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André Pinto da Rocha Osorio Gondinho

Mestre em Direito Civil. Professor de Direito Civil da VER! e da


EMERJ. Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito
Processual Civil e Direito do Consumidor da UCAM .

.DIREITOS REAIS E
AUTONOMIA DA VONTADE
(O Princípio da Tipicidade dos Direitos Reais)

Dissertação apresentada à banca examinadora da


Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, como exigência parcial para
obtenção do título de mestre em Direito Civil, sob
a orientação do Professor Doutor Gustavo José
Mendes Tepedino.

RENOVAR
Aio de Janeiro. São Paulo
2001
11

CRITÉRIOS DE LEGITIMIDADE PARA A


INTERVENÇÃO DA AUTONOMIA DA
VONTADE NA MODELAÇÃO DOS
DIREITOS REAIS

Como vimos até aqui, os tipos de direito real são


tipos abertos, pois, abrangem um conteúdo acidental,
não previsto na norma jurídica, através do qual a auto-
nomia da vontade pode exprimir-se na mo delação da
situação real em concreto. Partindo dessa premissa,
faz-se necessário o estabelecimento de um controle
de, legitimidade para se evitar o risco da criação de
direitos reais verdadeiramente atípicos, à margem do
sistema, escondidos sob denominações tradicionais,
mas a ferir e violar o ordenamento e seus princípios
tutelares. Convém, então, fixar mais precisamente até
onde pode chegar a autonomia da vontade na modela.
ção das situações jurídicas de direito real.

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atrás indicado). P01'que a não ser assim, através da
Cumpre esclarecer, inicialmente, que o objeto de
porta travessa da modificação do conteúdo, virÍa-
indagação é a possibilidade de se modelar uma situa-
mos a liquidar a tipicidade taxativa dos direitos
ção jurídica real também em termos reais, ou seja,
reais. Por isso, não se pode dar em penhor um imó-
possibilitando a essa modificação uma eficácia própria
vel, ou estabelecer Ulna superfície em que a proprie-
que será oponível erga omnes, na forma acima tratada.
dade da obra implantada pertença ao dono do
Não se cogita, aqui, por impertinência ao tema-foco
da dissertação, das modelações efetuadas em tennos chão."
obrigacionais, pois os requisitos tutelares dessa forma
Por outro lado, a mo delação do tipo' de direito real,
de intervenção são diferentes, bem como a eficácia
por autuação da autonomia da vontade, deve respeitar
jurídica dela resultante. Neste caso, não há propria-
uma série de interesses: (i) interesses coletivos, (ii)
mente uma modelação do direito real pela autonomia
interesses de terceiros e (iii) interesses dos próprios
da vontade, mas simples justaposição de uma obriga-
titulares da situação jurídica de direito reaPS7. No en-
ção, mantendo-se vínculos distintos e de naturezas
tanto, a proteção destes interesses precisa encontrar
diversas. um paradigma que possa lhe servir de valia geral.
Primeiramente, é de se registrar a proibição quanto
O controle de legitimidade não pode, por isso mes-
aos próprios limites do tipo, resultante do caráter res-
mo, limitar-se a uma mera proibição do surgimento de
tritivo do princípio do numerus clausus. Não se pode,
através da mo delação do conteúdo do tipo de direito
real, criar figuras atípicas - não previstas em lei. Nes- 157. Sobre o assunto, vide OLIVEIRA ASCENSÃO,A Tipici-
se sentido, vale transcrever o entendimento de OLI- dade dos Direitos Reais, p. 329, nestes termos: "As normas
VEIRA ASCENSÃOlS6: que visam a proteção de interesses colectivos são as que excluem
formas de aproveitamento socialmente nocivas, e em geral
"A primeira categoria de regras injuntivas resulta aquelas a que se pode atribuir um fundamento de ordem
püblica, como as que tutelam os bons costumes. As normas que
com caracter de evidência do próprio princípio do
visam a protecção de interesses de terceiros podem atender à
numerus clausus: não se pode alterar os elementos situação de futuros adquirentes dos bens, ou dos terceiros que
que pertencem à própria definição do tipo de cada WI'11essa situação jurídica por qualquer fonna se possam
direito re(ll (modificar o tipo, no sentido restrito relacionar. As normas que visam a protecção dos intervenientes
C011.Cemem à situação dos economicamente fracos ou dos inex -

156.A Tipicidade dos Direitos Reais, p. 328. perientes ."


