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SUMARIO

Introdução 1

1. A Idéia de Milagre 5

2. A Critica aos Milagres 19

3. Os Propósitos dos Milagres 33

4. A Atualidade dos Milagres 49

5. Ferramentas da Cura 65

6. Práticas de Cura Proibidas 79

7. Relatos de Cura 99

8. Avaliação da Cura 119

9. A Visão Adventista da Cura 131

10. Metáforas da Cura Total ..,.... . . ............ . .......... . .... .... . . .......................... 157

Conclusão 165

Bibliografia 175
Você pode viver como se nada fosse um milagre ou como se
tudo fosse um milagre.
Alben. Einsfein (1879-1955), físico alemão americano

O assunto dos milagres, com destaque para a cura divina, tem merecido conside-
rável espaço nos meios de comunicação, embora não se possa dizer a mesma coisa sobre
a produção teológica na área (no Brasil, pelo menos). O interesse da mídia se deve, apa-
rentemente, ao próprio contexto de mudanças pelas quais o mundo passa O miraculoso
é novamente uma categoria aceita, valorizada e explorada Aparece como fator real da
espiritualidade ou simples estratégia de *marketing no mercado religioso.
Numa era marcada por ciência, tecnologia, fé, espiritualidade e superstições, as
coisas voltaram a ser imprevisíveis. Em ritmo acelerado, a aquisição do conhecimento
derruba mitos, espalha versões e não dá tempo para os novos fatos ganharem 3-tatus de
verdade. O volume de conhecimento do mundo dobra no espaço de meses. Isso tem
um impacto tecnológico, social, político, cultural e até mesmo espiritual. O excesso
de dados afeta a própria filosofia, que sempre soube trabalhar com grande volume de
informações. Os filósofos agora têm de se concentrar no essencial.
São muitas as vozes. Isso aumenta a incerteza. As pessoas, sem saber em
que acreditar, desconfiam de tudo ou crêem em coisas absurdas. Ceticismo e
credulidade convivem lado a lado. Há um paradoxo. A ciência virou oráculo e
a fé invadiu os laboratórios. O mundo se tornou, ao mesmo tempo, científico e
místico, secularizado e espiritual.
Se Deus foi considerado "morto" por alguns filósofos no começo do século 20,
entra supervivo" na arena popular no século 21. Um estudo publicado na revista
Nature mostrou que a maioria dos cientistas não crê em Deus (60,7% deles expressam
descrença ou dúvida). A parcela dos que crêem é de 39,3% e não mudou ao longo
dos anos como se deduz de estudo semelhante feito em 1914 e publicado em 1916
pelo pesquisador James H. Leuba. Outra pesquisa semelhante restrita aos maiores
cientistas da Academia Nacional de Ciências, dos Estados Unidos, revelou que 72,2%
deles não crêem em Deus, 20,8% são agnósticos e apenas 7% crêem em Deus. Os ma-
temáticos são os mais crentes (14,3%) e os biólogos, os mais descrentes (5,5% crêem).'
2 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Contudo, a descoberta surpreendeu os autores da pesquisa atual, que esperavam urna


descrença muito maior. Independente do que os cientistas acham, Deus revive para
a maioria das pessoas. Pesquisa realizada em 1997 pelo instituto Vox Populi, entre a
população adulta de todas as regiões brasileiras, revela uma grande aceitação de Deus
no Brasil. À pergunta "Você acredita em Deus?", 99% responderam "sim". 2,
Tanto a ciência quanto a fé têm sido exaltadas, indicando duas posturas ex-
tremas em relação aos milagres (ver a figura 1). Por um lado, muitos insistem que a
crença no sobrenatural é parte de uma visão de mundo ultrapassada e desacreditada
pela ciência.• Por outro, ressurge o sobrenaturalismo místico e ocultista, crente até
em poderes de cristais e cores. •
Entre os extremos, transitam os cristãos — católicos, ortodoxos e protestantes.
Alguns, tradicionais, cortejam a ciência e o ceticismo, restringindo a ocorrência de
milagres mediante o dom de cura aos tempos bíblicos; outros, pentecostais e carismá-
ticos, se aproximam do misticismo e da superstição, atribuindo origem sobrenatural
a uma variedade de fenômenos.

...esoterismo 'misticismo 'superstição —>ACEITAÇÃO

...cristianismo tradicional I cristianismo carismático...

NEGAÇÃO I- ateísmo I naturalismo I deísmo...


Figura 1: Espectro das posturas atuais diante dos milagres, indo do
ceticismo ateistico ao credulismo acrítico

PANORAMA
• Foi nesse contexto que surgiu a idéia de desenvolver este estudo sobre cura milagrosa
ou divina. Diante de tantas reivindicações e com tão poucos estudos sérios em português
nessa área, tornou-se importante reunir os fatos e ver o que a Bíblia diz sobre o assunto. "No
princípio era o milagre. Todo o mattomeçou com as explicações", ironizou o humorista
Millôr Fernandes. 3 No entanto, sem as explicações, até os genuínos milagres podem
acabar caindo em descrédito, por causa dos falsos milagres.
Ao perceber certa ambivalência em relação aos milagres em minha própria comuni-
dade de fé, achei que o assunto merecia atenção. Não vou dizer que somos uma geração de
crentes incrédulos, mas gostaria de ver na igreja a cultura de uma fé mais viva e a busca de
um encontro mais real com o sagrado. Sei que não é fácil equilibrar doutrina e experiência,
nem combinar discernimento e entusiasmo. Mas vale tentar.
Tendo isso em vista, os objetivos básicos do estudo são: (1) resgatar conceitos e
parâmetros bíblicos para avaliar os supostos fenômenos de cura divina reivindicados
por diversos segmentos religiosos; (2) examinar a posição adventista sobre o tema; (3)
Introdução 3
incentivar a integração de prevenção, medicina e oração para a cura, numa perspectiva
holística cristã; (4) ampliar a compreensão do público leitor sobre o assunto; e (5) esti-
mular a fé no Deus operador de milagres, dentro de um equilíbrio bíblico.
Espero que o livro tenha uma relevância especial para a Igreja Adventista, uma
vez que ela defende a continuidade do dom de cura (e de todos os outros dons), mas
pouca atenção (nos níveis teórico e prático) tem dedicado a ele. Nossas publicações
têm apresentado raras abordagens específicas sobre o tema. É claro que as instituições
adventistas de saúde fazem em geral um excelente trabalho, mas, biblicamente, há
uma dimensão adicional a ser implementada.
Numa época em que a medicina "somatista" não responde mais à busca es-
piritual das novas gerações, a igreja deve ser capaz de oferecer algum tipo de cura
holística/total. Se não o fizer, estará jogando muita gente no misticismo perigoso
da Nova Era. Chega uma hora em que mesmo quem tem todo o aparato da ciência
à sua disposição descobre que precisa de Deus. Se na época de Cristo a saúde era
grandemente valorizada, até pela falta de recursos e a triste perspectiva de vir a
morrer na miséria, hoje a saúde continua sendo altamente desejada, até pelo culto
do corpo e o desejo de ter unia vida ativa e criativa. E, nesse contexto, as pessoas
estão redescobrindo que o bem-estar envolve inúmeros fatores no espectro fisico/
psicológico/social/espiritual.
O desequilíbrio nessa área não está restrito à Igreja Adventista. George W
Reid, ex-diretor do Instituto de Pesquisas Bíblicas, da Associação Geral, inicia um
importante artigo recente afirmando que "o grau de interesse bíblico em saúde e
cura está sub-representado nos estudos bíblicos e teológicos contemporâneos". 4 John
Wiilkinson informa que, no que diz respeito à teologia, a palavra "curar" não apare-
cia em nenhum livro-texto padrão até há pouco tempo. "Karl Barth foi o primeiro
teólogo moderno a discutir saúde e cura em sua obra Church Dogrnatics. Nisso ele
foi seguido por Paul Tillich e Jürgen Moltrnann. Contudo, a cura não-médica ainda
precisa alcançar respeitabilidade."
Uma explicação sobre o conteúdo e a estrutura do livro talvez seja útil também.
A obra é baseada em uma pesquisa que realizei para o mestrado em teologia pelo
SALT-Unasp. O título original era: "O Toque da Fé: Paradigmas Bíblicos da Cura
Divina". Para tirar o caráter técnico do trabalho e dar uma cara mais normal de livro,
os capítulos originais foram subdivididos, algumas partes e inúmeras notas foram
suprimidas e comentários foram acrescentados A essência, porém, permanece. O leitor
interessado em uma documentação mais completa pode consultar a dissertação original,
disponível na biblioteca do Unasp, em Engenheiro Coelho, SP. Quase nem é preciso
dizer que o fato de citar autores seculares e cristãos não significa necessariamente uma
concordância com a sua cosmovisão ou teologia. Há autores equilibrados e sólidos em
certos pontos e deficientes em outros.
4 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

O livro está estruturado em dez capítulos. Embora o âmago seja a cura divina,
pareceu necessário incluir uma análise sobre milagres em geral, a fim de servir de
plataforma para as discussões mais específicas. A abordagem vai desde a definição de
milagre do ponto de vista bíblico, passando pelas teorias sobre a continuidade dos
dons miraculosos ao longo da História, até a simbologia da árvore da vida.
Espero que, mais do que informação, você receba inspiração. Reconheço que o
material contém alguns detalhes mais ou menos teóricos, mas a leitura flui bem. Certa
predominância do elemento cognitivo no texto é compensada pelo interesse natural que
o assunto desperta em muitos leitores e pela variedade de tópicos abordados. Afinal,
o livro foi escrito para um público mais amplo, não para especialistas. Embora o tom
do texto seja sereno, você pode ler com paixão.

AGRADECIMENTOS

Num trabalho como este, a dívida é sempre grande. Por isso, desejo registrar
alguns agradecimentos. Primeiro, agradeço à Casa Publicadora Brasileira, organi-
zação que patrocinou parte de meus estudos, o tempo e o apoio financeiro indis-
pensáveis. Em segundo lugar, expresso minha gratidão ao Dr. José Carlos Ramos,
meu orientador na pesquisa original do trabalho. Em terceiro lugar, agradeço aos
colegas ou professores, a exemplo do Dr. Antonio Estrada, que fizeram sugestões
ou comentários úteis. Em quarto lugar, vai um reconhecimento especial para meu
amigo 'e editor Vanderlei Dorneles e a equipe editorial da Unaspress. O apoio e o
trabalho competente de vocês não têm preço.
Por fim, eu não poderia deixar de dizer obrigado ao meu irmão Dr. Gideon C. De
Benedicto, por ter me hospedado em sua casa durante certa fase da pesquisa; a meus
pais Geraldo e Benedita, por terem me transmitido, através do ensino, do exemplo e
de uma fé inabalável, o amor ao Criador e o interesse pelo ser humano, a natureza e
as coisas sagradas; e, sobretudo, à minha esposa Luciene e aos filhos Tiago e Larissa,
pelo apoio, o desprendimento e a paciência.
A Deus, o Absoluto operador de milagres, a única Fonte da verdadeira cura, os
agradecimentos são mais diretos e pessoais, Sem Ele, nada do que se fez teria sido feito.

NOTAS
' Ver Edward J. Lasson e Larry Witham, "Scientists Are Srill Keeping the Faith", Nature 386
(1997): 435-436; e "Leading Scientists Still Reject God", Nature 394 (1998): 313.
'Ver Roberto Pompeu de Toledo, "Crer em Deus, hoje'', Veja, 2 de abril de 1997, 96-100.
Mdlôr bernandes, Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos, 7 ed (Porto Alegie: L&PM, 1994), 310.
' George W Reid, "Health and Healing'', em Handbook of. Seventh-day Adventzst Theolov, ed.
Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Revicw and Herald, 2000), 751.
John Wilkinson, The Bzble and Healnzg: A Medical and Theological Comnzentary (Edinburgh:
Handsel; Grand Rapids: Eerdmans,
1

A IDEIA DE MILAGRE

Os milagres não são contrários à natureza, mas ao que con-


hecemos sobre a natureza
Santo Agostinho (354 430), teólogo cristão e bispo de Hipona

Você crê em milagres? Mesmo na época atual, mareada pela tecnologia e a


ciência, a palavra "milagre não deixou de freqüentar o imaginário popular. Ao
contrário, continua aparecendo nos momentos críticos da experiência humana. Se
alguém tem uma doença grave, diz-se que só se salvará por um milagre; se acontece
um acidente perigoso e há sobreviventes, foi por milagre. Quando a pessoa deseja
mudar de vida, pede o milagre do novo nascimento; quando sente que foi transfor-
mada, anuncia o milagre da regeneração. Morre um "santo", milhares o pranteiam
em fila indiana e pedem que continue fazendo milagres; nasce um bebê, o pai se
emociona com o milagre da vida.
Desde tempos imemoriais até o século 21, os milagres estão virtualmente presentes
em todas as• tradições religiosas. Se em vários momentos os eruditos tentaram colocá-los
num beco sem saída, as massas populares lhes abriram amplas avenidas. O miraculoso
sobreviveu aos ataques de parte da intelectualidade ocidental moderna e voltou como
uma categoria filosófica e experiencial sedutora e mesmo avassaladora.
No judaísmo, Yahweh é o grande operador de maravilhas. A IVIoisés, fundador de
Israel, são creditados feitos impressionantes, assim como aos profetas Elias e Eliseu, entre
outros. Para a maioria dos milagres registrados na Bíblia, há paralelos na literatura rabí-
nica, embora nem todos os grandes rabinos alegassem possuir poderes sobrenaturais. No
cristianismo, a vida de Jesus é pontilhada de eventos miraculosos. Os apóstolos herdaram
Seu poder. Virtualmente todas as vertentes do cristianismo têm reivindicado milagres.
No islarnisrno, embora o Alcorão não atribua milagres ao seu fundador Maotné
(c. 570-632 d.C.), como o faz em relação a Moisés, Salomão e Jesus, a hagiografia
posterior se encarregou desse detalhe. O islainismo popular, em especial sob a influên-
cia sufit.a, abunda em milagres. Começando com os milagres descritos por Ibri Ishak,
primeiro biógrafo de Maomé, o número de narrativas de milagres atribuídos ao profeta
foi crescendo até atingir cerca de três mil. O próprio Alcorão, que teria sido ditado
pelo anjo Gabriel, é considerado um milagre, por seu estilo sublime.
6 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Nas religiões orientais, como o hinduísmo e o budismo, acredita-se que as prá-


ticas ascéticas e o conhecimento de fórmulas místicas confiram ao praticante poderes
mágicos, apesar de os grandes mestres considerarem a preocupação com milagres uma
espécie de entrave ao insight espiritual. A Índia, com o seu grande número de avatares
(reencarnações de deuses hindus) e heróis semidivinos, tornou-se uma terra de maravi-
lhas (e truques de mágica, é claro). Na China, se o confucionismo privilegiava a ética
social em detrimento do sobrenatural, o taoísmo de Lao-Tsé (c. 604-531 a.C.) não
resistiu ao apelo do miraculoso e, num nível popular, criou um conjunto de crenças
em- taurnaturgia e magia.
No mundo greco-romano, mágicos, taumaturgos (como Apolônio de Tiana) e
deuses (como Asclépio, ou Esculápio, no Epídauro; e Apoio, no oráculo de Delfos)
tinham vaga garantida no show do sobrenatural. Se no Egito e na Babilônia não havia
muitos "milagres formais" (no sentido que a palavra tem hoje), é porque certos tipos
de intervenção divina eram considerados normais.
Mas o que é milagre? Qual a diferença entre milagre, sinal, prodígio,
maravilha e fato natural? Apesar de sua constância na cena humana, o milagre
não é facilmente compreendido. Poucos vocábulos religiosos têm gerado tanta
controvérsia. Os próprios leitores da Bíblia podem ter dificuldades. Os autores
bíblicos certamente percebiam a existência de algum tipo de "lei natural", mas
não estavam preocupados em apontar uma demarcação rígida entre providência
geral e intervenção especial. Porém, com um pouco de paciência, podemos chegar
ao conceito bíblico de milagre.

CONCEITO BÍBLICO

Etimologicamente, "milagre" vem do latim miraculum ("objeto de admira-


ção", "maravilha'', "prodígio"). Além do português, o vocábulo latino deu origem
ao espanhol milagro, ao inglês miracle e ao italiano miracolo, entre outros. Mas
essa origem ainda não diz muita coisa. Precisamos ver como a Bíblia e os teólogos
usam e conceituam o termo.
O hebraico não possui uma palavra específica para "milagre". Os principais
termos do Antigo Testamento que se aproximam do significado de "milagre" em
português são:
• Gedolôt (somente no plural). Em geral, essa palavra indica as "poderosas ações"
de Deus ou as "grandes coisas" realizadas dentro da Sua esfera de poder e soberania.
O termo é aplicado apenas urna vez à ação humana, quando o rei de Israel pede para
Geazi revelar-lhe todas as "grandes obras" (gedolôt) que Eliseu, "o homem de Deus",
estava fazendo (2Rs 8:4).
•• Nipla'ot (somente no plural). Assim como gedolôt, o termo niplaiot também
aponta para a soberania de Deus, da qual os milagres são apenas um aspecto. Ge-
A Idéia de Milagre 7

ralmente traduzido por "maravilhas", ele tanto pode ser usado para indicar os atos
criadores e salvíficos de Deus corno para ressaltar Seus justos juízos.
• 'Ot (e niôpet). O significado básico de 'ot é "marca", "sinal", e o de môpet• é
"prodígio", "maravilha". As duas palavras são quase sinônimas e às vezes aparecem
juntas. O "sinal" aponta em direção a Deus e a "maravilha" chama a atenção para
uma manifestação especial do Seu poder. 'Ot aparece 79 vezes no Antigo Testamento.
A Septuaginta traduz 'ot por semeton e môpet por teras; e a Vulgata, respectivamente,
por signum e portentum,
Além dessas palavras, podem-se citar ainda nes, que quer dizer "insígnia", "em-
blemf, "advertência", e só adquire o significado de "ação miraculosa" na literatura
pós-bíblica; pele', que aparece apenas nos livros poéticos, enfatizando os atos de Deus
em favor do Seu povo; e o verbo pl' (do qual derivam os vocábulos nip/a'ot e pele),
que indica algo além da compreensão humana.
As principais palavras gregas relacionadas com "milagre" no Novo Testamento são:
• Dynamis. G significado básico desta palavra é "habilidade inerente" e, por
isso, ela foi apropriadamente vertida para o português como "poder" — poder para
operar um ato miraculosa Os escritores a usam para se referir a atividades de origem
sobrenatural ou divina. Dynamis é empregada 119 vezes no Novo Testamento.
• Semeion. Quase sempre traduzido por "sinal", o termo semeion (marca dis-
tintiva, indicação) é freqüentemente usado para evidenciar a autoridade divina, mas
pode também se aplicar aos milagres de origem demoníaca e a portentos da natureza.
Semeion, que na Septua.ginta é a tradução predominante da palavra hebraica 'et, apa-
rece 77 vezes no Novo Testamento. Entre os autores dos evangelhos, João é seu maior
adepto. Isso não é de se surpreender, pois, se a palavra terás, mencionada a seguir, apela
para os sentidos e a imaginação, semeion busca o entendimento e a fé, apontando para
algo além de si mesmo; e sabemos que João queria levar seus leitores a crer em Jesus
como "o Cristo, o Filho de Deus" (20:30 e 31). Semio é prefixo de várias palavras
portuguesas, como "semiótica" (ciência geral dos signos).
• Teras. Este vocábulo, que aparece 16 vezes no Novo Testamento, vem da
mesma raiz grega que deu origem a palavra "terror" Significa "prodígio", pressá-
gio", "portento", "maravilha", e é utilizado para caracterizar a reação das pessoas
em face de algo espetacular. Téras define também as maravilhas" humanas ou
diabólicas e, por isso, os escritores neotestamentários sempre frisam se a obra
maravilhosa vem de Deus ou não.
Outras palavras usadas para destacar a reação das pessoas são thaumásion, "coisa
admirável" ou "coisa assombrosa; endoxon, "coisa gloriosa"; e paradoxon, "coisa es-
tranha". Além disso, os que presenciaram certos milagres de Jesus "maravilharam-se"
(ethaumazon [Mc 5:20]), "assombraram-se" (exeplessonto [Mc 7:37]), "admiraram-
se" (ethambethesan [Mc 1:27]) e ficaram cheios de "temor" (phobos [Lc 7:16]) ou de
"espanto" (thambos [Lc 4:36]).
8 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

• Ergon. Traduzido por "obra", este termo aparece 170 vezes no Novo Testa-
mento, incluindo também o plural erga, mas só em algumas ocasiões é empregado
com o sentido de "milagre". No evangelho de João, que usa o singular ou plural
de ergon 17 vezes, Jesus quase invariavelmente Se refere a Seus milagres como erga,
"obras". Porém, o termo aponta para qualquer atividade de Jesus, miraculosa ou
não. Ergon significa "fazer", "agir", "operar", "trabalhar". As "obras" de Deus incluem
tanto o que Ele faz na natureza quanto o que faz por Seu povo, ou seja, abrangem
atos criadores e redentivos.
No Novo Testamento, as palavras "milagre", "maravilha" e "sinal" ocasional-
mente aparecem juntas, como em Atos 2:22, II Tessalonicenses 2:9 e Hebreus 2:4.
A expressão semeia kai terata («sinais e maravilhas"), que ocorre com freqüência,
é um eco deliberado do Antigo Testamento. Ao contrário do que dizia a tradição
acadêmica, a terminologia utilizada pelos cristãos primitivos para designar os mila-
gres não diferia essencialmente da usada por autores pagãos contemporâneos para
indicar os seus milagres.'
Teologicamente, corno definir "milagre"? No sentido bíblico, o milagre é uma
intervenção graciosa, visível e intencional de Deus no mundo, com múltiplos pro-
pósitos O milagre não é o sagrado em si mesmo, mas um sinal que aponta para ele.
Entre vários teólogos mais recentes, a tendência é acentuar o aspecto do sinal, conceito
que será revisitaclo no capítulo 3. Milagre, nesse sentido, não deve ser visto como
uma prova, algo a ser detectado cientificamente, mas como uma atuação divina, a ser
captada pela fé. Na antiguidade, a ênfase não estava na exeepcionalidade do fato, mas
na sua significação espiritual, no elemento divino. -
Em suma, como diz, o teólogo Norman Geisler, milagre é um ato especial de
Deus no mundo natural, alguma coisa que a natureza por si mesma não faria. Da
perspectiva humana, "é um evento incomum ('maravilha') que transmite e confirma
uma mensagem incomum ('sinal') por meio de um poder incomuna ('poder')", da
"perspectiva divina, é um ato de Deus (`poder') que atrai a atenção do povo de Deus
('maravilha') para a Palavra de Deus (por um `sinalp". 2
As definições apresentadas são úteis, mas é preciso aprofundar o enfoque. Nesse
sentido, devemos acrescentar que há três maneiras básicas de se encarar o milagre,
às quais chamarei de: (1) perspectiva naturalista, (2) perspectiva antinaturalista e (3)
perspectiva intervencionista.

PERSPECTIVA NATURALISTA

Para os adeptos do naturalismo, o milagre é apenas um prodígio condicionado


à natureza e à percepção do espectador. Ou seja, o "milagre" na verdade não seria
milagre, mas apenas um fenômeno natural desconhecido ou mal interpretado pelo
observador Posição simpática a Santo Agostinho (embora não adotada por ele),' o
qual se tornou a grande autoridade antiga no assunto de milagres, essa é a perspectiva
A Idéia de Milagre • 9

de muitos dentistas atuais e também de alguns adeptos da Nova Era. Isso acontece
porque, num nível mais elaborado, a Nova Era adota o conceito panteísta, e no pan-
teísmo não há lugar para um Deus pessoal atuante.
Vista pelo ângulo naturalista, a destruição de Sodoma e Gomorra (Gn 19)
não teria ocorrido pela mão do anjo do Senhor, mas pelo incéndio do betume local
durante um terremoto. A mulher de Lá não teria se transformado numa estátua
de sal, mas sido levada por uma gigantesca onda do Mar Morto, e o que Lá viu ao
olhar para trás, depois de estar seguro na montanha, foi um bloco de sal do tama-
nho de uma pessoa, na praia. A escuridão que cobriu o Egito, na época do êxodo,
teria sido apenas um eclipse. A estrela que guiou os magos até Jerusalém não seria
nenhum fenômeno especial, mas uma conjunção de planetas ou o aparecimento
de uma supernova. A ressurreição de Lázaro não seria o retorno de um morto à
vida, mas o despertar de um coma ou de um estado catatônico (no estado de coma,
argumenta-se, a audição é o último sentido a se perder, e, por isso, Jesus desperta
Lázaro com um grito).
• Essa perspectiva tem atratividade para muitas pessoas porque desloca total-
mente o foco do sobrenatural para o natural, do poder divino para a percepção (no
caso, ignorância) humana, da fé para a ciência. Quando o ser humano evoluir, ele
compreenderá; quando se tornar "deus" e tiver tecnologia, fará "milagres". Mas é
uma posição biblicamente insustentável. Ainda que alguns milagres pudessem ser
atribuídos à ação espontânea da natureza, como o dilúvio e o incêndio de Sodoma
e Gomorra, outros não poderiam. Como dizer que a ressurreição de Jesus é um
fenômeno natural (espontâneo)?
Além disso, a própria Bíblia interpreta esses casos como milagres. Por exemplo,
a divisão do Mar Vermelho é atribuída à ação direta de Deus, embora admita o uso
da natureza no processo: "Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o Senhor
fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em
seco, e as águas foram partidas" (Ex 14:21). Neemias classifica esse ato de "sinais e
maravilhas" (9:10 e 11).
Num livro interessante, o físico Colin Humphreys, da Universidade de Cam-
bridge, tenta provar cientificamente que os milagres do êxodo aconteceram, mas
adota explicações naturalistas para os eventos descritos na Bíblia. Para ele, que propõe
uma nova rota para o êxodo e identifica o Monte Sinai com o vulcânico Monte
Bedr, na Arábia, o elemento miraculoso estava no fator tempo. Por exemplo, no
exato momento em que o povo precisava cruzar o Jordão, a água foi bloqueada por
um mecanismo natural (um terremoto), como teria ocorrido em outras ocasiões.
Na concepção do cientista, os milagres ocorreram, mas não diretamente pela mão
de Deus . 4 Eu diria que Deus criou ou causou os mecanismos naturais. Enquanto
Humphreys enfatiza primariamente o fator natureza e secundariamente a intervenção
divina, eu inverteria a ordem. •
10 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Mudando um pouquinho o foco, alguém poderia argumentar que a ciência e a


tecnoiogia de hoje conseguem fazer proezas — como as cirurgias do cérebro, a quimio-
terapia, os transplantes de órgãos e a clonagem — que no passado seriam consideradas
milagres. Isso é verdade, com duas ressalvas: (1) a tecnologia de hoje é de hoje, e não
de ontem; (2) a ciência atual, por mais sofisticada que seja, não consegue repetir
experiências que a Bíblia considera "milagres" ou "sinais", como ressuscitar mortos
em decomposição, e parece improvável que algum dia o consiga. Há coisas que a
ciência, por mais que avance, não será capaz de explicar. Pela natureza dos milagres
bíblicos e suas circunstâncias, ou eles não aconteceram e são mitos, ou aconteceram
e são realmente milagres.

PERSPECTIVA ANTINIATURALISTA

Para os sobrenaturalistas medievais, vários filósofos racionalistas dos séculos 18


e 19 e alguns cristãos fundamentalistas, o milagre é uma anulação ou suspensão das
leis da natureza por iniciativa divina. "Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à
violação dessas leis divinas e eternas", escreveu Voltaire (1694-1778). Como seria um
contra-senso o Criador violar leis eternas e imutáveis, ele conclui que "é absurdo crer
em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade". 5 O problema, vê-se logo, está
na definição equivocada de "milagre".
Assim também ensinou a Igreja Católica por muito tempo, destacando o mi-
lagre como "superior, diferente ou contrário à natureza". Dessa definição clássica,
surgiu urna segunda fórmula que, em meados do século 19, chegou a entrar em obras
de referência católicas: o milagre COMO "suspensão, derrogação ou violação das leis
da natureza". Parece que essa definição não surgiu com Tomás de Aquino, embora
tenha sido atribuída a ele. Aquino teria falado em milagre apenas no sentido de algo
fora da ordem habitual da natureza. Porém, não há dúvida de que ele interpretava o
milagre num sentido "forte", ou seja, como um evento além do poder da natureza,
suscitado pelo poder divino. 6
Autoria da idéia antinaturalista à parte, é evidente que, se o milagre vem
de Deus, ele não deve ser uma transgressão das leis da natureza. João conceitua
pecado como "transgressão da lei" (1Jo 3:4), e Deus não pode pecar, pois, por
definição, é perfeito e santo. Embora o autor bíblico esteja falando primaria-
mente no sentido moral e espiritual, isso vale também para o âmbito físico e
natural. Se Deus é o criador das leis da natureza e as contraria, está em contra-
dição; porém, Ele não Se contradiz. Santo Agostinho, para quem um portento
não ocorre contrariamente à natureza, mas contrariamente ao que conhecemos
como natureza, já se perguntava: "Como iriam ser contrários à natureza os
efeitos produzidos pela vontade de Deus, se é vontade de tal criador a natureza
de cada coisa criada?"'
A Idéia de Milagre 11

É o sobrenaturalismo exacerbado e místico que dá origem ao "deus-das-lacunas",


em que o poder divino é invocado para justificar tudo o que não pode ser explicado,
e também ao antinaturalismo. Nos evangelhos apócrifos (livros não-canônicos escri-
tos durante o segundo e terceiro séculos d.C. por vários grupos religiosos), algumas
histórias sobre a infância de Jesus, mais que milagrosas e sobrenaturais, são bizarras e
antinaturais. Não seguem o curso normal da natureza. Árvores que falam, tesouros
que aparecem ou desaparecem misteriosamente e mágicos que saem de garrafas fi-
cam melhor em contos de fadas. Essas fantasias, que floresceram também na Idade
Média, diferem essencialmente dos relatos bíblicos. Na Bíblia, por exemplo, o cego
é curado miraculosamente, mas é através dos olhos que passa a ver. Se aqueles "mi-
lagres" mitológicos realmente acontecessem, isso significaria que a natureza estaria
sendo invadida por um poder alienígena. Contudo, nos relatos bíblicos, a natureza
é abordada pelo próprio Deus da natureza.
Leonard Brand, cientista adventista, usa a imaginação para mostrar que o milagre
não deve ser encarado como magia caprichosa, que contraria as leis naturais: •

Imagine que Deus tenha escrito num microfilme todas as leis que governam o Universo.
No ano 1500 d.C., por exemplo, os cientistas conheciam uma pequena porcentagem
dessas leis [veja a figura 2]. Finalmente, as pessoas aprenderam mais sobre elas. No final
da década de 1990, as pessoas conheciam uma grande proporção de leis, mas muitas
ainda permaneciam por ser descobertas. Imagine que alguém inventou uma máquina
do tempo que nos permitisse trazer até nossos dias uma pessoa que viveu em 1500 d.C.
Nós a levamos a um supermercado e a porta se abre sozinha quando nos aproximamos.
Entramos num carro, viramos urna chave e a estranha carruagem sai deslizando sobre a
estrada. Vamos para a casa, apertamos uma pequena alavanca na parede e a luz aparece.
A essa altura, nosso pobre companheiro pode fugir aterrorizado com essas manifestações
sobrenaturais. Por que ele pensaria assim? Tudo se deve à simples diferença entre a sua
maneira de pensar e a nossa. Ele não está familiarizado com as leis que governarn o
.

funcionamento de carros e a eletricidade.'

