abordagem possui características dialogais e profundas correlações com:
Kierkegaard, Heidegger e Freud (LACAN, 2005, p. 11-24). O conceito de angústia em Tillich também aparece
em A Coragem de Ser de 1952 com Ansiedade (TILLICH, 2001, p. 25-59).
68
angustiado diante da inevitável perda de seu espaço (TILLICH, 2005, p. 204). Em relação à
causalidade, existencialmente nos angustiamos em reconhecer que o ser humano é criatura,
portanto, ontologicamente contingente e, não necessário por si só, e nisso o ser humano
percebe que é presa do não- ser (TILLICH, 2005, p. 205). Tillich diz: [...] A angústia em que
ele está consciente dessa situação é a angústia da falta de necessidade do seu ser (TILLICH,
2005, p. 205). Assim, em tese, facilmente poderíamos não ser. Então, por que somos? E por
que devemos continua ser? Ora o fato de não haver resposta razoável a esses questionamentos
fazem com que a angústia implica na consciência da causalidade com uma categoria da
finitude (TILLICH, 2005, p. 205). Em relação à categoria ontológica de substância,
existencialmente nos angustiamos, por termos que conviver com a mudança contínua quanto à
perda final de nossa substância (TILLICH, 2005, p. 206). Ora, toda mudança revela o não-ser
relativo aquilo que muda (TILLICH, 2005, p. 206). A possibilidade da perca de nossa
substancialidade individual constitui o combustível desse tipo de angústia.
Já sobre o conceito de existência, Tillich procurou deixar claro, que o mesmo também
é usado de várias maneiras tais como: (1) a possibilidade de encontrar uma coisa dentro da
totalidade do ser; (2) a efetivação daquilo que é potencial no domínio das essências; (3) o
“mundo caído”; (4) um tipo de pensamento que está consciente de suas condições
existenciais (5) um tipo de pensamento que rejeita inteiramente sua essência (TILLICH,
2005, p. 2011). Sobre esses aspectos, Tillich demonstra ambiguidade e contradição da
seguinte forma:
[...] A essência dá poder e julga aquilo que existe. Ela lhe dá seu poder de ser
e, ao mesmo tempo, se opõe a ele como lei imperativa. Onde essência e
existência estão unidas, não existe nem lei nem juízo. Mas a existência não
está unida à essência; por isso, há lei em tudo, e o juízo se expressa em
autodestruição. Também a palavra “existência” é usada em vários sentidos
[...] De novo, uma ambiguidade inevitável justifica o uso desta palavra em
diferentes sentidos. Tudo que existe, isto é, tudo quanto “está fora” da mera
potencialidade, é mais do que é no estado de pura potencialidade e menos do
que poderia ser no poder de sua natureza essencial (TILLICH, 2005, p.
2011).
Todavia, em que sentido é possível afirmar a defesa que Tillich faz de que o processo
de transição da essência à existência possui pressupostos para o estabelecimento relacional
como o seu conceito de alienação? A resposta a esses e a outros questionamentos correlatos,
vai ser apresentada por Tillich primeiro por uma perspectiva filosófica e posteriormente de
45
maneira teológica. O epicentro desse diálogo é o símbolo da queda. Do ponto de vista
filosófico, Tillich utiliza inicialmente as propostas de Platão (TILLICH, 2005, p. 325). Para o
filósofo grego, o respectivo problema é pensado dentro de sua doutrina da imortalidade da
alma. Em Platão, a descrição da transição da essência para a existência está posta a partir de
uma perspectiva mitológica onde a ideia é falar sobre a “queda da alma”. Isto é, para ele, a
existência não é uma questão de necessidade essencial, mas um fato e, por isso, a “queda da
alma” é um relato a ser expresso em símbolo mítico (TILLICH, 2005, 325). Portanto, Platão
não entende a existência como uma implicação lógica da essência. Para Tillich, é justamente
45
Em diversos de seus trabalhos Tillich estabeleceu uma profunda convicção sobre a importância da
hermenêutica dos símbolos para melhor compreender os conceitos teológicos. Em se tratando do respectivo
símbolo da queda, Tillich procede à recepção parcial do mesmo através da chamada “semidesmitologização”
(CARVALHO, 2007, p. 167). Sobre pesquisas nessa temática temos: O conflito das Interpretações (P. Ricoeur);
A concepção de símbolo e religião em Freud, Cassirer e Tillich (R. Josgrilberg); A dança dos símbolos no
cenário da hermenêutica (F. P. Pires); entre outros.
70
por ser um fenômeno criado, e não uma consequência necessária da natureza essencial do ser
humano que faz como que o processo de transição seja comparado ao problema teológico. Do
ponto de vista teológico, a transição da essência para existência serve para representar o
símbolo da “queda (TILLICH, 2005, p. 325). Nesse sentido, quando a teologia diz que a
existência está separada da essência, ela simplesmente está tomando emprestado conceitos
ontológicos, convertendo-os em conteúdos teológicos (TILLICH, 2006, p. 326). Assim, o
estado de inocência sonhadora conduz para além de si mesmo. A possibilidade da transição da
essência para existência é experimentada como tentação (TILLICH, 2005, p. 329). No
entanto, para que a liberdade se efetue de fato, tal evento é ontologicamente inevitável.
Contrariando a perspectiva dos teólogos ortodoxos, Tillich descreve esse fenômeno da
queda ou da alienação existencial da seguinte forma:
A tentação é inevitável, porque o estado de inocência sonhadora não é
provado nem decidido. Não é perfeição. Os teólogos ortodoxos acumularam
perfeição sobre perfeição no Adão anterior à queda, equiparando-o à figura
do Cristo. Esse procedimento não só é absurdo, mas também torna
completamente incompreensível a queda. Mera potencialidade ou inocência
sonhadora não é perfeição. Só a união consciente de existência e essência é
perfeição: Deus é perfeito, porque transcende essência e existência. O
símbolo “Adão antes da queda” deve ser entendido, pois, como a inocência
sonhadora de potencialidades indecididas. Se perguntarmos o que é que
conduz à inocência sonhadora para além de si mesma, devemos continuar
nossa análise do conceito de liberdade finita [...] A proibição divina
pressupõe uma espécie de ruptura entre o criador e a criatura, uma ruptura
que torna necessário o mandamento, mesmo que seja dado apenas para pôr à
a obediência da criatura. Essa ruptura é o ponto mais importante na
interpretação da queda, pois pressupõe um pecado que ainda não é pecado,
mas que também já não é mais inocência. É o desejo de pecar. No estado de
inocência sonhadora, a liberdade e o destino estão em harmonia, mas nenhum
deles se encontra efetivado [...] A tensão ocorre no momento em que a
liberdade finita se torna consciente de si mesmo e tende a se tornar efetiva. A
isso poderíamos chamar de momento da liberdade despertada (TILLICH,
2005, p. 329-330).
Bernard Martin (1963) em seu livro The Existentialist Theology of Paul Tillich afirma
que é justamente por isso a questão da transição da essência à existência deve ser
fundamentalmente pensada, com tema central da antropologia tillichiana (MARTIN, 1963, p.
112). Para esse autor, a problemática da transição é entendida como uma espécie de
distanciamento existencial do homem de sua essência ontológica, consequentemente um
processo de alienação (MARTIN, 1963, p. 121). Isto é, a realidade básica do estado
existencial do homem é a sua alienação, tanto de si mesmo, como também do ser de Deus
(MARTIN, 1963, p. 121). Por outro lado, paradoxalmente Tillich continua defendendo que a
essência e existência se encontram interligadas, ou seja, mesmo estando em conflito, destino e
liberdade não pode ser totalmente separados (MARTIN, 1963, p. 127).
71
Até agora ficou mais uma vez claro a maneira como Tillich desenvolveu seu método
teológico, isto é, a tentativa de procurar sempre dialogar com disciplinas correlatas, sobretudo
com a filosofia. Só assim, é possível entender porque o autor alemão defendia que, as marcas
da alienação do ser humano podem ser de fato, comparadas com a sua doutrina do pecado.
Resumindo: Tillich defende que, sendo o estado de existência humana um estado de
alienação, o homem se encontra “distanciado” do fundamento do seu ser, dos outros seres e de
si mesmo (TILLICH, 2005, p. 339). Portanto, para o nosso autor, a transição da essência à
existência resultou na culpa da pessoa e consequentemente em uma tragédia universal
(TILLICH, 2005, p. 339). Nesse sentido, Tillich de maneira sistemática, procurou estabelecer
uma descrição detalhada desse estado destrutivo da alienação existencial comparado ao
pecado. Vejamos:
Não se trata de uma substituição absoluta. Inclusive sobre esse aspecto, Tillich é
enfático ao afirmar que não podemos de imediato substituir o conceito de pecado pelo de
alienação. Primeiro porque alienação não é necessariamente um termo bíblico. A unidade
ontológica dos termos reside de maneira dialética (TILLICH, 2009, p. 59). Isto é, a filosofia
apresenta-se sempre como paradigma para teologia. Para ele a relação entre filosofia e
teologia nunca pode ser de maneira absolutizante (TILLICH, 2009, p. 60). Ora a questão dos
absolutos só pode ser respondida identificando de maneira paradoxal o absoluto filosófico
como elemento determinante do absoluto religioso ou teológico (TILLICH, 2009, 60). Tillich
sempre vai defender que o risco da fé baseia-se no fato de que o elemento incondicional ou
absoluto só pode ser compreendido quando aparecem de forma concreta (TILLICH, 2009, p.
66).
72
Proporcionalmente, embora o termo alienação não seja de fato, uma palavra bíblica,
não há dúvida de que a mesma encontra-se de maneira implícita em numerosas descrições
bíblicas que relatam a condição humana (TILLICH, 2005, p. 340). Por exemplo, no Antigo
Testamento, no símbolo da expulsão de Adão e Eva do paraíso, na hostilidade ecológica entre
ser humano e natureza, na hostilidade mortal de irmão contra irmão – Caim e Abel – na
hostilidade de uma nação contra outra através da confusão das línguas no mito de babel, na
hostilidade constante dos profetas contra os reis e sacerdotes e contra o povo que
constantemente se voltavam para outros deuses (TILLICH, 2005, p. 340). O mesmo exemplo
pode ser também aplicado ao Novo Testamento, quando a afirmação paulina de que o ser
humano perverteu a imagem de Deus convertendo-a em ídolos. Também cabe a mesma
aplicação ao que Paulo chamou de “ser humano contra si mesmo”, ou seja, aquela hostilidade
latente que o ser humano sente contra ser humano em combinação com seus desejos
distorcidos (TILLICH, 2005, p. 340). Assim, de maneira paradoxal em todas essas
interpretações da condição humana, deve afirmar-se implicitamente o estado inerente de
alienação. Todavia, a apropriação do conceito de alienação deve provocar uma espécie de
virada hermenêutica e uma reinterpretação do próprio conceito de pecado.
Sobre a complexa relação dos termos ele diz:
Contudo, “alienação” não pode substituir “pecado”, embora sejam óbvias as
razões para tentar substituir o vocábulo “pecado” por alguma outra palavra. O
termo foi empregado de uma forma que pouco tem a ver com o sentido
bíblico genuíno. Paulo frequentemente fala de “pecado” no singular e sem
artigo. Ele o concebe como poder quase-pessoal que rege este mundo. Mas
nas igrejas cristãs, tanto na católica como nas protestantes, o termo “pecado”
tem sido usado principalmente no plural, e “pecados” são desvios das leis
morais. Isso praticamente nada tem a ver com “pecado” como estado de
alienação com relação àquilo a que pertencemos – Deus, o nosso eu, o nosso
mundo. Por isso, consideramos aqui o pecado desde a perspectiva da
“alienação”. E a própria palavra “alienação” implica uma reinterpretação do
pecado a partir de um ponto de vista religioso. Mas não é possível prescindir
da palavra “pecado”, pois ela expressa aquilo que a palavra “alienação” não
conota, a saber, ato pessoal de se afastar daquilo a que pertencemos. Pecado
expressa com muita ênfase o caráter pessoal da alienação frente a seu aspecto
trágico. Expressa a liberdade e a culpa pessoal em contraste com a culpa
trágica e com o destino universal da alienação [...] A condição humana é de
alienação, mas essa alienação é pecado (TILLICH, 2005, p. 340-341).
Baleeiro (2008) afirma que a utilização do conceito filosófico “alienação” feita por
Tillich não pode ser compreendida como sendo um sinônimo, uma superação, ou quem sabe
uma espécie de “substituição” dos conceitos. Trata-se de procurar pensá-lo a partir do seu
método de correlação (BALEEIRO, 2008, p. 145). Ele diz: [...] a ideia de alienação ajuda a
interpretar a mal interpretada ideia de pecado (BALEEIRO, 2008, p. 145). Por esse motivo –
afirma Tillich – o termo “pecado” só deve ser usado depois que tivermos reinterpretado
73
religiosamente. Para o autor alemão, um importante meio para efetuar essa reinterpretação, é
sem dúvida o uso do termo “alienação” (TILLICH, 2005, p. 341).
Portanto, o que Tillich pretende nessa reflexão é continuar afirmando que não é
antibíblico empregar o termo alienação para melhor entender o conceito de pecado, assim
como também não é antifilosófico empregar o termo pecado para melhor entender o conceito
de alienação, visto que ambos possuem muita semelhança, sobretudo quando os mesmos são
utilizados de maneira instrumental para descrever a trágica e precária situação existencial do
ser humano.
46
Trata-se de um documento central da reforma de Lutero, que foi uma reação à Igreja Católica. Foi apresentado
na Dieta de Augsburgo de 1530. A confissão de Augsburgo compõe-se de 28 artigos. Os mesmo têm como
principal característica enfatizar a doutrina da salvação pela graça, mediante a fé em Jesus Cristo, com o centro
da fé cristã.
74
incerteza natural sempre toma a sua decisão como um ato de coragem sobre si mesmo
(TILLICH, 1996, p. 18).
Assim, tentando estabelecer uma análise mais precisa possível do respectivo conceito,
Tillich afirma que, ao invés da palavra descrença, deveríamos utilizar a palavra “não-fé”
(TILLICH, 2005, p. 341). Isto é, a palavra “descrença” inevitavelmente possui uma conotação
que a associa ao termo “crença”, que acaba significando a afirmações que não são evidentes
(TILLICH, 2005, p. 342). Diferente de sua própria etimologia, para o cristianismo protestante,
“descrença” significa o ato ou estado em que o ser humano – na totalidade do seu ser – se
encontra afastado de Deus, ou seja, alienado (TILLICH, 2005, p. 342). A descrença é uma
espécie de ruptura do ser humano de si mesmo e de Deus (TILLICH, 2005, p. 342).
Nas palavras de Tillich temos:
[...] O ser humano, em seu auto-realizar-se existencial, volta-se para si
mesmo e para seu mundo, perdendo sua unidade essencial como o
fundamento de seu ser e de seu mundo. Isso acontece tanto através da
responsabilidade individual quanto da universalidade trágica. É liberdade e
destino em um único e mesmo ato. O ser humano, ao se auto-efetivar, volta
da para si mesmo e se afasta de Deus no âmbito do conhecimento, da vontade
e da emoção. A descrença é a ruptura da participação cognitiva do ser
humano em Deus. Não se deveria chamá-la de “negação” de Deus, pois
perguntas e respostas, sejam positivas ou negativas, já pressupõem a perda da
união cognitiva como Deus. Aquele que pergunta por Deus já está alienado
de Deus, embora não cortado dele. Descrença é separação da vontade do ser
humano com relação à vontade de Deus (TILLICH, 2005, p. 342).
47
AGOSTINHO, 1995, p. 45
75
Católica Romana, para os reformadores essa mesma alienação é vencida simplesmente pela
relação pessoal com Deus e pelo amor que se segue dessa relação (TILLICH, 2005, p. 343).
