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.DIREITOS REAIS E
AUTONOMIA DA VONTADE
(O Princípio da Tipicidade dos Direitos Reais)
RENOVAR
Aio de Janeiro. São Paulo
2001
11
135
atrás indicado). P01'que a não ser assim, através da
Cumpre esclarecer, inicialmente, que o objeto de
porta travessa da modificação do conteúdo, virÍa-
indagação é a possibilidade de se modelar uma situa-
mos a liquidar a tipicidade taxativa dos direitos
ção jurídica real também em termos reais, ou seja,
reais. Por isso, não se pode dar em penhor um imó-
possibilitando a essa modificação uma eficácia própria
vel, ou estabelecer Ulna superfície em que a proprie-
que será oponível erga omnes, na forma acima tratada.
dade da obra implantada pertença ao dono do
Não se cogita, aqui, por impertinência ao tema-foco
da dissertação, das modelações efetuadas em tennos chão."
obrigacionais, pois os requisitos tutelares dessa forma
Por outro lado, a mo delação do tipo' de direito real,
de intervenção são diferentes, bem como a eficácia
por autuação da autonomia da vontade, deve respeitar
jurídica dela resultante. Neste caso, não há propria-
uma série de interesses: (i) interesses coletivos, (ii)
mente uma modelação do direito real pela autonomia
interesses de terceiros e (iii) interesses dos próprios
da vontade, mas simples justaposição de uma obriga-
titulares da situação jurídica de direito reaPS7. No en-
ção, mantendo-se vínculos distintos e de naturezas
tanto, a proteção destes interesses precisa encontrar
diversas. um paradigma que possa lhe servir de valia geral.
Primeiramente, é de se registrar a proibição quanto
O controle de legitimidade não pode, por isso mes-
aos próprios limites do tipo, resultante do caráter res-
mo, limitar-se a uma mera proibição do surgimento de
tritivo do princípio do numerus clausus. Não se pode,
através da mo delação do conteúdo do tipo de direito
real, criar figuras atípicas - não previstas em lei. Nes- 157. Sobre o assunto, vide OLIVEIRA ASCENSÃO,A Tipici-
se sentido, vale transcrever o entendimento de OLI- dade dos Direitos Reais, p. 329, nestes termos: "As normas
VEIRA ASCENSÃOlS6: que visam a proteção de interesses colectivos são as que excluem
formas de aproveitamento socialmente nocivas, e em geral
"A primeira categoria de regras injuntivas resulta aquelas a que se pode atribuir um fundamento de ordem
püblica, como as que tutelam os bons costumes. As normas que
com caracter de evidência do próprio princípio do
visam a protecção de interesses de terceiros podem atender à
numerus clausus: não se pode alterar os elementos situação de futuros adquirentes dos bens, ou dos terceiros que
que pertencem à própria definição do tipo de cada WI'11essa situação jurídica por qualquer fonna se possam
direito re(ll (modificar o tipo, no sentido restrito relacionar. As normas que visam a protecção dos intervenientes
C011.Cemem à situação dos economicamente fracos ou dos inex -
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o CódigoCivil brasileiro} em seu artigo 524} em- priedade} seu aspecto funcional} o papel que a pro-
bora sem definir ou conceituar o direito de proprieda- priedade} ou mais propriamente o direito de proprie-
de} acaba por dispor acerca do seu conteúdo} relacio- dade} desempenha nas relações sociais,161.
nando os poderes conferidos ao proprietário: usar} go-
Função} segundo ensina RODOTA162} é o modo
zar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de
concreto de um instituto ou um direito de caracte-
quem quer que, injustamente} os possua.