Essa ilustração não quer dizer que não exista sobrenatural, ou que um dia pode-
remos fazer tudo o que Deus faz; apenas mostra que, pelo fato de não entendermos o
todo das leis estabelecidas por Deus, não devemos sair por aí dizendo que, os milagres
são um rompimento da ordem natural.
No Rássado, observa Brand, muitos religiosos temiam admitir o funcionamento das
leis naturais porque achavam que Deus perderia o Seu papel no mundo e seria expulso
da nossa existência. Essa visão implica que, se nós podemos entender como as coisas
funcionam, então Deus não tem parte nelas; ou, se Deus está envolvido num processo,
então ele não funciona através de leis naturais. Isso é tão indefensável quanto dizer que,
desde que" entendemos como um computador funciona, um ser inteligente não deve
ter estado envolvido ria sua origem. Simplesmente não tem lógica.
12 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

Leis conhecidas

Todas as leis que governam o Universo

1500 d.C.
Lei natural "sobrenatural -
Leis conhecidas

Todas as leis que governam o Universo

Figura 2: Relação entre a lei natural e o "sobrenatural", em 1500 e 200W

PERSPECTIVA INTERVENCIONISTA

Atualmente, boa parte dos teólogos cristãos encara o milagre como uma ação
especial de Deus no mundo, dentro de Sua constante atividade, sem romper a ordem
natural. Isso significa que o milagre não é contrário à natureza, mas sim às nossas
expectativas em relação ao funcionamento da natureza Não existiriam, propriamente
falando, leis da natureza para serem violadas, mas sim hábitos de expectativas. Segundo
esta abordagem, Deus é o mantenedor de todo o Universo, atuando sem parar, mas em
certos momentos cria "efeitos especiais" para implementar Seus desígnios, socorrer os
necessitados ou impressionar os espectadores. Assim como uru filme hollywoodiano
tem cenas comuns, plausíveis, e também efeitos especiais, Deus igualmente mantém
o Universo num ritmo normal, mas de vez em quando inclui cenas extraordinárias,
para incrementar a história, valorizar um ator ou conquistar a platéia.
Neste ponto, convém ressaltar que a idéia de que Deus mantém todas as coisas
tem apoio na tradição judaica e forte base bíblica. Para os olhos da fé, os milagres em
câmera lenta são tão autênticos quanto os milagres instantâneos. No judaísmo há uma
diferenciação entre os chamados milagres "revelados" ou "explícitos", em que Deus
irrompe sobrenaturalmente no mundo, alterando o esquema normal da natureza, e os
milagres "ocultos", em que Deus renova constantemente o milagre da criação, através
de atos corriqueiros e despercebidos pela maioria. Em geral, os rabinos incentivam as
pessoas a reconhecer os inúmeros milagres "ocultos" que acontecem todos os momentos
(o ar que respiramos, o nascer e o pôr-do-sol, a beleza das flores) e a louvar a Deus
por Seu poder infalível .'° Isso pode dar a impressão de que os judeus não estavam
interessados nos milagres "explícitos", mas não é verdade. Os escribas e fariseus pedi-
ram um milagre como credencial messiânica de Jesus (Mt 12:38), talvez a libertação
do poder de Roma, e Paulo escreveu: "Porque tanto os judeus pedem sinais, como os
gregos buscam sabedoria" (1Co 1:22). Para os autores bíblicos, Deus é a sustentação
de tudo. "Nele vivemos, e nos movemos, e existimos", mencionou Paulo (At 17:28).
A Idéia de Milagre 13

Jesus afirmou: "Meu Pai trabalha até agora e Eu trabalho também" (Jo 5:17). Deus
exerce Sua providência até em relação aos animais.
Como acontece a ação divina na natureza, não sabemos. É um mistério. James
Nelson sugere que essa ação não deve ser entendida como uma intervenção ocasional,
uma ação externa ao Universo, mas sim como uma atividade constante envolvendo
e sustentando o processo inteiro. Ele usa a analogia da interação entre a mente e o
corpo para ilustrar a relacionamento entre Deus e a criação. Deus atuaria como a alma
do mundo, embora não seja a alma do mundo. Para Nelson, Deus não deve ser visto
como "um agente causativo manipulando partículas elementares ou como uma causa
entre outras no mesmo nível de causalidade". A ação de Deus está em uma categoria
diferente das outras ações/causas. A mente de Deus em relação ao mundo, diz ele,
"funciona como um programa de computador ou como os padrões na tela de uma
TV são configurados, sem interferir nas leis físicas do sistema"» '
Esse tipo de arrazoado tem duas vantagens: (1) apresenta uma ponte/transição
"suave", digamos, entre a ação de Deus e as leis da natureza, evitando a idéia de que
a ação divina é uma violência à integridade/estrutura da criação; e (2) ajuda a mente
crítica moderna a aceitar mais facilmente a ação divina no mundo. Mas há o risco
de "naturalizar" tanto a ação de Deus que Suas intervenções especiais (milagres)
acabem sendo descartadas.
A abordagem intervencionista pressupõe uma 'ação divina constante e também
ações especiais esporádicas. Ao mesmo tempo, preconiza que essas ações não preci-
sam ser contrárias às leis da natureza. Elas constituem, antes, a atuação de uma força
superior, que incorpora, ultrapassa ou neutraliza uma lei inferior. E o caso de um
pesado avião que voa com centenas de passageiros, ou o de um navio que flutua com
suas toneladas de carga. A lei da gravidade é real, mas isso não impede, por exemplo,
a evaporação da água para formar as nuvens.
No âmbito espiritual, parece ocorrer a mesma coisa. Se há uma lei espiritual
que determina que o "salário do pecado é a morte", há outra superior que assegura
que "o dom gratuito de Deus é a vida eterna" (Rm 6:23). Paulo, com objetividade,
aplicou esse princípio à experiência cristã: "Porque a lei do Espírito de vida, em
Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte" (Rrn 8:2). O mesmo apóstolo
diz que "onde abundou o pecado, superabundou a graça" (Rm 5:20). Isso nada
mais é do que a manifestação de uma lei superior, interrompendo uma seqüência de
causa e efeito, 'neutralizando graciosamente um princípio de causalidade. Por essa
razão, há quem considere a regeneração, uma vida transformada, o maior de todos
os milagres, um milagre maior do que qualquer cura física. Embora a transforma-
ção espiritual não seja um milagre no sentido técnico e estrito, é um extraordinário
milagre num sentido amplo.
Jacqueline Marifia defende que os milagres devem ser vistos como algo plenamen-
te integrado a um sistema coerente, ocorrendo "quando as ordens moral e espiritual
14 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

foram dispostas corretamente". Por essa perspectiva, as leis naturais que governam
o mundo não seriam tão universais, como em geral se pensa. 'Tias podem ser um
subsistema de urna lei muito mais universal, a qual governa o relacionamento entre os
estados morais e a maneira que os estados de coisas aparecem no plano fenomenológi-
co." Se o amor é bloqueado, vêm a doença, a decadência e a morte; se é liberado em
plenitude, como no caso de Jesus, surge uma condição de milagres própria do Reino
de Deus. O mundo natural, com sua dimensão espaço-temporal, não seria autônomo,
mas sim subordinado ao mundo espiritual e ao alvo final da salvação. 12
A análise de Mariicia é sutil e biblicamente aceitável, desde que não substituamos
a rigidez de um modelo mecânico-naturalista pela inflexibilidade de um modelo cármi-
co-espiritualista, sem espaço para a ação pessoal de Deus e a livre manifestação de Sua
graça. Sua limitação do alcance das leis naturais certamente acharia apoio bíblico, pois
a cultura bíblica nunca desenvolveu o conceito de leis naturais realmente universais,
autônomas e inexoráveis, embora os autores bíblicos certamente fizessem distinção
entre o que é parte do mundo natural e o que é intervenção divina
O ensaísta irlandês C. S. Lewis (1898-1963), reconhecido por sua lógica brilhan-
te, junta-se ao grupo dos que adotam a linha de pensamento intervencionista. Para
defender suas idéias, procura demonstrar que as leis da natureza não fazem acontecer
as coisas; elas apenas estabelecem o padrão ao qual cada evento deve conformar-se. 'As
leis do movimento não movem as bolas de bilhar: elas analisam o movimento depois
que alguém (digamos um homem com um taco, ou o balanço do navio, ou talvez,
o poder supranatural) o tenha provido", escreve. Pensar que as leis podem produzir
um fenômeno "é pensar que vocêpode criar o dinheiro apenas fazendo somas". 13
Ou que a métrica, por si, pode criar um poema. As leis, portanto, explicam o como,
mas não causam o que. O que depende de uma força externa. Se as leis realmente
funcionarem, seus resultados serão modificados toda vez que se introduzir um novo
fator. Para condições iguais, resultados iguais; para condições diferentes, resultados
diferentes. O milagre é exatamente esse fator novo. Um poder externo (Deus) age e
a lei reage, no sentido de acomodar a ação divina.
As leis, porém, continuam valendo. O milagre representa uma mudança no modo
normal de Deus agir na e através da natureza, mas não um rompimento da ordem
natural. Se a lei natural, para ser lei, precisa ter regularidade e ordem, o milagre, para
ser milagre, deve ser incomum e «irregular"; se a lei é o modo geral de funcionamento
do mundo, o milagre é um modo específico de ação de Deus nesse mesmo mundo.
Deus está acima das leis que Ele mesmo criou.
Nesse caso, alguém pode argumentar que, se um evento não é contrário às leis
da natureza, então é um evento natural espontâneo, e não um milagre. Falso. O que
caracteriza o milagre é o fato de vir de um poder consciente exterior e superior à na-
tureza, bem como a sua raridade, e não o fato de ser contrário à natureza. Se Deus é
o autor tanto das leis naturais como dos milagres, então não pode haver contradição
A Idéia de Milagre 15

entre as duas coisas. "Um milagre genuíno é antes de tudo um evento que é assombroso,
incomum, abalador, sem contradizer a estrutura racional da realidade", constata Paul
Tillich, que prefere chamar o milagre de "sinal-evento". Para o teólogo, se a estrutura
do ser fosse destruída, "Deus estaria dividido dentro de si mesmo, como tem afirmado
o dualismo religioso", e os milagres seriam "demoníacos", no sentido de revelar uma
"estrutura de destruição"»
Na Bíblia, portanto, não há incompatibilidade entre milagres e leis naturais
ou milagre e uso da natureza nos milagres. No milagre da criação, Deus atua sobre a
realidade criada anteriormente. Em Gênesis, Deus ordena que a Terra produza ervas,
árvores e animais, e as águas produzam animais aquáticos; finalmente, o próprio
Criador forma "o homem do pó da terra" (2:7). No dilúvio, Deus fez romper "todas
as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram" (Gn 7:11). Na libertação
de Israel do Egito, as pragas surgem em conexão com elementos da natureza, e o Mar
Vermelho é aberto por um "forte vento oriental" que dura a noite toda (Ex 14:21).
Nos milagres da transformação da água em vinho (que, segundo alguns autores, foi
uma aceleração do processo normal de produção de alimento) e da multiplicação dos
pães e peixes, Jesus usa material existente (Jo 2:7; 6:11). Isso sugere que, tendo criado o
Universo, Deus passou a atuar na e através da natureza Trata-se de um poder superior
controlando uma "força" inferior.
Dessas três maneiras básicas de encarar os milagres, ou seja, o milagre visto como
(1) um acontecimento natural e espontâneo ainda desconhecido pelo ser humano,
(2) uma intervenção radical no curso da natureza, contrariando suas leis, e (3) uma
intervenção divina no mundo natural, sem contrariá-lo, a última é a que corresponde
melhor à realidade e ao registro bíblico.

CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO

Mesmo tendo esses conceitos em mente, alguém pode achar difícil apontar o
que é milagre na Bíblia e o que não é. Como demarcar o sobrenatural, o prodigioso,
o maravilhoso? Yair Zakovitch, com lógica perspicaz, sugere o critério literário: "a
maneira de sua formulação", "a expressão de excitamento e maravilhamento diante
de um incidente e a quantidade de palavras devotadas à sua descrição".' 5
O erudito judeu sugere, também, nove mecanismos de controle para se juntarem
à formulação literária e determinar se o narrador tinha em vista retratar um evento
como milagre; e eu acrescento o décimo item. São eles:
I. Repetição. Um fato repetido não deixa dúvida do que está acontecendo Exem-
plo: a dupla queda do deus filisteu Dagom diante da arca do Senhor (1 Sm 5:2-4).
2. Restauração a um estado anterior. Isso prova que o operador de milagres está no
controla Exemplo: caso de Jeroboão, que teve o braço paralisado ao estender a mão sobre
o altar, o qual só voltou ao normal quando o profeta orou por ele (1Rs 13:4 e 6).
16 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

• 3. Oração. Um fenômeno manifestado após uma oração não deve ser considerado
apenas coincidência. Exemplo: a transformação da água de Mara em resposta à oração
de Moisés (Êx 15:22-25).
4. Anúncio prévio. A antecipação testifica que Deus está atuando. Exemplo: o
anúncio de Josué: "Santificai-vos, porque amanhã o Senhor fará maravilhas no meio
de vós" (Js 3:5).
5. Paradoxo. A "absurdidade" de um evento revela seu caráter miraculoso. Exem-
plo: o rio Jordão parar e dar passagem a Israel (is 3:16).
6. Milagre intensificado. Parecido com o paradoxo, este fenômeno (que Zakovitch
chama de "milagre dentro de um milagre") consiste em tornar as coisas ainda mais
difíceis. Exemplo: Eliseu curando as águas de Jericó com sal (2Rs 2:21).
7 . Delimitação. O ato de definir as condições revela uma ação deliberada. Exemplos:
os testes de Gideão e o aparecimento programado do maná (Jz 6:36-40; Êx 16:26).
8. Reconhecimento por estranhos. Uma evidência forte do milagre é quando, num
clima de competição, os oponentes admitem que ele ocorreu. Exemplo: os magos do
Egito dizendo ao faraó que as pragas eram "o dedo de Deus" (Ex 8:19).
9. Teste de múltiplos critérios. Sé a narrativa combina vários elementos indicadores
do milagre, é bom prestar atenção. Exemplo: a narrativa das pragas inclui a competição
dos magos, oração e repetição (série de pragas), entre outros indicadores.
10. Avaliação posterior (acréscimo meu). Este critério pressupõe que, mesmo
quando os elementos mencionados não estão presentes na narrativa, mas um fenô-
meno é definido por escritores bíblicos posteriores como miraculoso, ele deve ser
encarado como milagre. Exemplos? As narrativas da criação e da ressurreição, em si,
são despojadas de apelo ao miraculoso, mas a reflexão teológica posterior não deixa
dúvidas quanto à sua natureza. Na verdade, como veremos, são exatamente esses dois
milagres que estabelecem a base para todos os demais.

NOTAS
Haiold Remus, "Does Tenninology Distinguish Early Christian from Pagan Miracles?", Journal
of Biblical Literature 101 (1982): 531 551 ,
= Norman L. Geisler, Miracles and the Modern Mincl: A Definse of Bzblical Miracles (Grand Rapids:
Baker, 1992), 98 e 99.
1 0 famoso teólogo e bispo de Hipona definiu milagre como "um portento" que não é "contrário à
natureza, Mas contrário a nosso conhecimento da natureza" (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2 ed. jPe-
trópolis: Vozes, 19951, 2495). É bom ressaltar, porém, que ele creditava os milagres à vontade de Deus.
' Colin J. Humphreys, The Miracles of &adia (Nova York: HarperSanFrancisco, 2003).
5 Voltai re, Dicionáno Filosófico, Coleção Universidade (Rio de Janeiro: Ediouto, s.d.), 229 e 230,
itálico no origmal.
'Ver Tomás de Aquino, &Immo Contra Gentiles, 3.98 - 100.
' Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 2' 495 .
s Leonard Brand, Faith, 1?eason, and Earth Históry (I3errien Springs, MI: Andrews University
Press, 1997), 58 e 59. Este livro foi publicado em português pela Unaspress, em 2005, com o título Fé,
Razão e História da Terra.
A Idéia de Milagre 1 7
9 Adaptado de Brand, 59.
1 ° Ronald H. Isaacs, Mirai-les: A lett/1th Perspective (Nortlivale, NJ: Jason Aronson, 1997), 2 e 3.
' 1 James S. Nelson, "Divina Action: Is h Credible?", Zygon 30 (1995): 267-280.
Jacqueline Manha, "The Theological and Philosophical Significance of the /vIarkan Account
of Miracles", Faith and Philosophy 15 (1998): 298-323, aqui 313-315.
1 .1 C S. Lewis, Milagres: Uni Estudo l'relirairzar
(São Paulo: Mundo Cristão, 1984), 56.
14 Paul Tillich, Teologia Sistemática,
2' ed. (São Paulo Paulina.s; São Leopoldo: Sinodal, 1987), 103.
15 Yair Zakovitch, "Miracle (0T)'', TheArichor
Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman (Nova
York: Doubledáy, 1992), 4:848.
2
A CRITICA AOS MILAGRES

Para os verdadeiros crentes, nenhum milagre é necessário.


Para os incrédulos, nenhum milagre é suficiente.
Nancy Gibbs, iornalista da revista Time

Muitos pensadores, nos últimos três séculos, têm argumentado em várias li-
nhas contra a existência de milagres. A crítica ataca, por exemplo, sua racionalidade,
cientificidade, identificabilidade e importância. Ultimamente, até a moralidade dos
milagres foi atacada. James Keller escreveu um artigo argumentando que os milagres
são imorais porque algumas pessoas seriam beneficiadas, enquanto tantas outras
igualmente em necessidade não receberiam o mesmo benefício.' David Mckenzie
contra-argumentou que não há boa razão moral para rejeitá-los, pois aqueles que
não recebem uma intervenção divina direta podem receber outros benefícios de igual
ou maior valor; essa concepção se baseia numa visão mecânica e estéril da graça de
Deus e ignora que os propósitos de Deus transcendem o benefício individual (seria a
ressurreição de Cristo imoral?). 2
Embora os cristãos geralmente aceitem que a Bíblia é a Palavra de Deus, sendo
digna de crédito mesmo quando relata fatos extraordinários, vale a pena mencionar
três objeções aos milagres: a impossibilidade, a incredibilidade e a não-historicidade
dos milagres. Os principais defensores dessas posições são, respectivamente, Espi-
nosa, Hurne e Bultmann.

O ARGUMENTO DE ESPINOSA
Baruch Espinosa (1632-1677), filósofo judeu-holandês, ignorado por cerca de um
século e depois redescoberto como um dos maiores pensadores da História, achava absurda
a crença em milagres, por considerá-los impossíveis. (Hoje parece mais lógico e sensato
perguntar o que não é possível do que o que é possível.) Expulso da sinagoga judaica aos
24 anos por suas crenças heterodoxas, ele acreditava no panteísmo, igualando Deus com a
natureza -- eterna e regida por leis imutáveis (determinismo). Se Deus não é um ser pessoal
e transcendente, raciocinava, então não pode existir intervenção sobrenatural no Universo.
Seus argumentos contra os milagres podem ser resumidos às seguintes premissas básicas:
20 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

1. Milagres são violações das leis naturais.


2. As leis naturais são imutáveis.
3. E impossível violar leis imutáveis.
4. Portanto, os milagres são impossíveis.
Esse argumento tem um defeito intrínseco: ele parte do conceito racionalista
de que o milagre é uma violação das leis naturais, mas não estabelece uma base para
essa premissa. s eu "arrazoado é geométrico, mas seus 'axiomas' racionalísticos estão
errados" . 3 Além disso, não há evidência de que o Universo seja eterno e determinado;
ao contrário, tudo indica que teve um começo, sendo um milagre em si mesmo.
Hoje, até a ciência aceita o início do Universo. Este ponto de vista é contem-
plado pela teoria do 13ig Bang, proposta em 1948 pelo físico russo-americano George
Gamow (1904-1968) e sua equipe, a partir da teoria do "átomo primordial" do belga
Georges Len-iattre (1894-1966). A teoria inflacionária, formulada na década de 1980,
resolveu algumas dificuldades presentes na teoria de Gamow.
Espinosa defendia que quando a Bíblia atribui eventos miraculosos a Deus, nós
não devíamos entendê-los como violações das leis da natureza ou mesmo transcendência
dessas leis. Para ele, tudo ocorre naturalmente, em harmonia com a natureza. No que
diz respeito à palavra "violação", ele estava certo, pois esse não é o conceito correto de
milagre. Porém, não dá para aceitar seu ponto de vista completo.

O ARGUMENTO DE HUME

Um argumento mais consistente foi desenvolvido pelo filósofo e historiador


escocês 1:"Jiavid Hume (1711-1776). Rigoroso, cético, humanista secular, Hume ar-
gumenta, na famosa seção X de seu livro Investlog açaa Soovre
o b re o En ten mento
dJ2i Humano,"
publicado inicialmente em 1748, que os milagres, embora não sejam teoricamente
impossíveis, são empiricamente "incríveis". Segundo ele, não é razoável confiar na
veracidade de um testemunho a respeito de algo tão excepcional, se a evidência regular
diz o contrário. O evento milagroso, por estar além do extraordinário e do fantástico,
exigiria uma evidência fortíssima para ser aceito, isto é, uma prova total. Todavia, para
Hurne, nunca houve tal prova.
Os argumentos de Huine podem ser assim resumidos:
1. Um milagre é por definição uma rara ocorrência.
2. A lei natural é por definição uma descrição de ocorrência regular.
3. A evidência para o regular é sempre maior do que para o raro.
4. Indivíduos sábios sempre baseiam suas crenças na evidência maior.
5. Portanto, indivíduos sábios nunca deveriam crer em milagres. 5
Os argumentos de Flurne têm méritos e certa originalidade, embora Colin Brown
afirme que eles estavam longe de ser originais". 6 Se ate o século 18 a discussão girava
em torno da possibilidade ou não de ocorrerem milagres, com Hume entra em pauta a
A Crítica nos Milagres 21

questão da credibilidade das testemunhas. São abordagens diferentes. Na perspectiva de


Hume, o historiador deve julgar os relatos de forma crítica e separar o que é crível do
que é incrível, fazendo sua experiência valer mais do que a de outras testemunhas.
Mas será que os argumentos de Hume e seus seguidores são fortes o suficiente
para, teoricamente, destruir a crença em milagres? Colin Brown diz que "seria um
erro pensar que Hume provou (ou mesmo pensava que ele provou) que os milagres
são impossíveis", pois, no máximo, "Hume está defendendo que ninguém pode
provar que qualquer determinado milagre tenha acontecido, e assim ninguém pode
apelar aos milagres para provar a verdade de qualquer religião". 7 Vários pontos pesam
contra a posição de Hurne.
Primeiro, seu argumento é excessivamente reducionista e até preconceituoso.
Hume defende que os testemunhos de milagres devem ser questionados porque o
ser humano tem a tendência de crer naquilo que desperta emoção e surpresa. Nas
palavras de Colin l3rown, ele "escreve como se todos os crentes fossem enganado-
res ou enganados". Todavia, essa postura não tem razão de ser. Hume "falha em
considerar a possibilidade de que algumas pessoas, incluindo pessoas religiosas,
sejam por natureza céticas" . 8
Segundo, seu argumento leva a um impasse. Ele aposta na improbabilidade dos
milagres com base numa experiência uniforme. Mas a experiência contra os milagres
só poderia ser uniforme se soubéssemos que todos os relatos sobre eles são falsos; e
só poderíamos saber que todos os relatos são falsos se soubéssemos que os milagres
nunca ocorreram. Trata-se de um argumento circular.
Hume teria cometido uma falácia de petztio principii (ou seja, apoiar uma de-
monstração sobre a própria tese que se pretende demonstrar), se bem que haja quem
o defenda, afirmando que ele tinha todo o direito de falar dessa maneira, por estar
lidando com evidências históricas de segunda mão (testemunhos sobre milagres) e não
com evidência científica direta. E uma atenuante, mas não um álibi.
Terceiro, seu argumento iguala evidência com probabilidade". Para H urne,
a pessoa racional crê naquilo que é mais provável. Contudo, eventos altamente im-
prováveis podem ter boa evidência. Um exemplo é a existência de vida inteligente
na Terra. Embora pareça muito improvável, há farte evidência de que ela existe!
Outro exemplo é a construção das pirâmides do Egito. Se existissem apenas registros
escritos sobre tais monumentos, é provável que o historiador moderno pusesse em
dúvida sua real existência. Mas os blocos gigantescos estão lá, uns sobre os outros.
Quarto, seu conceito de "somar" evidências eliminaria qualquer evento único ou
ncomum do passado. De fato, a tese de Hurne é tão frágil nesse aspecto que Richard
Whately a satirizou em seu famoso panfleto sobre a (in)existência de Napoleão. 8 Na-
xaleão era uma pessoa tão fantástica, tão sem paralelos, que se tornava "incrível". Para
is pessoas sensatas, não podia existir. Em nome da coerência, Hurne deveria duvidar
22 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

da existência de Napoleão. Ora, se Napoleão (ou Alexandre Magno, ou Beethoven,


ou Pele) foi tão excepcional e existiu, mesmo contra a probabilidade e a experiência
uniforme, por que não aceitar que uma figura chamada Jesus Cristo existiu?
No caso de Jesus, é exatamente a Sua singularidade que dá credibilidade aos
milagres que Lhe são atribuídos. Com base no argumento de Hume, a ressurreição
de Jesus não poderia ser aceita parque foi um evento único. Porém, a Bíblia diz que
Jesus é apenas o primeiro de uma série de futuros ressuscitados (1Co 15:20). Essa
experiência, no futuro, será generalizada. Portanto, trata-se de um evento que terá
sólida evidência e amplo testemunho.
Finalmente, seu argumento prova demais. Pelo raciocínio de Hume, ainda que
um milagre ocorresse, não deveria ser acreditado, já que devemos crer naquilo que
tem maior evidência (regularidade), e um milagre sempre é raro e altamente impro-
vável. Contudo, descrer de um fato real, só porque é improvável, não parece atitude
compatível com indivíduos "sábios e doutos".
Os argumentos de Hume, assim como a maioria das filosofias, são datados.
Foram desenvolvidos num clima racionalista, em que o Universo era visto como um
mecanismo fechado e o milagre era definido como um evento "contrário" às leis natu-
rais, e em oposição ao obscurantismo da Idade Média. Porém, se o filósofo vivesse no
início do século 21 e presenciasse as descobertas espetaculares da ciência, bem como
suas limitações, talvez mudasse seus conceitos e admitisse outras possibilidades. Quem
sabe, ele até mesmo se convencesse realmente de que o milagre, acima de tudo, deve •
ser interpretado com base na fé (há a possibilidade de que, por trás de seu ceticismo,
o filósofo fosse um homem de fé), e não na probabilidade estatística.

O ARGUMENTO DE BULTMANN

Uma crítica de natureza histórica ao sobrenatural foi feita por Rudolf Bult-
mann (1884-1976). 1 ° De forma mais dogmática do que demonstrativa, o influente
teólogo alemão dizia que os milagres são mitológicos, no sentido de apenas expressar
uma realidade transcendente. Para ele, os milagres acontecem no mundo espiritual, e
não na dimensão do espaço-tempo, embora admitisse que Jesus Cristo tenha sido uma
figura histórica. A linguagem transcendental da Bíblia não precisa ser descartada, mas
deve ser reinterpretada. É que a idéia de "sobrenatural" difere da concepção científica de
mundo. Segundo ele, a linguagem pré-científica, própria de uma cosmovisão obsoleta,
não teria mais sentido para o ser humano moderna Por isso, é preciso "dernitizar"
e buscar o sentido mais profundo da mensagem. Ele queria conservar o conceito de
"maravilha" (a maravilha da revelação da graça e do perdão), mas descartar totalmente
o conceito de "milagre".
Muito se escreveu em resposta a Bultmann. Em síntese, pode-se dizer que: (1) o
fato4 os milagres serem mais do que históricos não significa que eles sejam menos do
A Crítico aos Milagres 23

que históricos; (2) os milagres podem ser eventos no mundo e ainda não ser do mundo.
Bultmann, por viver num ambiente condicionado pelo criticismo e a ciência, talvez
1 tenha sido levado a atribuir uma influência condicionante oposta aos escritores do
r Novo Testamento. Porém, embora os evangelhos sejam relatos de fé, não são mitos. A
narração da fé tem um contexto, não é construída no vácuo, mas tem igualmente base
5
factual, não é fictícia; ela é simples, mas não simplista, pois tem elaboração teológica.
Bultmann não entendeu ou não quis entender a linguagem da fé. Por sua inviabilidade,
a idéia da demitologização vem perdendo o glamour nos últimos anos.

A IMPORTÂNCIA DA COSMOVISÀO
A questão é que não é tão fácil para uma pessoa com mentalidade científico-
naturalista, comprometida com a idéia de que o Universo é um sistema fechado,
admitir a intervenção divina. Muitos cientistas do século 17 criam em Deus e ao
mesmo tempo adoravam a filosofia natural. Por isso, acabavam tendo posicionamen-
tos ambíguos e inconsistentes quanto aos milagres. Sir Isaac Newton era o maior
exemplo dessa inconsistência, crendo e não crendo em milagres. "Os principais
cientistas dessa época, quase sem exceção", escreve Peter Harisson, "tinham um
duplo compromisso: por um lado, com a ciência baseada na premissa de um Uni-
verso mecânico governado por leis imutáveis da natureza; por outro lado, com um
Deus onipotente que intervinha na ordem natural de tempos em tempos, quebrando
essas 'leis da natureza."
Os naturalistas têm dificuldade em admitir o milagre porque o milagre não se
acha ligado retroativamente a um fenômeno natural anterior. Para muitas pessoas,
isso parece intolerável. O problema é que vêem pouco; tomam a natureza como
sendo toda a realidade. Porém, ela é só uma parte do quadro. Na verdade, o elo entre
os milagres e a natureza existe, mas não é tão direto e imediato. Para visualizá-lo, "é
preciso retroceder até o seu Criador comum a fim de encontrar o elo de ligação, pois
ele não será descoberto dentro da natureza" 12
A ciência, por sua natureza, não pode admitir o que não vê, pois trabalha
basicamente com a realidade visível e mensurável; mas também não deveria negar o
invisível e imensurável. A realidade é sempre mais rica e complexa do que o quadro
percebido e pintado por nossos sentidos. O problema é que alguns cientistas, baseados
no sucesso inegável do método científico, atribuem à ciência um poder que ela não
tem, nem merece ou exige. Se os cientistas ficarem dentro do escopo da ciência, eles
ainda podem (e devem) discutir a questão dos milagres, mas não podem (e não devem)
dizer taxativamente que Deus não existe ou não opera milagres. Pois Deus está além
do mundo natural visível e, portanto, além da ciência.
O que realmente faz diferença na maneira de encarar a questão dos milagres é a
cosmovisão adotada (isto é, a moldura conceituai para a realidade, a maneira de ver o
24 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

mundo, enfim, o quadro mental). E, após milênios de História, é compreensível que


haja muitas cosmovisões e múltiplos olhares conceituais.
Hoje em dia, a cosnaovisão mais desafiadora para o teísmo cristão é o que Ro-
nald Nash chama de "naturalismo metafísico" — pelo menos entre a elite científica e
intelectual. A essência do naturalismo metafísico é que não existe nada fora da ordem
natural. Nem Deus, nem mundo espiritual, nem propósito; só um Universo material,
mecânico, fechado, uniforme, detertninístico. "Para o naturalista, o Universo é análogo
a uma caixa selada", compara Nash. Nessa perspectiva, nada existe fora da caixa (leia-
se Universo) e, portanto, nada externo pode interferir dentro dela. Em contraste, o
teísmo sustenta que (1) Deus existe fora da caixa, (2) Deus criou a caixa e (3) Deus
age causalmente dentro da caixa.' 3
O paradigma intervencionista admite que, no dia-a-dia, o mundo funciona de
acordo com as leis naturais; porém, não descarta a hipótese de que em ocasiões espe-
ciais um poder superior à natureza, embora não hostil a ela, possa intervir no curso
normal das coisas. O teísmo é o único paradigma realmente intervencionista, como
mostra o quadro 1 (na página seguinte).
A questão é: existe realmente um Poder Pessoal atuando no Universo? Essa per-
gunta tem inquietado inúmeros filósofos e cientistas, especialmente no século 20. A
resposta, por enquanto, só pode ser dada pela fé. A fé se apóia na revelação e diz sim ;
baseia-se na evidência científica e diz "talvez", Mas esse basear-se na ciência pode ser
em atitude de humildade ou de orgulho. Se for em orgulho, a resposta provavelmente
será "não"; se em humildade, poderá ser "sim".
Felizmente, ciência e fé não são incompatíveis. Nos últimos anos, o número de
cientistas que tentam aproximar ciência e religião cresceu sensivelmente. Se fôssemos
fazer uma lista, ela seria longa. Esses cientistas estão levando Deus para o laboratório.
Dezenas de títulos sobre ciência e fé têm sido lançados. Se a relação secular de amor e
ódio cultivada pelas duas áreaS será superada, não se sabe; mas os sinais são promissores.
O objetivo do diálogo não é eliminar a fé da religião ou o ceticismo da ciência, mas
prover uma oportunidade amigável de entendimento e crescimento.
O paradigma naturalista passa por maus momentos. Novas evidências têm sola-
pado sua credibilidade em várias frentes. O desenvolvimento das ciências bioquímicas
trouxe novos dados para o quebra-cabeça. Os cientistas est'ao cada vez mais convencidos
de que, quando se pensa na origem da vida, fica difícil descartar o trabalho de um
Criador, para atribuir tudo ao "acaso".
Michael Behe, professor de bioquímica, demonstrou convincentemente no livro
A Caixa Preta de Darwin'4 que a teoria evolucionista de Charles Darvvin (1809-1882)
— que, com seu livro A Origem das Espécies, de 1859, tornou-se o pai do moderno evo-
lucionismo — não levou em conta a complexidade do mundo bioquímico, desvendado a
partir da década de 1950. Se o darvvinismo explica razoavelmente bem a microevolução,
não consegue fazer o mesmo com a macroevolução, que exigiria grandes saltos.
A Crítica aos Milagres 25
Conceito Perspectiva sobre Deus Milagres? Comentários
Ateísmo Deus não existe Não Para o ateu, a possibilidade de milagre é nula.
Ceticismo Até prova em contrário, Duvida-se ,0 cético vive num estado de dúvida e descrença,
Deus não existe por convicção ou como método para se chegar à
certeza - e por isso só pode dizer um "não"
provisório aos milagres.
Agnosticismo É impossível saber se Talvez O agnóstico põe a mesma interrogação para a
Deus existe existência de Deus c a ocorrência de milagres.
Deísmo Deus existe, mas não Não Pará o deísta, o mundo opera por lei natural,
intervém num sistema fechado.
Teísmo Deus é um ser pessoal Sim O teísta, em sua versão judaico-cristã, crê que
' Deus está além do mundo, mas também dentro
dele, intervindo em momentos especiais.
Panteísmo Tudo é Deus Não Para o panteísta, Deus é uma realidade impessoal.
Magismo Deus é um poder oculto "Sim" O mágico postula que existe uma força misteriosa,
manipulável impessoal, que ele pode captar e controlar.
. —
yuans. is a. lAnItMILUS NUIUlt llellS e as possibilidades de milagres

Há uma complexidade irredutível em algumas "máquinas bioquímicas", como


o cílio, que não pode ser explicada pelo processo evolutivo. Um objeto irredutível,
a exemplo da ratoeira, é aquele em que todas as suas partes são essenciais para o seu
funcionamento e devem agir simultaneamente. Ou existem como um todo, ou não
funcionam. A vida não é tão simples. Darwin não conhecia esse mundo liliputiano;
a vida no nível molecular era uma caixa-preta para ele.
Conclusão: mesmo sem ser criacionista, Behe foi levado a crer que as "máquinas
bioquímicas", compostas de moléculas, só poderiam ter surgido pela ação de um
planejador. Ele escreve: "Ao chegarmos ao fim deste livro, ficamos sem uma defesa
forte contra o que parece uma conclusão estranha: que a vida foi planejada por um
agente inteligente" O cientista está tão convencido desse planejamento, no nível
celular, que compara essa descoberta às grandes descobertas da história e da ciência,
como as de Newton, Einstein, Schrddinger e Pasteuris
William Dembski, outro importante teórico do planejamento inteligente, diz que o
"naturalismo é a patologia intelectual de nossa época", pois fecha a mente para o transcen-
dente, e que o "planejamento inteligente é o remédio".' 6 Para ele, o acaso não pode gerar
infoimação complexa e específica, como seria necessária para a existência da vida.
A

/-\ TEORIA TOTAL


Entre os principais físicos do planeta, existe hoje uma busca pelo que podemos
chamar de "teoria total", a lei das leis, o princípio último que rege a matéria e o Univer-
so. Embora as duas principais teorias da física, a mecânica quântica (que permitiu um
novo olhar para o "muito pequeno", o micro) e a relatividade geral (que forneceu uma
26 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

nova visão do "muito grande", o macro), pareçam incompatíveis em vários aspectos,


os cientistas têm esperança de que em breve se consiga uma unificação.
Steven Weinberg, ganhador do Prêmio Nobel de Física em 1979 por seu trabalho
de unificação de duas forças fundamentais da natureza (a força eletromagnética e a
força nuclear fraca), é um dos físicos interessados nesse Santo Graal. Curiosamente,
embora Weinberg não veja lugar para Deus nessa teoria, admite que, qualquer "que
seja a religião de alguém — ou a falta dela —, é uma metáfora irresistível falar das leis
finais em termos da mente de Deus". i 7
De fato, Stephen Hawking, mesmo não sendo um religioso no sentido estrito da
palavra, encerrou seu best-seller sobre o tempo com essa metáfora. Ele afirma que, se
descobrirmos "uma teoria completa, ela deverá, ao longo do tempo, ser compreendida,
grosso modo, por todos" e "teremos o triunfo definitivo da razão humana; porque,
então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus"."
Num nível teológico, o cristão pode argumentar que essa "teoria total", em
linguagem inteligível, não está exatamente na natureza, mas acima dela Seu nome:
Deus. Mais precisamente, Deus Filho. João diz, no prólogo do seu evangelho, que
todas as coisas foram feitas pelo Logos, ou Verbo, "e sem Ele nada do que foi feito se
fez" (1:3). Paulo, em Colossenses 1:16, afirma que através do Filho "foram criadas
todas as coisas que há nos céus e na Terra, visíveis e invisíveis". No versículo seguinte,
acrescenta que "todas as coisas subsistem por Ele". O autor de Hebreus, igualmente,
salienta que o Filho criou o "mundo" (Universo) e que sustenta "todas as coisas pela
palavra do Seu poder" (1:2 e 3). Talvez ainda mais significativamente, Paulo escreve que
Deus Se propôs a fazer convergir em Cristo, "na dispensação da plenitude dos tempos,
todas as coisas, tanto as do Céu como as da Terra" (Ef 1:10).
Pois bem, se o Filho criou tudo, Ele é a teoria inicial (o Alfa), a razão de todas as
coisas, idéia que por sinal está implícita na palavra Logos; e, se sustenta todas as coisas
pela Sua palavra, tudo convergindo para Ele, é a teoria final (o Omega). Ele seria a Lei
maior que governa e mantém o Universo É claro que estou falando metaforicamente
aqui, pois o Filho é uma Pessoa, e não uma teoria ou lei. Assim, os físicos poderiam até
dar mais um ou alguns passos na tentativa de unificar as forças da natureza e o conheci-
mento; mas nunca chegarão ao estágio definitivo, a menos que pensem além da matéria.
O "Eu Sou" é a Teoria Total, ou seja, o Ser que unifica e mantém todas as leis.