Outra associação importante feito por Tillich para compreender a palavra hybris, foi
de tentar pensá-la a partir da noção de “pecado espiritual” (TILLICH, 2005, p. 345). Isto é, a
realidade de que o pecado é um fenômeno universal. Pois, todos os seres humanos alimentam
o secreto desejo de serem como Deus e todos agem de acordo com isso em sua autoafirmação
76
(TILLICH, 2005, p. 345). É tão complexa essa realidade, que segundo Tillich, esse desejo
secreto não poderia ser considerado simplesmente um orgulho (TILLICH, 2005, p. 344). Do
ponto de vista etimológico, o orgulho é uma qualidade moral, oposta à humanidade. Diferente
da hybris que pode se manifestar tanto no orgulho como também na humildade. Por exemplo:
ninguém está disposto a reconhecer, em termos concretos, sua finitude, sua fraqueza e seus
erros, sua ignorância e nem tão pouco sua insegurança. E, se alguém esta disposto a isso,
transforma sua disposição novamente em um instrumento da hybris (TILLICH, 2005, p. 345).
Assim, a Hybris:
[...] foi chamada de “pecado espiritual”, e todas as outras formas de pecado
foram derivada dela, até mesmo os pecados sensuais. Hybris não é uma
forma de pecado ao lado de outras. É o pecado em sua forma total, a saber, o
outro lado da descrença, do afastar-se do centro divino ao qual o ser humano
pertence. É o voltar-se para si mesmo como centro de seu eu e de seu mundo.
Mas esse recurvar-se em si mesmo não é efetuado por uma parte especial do
ser humano, como por exemplo, o seu espírito. Toda vida do ser humano,
inclusive sua vida sensual, é espiritual. E é na totalidade de seu ser pessoal
que o ser humano se torna centro do seu mundo. Isso é sua hybris; isso se
chamou de “pecado espiritual”, cujo principal sintoma é o fato do ser humano
não reconhecer sua finitude (TILLICH, 2005, p. 345).
Finalizando a seção, podemos afirmar que, para nosso autor, o conceito de hybris
também possui como exemplo realizações no mundo pagão da tragédia grega. Na tragédia
grega, Tillich afirma que hybris humana pode ser representada não pelo pequeno feito e
medíocre, mas, sobretudo, nas atividades dos heróis grandiosos (TILLICH, 2005, p. 344). A
imagem mítica da hybris do herói grego constela simultaneamente símbolos de transgressão e
de criação (LEITE, 2012, p. 92). A tradição homérica chama os heróis de “semideuses”,
contribuindo para fixar a ideia da hybris que homem pode ser Deus (LEITE, 2012, p. 93).
Proporcionalmente, ao chamar os heróis de “semideuses”, os poemas de Homero entendem
que o homem poderia possuir características semelhantes aos deuses tais como: poder,
coragem e virtudes (LEITE, 2012, p. 93). Assim, é possível defender que a hybris vem a ser
este processo de transgressão dos limites do homem, todavia, – na tradição grega – o métron,
de que resulta uma perigosa proximidade entre o deus e o homem, e que muitas vezes - nem
sempre - atrai a cólera divina, pode literalmente significar injúria, insulto, blasfêmia, ofensa
(LEITE, 2012, p. 93).
Tillich explica que a mesma é compreendida como resultado direto da descrença e da hybris.
Por exemplo, do ponto de vista qualitativo, todos os atos em que o ser humano se afirma
existencialmente apresenta dois polos. Quando o ser humano procura separar o seu centro do
centro da vida divina, ocorre a descrença. Quando o ser humano procura converter em centro
de si mesmo e de seu mundo temos a hybris (TILLICH, 2005, p. 346). A conjunção de ambos
os polos, possibilita o aparecimento da “concupiscência”.
A concupiscência é definida como sendo aquele estado ilimitado de desejo onde
homem é tentado a atrair a realidade toda para o próprio eu (TILLICH, 2005, p. 346).
Segundo Tillich, trata-se daquele desejo referido a todos os aspectos da relação que o ser
humano estabelece consigo mesmo e com o mundo (TILLICH, 2005, p. 346). Inclusive é
possível que ela esteja presente tanto na fome física como o sexo, tanto na busca do
conhecimento como também no desejo de poder (TILLICH, 2005, p. 346). Portanto,
originalmente o conceito de concupiscência deve ser medido de maneira ampla e não-
restritiva. Todavia, erroneamente esse mesmo conceito tem sido restrito, o chamado “desejo
sexual”. Essa abordagem está presente na reflexão teológica de Agostinho a Lutero
(TILLICH, 2005, p. 346). Tal restrição conceitual é incapaz de estabelecer conexão com o
conceito de alienação existencial.
Assim, segundo Tillich, para compreender o conceito de concupiscência é necessário
reinterpretar o conceito de condição humana, voltando-o a sua original perspectiva
abrangente. Essa tarefa teria sido feita por diversos, dentre os quais o teólogo alemão destacou
48
os trabalhos de F. Nietzsche e S. Freud (TILLICH, 2005, p. 347). Sobre o primeiro, Tillich
destacou a sua noção de “vontade de poder”. Sobre o segundo, sua doutrina da libido. Visto
que ambos ignoraram profundamente o contraste entre “ser essencial” e “ser existencial”.
Tanto Nietzsche como Freud, interpreta o ser humano como sendo exclusivamente em termos
de concupiscência existencial, omitindo assim qualquer referência ao Eros essencial do ser
humano (TILLICH, 2005, p. 347). Ora, a “vontade de poder” nitzscheana é encarada por
Tillich como uma palavra semelhante à palavra amor e justiça (TILLICH, 2004, p. 24).
48
A opção de se propor a ser um teólogo na fronteira fez com que Tillich estabelecesse um diálogo fecundo com
diversas áreas do conhecimento humano. No entanto, sua abordagem só seria de fato pertinente, se o mesmo
fosse capaz de se impor com elementos de originalidade. Nesse sentido, é preciso que fique claro, que o fato de
Tillich utilizar as reflexões de autores considerados não “convencionais” pela teologia tradicional, não fizeram
que ele concordasse em absoluto com todas suas teorias. Por exemplo: Tillich não deixou de apresentar suas
críticas a Nietzsche e a Freud. Para ele ambos tiveram os seus méritos na compreensão plana da existencial
humana, no entanto, ambos também tiveram erros. O primeiro, por não estabelecer normas e princípios pelos
quais devemos julgar a vontade de poder (TILLICH, 2005, p. 349). O segundo, por não ter percebido que sua
descrição da natureza humana só é adequada ao ser humano em sua condução existencial, mas não em sua
natureza essencial (TILLICH, 2005, p. 348).
78
Tillich também vai defender que o pai da psicanálise em sua doutrina da libido,
mesmo – de maneira intencional – teria tocado no sentido original e abrangente do conceito
de concupiscência. Segundo ele, assim como a palavra poder, o conceito de libido é mal
compreendido (TILLICH, 2004, p. 38). Para muitos, trata-se de uma espécie de “desejo por
prazer”. Todavia, esta definição hedonista, está de fato baseada sobre uma psicologia errada
que em si mesma é a consequência de uma ontologia errada (TILLICH, 2004, p. 38). Só é
possível uma ontologia correta do conceito de libido quando o mesmo é pensado a partir do
conceito de amor. Portanto, nem a libido nem a vontade de poder são em si características da
concupiscência. Para Tillich, ambas se tornam expressões da concupiscência e da alienação
quando não estão unidas ao amor, ou seja, quando carecem de todo objeto definido
(TILLICH, 2005, p. 349).
49
Para A. Schopenhauer a essência de nosso ser é caracterizada como: vontade. Isto é, somente a imersão na
profundidade de nós mesmos nos faz descobrir que somos vontade (REALE; ANTISERI, 2009, p. 207). Ora a
vontade – afirmava ele: [...] é a força que faz crescer a planta, que dá forma ao cristal, que dirige a agulha
imantada para o norte e assim por diante (SCHOPENHAUER, 2009, p. 208). Portanto, para ele a essência do
mundo é vontade insaciável, é um eterno tender. E a vida do homem é necessidade e dor, oscila entre crueldade,
dor e tédio. Todavia, quando o homem chega a compreender que a realidade é vontade e que inclusive ele
próprio é vontade, então ele está pronto para sua redenção (REALE; ANTISERI, 2009, p. 208).
79
“pecado original ou hereditário”. Embora, em mais de uma ocasião, Tillich demonstrou certa
antipatia em relação ao uso do termo, sobretudo devido à sua forte conotação intratemporal,
bem como sua suposta sugestão a uma espécie de transmissão de culpa ou hereditariedade do
pecado, ele claramente, percebe-se o valor de correlacionar a ideia de solidariedade de todos
os homens (CARAVALHO, 2007, p. 201). Portanto, a noção de “pecado original” só pode ser
utilizado em Tillich, como exemplo pedagógico da universalidade trágica do pecado humano
(CARAVALHO, 2007, p. 202).
É necessário pensar o problema de maneira detalhada. Do ponto de vista histórico, a
teologia clássica estabeleceu uma distinção entre o “pecado original” e o “pecado concreto”.
Quando ela afirmava que o pecado é original, simplesmente pensava que o ato de
desobediência de Adão e a sua predisposição pecaminosa, produziu uma espécie de efeito
colateral capaz de atingir toda a humanidade (TILLICH, 2005, p. 349). Proporcionalmente, o
pecado original seria o mesmo que pecado hereditário. Assim, ser humano estaria alienado de
Deus, visto que a queda de Adão teria corrompido a totalidade da raça humana (TILLICH,
2005, p. 350). Ora, segundo esse ponto de vista ninguém poderia evitar o pecado, sobretudo
na medida em que a alienação teria o caráter de destino universal da humanidade (TILLICH,
2005, p. 350). Todavia, Tillich considera inconsistente e, de fato, absurda a ideia de
estabelecer derivação à condição humana de ato completamente livre de Adão. Tal atitude
teológica teria capacidade de estabelecer a desumanização de Adão e, consequentemente
liberdade sem destino (TILLICH, 2005, p. 350). Para Tillich, a figura de Adão deve sempre
ser pensada como ser humano essencial e como símbolo da transição da essência à existência
(TILLICH, 2005, p. 350). Portanto, o chamado “pecado original” ou “hereditário” não seria
nem original e nem hereditário; trata-se do destino universal de alienação próprio de todo ser
finito.
Trata-se de pensar o pecado a partir dos conceitos de liberdade e destino. Assim,
Tillich argumenta sobre a diferenciação entre o pecado como um fato e como um ato. Isto é, o
pecado é um fato universal antes de se tornar um ato individual, ou seja, o pecado como ato
individual efetiva o fato universal da alienação (TILLICH, 2005, p. 350). Nesse sentido, do
ponto de vista da liberdade, o pecado é um ato individual, devendo inclusive gerar
responsabilidade e culpa pessoal. Porém, esta mesma liberdade deve estar inserida no destino
universal de qualquer ser finito, a saber, o seu estado de alienação (TILLICH, 2005, p. 350).
Paradoxalmente, em todo ato livre está implícito o destino de alienação e, vice-versa, pois o
destino de alienação é efetivado por todos os atos livres. Ele diz: [...] Portanto, é impossível
separar o pecado como fato do pecado como ato (TILLICH, 2005, p. 350). Haja vista que
80
ambos estão entrelaçados, e sua unidade é existencialmente experimentada por todo aquele
que se sente culpado. Resumindo: caso cada pecador tente assumir plena responsabilidade por
um ato de alienação – como sempre deveríamos fazer – também ele estaria consciente de que
este ato dependente de todo o nosso ser, incluído os atos livres do passado e o destino
universal da humanidade (TILLICH, 2005, p. 350).
Em geral temos:
A alienação como fato foi explicada em termos determinista: fisicamente, por
determinismo mecanicista; biologicamente, por teorias da decadência do
poder biológico da vida; psicologicamente, como a força compulsiva do
inconsciente; sociologicamente, como o resultado do domínio de classes;
culturalmente, como falta da adaptação educacional. Nenhuma dessas razões
explica a consciência de responsabilidade pessoal que o ser humano sente por
seus atos no estado de alienação. Mas todas essas teorias contribuem para
compreensão do elemento “destino” na condição humana. Nesse sentido, a
teologia cristã deve aceitar todas elas; deve acrescentar, porém, que nenhuma
descrição do elemento “destino” no estado de alienação pode eliminar a
experiência da liberdade finita e, consequentemente, a responsabilidade por
cada ato em que se efetiva a alienação (TILLICH, 2005, p. 350-351).
O problema entre a liberdade e o destino já foi tratado por Tillich em sua Era
Protestante. Naquela ocasião, o ator defendeu que o destino é a necessidade transcendente na
qual a liberdade se amarra (TILLICH, 1992, p. 34). Ora, onde não há liberdade, não há
destino; há apenas necessidades. Os objetos físicos (potências não-racionais) são inteiramente
condicionados as suas necessidades, não possuindo nem liberdade nem destino. Já os seres
humanos (potências racionais) por serem dotados de autodeterminação, estão suscetíveis aos
destinos (TILLICH, 1992, p. 34). Nesse sentido, quando tomamos uma decisão, é a totalidade
concreta de tudo o que constitui, eu que decide, e não um sujeito epistemológico. Isto se
refere à estrutura corporal, aos impulsos psíquicos e ao caráter espiritual (TILLICH, 2005, p.
194). Por outro lado, o destino não é um poder estranho que determina arbitrariamente o que
deve ou não acontecer. Todavia, não há dúvida de que a relação é complexa.
Talvez o maior exemplo disso está presente no “Mito do Éden”. No ser essencial, isto
é, no estado de inocência sonhadora, liberdade e destino se encontram mutuamente
imbricados. Pois, naquele ambiente eles [...] são distintos, mas não separados, vivem em
tensão, mas não em conflito. Ambos estão enraizados no fundamento do ser, na fonte de
ambos e no fundamento da sua unidade (TILLICH, 2005, p. 356). A grande tarefa do ser
humano é compreendê-las de formar harmônica. Pois, toda distorção desta harmonia tende a
causar desespero e angústia. Para Tillich, o estado de alienação do homem tende a deformar
essa harmonia. Na media em que a liberdade se deforma, ela se converte em arbitrariedade. O
81
mesmo deve ser dito do destino, qualquer topo de distorção transforma-o em necessidade
mecânica (TILLICH, 2005, p. 356).
Do ponto de vista prático, deve existir uma diferença entre a pessoa e o grupo social.
Esse último ponto deve tocar nessa típica diferença. Isto é, diferente do indivíduo, que possui
um eu capaz de equacionar suas decisões, os grupos sociais supostamente não possuiriam um
centro natural de decisão (TILLICH, 2005, p. 352). Nesse sentido, para Tillich, embora o
judaísmo e o cristianismo procurassem enfatizar a culpa pessoa do individuo, os mesmos não
puderam ignorar a problemática teológica diante de questões relacionadas como o sofrimento
de filhos por causa do pecado dos pais (TILLICH, 2005, p. 352). Ora – como é sabido de
todos – por diversas vezes na história humana, tentaram arbitrariamente efetivar essa
complicada relação. Sobre esse aspecto, Tillich aponta exemplo como: a condenação social de
descendentes inocentes de pais moralmente condenados, como também os diversos
fenômenos ocorridos nos últimos anos em que supostamente nações inteiras foram
socialmente condenadas pelas atrocidades perpetradas por seus governantes (TILLICH, 2005,
p. 352).