rísticas morfológicas particulares operar no mun-
Esses poderes, segundo entendimento tradicional,
do dos fatos. Nessa linha de idéias, não é difícil reco-
compõem a estrutura do direito de propriedade. Des-
nhecer que a propriedade sempre exerceu uma função
ta estrutura} continua GUSTAVO TEPEDIN01Go}
na sociedade} seja como expansão de inteligência bur-
podemos subtrair um elemento interno ou econômico
guesa, seja como objeto de supremacia do capital so-
e outro elemento mais propriamente jurídico} tam-
bre o trabalho} seja instrumento para a construção de
bém denominado de elemento externo do direito de
propriedade. O elemento interno ou econômico da I. uma sociedade mais justa e solidária. A função da
propriedade torna-se social apenas a partir do momen-
estrutura do direito de propriedade ,é composto pelas
to em que o ordenamento reconheceu que o exerCÍcio
faculdades de usar} gozar e dispor. E através do exer-
da propriedade deveria ser protegido não no interesse
CÍcio destas faculdades que o titular da propriedade
do particular, mas no interesse coletivo da socieda-
pode obter as vantagens econômicas decorrentes da
del63, Desde então, a titularidade de situação proprie-
situação proprietária. A faculdade de exclusão das
tária passa a implicar para o seu titular o respeito às
ingerências alheias representa o elemento externo
situações não proprietárias. A grande modificação
ou jurídico da propriedade. A união destes dois ele-
I
operada no direito de propriedade reside no fato de
mentos} o econômico e o jurídico, representam} se-
que a propriedade} a cada momento passado} é carac-
gundo visão tradicional} a estrutura do direito de pro-
terizada menos pelo seu conteúdo estrutural e mais
priedade. !I
Nesta perspectiva} a propriedade também poderia
ser estudada através de outro aspecto} que não inte- II~~-. 161. Em nossa opinião, a estrutura do direito de propriedade é
--{
graria a sua estrutura} mas representaria a sua ideolo- formada pela união do aspecto estático com o funcional, não
gia. Este seria o aspecto dinâmico do direito de pro- havendo, após a Constituição de 1988, razão para separar a
I
l~ função da propriedade de sua estrutura jurídica.
160. Idem. f
I
162. Proprietá, verbo in Novissimo Digesto Italiano, voI. XIV.
163. Idem.
140 141
pela finalidade econômica e social do bem sobre a qual patrimoniais devem se adequar à nova realidade,
incide164.É inegável} conforme atesta JOSÉ AFONSO pois a pessoa prevalece sobre qualquer valorl67.
DA SILVA16s, que a função social da propriedade é Por outro lado, é interessante notar que a função
elemento da estrutura e do regime jurídico do direito social da propriedade, embora represente um freio ao
de propriedade} incidindo sobre o seu conteúdo e o exercício anti-social da propriedade} não lhe retira
seu conceito. todo o seu gozo e exercício; pelo contrário} muitas
A Constituição Federal estabelece que a República vezes é ela a mola impulsionadora do exercício da
Federativa do Brasil} fundamentada} entre outros va- senhoria} pois representa uma reação contra os des-
lores, na cidadania} na dignidade da pessoa humana e perdícios da potencialidade da mesma. Isto significa
nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa} tem que a propriedade} embora concebida e tutelada na
por objetivo fundamental a construção de uma socie- forma de sua função sociaC continua sendo direito
dade livre, justa e solidária} com desenvolvimento na- subjetivo de seu titular e em seu proveito estabele-
cionat erradicação da pobreza e bem-estar de todosl66. cida.
Evidencia-se, portanto, que a Constituição proce- A análise sistemática do direito de propriedade
deu clara opção pelos valores existenciais que ex- concebido pela Constituição Federal informa que a
primem a idéia de dignidade da pessoa humana, propriedade não pode ser reduzida de qualquer valor
em superação do individualismo tão marcante em e/ou reduzida à categoria de propriedade formaC com
nosso ordenamento anterior a ela. Os interesses um decadente título de nobrezal68. O proprietário
continua com as prerrogativas de usar} gozar} fruir e
164. GUSTAVO TEPEDINO, Aspectos da Propriedade Priva- dispor da coisa, bem como persegui-la contra quem
da na Ordem Constitucional, p. 316. injustamente a detenha. A propriedade continua ten-
165. Curso de Direito Constitucional Positivo, pp. 239 e 240. do seu conteúdo} cabendo à lei a tarefa de determinar
166. Cf. ANA PRATA, obra citada, p. 174: "Mas a função social os modos de aquisição, gozo} limites} sempre no in-
não se esgota hoje, na maior parte dos ordenamentos jurídicos, tuito de favorecer a função social da propriedade ..
nesta idéia de aumento da produção material, antes se mani -
O proprietário mantém, portanto} seu status de
festando, de forma prioritária e integradora daquela, como
meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais dono} apesar da necessidade de controle social sobre
justas, de promover a igualdade real e de obter um aumento
de riqueza socialmente útil e a sua distribuição em termos mais 167. PIETRO PERLINGIERI} Perfis do Direito Civil} p. 33.
eqüitativos" .