A PROBABILIDADE DA INTERVENÇÃO

A idéia de um Criador pessoal, que sustenta todas as coisas, sugere a possibilidade


de intervenção no Universo. A experiência mostra que, quando o ser humano cria um
objeto ou aparelho, desde um simples relógio a um sofisticado computador, ele interfere
em sua criação, para modificar, aperfeiçoar e, principalmente, consertar defeitos. Se isso
acontece na esfera humana, não seria natural acontecer na divina?
A Crítica aos Milagres 27

Certas pessoas tentam crer em milagres, mas ficam preocupadas com sua aparente
inconsistência ou discrepância em relação ao ritmo normal do Universo. Suspeitam
estar havendo uma interferência arbitrária no reino da natureza Mas será que os
prodígios são mesmo elementos estranhos na história do mundo?
Num livro intitulado The Mind of the Maker (A Mente do Criador), Dorothy
Sayers faz uma analogia entre Deus e o escritor. 19 Quando o escritor escreve uma
história, pode recorrer a fatos extraordinários ou não, e o resultado será ótimo ou
desastroso dependendo do tipo de história. Num romance do gênero "realismo fan-
tástico", Gabriel García Márquez (escritor colombiano contemplado com o Nobel
de Literatura em 1982) introduz cenas fantásticas com a maior naturalidade, e isso
é considerado virtude; mas, num romance realista, Machado de Assis (co-fundador
da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores escritores brasileiros de todos os
tempos) deve se prender aos cânones da verossimilhança. A aceitação dos milagres
depende da pressuposição de que Deus é um personagem especial na história Mesmo
assim, Ele deve agir em conformidade com o Seu próprio personagem. O conceituado
professor Antonio Candido diz que as personagens dos romances são paradoxalmente
menos livres do que na vida, pois no romance "a lógica da estrutura impõe limites
mais apertados" e "a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida" 20
O enredo é que determina se a intervenção miraculosa é recurso ou crime
artístico. Assim, o aparecimento de um vampiro só tem consistência numa história
que admita a existência de vampiros; e a ação especial de Deus só é coerente numa
cosrnovisão que admita a existência de um Criador pessoal. Como a grande odisséia
bíblica começa com um milagre, a criação, e termina com outro, a recriação, é perfei-
tamente coerente incluir muitos outros milagres nessa história, pois eles estão previstos
no roteiro divino. Se Deus é pessoal, tem poder e inteligência e é amor, então seria de
se esperar algum tipo de interferência dEle num mundo mergulhado em tragédias.
Isso combina com a idéia de que a Bíblia apresenta os milagres não como exceções,
mas como a regra, o enredo principal.
Podemos esquematizar a questão assim:
1. Se Deus é inteligente, existe possibilidade dEle agir.
2. Se Deus é poderoso, existe meio dEle agir
3. Se Deus é amor, existe probabilidade dEle agir.
4. Deus é 1, 2 e 3. Logo, a ação/intervenção divina é possível, factível e até provável.
Se essa é a realidade, será que a Bíblia apresenta mesmo um enredo cheio de
milagres? A resposta é um indiscutível "sim", embora a freqüência e o número dos
milagres relatados, em relação ao período de tempo abrangido pelo registro, não sejam
tão grandes como possam parecer à primeira vista. No total, a Bíblia relata cerca de
260 eventos sobrenaturais, incluindo visões e prodígios futuros descritos no Apocalip-
;e. Tecnicamente, nem todos esses eventos podem ser classificados como "milagres".
Lima leitura mais restritiva, excluindo visões e fenômenos futuros, indicaria cerca de
28 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

100 milagres no Antigo Testamento e cerca de 100 no Novo (alguns relatos de curas
envolvem grupos de pessoas), lembrando que o Novo Testamento cobre um período
histórico aproximadamente 40 vezes menot. O que mais importa, porém, é a Pessoa
que opera os milagres e a qualidade dos milagres tealizados. Nesse sentido, os milagres
da criação e da tessurreição, com o seu caráter de milagres-âncoras, são suficientes para
sustentar todos os outros milagres.

OS DOIS GRANDES MILAGRES

O Gênesis, logo na abertura da Bíblia, estabelece o fato de que Deus criou a Terra,
mas não diz claramente como nem quando Basicamente, Gênesis 1 pode ser lido como
um relato literal ou não-literal. Entre os defensores da leitura não-literal, o texto é encarado
como mitologia (o que é contraditado em outras partes da Bíblia), poesia (é bom lembrar
que a poesia também pode descrever fatos históricos) ou simbolismo. Entre os que adotam
uma abordagem literal, a teoria mais popular e tradicional é a que toma o texto tal como
está. Ou seja, num princípio absoluto do tempo com relação ao nosso mundo, Deus co-
meça a criação dos céus e da Terra, que inicialmente eram diferentes do que são agora (a
Terra era tabu, sem forma", e bohu, " vazia"), e então, em seis dias literais, prepara-os
para receber os seres vivos, criados em seguida.
Se Gênesis 1 se refere apenas à criação da vida na Terra ou também do nosso sistema
solar, é uma questão que permanece sem consenso. Porém, o ponto que interessa ao ptesente
estudo é outro: o ato criador de Deus. Esse ato é expresso pela palavra hebraica bani, indicando
Deus como sujeito e agente. Se Deus criou o céu, a Terra e todas as coisas (doutrina que
aparece não apenas em Genesis 1 e 2, mas em toda a Bíblia), então vê-se aí o primeiro
grande milagre da Bíblia. Aliás, Agostinho considerava a criação o único milagre!
O que transforma a criação num milagre ainda mais monumental é o método
envolvido na sua origem. Os teólogos cristãos, tradicionalmente, têm afirmado que
Deus criou o Universo pelo processo ex nihilo. Ou seja, a partir do nada, Ele fez tudo.
Vários pais da igreja cristã apostavam nessa idéia. O autor de Hebreus ( 1 1 : 3) afirma:
"Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram criados; de maneira
que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente.' Ecos da eriatio ex nihilo também
são vistos em Romanos 4:17, quando Paulo menciona "o Deus que vivifica os mortos
e chama à existência as coisas que não existem".
Mas será que é mesmo possível criar algo do nada absoluto? Ao falar dessa
doutrina da criação do nada, os teólogos querem dizer que Deus não usou nenhuma
substância material ou princípio à parte do poder do próprio ser de Deus. No início
do Universo, Deus só deve ter usado a Sua formulação mental e o poder de Sua palavra
(a física quântica classificaria o infinitamente pequeno, em seu nível mais profundo,
como informação). Pois, caso contrário, estaríamos admitindo que a matéria é co-
eterna com Ele, e isso é biblicamente inadmissível.
A Crítica aos Milagres 29

Isso é suficiente para colocar a criação no patamar efetivo (e afetivo) dos


milagres. De fato, a tradição rabínica tinha a criação em alta estima, consideran-
do-a o milagre por excelência. Na Bíblia, se não existe um texto explícito e direto
classificando a criação como milagre, não faltam marcantes exemplos de admiração
diante das maravilhas da natureza e de reconhecimento do poder que a criou. Por
exemplo, se o Salmo 105 é um hino em homenagem a Deus por Seus atos liberta-
dores (especialmente o êxodo do Egito), o Salmo 104 é um cântico de exaltação do
Seu poder criador. Mas talvez o Salmo 136:3-9 seja o texto em que a conexão entre
criação e milagre apareça de forma mais explícita. Nele, o autor convida o leitor
a render graças "ao único que opera grandes maravilhas" (v. 4) e "com entendi-
mento fez os céus" (v. 5), "estendeu a terra sobre as águas" (v. 6) e "fez os grandes
luminares" (v. 7).
E a idéia de um Deus pessoal (bom) Criador que dá sustentação a todos os atos
libertadores e redentivos subseqüentes que aparecem na Bíblia. A criação é a platafor-
ma sobre a qual repousa a própria redenção; é um selo autenticador, por antecipação,
de todas as maravilhas operadas por Deus na História. Se os milagres às vezes foram
usados para confirmar o poder de Deus, é porque primeiro o Seu poder foi mani-
festado na criação, o milagre por excelência. Em certo sentido, todos os milagres são
corolários da criação.
A ressurreição de Jesus, paralelamente à criação, é tida em alta conta pelos cris-
tãos. Mas será que ela tem realmente o st-atus de milagre no Novo Testamento? George
Ladd corretamente observa que a ressurreição não é um evento sobrenatural comum.
Não é apenas a restauração de um corpo morto à vida, mas sim "o surgimento de uma
nova ordem de vida". Ela tem uma natureza escatoRgica; é uma amostra/antecipação/
garantia da ressurreição final dos crentes. "A ressurreição de Jesus não significa outra
coisa senão o aparecimento, no cenário da História, de algo que pertence à esfera da
eternidade!" 21 Isso significa que a ressurreição não é um simples milagre, mas não é
menos do que um extraordinário milagre.
Porém, estabelecido o fato de que a ressurreição é um milagre ou "sinal", resta
ainda a questão da sua historicidade. Merece crédito o relato bíblico? Não posso discutir
aqui as evidências da ressurreição de Cristo, mas gostaria de ressaltar que vários estudos
mostram que a sua historicidade repousa sobre pilares históricos muito sólidos.
Se a historicidade da ressurreição caísse, junto com ela cairia todo o edifício do
cristianismo. Não ficaria pedra sobre pedra, e os milagres seriam os primeiros a ruir.
Contudo, se a ressurreição for um fato real e concreto, como é, então a R cristã e os
milagres do Novo Testamento (e, por extensão, os do Antigo Testamento) repousam
sobre uma plataforma firme.
Até mesmo a volta de Cristo e a glorificação dos salvos estão condicionadas à
ressurreição de Cristo, pois, obviamente, Cristo só poderia ir ao Céu e retornar à Terra
se estivesse vivo. Contra os que negavam que os mortos ressuscitarão, Paulo argumentou
30 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

que, se a missão de Jesus tivesse terminado num sepulcro na Palestina, a história da


redenção também estaria encerrada numa tumba e• não haveria nenhuma boa-nova €:
para anunciar (ver 1Co 15). Nas palavras de Ladd, se a "vinda de Jesus foi o clímax"
de uma "série de eventos redentores", a "sua ressurreição é o ponto que valida tudo o -
que dantes acontecera"; e, caso Cristo não tivesse ressuscitado, "a longa jornada dos
atos redentores de Deus, para salvar o seu povo", teria terminado "numa rua-sem-saída,
num túmulo"; Deus não seria o Deus vivo, a morte seria a "palavra final" e a fé seria
inútil» A realidade, porém, é que Cristo ressuscitou, e isso faz toda a diferença.
A ressurreição de Jesus é um selo autenticador, retrospectivamente, dos selos
(sinais) autenticadores da missão messiânica de Cristo, e ao mesmo tempo a base
da esperança, a garantia do futuro. Trata-se de um supermilagre confirmando
outros milagres. Assim, se a origem e o trabalho de Cisto já haviam sido confir-
mados por Seus milagres, a ressurreição não somente autentica o ato salvífico na I a
cruz, mas como que autentica Seus próprios milagres anteriores. Mais que isso, 1
ela projeta uma autenticação futura sobre os milagres que seriam feitos em Seu
nome por intermédio dos apóstolos.
Concluindo, eu diria que os milagres bíblicos, no fundo, não devem ser avaliados `
pela sua quantidade, freqüência ou plausibilidade, mas pela qualidade do Agente que
os efetua. Se um agente é frágil, pequenos milagres são muito grandes para ele; mas,
se é forte, então grandes milagres lhe são pequenos. A Bíblia estabelece o fato de que
um Deus poderoso criou todas as coisas. Aceito esse fato, os outros milagres se tornam
possíveis. Estabelece, também, que Jesus inverteu a experiência humana, morrendo
e tornando a viver. Aceito esse fato, igualmente, os outros milagres ligados ao Seu
ministério se tornam factíveis e adquirem um sentido especial.
A essência do verdadeiro milagre, Si seu sentido teológico, não é apenas evidenciar
que algo fenomenal aconteceu, mas chamar a atenção para o caráter do seu Agente. A
maior glória da criação não é a sua existência, mas apontar para o Criador; o mérito
maior da ressurreição não é a sua ocorrência, mas apontar para o Deus encarnado. Se
Deus não fosse quem é, agindo como agiu, não haveria Universo; se Jesus não fosse
quem é, vindo como veio, não haveria ressurreição. Assim como o Criador é maior do
que a criação, o Verbo que Se tornou gente é maior do que a ressurreição.
A ocorrência de milagres é altamente provável, porque um Deus que ama, é
inteligente e tem poder certamente irá agir. A Bíblia, eu diria, é o livro dos milagres.
Não apenas porque relate centenas deles ou seja em si mesma produto de múltiplos
milagres, mas porque apresenta um Deus miraculosa

NOTAS
' James Keller, "A Moral Argument Against Miracles'', Faith and Philosophy 12 (1995): 54-78.
2 David Mckenzie, "Miracles Are Not Immoral: A Response to James Keller's Moral'Argument

Against Mirades", Religious Studies 35(1999): 73-88.


3 Ceisler, 21.
A Crítica aos Milagres, 31
4 Em português, com tradução de Anoar Aiex, o ensaio se encontra em Berkeley, Nume, Os
Pensadores (São Paulo: Nova Cultural, 1989), 55.145. A seção X, referente aos milagres, compreende
as páginas 117-128.
Gcisler, 27-28. Vale a pena ler todo o capítulo "Are Miracles Incredibler, 23-31.
6 Colin Brown, Miracles and the Criticai Mind (Grand Rapids: Ecrdmans; Exerer: Pare, noster,

1983), 79.
Ibid., 91.
8 Ibid., 97.

Richard Whately, Historical Doubts Relative to Napoleon Bonaparte (Nova York: Robert
Gastei, 1849).
'" Ver Rudolf Bultmann, "New Testament and MythologY, em Kerygma and Myth: A Theological
Debate, ed. Hans Werner Bartsch (Nova York: Harper 8c Row, 1961), 3-16.
Peter Harrison, "Newtonian Science, Miracles, and the Laws of Nature", Jeurnal of the History
of Idcas 56 (1995): 531.
' 2 Lewis, Milagres, 58.
Ronald H. Nash, "Miracles ar Conceptual Systems'', em In Defense ofMiracles: A Compreherzsive
Case for Gods Action in History, ed. R. Douglas Geivett e Gary R. Habermas (Downers Grove: Inter-
Varsity, 1997), 119 e 121.
14 Michael Behe, A Caixa Preta de Darwin: O Desafio da Bioquímica à Teoria da Evolução, Ciência

e Cultura (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997),


15 Ibid., 253, 234.

' 6 Will iam A. Dembski, Intelligent Desigm The Bridge Between Science & Theology (Downers
Grove: InterVarsity, 1999), 120.
17 Steven Weinbcrg, Sonhos de Urna Teoria Final, Ciência Atual (Rio de Janeiro: Rocco, 1996),

191. À página 201, ele revela sua nostalgia e ceticismo: "Seria maravilhoso encontrarmos nas leis da
natureza um plano preparado por um criador envolvido, no qual os seres humanos tivessem um papel
especial. Acho triste pensar que não o encontraremos."
Stephen W Hawking, Urna Breve História do Tempo: Do Big Bang aos Buracos Negros (Rio de
Janeiro: Rocco, 1988), 238.
Dorothy Sayers, lhe Minei of the Maker (Nova York: Harcourt, Brace and Co., 1941), 63-83.
Lewis cita o argumento de Sayers em Milagres, 92.
20 Antonio Candido, "A Personagem do Romance", em A Personagem de Ficção, Antonio Candido

e outros, 9 ed. (São Paulo: Perspectiva, 1998), 76.


2 ! George E. Ladd, Teologia do Novo Testamento, 23 ed. (Rio de Janeiro: Juerp, 1993), 306, 309.

22 Ibid., 302.
,
OS PROPÓSITOS DOS MILAGRES
r
O milagre é um jeito de Deus reescrever com letras peque-
: nas aquilo que já escreveu na tela da natureza com letras
k. gi andes demais para alguns verem.
r c S. Lewis (1898-1963), filósofo irlandês
i.
k
1-
? O milagre não é um evento casual, gratuito, sem finalidade objetiva. Ele tem urna
. .
1 missão real, uma mensagem teológica. Na verdade, possui várias significações. O
, milagre "é um sinal polivalente", pois, como "tantas realidades cristãs, age ao mesmo
Irtempo em diversos níveis, indica direções diversas" . 1 Ele tanto pode revelar o interesse
gracioso de Deus pela humanidade sofredora quanto servir de credencial de uma missão
divina. Veremos, a seguir, oito propósitos dos milagres, no contexto bíblico.

REVELAÇÃO DA GLÓRIA

, Em primeiro lugar, os milagres servem para glorificar a Deus. Após todos os


juízos divinos sobre o Egito, no contexto do êxodo, o faraó ainda decidiu perseguir
, os israelitas. Deus então disse a Moisés que o povo deveria marchar na direção do
1 Mar Vermelho, pois Deus seria "glorificado em faraó e em todo o seu exército" (Êx
14:17 e 18). Presente na forma de uma coluna de nuvem e de fogo, Deus protegeu
Israel e destruiu os egípcios. Se a morte dos primogênitos egípcios havia sido o
, clímax de uma série de maravilhas, a destruição do próprio faraó e de seu exército
foi o clímax do clímax.
Mas a glória divina não brilha de modo extraordinário só em situações de jul-
,, aumento.
t. Ela brilha também em outras circunstâncias. Por exemplo, quando Jesus foi
, notificado de que Seu amigo Lázaro estava doente, comentou com os discípulos: "Esta
enfermidade não é para morte, e, sim, para a glória de Deus, a fim de que o Filho de
..
Deus seja por ela glorificado" (Jo 11:4). A beira da sepultura, diante dos piotestos de
i
' Mana, que não queria ver exposto o corpo putrefato de seu irmão, Jesus acrescentou:
aNão te disse Eu que se creres verás a glória de Deus?" (v. 40). A glória de Deus, no
caso, deve ser entendida como a revelação do Seu poder miraculoso, aliado ao Seu amor
' infinito, manifestado através de Jesus. A superioridade de Deus em relação à morte, ou
qualquer outro problema, anai a atenção do público e O exalta aos olhos dos especta-
34 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

dores, proporcionando honra ao Seu nome. Se o milagre foi percebido num nível mais
profundo, em que a pessoa consiga captar um vislumbre da onipotência, da sabedoria,
da justiça e do amor de Deus, ele pode gerar fé e relacionamento. É por isso que João
considera o milagre da transformação do vinho, em Caná, o marco inicial da revelação
• da glória do Filho, através de sinais: "manifestou a Sua glória e os Seus discípulos creram
nEle" (Jo 2:11).
Glória (hebraico, kabôd; grego, doxa), em seu uso secular na antiguidade, tinha
vários sentidos, em sua maioria relacionados a exaltação .e fama: (1) a opinião que
alguém tinha de si; (2) a opinião (boa) que os outros tinham dessa mesma pessoa; (3)
aquilo que torna uma pessoa respeitável na sociedade e lhe dá peso; (4) riqueza, posi-
ção honrosa. No Antigo Testamento, kabôd expressa o poder e a majestade de Deus,
enquanto Ele Se dá a conhecer ao ser humano, bem como a Sua aparição luminosa.
Na Septuaginta (onde aparece 445 vezes) e no Novo Testamento, doxa também se
refere a esplendor, poder, elogio, honra, brilho, revelação divina. 2
O milagre tem o objetivo de revelar, exaltar e honrar a Deus. Ele atua como uma
combinação de fogo de artifício (espetacular, não direcionado) e raio laser (direcionado,
objetivo), iluminando os atributos divinos, em especial a Sua onipotência. Sendo que
os atos poderosos de Deus têm um caráter ético, eles, por extensão, revelam o Seu amor
e a Sua justiça. Isso gera aplausos e louvores. Lucas, em especial, gosta de registrar tais
manifestações de louvor. Por ser Filho de Deus, onipotente e gracioso, Jesus participa
dessa glória, que é vislumbrada em todos os Seus milagres e tem expressão máxima
na cruz. Para Jesus, Suas obras são também as obras do Pai e do Espírito Santo, que
são um e atuam harmoniosamente.

TRANSBORDAMENTO DO AMOR

Em segundo lugar, os milagres servem para extravasar o amor de Deus. O agape


(amor) doador do Pai foi manifestado em muitas ocasiões, mas não na intensidade
vista no ministério de Jesus. Elias, por exemplo, multiplicou o azeite e a farinha da
viúva de Sarepta, mas primeiro garantiu o seu bolo. Cristo, diferentemente, não
fazia milagres para Se beneficiar. Aliás, Sua vitória tríplice sobre Satanás, no deserto,
começou com a negativarde transformar pedras em pães a fim de matar Sua fome.
O próprio tipo de milagre que Cristo fazia revela algo sobre o amor de Deus. "A
maioria dos milagres de Cristo são curas e ressurreições, gestos de misericórdia e
de bondade", comenta Latomelle. "Antes de qualquer mensagem particular eles já
são palavra de graça, expressão de amor. São como que saudação amiga e atenciosa
que dispõe para o diálogo." 3
Em Seus milagres transparecem vivamente a misericórdia e a bondade divinas. O
verbo grego splanehnizomai ("compadecer" ou "mostrar compaixão") é empregado nove
vezes no Novo Testamento para indicar a motivação de Jesus na cura de doentes. Ao
Os Propósitos dos Milogres 35

relatar o primeiro milagre de multiplicação, Marcos diz que Cristo "compadeceu-Se"


do povo (Mc 6:34); ao descrever a segunda multiplicação, afirma que Jesus expressou
"compaixão" por causa da fome dos ouvintes (Mc 8:2). Jesus fez vários milagres em
resposta a pedidos específicos, como nos casos dos cegos de Jerico (Mt 20:29-34) e
do leproso (Mc 1:40-42); e também fez milagres nos quais tomou a iniciativa, como
nos casos da ressurreição do filho da viúva de Naim (Lc 7:13) e do paralítico junto
ao tanque de Betesda (Jo 5:6). Em todos eles, implícita ou explicitamente, há um -
sentimento de compaixão e amor.
Por trás do amor de Jesus pela pessoa diretamente beneficiada, pode-se entrever
outra demonstração de amor, num nível quase oculto. Por exemplo, quando Lázaro
morreu, Jesus comenta, a certa altura, que tinha sido bom não ter estado lá e livrado
o amigo da morte, pois desse modo podia operar um milagre maior, ressuscitan-
do-o, o que levaria os discípulos a "crer" (Jo 11:15). Além do amor por Lázaro e
suas irmãs, havia o amor pelos discípulos — a preocupação em fortalecer a sua fé. A
caminhada sobre o Mar da Galiléia não foi urna demonstração vazia de habilidade
sobrenatural, mas uma teofania em que Jesus "passou" ou evidenciou (Mc 6:48) o
Seu poder e a Sua identidade diante deles, Era uma maneira de fortalecer a fé dos
discípulos, compensando sua tristeza e frustração (Jo 6:66) por Jesus ter rejeitado a
aclamação de Rei messiânico por parte de um público fascinado com o milagre da
multiplicação dos pães e peixes.
Há uma ocorrência em que, aparentemente, Jesus relutou em atender a um
pedido: o clamor da mulher cananéia em favor de sua filha endemoninhada. Porém,
nesse episódio, Sua atitude deve ser vista como uma estratégia para evidenciar a fé de
uma estrangeira e ensinar uma lição de tolerância inter-racial e religiosa aos discípulos.
Isso é confirmado pela disposição final de curar a menina "6 mulher, grande é a tua
fé! Faça-se contigo como queres" (Mt 15:28).
O Deus metafísico dos filósofos gregos (e de muitos teólogos cristãos) não podia
sofrer, pois isso seria prova de imperfeição. Contudo, a idéia de um Deus sem emoção,
impassível diante da miséria humana, não combina com o quadro pintado nos evange-
lhos, nem com a mensagem da cruz. Jesus revela o perfil de um Deus profundamente
apaixonado. É por ser absolutamente perfeito e pleno que Deus pode encarnar e sofrer.
Pai e Filho, inseparáveis, sofrem juntos. Tendo observado a revelação de Deus ao vivo,
João escreveu: "Deus é amor" (1Jo 4:8). Alguns milagres são como picos ou explosões
desse amor — amor de um Deus que é constante, mas não insensível.

SELO DE AUTENTICAÇÃO

Em terceiro lugar, os milagres servem para autenticar um mensageiro ou uma


missão divina Eles têm um valor didático e cornprobatório. Serviram, por exemplo,
para confirmar a liderança de um desconhecido Moisés, por ocasião do êxodo. Será
36 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

que, sem os poderosos atos divinos, o faraó teria libertado seus produtivos escravos?
Ou os milhares de israelitas teriam vagueado atrás de Moisés pelo deserto? O próprio
Moisés duvidava de seu sucesso: "Quem sou eu para ir a faraó e tirar do Egito os
filhos de Israel?" (Px 3:11). Deus prometeu ir com ele, ferindo o Egito com grandes
"prodígios" (Ex 3:12 e 20). A "mão forte" (Êx 3:19) convenceria os egípcios; mas, e os
israelitas, que nessa época talvez nem conhecessem direito o nome de Yahweh? Sinais
inconfundíveis, embora básicos, seriam a credencial de Moisés diante dos israelitas
(Ex 4:1-9). De fato, após a travessia do Mar Morto, Israel viu "o grande poder" de ,
Deus, temeu-0 e confiou nEle e em Moisés (Ex 14:31).
No Novo Testamento, Marcos encerra seu evangelho com a afirmação de que o
Senhor confirmava a missão dos apóstolos "por meio de sinais" (16:20). Em Icônio,
Deus autenticou a palavra de Paulo e Barnabé "concedendo que poi mão deles se •
fizessem sinais e prodígios" (At 14:3). O próprio Paulo invocou os "sinais, prodígios
e poderes mi raculosos " como "credenciais do apostolado" (2Co 12:12). E Hebreus
(2:3 e 4) informa que a mensagem de salvação, anunciada por Jesus e confirmada
pelos apóstolos, recebeu testemunho de Deus, "por sinais, prodígios e vários mila-
gres,'e por distribuições do Espírito Santo segundo a Sua vontade". No discurso de
Pedro no Pentecostes, os milagres de Jesus são evocados como autenticação de Sua
condição messiânica (At
Todos esses textos, entre outros, apontam para o milagre como credencial de
uma missão divina, um atestado de genuinidade e credibilidade. É como se Deus
dissesse, em linguagem não-verbal, mas altamente perceptível: "Olhem, esta pessoa
tem o Meu aval. Prestem atenção ao que ela vai dizer."
Apesar de atuar como credencial, o milagre não é, sozinho, uma prova de corre-
ção doutrinária ou garantia de origem divina É possível até usar o nome de Jesus na
operação de milagres e não ter relacionamento salvífico com Ele (Mt 7:22 e 23). O
profeta ou taumaturgo deve agir em conformidade com a palavra de Deus anterior-
mente revelada (Dt 13:1-5). Um indivíduo não pode ser agente de Yahweli se buscar
destruir a lealdade do povo a Yahweh e Sua lei.
Além disso, é importante ressaltar que o sentido do milagre não se esgota na
autenticação de uma mensagem ou de um mensageiro. O milagre contém, em si, um
conteúdo. Ele é meio e mensagem.