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situações jurídicas reais não previstas no ordenamen- tidas na ciência jurídica. Nessa concepção metodoló-
to, como se as previsões normativas contidas na legis- gica, é impossível a estruturação do direito de proprie-
lação ordinária fossem suficientes aos reclamos de um dade afastado de seus caracteres constitucionais. A
Direito em vias de socialização de seus valores infor- partir de tal premissa, verifica-se, por congruência ló-
mativos. gica, que os princípios da função social da propriedade
Assim é que o controle de legitimidade ora em e o do numerus clausus, bem como seu corolário natu-
foco deve abranger a tutela constitucional da ini- ral, a tipicidade, estariam por nortear a estrutura do
ciativa pritJada e da propriedade, de modo que a direito de propriedade, donde deve-se concluir pela
intervenção da autonomia privada no âmbito da compatibilidade entre todos. Acrescente-se ainda
mo delação de.situações jurídicas reais se submeta que, considerando-se o tipo real um tipo aberto, pas-
aos princípios constitucionais, fazendo incidir, sível de mo delação pela autonomia da vontade, a fun-
nas relações privadas de direito real, os valores ção social da propriedade deverá ser respeitada quan-
existenciais e sociais situados no vértice do orde- do da atuação da vontade privada.
namentol58• Para melhor compreensão da questão ora em aná-
Nessa linha de convicções, parece-nos que o estu- lise, cumpre-nos empreender breve, porém necessá-
do do princípio constitucional da função social da rio, estudo acerca do princípio da função social da
propriedade é de grande relevância para os objetivos propriedade e seus efeitos para o direito real em nosso
aqui almejados. ordenamento jurídico.
O movimento de constitucionalização de institutos A propriedade, consoante leciona GUSTAVO TE-
de direito civil é, hoje, uma das questões mais discu- PEDINO'59, tem sido estudada, ao longo dos anos, sob
dois aspectos: (i) o estrutural e (ii) o funcional. Tradi-
158. GUSTAVOTEPEDINO, obra citada, p. 85: "Nem sempre cionalmente, a doutrina tem dado relevo apenas ao
o Código Civil e as leis especiais se preocupam expressamente primeiro aspecto do direito de propriedade, sendo o
com a atividade privada assim levada a cabo, e cujo controle segundo aspecto objeto apenas de pronunciamentos
pelo Judiciário, no entanto, é indispensável em razão da tutela
recentes.
constitucional da propriedade e da iniciativa econômica, ex-
pressa e enfaticamente ditada pelo Texto de 5 de outubro de
1988, ambas funcionalizadas, por sua vez, aos valores existen-
ciais que regem todo o ordenamento, dispostos como princípios 159. Aspectos da Propriedade Privada na Ordem Constitucío-
fundamentais da Constituição. 1/ nal, p. 314.