Todavia, é necessário pensarmos de maneira dialética. Pois, mesmo diante dessa
complicada relação, não podemos esquecer que Tillich sempre vai defender a unidade
ontológica entre o individual e o coletivo (TILLICH, 2005, p. 352). Todavia, tal unidade é
pensada a partir da noção de liberdade e destino. Para ele o destino sempre será
inseparavelmente unido à liberdade. Pois, paradoxalmente, a culpa pessoal participa na
criação do destino universal da humanidade, sobretudo, na criação do destino especial do
grupo social a que pertence essa pessoa. Dentro dessa perspectiva dialética, os meandros que
norteiam a relação entre liberdade e destino são complexos (TILLICH, 2005, p. 353). Ao
mesmo tempo em que os cidadãos não devem ser considerados culpados pelos crimes
cometidos em sua cidade, por sua vez, são considerados culpados como participantes do
destino do ser humano como um todo. Pois, na perspectiva tillichiana, todo o ato na qual a
liberdade está unida ao destino deve contribuir para formar o destino do qual participam
(TILLICH, 2005, p. 353).
Buscando uma espécie de “solução” plausível para o problema, Tillich apresenta duas
importantes reflexões que podem perfeitamente nos ajudar a melhor entender o problema da
dicotomia entre alienação individual e coletiva. Que são: (1) O conceito de personalidade; (2)
82
A relação entre marxismo e o socialismo cristão. Na primeira reflexão, nosso autor procura
reafirmar que todo ser humano é detentor de sua capacidade inerente de autodeterminação.
Assim, personalidade segundo ele, é identificada como o ser que tem o poder de
autodeterminação (TILLICH, 1992, p. 141). Ou seja, o ser humano é um ser livre e, portanto,
ser livre, significa ter o poder sobre si mesmo sem se escravizar à natureza que foi dada
(TILLICH, 1992, p. 141). Proporcionalmente, no próprio conceito de personalidade devem
estar inseridos dois outros: liberdade e responsabilidade. Ora, a liberdade não pode ser
explicada por meio de conceitos capazes de indicar a experiência da efetiva autodeterminação
(TILLICH, 1992, p. 142). O ser individual capaz de alcançar a universalidade, pois no
exercício de sua função, a liberdade é poder de transcender a própria natureza dada; porém
não será verdadeira se o indivíduo apenas trocar a própria natureza por outra qualquer
(TILLICH, 1992, p. 142). Portanto, a personalidade é o ser no qual o indivíduo se deixa
transformar pela estrutura universal do ser e a ela se une. Haja vista que: [...] Somente o
homem possui um mundo enquanto todos os seres vivos, incluindo o homem, vivem num
ambiente (TILLICH, 1992, p. 143).
É nesse sentido que, para Tillich, o indivíduo é responsável pelos seus atos. Segundo o
mesmo, a personalidade possui em seu núcleo fundamental incondicional capaz de estabelecer
no homem uma espécie de “exigência ética ontológica” (TILLICH, 1992, p. 144). Assim,
existe uma base vital na personalidade humana que regula seu próprio senso de
responsabilidade que dignifica sua liberdade. O estado de alienação individual ocorre quando
estamos dispostos a rejeitar a santidade religiosa da personalidade, ou seja, a sua dignidade
ética e sua profundidade ontológica (TILLICH, 1992, p. 144).
Tillich nos alerta sobre esse perigo da seguinte forma:
A negação religiosa desta ideia, o mau uso ético do poder pessoal em nós e
nos outros, e a dissolução ontológica da integridade da exigência pessoal têm
caráter demoníaco e consequentemente destrutivas [...] Podemos, é certo,
esquecer o caráter simbólico do símbolo pessoal e transformar o julgamento
sobre a profundidade e o significado da realidade num mero juízo sobre
algum ser especial ao nosso lado ou acima de nós, cuja existência e natureza
possam ser ou não provada. Se nos submetermos a esse perigo, o fundamento
das coisas se transforma numa coisa, parte do mundo, e, se tal coisa for
considerada absoluta, essa se transformar num ídolo. Ao enfrentá-lo,
podemos nos revoltar contra ele e tomar o seu lugar, ou sacrificar a nossa
liberdade e nossa dignidade pessoal (TILLICH, 1992, p. 144).
2. 3 Alienação e Salvação
50
Nessa citação é extremante perceptível a influência da escola de Frankfurt. Diversas expressões e conceitos
utilizados por Tillich, tais como: massa excluída, impressa, rádio e cinema como instrumento de poder coercivo,
ausência de autonomia do indivíduo, ciclo comercial, concentração nas necessidades da vida diária, entre outras,
servem para comprovar essa realidade. Inclusive um dos grandes teóricos da respectiva escola Frankfurt é
Theodor Adorno, ex-orientando de Tillich (ADORNO, 2009, p. 33).
84
51
Uma das espinhas dorsais do pensamento de Tillich foi à doutrina da "preocupação última". O ser humano
possui preocupações materiais e espirituais, como: alimentação, moradia, profissão, relacionamentos, dinheiro,
literatura, música etc. (TILLICH, 1996, p. 5). No entanto, algumas dessas preocupações podem reivindicar
atenção imprescindível e incondicional para si. Quando o homem aceita essa reivindicação de dedicação
incondicional, ele passa a ser movido incondicionalmente, assim, acontece ou surge a fé (TILLICH, 1996, p. 6).
Assim, a “negatividade última”, deve ser pensada como aquele estado de alienação absoluto do incondicional.
85
52
A partir dessa afirmação é possível fazer inferência que Tillich não comunga com algumas “teologias
conservadoras” que em tese defende que: a vida eterna depende do encontro de Jesus como o Cristo, e da
aceitação de seu poder salvador. Segundo o nosso autor, tal ideia reduziria e muito, o número de seres humanos
salvos. Nesse sentido, os que não tivessem estabelecido um encontro com Jesus, estariam arbitrariamente
condenados à exclusão da vida eterna, seja por um decreto divino ou por um destino que lhes sobreveio por meio
da queda de Adão ou de sua própria culpa (TILLICH, 2005, 452). Para sairmos desse dilema, é necessário
entender a salvação sob o âmbito ontológico e universalizante, ou seja, como uma espécie de poder curativo
através do Novo Ser ao longo da história toda. Portanto, Jesus deve ser considerado nosso salvador através do
significado universal de seu ser como o Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 453).
86
elementos polares ontológicos, o ser humano precisa estar de posse dessa nova realidade
marcada pelo relacionamento com o Novo Ser.
No entanto, é necessário não confundirmos a cura da alienação com aquelas antigas e
famigeradas perspectivas de humanas de “auto-salvação”. Inclusive sobre isso, o próprio
Tillich foi implacável em denunciar o fracasso efetivo de todas elas (TILLICH, 2005, p. 372).
Segundo o nosso autor, todas as tentativas religiosas denominadas de “auto-salvação”, são ou
deveriam ser consideradas existencialmente inviáveis. As principais são: legalistas, ascéticas,
místicas, sacramentais, doutrinais e emocionais.
A auto-salvação legalista é caracterizada pela tentativa de traduzir o estado existencial
de alienação simplesmente em uma mera quebra de mandamentos de lei. Ela faz, porém, em
forma de mandamentos exatamente porque o ser humano está alienado daquilo que deve ser
(TILLICH, 2005, p. 373). Porém, isso não funciona, pois onde há mandamentos surge a
tentação do legalismo, uma tentação que se mostra quase irresistível, transformando o
procedimento em um resultado catastrófico (TILLICH, 2005, p. 373). Para Tillich, a grandeza
dos legalistas reside em sua seriedade incondicional. Todavia, sua pretensão de superar o
estado de alienação mediante sua obediência estrita à lei, não pode ser efetivada, gerando com
isso o desespero (TILLICH, 2005, p.374).
Por sua vez, a auto-salvação ascética procura negar a realidade finita. Isto é, segundo
essa linha de pensamento queda da existência e finitude são a mesma coisa. Portanto, a
finitude não deveria existir, porque ela contradiz o ser em si, assim, a única forma de salvação
possível reside na negação completa dessa realidade, esvaziando-se o eu dos múltiplos
conteúdos do mundo que o rodeia (TILLICH, 2005, p. 375). O grande fracasso desse tipo de
auto-salvação acontece na medida em que ela tenta forçar a reunião com o infinito mediante
atos conscientes de autonegação (TILLICH, 2005, p. 375). A auto-salvação mística também
possui característica de tentar superar a realidade finita. Todavia, através da tentativa de
transcender todos os âmbitos do ser finito para reunir o ser finito como o infinito (TILLICH,
2005, p. 375). O que deve resultar em outro fracasso, sobretudo porque ninguém consegue
transcender o suficiente ao ponto de estabelecer sua união mística com Deus. Haja vista que,
mesmo se ele pudesse de fato estabelecer tal unidade com a infinitude, o seu estado de
alienação existencial nunca poderia ser superado na sua vida cotidiana (TILLICH, 2005, p.
375).
Já os três últimos modelos de auto-salvação: sacramentais e doutrinais Tillich
procuram-a apresentá-las de maneira conjugadas. Isto é, demonstrando a correlata relação
entre ambas, sobretudo através de movimentos católicos e protestantes. Ele diz:
87
Por fim, Tillich ainda teria apresentado uma sexta e última categoria de auto-salvação,
a saber, a emocional. Do ponto de vista histórico, ele se fixa no movimento chamado de
pietismo (TILLICH, 2005, p. 377). A tentação de auto-salvação no movimento pode ser
percebida em todas as formas de reavivamento, e nas experiências de conversões e
santificações, geralmente canalizadas de maneira artificial, ela também fracassa e distorce o
caminho da salvação, não conseguindo assim destruir a alienação (TILLICH, 2005, p. 378).
Portanto, sob alguns desses aspectos negativos, percebemos que só é possível pensar a
soterologia tillichiana, através da cura do ser alienado, a partir da instrumentalidade e do
aparecimento do Messias (cristo) e da expectativa do nascimento de uma nova realidade
caracterizada pela presença de um Novo Ser no homem.
esse aspecto comparativo – salva as ressalvas – o próprio Tillich chegou a fazer afirmações
reconhecendo essa realidade dizendo:
Alguns traços de nossa concepção cristológica são semelhantes à cristologia
de Schleiermacher, como ele a desenvolve em sua Glaubenslehre.
Schleiermacher substitui a doutrina das duas naturezas pela doutrina de uma
relação divino-humana. Ele fala de uma consciência de Deus em Jesus cuja
força ultrapassa a consciência de Deus que têm todos os outros seres
humanos. Ele descreveu Jesus como o Urbild (“imagem original”) daquilo
que o ser humano é essencialmente antes da queda (TILLICH, 2005, p. 436).
53
Trata-se daquela proposta cuja salvação é alcançada por intermédio de uma união mística com Cristo – nele, o
ideal da humanidade é plenamente realizado (GEISLER, 2010, p. 188). Os teólogos conservadores afirmam que,
de acordo com a teoria mística, como Cristo era a união absoluta da divindade e da humanidade, Deus se tornou
homem para que muitos pudessem se tornar Deus. Isto é, os remidos tomariam parte da natureza divina do
redentor, passando assim, a ser unido a Deus misticamente (SCHLEIERMACHER, 2010, p. 189).
89
Cristo, como se limita ao Jesus histórico. 54 Portanto, o cristo de Tillich deve ser entendido em
termos simbólicos. O símbolo não é a opção pela não existência concreta. Ele diz: [...]
Símbolos religiosos são elementos da realidade finita, que apontam para o Infinito
(TILLICH, 2005, p. 139). Tudo que diz respeito incondicionalmente ao ser humano,
geralmente é expresso de maneira simbólica, pois só a linguagem simbólica consegue
exprimir o Incondicionado (TIILCIH, 2005, p.139). Nesse sentido, é compreensivo porque em
Tillich, a maior parte dos conceitos fundamentais de toda soterologia esteja posta sobre o
problema do ser. Por exemplo, nos princípios da Expiação: na regeneração, a salvação está
posta como a participação no Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 460); na justificação, a salvação
está posta como a aceitação do Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 461); na Santificação, a
salvação está posta como a transformação pelo Novo Ser (TILLICH, 2005, p. 563).
2. 3. 3 A coragem de ser
O conceito de Novo Ser deve também aparecer – de maneira análoga – no seu livro A
coragem de Ser. Nessa obra, a proposta inicial de Paul Tillich, foi a elaboração de uma
perspectiva antropológica pautada a partir de uma análise constitutiva do homem, tendo como
elemento fundante o problema ontológico. Para Tillich, ser homem implica uma coragem
básica de ser (SANTOS, 2003, p. 54). É necessário mais uma vez afirmar que, a noção de
coragem, neste sentido, é um conceito ontológico, pois Tillich defende que a coragem de ser é
o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a respeito daqueles elementos de sua
existência que entram em conflito com sua auto-afirmação essencial (SANTOS, 2003, p. 54).
Grosso modo, o ser, a cultura e a fé, fazem parte da estrutura humana e se manifestam
na religiosidade (SCUSSEL, 2007, p. 257). Portanto, as “auto-afirmações ônticas” e
espirituais do homem precisam ser distinguidas, mas não podem ser separadas das
ambiguidades da vida (SCUSSEL, 2007, p. 257). Ora, o ser do homem inclui sua relação com
as significações, ou seja, seu ser é espiritual, mesmo nas expressões mais primitivas dos mais
primitivos seres humanos (TILLICH, 2009, p. 39). Na “teologia da cultura”, o homem precisa
ser compreendido como um ser espiritual e seu mundo é aquilo que ele é, suas significações e
seus valores (TILLICH, 2009, p. 42). A religiosidade acontece na experiência cotidiana da
54
Para o cientista da religião F. O. Guimarães (2013) percebe-se que, em Tillich, não é dado muita importância a
uma construção do Jesus histórico segundo os moldes da historiografia (por mais que valorizasse a
historiografia). Ele considerou as apresentações historiográficas de Jesus como um fracasso, passando em
seguida a propor um novo olhar para se entender o Jesus na história (GUIMARÃES, 2013, p. 71). Por esse
motivo, Tillich vai de fato, valorizar o desenvolvimento dos símbolos cristológicos, muito mais do que os
achados historiográficos, sobretudo o seu símbolo conceitual, a saber: o logos (TILLICH, 2005, p. 401).
91
vida, na relação com o mundo, com o transcendente, com a sociedade, com a natureza e
consigo mesmo (SCUSSEL, 2007, p. 258). Esta mesma religiosidade que é capaz de
perpassar a vida concreta das pessoas e das culturas, influenciando assim, as demais relações,
concepções, valores, conceitos, atitudes, pensamentos e emoções (SCUSSEL, 2007, p. 258).
Josgrilberg (2012) afirma que nessa esteira argumentativa, a questão de Deus passa a
ser deslocada sob novas bases. Isto é, para quem não pode pensar Deus no esquema da
tradição teista, obrigatoriamente Tillich necessita de outras perspectivas hermenêuticas, de
Deus além de Deus, mas que signifique também Deus além do ser (JOSGRILBERG, 2012, p.
73). Mais claro se torna que, em suas propostas, Tillich vai além dos tipos tradicionais do
teísmo e, ao mesmo tempo, retorna a ele por uma ontologia mística e uma gramática
ontológico-existencial, ou seja, estabelece esquemas e quadros para pensar Deus, Cristo, e a
vida (JOSGRILBERG, 2012, p. 73). Tillich afirma:
O Deus do teísmo é um Deus limitado pelas concepções finitas do homem
[...] Deus acima de Deus do teísmo está presente, embora oculto, em todo
encontro divino-humano [...] podemos tornar-nos conscientes do Deus acima
do Deus do teísmo na ansiedade da culpa e condenação, quando os símbolos
tradicionais que incapacitam os homens a resistir à ansiedade da culpa e
condenação perde seu poder. Quando “julgamento divino” é interpretado
como um complexo psicológico e perdão, como um remanescente da imagem
paterna, o que uma vez foi o poder naqueles símbolos pode ainda estar
presente e criar coragem de ser a despeito da experiência de um vão infinito
entre o que nós somos e o que deveríamos ser [...] A coragem de incorporar
em si a ansiedade de insignificação é a linha limite até onde pode chegar à
coragem de ser. Além dela é mero não-ser. Dentro dela todas as formas de
coragem estão reafirmadas nas potências de Deus acima de Deus no teísmo.