DEMONSTRAÇÃO DE PODER

Em quarto lugar, os milagres servem para atestar a supremacia de Deus sobre deuses
rivais. Este ponto está relacionado com o item anterior, mas se diferencia dele por mostrar
o próprio Deus em cena Se lá o foco é a figura do mensageiro, num contexto de tensão
espiritual, aqui o foco é Deus, num ambiente de combate espiritual direto. Tais milagres
visam mostrar quem está no comando da História ou da natureza
Os Propósitos dos Milagres 37

De alguma forma, todos os milagres realizados na época do exílio judeu na Babi-


lónia entram nesta categoria. Através deles, Deus estava dizendo que não é Marduque
quem governa o mundo ou controla as coisas, mas sim Ele, Yahweh. Marduque (he-
braico, Merodach) se tornou cabeça do panteão babilônico, oficialmente, por volta de
1100 a.C. Conhecido também como I3e1, é mencionado três vezes por nome na Bíblia
(Is 46:1; Jr 50:2; 51:44). No oitavo século a.C., seu "filho" Nabu (ou Nebo), patrono
de Borsippa, ganhou statur e juntou-se a ele. Na concepção de vários povos "primitivos",
os deuses amavam sobre determinadas regiões. Seriam deuses territoriais. Marduque
era o Deus da Babilônia, mas, para a mentalidade da época, isso equivalia a ter um
domínio sobre o mundo "inteiro". Deus mostra que, na realidade Marduque é uma
farsa. Na hora da crise, o deus visível em todos os lugares da Babilônia não tem poder
para resolver os problemas, enquanto o Deus invisível de Israel controla tudo.
O veredicto, após o confronto, é invariável, Yahvveh não tem rivais à altura. Assim,
depois de Daniel revelar' o sonho de Nabucodonosor, missão em que os sábios babilô-
nios fracassaram, o rei reconhece que o Deus de Israel é "Deus dos deuses, e o Senhor
dos teis, e o revelador de mistérios" (Dn 2:47); depois do livramento miraculoso de
Sadraque, Mesaque e Abede-Nego da fornalha ardente, Nabucodonosor louva o Deus
deles e decreta que ninguém blasfeme contra Ele (Dn 3:28 e 29); e, após sua loucura,
o rei anuncia publicamente: "Pareceu-me bem fazer conhecidos os sinais e maravilhas
que Deus, o Altíssimo, tem feito para comigo. Quão grandes são os Seus sinais, e quão
poderosas as Suas maravilhas" (Dn 4:2 e 3). Quando o rei Dano constatou o milagre
divino em favot de Daniel, protegendo-o dos leões, fez um decreto pelo qual todas as
pessoas do reino "tremam e temam perante o Deus de Daniel; porque Ele [ ] livra e
salva, e faz sinais e maravilhas no céu e na Terra" (Dn 6:26 e 27).
Voltando aos tempos de Elias, não é Baal (Melcarte, o grande deus da fertilidade
dos cananeus, muito cultuado em Tiro) que faz chover, ou descer fogo do céu, mas
Yahweh. Elias pede para Deus incendiar o altar não tanto para credenciar-se como "ser-
vo de Deus", mas para mostrar que Yahweh é o verdadeiro Deus (1Rs 18:36-39).
No êxodo, como mostra o quadro 2, Deus atacou sistematicamente as divindades
egípcias, enviando pragas ao seu suposto território. O confronto, declaradarnente, não
era entre Moisés e o faraó, mas entre Deus e todos os deuses do Egito (Ex 12:12).
A religião egípcia reconhecia um número enorme de deuses. Era preciso mostrar que
todos aqueles deuses, embora servindo aos propósitos de um poder maligno real, não
eram obstáculo para Yahweh.
Avançando para a época neotestamentária, vemos Cristo andando por cima da água
(Mt 14:22-33), símbolo de forças hostis ou mesmo do poder do mal, e expulsando
demônios. Aqui, o conflito fica mais dramático, pois se antes havia, digamos, uma
mediação de profetas, agora é o próprio Messias enfrentando o diabo e o vencendo,
para estabelecer o Seu reino rnessiânico/escatológico (Mt 12:26 e 28). Em certo sentido,
a supremacia é atestada não só pela demonstração direta de superioridade em poder,
38 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

mas pela conquista territorial, em que o reino das trevas vai diminuindo no espaço
e no tempo. Por isso, não só Jesus expulsa demônios, mas também os discípulos são
comissionados a fazê-lo (Mt 10:8; Mc 16:17). Com base no uso do verbo ekballo
("expulsar", "expelir") pela Septuaginta no contexto da conquista de Canaã, Michael
Brown sugere que, "assim como os israelitas foram comissionados por Yahweh a expul-
sar e desapossar os cananeus, tomando desse modo a Terra Prometida, assim também
os discípulos foram comissionados por Jesus a expulsar e desapossar os demônios,
retomando dessa maneira o que por direito pertencia a Deus" . 5 Em Atos, diz Peter
Davicls, a superioridade do poder dos apóstolos sobre a magia "é apenas um subtema
do contraste entre Deus e as divindades pagãs encontrado em vários lugares" nesse
livro (ver At 8, 13, 14e 19). 6

Pragas/prodígios Divindades egípcias "desmoralizadas"


Sangue ísis deusa do Nilo; Nun, deusa do caos prárievo a fonte do rio Nilo
Rãs Hect, a deusa do nascimento, que tinha cabeça de rã
Piolhos Geb, o deus da terra; Set, o deus do deserto
Moscas Sacarob, o deus inseto; Uatchit, simbolizado pela mosca
Peste nos animais Ápis o deus touro; Hactor, deusa de cabeça de vaca
Úlceras Tot, o deus do conhecimento médico; Selchrnet, deusa das doenças
Saraiva Nut, deusa do céu
Gafanhotos Anubis, o guardião dos campos; Osíris, deus da agricultura
Trevas Rá, o deus sol
,
Morte dos primogênitos Faraó, o deus-rei dos egípcios; Isis, protetora das crianças
Quadro z: milagres do êxodo e a supremacia de Yahweh sobre os deuses egípcios

Portanto, os milagres de confronto são uma espécie de tira-dúvidas, para


mostrar quem é quem. Ao mesmo tempo em que servem de julgamento para os
poderes desafiantes, eles evidenciam que Deus está acima de qualquer poder (ani-
mado ou inanimado) existente no Universo. O milagre é um sinal da supremacia
absoluta de Deus.
O papel singular de Yahweh, em contraste com os falsos deuses, se manifestou de
modo especial na área da saúde. Como observa Michael Brown, as divindades curadoras
desempenhavam um papel significativo entre as nações vizinhas do antigo Israel, o que
é atestado pela grande quantidade de orações pedindo curas físicas e restauração da
fecundidade agrícola. Nesse ambiente mágico-politeísta, Yahweh Se apresenta como
'o único Deus curador, o verdadeiro médico divino de Israel (e do mundo).'
Os Propósitos dos Mi/agres 39

A pedra fundamental da teologia da cura na Torah é Êxodo 15:22-27, com


destaque para uma frase do verso 26: "Eu sou o Senhor que te sara." Essa afirmação,
ressalta IVIichael Blown, está inserida num contexto estratégico, pois Israel havia dei-
xado para trás o Egito, com suas divindades curadoras, e agora estava para enfrentar
Canaã, também com suas divindades curadoras. Para a mentalidade do antigo Oriente
Próximo (e bíblica), era inconcebível um deus/Deus que não curasse. A cura não era
tarefa específica de um deus, mas de todos os deuses principais. Ao afirmar Seu poder
curador tão cedo, antes mesmo da legislação básica do sábado no capítulo 16, Yahweh
revela a importância fundacional do tema na vida de Israel e Se coloca infinitamente
acima de todos os outros deuses. Ele, que tinha ferido o Egito com poderosas pragas
(inclusive suas águas), anuncia que é o único rôpe' (curador/médico) de Israel, o Deus
capaz de curar, manter ,o bem-estar e suprir as necessidades de Seu povo obediente.'
,

No cântico de Moisés, às bordas da Terra Prometida, Yahweh novamente faz uma


afirmação de Sua singularidade/unicidade e absoluta superioridade em face dos deuses
falsos e repete o motivo da cura: "Vede agora que Eu sou, Eu somente, e mais nenhum
Deus além de Mim: Eu mato, e Eu faço viver; Eu firo, e Eu saro" (Dt 32:39). Note-se
a ênfase no pronome "Eu", a qual é vista especialmente no hebraico. Essas palavras,
proferidas por Deus, olham para o passado assim como as palavras de Êxodo 15:26
olham para o futuro. O fato é que, numa das mais fortes declarações monoteístas da
Torah, Yahweh Se apresenta como o único médico de Israel.

ÊNFASE NA VERDADE

Em quinto lugar, os milagres servem para ensinar ou ressaltar uma verdade.


As curas realizadas por Jesus em dia de sábado são a maior evidência disso. Ao que
parece, Ele efetuou de propósito, e não por acaso, curas nesse dia. É altamente sig-
nificativo que, nas sete diferentes curas sabáticas registradas nos evangelhos, Jesus
tomou de alguma forma a iniciativa, enquanto nos outros casos os pedidos quase
sempre partiam das pessoas interessadas. Essas curas em geral aconteceram num
ambiente de controvérsia com as autoridades religiosas quanto a alguns elementos
do corpo de regras que legislava a observância do sábado. Jesus não violou a lei, mas
desafiou o legalismo vigente.
Marcos (3:1-6) relata que, num sábado, Jesus entrou na sinagoga, viu um
homem com a mão ressequida e o chamou para o "meio", lançando uma pergunta
retórica ao público sobre a legalidade ou não de fazer o bem no sábado. Em se-
guida, curou o homem, para desgosto dos fariseus. Em outra ocasião, Jesus curou
uma mulher no sábado (Lc 13:10-17), e o chefe da sinagoga protestou contra a
busca da cura no sábado. Jesus, com uma lógica cortante, disse: "Hipócritas, cada
um de vós não desprende da manjedoura no sábado o seu boi ou o seu jumento,
para leva-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro em dia de
40 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

sábado esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (vs. 15
e 16). O mesmo evangelista fala da cura de um "hidrópico" (pessoa com acúmulo
de líquido no corpo) no sábado (Lc 14:1-6). Antes de curá-lo, Jesus fez uma con-
sulta aos fariseus sobre a legalidade da cura no sábado. Eles nada responderam,
e Jesus curou o doente. Por sua vez, João 5:10 menciona a crítica dos judeus ao
paralítico que, curado por Jesus no sábado, estava carregando sua esteira nesse
dia; e João 9 registra o inquérito" instaurado pelos fariseus por Jesus ter curado
um cego no sábado.
Mas o que desejava Jesus ensinar com os milagres que, deliberadamente, realizou
{, no sábado? Essas curas tinham, por certo, o objetivo de esclarecer o verdadeiro sentido
desse dia. Os judeus consideravam o sábado um pequeno antegozo do olam haba, o
- mundo futuro. Sua teologia ensinava que qualquer coisa que não será feita no mundo
porvir, como a cura, também não deve ser feita no sábado. Portanto, os fariseus viam
as curas de Jesus no sábado como pecaminosas.
,
(

Porém, há outro aspecto, que fica bem claro no contexto da cura de um para-
lítico, em João 5. A teologia rabínica ensinava que Deus ao mesmo tempo descansa
e trabalha no sábado. Ou seja, a divina providência sempre permanece ativa, pois,
{ casa contrário, a vida cessaria. As pessoas que nascem e as aue morrem no sábado são
evidência da atividade contínua de Deus. Só Ele pode dar a vida, só Ele pode julgar os
mortos. Portanto, ao curar no sábado, Jesus realiza uma atividade exclusiv a d e Deus
sesxopsrciestsaa, da á Sua igualdade i . O s judeus percebemigual
euoemfazo vPeam se isso
is tentam
p ai ompaot ád-eLr ioa.
Jesus , ao invés de recuar, reafirma ainda mais a Sua igualdade com Deus. Ele julga,
ressuscita, vida. Tudo que do pois, sendo ao não
agir independentemente do Pai.'
Com essas curas, Jesus ensinou que e legal e indicado fazer o bem no sábado,
pois o sábado é uma miniatura da eternidade, um tempo de descanso, bem-estar e alegria
na Presença do Senhor do tempo. Ele conectou o sábado com a cura e a salvação. "O
sábado aponta em direção a um tempo futuro quando cada problema não-resolvido,
quer físico, emocional ou espiritual, será curado no reino vindouro. " 0 Jesus revelou
também que o Messias que traria uma nova qualidade de vida já estava presente e
atuando, pois o sábado é um tempo próprio para simbolizar a libertação e as bênçãos
da era messiânica. Os líderes judeus estavam perdendo o ponto central: a realidade
de que o Deus que estende o toque de vida e de cura a todas as criaturas, no presente
e no futuro, estava atuando visivelmente em seu meio.
As curas sabáticas, portanto, têm uma dupla função: revelam (1) a identidade do
Messias e (2) o caráter do sábado (e da eternidade). A ação do Messias no presente dá uma
amostra da qualidade de vida no futuro, simbolizada pelo sábado. Contra as regras e as
expectativas da liderança judaica, Jesus mostra o que significa experimentar o sábado na
,
perspectiva divina e na dimensao da eternidade - um sábado contínuo.
Os Propósitos dos Milagres 41
POTENCIALIZAÇÃO DA PREGAÇÃO

Em sexto lugar, os milagres servem para fortalecer a igreja e ampliar o alcance


do seu ministério. Há evidências em Atos de que o sucesso e a popularidade iniciais
da igreja cristã se deveram, em parte, aos milagres. Lucas registra:

Muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo, pelas mãos dos apóstolos. [...] E
crescia mais e mais a multidao de crentes, tanto homens como mulheres, agregados
ao Senhor, a ponto de levarem os enfermos até pelas ruas e os colocarem sobre leitos
e macas, para que, ao passar Pedro, ao menos a sua sombra se projetasse nalguns deles
(At 5:12, 14-16).
,
Diante da pressão da liderança judaica de Jerusalém, os membros da igreja oraram
por intrepidez na Pregação , seguida de curas, sinais e prodígios" (At 4:29 e 30). Paulo
í fala orgulhosamente das coisas que Cristo fez por seu intermédio, "para conduzir os
I, gentios à obediência, por palavras e por obras, por força de sinais e prodígios, pelo poder
do Espírito Santo; de maneira que, desde Jerusalém e circunvizinhanças, até o Ilírico",
I ele conseguiu divulgar o evangelho (Rui 15:18 e 19). Igualmente, o trabalho de Filipe
em Samaria foi bem sucedido graças aos "sinais que ele operava" (At 8:6; ver 5 13).
-
-

O bom senso sugere que as pessoas crêem mais facilmente naquilo que podem
ver ou provar, especialmente se isso lhes causa uma forte impressão. Por esse motivo,
os milagres atuam como potencializadores da pregação. Eles não são o kerygrna, mas
componentes que o tornam mais forte e conhecido. Por exemplo, convidando o povo a
receber o seu milagre, o evangelista alemão Reinhará Boimke reuniu, em novembro de
2000, urna multidão de quase 6 milhões de pessoas numa cruzada evangelística de seis
dias em Lagos, capital comercial da Nigéria e uma das maiores e mais problemáticas
cidades africanas. Seus métodos e sua teologia são controvertidos, mas não há como
negar a força do apelo aos milagres.

ANÚNCIO MESSIÂNICO
Em sétimo lugar, os milagres servem para anunciar os tempos messiânicos Quando
João Batista, preso no castelo de Marquem, na margem oriental do Mar Morto, enviou
amigos para questionar diplomaticamente se Jesus era realmente o Messias, Jesus man-
dou lhe um recado inconfundível: "Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são
-

purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados" (Mt 11:5). Esses eram os
sinais da era messiânica João ainda tinha dúvidas? O próprio João, embora fosse "muito
mais que um profeta" (Mt 11:9), não fizera nenhum milagre (Jo 1041). Mas agora os
milagres eram abundantes. Esse fato pode ter sido uma providência divina, para assinalar
claramente quem era o precursor e quem era o Messias. Coai o Seu recado parabólico a
João, Jesus confirmou que a era messiânica havia chegado — ainda que o Messias preferisse
não Se envolver em questões políticas, no sentido de libertá-lo.
42 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

O milagre como anúncio dos tempos messiânicos é visto também em outros


incidentes. Em certa ocasião, Jesus curou um paralítico para mostrar que "o Filho
do homem tem sobre a Terra autoridade para perdoar pecados" (Mt 9:6). Em outra
oportunidade, disse explicitamente que Suas obras testemunhavam de que o Pai O
enviara (Jo 5:36). Nicodemos reconhece que Jesus vem de Deus por causa de Seus
sinais go 3:2). E, no Pentecostes, Pedro anuncia "Jesus, o Nazareno, varão aprovado
por Deus [...] com sinais, prodígios e milagres" (At 2:22).
Graharn Twelftree pode estar certo quando diz que Jesus não via Seus milagres
apenas como uma evidência do aparecimento ou da proximidade do Reino, mas
como "o reino escatológico de Deus em operação". Para os quatro evangelistas, diz o
autor, "os milagres de Jesus são mais do que as maravilhas de um profeta". Carregando
as digitais de seu operador, "os milagres de Jesus revelam a identidade dEle como o
próprio Deus em ação: de fato, Deus é encontrado nos milagres"." Nem todos re-
conhecem a natureza rnessiânica/escatológica da atividade miraculosa de Jesus, mas
Ele está consciente dela.
A estratégia de vir na forma de um Servo humilde, contrariando as expectativas
dos judeus sobre a figura do Messias, tornou o recurso dos milagres quase obrigató-
rio para Jesus — ou pelo menos necessário. Caso contrário, como chamar e prender
a atenção do povo? Como ser reconhecido? Otto Borchert observa que "a beleza
deste Homem não era óbvia para o homem das ruas, mas se desvendou tão somente
gradual e vagarosamente diante dos olhos humanos; de forma que até o fato de ele
ter convencido os Doze pode ser entendido com dificuldade, sem a operação de Seus
milagres; e de fato, isso não foi obtido sem eles"»
Alérn disso, falsos líderes não eram incomuns na época (ver At 5:36 e 37). Como
distinguir o legítimo do falso? Os milagres, ao lado do ensino, eram o diferencial
entre os candidatos. Serviram de holofote para Jesus e ajudaram a contrabalançar Sua
opção pela humildade, servindo de brilho "provisório" até a manifestação máxima de
Sua glória, na cruz. -
Jesus, entretanto, não usa os milagres para validar expectativas errôneas a res-
peito do caráter da missão do Messias. Em Marcos 8:11-13, lemos sobre o pedido
de um "sinal do céu" por parte dos fariseus e a firme negativa por parte de Jesus. O
que havia de errado com o pedido de um sinal? Numa análise bastante sólida desse
texto, Jeffrey Gibson sugere uma resposta plausível. Primeiro, ele lembra que há
um certo consenso de que, no relato marcano, Jesus rejeita o pedido de um sinal
porque o Seu ministério já era auto-autenticador em si mesmo e não precisava de
prova externa; realizar o milagre seria uma concessão à descrença. Mas, em vez de
acatar essa explicação genérica e consensual, Gibson argumenta que o sinal pedido
pelos fariseus era específico, um "fenômeno cujo conteúdo é apocalíptico no tom,
triunfalístico em caráter, e a incorporação de um dos 'poderosos atos de libertação'
que Deus tinha operado em prol de Israel ao resgatá-lo da escravidão".'' Ou seja,
Os Propósitos dos Milagres 43

1- os fariseus ("esta geração'', na linguagem de Jesus) pediam urna manifestação que


resultasse na libertação de Israel dos seus inimigos. O problema, assim, não estava
k com a oposição pura e simples de Jesus à idéia de produzir um sinal, mas com o
E tipo de milagre "proibido" que exigiam de Jesus. Se os milagres eram urna evidência
dos tempos messiânicos, não eram o instrumento político para Jesus agradar o povo
e fugir de Sua missão.
As curas de Jesus, em especial, tinham um colorido messiânico. No Penta-
teuco, destaca-se o que Michael Brown chama de "cura pactuai" ou "concertual"
(saúde sobrenatural pela obediência, doença sobrenatural pela desobediência, cura
sobrenatural com base no arrependimento). Já nos livros históricos surge a "cura
profética", a qual prepara o caminho para o surgimento da "cura escatológica"
(e, em certo sentido, mais decisivamente profética) da era messiânica." Jesus é o
protagonista dessa nova fase, a qual culminará com o que podemos chamar de
"cura doxológica", na parousia.
Se os profetas do Antigo Testamento visualizavam os tempos messiânicos corno
uma era de milagres e curas, Jesus confirma plenamente sua expectativa. Ele cura ce-
gos, surdos, mudos, paralíticos, leprosos, hemorrágicos; ressuscita mortos; liberta dos
demônios. Não apenas revela poderes totais, mas confere autoridade aos Seus seguidores
para fazerem obras semelhantes. Moisés, com suas obras de profeta poderoso, era um
paradigma do Messias (Dr 18:15). Com Cristo, novo e superior Moisés, os milagres
confirmam uma promessa e anunciam um novo tempo.
Apesar de serem característicos de um poder superior e de revelarem uma nova
realidade, os milagres de Cristo permitem a livre resposta humana. "Em nenhum
acontecimento os milagres derrubaram as pessoas e as esmagaram como um rolo
compressor para que cressem", comenta Philip Yancey. "Nesse caso não haveria lugar
para a fé.'''' Isso nos leva ao próximo ponto.

‘4 SINAIS DO REINO

Por fim, os milagres servem de sinais de uma realidade espiritual mais pro-
funda. Os milagres de Cristo, em especial, devem ser interpretados em dois níveis:
(1) metafórico e (2) escatológico. Como sinal metafórico, o milagre é símbolo da
suficiência divina para Suas criaturas; como sinal escatológico, prefigura as mudanças
do mundo por vir. Nas palavras de Latourelle, os milagres "invadem o nosso mun-
do e fazem uso de seus elementos", mas "alcançam-nos como um chamado de um
mundo distante e novo, e dão-nos um lampejo de seu esplendor".' 6 Essa dupla
dimensão é mais visível no evangtlho de João, onde o termo "sinal" (ou "sinais")
aparece 17 vezes. A própria estrutura do relato joanino, focalizando o milagre
seguido de um discurso ou diálogo explicativo, mostra seu objetivo teológico
deliberado (ver o quadro 3).
44 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Milagre Texto Sinal Metafórico Sinal Escatológico


Água em vinho João 2:1-11 Jesus como vinho novo O Reino de Deus terá delícias e novas
,
(superioridade do evangelho e da sensações.

Nova Aliança em relação à


esterilidade titual da Velha Aliança)

Cura do filho do João 4A6- Jesus como fonte da saúde e O Reino de Deus trará saúde a todos,

oficial do rei 54 recompensador da fé independente da sua origem.

Cura do paralítico João 5:1-18 Jesus como agente da liberdade O Reino de Deus proporcionará

junto ao tanque de mobilidade e ação.

Setesta

Multiplicação dos João 6.1- 3 Jesus corno Pão da Vida O Remo de Deus terá abundância de

pães c peixes alimentos e eliminará a fome..

Caminhada sobre João 6:16- Jesus como controlador da natureza No Reino de Deus, "o mar já não

a água 21 hostil e desconhecida; Sua existe" (Apoc. 21:1) e, portanto, não

superioridade contra as forças do mal causará medo.

fica demonstrada

Cura de um cego João 9:1-12 Jesus corno a luz do mundo O Remo de Deus possibilitará uma

nova visào da realidade, com acesso


direto ao Criador

Ressurreição de João 11:1- Jesus como doador da vida No Remo de Deus, os monos serão

Lázaro 46 vivificados e a morte não mais existira

• Quadro 3: Sinais de Jesus no evangelho de João e seu significado

Por exemplo, após a cura do cego, Jesus proclama: "Enquanto estou no mundo,
sou a luz do mundo" (9:5). Depois da multiplicação dos pães, Jesus Se revela como o
Pão da Vida (6:35) e diz que o resultado de se comer desse pão é a vida eterna (6:40).
No incidente da ressurreição de Lázaro, Marta chora e expressa sua fé conformada de
que seu irmão "há de ressurgir na ressurreição, no último dia" (11:24). Jesus então
lhe diz: "Eu sou a ressurreição e a vida" (11:25).
Nas entrelinhas, Ele estava dizendo: "Marta, olhe para Mim! Você está olhando
para o futuro, em busca da vida. A vida está aqui. Eu sou a vida." Na seqüência, Jesus
amplia o sentido da afirmação e disponibiliza a vida a todos os cientes: "Quem crê
em Mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em Mim, não morrerá,
eternamente" (11:25 e 26).
O que vale para João, vale também para os Sinóticos — com a ressalva de que em
João os milagres apontam para o Filho de Deus, enquanto nos Sinóticos destacam a
chegada do Reino de Deus. Dito de outro modo, em João os milagres são semeia (si-
nais), ao passo que nos Sinóticos são dynanzeis (atos de poder). João focaliza o Salvador
divino em primeiro plano; a tradição sinótica enfatiza a vitória sobre Satanás. João
Os Propósitos dos Milagres 4

quer lançar luz sobre a identidade de Jesus; os Sinóticos destacam a Sua missão. Mas,
em ambos os casos, os milagres são sinais de uma realidade espiritual mais profunda.
Vários relatos miraculosos confirmam isso.
Por exemplo, quando Marcos (2:10 e 11) revela que Je s us perdoou um para-
lítico antes de curá-lo fisicamente, está querendo dizer que Jesus é divino e que no
Reino de Deus a culpa será removida. "Marcos está retratando Jesus como agindo
em lugar de Deus", observa Graham Twelftree; "a ação de Jesus em perdoar pecados
é sem paralelo e está fora do escopo da lei". É. um fato inusitado. "Portanto, embora
Jesus esteja sendo retratado como um taumaturgo, Ele é mais do que isso: ao curar
(e perdoar), Ele está agindo no lugar de Deus ou, talvez, como Deus "17 No relato
da pesca milagrosa, Lucas deixa entrever que, além do poder miraculoso de Jesus,
está em pauta o sucesso da igreja através da evangelização: "doravante serás pescador
de homens" (Lc 5:10), A purificação de um leproso (Mc 1:40-45) significa não só o
seu retorno para a comunidade atual, mas a reintegração do pecador na comunidade
divina. As expulsões de demônios representam o triunfo do Reino de Deus (Lc 11:20)
e a erradicação futura do mal. Por isso, quando os 70 relatam eufóricos o sucesso de
sua missão apostólica, dizendo que até os demônios se lhes submetem, Jesus exclama:
"Eu via a Satanás caindo do céu como um relâmpago" (I.c 10:18).
Percebidos nessa dupla dimensão, os milagres mostram o esplendor dos dons ce-
lestiais para o ser humano, em Cristo, e fazem um marketing antecipado dos benefícios
que estão vindo aí, com o estabelecimento definitivo do Reino de Deus. Eles atuam
como espelho de um mundo invisível, anúncios de um tempo virtual. Tornam visível
o invisível e real o virtual. São sinais no sentido mais profundo da palavra.

PROFUNDIDADE DO SINAL

Ver o milagre como um fenômeno multifacetado é importante, porque todos


os ângulos têm o seu valor. Mas, se fosse para escolher apenas uma função para o
milagre, o aspecto mais popular entre os teólogos, na atualidade, provavelmente
seria o de sinal. Essa tendência é, talvez, ainda mais forte entre os teólogos católi-
cos. Para alguns, o fator sinal se destaca tanto que o frito em si quase desaparece,
ou é relegado a segundo plano. A ênfase está na significação do evento, na
mensagem do prodígio.
Essa abordagem tem mérito. Jesus incentiva o cristão a buscar o sentido mais
profundo do milagre, o sinal por trás do prodígio (ver Jo 6:26 e 27). Mas cabem
aqui uma constatação e uma advertência: (1) o milagre só pode servir de sinal se
for factual; (2) quando se dá ênfase exagerada ao significado do milagre, corre-se
o risco de perder de vista a sua fonte. O foco é deslocado totalmente da origem
para a finalidade, e isso gera distorções. O ideal é prestar atenção ao fato, à fonte e
à mensagem: o que aconteceu, de onde veio o acontecimento, o que ele significa.
46 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Testar os espíritos, para ver se são de Deus, é importante "porque muitos falsos
profetas têm saído pelo mundo fora" (1Jo 4:1). Se Deus faz milagres, o poder do
mal O imita.
É a fé, num nível relacional, que permite ver o milagre em sua dimensão cor-
reta. Para observar um prodígio, basta ter olhos ou um bom aparelho óptico; mas,
para perceber o milagre como sinal, é preciso o olhar da fé. Por exemplo, uma rosa
não tem para um botânico o mesmo significado que tem para um casal apaixonado.
Uma mãe responde ao choro do seu bebê de modo diferente de uma enfermeira.
Um físico analisa orn facho de luz piscando no mar de maneira diferente de um
escoteiro que conhece os sinais de SOS. Um médico explicaria a morte da princesa
Diana, na noite de 31 de agosto de 1997, de um jeito, após fazer uma autópsia, e
um fã a explicaria de outro jeito, após considerar sua beleza, magia, solidariedade e
perseguição por parte da mídia e da família real britânica. Os níveis de significação
são diferentes para olhares diferentes.
O cientista dá a explicação que pode dar aos fenômenos, dentro dos conceitos e
das medidas da sua especialidade. A ciência atua no âmbito da matéria e da energia,
tentando responder perguntas em termos de "como". Ela não tem respostas para as
perguntas do tipo "Por quê?" ou "O que isto quer dizer?", as quais se relacionam
com valor e significado.
Isso apenas comprova que existem diferentes maneiras de enfocar os milagres.
O cético, ou o incrédulo, olha para um milagre e vê apenas um prodígio; quem sabe,
nem isso. Já o crente vê o sinal por trás da maravilha; quem sabe, até mais que isso (o
próprio Agente do milagre). Diz Paul Tillich:

Aquilo que não nos abala por seu caráter assombroso não tem poder revelatório. Aquilo
que abala sem apontar para ó mistério do ser não é milagre, mas magia. Aquilo que não é
recebido em êxtase é um relato sobre a crença num milagre, não um milagre atual lrealj.
Isto está enfatizado nos registros sinoticos dos milagres de Jesus. Milagres só são dados
para aqueles a quem eles são sinais-eventos, para aqueles que os recebem em fé."

Em resumo, pode-se dizer que os milagres têm pelo menos oito propósitos,
chamando a atenção para a ação divina, autenticando uma missão e dando visibilidade
ao invisível, entre outras coisas. Porém, todos esses aspectos estão interligados, e o
mais importante é percebê-los como sinais. Só vê os milagres quem tem a capacidade
de maravilhar-se diante da ação divina no mundo.

NOTAS
' René Latourelle, Teologia da Revelação, Teologia Hoje, Yed. (São Paulo: Paulinas, 1985), 506-
507, itálico no original.
Geotg Mohn, "Glória", Dicionário de Teologia Bíblica, ed. Johannes B. Bauei, 3 ed. (São Paulo:
Loyola, 1984), 1:442-446.
Os Propósitos dos Milagres 47
Latourelle, rleologia da Revelação, 523.
4
O conhecimento especial que Deus deu a Daniel nesse caso não é tecnicamente um milagre,
mas se situa no campo do sobrenatural. A profecia está para a onisciência de Deus assim corno o milagre •
está para a Sua onipotência. Ambos são expressões de atributos divinos.
5 Michael L. Brown, Israel Li Divine Healer
(Grand Rapids: Zondervan, 1994), 216-217.
'P. H. Davids, "Miracles in Acts", Dictionary of the Later Neto Testament & lis Developments,
ed.
Ralph P. Martin e Peter H. Davids (Downets Grove: InterVarsity, 1997), 750.
' Michaél Brown, 21.
" Ibid., 53, 72-77.
9 José Carlos Ramos,
Evangelho de João: Introdução e Comentário (Engenheiro Coelho, SP: SALT,
2000), 143, 164 e 165.
Reid, 768.
" Graham H. Twelftree, _Jesus the Miracle Worker: A Hittorical and Theological Study
(Downers
Grovc: InterVarsity, 1999), 343, 347, itillict o suprimido.
' 2Otto Borchert, O feias. Histórico (São Paulo: Vida Nova, 1990), 98.
Jeffrey Gibson, "Jesus' Refusal to Produce a 'Sign' (Mk 811-13)", Journal for the Study of the
New 7èstarnent 38 (1990): 37, 53.
Michael Brown, 92 e 93.
Philip Yancey, O Jesus Que Eu Nunca Conheci (São Paulo: Vida, 1998), 184.
VI René Latourelle, lhe Mirada ofJesus and Me Theology of Miracles
(Nova York: Paulist, 1988), 329.
17 Twelfuee, Jesus Me Miracle Worker, 64, 65.

