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ENTRE A EMANCIPAÇÃO E A HETERONORMATIVIDADE:


verso e reverso da Lei Maria da Penha

NILVANETE GOMES DE LIMA*

RESUMO

Entre a emancipação e a heteronormatividade: verso e reverso da Lei Maria da Penha se


desenvolve em meio às discussões, sobre relações conjugais, violência e heteronormatividade.
Parto da história de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de um atentado perpetrado por
seu próprio marido, que lhe deixou paraplégica e inicialmente descrente em relação à eficácia
das leis brasileiras no que dizia respeito à punição de seu agressor. A partir da leitura de sua
história, publicada em forma de livro, das entrevistas publicadas na internet, dos relatórios dos
organismos internacionais e por fim, dos documentos oficiais, afirmo que Fernandes sentiu
literalmente, na carne, as desigualdades de tratamento entre homem e mulher. Entretanto, sua
trajetória individual, que em geral seria silenciada por tantas outras histórias semelhantes,
levou-a a Cortes Internacionais Superiores e, de alguma forma, ensejou para o Estado
Brasileiro a necessidade de fazer valer os direitos da mulher, personificados na Lei Ordinária
11340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Não se pode negar em meio a esta
história de luta por justiça, a importância dos movimentos feministas e a própria re-elaboração
daquilo que a princípio, vivido no âmbito doméstico, é re-significado como bandeira de luta
em prol da diminuição dos alarmantes números de violência contra a mulher em nosso país e
da fragilidade das leis existentes, até aquele momento, para puni-la.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Feminismo. Heteronormatividade.

1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS
*
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão. Professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhaão. Email: nilvanete30@hotmail.com.
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Alphonsus de Guimaraens Filho (2008, meus grifos), poeta brasileiro do fim do


século XIX, nascido em Ouro Preto, Minas Gerais considerou que “O amor tem vozes
misteriosas/ No coração implume.../ Como são cheirosas as primeiras rosas,/ E os
primeiros beijos como têm perfume!”. Sobre o desenrolar deste sentimento continua ele “O
amor tem prantos de abandono/ No coração que morre.../ As folhas tombam quando vem o
outono,/ E ninguém as socorre”. Finalmente, descreve assim o fim desse amor: “O amor
tem noites, noites inteiras/ De agonias e de letargos.../ Que tristeza tem as rosas derradeiras,/
E os últimos beijos como são amargos!”. Pensando na violência doméstica perpetrada contra
a mulher, me questiono se somente “os últimos beijos são amargos”? As estatísticas têm
mostrado que não e que as mulheres são, independentemente da idade, as principais vítimas
da violência doméstica:

Dados da Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA) do Ministério da Saúde, de


27 municípios, de agosto de 2006 a julho de 2007, mostram que são as mulheres as
principais vítimas das violências doméstica e sexual, da infância até a terceira idade.
Do total de 8.918 notificações de atendimentos de violência doméstica, sexual e
outras violências, registradas no período analisado, 6.636, ou seja, 74% referiam-se
a vítimas do sexo feminino. As mulheres adultas (20 a 59 anos) foram as que mais
sofreram violência: 3.235 atendimentos, representando 79,9% do total de agressões
relatadas. (BRASIL, 2011, p. 13).

Certamente, uma das possíveis explicações para os dados acima seja a herança social
patriarcal e patrimonialista que vigorou e ainda hoje vigora no Brasil, com deslocamentos,
sobretudo no espaço familiar. Estou, pois, tomando a violência doméstica como uma prática
cultural, já que as desigualdades entre homem e mulher não encontram respaldo nas
diferenças biológicas. Segundo Butler (2014), o próprio dimorfismo sexual é produto de um
sistema binário de gênero, que engrendra a heteronormatividade. Entretanto, a normatividade
de gênero acaba por impor uma hierarquia e um sistema de reconhecimento excludente que,
distintamente, torna vulneráveis alguns sujeitos que dela participam. Dessa forma, Cuellar
(1997, p. 172) ressalta que:

A tomada de consciência de que as mulheres são tratadas como seres inferiores em


virtualmente todas as sociedades do mundo possibilitou o aparecimento de uma
abordagem de desenvolvimento ‘centrada na mulher’, oposta à tendência de
negligenciar ou reduzir a importância das relações entre homens e mulheres.

Kymlicka (1996) observa que as sociedades modernas democráticas precisam pensar


cada vez mais nos grupos minoritários, no reconhecimento de suas identidades e na
acomodação cultural de suas diferenças, o que ele denomina, grosso modo de
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“multiculturalismo”. Apesar da ideia de multiculturalismo estar ligada essencialmente às


minorias culturais e aos grupos étnicos, ele ressalta que os “novos” movimentos sociais
formados por gays, mulheres, lésbicas, etc., marginalizados dentro do próprio grupo social,
devem ter seus direitos de minoria contemplados. Ou seja, o argumento do autor caminha no
sentido de se centrar nas diferenças que compõem o Estado e não no universalismo absoluto
de onde se parte.
É em meio a essas discussões, sobre relação conjugal, violência e heteronormatividade
que o artigo que ora se apresenta pretende se desenvolver.
Mais especificamente parto da história de Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de
um atentado perpetrado por seu próprio marido, que lhe deixou paraplégica e inicialmente
descrente em relação à eficácia das leis brasileiras no que dizia respeito à punição de seu
agressor. Posso afirmar, a partir da leitura de sua história, publicada em forma de livro, das
entrevistas publicadas na internet, dos relatórios dos organismos internacionais e por fim, dos
documentos oficiais, que Fernandes sentiu literalmente, na carne, as desigualdades de
tratamento entre homem e mulher.
Entretanto, sua trajetória individual, que em geral seria silenciada por tantas outras
histórias semelhantes, levou-a a Cortes Internacionais Superiores, e de alguma forma, ensejou
para o Estado Brasileiro a necessidade de fazer valer os direitos da mulher, personificados na
Lei Ordinária 11340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Claro que não se pode
negar em meio a esta história de luta por justiça, a importância dos movimentos feministas e a
própria re-elaboração daquilo que a princípio, vivido no âmbito doméstico, é re-significado
como uma bandeira de luta em prol da diminuição dos alarmantes números de violência
contra a mulher em nosso país e da fragilidade das leis existentes para puni-la, ate aquele
momento e também da reprodução, no texto da lei, de padrões heteronormativos.
Esquematicamente, são essas considerações que passo a tecer nos itens que se seguem.

