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Licenciatura em Ciências Religiosas

DEUS NA TRADIÇÃO BÍBLICA E CRISTÃ

APONTAMENTOS (2)

Sumário
2. Estado da questão trinitária: do isolamento ao regresso
2.1. Denúncia de K. Rahner
2.2. Superamento da manualística
2.3. A especificidade da «teo-logia» cristã
2.4. A questão de Deus na sistemática teológica

2. Estado da questão trinitária: do isolamento ao regresso


Com este tópico do nosso programa entramos de modo mais efetivo na
noção cristã de Deus. Se no tópico anterior (1. Deus como problema)
tratámos de modo abrangente da questão de Deus, a partir de agora
detemo-nos de forma intensa sobre a «teo-logia» especificamente cristã (ie,
o modo especificamente cristão de falar/pensar Deus). Mesmo com o risco de
antecipar o ponto 2.3 (A especificidade da «teo-logia» cristã), convém
clarificar que a imagem cristã de Deus é uma imagem trinitária (ie, Deus é
Trindade). Havemos de, mais à frente no curso, perceber como se chegou a
formular assim a noção cristã de Deus. Mas talvez valha a pena referir,
desde já, que no cristianismo só há uma conceção de Deus: Trindade (que
resume em si unidade e distinção em Deus). Talvez a seguinte referência
ajude a fundamentar esta afirmação: no início da década de 50 do século XX,
o teólogo K. Rahner publicava os resultados de uma investigação acerca do
uso da palavra «Théos-Deus» no Novo Testamento (NT). Ele foi estudar
todas as vezes em que a palavra aí aparece, perguntando-se: que imagem
de Deus está subentendida sempre que no NT se usa a palavra «Théos-
Deus»? Eis o que ele concluiu:

Não existe no NT passagem alguma em que ó Theós tenha que ser


referido inequivocamente ao Deus trinitário como unidade na trindade de
pessoas. Pelo contrário, há uma série de passagens em que ó Theós
designa o Pai como pessoa trinitária. […] Existem somente seis passagens
nas quais […] Theós se refere à segunda pessoa da Trindade. Acrescente-
se que no NT não se diz ó Theós do pneuma ágion [Espírito Santo]. Esta
descoberta autoriza-nos, pois, a afirmar: quando o NT fala de ó Theós
significa – com exceção das seis passagens citadas – ao Pai como primeira
pessoa trinitária. […] As poucas exceções no emprego de ó Theós, cuja
forma linguística mostra que são exceções, não autorizam a afirmar que,
no uso linguístico do NT, ó Theós signifique a Trindade na unidade da sua
natureza individual.
[K. RAHNER, «Theos en el Nuevo Testamento», 162-163]

O que é que nos está a dizer K. Rahner? Fundamentalmente isto: que a


palavra «Theós-Deus» no NT refere-se ao Deus Pai de Jesus (com poucas
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exceções). Assim sendo, temos de concluir que a imagem de Deus no NT é já


uma imagem trinitária, porque não se trata de uma ideia abstrata e genérica
de Deus (como se fosse um Deus uno mas não pessoal). A paternidade
subentendida no uso de «Théos-Deus» implica já uma certa conceção
trinitária de Deus. Julgo que, com este dado, se justifica a afirmação com
que começámos: que pensar Deus na tradição bíblica e cristã implica pensá-
lo como Trindade, ie como uno e trino, com um só Deus em três pessoas.

2.1 Denúncia de K. Rahner


Por estranho que pareça (porque parece contradizer esta indicação inicial),
os cristãos não valorizam muito esta especificidade da sua fé em Deus. Com
o passar dos séculos, parece que foram vivendo e entendendo a sua relação
com Deus tomando este como um ser puramente uno. Dito de outro modo,
parece que os cristãos acabaram por assumir uma imagem «a-trinitária» de
Deus. Esta foi, no essencial, a denúncia que K. Rahner fazia em 1967 e que
agitou as águas da teologia, estimulando uma grande revisão do modo como
olhamos para Deus como Trindade. Dizia ele:

Os cristãos, apesar da sua profissão de fé ortodoxa na Trindade, são


praticamente “monoteístas” no concreto da sua vida religiosa. Poderíamos
arriscar a afirmação de que, se o dogma trinitário tivesse de ser eliminado
como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia, neste processo,
permanecer quase inalterada. Nem se poderá sequer objetar que o dogma
da Encarnação seja teológica e religiosamente tão central entre os cristãos
que, por essa razão, a Trindade esteja inseparavelmente presente, sempre
e em toda a parte, na vida religiosa dos cristãos. Quando hoje se fala de
Encarnação, o olhar recai, teológica e religiosamente, apenas sobre o facto
de que “Deus” se tornou homem, que «uma» pessoa divina encarnou, e
não sobre o facto de que esta pessoa seja precisamente a do Logos. Não é
uma infundada suspeita de que, para o catecismo da mente e do coração
(em contraste com o catecismo impresso), a ideia que o cristão tem de
Encarnação em nada teria de se modificar caso não houvesse Trindade.
[…] Como consequência de tudo isto resulta que o tratado da Santíssima
Trindade fique particularmente isolado do conjunto de toda a dogmática».
[K. RAHNER]

É a isto que chamo de denúncia. Uma dura crítica ao modo como, no


cristianismo, a imagem trinitária de Deus se foi tornando cada vez menos
importante para a teologia e para a vida e a consciência da fé dos cristãos. É
certo que estes sempre confessaram a sua fé no Deus Pai, Filho e Espírito
Santo. Mas deixou de ser claro em que é que isso muda ou pode mudar a
atitude crente cristã. É o tal contraste entre o «catecismo impresso» e o
«catecismo da mente e do coração». Ao limite podemo-nos questionar: em
que é que muda pelo facto de no cristianismo se acreditar num Deus trino?