A coragem de ser está enraizada no Deus que aparece quando Deus
desapareceu na ansiedade da dúvida (TILLICH, 1996, p. 144-146).
(CARVALHÃES, 2003, p. 90). Trata-se das ameaças existenciais do não-ser, fazendo com
que o ser humano levante a pergunta para o problema do ser-em-si que é Deus. Assim, a
coragem de ser é busca humana de superar as contradições do não-ser, tendo como ponto de
55
referência o que Tillich chama de “preocupação ultima”. Portanto, Deus passa a ser
também o nome que designa aquilo que preocupa o ser humano de maneira última por ser a
resposta às ambiguidades da finitude.
Todavia, vivenciar uma existência pautada a base de uma coragem de ser não é de fato
fácil. Para que possamos andar nessa coragem de ser, é preciso vencer os conflitos polares
inerentes contidos no interior das categorias ontológicas (TILLICH, 2005, p. 201).
Precisamos vencer a angústia existencial gerada por esse conflito. É preciso ter coragem de
ser diante da angústia forjada pelas ambiguidades do Tempo. O homem precisa ser corajoso
para defender seu presente contra a visão de um passado infinito e de um futuro igualmente
infinito, onde ele em hipótese está excluído de ambos (TILLICH, 2003, p. 203). É preciso ter
a coragem de ser diante da angústia forjada pelas ambiguidades do Espaço. O homem precisa
ser corajoso para enfrentar aquelas ocasiões em que o não-ter-um-lugar se torna uma ameaça
real (TILLICH, 2005, p. 204). É preciso ter a coragem de ser diante da angústia forjada pelas
ambiguidades da Causalidade. O homem precisa ser corajoso para se submeter à derivação e
contingência, quem possui essa coragem não olha para além de si mesmo, para aquilo de onde
ele procede, mas repousa em si mesmo, ou seja, a coragem é capaz de ignorar a dependência
causal de tudo o que é finito (TILLICH, 2005, p. 205). É preciso ter a coragem de ser diante
da angústia forjada pelas ambiguidades da Substância. O homem precisa ser corajoso para
aceitar a ameaça de perder a substância individual e a substância do ser em geral (TILLICH,
2005, p. 206).
A esta altura do desenvolvimento argumentativo, percebe-se que Tillich entende a
56
coragem como uma espécie de vitalidade essencial do homem. Fazendo uma comparação
entre a coragem e o medo (Angústia), Tillich constrói sua reflexão. Isto é, se angústia produz
55
Em A Dinâmica da Fé, Tillich afirma que Deus é o símbolo fundamental da nossa preocupação última, ou
seja, Deus é um símbolo de Deus, pois símbolos e mitos são a linguagem da fé e podem expressar nossa
preocupação suprema. Esta fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente (TILLICH, 1996, p.
5-6). Trata-se de um ato que envolve a pessoa inteira. Uma vez que a fé é um ato da pessoa toda, ela participa da
dinâmica da vida pessoal. Existe uma profunda relação entre essa dinâmica da vida pessoal com a coragem de
ser, sobretudo, porque a mesma tem em comum o pensamento em polaridade e a observação das tensões e
conflitos daí resultantes (TILLICH, 1996, p. 8).
56
A questão da vitalidade deve aparecer de forma emblemática na filosofia da vida de Friedrich Nietzsche,
sobretudo na sua “vontade de poder”, inclusive, o próprio Tillich vai reconhecer essa aproximação (TILLICH,
2010, p. 211-212). É possível também aproximar esse vitalismo em alguns dos escritos do teólogo Dietrich
Bonhoeffer. Em sua Ética o autor procurou estabelecer a reabilitação do vitalismo na categoria do natural. Ele
diz: A vida natural é vida formada. O natural é forma inerente à própria vida e está a seu serviço
(BONHOEFFER, 2002, p.86).
93
medo, a coragem deve produzir a vitalidade (JUNIOR, 2003, p. 138). Para o nosso autor, a
vida inclui medo e coragem como elementos de um processo vital num equilíbrio cambiante,
mas essencialmente estável (JUNIOR, 2003, p. 138). O desequilíbrio de ambos os elementos
significa que a vida está condenada a ser destruída. Portanto, a vitalidade é o resultado de tal
processo de vida que contém esse equilíbrio e potência de ser. Assim, a coragem é “a
expressão da vitalidade perfeita” (JUNIOR, 2003, p. 138). Tal fenômeno teve sua expressão
última através do Novo Ser em Cristo Jesus.
94
57
Trata-se daquela filosofia hegemônica da Europa no século XVIII cuja principal característica está
fundamentada em uma dedicada confiança na razão humana. Grosso modo, o iluminismo defende: a libertação
em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, as superstições religiosas, às relações desumanas
entre homens, às tiranias políticas, à defesa do conhecimento científico e técnico e dos inalienáveis direitos
naturas do homem e do cidadão (REALE; ANTISERI, 2009b, p. 229). Do ponto de vista teológico, o
iluminismo – sobretudo em sua versão inglesa – foi responsável pelo Deísmo. Como parte integrante do
iluminismo: o deísmo é a religião racional e natural, é tudo aquilo, e só aquilo que a razão humana pode admitir
(REALE; ANTISERI, 2009b, p. 224). Os principais representantes do movimento deísta são: J. Toland (1670-
1722); M. Tindal (1657-1733); A. Collins (1676-1729); e L. Shaftesbury (1671-1713) (REALE; ANTISERI,
2009b, p. 225).
97
capaz de mudar o rumo das futuras ordenações superiores da sociedade, cuja religiosidade é
principal (BECKENKAMP, 2009, p. 32). O ponto no qual toda filosofia sempre se encontrará
é em concordância ou em conflito com a consciência humana universal, sobretudo, o modo
como ela se relaciona com o supremo, ou seja, Deus – afirmava F. Schelling (SCHELLING,
1989, p. 157). Do ponto de vista filosófico, a caracterização do iluminismo assume dimensão
epistemológica, referente à constituição do conhecimento científico e, consequentemente, do
conhecimento teológico. Em se tratando da Alemanha, tal fenômeno foi agregado ou
58
responsável por desencadear outros tais como: o Romantismo e o Idealismo.
Contextualmente, tudo isso deve acontecer na chamada Escola de Tübingen (FARAGO, 2006,
p. 159). O respectivo instituto de Tübingen é considerado por muitos pesquisadores como
principal e mais expressivo centro de formação teológico-filosófica inclusive responsável pela
formação da força de trabalho de quase todo o serviço estatal e eclesiástico da região chamada
59
Suábia na Alemanha (VACCARI, 2011, p. 167). Em sua matriz embrionária, o seminário
de teológico de Tübingen era considerado uma instituição relativamente conservadora,
sobretudo, por parte de seus dirigentes, que prezavam pela conservação do “bom e antigo
espírito” (VACCARI, 2011, p. 169). Nessa sua disposição, fechava-se a toda e qualquer
influência externa e procurava, por meio de estatutos sempre muito rígidos, contraporem-se às
inovações que começavam a afluir de toda parte, principalmente da França recém-tomada
pelos ares da Revolução (VACCARI, 2011, p. 169). O principal inimigo desse suposto
estandarte conservador do instituto era sem dúvida a filosofia kantiana.
Vaccari (2011) nos afirma que o impacto da filosofia de Kant na produção teológica
de Tübingen foi configurado a partir de três momentos importantes. (1) A negação da
filosofia kantiana, por conta de uma suposta afinidade com os ideais da revolução francesa e,
por ser contrária ao dogma da revelação divina; (2) A apropriação da moral kantiana,
58
Também conhecido como Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), o romantismo é caracterizada por sua
reação contrária ao iluminismo. Diferente do iluminismo que procurava forjar seus sistemas filosóficos
unicamente sobre a fria razão, pois via ela como único órgão da verdade, o romantismo prezava em salientar a
intuição e fantasia. Isto é, sua característica essencial foi à revalorização do conteúdo sobre a forma (REALE;
ANTISERI, 2009, p. 8). Do ponto de vista teológico, o romantismo é panteísta, no sentido de valorizar a relação
do homem com a natureza, com o infinito e como o eterno (REALE; ANISERI, 2009, p. 10). Os fundadores da
escola romântica são: os irmãos A. e F. Schlegel, Novalis, F. Schleiermacher, F. Hölderlin, F. Schiller, J. Goethe
(REALE; ANISERI, 2009, p. 15). Sobre o idealismo: é correto afirmar que se trata de um movimento ou escola
filosofia cuja função ou disposição repousa sobre a problemática desencadeada da filosofia iluminista kantiana
(HARTMANN, 1983, p. 9). Com efeito, seguindo a mesma linha de raciocínio – do ponto de vista teológico – o
epicentro das controversas em Tübingen está posto e concentrado na recepção de Kant, seja negando a
autonomia absoluta da razão na incognoscibilidade de Deus ou supostamente aderindo a sua moral (VACCARI,
2011, p. 168).
59
Região administrativa do Estado Alemão da Baviera, cuja capital é cidade de Augsburgo.
98
60
Em sua Crítica da Razão Pura, Kant nega ao entendimento a possibilidade do conhecimento dos objetos do
mundo supra-sensível e também à razão a possibilidade de uma demonstração da existência de Deus.
99
moral (VACCARI, 2011, p. 172). O propósito deles está em demonstrar, que Deus enquanto
61
instância teórica sobrevive no interior da própria Crítica kantiana (KANT, 1999, p. 247).
Diante desses acontecimentos em Tübingen, três grandes filósofos alemães (Fichte, Schelling
e Hegel), vão imediatamente procurar tecer suas conclusões. Todos os três – cada um ao seu
modo – vão influenciar decididamente o pensamento de Kierkegaard e Tillich. O primeiro
deles foi Fichte. Em seu Ensaio de uma crítica a toda revelação de 1792, o autor combate
esse tipo de equívoco em torno da filosofia kantiana. Nesta obra – que inclusive foi atribuída a
62
Kant – Fichte tenta desabilitar em absoluto toda e qualquer tentativa humana de continuar
defendendo a crença dogmática de uma suposta revelação divina fora dos limites da razão.
Trata-se de “fenômeno estranho”, afirma Fichte à defesa teológica de que haja uma revelação
exterior ao homem (FICHTE, 1998, p. 7). Ele diz: A razão dá a si mesma, independente de
qualquer coisa fora dela, por meio de uma própria espontaneidade absoluta, uma lei
(FICHTE, 1998, p. 8). É justamente isso que os teólogos de Tübingen não entendiam. A
crítica Kant deve obrigatoriamente incluir tanto à teologia como também doutrina da
revelação, pois ambas só podem ser efetivadas a partir de ideia de Deus que se revela
extraordinariamente de maneira sobrenatural. É preciso reconhecer as dificuldades de se
implantar automaticamente o argumento Teísmo do ponto de vista transcendental
(ROSALES, 2012, p. 38). Proporcionalmente, para Fichte, a religião consiste numa vida
moralmente boa, sem deixar para Deus o que outro deve fazer em prol da realização da razão
no mundo, ou seja, deve se trabalhar, não orar; fazer o que é devido e não esperar de Deus
algo que só homens podem fazer (ROSALES, 2012, p. 57). Esse Deus é, na realidade, a raiz
intersubjetiva da mesma moralidade, a que abre o reino dos seres racionais; o divino é
propriamente a comunidade dos espíritos livres, o Espírito Santo como comunidade ético-
espiritual dos justos (ROSALES, 2012, p. 60). Para Fichte, como exercício de sua liberdade, o
Eu que põe a sim mesmo (FICHTE, 1992, p. 46). Tais princípios são incompatíveis com a
então “teologia tradicionalista” de Tübingen. Portanto, para Fichte a religião não pode em
61
O Deus dogmático escreve G. Lebrun – ressurge sempre da exigência que o põe apenas na Ideia. Isto é, tudo
seria simples se houvesse de um lado uma teologia condenada, do outro uma ciência positiva a ser constituída,
mas não se trata ainda de positividade, mas apenas de saber racional e, é por isso que a linguagem teológica
permanece inevitável, fazendo com que Deus continuasse sendo uma ideia necessária (LEBRUN, 2002, p. 211).
Em função dos limites impostos ao entendimento e àquilo que podemos conhecer, Kant confere à razão prática
uma relação necessária com os objetos do mundo supra-sensível (BUENO, 2005, p. 63). É nessa perspectiva que
é possível falar em uma fé racional em Kant (BUENO, 2005, p. 69). Portanto, a proposta de Kant na Crítica da
Razão Prática funda-se, na possibilidade e mesmo na necessidade de admitirmos a existência de Deus em função
das exigências de nossa razão, especialmente as da razão prática (KANT, 1999, p. 248).
62
Seu ensaio obteve a aprovação de Kant, que pediu a seu próprio editor para publicar o manuscrito. O livro
surgiu em 1792, sem o nome nem o prefácio do autor, e foi saudada amplamente como uma nova obra de Kant.
Quando Kant esclareceu o equívoco, Fichte tornou-se famoso da noite para o dia e foi convidado a lecionar na
Universidade de Jena.
100
geral fortalecer nosso respeito pela lei moral, porque todo respeito por Deus se fundamenta
meramente em sua reconhecida concordância com essa lei e, portanto, no próprio respeito à
lei (BECKENKAMP, 2009, p. 60).
Na mesma direção deve caminhar Schelling. Isto é, a postura de criticar o uso
teológico da filosofia moral de Kant para fins conservadores. Em uma correspondência entre
ele e Hegel, Schelling descreve os acontecimentos de Tübingen desastrosos. Schelling
descreve em Hegel o ambiente da seguinte forma: [...] todos os dogmas possíveis são agora
carimbados como o postulado a razão prática e onde nunca são suficientes provas teórico-
históricas, ali a razão prática resolve os problemas (SCHELLING, 2011, p. 177).
Evidentemente, Schelling visa demonstrar que os postulados da filosofia kantiana estavam se
voltando contra o próprio Kant, visto que os teólogos de Tübingen, por não entenderem Kant
acabavam erigindo um verdadeiro sistema dogmático ainda mais perigoso (VACCARI, 2011,
63
p. 182).
Em se tratando de Hegel, temos um comportamento peculiar. Hegel desenvolve um
sistema filosófico em uma perspectiva basicamente histórica (BECKENKAMP, 2009, p. 19).
O fenômeno de Tübingen, ou seja, à questão geral, por que os homens procuram por uma
verdade que lhe é revelada pela razão prática, através de uma fonte de autoridade
supostamente externa? Essa questão sobre a origem da positividade de religião, que poderia
inclusive ser pensada a partir de uma filosofia transcendental, Hegel dará uma resposta
eminentemente histórica (BECKENKAMP, 2009, p. 19). Para Hegel o problema dos teólogos
de Tübingen não era uma mera guerra doutrinária, de argumentos contra argumentos, mas um
comprometimento bem concreto da teologia com os mecanismos do poder despótico
(BECKENKAMP, 2009, p. 83). Por trás do combate de ideias, Hegel vê como sustentáculo
real da ortodoxia, estruturas ideológicas bem concretas de poder, cuja história é longa e
remonta aos primeiros séculos do cristianismo (BECKENKAMP, 2009, p. 84). Nessa esteira
argumentativa – ao longo de sua produção filosófica – Hegel assumiu três grandes
63
A maneira como Schelling lida com a postura dos teólogos de Tübingen em meados de 1790 não deve ser
encarada de forma definitiva. Isto é, ela precisa ser pensada a partir de um contexto maior. Ela precisa ser
pensada, sobretudo, em relação às três etapas do seu pensamento. Nos seus primeiros escritos, Schelling
estabeleceu uma espécie de oscilação entre o caráter “transcendental” e a afirmação “ontológica” do mundo. Tal
atitude acontece na aproximação das posições críticas (Kant e Fichte) e do dogmatismo (Espinosa). O respectivo
período abrange o início de sua produção até o texto Sobre a Essência da Liberdade de 1809 sendo dominando
pelo conceito de “intuição intelectual (PUENTE, 1997, p. 15). O período seguinte – intermediário – que se
estende desde o texto Sobre a Essência da Liberdade Humana até as Preleções de Erlangen de 1821, é o mais
nebuloso, mas ao mesmo tempo mais fecundo, pois nele se esmorece a confiança de Schelling na força da razão
(PUENTE, 1997, p. 16). A última fase que, de certo modo, já se encontra implícita nos escritos da fase
intermediária situa-se exemplarmente nas Preleções de Erlangen de 1820/21, nas quais Schelling consuma a
suprafunção da “intuição intelectual” no “êxtase do eu” (PUENTE, 1997, p. 16).