2 DA INVISIBILIDADE? TRAJETÓRIA DE VIDA DE MARIA DA PENHA E SEUS


RELATOS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL
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No Brasil já foram produzidos trabalhos, que embora estudassem a vida de um


indivíduo em particular, não se constituíram em biografias por considerarem apenas parte das
trajetórias individuais (KOFES,; GOLDENBERG, 2008) ou “como um indivíduo singular se
transforma em um novo paradigma e as condições de possibilidade dessa transformação”
(GOLDENBERG, 2008, p. 16). Ao estudar a vida de Leila Diniz, por exemplo, apontada
como uma precursora do feminismo no Brasil, Goldenberg tem como objetivo é “[...] perceber
a singularidade de sua trajetória e a configuração social e familiar na qual ela existiu” (2008,
p.17).
Dessa forma, esta autora inicialmente reuniu o material já existente sobre a vida de
Leila Diniz. Ao analisá-los criticamente, percebeu que esses materiais biográficos ao
revelarem certos aspectos de sua vida e silenciarem outros, pareciam ter “[...] produzido um
acordo sobre a necessidade de se voltar recorrentemente a certos fatos e silenciar outros” (p.
18).
Assim, ao questionar o “dito” e ir em busca do “não dito”, Goldenberg analisa os
determinantes familiares, políticos, culturais e como, diante deles, Leila Diniz vivenciou e
geriu sua vida. Assim, afirma que: “[...] ao compreender melhor a trajetória de Leila, ao
humanizá-la, posso entender melhor a luta de outras mulheres na tentativa de
(re)inventarem a própria vida”. (GOLDENBERG, 2008, p. 76, grifos meus). Ao me
deparar com um livro que contava episódios da vida conjugal de Maria da Penha Fernandes,
que sobreviveu às investidas de seu marido, à época, de provocar sua morte, acredito que
também encontro um processo de (re)intrepretação de sua própria vida que interferirá
diretamente na de outras mulheres.
Neste sentido, não tenho a pretensão de construir uma biografia, mas ressaltar aspectos
que relacionados à discussão sobre violência contra a mulher e à produção de uma lei que
diminuísse essas situações reiteradas ao mesmo tempo (re)afirma os postulados binários e
heteronormativos que colocam a mulher em posição diferenciada em relação ao homem,
tomando em um primeiro momento três questionamentos importantes que nortearam o estudo
de Goldemberg sobre Leila Diniz:

1. O que apreendo da trajetória [...] com base [...] [no] material [pesquisado]?
[...]?
2. Quais as dúvidas que [...] [o] material gera? Quais as contradições e os fatos
nebulosos?
3. Qual é a imagem construída [...]? Quais os invariantes e as variações dessa
imagem criada? (GOLDEMBERG, 2008, p. 26).
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É portanto, a partir dessas três questões que construí uma narrativa sobre a trajetória
de Maria da Penha Fernandes, desde seu namoro com Marco Antonio Viveiros até sua saída
de casa e a luta para que o autor do atentado contra ela – seu próprio marido – fosse
condenado, levantada através de um livro de sua autoria intitulado Sobrevivi...: posso contar,
lançado em 1994, reeditado em 2012 com alguns acréscimos do texto original, devido, dentre
outros fatos, à Lei 11340/2006 e com segunda reimpressão em 2014, de entrevistas colhidas
na internet e de dados divulgados no site do Instituto Maria da Penha.

2.1 A narrativa de vida a partir da violência conjugal

Maria da Penha Maia Fernandes, nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1945. É a


primogênita de cinco filhas de um casal formado por um cirurgião-dentista e uma professora,
que decidiu não mais exercer a profissão após seu nascimento para dedicar-se à família.
Formada na primeira turma de Farmácia e Bioquímica da Universidade Federal do Ceará
(UFC) em 1966 e com mestrado em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de São Paulo
(USP). “Uma mulher quando escolhe um homem, ela quer que seja para sempre”, declarou
Fernandes (QUEM É..., [200-?]), entretanto relata que sua decisão em fazer mestrado em
outra cidade se deveu ao término de um casamento que havia durado cinco anos e lhe
“trouxera decepções” (FERNANDES, 2014, p. 19). Foi em São Paulo, em um período
tranquilo e cercado de novidades que Fernandes conheceu seu novo amor:

[...] No início, não existia solidão, tudo era novidade. Eu tinha amigos e amigas, e, geralmente,
nos finais de semana, almoçávamos juntos [...]. Como o círculo de amizades era constituído
por estudantes oriundos de diferentes partes do Brasil e do exterior, as turmas se encontravam
nesses fins de semana, participando de reuniões, tanto de trabalho como de lazer. [...]. A
assiduidade dos encontros favoreceu que alguns namoros surgissem desse intercâmbio
sociocultural.
Foi através desses amigos que, [...], conheci Marco Antônio, também bolsista, recém-chegado
da Colômbia. (FERNANDES, 2014, p. 20).

Fernandes relata que não se enamorou à primeira vista de Marco, mas construiu com
ele uma amizade, até finalmente começarem a namorar. Ele demonstrava ser “habilidoso para
serviços de manutenção” (FERNANDES, 2014, p. 20) e costumava fazer os consertos
necessários no apartamento em que ela residia com outras colegas. Dessa forma, ressalta que:

[...] Sua maneira educada e suas habilidades angariaram simpatia dos que nos rodeavam.
Muitos me parabenizavam por namorar uma pessoa tão atenciosa, gentil e prendada. [...] Esses
fatos e observações reforçaram minha convicção de que, caso nosso casamento se consumasse,
teríamos grandes chances de sermos felizes. (FERNANDES, 2014, p. 20-1).
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Diante dessas constatações e com o passar do tempo, Fernandes e Marco Antônio


decidiram se casar, entretanto, como ela era desquitada, não poderia casar-se no Brasil.
Apesar de ser colombiano, Marco Antônio optou por se casar através de procuração, na
Bolívia, declarando-se solteiro (FERNANDES, 2014, p. 21). Alguns anos depois ela viria
saber que ele não só fora casado na Colômbia como também possuía um filho dessa relação
(FERNANDES, 2014, p.35). A percepção de Fernandes sobre o início de sua relação
conjugal, vivida ainda em São Paulo, não guarda relação alguma com os relatos finais:
Após o nascimento da nossa primeira filha, finalmente Marco conseguiu encaminhar a
documentação necessária para sua naturalização, já que, pelas leis brasileiras, para um
estrangeiro ser naturalizado é necessário que constitua família no Brasil. [...] Meu marido
demonstrava afeto por mim e também pela filha. (FERNANDES, 2014, p. 22, grifo meu).