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o CódigoCivil brasileiro} em seu artigo 524} em- priedade} seu aspecto funcional} o papel que a pro-
bora sem definir ou conceituar o direito de proprieda- priedade} ou mais propriamente o direito de proprie-
de} acaba por dispor acerca do seu conteúdo} relacio- dade} desempenha nas relações sociais,161.
nando os poderes conferidos ao proprietário: usar} go-
Função} segundo ensina RODOTA162} é o modo
zar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de
concreto de um instituto ou um direito de caracte-
quem quer que, injustamente} os possua.
rísticas morfológicas particulares operar no mun-
Esses poderes, segundo entendimento tradicional,
do dos fatos. Nessa linha de idéias, não é difícil reco-
compõem a estrutura do direito de propriedade. Des-
nhecer que a propriedade sempre exerceu uma função
ta estrutura} continua GUSTAVO TEPEDIN01Go}
na sociedade} seja como expansão de inteligência bur-
podemos subtrair um elemento interno ou econômico
guesa, seja como objeto de supremacia do capital so-
e outro elemento mais propriamente jurídico} tam-
bre o trabalho} seja instrumento para a construção de
bém denominado de elemento externo do direito de
propriedade. O elemento interno ou econômico da I. uma sociedade mais justa e solidária. A função da
propriedade torna-se social apenas a partir do momen-
estrutura do direito de propriedade ,é composto pelas
to em que o ordenamento reconheceu que o exerCÍcio
faculdades de usar} gozar e dispor. E através do exer-
da propriedade deveria ser protegido não no interesse
CÍcio destas faculdades que o titular da propriedade
do particular, mas no interesse coletivo da socieda-
pode obter as vantagens econômicas decorrentes da
del63, Desde então, a titularidade de situação proprie-
situação proprietária. A faculdade de exclusão das
tária passa a implicar para o seu titular o respeito às
ingerências alheias representa o elemento externo
situações não proprietárias. A grande modificação
ou jurídico da propriedade. A união destes dois ele-

I
operada no direito de propriedade reside no fato de
mentos} o econômico e o jurídico, representam} se-
que a propriedade} a cada momento passado} é carac-
gundo visão tradicional} a estrutura do direito de pro-
terizada menos pelo seu conteúdo estrutural e mais
priedade. !I
Nesta perspectiva} a propriedade também poderia
ser estudada através de outro aspecto} que não inte- II~~-. 161. Em nossa opinião, a estrutura do direito de propriedade é
--{
graria a sua estrutura} mas representaria a sua ideolo- formada pela união do aspecto estático com o funcional, não
gia. Este seria o aspecto dinâmico do direito de pro- havendo, após a Constituição de 1988, razão para separar a
I
l~ função da propriedade de sua estrutura jurídica.

160. Idem. f
I
162. Proprietá, verbo in Novissimo Digesto Italiano, voI. XIV.
163. Idem.

140 141
pela finalidade econômica e social do bem sobre a qual patrimoniais devem se adequar à nova realidade,
incide164.É inegável} conforme atesta JOSÉ AFONSO pois a pessoa prevalece sobre qualquer valorl67.
DA SILVA16s, que a função social da propriedade é Por outro lado, é interessante notar que a função
elemento da estrutura e do regime jurídico do direito social da propriedade, embora represente um freio ao
de propriedade} incidindo sobre o seu conteúdo e o exercício anti-social da propriedade} não lhe retira
seu conceito. todo o seu gozo e exercício; pelo contrário} muitas
A Constituição Federal estabelece que a República vezes é ela a mola impulsionadora do exercício da
Federativa do Brasil} fundamentada} entre outros va- senhoria} pois representa uma reação contra os des-
lores, na cidadania} na dignidade da pessoa humana e perdícios da potencialidade da mesma. Isto significa
nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa} tem que a propriedade} embora concebida e tutelada na
por objetivo fundamental a construção de uma socie- forma de sua função sociaC continua sendo direito
dade livre, justa e solidária} com desenvolvimento na- subjetivo de seu titular e em seu proveito estabele-
cionat erradicação da pobreza e bem-estar de todosl66. cida.
Evidencia-se, portanto, que a Constituição proce- A análise sistemática do direito de propriedade
deu clara opção pelos valores existenciais que ex- concebido pela Constituição Federal informa que a
primem a idéia de dignidade da pessoa humana, propriedade não pode ser reduzida de qualquer valor
em superação do individualismo tão marcante em e/ou reduzida à categoria de propriedade formaC com
nosso ordenamento anterior a ela. Os interesses um decadente título de nobrezal68. O proprietário
continua com as prerrogativas de usar} gozar} fruir e
164. GUSTAVO TEPEDINO, Aspectos da Propriedade Priva- dispor da coisa, bem como persegui-la contra quem
da na Ordem Constitucional, p. 316. injustamente a detenha. A propriedade continua ten-
165. Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 239 e 240. do seu conteúdo} cabendo à lei a tarefa de determinar
166. Cf. ANA PRATA, obra citada, p. 174: "Mas a função social os modos de aquisição, gozo} limites} sempre no in-
não se esgota hoje, na maior parte dos ordenamentos jurídicos, tuito de favorecer a função social da propriedade ..
nesta idéia de aumento da produção material, antes se mani -
O proprietário mantém, portanto} seu status de
festando, de forma prioritária e integradora daquela, como
meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais dono} apesar da necessidade de controle social sobre
justas, de promover a igualdade real e de obter um aumento
de riqueza socialmente útil e a sua distribuição em termos mais 167. PIETRO PERLINGIERI} Perfis do Direito Civil} p. 33.
eqüitativos" .
168. PERLINGIERI, obra citada, 230.
142
143