101
64
Joãosinho Beckenkamp (2009), p. 84, citando Hegel, afirma, que o mesmo defendeu que a religião positiva e
política formaram uma parceria perigosa e duradoura. Tal formato de religiosidade ensina o que o despotismo
queria, isto é, o desprezo do gênero humano, sua incapacidade para qualquer bem, de ser algo por si mesmo
(HEGEL, 2009, p. 84).
65
Kant deixa uma lição importante: o objeto permanece sempre distinto do sujeito. Sempre inacessível sempre
fugidio. Ora, nesse sentido, a captura do objeto não precisa tornar-se uma obsessão, já que no entender de Kant,
o conhecimento, o esforço de redução do objeto ao sujeito permite que o conhecimento do objeto seja tanto
quanto o sujeito consegue aproximar-se do objeto (NOVELLI, 2008, p. 102). Proporcionalmente, a dicotomia
sujeito-objeto fica assim cimentada. Por conseguinte, não há reconciliação viável entre sujeito e objeto. No
máximo pode-se pretender um convívio pacificado e convencionado (NOVELLI, 2008, p. 102). É precisamente
aqui que Hegel se opõe a Kant. Para Hegel, o sujeito não pode ser delimitado pelo objeto, por ser ele quem
efetiva o objeto. Hegel não nega a exterioridade do objeto nem as suas especificidades, mas não aceita que o
sujeito não possa ter em si o objeto (NOVELLI, 2008, p. 102). Nesse sentido, Hegel indica que o sujeito não se
põe por si só, mas através da relação com o seu outro, isto é, o objeto. Dessa forma, não somente o sujeito atribui
ser ao objeto. Se, de fato, é a relação que funda o sujeito e objeto, então um sem o outro não pode se sustentar.
Por conseguinte, sujeito e objeto podem se reconhecer um no outro (NOVELLI, 2008, p. 102).
66
O dualismo epistemológico do sistema kantiano é rejeitado ao extremo nas propostas finais de Hegel. O
dualismo Deus-homem é superado pelo monismo deus humanizado ou homem divinizado (NOVELLI, 2008, p.
103). Ao se tornar homem na pessoa de Jesus, o infinito e o absoluto (Deus) aproximou-se do finito (homem),
posteriormente ao ressuscitar, ele elevou-se ao finito no âmbito do infinito. Portanto, em sua síntese universal,
Hegel propõe o reconhecimento de que a totalidade se torne efetiva, posto que somente por ela pode-se obter a
realidade do ser (NOVELLI, 2008, p. 117). A lei não reduz tudo a si, mas é por tudo reduzida ao que é, isto é,
expressão do todo e do empenho histórico na direção da unidade (NOVELLI, 2008, p. 116).
102
161). Proporcionalmente, para ele o dogma cristão possuía a verdade, todavia, de maneira
inadequada. Assim, embora Strauss utilizasse como exemplo a filosofia hegeliana, ele
também passou a desenvolver uma metodologia peculiar. Enquanto Hegel havia elevado a
“representação religiosa” em nível de linguagem racional, a partir de uma hermenêutica
filosófica, Strauss a reduzia a um mito livremente inventado (FARAGO, 2006, p. 161). Nesse
sentido, Strauss não estava muito preocupado em pensar os pressupostos do Jesus Histórico,
mas sim o Cristo da Fé. O resultado final de sua desmitologização foi: “o Deus-homem era a
humanidade”. Sua “nova fé” consistia em uma doutrina ética, religiosamente inspirada e
apropriada ao homem moderno (FARAGO, 2006, p. 161).
Agora, sim, podemos tocar a temática da nossa sessão. Isto é, como é possível falar de
uma influência mútua entre Kierkegaard e Tillich? Ora, a partir do contexto apresentado,
veremos como isso de fato é possível. Começamos com Kierkegaard. Ele não duvida de que a
Dinamarca (terra natal de Kierkegaard) enquanto “província denominacional” da Igreja
Lutera Alemã tenha recebido de fato, real influência dos desdobramentos teológicos
promovidos pela Escola de Tübingen. Inclusive, com ironia e amargura Kierkegaard
costumava chamar a Dinamarca de “o pais encantado da mediocridade”, sobretudo numa
época em que a vida cultural estava dominada quase que por completo pela vida intelectual
alemã (HARBSMEIER, 1993, p. 194). Nesse sentido, enquanto muitos viam nesta ligação
somente um lado positivo, tendo em vista que para alguns, o dinamarquês não seja
considerada uma língua filosófica, Kierkegaard esboçava um movimento cultural de
identidade existencial (HARBSMEIER, 1993, p. 194). Para Kierkegaard, o movimento
teológico racionalista liberal não podia explicar a sério a singularidade do evento de Cristo,
que revela de modo único e perfeito a profundidade da vocação divino-humana à qual cada
homem é chamado. Ele diz:
Quando se examina o cristianismo como um documento histórico, o
importante é obter informações inteiramente confiáveis sobre o que a
doutrina cristã propriamente é. Se o sujeito investigador estivesse
infinitamente interessando em sua relação para com esta verdade, iria nesse
ponto logo desesperar, porque nada é mais fácil de perceber do que em
relação ao histórico a maior de todas as certezas ainda é apenas uma
aproximação, e uma aproximação é algo pequeno demais para que se
construa sobre ela alguma felicidade, e é tão diferente da felicidade eterna
que nenhum resultado pode surgir dela (KIERKEGAARD, 2013, p. 29).
A mesma não deve ser considerada como uma espécie de sinônimo de subjetivismo, em que
supostamente cada qual escolhe a verdade que melhor lhe convier (REBLIN, 2006, p. 71).
Ora, a especificidade da verdade subjetiva kierkegaardiana , é contrária daquela suposta
“verdade objetiva” do pensamento de Hegel, cuja finalidade reside em se propor um sujeito
abstrato, absoluto, que engolia completamente a individualidade (REBLIN, 2006, p. 71). Na
perspectiva de Kierkegaard, este sistema teológico é uma ilusão, pois só poderia gerar no
pesquisar o desespero, cuja saída foi “resolvida” ou pseudominimizada pela defesa de que os
67
relatos dos evangelhos fossem de fato, narrativas míticas. A resposta de Kierkegaard a esse
embate teológico estava em procurar demonstrar que a verdade do cristianismo, ou seja, a sua
capacidade de proporcionar uma felicidade eterna, não poderia ser apreendida na
“objetividade sistêmica” do atacado, mas sim, na “subjetividade existencial” do varejo.
Prossegue Kierkegaard:
Assim, não há aqui uma questão a respeito da verdade do cristianismo, no sentido de
que, se fosse resolvida, a subjetividade haveria de aceitá-la com desembaraço e boa
disposição. Não, a questão diz respeito à aceitação dessa verdade por parte do sujeito,
e aqui deve ser considerado como ilusão da perdição (que permaneceu ignorante do
fato de que a decisão reside na subjetividade), ou como pretexto da enganação (que
empurro a para longe a decisão, como um tratamento objetivo, no qual não há
qualquer decisão em toda eternidade) [...] O Cristianismo quer, de fato, dar de
presente ao indivíduo uma felicidade eterna, um bem que não é distribuído no atacado,
mas é só para um, um único de cada vez [...] Assim o cristianismo protesta contra toda
objetividade; quer que o sujeito se preocupe infinitamente consigo mesmo. Aquilo
pelo que ele pergunta é a subjetividade; só nela se encontrará a verdade do
cristianismo, se é que ela aí estará; objetivamente, ela simplesmente não existe. Se ela
estiver só num único sujeito, então estará apenas nele, e haverá mais alegria cristã no
céu por este único do que por toda a história do mundo pelo sistema
(KIERKEGAARD, 2013, p. 133-134).
67
Segundo Kierkegaard, as propostas da teologia acadêmica são de fato tão angustiantes que o simples fato
histórico de Martinho Lutero ter rejeitado a Epístola de Tiago, considerando-a inclusive como “palha”, já é o
suficiente para deixar qualquer pesquisador honesto em profundo desespero (KIERKEGAARD, 2013, p. 32).
Nesse sentido, os desdobramentos da teologia liberal na consideração de que as narrativas dos evangelhos de
Jesus devem ser consideradas como mito, nada mais é do que se não, o reflexo direto da inapropriada e frustrante
metodologia hegeliana.
104
Tal método foi o principal responsável por permitir que a teologia gozasse do rigor acadêmico
com que se emprega todo e qualquer bom trabalho historiográfico, sobretudo na medida em
que também permitiu com que a mesma aprendesse a discernir os elementos empiricamente
históricos, dos elementos lendários e mitológicos que integram os relatos bíblicos de ambos
68
os testamentos (TILLICH, 2005, p. 398). Ele também nos alertou que quando o teólogo
toma uma decisão no âmbito da história, o mesmo pode fazê-lo somente como historiador, e
não como interprete da fé, ou seja, ele não pode atribuir validez dogmática aquilo que, do
ponto de vista histórico, apenas são prováveis (TILLICH, 2005, p. 398). Por outro lado, a
consequência dessa mesma atitude corajosa, acabou sendo considerada negativa, sobretudo
por desencadear a percepção de antigas problemáticas não resolvidas. Nas palavras de Tillich
temos:
Desde quando se aplicou à literatura bíblica o método científico de pesquisa
histórica, certos problemas teológicos que jamais haviam sido completamente
esquecidos ganharam uma intensidade desconhecida nos períodos anteriores
da história da igreja [...] Em muitos aspectos, essa tentativa era corajosa,
nobre e extremamente significativa. Suas conseqüências teológicas foram
inúmeras e bastantes importantes. Mas, se pensarmos em sua intenção básica,
a tentativa da crítica histórica de encontrar a verdade empírica sobre Jesus de
Nazaré foi um fracasso. O Jesus histórico, e o Jesus que está por trás dos
símbolos de sua recepção como Cristo, não só não apareceu, ma também se
distanciou cada vez mais à medida que avançava a crítica histórica [...] o
resultado desta nova (e muito antiga) problemática não é uma imagem do
chamado Jesus histórico, e sim a percepção de que, por trás da imagem
bíblia, não existe uma imagem que pudéssemos considerar cientificamente
provável (TILLICH, 2005, p. 392-393).
Essa situação não se deve às deficiências passageiras da pesquisa histórica que um dia
talvez possam ser superadas, afirmava Tillich (TILLICH, 2005, p. 393). Trata-se da
incongruência da natureza das próprias fontes. Isto é, nem as tentativas de desmitologização
absoluta das narrativas bíblicas e nem tampouco a elaboração de uma espécie de “Gestalt de
Jesus”, serão suficientes para resolver o problema. Para Tillich desmitologização total é
impossível (TILLICH, 2005, p. 324). Sempre haverá a necessidade de uma associação
68
Um fator importante a ser lembrado é que Tillich não deixa de ser um teólogo bíblico. No entanto, tal
afirmação precisa ser entendida de maneira articular. Ele diz: A Bíblia é o documento original sobre os eventos
em que está baseado o cristianismo (TILLICH, 2005, p. 50). Em contra partida, pela instrumentalidade de seu
método de correlação, o teólogo nos convida a rejeitar as propostas do biblicismo neo-ortodoxo, de que a Bíblia
é a única fonte da teologia. Isto é, a mensagem bíblica não pode ser entendida e não poderia ter sido recebida
sem uma preparação da religião e da cultura da humanidade. Por conseguinte, esta mesma mensagem não teria
sido mensagem para ninguém, incluindo o próprio teólogo, sem a efetiva participação experiencial da igreja e de
cada cristão. Logo, afirma ele: [...] se a “Palavra de Deus” ou o “ato da revelação” é considerado a fonte da
teologia sistemática deve enfatizar que a “Palavra de Deus” não está limitada às palavras de um livro e que o
ato da revelação não se identifica como a “inspiração” de um “livro de revelações”, mesmo que seja o
documento da “Palavra de Deus” final, plenitude e critério de todas as revelações. A mensagem bíblica
abrange mais (e menos) do que os livros bíblicos (TILLICH, 2005, p. 50). Nesse sentido, Tillich advoga a
importância de reconhecermos que a teologia possui fontes adicionais, além da Bíblia.
105
elementar como símbolo, pois o retorno do simbólico não só ajuda o trabalho da apologética,
como também aproxima a labor teológico para mais perto da experiência de fé. Assim, como
não é possível o estabelecimento de uma “Gestalt de Jesus” totalmente desassociado do
conteúdo histórico, ou seja, a pesquisa histórica não pode traçar uma imagem essencial,
sobretudo depois de eliminar todos os possíveis traços particulares, considerando-os
questionáveis (TILLICH, 2005, p. 393).
Antes de finalizar essa sessão, outro fator importante, que é extremante necessário
acrescentar, é que tanto Kierkegaard como Tillich, devem utilizar – cada uma ao seu modo –
alguns elementos da filosofia F. W. J. Schelling (1775-1854). Diversos pesquisadores de
ambos os autores, confirmam essa realidade. Assim, não visando ao estudo exaustivo sobre o
tema, mas apenas uma abordagem introdutória, contaremos com os trabalhos de Jon Stewart
(2011) e Eduardo Gross (2004).
Em se tratando de Søren Kierkegaard, é possível perceber traços concretos dessa
influência, sobretudo quanto às criticas de Schelling ao pensamento Hegel (STEWART, 2011,
p. 238). Esta interpretação sobre Kierkegaard não é muito comum. Inclusive, parece que
estaríamos diante de um tremendo equívoco. Isto é, a ênfase que Kierkegaard costuma atribuir
à vivência imediata do indivíduo (a existência) parece ser o extremo oposto do espectro que
pairava sobre qualquer forma de idealismo (STEWART, 2011, p. 237). No entanto, utilizando
como fio condutor o conceito kierkegaardiano de Realidade, J. Stewart (2011) faz alguns
apontamentos importantes, sobre a possível relação entre Kierkegaard e Schelling, que são:
(1) O encontro do Jovem Kierkegaard com Schelling em Berlim como elemento detonador
para o desenvolvimento de uma filosofia da realidade; (2) A presença da noção de realidade
de Schelling no conceito de Angústia; (3) A continuação do conceito de realidade
schellinguiano no pós-escrito às migalhas filosóficas. Seguindo essa linha de raciocínio,
Stewart inicia seus argumentos, afirmando que o encontro do jovem Kierkegaard com
69
Schelling foi extremamente proveitoso para o futuro das reflexões do filósofo dinamarquês
(STEWART, 2011, p. 243). Nesse sentido, o ponto cardeal dessa possível associação,
repousaria sobre a questão ou a noção de realidade. Utilizando-se do testemunho ocular do
filósofo Frederik Christian Sibbern (1185-1872), professor de Kierkegaard na Universidade
de Copenhague, Stewart defende seu posicionamento. Segundo o mesmo professor, quando
era estudante, Kierkegaard o teria interrompido com o seguinte questionamento: qual a
69
Kierkegaard foi para Berlim depois de defender sua dissertação de Mestrado no Outono de 1841 para
participar de curso oferecido por F. W. J. Schelling. Ele inclusive permaneceu em Berlim no período de 25 de
Outubro de 1841, a 06 de Março de 1842 (STEWART, 2011, 243).