Ao final de seus mestrados, Fernandes, grávida de sua segunda filha, a primogênita e


Marco Antonio foram residir em Fortaleza, pois ele enfrentava dificuldades de conseguir
emprego em São Paulo e ela era concursada na função de farmacêutico-bioquímica no
Instituto de Previdência do Estado do Ceará, de onde estava licenciada para fazer sua pós-
graduação. Ela ainda teria a terceira filha, já em no período em que sua relação estava
desgastada.
Em Fortaleza, Marco Antonio, contando com a ajuda de Fernandes e de seu círculo de
amizades, conseguiu seu primeiro emprego no Brasil, na função de economista, no Centro de
Apoio à Pequena e Média Empresa (CEAG), que atualmente é o Serviço Brasileiro de Apoio
às Micro e Pequenas Empresas, conhecido como SEBRAE. (FERNANDES, 2014, p. 23). A
partir daí, o relato de Fernandes se modifica e sua percepção sobre o marido também:

Após assumir o novo emprego, os contatos profissionais de Marco foram se ampliando, e sua
vaidade pessoal, também. [...].
A partir do momento em que Marco foi naturalizado e se estabilizou profissional e
economicamente, modificou totalmente o seu modo de ser. O companheiro, até então afável,
transformou-se numa pessoa agressiva e intolerante, não só em relação a mim, mas também às
próprias filhas.
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Aos poucos, fui percebendo que a naturalização de Marco e as possibilidades de se
projetar social e profissionalmente o tinha conduzido a uma união de conveniência. [...] a
partir do momento em que seus objetivos foram alcançados, Marco não se importava mais de
mostrar sua face mesquinha e violenta [...]. (FERNANDES, 2014, p. 23-5, grifo meu).

Fernandes narra reiterados episódios de violência física contra suas filhas e de


violência psicológica sofrida por ela, em face de toda sua tensão e cuidado máximo para
impedir qualquer situação que despertasse a fúria de seu companheiro.
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Ele era surpreendente. Eu não sabia quando ele ia chegar de bom humor, de mau humor. Ele
era mais de gritar, de mostrar que ia partir para uma agressão. Você começa a recuar. Ele era
agressivo principalmente com as crianças. Isso era o que mais me feria. (GOMES, 2010?).

Fala ainda de momentos mais tranqüilos, quando o marido desenvolveu trabalhos em


outras cidades do estado, passando assim, a semana toda ausente da convivência domestica.
Também cita oportunidades em que cogitou a separação, percebendo pelas atitudes de
indiferença do marido e das palavras não ditas “[...] que uma separação amigável seria
impossível [...]”. (FERNANDES, 2014, p. 28).

Era uma rotina muito difícil. Eu tentei muito me analisar. Observei que eu não dava motivo.
De tudo eu tentei. Inclusive eu cheguei ao ponto de dizer: ‘Se a gente não vive bem, por que
continuar junto? Vamos separar’. E ele desconversava. (GOMES, 2010?).

Os relatos da primeira tentativa de homicídio sofrida por ela, iniciam com uma
sequência de fatos que no momento vivido, isoladamente, não se constituíam
necessariamente em indícios do que o autor do atentado planejava – embora ela admita que
tenha pensado nessa possibilidade como “uma idéia tão absurda e insuportável” que preferiu
deixá-la ir –, mas que pensados e reelaborados por Fernandes demonstram que “No
comportamento de um criminoso, tudo se soma e se encaixa, em movimentos planejados,
como peças num jogo de xadrez”. (FERNANDES, 2014, p. 34; 37).

Em meados de abril de 1983, [...], Marco chamou-me e, inesperadamente, pediu-me que


assinasse um seguro de vida, beneficiando-o. [...]. Fiquei indignada com essa proposta, por
que se, na realidade, estávamos separados corporalmente, por que esse interesse tão repentino
para que eu fizesse um seguro de vida que o contemplava?
Noutra ocasião, em 24 de maio de 1983, Marco apresentou-me um documento no qual eu dava
autorização para que o carro, de minha propriedade, fosse vendido a um colega seu, e me
pediu que o assinasse. Só que, nesse documento, já devidamente preenchido, não constava o
nome do comprador. [...] Mesmo sem me convencer, assinei o documento [...].
Mas Marco, sem que eu soubesse, reconheceu naquele mesmo dia a minha firma, sem
preencher o nome do comprador, e escondeu-a, [...], por ocasião da minha saída definitiva de
casa no mês de outubro do mesmo ano, eu encontraria também fotocopias de outros
documentos meus, autenticadas, tudo feito sem meu conhecimento.
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Existiam outros fatores que ele estava me escondendo e ficaria esclarecido durante o inquérito
policial: a possibilidade de ausentar-se do país, para, [...], fazer um curso na Bélgica [...].
(FERNANDES, 2014, p. 35-6).

No dia 28 de maio de 1983, Fernandes saiu com o marido e as filhas para visitar um
casal amigo e após retornar à sua casa, fez suas tarefas costumeiras, indo em seguida dormir,
enquanto o marido permanecia acordado. Os relatos iniciais do atentado que sofreu nessa
noite são assim narrados:
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Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém.
Tentei me mexer, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me
ocorreu: ‘Meu Deus, o Marco me matou com um tiro’. Um gosto estranho de metal se fez
sentir, forte, na minha boca, enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou ainda
mais assustada. [...].
O silêncio era total e absoluto. [...]. Paralisada, mas vivamente alerta, à espreita do pior,
escutei nítido e seco, outro tiro! [...]. Nesse momento, pensei: ‘Fiz mau juízo sobre o Marco!
Meu Deus, perdoa-me! E se for algum assaltante? [...]’. (FERNANDES, 2014, p. 39).