....
"
o seu comportamento, significando que terá seu direi-
função social e conteúdo mínimo são aspectos com-
to respeitado e tutelado contra qualquer lesão, seja plementares do direito de propriedade) 70.
particular seja pública, sempre que cumprir a função
É certo, por outro lado, que o exercício do direito
social a que está obrigado.
de propriedade sofre, não é de hoje, inúmeras e varia-
A função social não significa, assim, uma derroga- das restrições. Há muito tempo o direito de proprie-
ção da propriedade privada, que continua existindo - dade deixou de ser a senhoria absoluta do proprietário
com seu prestígio mantido -, mas um instrumento de no exercício das faculdades de usar, gozar e dispor. O
garantia da própria propriedade, uma vez que, dentre direito de vizinhança, os direitos reais sobre coisa
outras prerrogativas, representa a defesa contra qual- alheia e o poder de polícia são alguns exemplos de
quer tentativa de socialização sem prévia e justa inde- restrições comumente imposta ao direito do proprie-
nização) 69. tário.
A função social não pode, em caso algum, contras- A função social da propriedade, todavia, não se
tar o conteúdo mínimo do direito de propriedade; confunde com nenhuma destas restrições. A função
social não surge do Texto Constitucional como mero
limite ao exercício do direito de propriedade, mas
)69. JOSÉ AFONSO DA SILVA, obra citada, p. 256: 'Mas é como princípio básico que incide no conteúdo do di-
certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir,
reito, fazendo parte de sua estrutura. Não se pode
por via legislativa, a instituição da propriedade privada. Con-
tudo, parece-nos que pode fundamentar até mesmo a sociali -
elaborar um conceito de propriedade sem função so-
cial) 71.
zação de algum tipo de propriedade, onde precisamente isso se
tome necessário à realização do princípio, que se põe acima A função social não é, desta forma, apenas mais
do interesse individual. Por isso é que se c01ului que o direito uma restrição ao direito de propriedade porque restri-
de propriedade (dos meios de produção especialmente) não ção é o instrumento com o qual o interesse público ou
pode mais ser tido como direito individual. A inserção do privado circunscreve um direito, sacrificando a exten-
princípio da função social, sem impedir a existência da insti -
s~o do seu exercício ou determinando o seu conteúdo.
tuição, modifica sua natureza, pelo que, como já dissemos,
deveria ser prevista apenas como instituição do direito econô -
mico. Por outro lado, em concreto, o princípio também não 170. PERLING IERI, obra citada, p. 231.
autoriza esvaziar a propriedade de seu conteúdo essencial
) 71. Cf. JOSÉ ACIR LESSA GIORDANI, Propriedade Imóvel:
mínimo, sem indenização, porque este está assegurado pela
seu conceito, sua garantia e sua função social na Nova Ordem
norma de sua garantia".
Constitucional.
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Tradicionalmente, a noção de restrição é negativa, vol- A função social da propriedade se apresenta assim
tada a comprimir os poderes do titular do direito atin- como causa de legitimação ou de justificação das in-
gido, nunca apta a promover os valores fundamentais tervenções legislativas que devem sempre ser subme-
do ordenamento, missão primeira da função social. tidas a um controle de conformidade constitucio-
Em um sistema inspirado na solidariedade política, na}l74.
econômica e social, diz PERLINGIERJ!72, o conteúdo Por outro lado, convém registrar, a função social
da função social assume um papel de tipo promocio- também não representa um ônus para o proprietário,
nal, no sentido de que a disciplina das formas de pro- pois, na realidade, a mesma visa simplesmente fazer
priedade e as suas interpretações deveriam ser atua das com que a propriedade seja utilizada de modo social,
para garantir e para promover os valores sobre os quais cumprindo o fim a que se destina 175.Assim, se a pro-
se funda o ordenamento. Outra diferença reside no priedade rural deve ser produtiva, isto decorre, antes
fato de que as restrições comumente atingem o exer- de qualquer coisa, da natureza lógica de sua destina-
ção, a qual deve visar a produção e não a especulação.
cício do direito e, dificilmente, a sua substância, e elas
Não se poderia dizer, por absurdo lógico, que a obri-
só se justificam se uma nova concepção do direito de
gação de produzir seja um ônus para o titular de uma
propriedade é aceita 173.A função social atinge a pró-
propriedade agrária.
pria essência do direito de propriedade, modifi-
A função social representa, nesta dimensão, uma
cando o seu conteúdo e criando as condições pro-
espécie de harmonização entre a natureza do bem e a
pícias para a legitimidade das restrições impostas
sua utilização de acordo com os fins legítimos da so-
ao domínio. ciedade. Como atesta JOSÉ ACIR GIORDANIl76:
Nesta perspectiva, em que pese a questionável cor-
reção da afirmação de que a função social é a razão "Se o titular do direito se mostra desidioso não
pela qual o direito de propriedade foi atribuído ao seu utilizando faculdades inerentes ao domínio para
titular, parece justo reconhecer que a função social da extrair do bem os frutos que este produz ou possui
propriedade é a razão pela qual o ordenamento tutela capacidade de produzir, sujeitar-se-á as comina-
e garante o domínio.
174. PERLINGIERI, obra citada, 227.
172.Obra citada, p. 226. 175. Cf. JOSÉ ACIR GIORDANI, obra citada.
173.Cf. ORLANDO GOMES, Direitos Reais. 176. Obra citada.