Tillich, 104.
4
A ATUALIDADE DOS MILAGRES

O Espírito de Deus não foi embalsamado em um !Atro, nem


a voz de Deus sepultada em um século.
Leonard Sweet professor de historia do 'grela

A base bíblica para a ocorrência de milagres pode ser muito bem estabelecida,
tanto a partir do Novo Testamento quanto do Antigo. Mas o que não é tão evidente é
a continuidade de todos os dons miraculosos. Profecia, línguas e cura milagrosa eram
apenas para os tempos bíblicos ou também para a geração atual? Há uma disputa em
andamento entre "cessacionistas" e "continuístas", que se intensificou nos últimos
anos. Os primeiros defendem que tais dons cessaram na época dos apóstolos, com a
furiclação da igreja cristã e a escrituração do cânon bíblico; os últimos argumentam
que todos esses dons prosseguiram através da história da igreja e devem funcionar
também hoje. Qual posição tem base bíblica?
Definir essa questão é importante não simplesmente para satisfazer uma curiosidade
teológica, ou dirimir qualquer polêmica doutrinária envolvendo protestantes tradicionais e
pentecostais, mas porque ela influi diretamente no ministério e na missão da igreja, determi-
nando sua opção metodológica e apontando o papel reservado ao Espírito Santo.
A polêmica sobre a continuidade dos dons miraculosos não se resume a duas
posições polares. Entre o "sim" e o "não", há nuances. Uma obra mais ou menos
recente, Are Miraculous Gifts for 7bday?,' apresenta quatro visões: (1) cessacionista,
segundo a qual não há dons miraculosos do Espírito Santo hoje; (2) aberta com
cautela, a qual inclui uma grande parcela de evangélicos que não descartam os dons
miraculosos para hoje, mas vêem a possibilidade de abuso na prática desses dons; (3)
pentecostal/carismática, que preconiza a validade dos dons miraculosos hoje; e (4) a
chamada Terceira Onda (nome dado por Peter Wagner ao movemento de renovação
surgido nos Estados Unidos na década de 1980), que busca equipar os crentes com
os dons espirituais e defende que a evangelização, pelo padrão do Novo Testamento,
deve ser acompanhada de "milagres, sinais e maravilhas".
A seguir, analisarei os argumentos em favor de três posições, parcialmente
coincidentes com as quatro mencionadas, as quais chamarei de: (1) fundacional, (2)
carismática; e (3) cíclica contínua.
50 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

ABORDAGEM FUNDACIONAL

A premissa básica desta posição é que os dons miraculosos foram úteis no início
da igreja cristã, mas, uma vez lançado o fundamento da igreja e encerrado o processo de
revelação que daria origem ao cânon, cessaram. A palavra-chave é propósito: os dons
miraculosos tinham um objetivo e, tendo-o cumprido, deixaram de existir Entre
os muitos defensores deste ponto de vista podem ser mencionados os reformadores
Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), o puritano John Owen
(1616-1683) e principalmente Benjamin Warfield (1851-1921), teólogo da "escola
de Princeton" e crítico dos operadores de milagres pré-pentecostais.'
A Igreja Católica "sempre professou o papel dos milagres como testemunhos de sua
autoridade única na qualidade de madre igreja", escreve Alan Pieratt; assim, os reforma-
dores precisavam desenvolver uma teologia que "explicasse por que aquele número de
testemunhos de milagres aparentemente infinito durante os 1.500 anos anteriores não
apresentava nenhuma força" .3 A partir do quarto século, com a conversão de Cons-
tantino, os cristãos, em vez de verem os milagres como "sinais contínuos da vitória
de Cristo", começaram a "valorizar os milagres em si mesmos e a considerá-los como
parte da sacralização do -Império Romano ."4 A posição da Reforma, além de ser uma
reação a essa mentalidade, nasceu mais da experiência, em face da escassez de milagres
reais, do que de um estudo sério da Bíblia.
Cinco dos principais argumentos utilizados pelos "cessacionistas" são os
seguintes:
Argumento I: O Pentecostes é único e irrepetível. O Dr. Richard B. Gaffin, pro-
fessor de teologia sistemática no 'Westminster Theological Seminary, é um defensor
deste ponto de vista. Ele faz uma distinção entre a "história da salvação" (historia
salutis), isto é, eventos do tipo uma-vez-por-todas que acompanham o trabalho
salvífico de Cristo, como Sua morte e ressurreição, e a "ordem da salvação" (ordo
salutis), ou seja, eventos ligados à contínua aplicação dos benefícios da salvação à
vida individual dos crentes, como a justificação pela fé e a santificação. Para Ga-
ffin, o Pentecostes pertence à "história da salvação", e não à "ordem da salvação". 5
Evidências? Note estes dois elos:
Elo 1: (a) João Batista é o precursor do Messias e batiza com água; (b) João
Batista diz que o trabalho do Messias inclui o batismo "com o Espírito Santo e com
fogo" (Lc 3:16); (c) pouco antes de Sua ascensão, Jesus faz referência à afirmação/
profecia de João e pede que os discípulos permaneçam em Jerusalém a fim de serem
"batizados com o Espírito Santo" e receber "poder" (At 1:4, 5 e 8). Conclusão: o
batismo com o Espírito e com fogo é a "culminação do ministério do Messias; ele
serve para autenticar esse ministério como um todo, exatamente como, em com-
paração, o batismo com água era um indicador do ministério inteiro de João (Lc
20:4; At 10:37)",
V

A Atualidade dos Milagres 51


Elo 2: (a) Pedro diz, em seu discurso de Atos 2, que o Pentecostes é cumprimento
da profecia de Joel 2 (At 2:14-21); (b) em seguida, focaliza o ministério, a morte e espe-
cialmente a ressurreição de Jesus (At 2:22-31); (c) e, então, coloca em íntima seqüência
ressurreição--ascensão--recepção do Espírito c---concessão do Espírito. Conclusão:
na perspectiva teológica de Lucas (e Pedro), "ressurreição---ascensão—Pentecostes,
embora distintos no tempo, constituem um complexo unificado de eventos", do tipo
'<uma-vez-por-todas".
Em resumo, o argumento de Gaffin é que o ministério de Cristo deve ser visto •

em sua totalidade. O Pentecostes é o clímax desse ministério, um evento escatológico,


com significado "cristológico e eclesiológico-missiológico", antes que "antropológico-
experiencial". Por isso, não serve de paradigma para a experiência atual do cristão.
Argumento 2: Afina/idade dos milagres era autenticar o testemunho dos apóstolos
sobre Jesus. Segundo este argumento, o Espírito foi-lhes dado para habilitá-los a sus-
tentar publicamente a veracidade da obra messiânica de Jesus, em especial Sua ressur-
reição. Eles não eram testemunhas num sentido geral, como os cristãos testemunham
hoje de Cristo, mas num sentido forte e específico, judicial mesmo. Vários textos são
utilizados para apoiar essa tese. Por exemplo, João 15:26 e 27 diz: "Quando, porém,
vier o Consolador, [...] esse dará testemunho de Mim; e vós também testemunhareis,
porque estais comigo desde o princípio". Em Mos 1:8, Jesus dá urna incumbência
aos discípulos: "mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis
Minhas testemunhas". Os milagres, na visão cessacionista, eram o credenciarnento
dos apóstolos como o fundamento da igreja (Ef 2:20), e um fundamento só é lançado
uma vez. Por isso, dizem, os dons miraculosos não são mais necessários.
Argumento 3: A igreja primitiva tinha relativamente poucos milagres. Os carismá-
ticos vêem numerosos milagres em Atos e nas epístolas, talvez numa base diária ou
semanal. Os cessacionistas convictos tentam provar que não é bem assim. Argumen-
tam que apenas os apóstolos e um grupo muito restrito de colaboradores, incluindo
Estevão e talvez Barnabé, possuíam o dom de cura. A seu ver, a hipótese de haver mais
alguns taumaturgos envolvidos não deve ser negada, mas a idéia de que os milagres
eram feitos em todo lugar, o tempo todo e por pessoas comuns é uma ilusão e deve
ser descartada. Uma evidência disso seria o fato de que, quando Pedro curou Enéias
em Lídia e depois ressuscitou Dorcas em Jope, a notícia foi recebida como novidade,
causou maravilhamento e muitas conversões (At 9:35, 42). Em Atos 2:43 e 5:12, Lucas
informa que os sinais e maravilhas eram feitos pelos "apóstolos".
Argumento 4: Os milagres anunciavam.o fim de uma era e o começo de outra. Na
visão cessacionista, o dom de línguas, que marcou o início do Pentecostes, era a festa
de lançamento de uma nova comunidade e, ao mesmo tempo, o adeus ao velho sis-
tema. Visava indicar a substituição da teocracia judaica pela igreja internacional de
Jesus Cristo. Paulo parece favorecer essa interpretação em I Coríntios 14:21 e 22, A
glossolalia, portanto, seria uma demonstração gráfica (primeiro aos judeus, depois aos
52 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

gentios) de que ali se iniciava uma nova comunidade — multi-racial, rnultilingüística,


internacional. É bom lembrar que este argumento é apresentado na perspectiva cessa-
cionista. Evidentemente, há outras interpretações para o fenômeno da glossolalia.
Argumento 5: Os dons miraculosos visavam ratificar a nova revelação. Como
testemunhas de um novo tempo na história da salvação, os apóstolos, inspirados
pelo Espírito santo, transmitiam conteúdos revelacionais que mais tarde entrariam
no cânon. Os milagres eram selos autenticadores dessa revelação, como diz Paulo:
"Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a
persistência, por sinais, prodígios e dons miraculosos" (2Co 12:12). Hebreus 2:3
e 4, onde se afirma que Deus deu "testemunho", através de milagres, da "grande
salvação" anunciada pelo Senhor e confirmada pelos apóstolos, é outro texto citado
para apoiar este ponto de vista.
Há outros argumentos em defesa da posição cessacionista, como a crítica de
que os carismáticos partem de textos de caráter narrativo (Atos) para construir a sua
teologia continuísta, e a afirmação de Paulo em I Coríntios 13:8-10 ("havendo profe-
cias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão"), mas eles parecem menos consistentes
— pelo menos nesses dois casos. Na verdade, I Coríntios 13 pode ser utilizado com
mais propriedade para provar o contrário. A intenção aqui é dar um panorama da
posição cessacionista, e não apresentar uma análise exaustiva do assunto.
A abordagem funclacional tem alguns méritos:
• Conecta o Pentecostes à missão de Jesus e acentua o início de um novo tempo.
• Valoriza o papel dos apóstolos na fundação da igreja e na formação do cânon.
• Reconhece, corretamente, que os supostos dons miraculosos de hoje não têm
produzido milagres na mesma qualidade e extensão da era apostólica.
• Provê um critério lógico para rejeitar as manifestações miraculosas atuais que
fugirem ao padrão bíblico.
• Ressalta o amor, a ética e a maturidade emocional do cristão, ou seja, as-
pectos ligados ao "fruto do Espírito" muito valorizados no Novo Testamento (ver
1Co 13; GI 5:22 e 23).
• Enfatiza um culto organizado e ordeiro, em conformidade com o seu modelo
de pensamento sobre os dons.
Mas há também pontos negativos, e os mais evidentes são:
• A tendência de desconsiderar os textos que sugerem a continuidade de to-
dos os dons. O fato de Lucas conectar o ministério de Jesus com o Pentecostes não
significa, necessariamente, que os dons não pudessem prosseguir. Nada indica que
Lucas tivesse a intenção de limitar a manifestação miraculosa do Espírito ao período
coberto pelo livro de Atos.
• A divisão rígida dos dons em miraculosos" e "comuns", e a conseqüente
negação dos primeiros, sem considerar que a Fonte deles é a mesma.
. A Atualidade dos Milagres 53

• A falta de uma explicação convincente para o fato de a Bíblia em nenhum


lugar afirmar que os dons iriam cessar (este é um "argumento do silêncio", mas merece
atenção).
• A interpretação questionável de que os dons miraculosos não são necessários
no cumprimento da missão evangelizadora da igreja.
• O perigo de "aprisionar" o Espírito no passado, restringindo seu espaço no
presente, ou mesmo de "apagar", "extinguir" ou minimizar a Sua influência, "esfriando"
o entusiasmo da igreja.
• A necessidade lógica de considerar todas as manifestações de dons miraculosos
na atualidade (profecias, curas, línguas) como falsas ou mesmo diabólicas.
A perspectiva cessacionista tem algumas virtudes, mas a essência da teologia
cessacionista é biblicamente iclefensável. A Igreja Adventista acredita na continuidade
dos dons miraculosos

ABORDAGEM CARISMÁTICA

A premissa básica dos pentecostais e carismáticos, para defender a continuidade dos


dons miraculosos, é a necessidade desses dons para o cumprimento da missão da igreja
hoje. Entre os muitos defensores desta posição, estão John Wirnber, C. Peter Wagner e
Jack Deere. 7 Cinco argumentos característicos nesta abordagem são:
Argumento 1: A igreja necessita dos dons miraculosos para cumprir sua missão. Um
dos propósitos dos milagres, corno vimos, é ampliar o poder do anúncio evangélico.
Eles atuam como outdoors publicitários das boas-novas de salvação (At 5:12-16). Se os
apóstolos precisaram de um poder especial para fundar a igreja, os crentes subseqüentes
não precisariam do mesmo poder para manter, ampliar as bases da igreja e finalizar
sua missão? Assumindo-se a hipótese de que a função básica dos dons espirituais é
"edificar" a igreja e avançar a obra do Senhor (ver 1Co 12:7; 14:12 e 26), conclui-se
que esses dons são tão necessários hoje como no primeiro século d.C.
Um possível indício de que Jesus não fazia diferença entre a necessidade de
poderes especiais por parte dos apóstolos e a dos futuros seguidores é a inclusão
destes em Sua agenda. Jesus prometeu estar com os crentes até o fim. Disse: "Toda
a autoridade Me foi dada no Céu e na Terra. [...] E eis que estou convosco todos
os dias até à consumação do século" (Mt 28:18-20). Essa promessa, certamente,
não se rcstringia aos discípulos, já que "consumação do século" alude ao fim do
mundo. A palavra '<autoridade" (no grego, exousia, "poder para governar"), por sua
vez, sugere poderes miraculosos.
Outra promessa diz: "E Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador,
a fim de que esteja para sempre convosco" (Jo 14:16). A expressão "para sempre"
pode ser entendida como uma assistência contínua e definitiva no decorrer do
ministério dos apóstolos, mas a leitura mais natural é aplica-la a todo o período
54 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

da igreja. Para quem argumenta que a presença do Espírito não garante auto-
maticamente poderes miraculosos, já que Ele também exerce outras funções,
pode-se responder que essas outras funções não eliminam automaticamente a
possibilidade de milagres.
Ainda mais direto é este testemunho: "Em verdade, em verdade vos digo que
aquele que crê em Mim, fará também as obras que Eu faço, e outras maiores fará,
porque Eu vou para junto do Pai" (Jo 14:12). Se o contexto sugere uma aplicação
primária aos apóstolos, a expressão qualificadora "aquele que crê" generaliza o auditório
e deixa aberta a possibilidade de ação miraculosa futura.
Argumento 2:A diferença entre as listas de dons sugere um caráter incompleto
e instrumental. No total, Paulo cita cerca de 25 diferentes dons em suas cartas. Mas
a maneira como ele os menciona sugere a possível existência de outros. Se fosse hoje,
ele talvez pudesse acrescentar o dom da música ou do evangelismo pela TV. Nenhuma
lista repete integralmente as demais. Isso indica que essas listas são apenas ilustrativas,
não exaustivas. Além disso, Paulo parece falar de dons primariamente num sentido
instrumental. A finalidade deles não seria definir status (dos apóstolos, por exemplo),
mas edificar a igreja -- mundial e especialmente local.
Os doze discípulos eram apóstolos num sentido especial, até pelo fato
de serem doze. Parece que esse número simboliza o Reino de Deus. A Bíblia
apresenta varias séries de doze: doze tribos de Israel, doze discípulos, doze
fundamentos da Nova Jerusalém. Mas o apostolado não se restringia aos doze.
Paulo, Barnabé e Timóteo foram chamados de apóstolos. Segundo Paulo, o
Cristo ressuscitado foi visto pelos "doze" e depois "Por todos os apóstolos" (1Co
15:5 e 7), sugerindo uma diferenciação entre os dois grupos. Se entendermos -
o termo "apóstolo" em seu sentido básico de "mensageiro" ou "enviado", não
há por que restringir o apostolado a doze pessoas ou utilizar o nome como
titulo honorífico. Isso corrobora a idéia de que os dons miraculosos não se
restringiam a uma categoria especial.
Argumento 3.• A analogia da igreja como organismo cmporatzvo pressupõe que todos os
dons são necessários. Paulo compara o funcionamento dos dons na igreja à operação do
corpo (1 Co 12:12-31). O corpo funciona em harmonia. Precisa de todos os membros.
Ele pode sobreviver mesmo com uma perna ou um braço amputado. Mas irá funcionar
bem? E se lhe faltassem os olhos e a boca? Invertendo a analogia, a igreja precisa de
todos os dons para funcionar perfeitamente. Ela pode sobreviver sem profecias e curas,
ou milagres. Porém, esses dons não a fortaleceriam? Do ponto de vista da eficiência e
da eficácia, todos os dons são necessários.
Além disso, os dons são diversos e diferentes, mas todos têm a mesma
procedência: Deus. Há diversidade na distribuição ou recepção, mas unidade
na origem. Se a fonte dos dons do primeiro século é a mesma de hoje, e se ela é
a fonte única de todos os tipos de dons, não é se esperar unidade de ação (leia-
A Atualidade dos Milagres 55

se continuidade")? A resposta pode ser "sim" ou "não", pois Deus é soberano


1, na distribuição dos dons; mas o 'sim" parece mais lógico. É devido ao caráter
único da fonte carismática que se torna um paradoxo gerar dissensão por causa
dos dons, assim como seria errado superestimar um ou alguns deles — no caso
' dos coríntios, o dom de línguas.
Argumento 4: A história registra testemunhos de milagres em fases tardias da igreja.
A interpretação dos relatos de milagres ao longo da história da igreja obviamente
depende do modelo de pensamento adotado. Warfield_afirma que praticamente não
há indícios "de milagres nos primeiros 50 anos da igreja pós-apostólica"; a evidência
aumenta durante o terceiro século, «torna-se abundante" no quarto século e cresce
ainda mais a partir do quinto século. Mas, se a quantidade cresce, a qualidade di-
minui. Isso indicaria que lendas pagãs se infiltraram na igreja, e a igreja se recusou
a se livrar desse "lixo" na Reforma. 8 O historiador Philip Schaff concorda que o
período anteniceno (antes de 325 d.C.) é mais criterioso nos relatos de milagres do
que a fase nicena e da Idade Média? Porém, Ronald Kidd chegou a uma conclu-
são oposta. Segundo ele, as fontes indicam uma igreja fortemente carismática até
200 d.C. A experiência carismática declina nos próximos 60 anos, desaparecendo
a partir de 260 e não reaparecendo até pelo menos 320, o ponto final do estudo.'"
A. Stephanou também apresenta significativa evidência de dons miraculosos no
cristianismo primitivo.'' Independente da interpretação, os registros existem e são
evocados pelos carismáticos. A Dida quê e o Pastor de 1-Termas (documentos cristãos
provavelmente da primeira metade do segundo século d.C.), Justino Mártir (c.
100-165 d.C.), Tertuliano (c:155-220 d.C.), Orígenes (c. 185-254 d.C.) e Teodo-
ro de Mopsuestia (c. 350-428), entre outros, falaram da presença de dons e fatos
miraculosos em seu meio.
Argumento 5: O texto de I Coríntios 13 sugere que os dons miraculosos prosseguirão
até a parousia. Paulo afirma: "Quando vier o que é perfeito, então o que é em parte
será aniquilado" (1Co 13:10). O que significa "em parte"? A chave está no verso 9:
"porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos". Paulo, provavelmente, tinha
em vista todos os dons característicos da história da igreja, incluindo os dons miracu-
losos. E quando é o "quando"? A chave está no verso 12: "Porque agora vemos como
em espelho, obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então
conhecerei como também sou conhecido." Paulo, provavelmente, estava pensando
na nova realidade a ter lugar no futuro. A palavra "perfeito" (em grego, teleios) tem
o sentido de "completo ao chegar ao final, ou alcançar o alvo"). Isso indica que, para
o apóstolo, esses dons eram "passageiros'', mas não tão temporários corno dizem os
<< cessacionistas"; eles continuam até a segunda vinda de Cristo. O verso 10 poderia ser

parafraseado assim: "Quando Cristo vier, profecia, línguas e outros dons imperfeitos
se tornarão inúteis e deixarão de existir." Só assim faz sentido o contraste sugerido
por Paulo (ver o quadro 4).
56 O FASCÍNIO DOS MILAGRES ,

Dons Realidade Atual Realidade Futura


Profecias e outros dons imperfeitos Existirão até a parousia Desaparecerão na parousia
Comunicação com Deus Indireta Direta ("face a face")

Amor (dom perfeito e supremo) Existe Existirá para sempre


Quadro 4: Os dons no presente e no futuro, segundo I Coríntios 13
Os argumentos aqui enumerados são apenas representativos da posição caris-
mática. Vários outros pontos, como a observação de que os carismas eram vistos em
diversas cidades e exercidos por muitos cristãos comuns (fora do grupo apostólico),
poderiam ser acrescentados.
A abordagem carismática, igualmente, tem vários pontos positivos. Por exemplo:
• A ênfase na identidade entre a igreja apostólica e a atual, ambas com acesso
pleno aos dons miraculosos.
• A redescoberta dos dons como instrumentos úteis na edificação da igreja e na

• A busca dos dons espirituais num contexto histórico de reavivamento e san-


tidade. O pentecostalismo tem raízes na tradição teológica de John Wesley.' 2
• O espaço reservado à experiência na interpretação teológica dos dons e milagres.
• O entendimento de que Deus realmente atua no mundo, ao contrário do
que diz o naturalismo disfarçado que permeia parte do cristianismo tradicional.
• A ênfase na oração, a abertura e a disponibilidade para a atuação do Espírito

Alguns pontos negativos dessa abordagem, principalmente no que diz respeito


à experiência, são:
• A tendência de subestimar a singularidade de Jesus como operador de milagres,
e também o status dos apóstolos na qualidade de co-fundadores da igreja.
C iNo caso dos pentecostais, o ensino sem b e bíblica firme de que o "batismo
pelo Espírito" é uma obra subseqüente à conv são. Paulo defendia um modelo de
vida continua no Espírito.
• Uma supervalorização da expe "ncia e do subjetivismo, em detrimento
do estudo da revelação objetiva (Bíblia). Corno lembra o teólogo J. I. Packer, o
"movimento carismático tem sido chamado de 'uma experiência procurando uma
teolpgia'", embora isso esteja mudando. 17
• A conclusão biblicamente insustentável de que, pelo fato de Cristo ter
tornado "sobre Si as nossas enfermidades" (Is 53:4), a cura física está disponível
para todos aqui e agora.
• A ênfase exagerada na importância dos dons do Espírito, em detrimento do fruto
do Espírito e da ética social. É bom enfatizar que a verdadeira espiritualidade não vem por
meio de atalhos, sem uma resposta holística e uma mudança total na vida do crente.
A Atuatidade dos Milagres 57

• A tendência de atribuir a fatos comuns uma dimensão excessivamente sobre-


natural e, às vezes, supersticiosa. ,
• O perigo de considerar de "segunda categoria" outros cristãos que não têm os
mesmos supostos dons.
• A tendência em alguns setores pentecostais de recusar a medicina convencional
e os métodos naturais de cura.
• A falta de resultados expressivos no campo da cura milagrosa, quando se
compara com a propaganda feita nos templos, rádios e TVs.
A abordagem carismática é bíblica no que diz respeito à continuidade dos
dons, mas deixa de ser bíblica em relação a algumas reivindicações exageradas e
teologicamente questionáveis.

ABORDAGEM CÍCLICA CONTÍNUA

Esta abordagem pode recorrer aos mesmos argumentos da abordagem carismáti-


ca, mas não se limita a eles. Procura conciliar também outros dados bíblicos, inclusive
alguns argumentos utilizados pelos defensores da abordagem fundacional. Este ponto
de vista, que reflete parcialmente o pensamento de John Stott, 14 entre outros, defende
a presença contínua dos milagres na história do povo de Deus, embora com fases de
concentração. Aqui também serão mencionados cinco argumentos específicos:
Argumento I: A profecia de Joel parece ter dupla aplicação. Joel, que provavelmente
viveu no nono século a.C. (não há consenso sobre a época exata do seu ministério),
previu um derramamento especial do Espírito Santo no futuro. Diz o texto:

E acontecerá depois que derramarei o Meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e
vossas filhas pioferizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre
os servos e sobre as seivas derramarei o Meu Espírito naqueles dias. Mostrai ei prodígios
no céu e na terra; sangue, fogo, e colunas de fumo. O Sol se converterá em trevas e a
Lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor (J1 2:28-31).

Essa profecia favorece a continuidade dos dons miraculosos em épocas especiais


de duas maneiras.
Primeiro, Pedro aplicou o texto à realidade do Pentecostes e ao futuro. Em Atos 2,
vemos, em seqüência, a descida do Espírito Santo, o falar em línguas, o estranhamento e a
crítica dos opositores, e então a defesa do apóstolo. Pedro explicitamente diz que o fenômeno
era o cumprimento da profecia de Joel (At 2:16-21). Mas ele não pára aí, e pouco depois
acrescenta que a promessa do Espírito Santo (v. 38, "e recebereis o dom do Espírito Santo") era
também para os ouvintes (não só para os apóstolos) e "para todos que ainda estão longe, isto
é, para quantos o Senhor nosso Deus chamar" (V. 39). Se Joel "democratizou" a manifestação
finura do Espírito, afirmando que todo o povo de Israel (e não só líderes e profetas) poderia
profetizar (esse era um sonho de Moisés, conforme Nm 11:29), Pedro fez a mesma coisa
58 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Esse elo entre Joel, o Pentecostes e "todos os que ainda estão longe" é muito sigrlificativo.
Para Pedro ou Lucas, o dom do Espírito,não estava restrito à categoria dos apóstolos, nem
à sua época (primeiro século d.C.) e nem ao povo judeu.
Em segundo lugar, podemos aplicar o fator tempo de Joel a todo o período
da igreja, em especial ao fim dos tempos. Joel diz que "depois" Deus derramaria o
Seu Espírito (v. 28); em seguida, menciona "naqueles dias" (v. 29); e volta a falar
em "naqueles dias" e "naquele tempo" (3:1). Se o "depois" podia ser uma referência
temporal imediata, ou seja, após Deus abençoar o país e acabar corn a praga de gafa-
nhotos, a expressão "naqueles dias" dá um tom escatológico à profecia e aponta para
o fim dos tempos. Pedro, fazendo pequenas mudanças no texto de Joel, declara que o
povo agora vivia nos últimos dias. Tecnicamente, os "últimos dias" se iniciaram com
a primeira vinda de Cristo (ver Hb 1:1 e 2). Mas o bom senso não pode negar que
não há "últimos dias" mais últimos do que os dias finais. Se o primeiro século podia
ser considerado "últimos dias", muito mais o século 21 ou 22.
Argumento 2: A metáfora das chuvas "temporã" e "serôdia" sugere dois movimen-
tos de "refrigério". A palavra "refrigério" é empregada por Pedro em Atos 3:20 para
indicar as bênçãos que acompanharão a segunda vinda de Jesus. Israel era uma
nação agrícola, e muitos conceitos teológicos se baseavam em analogias ligadas à
agricultura. A metáfora da chuva é um deles. A Palestina sofria sérios problemas com
a escassez de água e a irregularidade da precipitação por região. Coleman informa
que o índice pluviornétrico pode ir "desde o ponto zero no mar Morto, a uns 20 cm
anuais na margem oriental do Jordão, e a 100 cm, na parte superior da Caliléia". 15
As autoridades e cidadãos providenciavam poços e tanques para reter a agua, mas
era com a chuva que o povo podia contar.
Considerada uma bênção, sinal da aprovação de Deus, a chuva geralmente
vinha em duas etapas: as 'primeiras chuvas" e as "últimas chuvas" (Dt 11:14).
As duas eram essenciais. As "primeiras chuvas", ou chuvas do outono, em ou-
tubro/novembro, rompiam a seca do verão e preparavam a terra para o plantio
e a germinação da semente; as "últimas chuvas", ou chuvas da primavera, em
março/abril, ajudavam no amadurecimento da seara e garantia uma boa colheita.
Impressionados com a importância dessas chuvas, os profetas tomaram-nas como
símbolo da presença poderosa de Deus (Espírito Santo) entre seu povo. Moisés
(Jó 29:23), Joel (223), Oséias (6:3), Jeremias (3:3; 524), Zacarias (10:1) e Tiago
(5:7) fizeram referência a essas chuvas.
Pois bem, podemos aplicar a chuva temporã (yôreh;Joel emprega a palavra menos
usual moreh) à experiência do Pentecostes, quando a presença poderosa do Espírito
na vida dos discípulos capacitou-os a converter milhares em um só dia (Atos 2:41) e
a espalhar o evangelho por todo o mundo conhecido da época, estabelecendo a base
da igreja cristã; e podemos aplicar a chuva serôdia (malqôs) à experiência da última
geração de cristãos, que deverá preparar o mundo para a colheita final.
A Afuolidade dos Milagres 59
• Certamente, o Espírito Santo atua num nível pessoal, operando o "novo nasci-
mento" na vida do crente (primeiras chuvas) e amadurecendo-o espiritualmente (últi-
mas chuvas), mas há também uma atuação global, num nível escatológico, enchendo
a igreja de poder para terminar a evangelização mundial, assim como os apóstolos a
iniciaram, e é neste sentido que a metáfora deve ser entendida aqui. Que a presença
do Espírito traz consigo habilidade, poder e milagres, a Bíblia deixa bem claro.
Vale ressaltar que, nos primórdios do pentecostalismo americano (início do
século 20), alguns reavivamentalistas gostavam de aplicar a metáfora da chuva serôdia
ao seu movimento, e que na década de 1940 outro movimento identificado por esse
nome (em inglês, "Latter Rain") acabou tendo impacto na renovação carismática das
décadas de 1960 e 1970.
Entre os adventistas do final do século 19 e início do século 20, essa linguagem
também era conhecida e utilizada. Ellen White (1827-1915) escreveu: "A grande obra
do evangelho não deverá encerrar-se com menor manifestação do poder de Deus do
que a que assinalou o seu início. As profecias que se cumpriram no derramamento
da chuva temporã no início do evangelho, devem novamente cumprir-se na chuva
serôdia, no final do mesmo."'
Argumento 3: Os milagres dos tempos bíblicos aparecem em 'condas". Os milagres
do Antigo Testamento, além de raros, considerando-se o período descrito, não são
uniformemente distribuídos. Eles se concentram em três períodos, embora possam
ser encontrados em outros momentos» criação, tendo Deus como Agente; êxodo,
com Moisés e Josué; e apostasia de Israel (nono século a.C.), com Elias e Eliseu.
Isso pode ser constatado até numa leitura superficial de uma lista de milagres. A
própria expressão "sinais e maravilhas" vem do tempo de Moisés, e Elias se tornou
um símbolo para a mentalidade judaica de profeta comprometido com Deus. No
Novo Testamento, a concentração é em torno do ministério de Jesus e dos apósto-
los. Há registro de atividade miraculosa na literatura cristã do segundo e terceiro
séculos d.C., especialmente profecia, cura e exorcismo, mas não na qualidade e na
quantidade da era de Cristo e dos apóstolos. No fim dos tempos, os milagres devem
se intensificar novamente. Isso sugere que. Deus interfere de maneira acentuada nos
momentos críticos da história humana ou da experiência religiosa do Seu povo,
quando está em jogo o plano da salvação.
Argumento 4: A ocorrência de milagres diabólicos no fim dos tempos pressupõe milagres
divinos. Jesus profetizou que, antes da parousia, surgiriam "falsos cristos e falsos profe-
tas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos"
(Mt 24:24). Nas palavras de Paulo, "o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia
de Satanás, com todo poder, e sinais e prodígios da mentira" (2Ts 2:9). João atribui à
"besta" que emerge da terra o poder de operar "grandes sinais, de maneira que até fogo
faz descer à Terra, diante dos homens", seduzindo "os que habitam sobre a Terra por
causa dos sinais que lhe foi dado executar" (Ap 13:13 e 14). Os espíritos de demônios
60 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

que têm papel ativo na guerra do Arrnagedorn são "operadores de sinais" (Ap 16:14).
Essa estratégia de engano e sedução através de prodígios sugere que Satanás está, na 4
verdade, tentando imitar Deus. Ele provavelmente agirá "como" Deus estará agindo
no fim dos tempos. O produto que Satanás tentará vender não é original, mas sim
pirateado. Trata-se de uma contrafação. Esta inferência é legítima não porque esteja
apoiada na teologia e no conhecimento futurístico de Satanás, mas porque a Bíblia '
prevê os movimentos dele em função dos movimentos divinos. „ 1
Um exemplo amplo da ação "pirata" de Satanás é a invenção de um sistema pa-
ralelo de culto, baseado em três pilares: (1) idolatria, (2) auto-salvação e (3) opressão '
do povo de D eus . Babilônia é o nome dado no Apocalipse (14:8; 17:5; 18:2) a esse
sistema, em sua versão escatológica. De Babel à Babilônia mística, a essência do sistema
é a mesma. Em semítico, Bab ilu quer dizer "portão de Deus" ou "portal dos deuses".
-

Os babilônios acreditavam que tinham sido comissionados por mandato divino para
dirigir os negócios da Terra. Sua cidade era o ponto de encontro entre deuses e humanos.
Lúcifer, identificado Por Isaías como o rei invisível de Babilônia (Is 14:12-15), queria
transformá-la no seu centro espiritual, em oposição ao templo de Deus em Jerusalém.
Uma evidência disso é a enorme influência dos sacerdotes no reino.
Ao estudar o conceito de Babilônia no Apocalipse, Hans K. LaRondelle aponta
um á evidente postura contra fatória por parte de Satanás. Segundo o teólogo, "Apo-
calipse 12-13 revela que Satanás, como o governante de bste mundo, erigiu um reino
satânico, consistindo de uma trindade falsa, a qual é retratada por João como uma
'imitação paródica da estrutura do reino de Deus'". 18 O "falso profeta" (ou segunda
besta) de Apocalipse 13 atuaria como uma contrafação do Espírito Santo. Assim como
o Espírito veio trazer glória a Cristo, assim também o falso profeta procura exaltar a
"imagem do anticristo" (Ap 13:14 e 15). Seus poderosos sinais, fazendo até mesmo
fogo descer do céu (Ap 13:13), seriam uma espécie de "eco irônico dos atos dos grandes
profetas do Antigo Testamento".' 9
Pois bem, assim como Satanás tenta desvirtuar a religião verdadeira, estabe-
lecendo um sistema paralelo de culto, assim também copia eventos específicos do
programa divino e tenta usá-los para desviar o povo de Deus. Os milagres estão
entre os produtos mais visados por sua "indústria pirata". Foi o que ele fez na
época do êxodo, procurando repetir os milagres divinos (Ëx 7:11 e 22; 8:7 e 18);
aparentemente foi também o que fez durante a onda de supostos milagres que
precedeu o nascimento de Cristo: 2° e é o que deverá fazer antes da parousia. No fim,
Deus desmascara o falsificador. Portanto, em contraposição aos milagres diabólicos,
previstos por Jesus, Paulo e João, haverá também um ciclo de milagres divinos.
Argumento 5: O anjo de Apocalipse 18:1 parece simbolizar um poderoso movimento
de evangelização. Uma analogia com o ministério de outros anjos do Apocalipse (por
exemplo, os anjos do capítulo 14) indica que esse anjo é simbólico. Ele representa um
movimento de pregação do evangelho, no final dos tempos. Provavelmente tal procla-
A Atualidade dos Mi/agres 61
mação envolva milagres, já que a palavra para "autoridade" (exousia) é usada também
como sinônimo de poder (9:3, 10 e 19). A autoridade desse anjo pode ser entendida
como poder para denunciar a falência e a queda de Roma (a Babilônia mística), num
contexto de disputa espiritual. Enfim, o anjo de 18:1 simboliza o clímax da procla-
mação do evangelho, com direito a milagres e manifestações de poder.
Outros argumentos poderiam ser utilizados em defesa desta abordagem. Um
deles é a interpretação tipológica dos festivais judaicos do Pentecostes e das Trombetas
(os quais analiso em meu estudo sobre o Espírito Santo). Mas, para manter a simetria
de cinco argumentos em cada abordagem, fiquemos com esses.
A abordagem cíclica contínua tem virtudes fortes porque:
• Permite um alto conceito do Pentecostes e do cânon, sem negar a atualida-
de dos dons miraculosos, pois o fato de certos fenômenos serem fundacionais não
significa que não possam se repetir de algum modo. Um exemplo da "convivência"
entre o status dos apóstolos e a continuidade dos dons é fornecido pelos adventistas.
Eles crêem que Ellen White tinha o dom de profecia, mas adotam o princípio de sola
Scrsptura. Essa é uma posição histórica do adventismo.
• Explica a concentração de milagres em certas épocas e a escassez em outras.
• Respeita a soberania do Espírito para distribuir dons a quem e quando Ele quer.
• Leva em conta todos os dados bíblicos, enquanto incentiva a busca de poder
espiritual.
• Provê uma explicação lógica (ou esperança) para o clímax da proclamação do
evangelho.
• Pressupõe que os milagres, assim como a própria História, caminham em
círculos (no caso, ondas ou ciclos), mas dirigem-se para um fim (eles não são aconte-
cimentos imprevistos e acidentais).
Os pontos negativos desta abordagem são basicamente dois:
• Os argumentos dependem, em parte, de dedução.
• Alguns de seus adeptos, na prática, podem assumir uma postura de espe-
ra ansiosa ou desleixada do novo ciclo de milagres, esquecendo-se de que uma
experiência significativa com o Espírito (quem sabe, envolvendo milagres) está
disponível no presente.