De fato, a versão dada por Marco Antonio não só foi a de que assaltantes haviam dado
os tiros como ele próprio estava ferido (FERNANDES, 2014, p. 43; 47).
Fernandes foi submetida a várias cirurgias ao longo dos quatro meses que ficou
internada tanto em um hospital em Fortaleza, quanto no Hospital Sarah, em Brasília, um local
especializado em situações como a que ela estava enfrentando: a paraplegia. (FERNANDES,
2014).
Ainda no período em que se encontrava no Hospital Sarah, Fernandes, em conversa
com o marido questionou-o sobre o que havia ocorrido, ouvindo finalmente a sua versão dos
fatos, para concluir, entretanto que, “a história toda soava absurda” e, ao comparar a narrativa
dele com as suas lembranças, chegara “a especulações que [...] jamais queria concluir”.
(FERNANDES, 2014, p. 71).
Ao retornar de Brasília e voltar para a convivência doméstica com o marido e as filhas,
Fernandes é informada das várias situações de violência vivenciadas pelas crianças devido a
atitudes autoritárias do pai, sendo que ela mesma sofre, em função das restrições físicas várias
violências, inclusive o impedimento de visitas de parentes e amigos, até a culminância da
segunda tentativa de homicídio:

À hora do almoço, pedi para tomar um banho, o que ainda não fizera desde minha chegada,
três dias antes. Marco respondeu-me que eu aguardasse para o fim de semana, pois estava sem
tempo, e, como nos dias anteriores, dirigiu-se ao banheiro das crianças, para tomar o seu.
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[...] foi somente no segundo fim de semana após meu retorno de Brasília que Marco perguntou
se eu desejava tomar um banho. Adentrando nossa suíte, ele abriu a torneira do chuveiro e eu,
ao estirar o braço para sentir a temperatura da água senti um choque. Imediatamente empurrei
a cadeira de rodas para trás, gritando: ‘Tomei um choque! Tire-me daqui! Não uso mais este
chuveiro!’[...]. E, enquanto me desesperava, tentando afastar-me daquele local, Marco
retrucava para que eu deixasse de besteira, pois aquele ‘choquezinho de nada não dá para
matar ninguém!’
Então entendi o motivo pelo qual, depois de minha chegada de Brasília, Marco tomava seu
banho somente no banheiro das crianças. Como não perceber esse episódio como uma segunda
tentativa de homicídio contra a minha pessoa? (FERNANDES, 2014, p. 82; 88).

Após esse episódio todos os esforços de Fernandes concentraram-se em, juntamente


com sua família, mesmo que às escondidas, planejar juridicamente sua “fuga” daquele cárcere
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privado em que vivia, sem que isso representasse judicialmente um “abandono de lar” ou a
perda da guarda de suas filhas. E, a partir de então começou sua luta para ver condenado seu
agressor. (FERNANDES, 2014).

Mas uma coisa positiva é que foi constatado que ele tinha sido o autor, ele não foi injustiçado.
Isso aí era uma coisa que eu tinha que ter fé e esperança e lutei para que realmente fosse
constatado que ele tinha sido o autor da tentativa de homicídio. Ele foi duas vezes a
julgamento. O primeiro foi oito anos depois do fato (1991). Ele foi condenado, mas saiu em
liberdade por causa de recurso. Mas aí em 96 ele foi novamente a julgamento, foi condenado,
saiu do fórum por conta de recursos e graças a deus a gente conseguiu denunciar o descaso da
justiça brasileira.
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No primeiro julgamento ele foi condenado a 13 anos de prisão e no segundo foi condenado a
10 anos. E a prisão real só aconteceu pelas pressões internacionais, no ano de 2002, faltando
só seis meses para o crime prescrever (ele foi condenado a 13 anos de prisão). (GOMES,
2010?).

Inconformada, depois do primeiro julgamento, Fernandes resolveu relatar sua história


em forma de livro e, através dessa iniciativa, conheceu o Centro para a Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL-Brasil) e o Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos
Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil), duas organizações que lutam pela efetivação dos
direitos da mulher. (QUEM É..., [200-?]).

Eu tinha escrito o livro. Depois do primeiro julgamento que ele foi condenado e saiu em
liberdade, eu trouxe o processo para dentro do livro, contei a história e o que estava
acontecendo. E esse livro chegou às mãos do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito
Internacional), uma ONG do Rio de Janeiro e da Cladem (Comitê Latino Americano do
Caribe em Defesa da Mulher). Juntos, conseguimos denunciar o Brasil na OEA. (GOMES,
2010?).

Até aqui fiz uma narrativa de mais um caso de violência doméstica contra a mulher,
que não seria diferente de tantos outros. Quantos casos de violência, neste exato momento,
enquanto termino este parágrafo, estão sendo perpetrados contra uma mulher por seu
companheiro? O que torna então esta história pessoal em algo que possa contribuir para uma
discussão sobre a violência e a construção dos direitos da mulher no Brasil a partir do
engajamento de grupos feministas?

2 Violência de gênero, lentidão da justiça brasileira e movimento feminista: a


visibilidade internacional

Muitos fatos ocorreram desde o episódio pessoal vivenciado por Fernandes até que a
Lei 11340/2006 fosse sancionada.
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Alguns anos após os atentados sofridos por Fernandes foi criada no Brasil, em 2003, a
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que permitiu o fortalecimento das
políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher. Anterior a este período,
exatamente o que Fernandes vivera,

[...] as iniciativas de enfrentamento à violência contra as mulheres constituíam, em geral,


ações isoladas e referiam-se basicamente a duas estratégias: a capacitação de profissionais da
rede de atendimento às mulheres em situação de violência e a criação de serviços
especializados, mais especificamente Casas-Abrigo e Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher. (BRASIL, 2011, p.7).

Com a criação desta Secretaria, a própria Lei 11340/2006 passa a ser prioridade
[...] as políticas públicas para o enfrentamento à violência contra as mulheres são ampliadas e
passam a incluir ações integradas, como: criação de normas e padrões de atendimento,
aperfeiçoamento da legislação, incentivo à constituição de redes de serviços, o apoio a
projetos educativos e culturais de prevenção à violência e ampliação do acesso das mulheres à
justiça e aos serviços de segurança pública. Esta ampliação é retratada em diferentes
documentos e leis publicados neste período, a exemplo dos Planos Nacionais de Políticas para
as Mulheres, a Lei Maria da Penha, a Política e o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres, as Diretrizes de Abrigamento das Mulheres em situação de
Violência, as Diretrizes Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do
Campo e da Floresta, Norma Técnica do Centro de Atendimento à Mulher em situação de
Violência, Norma Técnica das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, entre
outros. (BRASIL, 2011, p.7).