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ções legalmente estabelecidas para recolocar a pro- normas que lhe forem incompatíveis. A função social,
priedade no caminho normal". continua PERLING IERI, é operante também à falta
de uma expressa disposição que lhe faça referência,
Para o titular do direito de propriedade, a função uma vez que ela representa um critério de alcance
social assume uma valência de princípio geral. A sua geral, um princípio que legitima a extensão em via
autonomia para exercer as faculdades inerentes ao analógica daquelas normas, excepcionais no ordena-
domínio não corresponde a um livre arbítrio. O pro- mento pré-constitucional, que têm um conteúdo que,
prietário, através de seus atos e atividades, não pode em via interpretativa, resulta atuativo do princípio.
perseguir fins anti-sociais ou não sociais, como tam- Na esteira de tais considerações, G U STAVO TE-
bém, para ter garantida a tutela jurídica ao seu direito, PEDINOl79, após análise da necessidade da tutela ci-
deve proceder conforme à razão pela qual o direito de vil-constitucional da autonomia da vontade em sede
propriedade lhe é tuteladol77. Em outras palavras, de intervenção no campo do direito real de multipro-
deve proceder de forma a promover os valores funda- priedade, proclama a novas bases para o controle de
mentais da República esculpidos no Texto Constitu- legitimidade das cláusulas condominiais, com obser-
cional. vância do princípio da função social da propriedade:
A função social da propriedade, completa PER-
LINGIERI, é também critério de interpretação da "A legalidade das restrições impostas pela conven-
disciplina proprietária para o juiz e para os operadores ção, portanto, em tema de condomínio edifício, re-
jurídicosl78• Neste sentido, o operador jurídico deve clama novas bases hermenêuticas, não sendo invá-
ter sempre a função social como critério de interpre- lida uma cláusula pelo mero fato de interferir na
tação e aplicação do direito, deixando de aplicar as propriedade privada, mas, diversamente, tendo sua
invalidade vinculada à violação do domínio inseri-
do em concreta relação jurídica, isto é, voltado
177. PERLING IERI, obra citada. . para o atendimento de sua função social. É ilícita
178. ORLANDO GOMES, obra citada, p. 110 - ':,4 resposta tanto a cláusula que limita arbitrariamente o do-
segundo a qual a função social da propriedade é antes uma mínio, sem que se justifique através de interesse
concepção com eficácia autônoma e incidência direta no próprio
constitucionalmente tutelado, quanto aquela que
direito consente elevá-la à dignidade de um princípio que deve
ser observado pelo intérprete, tal como sucede em outros campos
do direito civil, como o princípio da boa-fé nos contratos". 179. Multipropriedade Imobiliária, p. 118.
148
149
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:~
concedesse a um dos condôminos poderes excessi- telado, relativo ao acesso à segunda casa e ao lazer,
vos, cujo exercício ensejasse o desrespeito à função como manifestações da personalidade humana. }I