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Se nada muda, então esta especificidade da «teo-logia» cristã perde alguma


razão de ser, perde algum sentido.
Sinteticamente, este distanciamento relativamente ao entendimento de
Deus como Trindade ficar-se-á a dever a dois grandes problemas: i. falar de
Deus como Trindade parece uma coisa muito abstrata; ii. falar de Deus como
Trindade parece um coisa não prática. Explico. Por um lado, uma tal imagem
de Deus como Trindade parece aos crentes uma contradição lógica e,
portanto, quase irracional (1 não é 3; 3 não são 1). Por isso, como que se
dispensam de pensar sobre ela. Por outro lado, acreditar num Deus que é 1
pessoa, ou 3 pessoas, ou 10 pessoas ou 100 pessoas parece não alterar em
nada a vida concreta. Assim sendo, que Deus seja Trindade aparece a muitos
(mesmos entre crentes cristãos) qualquer coisa que, no máximo, toca a vida
de Deus e não a nossa.

2.2 Superamento da manualística


A anterior citação acabava concluindo que, por causa dos cristãos serem
na prática puros monoteístas, a visão de Deus como Trindade ficava isolada
(perdendo assim a sua capacidade de iluminar o todo da vida e da
compreensão da fé cristã). Ora, olhando a teologia cristã até cerca dos anos
60, notamos como, de facto, a reflexão acerca da Trindade estava desligada
de tudo o mais. Ou seja, aprofundava-se teologicamente o que era esse
Mistério numa disciplina própria, mas depois não se relacionava essa reflexão
com o que se pensava acerca de Cristo, da Igreja, do Homem, da criação,
etc. Por isso, até na teologia o próprio tratado sobre a Trindade (ie, a
disciplina que estudava a Trindade) ficava isolado de tudo o resto.
Esta dificuldade em relacionar a imagem trinitária de Deus com os demais
campos da reflexão teológica também se ficava a dever a como então se
fazia teologia. Predominavam então os chamados manuais de teologia (daí a
manualística), que queriam resumir toda a doutrina e responder a todas as
possíveis objeções. No caso específico da teologia trinitária, os manuais
tratavam o tema (i) de um modo especulativo/filosófico e (ii) dividiam muito
claramente o que se referia ao Deus uno e o que se referia ao Deus trino.
Esse modo especulativo significava que se procurava mostrar como uma
imagem trinitária de Deus não era irracional. Havia pois que justificar
racionalmente a doutrina da Trindade. A história da revelação ou a história
da teologia não encontravam grande espaço nos tais manuais de teologia.
Como consequência, apresentavam uma imagem de Deus algo «des-
historicizada». A nítida divisão entre Deus uno e Deus trino justificava-se
também pela necessidade de dar razões desta conceção cristã de Deus. O
problema estava em que, dividindo assim a Deus, parecia-se dar a entender
que um é o Deus uno e outro o Deus trino, quando eles são um só e o
mesmo Deus. O primeiro podia ser conhecido pela razão. O segundo só por
revelação. Querendo distinguir, os manuais corriam o risco de dividirem
unidade e trindade em Deus. Ora a unidade em Deus é sempre a unidade

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dos três da Trindade. Por isso, não se pode dividir (distinguir sim, dividir
não) unidade e trindade em Deus.
Em síntese, pode-se dizer que a visão de Deus nos manuais mostrava:

i. Insuficiente perspetiva histórico-salvífica: escassa consideração bíblica,


patrística e da evolução teológica da temática trinitária;
ii. Subordinação da dimensão trinitária à unitária: relação algo extrínseca
entre o Deus uno e o Deus trino;

Sem surpresa, a teologia contemporânea, reagindo a este estado da


questão trinitária, procurou repensar a Trindade em perspetiva histórica (a
partir da Bíblia, da história da teologia, etc) e em perspetiva salvífica
(procurando mostrar como a Trindade também tem que ver com a nossa
salvação). Tocando nestes dois pontos, ela tem procurado responder à
referida impressão que a fé na Trindade é uma coisa abstrata e não prática.

2.3 A especificidade da «teo-logia» cristã


No fundo, os cristãos não creem simplesmente em Deus, mas creem n’Ele
como uma Trindade de Pai, Filho e Espírito Santo.
[ver parágrafo introdutório].

2.4 A questão de Deus na sistemática teológica


Também pelo que ficou dito, facilmente se compreende que a teologia nos
nossos dias se esforce por colocar a questão trinitária no centro da sua
reflexão acerca da fé. Com efeito, um dos traços da hodierna reflexão cristã
acerca de Deus está em procurar reler tudo na proposta cristã a partir da
novidade da conceção de Deus como Trindade. Exemplificando: uma
conceção trinitária de Deus pode e deve ter consequências na maneira como
entendemos e construímos a Igreja/a eclesiologia (bastante diferentes, por
sinal, de uma imagem «a-trinitária» de Deus). É isso que leva hoje alguns a
querer olhar a Igreja como «ícone da Trindade» (B. Forte). Ou, outro
exemplo, na forma como olhamos a antropologia. Se partimos efetivamente
de uma «teo-logia» trinitária, então eu poderei admitir que o Homem não
será simplesmente «imagem e semelhança» de Deus, mas sê-lo-á
propriamente da pessoa do Filho de Deus (dado que até lança uma nova luz
sobre o porquê da encarnação do Filho).
Trata-se, no fundo, de colocar no centro da toda a atividade teológica uma
noção realmente trinitária de Deus, para dela extrair todas as consequências
teóricas e práticas para a vida crente. Isto, porque em termos cristãos,
sempre que em teologia dizemos Deus (não importa em que contexto) em
rigor estamos a dizer Trindade.

Alexandre Palma

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