Outra primazia, a Política Nacional de enfrentamento à Violência contra as Mulheres,


considera que este fenômeno é uma das “principais formas de violação dos seus direitos
humanos, atingindo-as em seus direitos à vida, à saúde e à integridade física” (BRASIL, 2011,
p. 11), direitos violados tanto na história de vida de Fernandes, quanto na de tantas outras
mulheres no Brasil.
A abordagem e o conceito de violência também tiveram enfoques ampliados tomando-
se como referência a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra
a Mulher, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1º. de fevereiro de 1984; da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, mais conhecida
como Convenção de Belém do Pará, realizada em 1994, passando a fazer parte do
ordenamento jurídico brasileiro a partir do Decreto n o. 1.973 de 1º. de agosto de 1996 e, de
outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. Segundo a
Convenção de Belém do Pará (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 1994) define em seu artigo primeiro, a violência contra a mulher constitui
“qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano, sofrimento físico,
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sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Como se vê, um
conceito bastante amplo.
No Brasil, como o espaço da casa ainda hoje é mais reservado à mulher que ao homem
(DA MATTA, 1993), há evidências de que homens e mulheres sofrem violências distintas.
Enquanto os primeiros são, em geral, “vítimas de violência predominantemente praticada no
espaço público, as mulheres sofrem cotidianamente com um fenômeno que se manifesta
dentro de seus próprios lares, na grande parte das vezes praticado por seus companheiros e
familiares”. (BRASIL, 2011, p. 11).
Embora se saiba do fenômeno de longa data, e as lutas contra esse tipo de violência
sejam antigas, são datadas as primeiras conquistas dos movimentos feministas no Brasil junto
ao Estado para a implementação de políticas públicas voltadas ao combate à violência contra
a mulher apenas na década de 1980. Há inclusive obras que apontam o papel e a importância
desses movimentos entre os anos de 1980 a 2005 (DINIZ; SILVEIRA; MIRIM, 2006), mas,
ainda assim, não existem estatísticas oficiais sobre o problema. Entretanto,

[...] Alguns estudos, realizados por institutos de pesquisa não governamentais, como a
Fundação Perseu Abramo (2010), apontam que aproximadamente 24% das mulheres já foram
vítimas de algum tipo de violência doméstica. Quando estimuladas por meio da citação de
diferentes formas de agressão, esse percentual sobe para 40%. (apud BRASIL, 2011, p. 12).

Se o levantamento das estatísticas não é fácil, tão pouco a abordagem sobre a temática.
As organizadoras do livro Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra as
mulheres no Brasil (1980-2005): alcances e limites observam que ao iniciarem seu trabalho
tinham uma pretensão:

Originalmente, o objetivo do projeto era o de realizar um balanço dos 25 anos (1980-2005) de


luta contra a violência contra a mulher no Brasil, e dos alcances e limites das respostas
desenvolvidas. Para isso, nos colocamos a pretensão de realizar um levantamento do conjunto
de respostas à violência contra a mulher nesses 25 anos, incluindo, quando pertinente, os
estudos de avaliação sobre as Delegacias de Defesa da Mulher; as respostas do setor saúde; as
respostas do setor jurídico; e as políticas públicas de assistência social às mulheres vítimas.
Além disso, nos propusemos a consolidar as avaliações em andamento e propor uma agenda
de pesquisa e intervenção capaz de avançar na identificação e implementação das políticas
mais efetivas e promissoras. (DINIZ; SILVEIRA; MIRIM, 2006, p. 7).

Entretanto, além de perceberem lacunas, consideram que:

Não foi um percurso fácil, e em vários dos temas, tivemos potenciais colaboradores que
aceitaram nosso convite com entusiasmo, porém meses depois, diante dos desafios de um
balanço de avanços e limites, preferiram se abster de colaborar. [...] Entre as razões relatadas
para estavam desde a falta de tempo das convidadas para a ‘reflexão escrita’ até a insatisfação
com a própria prática, agravada pela reflexão.
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Entendemos que tais silêncios dizem respeito aos diferentes tempos políticos necessários para
a elaboração de convergências e divergências (por exemplo: o que fazer com os agressores; as
vantagens e limites das políticas de abrigamento), ou de elementos recentes demais para
permitir uma análise feminista amadurecida (qual o papel das penas alternativas, ou qual seria
o papel do movimento no monitoramento das políticas sociais). Vimos assim que há uma
‘agenda oculta’ de abordagem nem sempre fácil [...]. (DINIZ; SILVEIRA; MIRIM, 2006, p.
8).

É exatamente na pauta dos “diferentes tempos políticos” que se insere a criação da Lei
11340/2006 e seu entrecruzamento com a história de Maria da Penha, permitindo que mais
uma bandeira de luta contra a violência perpetrada contra a mulher no Brasil alcançasse
organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Após o primeiro julgamento de Marco Antonio e ao ver os recursos jurídicos
utilizados por seus advogados para que ele permanecesse ileso, Fernandes publica um livro
onde narra, de forma mais enfática, a violência que havia sofrido. Embora os jornais
estivessem acompanhando o caso – conforme demonstram os anexos de seu livro –, ela
“trouxe o processo para dentro do livro” e contou “a historia que estava acontecendo”
(GOMES, 2010?), despertando o interesse de organizações feministas que lutavam pelos
direitos humanos das mulheres.
Dessa forma, Fernandes apresentou sua historia a OEA, à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, formalizada em uma denuncia contra o Brasil, em 20 de agosto de 1998,
com a mediação do Comitê Latino Americano em Defesa da Mulher (CLADEM) “uma rede
feminista que trabalha para contribuir a plena vigência dos direitos das mulheres na América
Latina e Caribe, utilizando o direito como um instrumento de mudança” (CLADEM) e do
Centro pela Justiça e o Direito internacional (CEJIL), uma Organização não Governamental,
que objetiva “contribuir para o gozo dos direitos humanos nos Estados membros da OEA
através do uso efetivo do Sistema Interamericano (SIDH), e outros mecanismos de proteção
internacional dos direitos humanos” (CEJIL, tradução livre).
Na denúncia o Brasil é acusado, dentre outras coisas de:

[...] tolerância [...] para com a violência cometida por Marco Antônio Heredia Viveiros em seu
domicílio na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, contra a sua então esposa Maria da Penha
Maia Fernandes durante os anos de convivência matrimonial, que culminou numa tentativa de
homicídio e novas agressões em maio e junho de 1983. [...]. [...] tolerância do Estado, por não
haver efetivamente tomado por mais de 15 anos as medidas necessárias para processar e punir
o agressor, apesar das denúncias efetuadas. [...] a violação dos artigos 1(1) (Obrigação de
respeitar os direitos); 8 (Garantias judiciais); 24 (Igualdade perante a lei) e 25 (Proteção
judicial) da Convenção Americana, em relação aos artigos II e XVIII da Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem [...], bem como dos artigos 3, 4,a,b,c,d,e,f,g, 5 e
7 da Convenção de Belém do Pará. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, 2001).
13