A 1ÓGICA DOS CICLOS

A abordagem cíclica contínua, que não deve ser confundida com o ensino errôneo
do dispensacionalismo, parece ser a que melhor corresponde aos dados bíblicos. Ela pode
recorrer aos mesmos argumentos da abordagem carismática, mas não se restringe a eles e
evita as reivindicações exageradas dos pentecostais e carismáticos; considera também os
argumentos utilizados pelos defensores da abordagem funclacional, mas não cai na defesa
antibíblica da cessação dos dons miraculosos Integra texto bíblico e história.
62 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Um pressuposto da abordagem cíclica contínua é que, nos "intervalos" dos


ciclos, os dons continuam disponíveis, do mesmo modo que a Palestina recebe
alguma chuva entre a "chuva temporã" e a "chuva serôdia". Milagres verdadeiros
podem acontecer, só que não na intensidade das fases de "pico". A pergunta lógica
que vem em seguida é: "Por quê?"
Um carismático típico responderia que os milagres dependem do ser humano
(fé, oração, abertura, reavivamento); um protestante tradicional defenderia a soberania
divina. Os dois estão meio certos. Pois, se Deus leva a sério o livre-arbítrio e as iniciativas
do ser humano, também exerce plenamente o Seu "papel" divino.
Por um lado, Deus só age dentro da "legalidade" e nos momentos exatos.
Isso significa que, em certo sentido, Deus precisa de uma "autorização" moral
para agir. Negativamente, Ele só inicia atos de julgamento quando, a exemplo
dos amorreus, a medida de um povo se enche. Positivamente, Ele só concede
Seu Espírito em plenitude quando chega a hora e o Seu povo, a exemplo dos
primeiros cristãos, se abre à Sua ação. Deus considera a "plenitude dos tempos"
e determina o momento ideal do ciclo miraculoso, sempre no contexto histórico
e visando aos Seus propósitos.
A questão dos ciclos de milagres, então, não tem a ver apenas com a piedade pessoal,
mas com movimentos humanos globais (principalmente do povo de Deus, mas não só),
numa escala mínima. Deus leva em conta o contexto histórico e os Seus propósitos. Que
Deus interage com a humanidade, a Bíblia deixa bastante claro.
Um conjunto de milagres deve ser considerado um ciclo quando tem quantidade
ou qualidade suficiente para interferir na História — ou pelo menos na história do
povo de Deus. O fator desencadeante de um ciclo de milagres pode variar: na criação,
foi o desejo gracioso de dar origem a um novo planeta e a novos seres; no êxodo, foi
o desenvolvimento de um povo especial para divulgar o plano da salvação; no tempo
de Elias e Eliseu, foi o combate à idolatria generalizada; no ministério de Cristo e dos
apóstolos, foi o sinal dos tempos messiânicos, seguido pela fundação da igreja. O fator
invariável é a soberania de Deus.
"A tradição judaica considera que Deus concede sinais quando o mal está em
seu ponto culminante", escreve Bernard Dupuy. É que Deus tem uma obrigação
moral com a Sua criação e, numa situação "sem saída", só Ele pode encontrar a saída.
Há um paradoxo: "Uma geração inteiramente entregue ao pecado não reconhece
mais os sinais. Uma geração inteiramente justa não necessita de sinais." No ínterim;
enquanto se espera o ponto crítico, os sinais são dados, então, "só àqueles que são
dignos deles" (Sinédrio, 986). 2 '
Pela lógica da abordagem cíclica contínua, a próxima onda de milagres deverá
acontecer pouco antes da parousia, como ferramenta no encerramento da procla-
mação do evangelho. Muita gente nos meios católico e protestante vê o movimento
pentecostalicarismático atual como .o cumprimento da "chuva serôdia". Porém, na
A Atualidade dos Mi/agres 63
opinião de vários autores conceituados, esse movimento não representa um novo
Pentecostes (veja o capítulo 7).
Eu me incluo entre os que acham que o grande derramamento final do Espírito
ainda está no futuro. Isso não significa nenhum jMzo quanto à salvação dos cristãos
que pertencem a esses movimentos carismáticos, nem quer dizer que Deus não possa
usá-los para cumprir Seus propósitos. Eles podem representar uma útil quebra do pa-
radigma naturalista/cético infiltrado no cristianismo, num tipo de preparo psicológico
e mental do planeta para o novo ciclo.
Pode-se dizer hipoteticamente que, nos intervalos, a tendência é Deus usar pessoas
piedosas (ou nem tanto) como agentes de milagres, apesar de sua possível imaturidade
espiritual (connportamental ou doutrinária). Já nos ciclos, por terem caráter judiciário/
soteriológico/missiológico/escatológico, a tendência é utilizar pessoas ou grupos de
pessoas não só piedosas, mas também de grande maturidade espiritual.
Assim, se no intervalo entre os tempos apostólicos e a época do fim houve milagres
protagonizados por agentes incoerentes na doutrina ou imaturos na fé, no ciclo final
os milagres devem ser liderados pelo remanescente de Deus — um povo consagrado
e fiel à mensagem bíblica. Supostamente, Deus usa o melhor de que dispõe em cada
época, considerando-se os Seus propósitos.
Deus não está restrito aos rótulos denominacionais (ver Mc 9:38-40). No início do
movimento adventista — que, sem arrogância e com sólida base bíblica, acreditamos
ser a síntese teológica para o fim dos tempos — Deus usou pessoas imaturas na dou-
trina e até no comportamento. Ele é livre para atuar corno e por meio de quem Ele
desejar, mantendo, no entanto, coeidência com a Sua revelação anterior. A soberania
de Deus é tão grande que Ele pode usar até mesmo descrentes para cumprir os Seus
propósitos. Mas isso não invalida o dever de buscarmos a verdade revelada na Bíblia,
ou a importância de fazer, parte do remanescente de Deus.
A solução para evitar extremos e divergências entre as várias abordagens menciona-
das está na reprodução do modelo verificado no cristianismo apostólico. A igreja cristã
inicial tinha uma visão profundamente esc_atológica, no sentido do ja / ainda não. A
realidade futura já era uma experiência presente, embora não em sua dimensão final.
Por isso, tanto o fruto como os dons do Espírito eram coisas esperadas e vivenciadas.
A igreja hoje precisa da mesma presença dinâmica e real de Deus.

NOTAS
' Wayne A Grudem, ed., Are Miraculou: Gy9s for Toda? (Grand Rapids: Zondervan, 1996) No
prefácio do livro, Grudem dá um panorama das quatro posições, destacando as diferenças e pontos de
contato entre elas.
Ver Benjamin B. Warfield, C'ounterfeitMirac/es (Edinburgh: Banner of Truth, 1995; publicado
inicialmente em 1918). Deve-se notar que o propósito de Warfield era refutar milagres espúrios ao longo
da história da igreja, e não fazer um estudo exegético sobre a continuidade dos dons miraculosos. Um
dos principais críticos do ponto de vista de Warfield sobre cessacionismo é Jon Ruthven. Para Ruthven,
64 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

"a polêmica de Warfield -- a culminação de um argumento que se desenvolveu historicamente dirigido


contra certas ameaças à religião institucional — falha por causa de inconsistências internas com respeito
ao seu conceito de milagre, seu método histórico e sua hermenêutica". De algum modo, Warfield não
percebia a diferença entre canon e carismas. Os milagres não apenas provam o evangelho; eles expressam
o evangelho (On the Cessaria,: of the Charismata: The Protestant Polernic on Postbiblical Miracles[Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1993, 1997], 23).
3 Pieratt, Sinais eMaravilhar, 28.

Robert Bruce Mullin, Miracles and the Modern Reli gious Imagination (New Haven: Yale Uni-
versity Press, 1996), 10.
Richard B. Gaffin, Jr., "A Cessationist View", em Are Miraculou: Gifts for Today?, ed. Wayne A.
Grudem (Grand Rapids: Zondervan, 1996), 25-64, especialmente 31.
Gaffin explica que, no Jordão, Jesus recebe (foi batizado com) "o Espírito para cumprir a obra
messiânica que estava diante dEle (Luc. 3:21 e 22); na ascensão, Ele O recebe como recompensa por ter
completado a tarefa que está atrás clEle e para batizar outros com o Espírito" (ibid., 32, rodapé).
'Ver John Wimber e Kevin Springer, Power Evtingelism (San Francisco: Harper St Row, 1986);
C. Peter Wagner, Your Spiritual Gifts Can Help Your Churcb Grow, ed. rev. (Ventura, CA: Regal, 1994);
e Jack Deere, Surprised by the Power of the Spirit (Grand Rapids: Zondervan, 1993).
8 Warfield, 10,73.
Philip Schaff, History of the Christian Church (Nova York: Scribner, 1910), 2:117-118.
Ronald Kydd Charistnatie Gifts in Me Early Church (Peabody: Hendrickson, 1997), 4.
A. Stephanou, "The Charistnata in the Early Church Fathers", The Greek Orthodox Theological
Revi ew 2,1 (1976): .125-146. ,
' 2 Ver Donald W. Dayton, Theological Roots of Pentecostalism (Peabody: Hendrickson, 1994). O
capítulo 5 é dedicado ao movimento de cura divina.
J. 1. Packer, Na Dinâmica do Espirito (São Paulo: Vida Nova, 1991), 187.
14 John Stott (Batismo e Plenitude do Espírito Santo, 2" ed. [São Paulo: Vida Nova, 1993], 72) diz

que os milagres bíblicos "se agrupam como estrelas no céu noturno", existindo "quatro constelações prin-
cipais": a época de Moisés, o período de Elias e Eliseu, o ministério de Jesus, o ministério dos apóstolos.
G propósito dos Milagres, segundo ele, é "confirmar cada novo estágio da revelação".
. ,r 5 William-L. Coleman, Manual dos Tempos,e Costumes Bíblicos (Venda Nova, MG: Betânia, 1991),
175 (ver também 176-178).
16 Ellen G. 'White, O Grande Conflito, 36" ed. (Tátuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988),

,
Alguns'prefrent incluir também o período dos juízes e o do cativeiro babilônico, Na minha dis-
sertação, incluí o período,babilônico, mas aqui preferi deixá-lo de fora, para enfatizar aquelas concentrações
miraculosas ,com mais significado histórico. Devemos ser flexíveis. O que importa é a idéia básica.
Hans K. LaRondelle, "Babylon:Anti-Christian Ernpire", em Symposium on Revelation--Book
Daniel St Revelation Committee Series 7, ed. Frank B. Holbrook (Silver Spring, MD: Biblical Research
Institute, 1992), 174.
Ibid., 173.
20 Gerd Theissen afirma que "o fim do 1° século a.C. é marcado por um aumento geral na in-
tensidade da crença em milagres"; teria havido uma espécie de "renascença da crença em milagres", e
"o equilíbrio dos elementos racionais e irracionais na crença helênica em milagres tende' em direção ao
irracional" (The Mira de Stories of the Early Christian Tradition [Philaclelphia: Fortress, 1983], 274).
21 Bernard Dupuy, "O Milagre na Bíblia e no Pensamento Judeu", em Os Milagres do Evangelho,

Cadernos Bíblicos 16, 2" ed. (São Paulo: Paulinas, 1982), 18 e 23.
FERRAMENTAS DA CURA

O desejo pela cura é sempre a metade da saúde


Lucius Sêneca (5 a C. 65 cl C.), filósofo e polflico romano

Se a igreja for seguir o exemplo de Jesus e dos apóstolos em todos os sentidos, está
claro que ela deve dedicar parte de seu esforço à obra de curar. Há mesmo quem defenda
que a imitação de Cristo deve incluir não só os aspectos éticos e pietistas, normalmente
ressaltados no meio protestante, mas também a dimensão pneumática e carismática, no
sentido de continuar o Seu ministério de cura. Mas, do ponto de vista bíblico, quais são
os elementos válidos para o procedimento da cura espiritual?
Na tentativa de buscar um referencial bíblico, podemos recorrer à experiência
dos profetas e dos apóstolos, mas o paradigma por excelência deve ser o próprio Crista
Como diz Latourelle, os "milagres de Jesus são a fonte privilegiada de qualquer teologia
dos milagres, porque eles são os arquétipos de todos os milagres")
Isso não significa que os cristãos vão realizar milagres com a mesma segurança
?. poder de Jesus, pois Ele é único e singular. Se os milagres eram acessórios na obra
los profetas, eram parte integrante do messiado de Jesus. Otto Borchert comenta:
'Em todo o curso da história da revelação, Jesus é a única pessoa em quem o milagre
o Homem são um. Os milagres eram uma espécie de adição ocasional e acessória da
)ersonalidade do profeta. Em Jesus eram o desenvolvimento e a manifestação da Sua
)ersonalidade." 2 Por isso; considerar Jesus como paradigma significa apenas seguir
;eus passos e utilizar os meios que utilizou, sem ultrapassar Seus limites.
A taumaturgia de Jesus permite construir um padrão com razoável margem de
egurança, pois é muito rica. Ou seja, há muitos e variados relatos dos Seus milagres.
«[ateus registra 14 milagres específicos de cura ou ressurreição feitos por Jesus e di-
ersos sumários do Seu ministério de cura; Marcos apresenta 13 milagres de curas e
pano sumários; Lucas relata 17 milagres de cura e tem sete sumários; e João registra
penas quatro milagres de cura, mas aprofunda o seu significado.
Cerca de um quinto dos evangelhos é dedicado às curas de Jesus ou às discus-
5es que elas provocaram. Dos 3.779 versículos dos quatro evangelhos, pelo menos
27 relacionam-se de algum modo com cura ou com ressurreição. Outros cálculos
66 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

indicam que 12% dos versículos totais dos quatro evangelhos se relacionam à cura de
enfermidades e à ressurreição de mortos, e 38,5% da parte narrativa (484 em 1.257
versículos) são dedicados à descrição dos milagres de cura realizados por Jesus. As
médias variam de cerca de 5% em João, que selecionou apenas sete sinais, a 20% em
Marcos. Na tradição rnarqueana, se for considerado apenas o ministério de Jesus, sem
a descrição da morte e ressurreição, a porcentagem de material relacionado com curas
sobe para impressionantes 47%.
Portanto, é basicamente a partir dos evangelhos e dos procedimentos de Jesus,
mas não só, que estabeleceremos algumas "técnicas" ou "ferramentas" aceitáveis no
processo de cura divina. Essas ferramentas, é bom lembrar, não funcionam automa-
ticamente. O processo de cura envolve a participação básica de três agentes, como
sintetiza o quadro 5.

Agente Papel Ação


Divino (Deus) Fonte Opera o milagre
Humano (profeta, apóstolo, ministro) Meio/canal Ora, unge, toca, orienta
Necessitado Receptor Deseja, crê, recebe a bênção
Quadro 5: Agentes básicos no processo de cura

Uma agenda mínima sobre o procedimento de Jesus ao curar enfermos deve


incluir pelo menos quatro aspectos: (I) o papel da oração; (2) a importância da fé;
(3) a cooperação humana com Deus; e (4) o significado do toque. Um quinto ponto,
com base em Tiago, se torna indispensável: a unção com óleo. É sobre esses cinco
pontos que discorrerei a seguir.
O uso da palavra (em forma de comando ou combinado com oração e toque)
parece tão óbvio, fundamental e recomendável que dispensa comentários. Convém
apenas ressaltar que Jesus usou a palavra na maioria de Suas curas. Em alguns casos,
Ele praticamente só dizia à pessoa "vai", no sentido de que ela poderia ir tranquila
para casa cuidar de sua vida, pois tudo ida ficar bem (Mc 5:19; Lc 5:24; 17:19).
Os apóstolos, confiando na promessa de Cristo de que deveriam orar e pedir qual-
quer coisa em Seu nome, curavam usando o poder da palavra em nome de Jesus.
Por exemplo, ao coxo que pedia esmola à porta do templo, Pedro disse as famosas
palavras: "Não possuo prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: em nome de
Jesus Cristo, o Nazareno, anda!" (At 3:6). Em Filipos, Paulo expulsou o espírito
mau de urna jovem adivinhadora com um comando: "Em nome de Jesus Cristn
eu te mando: Retira-te dela" (At 16:18). O ponto central aqui é que a palavra de
ordem em nome de jesus, dita pelas pessoas certas, para as pessoas certas, por mo-
tivos certos, funcionava.
Vamos às ferramentas aceitáveis no processo de cura:
Ferramentas da Cura 67

ORAÇÃO: CONTATO COM A FONTE

A oração é um fenômeno universal e primário da vida religiosa. Presente em


virtualmente todas as religiões, ela adquire uma forma de diálogo no Antigo Tes-
tamento, baseada na Aliança de Israel com Yahweh, e ganha um status especial no
Novo Testamento, com Jesus. A oração, que originalmente tinha conexão com o
sacrifício, é mediada por Cristo.
Pelo registro dos evangelhos, Jesus era um orante excepcional. Ele passava até
. .
noites inteiras em oração. Jesus orava como ser humano e como o Filho Unigênito do
Pai celestial. Ele seguia os horários de oração judaicos, mas ia além deles, criticando
o formalismo. Sua união com o Pai é íntima, e a oração é o meio de mantê-la. Se a
oração era uma necessidade dE,le, muito mais das outras pessoas.
No contexto de milagres, há menção à oração antes e depois do fato. Contudo,
por Sua condição especial, Jesus não ora para pedir, no momento do milagre, mas
sim para agradecer. Por exemplo, antes de ressuscitar Lázaro, Ele levanta os olhos
ao céu e diz: "Pai, graças Te dou porque Me ouviste. Aliás, Eu sabia que sempre Me
ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que Tu Me
enviaste" (Jo 11:41 e 42).
Mas, se Jesus é o Filho num sentido absoluto, isso não se aplica às demais pessoas.
Por isso, para obter resposta, elas têm de pedir — e pedir em nome de alguém especial.
Em João, ao prometer que os discípulos realizariam poderosas obras, Jesus ensina que
a oração deve ser feita em Seu nome (Jo 14:13 e 14). Obviamente, Jesus não está ensi-
nando a usar Seu nome como uma fórmula mágica; orar em Seu nome significa aceitar
a Sua identidade divina, aceitar a Sua vontade e confiar em Seu poder. Jesus é o elo de
(re)ligação entre o ser humano e Deus.
Além de ser ensinada por Jesus, a oração da cura é vista e enfatizada
também pelos apóstolos. Experimentando as primeiras perseguições em Jeru-
salém, a igreja primitiva orou por ousadia na pregação, enquanto Deus estende
"a mão para fazer curas, sinais e prodígios", por meio do nome de Jesus (At
4:29-30). Em Jope, Pedro orou, de joelhos ., para Deus ressuscitar Dorcas (At
9:40). . Paulo, em Malta, ora pelo chefe da ilha e o cura (At 28:8). E Tiago,
numa passagem muito citada, prescreve a oração dos presbíteros sobre o do-
ente, para curá-lo (514 e 15).
A oração para a cura exige uma entrega completa dos envolvidos. Tanto a
pessoa que ora quanto a beneficiária devem se abrir ao projeto e à ação de Deus. No
diálogo com Deus, é preciso o comprometimento total da pessoa, envolvendo todas
as faculdades e potencialidades do ser, como a inteligência, a vontade, a memória, a
imaginação, o sentimento e o próprio corpo.
Se no diálogo existe (ou deve existir) essa entrega, muito mais na oração para a
cura. Uma oração descuidada, formal e superficial, sem concentração, intensidade e
68 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

profundidade, certamente não é um meio de contato eficaz. Na oração para a cura,


a pessoa deve ter um alto grau de confiança no poder e na bondade de Deus, bem
como expectativa pelo Seu desejo de agir.
Nos últimos anos, vários cientistas e médicos têm procurado comprovar o
poder curador da oração, no contexto da integração mente/corpo. Alguns deles
estão ligados a terapias alternativas, mas outros são cristãos. Em 1993, Larry Dossey
,
publicou um livro procurando provar, através de pesquisas e casos, que a oração
realmente funciona na medicina. Segundo ele, a oração não só atua como um bom
placebo, quando a pessoa sabe que está sendo objeto de orações, mas tem um poder
intrínseco, exercendo um efeito positivo em seres humanos, enzimas, bactérias,
fermento e células de todo tipo. Usando conceitos da física quântica, propõe que a
oração é um fenômeno "não-localizado" (uma união entre a consciência humana e
a divina), não limitado por espaço e tempo.'
Sua perspectiva sobre a oração é biblicamente questionável, por se aproximar de
um conceito às vezes mágico e às vezes panteísta. Do ponto de vista cristão, a oração
é direcionada a Deus e localizada em Sua mente; não se trata apenas de um desejo
amoroso difuso, não-direcionado. Mas o médico acredita em suas pesquisas. Em um
livro mais recente e de caráter mais popular, ele afirma: "Como médico, tenho em-
pregado medicamentos e procedimentos cirúrgicos porque sei que eles funcionam.
Mas a oração também funciona." Para ele, a oração funciona, a esperança cura e a
desesperança mata. Por isso, diante do dilema quanto a se o médico deve orar com e
por seus pacientes, ele conclui: "Eu decidi que não fazê-lo seria o equivalente a negar
um medicamento ou um procedimento cirúrgico necessário, e comecei a orar por
meus pacientes diariarnente.'' 4 Outros médicos concordam que a oração funciona,
independentemente de como ela funcione.
- Deve-se mencionar que os estudos sobre o poder da oração têm sido questio-
nados quanto a aspectos metodológicos e filosóficos. A qualidade de alguns estudos
citado por Dossey não é tão boa. É difícil realizar experimentos científicos con-
trolados sobre a eficácia da oração. Como controlar as variáveis? Em certos casos,
as pesquisas são subjetivas demais para serem científicas. Se esse tipo de crítica não
refuta definitivamente o valor das pesquisas sobre a eficácia da oração, pelo menos
sugere a necessidade de critério e seletividade.

FÉ: EXPECTATIVA CONFIANTE


O hebraico não tem um vocábulo específico para "fé", no sentido que a palavra
possui hoje em português. Há vários termos que expressam idéias correlatas, mas
não exatamente fé: he'emin (forma hiphil de 'aman), "considerar estabelecido", "ter
como verdadeiro", crer ; batach, "confiar-se a", "apoiar - se em", confiar ; chasah
(pouco usada), "esconder-se" ou "fugir em busca de refúgio". O termo emunah,
• Ferramentas da Cura 69

encontrado em Habacuque 2:4, é o que mais se aproxima de "fé" — pelo menos


é citado nesse sentido em Romanos 1:17, Gaiatas 3:11 e Hebreus 10:38, embora
no Antigo Testamento normalmente signifique "fidelidade". De modo geral, essas
palavras expressam a confiança que uma pessoa tem ou pode ter em Deus, já que
Ele é totalmente confiável e não falha.
No Novo Testamento, a palavra "fé" (pistis) aparece 248 vezes, e o verbo "crer"
(pisteuo), 241 vezes. A fé neotestarnentária tem uma dimensão ativa (em contraste
com "fidelidade"). Em suas diferentes nuances, pode expressar confiança em Deus
(ou Cristo) ou submissão para a salvação, entre outras coisas.
João não é muito adepto da palavra "fé", usando-a apenas cinco vezes (uma
em I João e quatro no Apocalipse), mas, em compensação, gosta muito do verbo
"crer", empregando-o 107 vezes (98 vezes no evangelho e nove nas epístolas), quase
45% do total. Para João, o crer não existe no vácuo; a pessoa crê em (Jesus). Isso é
evidenciado por sua predileção pelo uso da preposição eis ("em") depois de pisteuein
("crer"): 36 vezes em seu evangelho e três em I João, contra oito vezes no restante
do Novo Testamento. A fé, na perspectiva de João, é uma entrega ativa a Cristo,
um relacionamento experiencial;
A idéia de que o milagre pode despertar algum tipo de fé em algumas pessoas
está implícita em João 2:23: "Estando Ele em Jerusalém, durante a festa da páscoa,
muitos, vendo os sinais que Ele fazia, creram no Seu nome." Porém, essa fé é insufi-
,
ciente, como mostra o versículo seguinte: "mas o próprio Jesus não Se confiava a eles,
porque os conhecia a todos". .
Na visão joanina, para chegar a um nível ideal de fé, com ou sem sinais,
a pessoa tem de subir do nível factual para o relacionamento pessoal. "Não é
suficiente ficar impressionado pelos milagres como sendo maravilhas operadas
pelo poder de Deus", observa Ladd; "eles devem ser vistos, tarnbém, como uma
revelação de quem é Jesus e de sua união indissolúvel com o Pai." Como diz o
Dr. Ramos, João estabelece "uma graduação de fé, desde a descrença até a crença
ideal, fundamentada numa variação de não ver, ver, e não ver" (confira o quadro
6, na página seguinte).
Twelftree, discerne seis níveis de fé na teologia de João, que conecta "fé" com
todas as 17 ocorrências da palavra "sinal" em seu evangelho: (1) observadores que se
recusam a ver os sinais com qualquer tipo de fé; (2) aqueles que vêem os sinais sem
crer; (3) aqueles que vêem os sinais como prodígios e maravilhas e crêem em Jesus
como um operador de milagres; (4) aqueles que vêem o verdadeiro significado dos
milagres, capacitando-os a crer em Jesus, e que corretamente vêem quem Ele é em
relação ao Pai; (5) aqueles que primeiro crêem nas palavras de Jesus antes de ver as
obras de Jesus; e (6) aqueles que crêem em Jesus sem ver nenhum sinal. A maior
crítica de João é reservada, portanto, para a pessoa que não vê ou não quer ver — e
assim não aceita o Filho de Deus. .
70 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

Situação Texto Caracterização


Não ver e não crer 6:30; 9:39; 12:37-40 Há uma insistência na incredulidade e em
não reconhecer o que se passa.
Ver e não crer • 6:36 Mesmo com as evidências, a incredulidade
persiste.
Ver e crer superficialmente 2:23; 448 Visão inadequada e fé inadequada.
Ver e crer profundamente 6A0; 20:8, 27, 28, 29 Visão fisica e espiritual adequadas e fé
adequada.
Não ver e crer profundamente 20:29 Não ocorrem evidências externas, e assim
mesmo se crê como Tomé creu vendo. A
visão espiritual adequada se faz presente.
Quadro 6: A relação entre "ver" e "crer", no evangelho de João 6
Há um certo consenso entre os teólogos de que o Pentateuco (e por extensão o
Antigo Testamento) enfatiza a cura como resultado da obediência às leis de Yahweh.
A fé aparece apenas como um elemento secundário, embora a fidelidade à aliança seja
incentivada. Já no Novo Testamento a fé assume um papel de destaque, enquanto a
obediência parece ficar em segundo plano. Isso não significa que em ambos os casos
a fé e a obediência estejam ausentes. É apenas uma questão de ênfase, motivada pela
natureza do relacionamento de Deus com o Seu povo em cada fase do concerto. O novo
concerto é, digamos, mais íntimo, pessoal e direto do que o antigo.
A palavra "fé", no entanto, pode ter várias conotações. Há diferentes tipos de
fé, como "fé histórica" e "fé salvadora". Mas o que nos interessa aqui é a "fé mira-
culosa", a percepção ou mesmo convicção de que Deus irá operar um milagre por
meio da pessoa ou em benefício dela. Em Suas curas, Jesus dava muito valor a esse
tipo de fé, que alcançava um patamar superior não quando a pessoa acreditava na
possibilidade de um evento miraculoso em seu favor, mas quando mostrava uma
atitude de confiança na figura do Messias.
„Os evangelhos registram uma série de incentivos, elogios, recompensas e até
"censuras" conectando fé e cura. A Jairo, chefe da sinagoga, perturbado pela notícia
da morte de sua filha, Jesus declarou: "Não temas, crê somente" (Mc 5:36). Ao
inseguro pai de um menino possesso, repreendeu brandamente: "Se podes! Tudo
é possível ao que crê" (Mc 9:23). Para a mulher hemorrágica, que Lhe tocou as
vestes no meio da multidão, confirmou: "Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz,
e fica livre do teu mal" (Mc 5:34). Como prêmio pela perseverança da mulher
cananéia, disse: " 0:5 mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres" (Mt
15"28). Diante do comentário do centurião de que bastaria Jesus dar uma ordem
à distância para curar seu servo, Jesus comenta: "Afirmo-vos que nem mesmo
em Israel achei fé como esta" (Lc 7:9). Certa ocasião, os discípulos não puderam
Ferramentas da Cura 71

exorcizar um demônio, e Jesus desabafou: "Ó geração incrédula e perversa! Até


quando estarei convosco?" (Mt 17:17). Interrogado pelos discípulos, explicou que
o insucesso deles fora devido à "pequenez" de sua fé; uma fé do tamanho de um
grão de mostarda seria suficiente para remover um monte (v. 20).
Sem a fé, não existe sequer a percepção da realidade espiritual, como assinala
Conner: "Um mundo de objetos visuais não significa nada para um homem cego;
um mundo de sonidos não significa nada para um homem surdo; e um mundo de
realidades espirituais não significa nada para quem não tem fé. Fé é a resposta emotiva

Está claro, pelos evangelhos, que a fé é importante para à cura. Mas seria elÀ
indispensável? Em termos práticos: é válido o argumento de (pie, se alguém não recebe
a cura hoje, é porque não tem fé suficiente? Não. Esse argumento, além de rotular e
humilhar milhões de pessoas que não são curadas, não se encaixa no padrão bíblico.
Como explicar a cura de endemoninhados e a ressurreição de mortos? Mortos não têm
consciência; endemoninhados, com sua mente fragmentada, dificilmente poderiam
ter fé. O paralítico do tanque de Betesda nem sabia quem era Jesus (Jo 5:13). Fé dos
parentes? Na cura dos endemoninhados gadatenos, não há parentes, apenas hostili-
dade (Mi 8:28-34). Em relação a Lázaro, Marta acreditava que ele só iria ressuscitar
no "último dia" (Jo 11:24). E o que dizer das curas à distância, ou daquelas em que
Jesus toma a iniciativa e não há registro de fé? Outra explicação deve ser buscada para
os milhões de doentes que pedem a ajuda de Deus 'e não são curados. Julgá-los como
faltos de fé é incompatível com o espírito cristão e os dados dos evangelhos.
Os Sinóticos registram o caso de um leproso que, jogando-se de joelhos aos pés de
Jesus, disse: "Se quiseres, podes purificar-me" (Mc 1:40). A resposta de Jesus, ao tocá-lo,
foi: "Quero, fica limpo!" (v. 41). Isso rnostra que devemos acrescentar o elemento vontade
de Deus à discussão. Será que Deus ou Jesus quer a cura? O próprio Jesus, no Getsêmani,
expressou Seu desejo, mas deixou claro que a palavra final era a vontade do Pai.
Esse conjunto de referências à fé, no contexto da cura, permite-nos concluir
que a pessoa que pede um milagre a Jesus não somente deve crer profundamente no
poder de Deus (ou de Jesus) para curar, mas também desejar a cura, num espírito de
abertura, e confiar no amor de Deus e na Sua disposição de conceder bênçãos. A fé
curadora, portanto, inclui: (1) confiança no poder irrestrito de Deus; (2) confiança
em Sua disposição de curar; (3) desejo de receber a cura; e (4) abertura à vontade de
Deus. Ela tem um caráter existencial total; é uma atitude que envolve todo o "ed.