106
70
A relação entre Kierkegaard e Schelling é considerada polêmica. Em alguns momentos, Kierkegaard tornou-se
impaciente com Schelling, cuja proposta inicial parecia ser tão promissora. Por exemplo, em uma carta escrita ao
seu irmão P. C. Kierkegaard, afirma que a partir de fevereiro de 1842, ele diz: "Schelling jorra o absurdo mais
insuportável." Nesse mesmo período, Kierkegaard declara que literalmente parou de ir às aulas, e uma vez que
não há mais nada para ele fazer em Berlim e, que ele iria voltar para Copenhague (STEWART, 2011, p. 244).
Por outro lado, concomitantemente, deve-se notar que, enquanto ele estava participando de palestras de
Schelling, ele também estava indo regularmente às palestras do hegeliano Karl F. Werder (1808-1888), que
estava dando um curso de Ciência da Lógica de Hegel. Isto é, Kierkegaard poderia perfeitamente testemunhar
em primeira mão, aquela típica análise abstrata das categorias da metafísica. Naquele contexto, assistir a
palestras do Werder foi certamente um novo lembrete das reais limitações da filosofia sistêmicas. Isso tornou
ainda mais forte o contraste que a filosofia de Schelling poderia lhe oferecer (STEWART, 2011, p. 244).
107
sobretudo para evitar confusões no reino acadêmico das bolsas de estudos (STEWART, 2011,
p. 249). 71 Todavia, ele assegura que esse mesmo pensamento científico e sistêmico, é incapaz
de abarcar a realidade existencial, sobretudo por que esta mesma realidade não pertenceria às
72
categorias da lógica (STEWART, 2011, p. 249). Haufniensis considera ser uma confusão
entre as diferentes esferas: a lógica e a existência. Os hegelianos fazem uso das categorias de
“realidade” e "existência" em suas obras sobre metafísica (lógica). Mas, de acordo com
Haufniensis, isto equivale a uma grave distorção desses conceitos e confunde a relação entre
as duas esferas separadas. A lógica é necessária, mas a existência e a atualidade são
73
contingentes (STEWART, 2011, p. 249). Ainda no Pós-Escrito, é possível perceber
abordagens de semelhante envergadura, sobretudo quando neste texto Kierkegaard repete em
um tom mais polêmico as críticas de que ele emitiu em seu Conceito de angústia, sobre a
confusão das esferas envolvidas quando se tenta incorporar realidade concreta da existência
74
humana em um sistema de ciência ou conceitos (STEWART, 2011, p. 250). Ora, para
Kierkegaard, o sistema e a existência não se deixam pensar conjuntamente, visto que, para
pensar a existência, o pensamento sistêmico precisa pensá-la como “suspensa”, e, portanto,
não como existente. Trata-se de um paradoxo, pois a realidade da existência é o que abre
espaço, enquanto que o sistêmico é a tentativa de totalidade e completude, que supostamente
75
reúne (STEWART, 2011, p. 251).
Em se tratando de Paul Tillich, os números não são menores. Segundo Eduardo Gross,
não era para ser menos, levando em consideração que Tillich defendeu duas teses acadêmicas
sobre a filosofia de Schelling (GROSS, 2004, p. 80). Nesse sentido, o autor deve apontar pelo
menos três grandes aspectos que demonstra a influência de Schelling no pensamento de
Tillich. O primeiro aspecto repousa sobre a questão da Ontologia Voluntarista (GROSS,
2004, p. 81). Em geral, as formulações da dialética entre as potências apresentadas por
Schelling servem de base tanto para a interpretação que Tillich faz de Schelling em
Misticismo e Consciência de culpa, quanto para sua própria elaboração das concepções de
razão, abismo do ser, demoníaco e trindade. Ora, enquanto o elemento racional é chamado de
“formal”, a profundidade simbolizada com o termo “abismo” aponta para o caráter inefável e
infinito que precede a razão (GROSS, 2004, p. 85). Ao tratar de exemplos tirados do
misticismo, ele aponta para o mistério que está além ou aquém da razão, como sendo o seu
71
KIERKEGAARD, 2011, p. 11-12
72
KIERKEGAARD, 2011, p. 12
73
KIERKEGAARD, 2011, p. 12
74
KIERKEGAARD, 2013, p. 124
75
KIERKEGAARD, 2013, p. 124
108
Retomando agora à obra de Tillich, salta-nos aos olhos o quanto o próprio Tillich
considerava de grande importância a influência de Kierkegaard sobre a construção teológica
contemporânea, na qual ele mesmo é um dos principais representantes. Por questões didáticas,
tentaremos estabelecer relações, começando com sua Perspectiva da Teologia Protestante nos
Séculos XIX e XX – onde o relato da influência de Kierkegaard é mais objetivo – e
posteriormente como sua Teologia da Cultura. Nesta consideração ressalta mais uma vez o
lado fronteirista do método de correlação da teologia de Tillich. Isto é, sua capacidade de
repensar os conteúdos da tradição cristã utilizando-se de uma linguagem capaz de ser
entendida pelos homens e mulheres de nossa época, cuja apropriação dos conteúdos
filosóficos relevantes para esse mesmo fim é imprescindível.
Em sua Perspectiva da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX (texto baseado em
suas aulas no período que era professor na Universidade de Chicago) Tillich nos apresenta um
76
STONE, J. A. Tillich and Schelling’s Later Philosophy. CAREY, J. (Ed). Kairos and Logos. Cambridge, MA:
The North American Paul Tillich Society, 1978, p. 11-44.
109
relato impressionante sobre o primeiro contato que teve com a filosofia de Kierkegaard
quando ainda era estudante de Teologia em Halle. Ele diz:
Lembro-me com orgulho como os estudantes de teologia em Halle tomaram
conhecimento do pensamento de Kierkegaard por meio de traduções feitas
por indivíduo isolado Württemberg. Nos anos de 1905 a 1907 fomos todos
fascinados por Kierkegaard. Foi, na verdade, uma grande experiência. Não
podíamos aceitar a ortodoxia teológica da recuperação. Não podíamos, em
particular, aceitar os teólogos “positivos” – no sentido de “conservadores” –
que não prestavam atenção à escola histórico-crítica. Pois o trabalho daquela
escola era válido e cientifico. Não podia ser negado quando buscávamos
realizar uma pesquisa honesta a respeito das bases históricas do Novo
Testamente. Mas, por outro lado, sentíamos certa distorção moralista e falta
de misticismo. Nesse vazio faltava o calor da presença mística do divino,
como na escola de Ritschl. Não fomos cativados por esse moralismo. Não
achamos nele a profundidade da consciência de culpa que a teologia clássica
sempre tivera. Assim, ficamos extremamente felizes ao descobrir
Kierkegaard (TILLICH, 2010, p. 175).
Como podemos perceber, a influência de Kierkegaard sobre Tillich foi, de fato, quase
imediata. Grosso modo, podemos destacar dois grandes fatores que favorecem esse fenômeno.
Primeiro porque Kierkegaard supostamente representava uma abordagem teológico-filosófica
mais “espiritualizante” em um tempo de profunda aridez moralista e falta de misticismo
(TILLICH, 2010, p. 175). Isto é, se por um lado Tillich entendia que os avanços da escola
histórico-crítica eram positivos - tendo em vista a sua capacidade de dar ao labor e a sua
pesquisa teológica respaldo mais honesto e rigoroso -, por outro lado, o autor denuncia a sua
distorção moralista e a falta de misticismo. É justamente esse calor e piedade que vai
encontrar em Kierkegaard (TILLICH, 2010, p. 175). Em segundo lugar, Kierkegaard também
dispunha de uma construção teológica inteligente, sobretudo relevante para estabelecermos o
diálogo como o mundo contemporâneo. Tal combinação transformou Kierkegaard – ainda que
77
tardiamente – em um dos mais importantes pensadores do século XX. Nas palavras de
Tillich temos:
Sua combinação da intensa piedade que alcançava as profundezas da
existência humana com a grandeza filosófica recebida de Hegel tornou-o
importante para nós. É certo que Kierkegaard tornou-se um pensador da
moda em três aspectos: (a) Religiosamente, porque seus escritos religiosos
são tão importantes hoje como nos dias em foram escritos. (b) Enquanto
inspiração da teologia dialética, chamada de neo-ortodoxa nos Estados
Unidos. Na Europa, em geral, chamou-se de dialética por causa de sua
relação como Hegel, posto que este termo represente São principio básico do
pensamento de Hegel. (c) Enquanto inspiração de Heidegger, o filósofo que
deu o nome de existencialismo ao movimento derivado de Kierkegaard
(TILLICH, 2010, p. 175-176).
77
Para Tillich a influência de Kierkegaard só se deu no século XX e não propriamente na sua época. Por outro
lado, a descoberta de seu pensamento é extremamente importante, pois nos permite melhor compreender as
proposta de M. Heidegger, J. P. Sartre, K. Jaspers (TILLICH, 2009, p. 152).
110
desinteresse ou descompromisso é muito bem vindo em toda pesquisa séria, sobretudo com o
tratamento com datas, lugares, conexões etc., no entanto, quando se trata do terreno da
interpretação, essa atitude será reduzida por causa da participação existencial (TILLICH,
2010, p. 180). (b) Na Ética, a atitude de distanciamento é impossível. Kierkegaard aceita a
ética objetiva de Hegel, ética da família, da vocação, do Estado etc. No nível estético, o
descompromisso sexual apenas produz o isolamento. No ético, o amor supera o isolamento e
gera a responsabilidade cujo simbolismo é expresso pelo matrimônio ou casamento
(TILLICH, 2010, p. 181); (c) Na Religiosa, Tillich afirma que temos uma espécie de
superação das duas esferas anteriores, onde é possível expressar a relação como que nos
interessa infinitamente ou produz em nós paixão infinita. Esse “interesse apaixonadamente
infinito” Kierkegaard teria pegado do próprio Hegel, e estrategicamente utilizado contra ele
mesmo. Ou seja, Hegel dizia que, sem interesse e paixão, não acontece nenhuma coisa
grandiosa na história (HEGEL, 2002, p. 34). Essa noção foi retomada por Kierkegaard e
utilizada para descrever a situação religiosa (TILLICH, 2010, p. 181).
Na Teologia da Cultura, Tillich aborda a filosofia de Kierkegaard dentro de uma
78
estrutura maior catalogada por ele como “Existencialismo” ou “Filosofia Existencial”.
Nesse sentido, o pensamento de Kierkegaard vai ser abordado a partir da segunda parte de seu
livro, naquilo que o ator denominou de Aplicações Concretas (TILLICH, 2009, p. 97). Assim,
se a teologia da cultura foi à tentativa tillichiana de encontrar elementos de religiosidade nas
expressões culturais, a concretude dessa possibilidade deve aparecer em diversos modos do
conhecimento humano, cujo existencialismo é um parceiro fundamental. Tillich defende que o
fenômeno do existencialismo possui proporções históricas e culturais cujo alcance possui
significado teológico (TILLICH, 2009, p. 161). Grosso modo, Tillich aponta Kierkegaard
(junto como outros autores) como protagonista de um tipo de filosofia cuja principal
característica se mostrou pela decepção do pensamento racional e sistêmico, que procurava
abarcar não apenas o real, a coisa, mas também a realidade concreta e existencial das pessoas,
num processo meramente lógico (TILLICH, 2009, p. 131). A partir deste contexto,
78
É comum a associação entre o pensamento de Kierkegaard e o existencialismo. O que não é comum é sua
aceitação, sobretudo na comunidade kierkegaardiana. Para a maior parte dos especialistas, a utilização de termos
como “patrono” ou “fundador” do existencialismo deve ser considerada um equivoco, levando em consideração
que Kierkegaard não se propôs a estabelecer um novo método ou sistema filosófico, pelo contrário, sua maior e
mais original expressão, foi sem dúvida a crítica a esse tipo de comportamento acadêmico. Ironicamente, o
pensador existencial não oferece “sistemas prontos”, mas apenas migalhas filosóficas e um bocadinho de
filosofia (KIEKEGAARD, 2011, p. 13). Por outro lado, os apontamentos de Tillich, são considerados relevantes,
tendo em vista que Kierkegaard não aparece sozinho como sendo o principal responsável por esse tipo de
filosofia existencial, mas apenas mais um nome, no emaranhado de outros nomes, tais como: F. Engels, K. Marx.
112
79
TILLICH, 2009, p. 139
80
TILLICH, 2009, p. 142
81
TILLICH, 2009, p. 144
82
TILLICH, 2009, p. 147
83
TILLICH, 2009, p. 150
84
TILLICH, 2009, p. 152
113
Pinheiro (2009) completa dizendo que a filosofia existencial, conforme exposta por
Tillich, oferece um quadro dramático, já que expressa a polaridade entre atitude existencial e
expressão filosófica (PINHERIO, 2009, p. 125). Assim, todos os que se colocam ao lado da
vida como Kierkegaard estão dispostos a vivenciar e a enfrentar a incondicionalidade de tal
paradoxo, ou seja, equilibrar o elemento existencial por um lado e o pensar filosófico por
outro (PINHERO, 2009, p. 125). Diante da vida, não se é apenas filósofo, mas antes uma
pessoa-que-vive. Ora, todos os filósofos e apaixonados pela existência vivida procuram
reagir, na teoria e na prática, ao destino histórico cuja realização acabou por promover quando
o atacamos (PINHERO, 2009, p. 125). Mas foi assim que a filosofia existencial traduziu sua
revolta contra a alienação da sociedade industrial (PINHERO, 2009, p. 125).
114
consequentemente na presença de Deus ou da ideia de Deus para o qual deve caminhar com o
qual deve entrar em relação (FARAGO, 2006, p. 92). Não podemos nos esquecer de que a
mola propulsora ou a espinha dorsal da antropologia kierkegaardiana está posta sobre a
questão da relação, pois para ele o ser humano “ainda não existe” a não ser pela
instrumentalidade de uma síntese entre o finito e o infinito (KIERKEGAARD, 2010, p. 19).
Dizendo de outra forma ele afirma:
Tornar-se uma existência significa, em primeiro lugar, perder sua unidade
imediata pondo seu ser como uma relação sem substrato ou como uma
relação sem suporte, mas em cujo núcleo se inscreve a desproporção [...]
Nestas condições, a condição não tem mais de se libertar de sua estrutura
nem tampouco de se evadir da sua condição. Só pode trabalhar em sua
salvação sem ter a possibilidade de transcender a relação consigo na divisão
que é (KIERKEGAARD, 2006, p. 92).
Conclui-se que tanto para Kierkegaard como para Tillich o estado da existência é um
estado de alienação. O traço característico da filosofia de Kierkegaard de sublinhar a falta de
resolução do ser humano no mundo, priorizando sua ênfase na pessoa solitária que necessita
lidar com a finitude, com a culpa, com a angústia e com o desespero humano, exerceu forte
influência na descrição que Tillich faz da vida humana (CASTRO, 2002, p. 39). Ambos
reconhecem que o indivíduo não pode ser considerado uma simples ideia, pois ao falar sobre
o homem estamos lidando com um ser único, irrepetível e insubstituível (CASTRO, 2002, p.
39). Ambos estão pensado no estado de existência alienada, cuja emblemática é caracterizada
pelo conceito de concupiscência. Em concordância com esta realidade, Tillich descreve da
seguinte forma:
A doutrina da concupiscência – considerando-se o termo em seu sentido
todo-abrangente – pode ser confirmada por muito material e percepções
profundas da literatura existencialista, da arte, da filosofia e da psicologia.
Basta mencionar primeiro alguns exemplos, alguns dos quais expressam o
sentido de concupiscência em figuras simbólicas, outras em forma de análise.
Quando Kierkegaard descreve a figura do imperador Nero, ele recorre a um
tema do cristianismo primitivo para elaborar uma psicologia da
concupiscência. Nero corporifica as implicações demoníacas do poder
ilimitado; ele representa o indivíduo que conseguiu vincular à sua pessoa o
universo mediante o exercício de um poder que utiliza em proveito próprio
tudo aquilo que lhe aprouver. Kierkegaard descreve o completo vazio interior
desta situação que conduz à determinação de causar a morte a tudo o que
encontra inclusive a si próprio (TILLICH, 2005, p. 346-347).