Entretanto, embora em 19 de outubro de 1998 a Comissão tenha solicitado


informações ao Brasil, não obteve resposta alguma. Diante do silêncio do Estado, a Comissão
ratificou o pedido de informações em 04 de agosto de 1999 e asseverou que caso estas não
ocorressem, seria aplicado o artigo 42 da Comissão, considerando verdadeiros os fatos
apresentados na denúncia. A Comissão, portanto, face à falta de respostas, considerou que
“esse silêncio do Estado constitui, neste caso, uma renúncia tácita a invocar esse requisito que
o isenta de levar avante a consideração de seu cumprimento” contradizendo “a obrigação que
assumiu ao ratificar a Convenção Americana em relação à faculdade da Comissão para ‘atuar
com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, em
conformidade com o disposto nos artigos 44 e 51 da Convenção’”. (COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001).
A Comissão também observa que a obrigação internacional assumida pelo Brasil
livremente, de ratificar a Convenção de Belém do Pará, está sendo ferida por este, uma vez
que:

Os Estados Parte condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar,
por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar
tal violência e a empenhar-se em:
a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as
autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de
conformidade com essa obrigação;
b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;
c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra
natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e
ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua
vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e
regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a
persistência e a tolerância da violência contra a mulher;
f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência,
inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos;
g) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a
mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do dano e
outros meios de compensação justos e eficazes;
h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta
Convenção. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001, grifos
meus).

Diante do relato feito até aqui, considero oportuno ressaltar que, de 1980 até 2005 é
inegável que:
14

[...] operou-se uma significativa mudança no paradigma político-jurídico brasileiro, trazendo


para as mulheres conquistas políticas e legais que são, na sua extensa maioria, fruto dos
processos de articulação, reivindicação e atuação dos movimentos e organizações feministas e
de mulheres no âmbito nacional e internacional. (DINIZ; SILVEIRA; MIRIM, 2006, p. 79).

Tanto no plano nacional, quanto no internacional vários documentos e legislações


foram importantes nesse processo, dentre eles, passo a citar:

A. No plano internacional: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação contra a Mulher (CEDAW, ONU, 1979); a Recomendação Geral No. 19 do
Comitê CEDAW (ONU,1992); a Declaração sobre Todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher (ONU, 1993); as Declarações e Programas de Ações decorrentes das principais
Conferências Internacionais das Nações Unidas (Viena/93, Cairo/94 e Beijing/95); a
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994); o Relatório do Comitê CEDAW em relação ao
Brasil (ONU, 2003).

B. No plano nacional: a Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes (1986); a Constituição


Federal (1988); o novo Código Civil (2003); o Código Penal (1940) e as leis esparsas que ao
longo destas décadas produziram reformas no campo penal e processual penal, além de outras
legislações. (DINIZ; SILVEIRA; MIRIM, 2006, p. 79).

Entretanto, nem sempre eles afetaram o tratamento jurídico que era dado à mulher e à
violência contra ela de maneira positiva, daí o fato de eu estar ressaltando a importância da re-
atualização de um crime que se deu no âmbito familiar, como o caso de Fernandes, para o
espaço público, movimentando organismos internacionais, como um divisor de águas na luta
pela ampliação dos direitos da mulher que culmina com a lei 11340/2006. É impossível não
fazer esta conexão, face à conclusão do processo e das recomendações que a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos faz ao Brasil:

1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e


tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia.
2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a
responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento
rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e
judiciárias correspondentes.
3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da
agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação
simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em
oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze
anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e
indenização civil.
4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento
discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão
recomenda particularmente o seguinte: a) Medidas de capacitação e sensibilização dos
funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não
tolerar a violência doméstica; b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que
possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo;
c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de
15

conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às


conseqüências penais que gera; d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para
a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva
tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar
apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais. e) Incluir em seus
planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do
respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como
ao manejo dos conflitos intrafamiliares.
5. Apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, dentro do prazo de 60 dias a
partir da transmissão deste relatório ao Estado, um relatório sobre o cumprimento destas
recomendações para os efeitos previstos no artigo 51(1) da Convenção Americana.
(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001).

Apesar do Brasil não ter dado respostas à Comissão em tempo hábil, várias políticas e
mecanismos foram instaurados para que a Convenção de Belém do Pará e as recomendações
acima descritas fossem efetivadas.
Marco Antonio Viveiros embora tenha sido condenado no primeiro julgamento a treze
anos de prisão e no segundo a dez, somente teve sua prisão real decorrente de outro
julgamento, em 2002, devido às pressões internacionais, faltando apenas seis meses para a
prescrição do crime. Neste último, foi condenado também a treze anos, mas só cumpriu pouco
mais que dois.
Quando questionada se havia imaginado que sua história pessoal ajudaria a mudar a
vida de várias mulheres no Brasil, Fernandes desabafa:

Eu estava lutando pela minha história pessoal. E chegou um momento em que a história
cresceu da maneira que cresceu.
[...] A lei ter saído não quer dizer que ganhamos a guerra, porque nós temos muita resistência
para a aplicabilidade. Então o meu compromisso é que essa lei seja efetiva e eu estou à
disposição para trabalhar nesse sentido. Observo que nos municípios onde ela foi
implementada, as mulheres passaram a ter direitos, passaram a denunciar mais. E ao mesmo
tempo, às vezes a gente encontra um caso ou outro onde a lei não foi devidamente aplicada.
Por quê? Porque ainda é muito forte a questão cultural. A sociedade ainda acha que o homem
é superior à mulher em direitos. Que a mulher ainda deve obediência ao homem. Que a
palavra final de um relacionamento ainda é do homem. Então isso precisa ser desconstruído.
(GOMES, 2010?).