168. PERLINGIERI, obra citada, 230.
142
143
....
"
o seu comportamento, significando que terá seu direi-
função social e conteúdo mínimo são aspectos com-
to respeitado e tutelado contra qualquer lesão, seja plementares do direito de propriedade) 70.
particular seja pública, sempre que cumprir a função
É certo, por outro lado, que o exercício do direito
social a que está obrigado.
de propriedade sofre, não é de hoje, inúmeras e varia-
A função social não significa, assim, uma derroga- das restrições. Há muito tempo o direito de proprie-
ção da propriedade privada, que continua existindo - dade deixou de ser a senhoria absoluta do proprietário
com seu prestígio mantido -, mas um instrumento de no exercício das faculdades de usar, gozar e dispor. O
garantia da própria propriedade, uma vez que, dentre direito de vizinhança, os direitos reais sobre coisa
outras prerrogativas, representa a defesa contra qual- alheia e o poder de polícia são alguns exemplos de
quer tentativa de socialização sem prévia e justa inde- restrições comumente imposta ao direito do proprie-
nização) 69. tário.
A função social não pode, em caso algum, contras- A função social da propriedade, todavia, não se
tar o conteúdo mínimo do direito de propriedade; confunde com nenhuma destas restrições. A função
social não surge do Texto Constitucional como mero
limite ao exercício do direito de propriedade, mas
)69. JOSÉ AFONSO DA SILVA, obra citada, p. 256: 'Mas é como princípio básico que incide no conteúdo do di-
certo que o princípio da função social não autoriza a suprimir,
reito, fazendo parte de sua estrutura. Não se pode
por via legislativa, a instituição da propriedade privada. Con-
tudo, parece-nos que pode fundamentar até mesmo a sociali -
elaborar um conceito de propriedade sem função so-
cial) 71.
zação de algum tipo de propriedade, onde precisamente isso se
tome necessário à realização do princípio, que se põe acima A função social não é, desta forma, apenas mais
do interesse individual. Por isso é que se c01ului que o direito uma restrição ao direito de propriedade porque restri-
de propriedade (dos meios de produção especialmente) não ção é o instrumento com o qual o interesse público ou
pode mais ser tido como direito individual. A inserção do privado circunscreve um direito, sacrificando a exten-
princípio da função social, sem impedir a existência da insti -
s~o do seu exercício ou determinando o seu conteúdo.
tuição, modifica sua natureza, pelo que, como já dissemos,
deveria ser prevista apenas como instituição do direito econô -
mico. Por outro lado, em concreto, o princípio também não 170. PERLING IERI, obra citada, p. 231.
autoriza esvaziar a propriedade de seu conteúdo essencial
) 71. Cf. JOSÉ ACIR LESSA GIORDANI, Propriedade Imóvel:
mínimo, sem indenização, porque este está assegurado pela
seu conceito, sua garantia e sua função social na Nova Ordem
norma de sua garantia".
Constitucional.
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Tradicionalmente, a noção de restrição é negativa, vol- A função social da propriedade se apresenta assim
tada a comprimir os poderes do titular do direito atin- como causa de legitimação ou de justificação das in-
gido, nunca apta a promover os valores fundamentais tervenções legislativas que devem sempre ser subme-
do ordenamento, missão primeira da função social. tidas a um controle de conformidade constitucio-
Em um sistema inspirado na solidariedade política, na}l74.
econômica e social, diz PERLINGIERJ!72, o conteúdo Por outro lado, convém registrar, a função social
da função social assume um papel de tipo promocio- também não representa um ônus para o proprietário,
nal, no sentido de que a disciplina das formas de pro- pois, na realidade, a mesma visa simplesmente fazer
priedade e as suas interpretações deveriam ser atua das com que a propriedade seja utilizada de modo social,
para garantir e para promover os valores sobre os quais cumprindo o fim a que se destina 175.Assim, se a pro-
se funda o ordenamento. Outra diferença reside no priedade rural deve ser produtiva, isto decorre, antes
fato de que as restrições comumente atingem o exer- de qualquer coisa, da natureza lógica de sua destina-
ção, a qual deve visar a produção e não a especulação.