Esses apontamentos vêm de fato mais uma vez demonstrar que estamos lidando com
reflexões que possui dimensões de caráter correlato. As definições de homem como ser
alienado em Tillich correspondem respectivamente às etapas principais do pensamento
antropológico de Kierkegaard. Em suma, por meio do significado crescente de um homem
existencialmente não-reconciliado, Kierkegaard pode influenciar o posicionamento tillichiano
de compreender o homem a partir da tensão estabelecida entre o ser e o não-ser, procurando
encontrar respostas, sobretudo pelo sentido da vida dentro do processo histórico concreto
(CASTRO, 2002, p. 10).
período pós-guerra, de imediato Kierkegaard se tornou uma espécie de “santo dos filósofos”,
bem como dos teólogos da Alemanha. Nesse sentido, sua influência sobre o pensamento de
Tillich, foi imensa (MARTIN, 1962, P. 18). Assim, como já afirmamos acima, o próprio
Tillich definiu esta suposta influência perpassada por aquela tradicional consciência de culpa
(TILLICH, 2010, p. 175). Essa mesma consciência de culpa é caracterizada como a Doutrina
do Pecado, tanto em Kierkegaard como Tillich. Assim, ficou provavelmente mais evidente, o
quanto ambos são devedores dos pressupostos antropológicos elaborados por Schelling.
Grosso modo, na antropologia schellinguiana o homem é pensado a partir do conceito
de Queda – primeiro platônica e concomitantemente cristã. Quando nos debruçamos em
compreender a antropologia de Schelling, percebemos que estamos lidando com três fases
distintas do seu pensamento, a saber: a inicial e a intermediária e conclusiva (PUENTE,
1997, p. 95). Na primeira fase de seu pensamento, a estrutura de sua antropologia é construída
a partir daquela antiga noção platônica cujo conceito de Queda possui dimensão e caráter
gnosiológico (PUENTE, 1997, p. 37). Assim, o processo de conhecimento é caracterizado
pela busca pelo sentido absoluto das coisas. Obviamente, a noção de queda não poderia ser
explicada, pois tal fenômeno procede da própria absolutuidade do absoluto (PUENTE, 1997,
p. 37). Para Schelling, esse mesmo absoluto, deve obrigatoriamente possui dimensões divinas.
Nessa fase, o autor também defende que o processo de compreensão do mundo só é possível
porque o homem possui na sua estrutura constitutiva, elementos de identidade com a própria
dimensão absoluta, isto é, Deus. [...] Só o idêntico é capaz de compreender o idêntico
(PUENTE, 1997, p. 36). Tudo é compreendido através da “intuição intelectual”. Geralmente,
este tipo de antropologia não chamou muito atenção de Kierkegaard nem de Tillich, sobretudo
porque costuma desvalorizar em absoluto, realidade concreta e empírica do homem
(PUENTE, 1997, p. 37).
Já na chamada fase intermediária, a noção de Queda é substituída. Schelling abandona
a característica gnosiológica, passando a adotar um pressuposto cujo ditame repousa sobre a
ideia de liberdade (PUENTE, 1997, p. 68). Portanto, se na fase inicial, Schelling havia
apresentada a impossibilidade de se estabelecer uma explicação plausível sobre a noção de
Queda, nessa nova fase isso não acontece. O autor sugere que a explicação mais satisfatória
sobre o tema é relacionar o conceito de Queda ao problema da liberdade. Trata-se de uma
mudança brusca, sobretudo se levarmos em consideração que na fase inicial de seu
pensamento Schelling não só ignorava a liberdade com também a própria finitude, pois o
absoluto tudo suprimia (PUENTE, 1997, p. 68). Nesse sentido, não havia espaço para
incertezas, devido ao fato do processo cognitivo não ser medido por nenhuma outra faculdade,
119
mas ser imediato, ou seja, a “intuição intelectual” era um tipo de conhecimento absolutamente
seguro, pois ela nada mais era do que o próprio Absoluto, consequentemente dando-nos a
terrível sensação de não-liberdade (PUENTE, 1997, p. 68). Diferente dessa nova fase
(intermediária) aonde Schelling vai procurar valorizar mais o lado participativo entre o
homem e o Absoluto, entre a finitude e o infinito. Aqui, então, o elemento central dessa
participação é apontado por Schelling como sendo a liberdade (PUENTE, 1997, p. 70). O
fundamento desse argumento repousa na analogia entre Deus e o homem. Segundo Schelling,
o homem possui como Deus duas vontades contraditórias: “vontade própria” (o egoísmo) e a
“vontade universal” (o amor); a grande diferença é que em Deus, a chamada “vontade
própria” só está presente como fundamento, ou seja, em potência, enquanto que no homem, a
mesma abandonou o antigo estado de inércia e foi atualizada (PUENTE, 1997, p. 69). Esse
processo de atualização ou efetivação da “vontade própria” e egoísta no homem que constitui
a essência do mal e também a causa da Queda. Aqui os paralelos com a doutrina do Pecado
Original é latente (PUENTE, 1997, p. 69). O resultado de tudo isso é encontrado na última
fase do pensamento de Schelling (PUENTE, 1997, p. 92).
No período conclusivo de sua filosofia, o autor vai fazer afirmações “pouco
convencionais” para o círculo cristão, sobretudo quando ele diz que era impossível a
permanência no “estado de inocência” originária (PUENTE, 1997, p. 92). No mundo da
liberdade, é impossível a permanência absoluta no paraíso. Paradoxalmente, a Queda é um
fenômeno existencialmente inevitável. O exemplo utilizado por Schelling é o mito de
Pandora. A caixa de Pandora era uma espécie de tesouro apenas e tão somente enquanto ela
permaneceu inviolada, ou seja, enquanto permaneceu em potência (PUENTE, 1997, p. 92). O
homem (Adão) moveu sua potencialidade egoísta achando que poderia igualar-se com Deus,
isto é, como criatura criada à imagem e semelhança de Deus, ele achou que possuía também o
poder de domínio sobre os dois tipos de vontades. Ora, que o homem tenha sido criado como
um ser livre é fato, no entanto, esta suposta liberdade, é caracterizada como consequência de
sua livre escolha, em libertar-se de seu estado original. Naturalmente o homem enganou-se,
porque não soube diferenciar entre a liberdade eterna – a de Deus – e uma liberdade criada –
sua própria (PUENTE, 1997, p. 74). Portanto, a maior ilusão do homem foi pensar que ele,
assim como Deus, poderia dominar a primeira potência, ou seja, o poder de ser (PUNETE,
1997, p. 93). O ponto final dessa antropologia schellinguiana aponta para uma espécie de
soterologia, cuja base está posta sobre o Cristo Mediador. Apenas o próprio Absoluto (Deus)
pode inverter essa situação trágica (PUENTE, 1997, p. 72). Pois somente um Deus efetivo e
120
eficaz pode novamente restaurar a unidade originária. É necessário que Deus se transforme
em homem, para que o homem possa se elevar a Deus (PUENTE, 1997, p. 73).
Proporcionalmente, é possível defender que a doutrina do pecado em Kierkegaard
possui algumas características dessa antropologia de Schelling, que, consequentemente vai –
de maneira direta ou indiretamente – também influenciar as construções feitas por Tillich.
Grosso modo, como já afirmamos no primeiro capítulo dessa dissertação, o conceito de
pecado em Kierkegaard possui dimensões não moralistas ou moralizantes (BITTENCOURT,
2013, p. 15). Isto é, o problema do pecado em Kierkegaard precisa ser pensado como um
pressuposto mais amplo, sobretudo, totalmente desassociado do fundamentalismo e do senso
comum. Sua doutrina do pecado é considerada como um paradoxo da finitude existencial cuja
culpabilidade é forjada nos entraves complexos e trágicos da própria liberdade humana
(BITTENCOURT, 2013, p. 12). Em Kierkegaard o pecado nada mais é se não o fruto da
liberdade, e, paradoxalmente constitui a expressão por excelência da condição humana em sua
vida finita cerceada de percalços e fracasso mediante a participação em uma existência
fragmentada, impotente e incapaz de realizar plenamente os anseios humanos
(BITTENCOURT, 2013, p. 12). Nesse sentido, de maneira nem pouco convencional e
utilizando-se de muita ironia, Kierkegaard tem uma espécie de compreensão de pecado sobre
uma perspectiva “afirmativa”. Isto é, o ato de se praticar o pecado é uma escola ética, pois
corresponde ao âmbito da deliberação individual daquilo que é conveniente ao juízo subjetivo
do agente (BITTENCOURT, 2013, p. 13).
Argumenta Kierkegaard:
A rigor, o pecado não tem seu lugar em nenhuma ciência, ele é objeto
daquela pregação em que fala o indivíduo, como o indivíduo que se dirige ao
indivíduo [...] Ao conceito de pecado corresponde à seriedade. A ciência em
que o pecado estaria mais perto de encontrar lugar seria decerto a ética [...] O
pecado então só pertence à ética na medida em que é nesse conceito que ela
encalha, mediante o arrependimento. Se a ética acolher o pecado, acabou-se a
idealidade dela (KIERKEGAARD, 2011b, p. 18; p. 19-20).
mesmo tempo, de desespero e angústia, isto é do pecado. Desse modo, o pecado apresenta
uma relação ambivalente na vida humana, pois ao nascer da violação transcendental do
interdito divino, ocorre ao mesmo tempo a afirmação plena da dignidade humana expressada
em sua imanência (BITTENCOURT, 2013, p. 12). Obviamente, irônica e paradoxalmente,
diante desses pressupostos, é possível fazer algumas perguntas: Se quando pecamos somos
livres, o pecado não representaria então nossa singularidade? Será que o fenômeno do pecado
não acabou supostamente aproximando a condição humana do ser de Deus?
(BITTENCOURT, 2013, p. 15). Essas perguntas não são para serem objetivamente
respondidas, mas sim para serem vivenciadas em nossa existência concreta. O pecado
caminha paralelamente ao “puro”, e talvez a melhor forma de se “purificar” seja através da
paradoxal kierkegaardiana “prática” do pecado. Ora, toda experiência extra-moral exige que
se estabeleça uma valoração existencial para além do Bem e do Mal e, para tanto, requer a
“prática” daquilo que é interdito (BITTENCOURT, 2013, p. 16). Segundo Kierkegaard, ainda
que o homem consiga viver em profundo estado de pecado, ele não pode negar a presença do
Eterno em si mesmo. Isto é, sendo nossa existência constituída de ambiguidades da finitude,
por maior que seja nosso estado de “impureza” ou pecado, caracterizando pela presença de
desespero e angústia, nunca poderíamos em absoluto, chegar ao um estado absoluto de
afastamento de Deus.
Ele diz:
Quando falta interioridade, o espírito é reduzido à finitude. Por isso, a
interioridade é a eternidade, ou a determinação do eterno num ser humano
[...] Fala-se bastante do eterno em nosso tempo, ele é rejeitado, ele é aceito, e
tanto o primeiro modo quanto o último (levando em consideração o modo
como isso ocorre) indicam carência de interioridade [...] Ora, um homem
pode negar o eterno tanto quanto quiser, ele não consegue com isso separar
totalmente sua vida do eterno. E, ainda que até certo ponto e num certo
sentido se queira admitir o eterno, este ainda é temido no outro sentido e para
além daquele ponto; mas, por mais que se o negue não se consegue jamais
eliminá-lo de todo (KIERKEGAARD, 2011b, p. 164).
Ora, Tillich propõe que a palavra “inocência” – quando aplicada ao mito de Adão –
aponta para a potencialidade não efetivada (TILLICH, 2005, p. 329). Isto é, somos inocentes
apenas com relação a algo que, se efetivado, acabaria com o próprio estado de inocência.
123
85
Para o historiador romeno Mircea Eliade, a definição do mito que lhe parece menos imperfeita, por ser mais
ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do “princípio” (ELIADE, 2009, p. 11). Isto é, o mito narra como, graças às
façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, do caos ao cosmo. (ELIADE, 2009, p. 11).
124
como um evento cósmico inevitável, ou seja, como a transição universal da bondade essencial
para alienação existencial (TILLICH, 2005, p. 334).
86
Há quem defenda – ironicamente ou estrategicamente – que Kierkegaard não era kierkegaardiano
(HOCHMULLER, 2005, p. 343). Nunca um autor já é em si mesmo uma Escola, afirma a filósofa brasileira
Camila Hochmüller. Segundo essa mesma autora, toda tentativa de encontrar as reflexões de Kierkegaard a
determinada Escola ou corrente filosófica deve ser considerada arbitraria, sobretudo por Kierkegaard
supostamente não teria criado nenhum sistema filosófico formal. Segundo ela , isso ainda deve ocorre por dois
motivos básicos, que são: (1) Pela recusa do próprio Kierkegaard de aceitar a construção de sistemas filosóficos
gigantescos e unificadores, que simplesmente ignoravam a existência concreta da pessoa humana, como
aconteceu com o sistema hegeliano; (2) Pela própria dificuldade existente no estudo das obras de Kierkegaard
em decorrência de seu recurso à comunicação indireta, valendo-se também da ironia e da maiêutica socrática
(HOCHMULLER, 2005, p. 343-344). No entanto, esses argumentos são de fato, passíveis de serem refutados,
sobretudo pelas propostas de Theodor Adorno (2010).
125
87
como hipotéticas. No entanto, por questões didáticas, não podemos deixar de fazer
inferências, levando em consideração que, do ponto de vista kierkegaardiano, a própria
ausência de sistematicidade, já se constitui no método (ADORNO, 2010, p. 27). Nesse
sentido, quando nos voltamos mais uma vez para os argumentos elaborados por Kierkegaard
em o Desespero Humano podemos fazer pelo menos três grandes inferências sobre o tema
88
que são: (1) O desespero como “cura”; (2) A “cura” do desespero como a ausência da
89
continuação do pecado; (3) A “cura” do desespero quando não nos desesperamos quanto
90
à remissão dos pecados. Todas essas versões, estão, ou deveriam estar condicionadas a dois
elementos básicos no pensamento kierkegaardiano, a saber, o paradoxo da Fé e o Escândalo
do Cristo.
No primeiro e no segundo caso, a “cura” pela instrumentalidade do próprio desespero,
e a “cura” como a ausência da continuação do pecado só é possível quando o homem
consegue vencer por meio da fé paradoxal a própria tragicidade da existência, contida no
interior do próprio desespero, sobretudo, quando esta é capaz de se constituir como o seu
oposto inerente. Segundo, Kierkegaard o maior erro do paganismo foi ter pensado que o
conceito oposto ao pecado seria de fato a virtude (KIERKEGAARD, 2010, p. 108). Assim,
ele afirma:
Mas demasiadas vezes se esquece que o contrário do pecado de modo algum
é a virtude. Esse á antes um ponto de vista pagão, que se contenta com uma
medida puramente humana, ignorando o que é o pecado e que ele está sempre
perante Deus. Não, o contrário do pecado é a fé; como diz a Epístola aos
Romanos (14,23): “Tudo o que não provém da fé é pecado”. E uma das
definições capitais do cristianismo é o contrário de pecado, não é a virtude,
mas sim a fé (KIERKEGAARD, 2010, p. 108).
[...] Entre o homem e homem não há relação mais alta que esta: o discípulo é
a ocasião para que o mestre se compreenda a si mesmo. Em sua morte, o
mestre não deixa para trás de si nenhuma reivindicação sobre alma do
discípulo, tampouco o discípulo tem a pretensão que o mestre lhe desse algo.