Assim é que, vencido o seu desejo pessoal de justiça, num primeiro momento,
Fernandes se dá conta que “não dá para pensar em mim, tenho que pensar numa causa que é
muito grande” (ENTREVISTA...). As discussões entre representantes da sociedade civil,
órgãos ministeriais e movimentos feministas sobre uma proposta de um Projeto de Lei que
coibisse a violência doméstica e familiar contra a mulher ganham força, e em 16 de novembro
de 2004 o projeto é proposto para apreciação do Plenário. (BRASIL, 2004).
16

3 Do Projeto de Lei 4559/2004 à Lei Maria da Penha: os paradoxos da diferença na luta


contra a violência doméstica contra a mulher

Todo projeto de lei tem em princípio, uma exposição de motivos, que corresponde não
à propositura de um texto legal, mas de argumentos histórico-sociais que, em geral, ensejaram
sua elaboração.
No caso do Projeto de Lei 4559/2004, elaborado pelo poder executivo, apresentado
pelo Presidente da República, um dos argumentos levantados para a sua existência é:

O projeto delimita o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica  e familiar, por


entender que a lógica da hierarquia de poder em nossa sociedade não privilegia as mulheres.
Assim, busca atender aos princípios de ação afirmativa que têm por objetivo implementar
‘ações direcionadas a segmentos sociais, historicamente discriminados, como as mulheres,
visando a corrigir desigualdades e a promover a inclusão social por meio de políticas
públicas específicas, dando a estes grupos um tratamento diferenciado que possibilite
compensar as desvantagens sociais oriundas da situação de discriminação e exclusão a que
foram expostas’. (BRASIL, 2004).

Claramente percebe-se no trecho acima uma distinção entre a noção de cidadania, que
historicamente, se construiu como sinônimo de universalidade, como uma “cidadania para
todos”. Entretanto, as desigualdades produzidas em uma sociedade heretoronormativa que
hierarquiza as relações de gênero, se traduziram em problemas sob a perspectiva da
construção de um sistema universal de proteção social. Assim, apesar da Constituição Federal
da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988) em seu art. 226, § 8º impor ao Estado
assegurar a “assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações” de uma maneira
universalista, demonstrando, expressamente, a necessidade de políticas públicas no sentido de
coibir e erradicar a violência doméstica, as justificativas para uma lei específica contra a
violência à mulher se apóiam nas ações afirmativas, portanto em uma cidadania diferenciada
que tem por objetivo “corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante e/ou
legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais marcado
pela desigualdade e hierarquia [de gênero]”. (BRASIL, 2004).
Devo argumentar que programas de políticas públicas e legislações com base nas
diferenças tendem a ampliar desigualdades ou, até mesmo, a discriminação por classes,
gêneros, raças/etnias e gerações, e a noção de diferença faz com que grupos distintos, em suas
lutas específicas, acabem se distanciando do conceito de cidadania universal. Esse, pelo
menos é um dos argumentos utilizados para questionar a utilização da cidadania diferenciada.
– mas adiante, exporei a perspectiva de Scott (2005), bem diferente desta –. Não é à toa que
17

depois de aprovado o projeto de lei que criou a Lei Maria da Penha, ainda houve
questionamentos sobre a constitucionalidade da Lei, por ferir um princípio de isonomia.
Interessante o argumento utilizado por Fernandes (2014, p. 109) para se contrapor a essas
críticas:

[...] essas mesmas pessoas e instituições [que tentaram provar a inconstitucionalidade da lei]
não se pronunciaram contra as leis que protegem crianças e adolescentes, ou pessoas idosas.
Não levam em conta que a justiça é justa quando trata igualmente os iguais, e desigualmente
os desiguais. E a mulher ainda é vítima de profundos preconceitos, que a fragilizam.

Neste sentido, o princípio da universalidade se vê ameaçado por uma noção de


cidadania diferenciada que caminha em direção a minorias de todos os tipos, justificando
qualidades diferentes de acessos a serviços e a direitos, em um momento em que “[...] a luta
por direitos grupais toma a forma de uma demanda de representação especial nos processos de
decisão política do conjunto da sociedade [...]”. (KYMLICKA; NORMAN, 1997, p. 32,
tradução livre).
Em O enigma da igualdade Scott (2005) levanta a questão “grupos ou indivíduos?” (p.
13). Para ela, “se você seleciona um, ignora o outro” (p. 13). Um exemplo claro disso são as
ações afirmativas questionadas “como uma forma de ‘preferência de grupo’ que discrimina
indivíduos” (p. 12). Surge então outra pergunta importante: “Seria qualquer categoria grande
o suficiente para abarcar os diferentes tipos de pessoas que inclui? (p. 13-4).
Esses questionamentos e afirmações decorrem da leitura que Scott (2005) faz daquilo
que Martha Minow, uma jurista citada por ela, denominou de “o dilema da diferença” (p. 14),
e que a autora preferiu “pensar em termos de paradoxo” (p.14). Neste sentido, afirma:

Há várias definições do que seja um paradoxo. Na lógica, um paradoxo é uma proposição que
não pode ser resolvida e que é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. [...] O uso comum emprega
‘paradoxo’ para designar uma opinião que desafia a ortodoxia prevalente, que é contrária a
opiniões preconcebidas. De certa forma, meus paradoxos compartilham de todos esses
significados, porque desafiam o que, para mim, parece ser uma tendência generalizada de
polarizar o debate pela insistência de optar por isso ou aquilo. Argumentarei, ao contrário, que
indivíduos e grupos, que igualdade e diferença não são opostos, mas conceitos
interdependentes que estão necessariamente em tensão. (SCOTT, 2005, p. 14).

Depois de demonstrar o paradoxo criado em várias decisões judiciais em relação às


cotas nos Estados Unidos, a autora mostra-se favorável à utilização das mesmas e afirma que
a política tem sido descrita como a “arte do possível” (p. 29), mas ela “preferiria chamá-la de
negociação do impossível” (p.29). Dessa forma, observa que tais tentativas podem falhar,
deixando aberta a oportunidade de novas formulações, novos arranjos sociais, novas
negociações.
18

Assim, defende que as melhores soluções políticas na atualidade reconhecem os


perigos de insistir em uma solução final e totalizante (ou grupos ou indivíduos, ou igualdade
ou diferença), portanto afirma: “os paradoxos do tipo que descrevi são o próprio material a
partir dos quais políticas são construídas e a história é feita” (p. 29).
No Brasil, as políticas foram construídas e a história foi feita pensando na diminuição
efetiva da violência doméstica contra a mulher dentre outras medidas, com a aprovação do
Projeto de Lei 4559/2004, transformado na Lei Ordinária 11340/2006, antes dela, afirma Dias
(2010, p. 159):

[...] era barato bater na mulher! A certeza da impunidade permitiu que a agressão contra as
mulheres chegasse ao ponto em que chegou. Por isso, não é exagero afirmar que a omissão do
legislador e o desleixo do Poder Judiciário foram os grandes cúmplices da violência contra a
mulher.