social da relação condo111.inial.


"
Por outro lado, não é demais acrescentar a neces-
Logo a seguir, ao tratar sobre o controle de legiti- sidade de se "funcionalizar" a atividade econômica,
midade das cláusulas de multipropriedade, G USTA- tutelada pelos artigos 170 e seguintes da Constituição
VO TEPEDINOJ80 reforça ainda mais a importância Federat sob pena de se violar princípios fundamentais
de compatibilização do conteúdo da situação jurí- da ordem econômica nacional.
. dica real, modelada pela autonomia da vontade, Por essa soma de razões} é que se torna passível de
com a tutela constitucional dos valores da função tutela jurídica privilegiada a intervenção da autonomia
social da propriedadel8J: privada, nas relações jurídicas reais - no que tange à
modelação dos tipos reais previstos legalmente em
liMais adequada} portanto, como critério de aferi- decorrência do numerus clausus -} que vise poten.
ção da legalidade da conuenção da multiproprieda- cializar as vantagens econômicas inerentes ao
de}apresenta-se a verificação} em cada cláusula} de bem em foco, bem como atender aos valores exis-
sua compatibilização com a função social da multi. tenciais expressos na Constituição Federal.
propriedade} destinada a permitir a utilização de Desta forma} no que respeita ao objetivo maior da
uma pluralidade de titulares sobre um mesmo su- presente dissertação} isto é} contribuir para a defini-
porte físico} e tendente em última análise} a uiahi- ção de um critério geral de legitimidade da inter-
lizar o efetivo aproveitamento dos bens econômicos} venção da autonomia da vontade nas situações
de forma distributiva e racional, no tempo e no jurídicas de direito real predispostas na lei - por
espaço} em benefício do interesse (indiuidual e fa- imposição do princípio do numerus clausus - acredi-
tamos} em conformidade com a linha metodológica
miliar) extrapatrimonial} constitucionalmente tu-
acima delineada} que a validade de tal intervenção
deve ser compatível não somente com os limites do
tipo real, com as normas de ordem pública enun-
180.Idem. ciadas na legislação ordinária, mas também e
181. Na mesma linha metodológica, pode-se conferir PIETRO principalmente, com os princípios constitucionais
PERLING IERI, Propríetà, ímpresa e junzíone socíale, p. 207. da função social da propriedade e da atividade
150 151
r"'.~;
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econômica, de modo a entender os valores exis-
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tenciais da pessoa humana como paradigma ne- ~;;'-.~~

cessário e indispensável para a tutela pretendida. .tJ,


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Este é} em nossa opinião} o critério geral de legiti- ff ~


midade que deverá conduzir não somente os interes-
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sados na relação jurídica de direito real modelada pela zg~,~

intervenção da autonomia privada, como, ainda; todos


os operadores jurídicos que venham a tratar do proble-
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