cício do direito e, dificilmente, a sua substância, e elas
Não se poderia dizer, por absurdo lógico, que a obri-
só se justificam se uma nova concepção do direito de
gação de produzir seja um ônus para o titular de uma
propriedade é aceita 173.A função social atinge a pró-
propriedade agrária.
pria essência do direito de propriedade, modifi-
A função social representa, nesta dimensão, uma
cando o seu conteúdo e criando as condições pro-
espécie de harmonização entre a natureza do bem e a
pícias para a legitimidade das restrições impostas
sua utilização de acordo com os fins legítimos da so-
ao domínio. ciedade. Como atesta JOSÉ ACIR GIORDANIl76:
Nesta perspectiva, em que pese a questionável cor-
reção da afirmação de que a função social é a razão "Se o titular do direito se mostra desidioso não
pela qual o direito de propriedade foi atribuído ao seu utilizando faculdades inerentes ao domínio para
titular, parece justo reconhecer que a função social da extrair do bem os frutos que este produz ou possui
propriedade é a razão pela qual o ordenamento tutela capacidade de produzir, sujeitar-se-á as comina-
e garante o domínio.
174. PERLINGIERI, obra citada, 227.
172.Obra citada, p. 226. 175. Cf. JOSÉ ACIR GIORDANI, obra citada.
173.Cf. ORLANDO GOMES, Direitos Reais. 176. Obra citada.
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ções legalmente estabelecidas para recolocar a pro- normas que lhe forem incompatíveis. A função social,
priedade no caminho normal". continua PERLING IERI, é operante também à falta
de uma expressa disposição que lhe faça referência,
Para o titular do direito de propriedade, a função uma vez que ela representa um critério de alcance
social assume uma valência de princípio geral. A sua geral, um princípio que legitima a extensão em via
autonomia para exercer as faculdades inerentes ao analógica daquelas normas, excepcionais no ordena-
domínio não corresponde a um livre arbítrio. O pro- mento pré-constitucional, que têm um conteúdo que,
prietário, através de seus atos e atividades, não pode em via interpretativa, resulta atuativo do princípio.
perseguir fins anti-sociais ou não sociais, como tam- Na esteira de tais considerações, G U STAVO TE-
bém, para ter garantida a tutela jurídica ao seu direito, PEDINOl79, após análise da necessidade da tutela ci-
deve proceder conforme à razão pela qual o direito de vil-constitucional da autonomia da vontade em sede
propriedade lhe é tuteladol77. Em outras palavras, de intervenção no campo do direito real de multipro-
deve proceder de forma a promover os valores funda- priedade, proclama a novas bases para o controle de
mentais da República esculpidos no Texto Constitu- legitimidade das cláusulas condominiais, com obser-
cional. vância do princípio da função social da propriedade:
A função social da propriedade, completa PER-
LINGIERI, é também critério de interpretação da "A legalidade das restrições impostas pela conven-
disciplina proprietária para o juiz e para os operadores ção, portanto, em tema de condomínio edifício, re-
jurídicosl78• Neste sentido, o operador jurídico deve clama novas bases hermenêuticas, não sendo invá-
ter sempre a função social como critério de interpre- lida uma cláusula pelo mero fato de interferir na
tação e aplicação do direito, deixando de aplicar as propriedade privada, mas, diversamente, tendo sua
invalidade vinculada à violação do domínio inseri-
do em concreta relação jurídica, isto é, voltado
177. PERLING IERI, obra citada. . para o atendimento de sua função social. É ilícita
178. ORLANDO GOMES, obra citada, p. 110 - ':,4 resposta tanto a cláusula que limita arbitrariamente o do-
segundo a qual a função social da propriedade é antes uma mínio, sem que se justifique através de interesse
concepção com eficácia autônoma e incidência direta no próprio
constitucionalmente tutelado, quanto aquela que
direito consente elevá-la à dignidade de um princípio que deve
ser observado pelo intérprete, tal como sucede em outros campos
do direito civil, como o princípio da boa-fé nos contratos". 179. Multipropriedade Imobiliária, p. 118.
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concedesse a um dos condôminos poderes excessi- telado, relativo ao acesso à segunda casa e ao lazer,
vos, cujo exercício ensejasse o desrespeito à função como manifestações da personalidade humana. }I
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