Antes da lei, não existia legislação específica sobre a violência doméstica. Depois, a
lei passou a tipificar e definir a violência doméstica contra a mulher e estabelecer as suas
formas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. As principais mudanças trazidas pela
lei podem ser resumidas em três aspectos:

Os mecanismos da Lei:

• Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher.


• Estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica,
sexual, patrimonial e moral.
• Determina que a violência doméstica contra a mulher independe de sua orientação sexual.
• Determina que a mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz.  
• Ficam proibidas as penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas).
• Retira dos juizados especiais criminais (Lei n. 9.099/95) a competência para julgar os crimes
de violência doméstica contra a mulher.
• Altera o Código de Processo Penal para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva
quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher.
• Altera a lei de execuções penais para permitir ao juiz que determine o comparecimento
obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. 
• Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher
com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da
violência contra a mulher. 
• Caso a violência doméstica seja cometida contra mulher com deficiência, a pena será
aumentada em um terço.

A autoridade policial:

• A lei prevê um capítulo específico para o atendimento pela autoridade policial para os casos
de violência doméstica contra a mulher.
• Permite prender o agressor em flagrante sempre que houver qualquer das formas de violência
doméstica contra a mulher.
• À autoridade policial compete registrar o boletim de ocorrência e instaurar o inquérito
policial (composto pelos depoimentos da vítima, do agressor, das testemunhas e de provas
19

documentais e periciais), bem como remeter o inquérito policial ao Ministério Público. 


• Pode requerer ao juiz, em quarenta e oito horas, que sejam concedidas diversas medidas
protetivas de urgência para a mulher em situação de violência.
• Solicita ao juiz a decretação da prisão preventiva.

O processo judicial:

• O juiz poderá conceder, no prazo de quarenta e oito horas, medidas protetivas de urgência
(suspensão do porte de armas do agressor, afastamento do agressor do lar, distanciamento da
vítima, dentre outras), dependendo da situação.
• O juiz do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher terá competência para
apreciar o crime e os casos que envolverem questões de família (pensão, separação, guarda de
filhos etc.).
• O Ministério Público apresentará denúncia ao juiz e poderá propor penas de três meses a três
anos de detenção, cabendo ao juiz a decisão e a sentença final. (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, [20-?]).

Em face de todas as mudanças, posso ressaltar que o grande avanço da legislação foi
inserir pela primeira vez, em uma Lei Federal, as uniões homoafetivas no sistema jurídico.
Além de proclamar que toda mulher, independentemente de sua orientação sexual, goza dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, ainda afirma que independem de orientação
sexual, todas as formas de violência doméstica devem ser punidas. Ao trazer a tutela estatal
para o ambiente doméstico, transforma estas uniões em entidades familiares (DIAS, 2010). De
acordo com a lei:

Art. 2o. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 5º, parágrafo único.  As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual. (BRASIL, 2006).

Do ponto de vista da efetividade da lei, muita coisa ainda precisa ser feita, do ponto de
vista da quantidade de fenicídios por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), afirma que:
[...] não houve impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões,
por meio de estudo de séries temporais,[constata que] não houve redução das taxas anuais de
mortalidade, comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei. As taxas de
mortalidade por 100 mil mulheres foram 5,28 no período 2001-2006 (antes) e 5,22 em 2007-
2011 (depois). Observou-se sutil decréscimo da taxa no ano 2007, imediatamente após a
vigência da Lei, conforme pode-se observar no gráfico abaixo, e, nos últimos anos, o retorno
desses valores aos patamares registrados no início do período.(GARCIA; FREITAS; SILVA;
HÖFELMANN, 2013).

Fernandes também tem suas críticas à lei. Segundo ela, ainda precisam acontecer
mudanças culturais em termos processuais, sobretudo:
20

Falta conscientização de todos e do poder público. Falta criar mais delegacias da Mulher. É
inconcebível Fortaleza ter apenas uma delegacia da mulher para dois milhões e 500 mil
habitantes. É inconcebível Fortaleza ter um Juizado da Mulher. O Juizado da Mulher tem mais
processos por mês do que todas as outras varas criminais. Então por que não criar mais
Juizados, condensar as Varas, já que recebem poucos casos, para dar mais celeridade aos casos
de violência doméstica? Então é a cultura interferindo numa decisão administrativa. (GOMES,
[2010?]).

Hoje, a luta engajada de Fernandes se mistura à sua própria trajetória individual. Em


2009, nascia juridicamente o Instituto Maria da Penha, que tem como principal função fazer
valer o artigo 1º. da lei 11340/2006, qual seja, “tentar de todas as formas coibir a violência
doméstica contra a mulher, através da educação, da informação”. (GOMES, [2010?]).
Como afirma Butler (2014, p. 19):

não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na
linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria
‘mulheres’, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder
por intermédio das quais busca-se a emancipação.

É claro que a lei trouxe mudanças relevantes em algumas situações, mas que também
pode receber críticas, tanto nas questões de eficácia e nas processuais, com as levantadas
acima, quanto por ainda se colocar a partir de uma perspectiva da fragilidade absoluta da
mulher, retirando dela a possibilidade de ser, em algumas situações, sujeito de sua própria
história, a partir de uma visão de mundo ainda circunscrita na heteronormatividade.

4 À guisa de conclusão

Sem dúvida a Lei 11340/2006 pode ser considerada uma ação afirmativa de cidadania
diferenciada que representa tanto uma vitória individual – a luta de Maria da Penha Maia
Fernandes por justiça, empoderada pelos organismos internacionais – quanto a coletiva, na
medida em que foi transformada em pauta pelos movimentos feministas que tomaram a sua
causa como a de todas as mulheres do Brasil, e é claro, conquistaram mais avanços...
Não se pode negar que a violência contra a mulher, fruto de um processo histórico-
social de dominação precisa de ações educativas, preventivas e punitivas. Entretanto,
parafraseando Scott (2005), o grande paradoxo é que os termos da luta contra a violência à
mulher tanto recusam como aceitam as identidades de grupo sobre as quais esta violência está
assentada, entre “mulheres vulneráveis” e mulheres em mesma condição de igualdade com os
homens ou entre a heteronormatividade e a proteção à mulher consciente de que é sujeito e
21

não objeto da sua própria história, o paradoxo da diferença continua e a luta das mulheres por
dias mais respeitosos ainda está só començando...

Referências

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