Mas o deus (o divino) não precisa de nenhum discípulo para compreender-se
a si mesmo; e assim nenhuma ocasião. Que é que pode, então, movê-lo a
apresentar-se? Ele tem de mover-se a si mesmo e continuar sendo o que
128
Aristóteles diz dele: “Sem mover-se move tudo”. Porém, se ele se move,
então não é uma necessidade que o faz mover-se, assim como se não pudesse
suportar o silêncio, mas precisasse irromper na palavra. Mas se não é por
necessidade que se move o que é que o move, o que será, senão o amor?
(KIERKEGAARD, 2011a, p. 44-45).
Fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente [...] estar
possuído por quilo que nos toca incondicionalmente é um ato da pessoa como
um todo. Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos desta
dele participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano. Ela não
é um processo que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma função
especial da vivência humana. Todas as funções do homem estão conjugadas
no ato de fé. A fé, no entanto, não é apenas a soma das funções individuais.
Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana ao mesmo tempo em que
se faz sentir em cada uma delas (TILLICH, 1996, p. 7-8).
129
A partir desta alusão, Tillich afirma que a Fé não pode ser subjugada ou restrita a
“nenhum critério” que não seja aquele que é forjado por ela mesma, isto é, o da preocupação
última, o de estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente (TILLICH, 1996, p.
63). Nesse sentido, a Fé não é sustentada ou julgada por critérios: racionais, científicos,
históricos ou filosóficos. Se tentar validar os símbolos e os conteúdos da fé pelos critérios
desses saberes, ficaremos frustrados, pois sempre haverá tensões e conflitos. Para Tillich, a fé
tem a “verdade” na medida em que ela exprime adequadamente uma preocupação
incondicional (TILLICH, 1996, p. 63). É necessário entender os componentes que compõe a
sua dinâmica. A dinâmica da fé não se mostra apenas nas tensões e nos conflitos dos
conteúdos da fé, mas também na própria vida da fé (TILLICH, 1996, p. 63). A fé não nos
livra das ambiguidades da finitude caracterizadas pelas tensões entre o ser e o não-ser. No
entanto, sua presença na existência humana é de fato, tão expressiva, que proporciona à
coragem de vencer as contingências da dúvida e do risco, isto é, possibilita-nos a “coragem de
ser”. Tillich entende também que:
expressando a situação com uma “saída”, ou seja, reagindo com a coragem (TILLICH, 2001,
p. 108). Através da coragem, ele escandalosamente toma o desespero sobre si, passando a
resistir à ameaça radical do não-ser, pela instrumental coragem de ser como si próprio
(TILLICH, 2001, p. 109). Ora, Tillich vai associar o conceito de coragem a sua noção de “fé
absoluta” ou incondicional. Certamente há fé na elevação da alma, a tentativa de sobrepor-se
a si mesmo, indo do finito ao infinito, tem a sua força pautada na base do ser (TILLICH,
2001, p. 133). Em suma, a coragem de ser é uma expressão de fé em que a “fé” significa, ou
deve ser entendida, através da coragem de ser (TILLICH, 2001, p. 134). É necessário
definirmos a coragem como aquela autoafirmação do ser a despeito da finitude do não-ser
(TILLICH, 2001, p. 134). Grosso modo, a ponta desse iceberg, põe seus fundamentos sobre a
presença marcante de “Novo Ser”, este, nada mais é senão o próprio Cristo. Todos os
símbolos que possibilitam a fé na coragem de ser devem estar condicionados ao Novo Ser em
Cristo. Pois:
A doutrina da expiação é a descrição do efeito que o Novo Ser em Jesus
como o Cristo produz naqueles que, em seu estado de alienação, são tomados
por ele. Esta definição aponta para os dois aspectos do processo de expiação:
aquilo que, na manifestação aponta para os dois aspectos dos processos de
expiatório, e aquilo que acontece ao ser humano sob este efeito expiatório.
No sentido desta definição, a expiação sempre é, ao mesmo tempo, um ato
divino e uma reação humana. O ato divino supera a alienação entre Deus e o
ser humano na medida em que ele é uma questão de culpa humana: na
expiação, a culpa humana é eliminada como fator que separa o ser humano de
Deus. Mas este ato divino só é efetivo se o ser humano reage e aceita a
eliminação da culpa entre Deus e o ser humano, ou seja, se ele aceita a oferta
divina de reconciliação apesar da culpa. Portanto, a expiação possui
necessariamente um elemento objetivo e outro subjetivo (TILLICH, 2005, p.
455).
Dessa forma, o ato divino e a reação humana é o que determina a doutrina da expiação
em Tillich. A Fé no Cristo só pode ser caracterizada pela efetivação de uma coragem de ser
capaz de “salvar” o homem. Com isso, a soterologia tillichiana, isto é, sua doutrina da
expiação, deve ser de fato, interpretada, de maneira não tradicional. Portanto, os seus
principais termos teológicos nela contidos, devem ser entendidos a partir do conceito de Novo
Ser em Cristo. Por exemplo: a Regeneração – é entendida como a salvação, como
“participação” do Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p. 460). A Justificação – tornou-se a
salvação como “aceitação” do Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p. 461). A Santificação –
constitui a salvação como “transformação” pelo Novo Ser em Cristo (TILLICH, 2005, p.
463). Na participação, predomina-se a atitude do Novo Ser em apossar-se daquele que ainda
encontra-se alienado no velho cativeiro. Trata-se do poder divino que se apodera do ser
humano e o atrai para dentro de si mesmo, o que o apóstolo Paulo chamava de “estar em
131
Cristo” (TILLICH, 2005, p. 461). Na aceitação, termo ora tillichiano para definir o processo
de justificação, pressupõe a utilização da fé, ou seja, estado de ser possuído pela presença
divina, pois, a fé que justifica, não é um ato humano, embora no ser humano, fé sempre será
obra do Espírito divino (TILLICH, 2005, p. 462). Na transformação, Tillich defende que a
teologia da santificação é aquele ato no qual o poder do Novo Ser transforma a personalidade
individual e a comunidade de fé, de dentro para fora, o círculo eclesiástico (TILLICH, 2005,
p. 463).
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final dessa dissertação, esperamos ter podido demonstrar como é de fato possível,
estabelecer conceitualmente uma espécie de entrelaçamento dialogal entre as reflexões de
Kierkegaard e Tillich. Partindo de suas antropologias, foram apresentados elementos
análogos, que nos permitiu fomentar uma alusão acadêmica e satisfatória. As definições de
homem sob a ótica kierkegaardiana puderam de fato, serem comparadas com as concepções
antropológicas de Tillich. Aquela típica antropologia platônica/ schellinguiana de que o
homem “caiu” do seu estado essencial, para vivenciar uma realidade existencial, é perceptível
tanto em Kierkegaard como Tillich. A ideia de que o homem é constituído através de um
processo de relação entre o finito e o infinito proposto por Kierkegaard, está presente na
chamada ambiguidades da finitude humana defendidas por Tillich. O reconhecimento de que
a existência humana é trágica e que acolhe uma hermenêutica do pecado original traduzida
através de conceitos como: desespero, angústia e alienação, servem como testemunhos dessa
mesma relação. Até mesmo aquela proposta de uma espécie de “soterologia indireta” de
caráter não confessional, que se efetiva pela instrumentalidade do paradoxo da fé, e do
escândalo de Cristo, que se encontram sustentada por uma preocupação incondicional é
praticamente quase que concomitantes em ambos os autores.
No entanto, não podemos esquecer também, de procurar apresentar alguns
apontamentos relevantes e necessários, que nos permite ou que sejam capazes de estabelecer
distinção e distanciamento entre eles. Essa possível ou suposta diferença entre Kierkegaard e
Tillich pode ser demonstrada através de dois pontos principais: (1) A postura de diálogo com
a cultura vigente; (2) A questão ou problema da ontologia. Vejamos:
No que diz respeito à postura dialogal com a cultura de suas épocas, é possível
perceber aproximação e distanciamento. Do ponto de vista da similaridade, tanto Kierkegaard
como Tillich estão dispostos a responder as demandas propostas pela cosmovisão que
norteavam os períodos históricos em que eles estavam inseridos. Ambos têm ou possuem uma
consciência teológico-filosófica contemporaneizada. Tanto Kierkegaard como Tillich
constroem seus argumentos e conceitos a partir dessas demandas. Tanto Kierkegaard como
Tillich utilizam-se de conceitos vigentes para serem ouvidos por seus pares. Portanto,
Kierkegaard e Tillich trabalham de forma semelhante ao reelaborar e resignificar conceitos
tradicionais religiosos (ROOS, 2009, p. 18). Pois, ambos “são figuras inspiradoras para se
pensar uma religiosidade que dialogue com a cultura de seu tempo e com as suas perguntas”
133
(ROOS, 2009, p. 18). Nesse diálogo, é fundamental que se limpe os conceitos e se traduza
fórmulas que já não comunicam mais muita coisa (ROOS, 2009, p. 18). Porém, com uma
pequena margem de diferenciação, Kierkegaard procura responder as demandas da cultura
vigente de maneira relativamente implícita. Concordo com Jonas Roos (2009) quando ele diz
que Kierkegaard é mais facilmente visto como crítico da cultura de seu tempo, principalmente
em função de sua polêmica com a igreja dinamarquesa do séc. XIX. Entretanto, não se pode
esquecer que a crítica já pressupõe uma relação (ROOS, 2009, p. 18). 91 Isto é, a sua principal
preocupação, estava de fato em poder demonstrar a ineficiência da cultura, sobretudo em
relação à legitimação da existência humana e da espiritualidade vivida. A especificidade do
objetivo religioso é assim desenhada no próprio seio de uma crítica kierkegaardiana aos
sistemas filósofos. Ao mesmo tempo, ele está ligado ao caráter mediato da dialética que ele
opera entre filosofia sistêmica e a concretude da vida. O próprio método de Kierkegaard, ou
seja, toda sua estratégia literária de estabelecer uma espécie de comunicação indireta possui
muitas vezes a linguagem viva de seu tempo para colocar as perguntas existenciais a partir de
situações concretas imaginadas em seu próprio contexto (ROOS, 2009, p. 19).
Diferentemente, temos as propostas elaboradas por Tillich. Ora, é notório em Tillich que esta
mesma relação está posta de maneira mais explícita. Isto é, um dos pontos fundamentais de
seu pensamento é o que chama de Teologia da Cultura. Assim, Tillich entende as relações
entre religião e cultura não como polos opostos, mas como se esclarecendo mutuamente
(ROOS, 2009, p. 19). A religião, em termos amplos, dá substância e sentido à cultura, e a
cultura, por sua vez, engloba a totalidade das formas pelas quais a preocupação fundamental
da religião pode se exprimir (ROOS, 2009, p. 19). Proporcionalmente, a religião, por um lado,
mesmo em suas formas mais secularizadas, e a cultura, por outro, estariam em uma relação de
interdependência (ROOS, 2009, p. 19).
Já sobre a questão da ontologia, a relação ainda é mais complexa. Por exemplo, se
começarmos por Tillich, facilmente veremos que a questão da ontologia em seu sistema
teológico é expressamente latente. Tillich não só defendeu a utilização de conceitos clássicos
91
Outro apontamento significativo apresentado por Roos (2009) foi à questão do manejo como a filosofia. Na
mesma entrevista fornecida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, o autor afirma que, enquanto Tillich
elabora filosoficamente suas perguntas, sobretudo na medida em que ele entende que qualquer texto religioso
lida com conceitos filosóficos como espaço, tempo, história, dever, liberdade, necessidade, etc. e que trabalhar
com tais conceitos é tarefa filosófica, ainda que dentro da teologia ou da ciência da religião. Kierkegaard é mais
socrático. Nesse sentido, embora ele procura elaborar sua pergunta filosoficamente, só a faz, através de um
processo de desconstrução das falsas respostas, colocando o ser humano diante de seu próprio vazio existencial
(ROOS, 2009, p.18). Assim, Kierkegaard parece consumir o falso conteúdo a partir de dentro, deixando a pessoa
só com a casca, como fazia Sócrates. Mas, para Kierkegaard, a ironia não é a última palavra, é método que deve
ser compreendido dentro da moldura de sua obra como um todo, o que, aliás, já se percebe com uma leitura
atenta de sua tese sobre a ironia socrática (ROOS, 2009, p. 19).
134
da metafísica como também propôs a elaboração de novos paradigmas. Toda a sua teologia
sistemática – para ser de fato compreendida – depende e muito, de um conhecimento prévio
de ontologia. Nesse sentido, um dos caminhos mais fecundos e produtivos para compreender
de maneira eficaz o pensamento de Tillich, deve obrigatoriamente começar por sua ontologia.
Inclusive, diversos pesquisadores no mundo todo têm seguindo esse percurso, ou seja, o de
procurar inscrever no hiato e no choque entre filosofia e teologia, entre o sagrado e o secular,
o mundano e o divino (CARVALHAES, 2006, p. 187). Por outro lado, a filosofia de
Kierkegaard supostamente estaria na contramão de qualquer tipo de ontologia. O aparente
legado do dinamarquês ser uma espécie de “patrono embrionário” do existencialismo, (Sartre)
faz com que o mesmo, de antemão, tenha certa aversão à metafísica tradicional. O que não
justificaria a ausência de uma ontologia. Em Kierkegaard, o correto a afirmar é que estamos
diante de uma ontologia velada. Segundo Paul Lübcke (2013) os pressupostos ontológicos de
Kierkegaard constituem um conjunto de condições necessárias – e frequentemente não
percebidas – para seu pensamento existencial (LUBCKE, 2013, p. 1). Grosso modo, de
acordo com esse mesmo pesquisador, é possível fazer três perguntas básicas em relação à
temática ontologia em Kierkegaard: (1) Climacus afirma que não podemos ter um sistema
existencial, ao passo que um sistema lógico é possível. Qual é o conteúdo deste “sistema
lógico”; (2) Como esse “sistema lógico” pode influenciar a sua famosa definição do ser
humano de: [...] De que homem é uma síntese entre o finito e o infinito, feita por Anti-
Climacus no início de Doença para a morte; (3) Como o “sistema lógico” define o que é
possível entender a partir da perspectiva humana e o que deve ser descrito como “um
paradoxo”, e como esse “paradoxo” deve ser interpretado? (LUBCKE, 2013, p. 1). Ora, esses
92
seriam apenas os primeiros indícios de uma ontologia na filosofia de Kierkegaard.
Obviamente, ficamos então, entre a aproximação e o distanciamento. A aproximação é
latente, sobretudo na medida em que tanto Kierkegaard como Tillich representam uma virada
hermenêutica nos conceitos tradicionais. As reflexões por eles produzidas permitiram e
trabalharam de formas semelhantes na reelaboração e na ressignificação dos conteúdos
religiosos (ROOS, 2009, p. 1). No entanto, não podemos evitar e muitos menos nos esquecer
dos elementos de distanciamento. Essa ambiguidade já mais acabará, mas a defesa de uma
postura dialogal é imprescindível. Talvez aqui resida o grande desafio que esta pesquisa
92
Lübcke ainda afirma que é possível traçar sistematicamente as matrizes da ontologia de Kierkegaard e quais
são os seus desdobramentos na filosofia posterior. Em geral, ele defende que são muitas as associações como:
Platão, Aristóteles, Kant, Hegel e, mais tarde, Trendelenburg que certamente são fontes importantes da ontologia
de Kierkegaard. A parte desses filósofos – conhecidos internacionalmente – é preciso mencionar o dinamarquês
Poul Martin Møller, que desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento inicial de Kierkegaard e
a quem ele também dedicou “O conceito de angústia” (LUBCKE, 2013, p. 1).
135
procurou demonstrar, tendo em vista que o alcance de obras de grandes pensadores é sempre
amplo e difícil de estabelecer (ROOS, 2009, p. 19). Ora, é exatamente de novo que é preciso
retomar a obra, se é verdade que, por um lado, é possível perceber traços de Kierkegaard em
Tillich, por outro, a esta mesma conclusão pode ser inconclusa.
136
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