VONTADE: PARCERIA COM DEUS

Em alguns casos, Jesus incentivou os doentes a definir e expressar seu desejo de ser
curados. Por quê? Cabe aqui uma resposta tripla: (1) estimular a vontade e o desejo de
viver do paciente; (2) ajudar o doente a definir um propósito e a se comprometer com
72 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

a manutenção do processo de cura; (3) obter uma "permissão" pata intervir em sua vida
de modo radical, o que tem a ver com um relacionamento de fé.
Na pergunta feita ao paralítico no tanque de Betesda, vemos um apelo específico
à vontade: "Queres ser curado?" (Jo 5:6). Depois de 38 anos deitado numa esteira
à espera de ajuda, em vão, é provável que o homem já não acreditasse na bondade
humana (v. 7), nem possuísse mais motivos para ter fé, ou vontade de viver. Era ne-
cessário estimulá-lo: "Você quer ser curado?" Sendo que, entre outros fatores, o moral
de uma pessoa fica prejudicado por falta de energia física (doenças, insuficiência de
vitaminas, fadiga, falta de sono) e pelo sentimento de incompetência e inutilidade,
era natural que alguns doentes precisassem de uma motivação especial.
No caso do cego de Jerico, que clamava por compaixão, Jesus pergunta: "Que
queres que Eu te faça?" (L,c 18: 41). Um operador de milagres perguntar a um cego
o que ele deseja, quando este pede um milagre, parece um contra-senso. Mas Jesus,
certamente, queria que ele explicitasse seu pedido. Esse tipo de pergunta parece
obedecer a uma estratégia psicológica, no sentido de ajudar o doente a estabelecer
um propósito, a ter uma percepção do estado desejável e a lutar por ele. Quando
a pessoa tem um alvo, consegue visualizá-lo e compromete-se a agir, ela encontra
motivação para vencer os obstáculos.
Jesus, obviamente, não precisava de nenhum truque psicológico para realiza'
curas. Mas, para o bem da pessoa beneficiada, era importante‘ela se comprometer
com a cura e com um estilo de vida saudável, cooperando com Deus. Parece que esse
é o sentido do aviso dado ao ex-paralítico do tanque de Betesda: "Olha que já estás
curado; não peques para que não te suceda coisa pior" (Jo 5:14).
E quanto à mencionada "autorização" para Deus agir, como justificá-la?
Ora, Deus respeita o livre-arbítrio do ser humano. Por exemplo, quando o povo
da região de Gerasa pediu para Jesus ir embora, no incidente do endemoninhado
e dos porcos, Ele, "tomando de novo o barco, voltou" (Lc 8:37). Há, também, a
observação de Mateus (e de Marcos) sobre a recepção de Nazaré: "E não fez ali
muitos milagres, por causa da incredulidade deles" (Mt 13:58). O texto deixa
claro que o problema não estava com Jesus, mas com o povo. Jesus fez alguns
milagres e poderia ter feito outros, se assim o desejasse. Mas, como o povo não
cria em Jesus e não esperava milagres, Jesus respeitou sua opinião. Jesus não
invade o espaço íntimo da pessoa. Ele age quando há um relacionamento de fé,
ou pelo menos quando não há uma barreira de incredulidade.
Na essência, o apelo à vontade é também um convite à parceria. Jesus lançou uma
Sociedade Ilimitada entre Deus e os seres humanos. O princípio da cooperação humana
é ilustrado pelo ato de encher as talhas com água, no milagre do vinho em Caná (Jo 2:7);
• pela distribuição dos alimentos, na multiplicação dos pães e peixes (Jo 6:11 e 12); e pelo
retirar a pedra e desamarrar as ataduras, na ressurreição de Lázaro (Jo 11:39 e 44). Em
cada um-desses episódios, Jesus pod.eria ter agido milagrosamente também nos detalhes,
Ferramentas do Curo 73

mas preferiu dizer: "Encham as talhas", "Façam o povo assentar'', "Recolham os pedaços
que sobraram", "Tirem a pedra" e "Desatem-no". Traduzindo: o que está ao alcance do
sei. humano, Deus não faz; o que o ser humano não pode fazer, Deus faz.

TOQUE: VEÍCULO DO AMOR


Os casais apaixonados conhecem há tempo a energia que existe em um
toque afetuoso. Agora, o valor terapêutico do toque vem sendo cada vez mais
reconhecido pelos médicos e cientistas. Usado para aliviar a dor e a ansiedade,
suprir a carência afetiva de crianças, estimular a vontade de viver e ajudar a pessoa
a perceber-se viva, o toque já foi introduzido em grandes centros médicos como
ferramenta para a cura e chegou ao mundo dos negócios na forma de psicologia
popular aplicada aos relacionamentos.
Entre os benefícios atribuídos ao toque terapêutico, estão a diminuição das
irregularidades cardíacas, alívio da depressão e iedução da tensão arterial. Em um
estudo, o roque reduziu em 90% a dor de cabeça dos pacientes com cefaléias pro-
duzidas por tensão. Outras pesquisas indicaram que o toque terapêutico diminui
a ansiedade e as dores pós-operatórias. Na opinião do Dr. Herbert Benson, o valor
curativo do toque humano "será finalmente estabelecido cientificamente" . 9 Na Escola
de Enfermagem Johns Hopkins, nos Estados Unidos, as enfermeiras são ensinadas
a utilizar , a imposição das mãos.
Em 1930, o Hospital Bellevue de Nova York iniciou uma política de carinho
"maternal", que consistia em pegar no colo os bebês e acariciá-los. O resultado foi
notável: a taxa de mortalidade infantil baixou de 30% para menos de 10%. Em
1980, pesquisadores da Universidade de Miami estudaram o efeito do toque humano
em bebês prematuros hospitalizados. Conclusão: os bebês massageados durante três
períodos de 15 minutos cada dia ganharam 47% de peso em relação aos que não
haviam recebido o estímulo.
Entusiasta da cura divina, o padre católico Robert , DeGrandis menciona uma
pesquisa feita pela Dra. Telma Moss, da Universidade da Califórnia, que teria com-
provado a energia magnética:

Em suas experiências ela fotografou as pontas dos dedos de uma pessoa em oração e de outra
que recebia oração. Meia hora depois, tornou a fotografar as pontas dos dedos das mesmas
duas pessoas e os resultados mostratarn que a energia que os circundava havia diminuído
na que fazia a imposição e aumentado em torno dos dedos da outra. Os que oram por cura
têm experimentado vezes sem conta essa transmissão de energia. Como é interessante notar
que a ciência pode hoje, aparentemente, medir essa transmissão de energia!'"

A ciência ainda não deu seu veredicto sobre o assunto, e parece que a maioria
das afirmações nessa área se situa no campo da especulação, ou se baseia em crenças
74 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

ocultistas. Um exemplo de imposição de mãos baseada no ocultismo é a terapia oriental


reiki, na qual o terapeuta supostamente canaliza a energia universal para o paciente
(em japonês rei significa "universal" e ki, "energia"). Antiquíssimo, o método foi re-
cuperado pelo sacerdote japonês Mikao Usui, em 1850. Estima-se que hoje existam
mais de 300 mestres reikianos espalhados pelo mundo.
Uma coisa, porém, é certa: os evangelhos relatam várias ocasiões em que Jesus
tocou o doente durante a cura. Ele tocou leprosos, mulheres e cegos; impôs a mão sobre
a mulher encurvada e sobre muitos "enfermos de diferentes moléstias" (Lc 4:40); pegou
a filha de Jairo pela mão; foi tocado por vários doentes. Em alguns casos, Jesus tomou a
iniciativa de tocar as pessoas; e, em outros, as pessoas O tocaram. Algumas vezes, Jesus
usou apenas o toque para curar; e, em outras, usou uma combinação de toque e palavra.
Só não há registro de que Ele tenha usado o toque para expulsar demônios, o que era
sempre feito por meio de uma palavra de comando.
Um detalhe que merece ser mencionado é o fato de os antigos médicos do
mundo mediterrâneo do primeiro século não costumarem tocar seus doentes. "Sua
abordagem à doença era filosófica'', diz John Pilch." Eles estudavam e teorizavam,
mas não tocavam, nem cortavam nada. Em caso de cirurgia ou qualquer manipulação,
quem colocava a "mão na massa" eram os escravos. Isso era uma garantia de que, se
algo saísse errado, os escravos, e não os médicos, seriam responsabilizados, sofrendo
a punição em seu próprio corpo. Mas Jesus não vê barreiras para o toque, embora
obviamente Seu toque era pala curar, e não operar/cortar.
Também lemos, na comissão registrada em Marcos, a garantia de Jesus: "Em]
se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados" (16:18). Lucas apresenta
um sumário, dizendo que "muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo, pelas
mãos dos apóstolos" (At 5:12). Ananias impôs as mãos sobre Saulo, a fim de curá-lo
da cegueira causada pela revelação na estrada de Damasco (At 9:17). E muitos milagres
foram feitos pelas mãos de Paulo (At 19:11; ver 14:3). Por exemplo, na ilha de Malta,
Paulo ora por Póblio, impõe-lhe as mãos e o cura (At 28:8).
O toque, em si, não tem o poder de curar. Na verdade, ele até pode ser dispensado,
como nos casos de cura à distância. E Deus quem cura. A energia revitalizaclora vem
dEle. Mas o ser humano atua como agente, e o toque serve de canal para a expressão do
amor divino. Talvez a função principal do toque seja despertar no doente uma reação
emocional, servindo de instrumento de sugestão. A reação emocional ocorre tanto
pelo estímulo natural que o toque normalmente desperta quanto pelo peso cultural
que a imposição das mãos carrega, no sentido de simbolizar a autoridade.
Portanto, se é errado considerar o toque por uma perspectiva mística ou mágica
(lembra-se de Simão, o mágico, querendo comprar o poder de impor as mãos e trans-
mitir o poder do Espírito Santo [Atos 8:9-24]?), como se o operador de milagres fosse
possuidor de uma energia psíquica privilegiada, não é antibíblico considerá-lo útil na
cura. O toque curador comunica a energia recriadora de Deus.
Ferrómentas do Cura 75

ÓLEO: SÍMBOLO DO PODER

O costume de ungir doentes com óleo é urna tradição antiga nas igrejas cristãs. A
Igreja Ortodoxa sempre o valorizou. O nome dado ao ritual pela antiga igreja grega é eu-
chelaion (combinação de euche,"oração" , e elaion,"óleo'', palavras presentes em Tiago).
A Igreja Católica o considera um sacramento. A Igreja Adventista prevê, oficialmente,
o procedimento em seu Guia Para Ministros» Como era de se esperar, os eruditos
protestantes questionam a base bíblica da unção como sacramento e preparo para a
morte. Por isso, hoje, a ênfase em várias igrejas tem sido na unção para a cura.
A história da unção, na Igreja Católica, pode ser resumida assim: (1) até o
quinto século, dava-se pouca importância a unção porque ela competia a todos os
cristãos, e não só aos sacerdotes; (2) depois do quinto século, a confissão tornou-se
obrigatória para se recebei a unção e, como a igreja impunha pesadas penitências
pelos pecados, a maioria adiava a confissão até a hora da morte; (3) a partir do oitavo
século, a participação dos leigos começou a declinar; (4) no nono século, por causa
de abusos, os leigos perderam privilégios de ungir com óleo, e a unção passou a ser
usada mais para os moribundos do que pata doentes; (5) em 1758, a participação
dos leigos foi totalmente proibida; (6) com o Concílio Vaticano II (constituição
Sagrada Liturgia, 73-75), voltaram a ênfase na cura e a participação dos leigos na
administração da unção. Ti
A prática da unção não é inspirada em Jesus, mas vem da recomendação de,
Tiago (5:14 e 15), que escreve: "Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros
da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor.
E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido
pecados, ser-lhe-ão perdoados."
Tiago, que parece ter sido um grande adepto da oração, ao ponto de, segundo a
tradição, seus joelhos ficarem calejados como os de um camelo, está tratando da oração
nessa passagem. Mas ele não diz que o doente deva orar em seu próprio favor. Ao invés
disso, introduz a figura do presbítero, que provavelmente cumpria a função hoje em dia
desempenhada pelo "pastor" ou "ministro". Para merecer uma visita dos presbíteros, a
doença presumivelmente devia ser grave, mas não necessariamente fatal. Observe-se que
o texto pergunta se alguém está "doente", e não se está "morrendo".
O autor bíblico, embora recomende a oração, não proíbe o uso de meios medici-
nais. Usar meios, como já vimos, não é desonrar a Deus. O crente busca a Deus antes
mesmo de buscar a medicina, mas não dispensa a medicina. Assim, a idéia católica da
"extrema unção" (prevalecente por séculos, até ser reformulada no Concílio Vaticano
II, na década de 1960) não é bíblica.
O motivo por que o presbítero devia usar óleo não está claro. Marcos 6:13
informa que os discípulos "expeliam muitos demônios e curavam numerosos
enfermos, ungindo-os com óleo". Isso, porém, não fornece nenhuma pista sobre
76 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

a origem ou propósito do ritual. Tem sido sugerido que a doença, aqui, poderia
ser de natureza demoníaca, e o óleo, usado para exorcismo. Mas essa tese não tem
apoio em evidências.
Em A Vida de Adão e Eva, obra pseltdoepigráfica do primeiro século d.C., há
menção a um óleo que escorre da árvore da vida. Adão autoriza Sete a ir ao paraíso e
conseguir o óleo da vida com Deus, para ser ungido e descansar de suas dores. Acom-
panhado de Eva, sua mãe, Sete chega ao paraíso, mas Miguel lhe diz que o "óleo da
misericórdia" está reservado para os últimos dias." Essa história é interessante, mas
não esclarece a origem da unção, num contexto de cura sobrenatural.
O óleo seria um símbolo da autoridade de Jesus, ou do poder do Espírito Santo?
É provável que represente ambos (ver Is 611; Lc 4:18; 1Jo 2:27). Na condição de
Messias, Jesus é "o Ungido"; Ele tem uma posse permanente do Espírito e, assim, Se
torna o paradigma e a fonte da unção dos crentes. Já o Espírito é o Ungidor.
Douglas Moo observa que "existem duas possibilidades principais para o pro-
pósito da unção"; (1) propósito prático e (2) propósito religioso. No primeiro caso, o
óleo serviria de remédio, já que era vastamente utilizado com esse propósito na anti-
guidade. Assim, os presbíteros estariam se aproximando "do leito do doente armados
de recursos espirituais e naturais — com oração e remédio", ambos "administrados
com a autoridade do Senhor". Essa linha de interpretação, reconhece Moo, oferece
dupla dificuldade: (1) não há evidência de que o óleo fosse utilizado para todo tipo
de doença; e (2) "por que os presbíteros da igreja deviam fazer a unção, se o propósito
dela era apenas medicinal?" Outra possibilidade "prática" seria o uso do óleo corno
um meio de estimular a fé do doente. Mas não há evidências de que o óleo fosse uti-
lizado com tal finalidade. Resta, então, o propósito religioso. Neste caso, o ato pode
ser visto como sacramental (um veículo do poder divino para fortalecer o enfermo)
ou simbólico (para representar que a pessoa estava sendo "separada" para receber um
toque especial de Deus). Moo, com boas razões, prefere ver o rito como tendo um
propósito religioso simbólico .' 5
John Wilkinson diz que provavelmente não haja "evidência suficiente na passa -
gera para permitir-nos decidir definitivamente se a unção com óleo deva ser considerada
de caráter medicinal ou religioso". Com base no uso do verbo grego akipho, "ungir"
(o verbo cimo também significa "ungir"), no Novo Testamento, ele tende a considerar
a unção como medicinal. Mas acrescenta que, ao Tiago mencionar um recurso me-
dicinal da época (o óleo) e um recurso espiritual (a oração), o apóstolo parece estar
recomendando uma combinação dos dois métodos, coisa que a igreja deveria fazer
em seu Ministério de cura.' 6
No passado, houve polêmica sobre o significado da cura mencionada por Tiago.
Seria cura física ou espiritual? Uma análise atenta parece não deixai dúvida de que o
apóstolo está falando primariamente de cura física milagrosa, embora possa ter em
vista também o restabelecimento espiritual. O uso dos verbos sozo ("salvar", "curar")
Ferramentas da Cura 77

e egerein ("levantar") não devem ser motivo para confusão. Em Mateus 9:21 e 22, por
exemplo, sozein é usado tanto para salvar quanto para curar, no sentido de cura coral;
e "levantar" também é empregado no Novo Testamento para cura física (Mt 9:5-7; At
3:7). Não devemos fazer uma rígida separação entre cura física e espiritual.
A combinação de oração, imposição das mãos e unção com óleo, num clima
emocional e espiritual apropriado, certamente pode produzir um bom resultado.
Dissociada da noção de preparo para a morte e livre de excessos, a unção pode ser
uma ferramenta de cura especialmente útil nas regiões onde o acesso à medicina
convencional é mais difícil.
Rebecca Abrams e Hugo Slim observam que o ressurgimento do uso do óleo
na indústria cosmética nas últimas décadas é, ao mesmo tempo, estimulante e pre-
ocupante. Por um lado, isso dá uma nova relevância ao sacramento da unção; por
outro, a propaganda cosmética, com sua linguagem quase sacramental, prometendo
"revitalizar", "purificar", "limpar", "renovar" e "rejuvenescer", cria falsas necessidades
e expectativas irreais, estabelece padrões físicos inalcançáveis e gera ansiedade, além de
insinuar o mito de que as mulheres são impuras e decadentes, podendo ser purificadas
e protegidas pelos cosméticos : 7 O fato é que o renovado interesse em óleos, saúde
e bem-estar integral deve ser aproveitado pela igreja para implementar o serviço da
unção. No caso da Igreja Adventista, que não tem tradição sacramental, a teologia da
unção deve ser formulada paralelamente à sua prática. Só o uso mostrará o melhor
caminho a seguir. A observação de outras tradições pode ser útil, mas o bom senso e
a discrição (no sentido de não criar sensacionalismo público, mesmo quando a unção
eventualmente for praticada no templo) são essenciais.
Concluindo, eu diria que as ferramentas bíblicas usadas por Jesus e os apóstolos
no processo de cura podem ser antigas e até mesmo não ter sido usadas adequada-
mente por um longo período de tempo, mas elas ainda funcionam muito bem. Deus
certamente espera que sejam usadas no dia-a-dia da igreja para abençoar os sofredores
e despertar-lhes nova esperança.

NOTAS
Latourelle, lhe Mirado. °pesas and the Theology of Miraeles, 18.
Borchert, 317.
Larry Dossey, Healing Worde The Power of Prayer and the Praceie(' of Medicine (Nova York: Har-
perSanFranekeo, 1993), 166 1 167, 189-195, 41, 43-45, 84-87.
Larry Dossey, Prayer Is Good Medwine: How to Reap the Healeng Benefits ofPrayer (Nova York:
HalperSanfrancisco, 1996), 5, 65-66.
Ladd, Teologia do Novo Testamento, 259.
' Ramos, Evangelho de João, 49,46
r "Twelftree, Jesus the Miracle Worker, 230 233.
-

" Walter Tomas Conner, La Revelación y Dias (El Raso, TX: Casa Bautista de Publicaciones, s.d.), 131.
Herbert Benson e Marg Stark, Medicina Espiritual O Poder Essencial da Cura (Rio de Janeiro:
Campus, 1998), 167.
78 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Robert DeCrandis, Ministério de Cura Para Leigos, 1 1 " ed. (São Paulo: Loyola, 1997), 35.
" John J. Pilch, Healing in the New Testament. Insights from Medical and Mediterranean Anthro-
pology (Minneapolis: Fortress, 1999), 122.
12 Ver Associação Ministerial, Guia Para Ministros, 5' ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira,

1995), 247-249.
Barbara Leahy Shlernon, Dennis Linn e Matthew Linn, Curar Como Jesus Curou. O Sacramento
da Unção dos Enfermos, 4' ed. (São Paulo: Loyola, s.d.), 11-16.
" Ver M. D. Johnson, trad., Life of . Adam and Eve, em The Old Testament Pseudepigrapha, ed.
James H. Charlesworth (Nova York: Doubleday, 1985), 2:270-274.
is Douglas J. Moo, Tiago: Introdução e Comentário, Cultura Bíblica 16 (São Paulo: Vida Nova,
1996), 176 e 177.
WIlkinson, 252 e 254.
Rebecca Abrams e Hugo Slim, "The Revival of Oils in Contemporary Culture: Implications for
the Sacrament of Anoiming", em The Gil of Gladness: Anointing in the Christian Tradition, ed. Martin
Dudley e Geoffrey Rovvell (Londres: SPCK; Collegeville: Liturgical Press, 1993), 169-175.
6
• PRATICAS DE CURA PROIBIDAS

O poder de curar não revela por si mesmo nada de divino.


Orígenes (c 185-254), teólogo cristão de Alexandria

Michael Cohetb professor na Harvard Medical School, propôs recentemente


a regularização da prática da cura espiritual. Segundo ele, as terapias alternativas
e complementares, especialmente a canalização de energia, a massagem e o toque
terapêutico, estão invadindo os centros clínicos, e os profissionais religiosos e mé-
dicos precisam trabalhar dentro de fronteiras técnicas, éticas e legais, para proteger
a população0Essa é uma preocupação válida, mas aqui eu desejo abordar outro
tipo de cuidado: a definição do que é perigoso teologicamente (e, portanto, espiri-
tualmente) na cura espiritual.
Todos os movimentos cristãos (ou pretensannente cristãos) que enfatizam a cura
divina tentam, invariavelmente, apoiar a sua experiência em fatos bíblicos. Quando
não há textos em que se basear, recorre-se a exemplos fenomenológicos supostamente
idênticos. Assim, torna-se necessário estabelecer critérios para avaliar as técnicas e a
cosmovisão de tais movimentos.

fatores podem ser claramente discernidos e indicados. Por isso, é preciso investigar
os fatos bíblicos. A Bíblia pode não ser tão é`specífica sobre certos pontos, mas é
muito clara em outros. -
Se os autores bíblicos descrevem (e aprovam) alguns procedimentos na cura divina,
eles não registram (e não aprovariam) vários outros. É sobre oito desses aspectos não-bí-
blicos, mas vistos e defendidos atualmente, que discorreremos a seguir (1) fé no poder
mental, (2) visualização, (3) lugares sagrados, (4) relíquias, (5) intercessão de santos, (6)
sacramentos, (7) cirurgia mediúnica e (8) terapia de regressão.

FE NO PODER MENTAL
Nos últimos anos, o número de autores que recomendam o pensamento positivo
para ter mais saúde e mesmo conseguir milagres cresceu vertiginosamente. De Norman
Vincent Pede (cristão e mais equilibrado), passando por Joseph Murphy (místico) a
80 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

,Louise Hay (esotérica da Nova Era), há receitas para todos os gostos. Para alguns deles, a
cura vem como resultado de se conhecer e aplicar leis mentais e cósmicas. Essa é a lógica
que está por trás da magia: conhecer forças ocultas (ou leis cósmicas) e controlá-las pelo
poder da mente ou de fórmulas secretas. ,
A idéia de que a pessoa pode criar milagres, se souber manejar a força de sua
mente, está associada ao conceito místico-panteísta de que o ser humano é parte de
uma força cósmica. Com alguns truques mentais, as pessoas iluminadas consegui-
riam "programar" a sua saúde, evitar doenças e até driblar a morte. Carolyn Miller,
urna psicóloga experimental com Ph.D., co-fundadora do Foundation and I nstitute
for the Study of A Course in Miracles, sediado em Los Angeles, acredita nessa tese
e a defende em seu livro Creating Miracles (Criando Milagres). "Qual é a natureza
do convite que provoca a intervenção divina?", pergunta ela no prefácio da obra, e
responde: Minha pesquisa sugere que é uma mudança na consciência em direção
a um estado mental de paz, destemor e amor incondicional, no qual alguém segue
as sugestões da intuição sem questionar. .
Na visão de Miller, se a pessoa entra nesse estado de graça é segue seu guia interior,
os milagres fluem naturalmente. É uma questão de entender as regras do jogo desco-
brir o segredo de acesso e desejar jogar — num estado interno de amor incondicional,
sem medo e sem "julgamento". Para outro autor, fazer milagres é mais fácil do que
encontrar o seu significado para liósCiSeria só uma questão de entender as leis.
O movimento da "confissão positiva", o qual postula que todas as pessoas podem
ser curadas hoje, se tiverem fé, embora disfarce o tom metafísico da filosofia da ciência
mental e lhe acrescente um toque cristão, atribuindo a cura a Deus, tem simetria lógica
com o pensamento de autores místico-panteístas.
As idéias sobre fé dos defensores da "confissão positiva", que em sua trajetória
inclui nomes como E. W Kenyon, Kenneth Hagin, Kenneth Copeland e R. R. Soares,
podem ser assim resumidas: (1), a fé é uma força que tanto Deus quanto o homem
podem usar; (2) a força da fé é liberada pelas palavras que falamos; (3) o homem é
um "pequeno deus" que pertence à classe de Deus; (4) qualquer um (o.cultista ou
crente) pode usar a força da fé; (5) você obtém aquilo que confessa; (6) nunca faça
uma confissão negativa, pois a palavra falada libera poder. Esse ideário é, claramente,
um desvirtuamento do evangelho. Hunt e McMahon escrevem:

Muitos cristãos sinceros foram influenciados pelo evangelho dos Feiticeiros, imaginando
yuy a it- tt iit CII1 si mesma. mais uma vez para eles a fé não é posta
em Deus,
mas e uni poder dirigido a Deus, que O força a fazer para nit,is aquilo que cremos
que
Ele fará. No mínimo, isso torna Deus sujeito a alegadas "leis" que podemos ativar pela
'Te", e, no pior dos casos, elimina Deus completamente do processo, colocando tudo
em nossas próprias inãos transfoimando-nos, desse modo, em deuses que podem fazer
acontecer tudo pelo seu « poder da fé"0
Pró tios de Cum Proibidos 31

Quando alguém superenfatiza o poder intrínseco da mente, ou da fé, ou do


pensamento positivo, está se distanciando da Bíblia e da ordem de Jesus: "Tende fé em
Deus" (Mc 1 1:22). Note-se que Jesus fala enifé em Deus, e não em confiança na mente
ou fé Sfé. A eficácia da fé não deriva da gente, mas do objeto da fé. Coerentemente,
em nenhum lugar a Bíblia ensina que Deus responde orações com base em alguma
"lei" espiritual, mas sim com base em Sua soberania e em, Seu amor. Deus não pode
sièr manipulado por artifícios humanos.
Supostamente& fé pode produzir pensamento positivo, mas pensamento positivo
não é félAs duas coisas não são intercambiáveis. A ênfase primária do pensamento
positivo está na própria pessoa, na importância de acreditar que as coisas podem dar
certo; já o ponto focal da fé está num objeto/sujeito externo, na sua confiabilidade.
O pensamento positivo é um estado mental; a fé é uma convicção. O pensamento
positivo é desejo + emoção; a fé é razão + relacionamento emocional. O pensamento
positivo é fé em si mesmo; a fé é pensamento positivo dirigido a Deus. Diga-se, de
passagem, que os teólogos costumam atribuir à fé um elemento intelectual (notitut,
conhecimento), um elemento emocional (assensus, assentimento) e um elemento
volitivo (fiducia, confiança).
Nesse caso, o pensamento positivo, ao lado de outros estados mentais, não
cem valor terapêutico? Tem. Inúmeras pesquisas estão comprovando que a fé, seja de
que tipo for, faz bem para a saúde. O Dr. Herbert Benson, professor na Faculdade
de Medicina de Harvard, utilizando pesquisas científicas e experiências pessoais,
argumenta convincentemente que o "efeito placebo", que ele prefere chamar de "bem-
estar
estar evocado", é real e pode ser potencializado pela crença: "O fato de o paciente,
a pessoa que cuida do doente ou ambos acreditarem no tratamento contribui para
melhores resultados.0Assim como a gente é mais do que biologia, a cura inclui
mais do que medicamento.
Mas isso não significa que a mente e a fé, em si, possuam poderes ilimitados.
Embora a fé curadora possa incluir um estado mental positivo, torna-se indispensável
fazer uma diferenciação entre as duas coisas, por uma questão de enfoque:, no estado
wental positivo, o foco em geral é a pessoa; na te curadora, o foco . ,Deus.

12) V S UAL I ZAÇÃC)

A imaginação e a visualização podem ter um papel importante na vida religiosa,


ajudando a formar quadros e imagens mentais. Alguns pastores e psicólogos cristãos as
utilizam na "cura interior". Elas são úteis, também, para recordar lugares e aconteci-
mentos, clarificar conceitos, definir perspectivas, idealizar projetos e motivar à ação.
rk Parece haver um consenso de que esses são usos legítimos no contexto cristão.
O problema é que, nos últimos tempos, a visualização ganhou um novo status e
novas funções em alguns círculos cristãos, Segundo seus defensores, ela teria o poder
82 O FASCH\1/0 DOS MILAGRES

.de mudar a realidade e fazer as coisas acontecerem. O conhecido pastor coreano Paul
(David) Yonggi Cho, por exemplo, escreve que "os homens, explorando sua fé espiri-
tual na esfera da quarta dimensão, por meio de visões, imaginação e sonhos, podem
influenciar a terceira dimensão, produzindo nela mudanças°
O uso da imaginação como estratégia de manipulação do mundo físico, incluindo
a cura, não tem base bíblica Ao contrário, a prática vem do paganismo, em especial do
xamanisrno, e permeia a literatura da Nova Era. Neoxarnanismo e Nova Era, na verdade,
estão interligados De acordo com leanneterberg, o "xa.manismo é o método mais
antigo e naais difundido de cura pela imaginação", com "evidências arqueológicas [de)
que as técnicas do xamã têm pelo menos 20.000 anos"00s seguidores egípcios de
Hermes, os índios navajo, Paracelso e, mais recentemente, Mary Baker Eddy utilizaram
ou defenderam o uso da visualização na cura.
, Atualmente, além de ser usada na hipnose, a visualização faz parte de outras
terapias Em várias escolas psicológicas, como a Gestalt e a psicossíntese, acredita-se
• que a vizualização do paciente e do terapeuta tem o poder de alterar as funções físicas.
Isso não implica em uma avaliação negativa de todas as correntes psicológicas, pois
algumas delas são muito respeitáveis e fazem um uso equilibrado da imaginação.
Contudo, por mais difundida que seja a visualização (e, em alguns casos, eficaz),
ela, como técnica de cura e tática mental para alterar a realidade, não tem correspon-
dência no relato bíblico. Isso não significa que a vizualização, assim como a imaginação,
não seja útil no processo terapêutico.Oproblema está, basicamente, no peso dado à
vizualização, na eficácia a ela atribuída e nas suas associações,

(3 ) LUGARES SAGRADO

Na cultura greco-romana pré-cristã, os templos dedicados a Asclépio (nome


grego) ou Esculápio (nome latino), o deus helênico da medicina, se tornaram
famosos. Mais de 200 templos foram construídos em sua honra — na Grécia,
Itália e Turquia. Segundo a mitologia, As'clépio era filho do deus Apoio com a
mortal Coronis e foi criado pelo centauro Quíron, com quem aprendeu as artes
da cura Sua família também era especialista no assunto: a mulher, Epione, acal-
mava a dor; as filhas Higéia e Panacéia eram deusas do tratamento e da cura; o
filho Telésforo se encarregava da reabilitação. Nos asclepia (templos), dos quais
o do Epidauro era o mais famoso, havia spas, teatros e locais de culto. Lá, os
doentes se submetiam a um elaborado processo de "incubação" para receber a
cura ,Acreditava-se que, durante a terapia onírica ou sono divino, o deus aparecia
para o doente e o curava.
Na era moderna, esses templos foram substituídos por hospitais e lugares santos
especializados em "milagres". Entre eles, destacam-se os santuários católicos de Guada-
lupe (o início foi em Tepeyac), no México, que recebe de 15 a 20 milhões de devotos
Práticas de Cura Proibidos 83
por ano (o papa João Paulo II, um grande devoto de Maria, visitou esse santuário na
Cidade do México três vezes); o de Lourdes, na França, que anualmente atrai mais de
5 milhões de fiéis; o de Fátima, em Portugal, com um movimento de 4,5 milhões de
pessoas anuais; o de Medjugorje, na Bosnia, visitado por mais de 30 milhões de pere-
grinos desde 1981; e o de Aparecida do Norte, maior centro• de devoção mariana no
Brasil, com 7 milhões de visitantes anuais.
Em cada um desses lugares, os fiéis acreditam que a Virgem Maria apareceu a uma
pessoa ou grupo de pessoas, transmitindo mensagens especiais. No caso de Aparecida
do Norte, uma imagem da Virgem teria sido encontrada por pescadores no rio Paraíba
do Sul, em 1717. Nos últimos anos, foram centenas de aparições, inclusive em países
não-cristãos como a Síria, Israel e o Japão. As aparições da "Rainha do Céu" estão
se multiplicando de tal modo, em tantos lugares, que,há quem pense que a Virgem
pode ser= elo final_lellgá.~
c muç ulmanosimgdetaLnuaçia
vezes no Alcorão) e adeptos da Nova Era. Maria tem um apelo místico que transcende
barreiras geográficas e religiosas. O fenômeno tornou-se tão acentuado que dentro do
próprio catolicismo alguns teólogos o vêem com um olhar crítico, embora a cúpula
católica incentive a devoção rnariana.
Das "aparições" às supostas curas, é um pequeno passo — e o santuário vira
centro de milagres. Por exemplo, na Basílica Nacional em Aparecida do Norte, a
Sala das Promessas, no subsolo, está entulhada de objetos como roupas, velas, fotos
e pés, braços e cabeças de cera representando as promessas pagas pelos devotos.
Em Lourdes (a "clínica dos milagres"), desde 1858, a busca por cura é intensa (há
vários hospitais especializados para receber os enfermos, onde trabalham milhares
de médicos e voluntários) e os relatos de milagres são numerosos, embora até re-
centemente havia apenas 65 casos reconhecidos oficialmente. pelizia Cirolli„ foi a
65' "miraculada" de Lourdes.
Seriam curas reais? Cari Sagan calculou que "a probabilidade de cura em
Lourdes é de cerca de 1 em 1 milhão; é mais ou menos tão provável ser curado em
Lourdes quanto ganhar na loteria, ou morrer no acidente de um, avião 4Ç
linha re-
gular e selecionado ao acaso". No caso dos cânceres, a taxa de regressãO espontânea
é estimada entre uma em 10 mil e uma em 100 mil. Como apenas 3 das 65 curas
autenticadas em Lourdes são de câncer, ele conclui que "a taxa de regressão espontânea
em Lourdes parece ser inferior à que existiria se as vítimas tivessem simplesmente
ficado em casfor, interessante também que o número de mulheres nos 65 milagres
de Lourdes supera o dos homens na proporção de dez para um, enquanto os 49
casos de curas bíblicas (Antigo e Novo Testamentos) em que há menção do sexo se
dividem em 33 homens e 16 mulheres.
Mesmo se considerarmos que as curas são reais, persiste o fato de que o uso
de um lugar sagrado para cura não tem paralelo na Bíblia. A atenção total dos isra-
elitas estava voltada para o santuário e, depois, o templo. No interior do santuário,
84 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

rio lugar mais sagrado (o Santo dos Santos), ficava o centro de suas esperanças: o
símbolo da presença de Deus. Era dali que vinham as bênçãos e a salvação de Isra-
el . Mas o obletivo maior do santuário era representar o sacrifício futuro de Jesus.
Portanto, não havia nada nele que fizesse lembrar as multidões de peregrinos que
visitam os santuários modernos em busca de cura física. Devemos lembrar, ainda,
que ern,João 4:21-24 Jesus elimina qualquer idéia de um local sagrado exclusivo de
adoração e manifestação de Deus.
No Antigo Testamento, lemos que o profeta Eliseu indicou o rio Jordão como
local de cura para s) sírio Naarná, que inicialmente protestou, porque os rios de sua
terra eram maimes e mais limpos (2Rs 5). E, no, Novo Testamento, João relata que
Jesus curou um paralítico junto ao tanque de Betesda .(To 5), em Jerusalém. Na época,
havia uma crença segundo a qual, periodicamente, um anjo agitava a água do tanque,
e queria conseguisse entrar primeiro ficava curado.
Porém, no caso de Naamã, Eliseu presumivelmente queria mostrar, como
reconheceu Na.arnã, que "em toda a Terra não há Deus senão em Israel" (2Rs
515). Essencialmente, o contraste não era entre Israel e a Síria, mas entre o Deus
de Israel e os deuses da Síria. No caso de Betesda, o relato em nenhum momento
sugere que Jesus (ou o autor bíblico) aprovava a prática, ou que ela representasse
uma tendência em Israel de se buscar cura em um lugar sagrado. Ao que parece,
João visava a um contraste teológico entre a velha e a nova dispensações, entre
o desinteresse e a impotência da burocracia religiosa de Israel e o envolvimento
pessoal e o poder do Messias.
Para os autores bíblicos, a única fonte da cura é Deus, e Deus não conhece limites
geográficos. Isso não impede de irmos ao templo em busca de cura, pois todos os templos
deveriam ser pontos de encontro com o divino e centros da verdadeira adoração. Na
verdade, é provável que muitas igrejas cristãs estejam falhando em oferecer cura espiritual,
rnocional e física aos adoradores. Não seria esse um dos motivos por que tantas pessoas
saem em busca de lugares sagrados?,Michael Brown diz que não há dúvida de que "os
salmos de odoença cura eram utilizados com regularidade nos serviços do templo de
Jerusalém''OTalvez os templos cristãos também devessem incluir o tema (ou ampliar
o papel dele) em sua liturgia.
- O costume de buscar cura num santuário sa•rado sortanto não vem do "udaísmo
bíblico, mas do paganismo, A idéia de levar peças ao santuário representando a parte do
corpo "curada", como reconhecimento ou agradecimento pelo suposto milagre, também
se desenvolveu num Contexto pagão e não tem apoio bíblico. Primeiro, a própria idéia de
representar o corpo vivo através de uma peça de gesso ou barro é estranha ao pensamen-
to bíblico (Segundo, Deus restaura a pessoa toda e não uma narre 1Terceirn. 2 reçnncra
"exigida" eM função da restauração não é qi,:sagarnento de uma ofeienda, mas a e
da própria pessoa como sacrifício vivo a Deus.
Praticas de Cura Proibidas 85

(4) RELÍQUIAS

A palavra't refere-se aos restos do corpo de uma pessoa santa, ou a algum


objeto que tenha pertencido a ela, ou mesmo tocado seu empo. As maiores religiões que
valorizam as relíquias são o cristianismo (na versão católica) e o budismo (a Índia é a terra
das relíquias). A Igreja Ottodoxa também venera as relíquias, mas dá ênfase aos ícones. Um
ícone é o desenho de uma cena ou personagem sagrado, teoricamente usado para honrar,
beijar e saudar indiretamente uma pessoa que não está presente "corporalmente", e não
como um ídolo, diante do qual a pessoa se inclina para servir como a um deus, no sentido
de substituir Deus. O protestantismo, o hinduísmo e o judaísmo rejeitam as relíquias,
enquanto m es ao. uivei 2agular,sontostelasa
Em relação ao cristianismo, as relíquias começaram a ganhar espaço já no
segundo século d.C. No _Martírio de Policarpo (17), por exemplo, os ossos de Po-
licarpo, bispo de Esinirna, são descritos como "mais preciosos que as finas jóias"
Podemos ver no culto à tumba dos mártires, se não uma continuação real, pelo
menos uma influência do culto pagão ao herói (com a diferença de que os heróis
pagãos, em vez de serem expostos ou divididos, ficavam na sepultura). Mas foi a
partir do período de Constanttno (quarto século d.C.) que a veneração supersticiosa
das relíquias avançou, ao ponto de o segundo Concílio de Nicéia (787) proibir os
bispos de consagrar igrejas sem relíquias, sob pena de excomunhão. Na Idade Média,
as relíquias orientais, a maioria de autenticidade duvidosa, invadiram a Europa. As
"igrejas, monastérios, catedrais e outros lugares de peregrinação pareciam desenvolver
urna sede quase insaciável pelas relíquias que lhes pudessem acrescentar santidade,
prestígio e atratividade aos peregrinos" C)
Entre os argumentos utilizados pelos defensores das relíquias, está a idéia de
que os corpos dos ascetas, mártires e "amigos de Deus" são tão permeados pela
graça/presença santificadora do Espírito Santo e dos sacramentos que se tornam
instrumentos de graça. Em certo sentido, haveria uma alteração na composição
de seus corpos. A preservação (não-corrupção) parcial ou total de seus corpos por
muito tempo, algo incomum, seria uma evidência de que eles sao especNis. E claro
que há outras explicações para o fenômeno.
Como observa John Strong, as relíquias são marcadas por uma certa ambigüi-
dade", o que, podemos acrescentar, acaba por afetar o raciocínio popular:

Elas normalmente são objetos considerados impuros — carne morta, ossos e partes do
corpo — e contudo são veneradas corno sagradas. Neste exato paradoxo, podemos ver
como as relíquias funcionam para elevar a santidade e a pureza dos santos. Se mesmo
as suas impurezas são veneradas, quão mais puros e veneráveis são eles em si©

" Assim, por trás da crença de que as relíquias podem interrnediar milagres,
está a suposição de que o corpo/objeto inanimado tem urna virtude especial por ter
86 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

pertencido a um santo. Ao se venerar a relíquia, honra-se ao santo, na expectativa de


receber uma recompensa,. O objeto sagrado transfere bênçãos ao fiel. Mas tem essa
prática base bíblica?
A Bíblia apresenta alguns relatos, digamos, "estranhos" relacionados a cura.
Quando, no deserto, o povo de Israel pecou e começou a ser atacado por serpentes ve-
nenosas, Deus mandou Moisés construir uma serpente de metal e colocá-la num poste.
Quem olhasse para a serpente seria salvo ,(Nm 21:4-9). Quase 15 séculos mais tarde, no
diálogo com Nicodemos, Jesus explicou que a serpente era um símbolo dEle, que seria
erguido numa cruz (To 3:14). Mas, na história de Israel, Jesus foi rejeitado e a serpente
foi idolatrada, tendo de ser destruída (II Reis 18:4). A troca do Rei pela relíquia é um
testemunho eloqüente do perigo que esse tipo de coiS'a representa.
Continuando a lista, um homem foi ressuscitado ao ser jogado na sepultura de
Eliseu (2Rs 13:21); Jesus usou saliva (Mc 733; 8:23; lo 9:6) e barro (Jo 9:6) para
curar; a mulher hemorrágica tocou as vestes de Jesus e foi curada (Mt 9:20-22); o
entusiasmo popular fez as pessoas disputarem a sombra de Pedro (At 5:15); curas e
exorcismos ocorreram através da roupa e de objetos pessoais de Paulo (At 19:12).
Fora do âmbito da cura, há também alguns usos de objetos para operar milagres.
Moisés utilizou uma vara miraculosamente várias vezes durante o êxodo, tanto para
trazer juízos sobre os egípcios quanto bênçãos para os israelitas; também utilizou cinza
para desencadear a praga de tumores e úlceras. Elias dividiu as águas do Jordão com o
seu manto 42Rs 2:8), façanha que seu sucessor Eliseu repetiu (2Rs 2:14).
No entanto, esses casos, por , serem um tanto "isolados" e únicos, cada um

padrão imia.vel. Em alguns episódios de cura, a iniciativa partiu do "povo", eufó-


.
. rico. Embora no houvesse nenhuma virtude nos objetos utilizados, Deus pode ter
'recompensado a fé popular, tendo em vista o contexto da época. Em certos casos,
' Deus responde à superstição e à crença mágica para despertar a verdadeira fé. Isso,
porém, é diferente de uma igreja ou líder religioso incentivar tal prática. O uso de
, objetos sów é realmente legítimo quando Deus ordena, a exemplo da serpente de
bronze, ou da vara de Moisés. -,
Num nível puramente prático, podemos dizer que muitas relíquias não passam
de fraudes. Na época da Reforma, como dizia Calvin() zombeteiramente, a quantidade
de madeira atribuída às relíquias da Cruz Verdadeira era tão grande que mesmo 300
homens não poderiam carregá-la.
Além disso, o uso de relíquias é teologicamente inaceitável porque pressupõe
alguns fatos sem base bíblica. Primeiro, não há nenhum exemplo positivo na Escritura
de veneração de relíquias. Os ossos de José levados do Egito para Canaã e o pote de
maná e a vara de Arão guardados na Arca da Aliança claramente não eram venerados
como relíquias. Em segundo lugar, não há nenhuma evidência de que o processo de
santificação (ou "divinização", na linguagem ortodoxa oriental) afete a composição
Práticas de Cura Proibidos 87

corporal do ser humano, por mais santo que seja. A glorificação só ocorrerá por oca-
sião da volta de Jesus. Em terceiro lugar, a idéia de que um objeto material ligado a
um ser humano possa exercer qualquer influência tangível .e desencadear uma ação
divina em nosso favor entra no campo da magia. Em quarto lugar, as relíquias em
algum ponto acabam se chocando com o sólido fundamento da graça de Deus, e assim
wntrariam a doutrina da justificação pela fé. Finalmente, Deus é Deus dos vivos, e
não dos mortos, tanto é que no Antigo Testamento se alguém tocasse um cadáver se
tornava impuro. Um adepto das relíquias pode argumentar que os santos não'estão
mortos, mas aí é outra história.

(5) INTERCESSÃO DE SANTOS

O sentido etimológico básico da palavra santo (grego, hagios; latim, sanctu) é "sepa-
rado", "dedicado a uma função sagrada". Foi só no segundo ou terceiro século d.0 que
o vocábulo virou título honorífico, e os santos passaram a ganhar um status especial. No
segundo Concílio de Nicéia (787), a veneração de santos foi formalmente sancionada. A
adoração pagã dos mortos torna-se a marririolatria cristã, É verdade que os teólogos reu-
nidos em Nicéia tentaram estabelecer uma distinção ètilt-re a reverência (dou/era) prestada
aos santos e a adoração absoluta (latreia) devida a Deus. Mas o mal estava feito.
No século 16, enquanto os reformadores solapavam a "base" teológica da venera-
ção de santos, o Concílio de Trento confirmava a prática como "boa e útil". Invocados
como "amigos de Deus", os santos passaram a ser encarados como uma espécie de
lobistas junto a Deus, conquistando milagres para seus devotos.
- Evidentemente, _esse enfoque não existia na igreja primitiva. A mudança, ao que
parece, ocorreu como resultado gradual e inevi,vel de um processo de separação exa-
gerada entre o sagrado e o profano, do deslocamento da ênfase da cura para o perdão,
e do distanciamento de Deus da experiência dos crentes comuns. No vácuo das idéias
abstratas sobre Deus, surgiu o medo de um Deus irado e vingativo. Assim, Maria e os
santos tornaram-se intermediários para os pobres mortais, privados da experiência direta
com o sagrado. O acesso a Deus limitava-se agora a um grupo de indivíduos com aura
de perfeição e poderes quase mágicos para curar.
Curar virou, então, uma especialidade dos santos ‘pe um modo ou de outro, todos

para alcançarem o status oficial de santas. A conexão fica ainda mais clara na língua
alemã, em que Heilig significa "santo" e o verbo heilen quer dizer "curar". Num livro
de resgate da tradição, sobre médicósk, taumaturgos e protetores, o médico italiano
Luciano Sterpellone lista dezenas e dezenas de (1) santos que eram comprovadamente
médicos, (2) santos médicos segundo a tradição, (3) santos não médicos que praticaram
ativamente a medicina, (4) santos erroneamente considerados médicos pela tradição
e (5) santos que supostamente protegem de doenças)
88 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Um dos aspectos mais interessantes da obra é descobrir corno os santos se tor-


nam protetores das doenças. Em alguns casos, o santo sofreu da mesma doença, ou
supostamente curou alguém da doença, ou foi afetado naquela parte do corpo durante
o martírio; em outros, a associação do santo com determinada doença é puramente

lógica médica. Há também casos em que o papa vê a "necessidade" de nomeai uni


protetor para determinada doença e escolhe assim o santo mais apropriado.
São Francisco de Assis (1181-1226), por exemplo, sofria de urna série de distúrbios
do estômago, do fígado e do baço, e passou a ser invocado contra esses mesmos problemas,
além de outros. A chamada "manteiga de São Bartolomeu" usada contra feridas teria sido
criada, segundo a lenda, por uma camponesa do Vale do Reno que tivera uma visão de
São Bartolorneu em seu estado precário após as torturas (antes da decapitação) aplicadas
a ele pelo rei armênio Astiages, irritado com as muitas conversões do apóstolo em seu
reino, depois da missão de Bartolomeu à India. O santo é também invocado contra as
doenças "demoníacas". Santa Bárbara (quarto século) passou a ser a protetora da febre
e da morte repentina devido a uma cirscunstância trágica envolvendo seu pai. Filha do
rico pagão Dióscuro, a belíssima jovem teria despertado a ira de seu pai por aceitar a
fé cristã e, após ser condenada a desfilar nua pelas feirtaa. região (sem ser vista, pois
Deus a teria envolvido com uma densa neblina), torturada e sentenciada à morte por
decapitação, finalmente foi executada pelo próprio pai. Mas, no caminho de volta para
casa, o malvado Dióscuro teria sido atingido por um raio, sendo transformado em cinzas
no mesmo instante. Santa Águeda (morta por martírio no ano 250) é venerada como
protetora contra as doenças das mamas porque teria tido seus seios amputados devido
à sua recusa em atender aos apelos amorosos-dó governador Quinciano. A acusação
formal para a bela jovem siciliana (nascida em Catânia e honrada pelo papa Símaco com
. .
uma igreja na Via Aurélia, em Roma) foi a de praticar o cristianismo. Santo Agostinho
(354-430) é invocado contra as doenças dos olhos, em países de fala alemã, porque seu
nome em alemão (Augustin) lembra a palavra olhos (Augen). A origem da Intervenção"
de,,,Santa Clara e Santa Lúcia nas doenças dos olhos também pode estar ligada apenas a
seus nomes, que lembram claridade e luz. Já Luís Gonzaga, filho de Ferrante Gonzaga,
marquês de Castiglione clelle Stiviere, foi escolhido em 1991 como patrono dos doentes
de Aids pelo papa João Paulo Il porque o santo, numa atitude abnegada que lhe custaria
a vida, teria ajudado muitos doentes durante a epidemia de peste que atingiu Roma em
1590. É bom observar que cada santo pode proteger contra várias doenças, assim como.
cada doença pode ter vários santos a ela associados.
No início do século 21, o panteão de "santos" continua crescendo em ritmo
acelerado. O papa João Paulo II criou uma "fábrica de santos". Em seus 26 anos
de pontificado, ele fez 1.345 beatificações e 483 canonizações, num total de 1.828
aclamações. Em alguns casos, o papa promoveu beatificações e canonizações em massa
t

(de uma vez, ele canonizou 120 cristãos martirizados na China entre 1648 e 1930).
Práticos de Curo Proibidas 89

Todos os seus predecessores (até 1978) proclamaram apenas 300 santos e 1.310 be-
atos. Na euforia, a linha de produção do Vaticano pode até mesmo ter canonizado
um personagem fictício. Segundo alguns estudiosos, o índio mexicano Juan Diego,
a quem ;Virgem de Cuadalupe teria aparecido no século 16 e o qual foi, canonizado
em 31 de julho de 2002, pode não passar de lenda. .
João Paulo II diminuiu as exigências para a canonização (de quatro para dois
milagres, e de 30 para cinco anos de "carência" após a morte da pessoa). Alguns va-
ticanistas acreditam que ele, na verdade, tenha preparado o caminho para que seu
sucessor elimine totalmente a burocracia dos testes científicos que tentam confirmar o
poder miraculoso dos candidatos a santos. O próprio João Paulo pode virar um santo
subito (já), como pediu a multidão logo após a sua morte, em 2 de abril de 2005. No
dia 13 de maio de 2005, o papa Bento XVI fez a primeira promulgação do processo
d.e beatificação de seu reverenciado antecessor
Em 2000, havia na Congregação para a Causa dos Santos, órgão da Igreja Ca-
tólica encarregado dos processos de canonização, 35 candidatos brasileiros à espera
de uma promoção a "santo". O psãmeiro brasileiro nato a receber a beatificação, em
outubro de 1998, foi o Frei Galão (1739-1822), paulistano de Guaratinguetá. O
milagre que lhe possibilitou a beatificação,teria ocorrido à menina Daniela Cristina da
Silva, em 1990, após sérias crises e vários comas no Hospital Emílio Ribas, onde fora
internada por causa de uma hepatite. Curiosamente, um mês após a beatificagão,flom
Aloisio Lorscheider, arcebispo de Aparecida, proibiu as famosas "pílulas milagrosas
de Frei Gaivão" (papeizinhos_çom urna invocação em latim dirigida à Virgem Maria)
em sua diocese, com a justificativa dupla de que (1) a confecção das pílulas estava
transtornando o cotidiano de um grupo de freiras e (2) o consumo das pílulas estava
virando superstição. Em 2002,3 Madre Paulina (1865-1942), nome de carreira de
,Arriábile Lúcia Visintainer, uma ítala-brasileira que trabalhou em Santa Catarina, foi
transformada na primeira santa brasileira: Santa Paulina.
Biblicamente, os milagres dos "santos" enfrentam três grandes barreiras. Primeiro,
Jesus é o único "Mediador entre Deus e os homens", (1Trn 2:5). Em segundo lugar, os
"santos" mortos (assim como os pecadores) dormem no pó da terra, sem qualquer chance
de fazer lobby no Céu, antes da ressurreição £Ec 9:6; 1Co 15). Em terceiro lugar, o pró-
prio Pai nos ama Llo 16:26 e 77). 2 e jamais dependeria da intercessão de santos. Por isso,

o timico que pode nos aiudar e está desejoso de fazê-lo, é um grande contra-senso.

) SACRAMENTOS

, A palavra "sacramento" (do latim sacramentum) originalmente era usada em


dois sentidos básicos: (1) era um termo legal para designar um depósito em dinheiro
feito em juízo pelos contendores durante um processo (talvez guardado em lugar
90 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

sagrado), e apropriado para uso sagrado quando uma das partes perdia a causa; (2)
era um termo militar para designar o juramento de obediência dos novos soldados à
corporação à qual iriam servir. Mas o termo e a idéia que ele encerra na atualidade não
são encontrados no Novo Testamento, tampouco no cristianismo primitivo, embora
a Vulgata o tenha empregado na versão do termo grego mysterion.
A primeira evidência do uso de "sacramento" como um termo técnico aplicado ao
batismo, à eucaristia e a outros ritos da igreja cristã aparece nos escritos de Tertuliano
(no final do segundo e início do terceiro século). Mas, nessa época, a idéia de sacramento
ainda era um tanto vaga. Com exceção de Santo Agostinho, que esboçou uma definição,
dizendo que um sacramento é "a forma visível de uma graça invisível", nenhum pai da
igreja valorizou o tema. Isso só ocorreria plenamente na Idade Média. Assim como os pais
da igreja elaboraram a doutrina da Trindade e a cristologia, os escolásticos desenvolveram
a doutrina dos sacramentos.„Flugo de St. Victor, Pedro Lombardo, Alexandre de Hales
e Tomás de Aquino foram alguns dos nomes que ajudaram a definir a doutrina.
Depois de muita imaginação e argumentação, os teólogos medievais fixaràm o
número de sacramentos em sete: batismo eucaristia confihria ão extrema an ão • --
nitência, ordenação e casamento. Desse número arbitráriae baseado apenas na tradição
e na autoridade da igreja, os teólogos protestantes conserliararn apenas dois: batismo e
eucaristia (ou ceia). Eles também desenfatizaram o poder intrínseco dos sacramentos.
Enquanto a tradição católica considera os sacramentos eficazes em -virtude de um poder
inerente a eles mesmos como atos externos (ex opere operato), cornunicando benefícios
para quem os recebe independente das circunstâncias, a tradição protestante defende

icionada nela fé dó recipiente,


Hoje, no cristianismo de tradição católica e ortodoxa, os sacramentos são vistos
como meios efetivos de expressão da graça de Deus. Não são a realidade, mas são
mais do que um símbolo. Canais para o poder curador de Deus, eles seriam pontos
de contato com Deus, para transmitir a energia divina a nós, servindo, também, para
estimular a fé. Uma suposta vantagem dos sacramentos é que eles apontam para Deus
como a fonte da cura, evitando a tendência de se atribuir poderes ao taumaturgo. A
eucaristia e a unção, em especial, são utilizadas corno sacramentos de cura.
A Igreja Católica sustenta que a eucaristia não apenas pode operar milagres nas
pessoas, mas às vezes ela mesma se transforma milagrosamente em carne e sangue ver-
dadeiros. Há 25 supostos casos de transformação do pão e do vinho em carne e sangue,
sendo o de J„,anciano, Itália, acontecido por volta do ano 750, o mais famoso.
O problema com o uso dos sacramentos na cura começa com a sua própria
definição. Devemos adotar a definição católica ou a protestante? E quanto ao nú-
mero deles? Se adotarmos a posição protestante, que, sem dúvida, é mais bíblica,
teremos dois "sacramentos" para trabalhar (batismo e ceia). Contudo, nesse caso,
a unção com óleo recomendada por Tiago (5:14) ficaria de fora, e a unção, mesmo
Práticos de Cura Proibidas 91
não possuindo o status de um sacramento, certamente deveria ser mantida como
um meio de cura. O que fazer?
O batismo e a ceia não estão diretamente ligados à cura no Novo Testamento.
Mas o batismo, com o seu simbolismo de morte e ressurreição para uma nova vida, e
a ceia, com o simbolismo do corpo e do sangue, bem podem ser associados de algum
modo à cura e à saúde, desdeue Q,p não =mos apenas akkió_~_,
i -oasila
m
saúde total. De fato, a igreja cristã primitiva utilizava o óleo em conexão com o batismo
e a ceia (nas igrejas do Oriente, o óleo é usado na elaboração do pão da eucaristia).
Em relação ao batismo, John Halliburton escreve:

O uso do óleo na liturgia cristã não se inicia, como se poderia supor, com serviços
para á cura (seguindo o exemplo apresentado por São Tiago), mas com o batismo.
É significativo que o rito descrito por São Tiago não possa ser identificado na igreja
ante-nicena. Teólogos como Orígenes (seguido por João Crisósromol usam Tiago 5,
. para ilustrar sua teologia do perdão dos pecados, e não como uma garantia para a
prática de ungir os doentes. Assim, por muitos anos, o óleo, liturgicamente, pertence
ao tanque [batismal], e não ao leito [dos doentes]. Seu uso na iniciação pode ter sido
muito primitivai'

A unção batismal, que por volta do terceiro século tornara-se indispensável, era
tripla: (1) antes do batismo, o candidato era ungido com o óleo do exorcismo para
marcar a sua renúncia ao diabo e a decisão de pertencer a Cristo; (2) ao ele sair do
tanque, o presbítero o ungia com o óleo da gratidão; finalmente, (3) o bispo impunha
as mãos sobre ele e o ungia para confirmar a sua iniciação cristã.ASe
outras coisas, uma forma de sinalizar que o converso estava sendo perdoado, receben-
do o Espírito Santo, obtendo protecão contra os ataques do diabo, interrompendo a
corrupcãp do pecado e sendo selado para a vida eterna. O novo crente era agora um
soldado de Cristo, um atleta preparado para combater as forças do mal, fonte direta
s
das doenças, na concepção da época. Em certo sentido, todo o processo do batismo ,c
lu :
tinha a ver com cura e renovação. A •

O problema, portanto, não está tanto no uso desses sacramentos/emblemas para (b?.
a finalidade da cura, mas na sua interpretação e no peso dado ao seu papel salvífico/ k
c,
curador. Ao que parece, o meio-termo desejável não está nem na acentuadamente
mística posição católica nem na palidamente simbólica posição de algumas igrejas
protestantes. Isso si • nifica e ue o uso dos "sacramentos" sara a cura e e - er e bli
ou não, dependendo da sua definição.
,
(3) PPERACÕES MEDI ÚNJ!CA
O século 19 testemunhou o surgimento de vários fenômenos "inexplicáveis"
que dariam origem ao moderno espiritualismo, ou espiritismo, como preferia Allan
92 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Kardec. O movimento começou em 1848, com as batidas "misteriosas" na casa da


família Fox em Hydesville, nos Estados Unidos; prosseguiu com a sua oficialização
por um grupo de espiritualistas em 14 de novembro de 1849 no Corinrhian Hall
de Rochester; ganhou projeção na década seguinte com o trabalho de codificação da
doutrina pelo grofessor francês de ciências Léon Plippolyte Denizard Rivail (mundial-
-mente conhecido como Allan Kardec nome se. undo ele do druida celta •ue teria
s passado e • e c c -1
.s 'Países.
.. .17 sAcer_to -re
No Brasil, o espiritismo kardecista achou um solo fértil. Hoje, há três vertentes
no espiritismo brasileiro: (1) a kardecista; (2) a afro-brasileira sincretista, representada
pelo Candomblé e a Umbanda; e (3) a Ordem Espiritualista, com sede no Vale do
Amanhecer, a 46 km de Brasília. Sem dúvida, o Brasil é o líder do movimento espírita
hoje. Enquanto na França o número de kardecistas caiu de meio milhão no final do
, século 19 para cerca de mil na atualidade, no Brasil ocorreu o contrário. O censo do
IBGE de 2000 Mdicou,2,2 milhões de espíritas no país, especialmente entre as altas
camadas. Porém, a Federação Espírita Brasileira estima que, se forem incluídos todos
os que crêem na vida após a morte e na comunicação com os mortos, o número chega
a 30 milhões. Há cerca de 5,6 mil centros espíritas no país.
O médico cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831-1900) e o
médium mineiro Francisco Cândido Xavier (1910-2002), o Xico Xavier, foram dois
dos principais responsáveis pela divulgação da doutrina espírita no Brasil. Até mesmo
um dos ministros de Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso incorporava
espíritos e promovia curas. Trata-se do general Alberto Mendes Cardoso, que foi mi-
.
nistro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e segundo o qual o kardecisrno
prosperou muito no Exércitõ.
A atual postura católica em relação ao espiritismo pode fortalecer ainda mais o
movimento, levando a um sincretismo cada vez mais presente no território brasileiro.
Ingo Wulfhorst diz que, historicamente, a nosição católica passa por quatro estágios:
(1) ignorar e silenciar; (2) classificar de hdesia e polemizar (em 1953, foi lançada a
"Campanha Nacional contra a Her4a ! Espírita"); (3) interpretar como fenômeno
parapsicológico puramente deorigem_ humana; e (4) dialogar.
Uma das facetas mais visíveis do es iritismo é a cura através de operaçõss
espirituais . Apesar de controvertido, o tema chegou, inclusive, à prestigiosa Uni-
versidade de São Paulo, attaWs de um curso com status de pós-graduação. A base do
curso, conhecido no campus por psicobiofísica é a doutrina espírita de Allan Kardec.
•O1 2r Frei I atiz (Rio de Janeiro), o Templo Universalista Jesus Cristo (Sorocaba, SP),
'9 Santuário Rarnatis (em Leme, SP) e o Hospital Harnrnersrnith (em Londres) são
exemplos de instituições que tentam unir ciência e "medicina do além".

Nesse tipo de cura, os médiuns (do latim medium, "meio", intermediário")
recebem supostos espíritos de pessoas mortas e, incorporados, fazem as operações. O
"espírito" do Dr. FritziAdolph Frederkk Yeperssoven, médico alemão morto em 1918)
Práticos de Curo Proibidas 93

é o mais famoso em atuação no Brasil. Entre outros, já operou através do mineiro


José Pedro de Freitas (1921-1971), o Zé Arigó, que, utilizando instrumentos inade-
quados como facas enferrujadas, tratou de aproximadamente 4 milhões de pessoas e
enriqueceu, até ser morto num acidente de carro; e do ginecologista pernambucano
Edson Queiroz, que realizou 3,7 milhões de operações espirituais em nove anos,
tornou-se presidente da Câmara dos Deputados de PernambucQ e foi assassinado em
1991 por um ex-vigia de sua casa. Depois, p engenheiro eletrônico carioca Rubens
Faria Jr. reivindicou ser o "cavalo" (médium) do Dr. Fritz. Até o falecido presidente
João Figueiredo passou por suas mãos, em seu QG, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Em 1997, estimava-se que a sua fundação arrecadasse com ingressos cerca de R$ 500
mil por mês, o que estaria enriquecendo o médium.
Outro operador mediúnico bem conhecido é Ioão Teixeira de Faria, ou João
de Deus, considerado um dos maiores médiuns dos últimos tempos. Atendendo na
Casa de Dom Inácio, em Abadiânia, Goiás, Teixeira de Faria já teria tratado da atriz
S.hirley MacLaine e recebido uma Medalha de Honra do então presidente do Peru,
Alberto
3 Fujimori, em gratidão pela "cura" do seu filho. O médium, que "incorpora"
mais de 30 entidades e opera em transe hipnótico, ignora as mais elementares pre-
cauções higiênicas e já foi processado por prática ilegal da medicina — assim como
outros médiuns o foram. Zé Arigó, por exemplo, foi condenado em março de 1957
a um ano e três meses de prisão por charlatanismo. Foi libertado após cumprir cinco
meses da pena, graças ao perdão do presidente Juscelino Kubitschek.
Os métodos das cirurgias variam. Por exemplo, no Lar de Frei Luiz, em Ja-
carepaguá, por onde já passaram o ator Carlos Verez,a e as cantoras ,Elba Ramilho
e Joanna, não são utilizados in titrurnentos cortantes. Atribuindo as operações desse
centro aos"médicos do espaço", o lornalista Rdni Lima assim as descreve:

Normalmente, dois procedimentos são adotados: ao trabalhar incorporada no corpo


do médium, a entidade usa seus dedos para pressionar e abrir a pele do paciente, reti-
rando a parte afetada, como tumores [...]. Pode haver também a desmaterialização da
parte doente e a sua rematerialização nas mãos do médium ou dentro de um recipiente
qualquer, como uma caixa de isopor Participantes dessas reuniões já viram atéii te os
doentes irem brotando para fora do corpo auavés dos poros da pele do pacient 15

Embora muitos pesquisadores considerem essas "cirurgias espirituais" apenas


fraudes e truques de mágica, parece que, em certos casos, há mais do que farsa. Porém,
seja como for, a prática rnediúnica contraria a cosmovisão e o ensino bíblicos em vários
pontos, como a natureza do ser humano e seu estado na morte.
Segundo a Bíblia, o ser humano é uma pessoa vivente, ao invés de ter uma alma
aprisionada num corpo; ao morrer, a pessoa vira pó, permanecendo num estado de
inconsciência (Ec 9:5, 6 e 10; lo 11:25); e, em vez de reencarnação, há ressurreição
(1 Co 15). Vários eruditos demonstraram que o conceito da imortalidade inata da alma
94 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

não é bíblico. A idéia se originou no paganismo, penetrou no pensamento grego _e,


no quarto século a.C., 1 foi elaborada filosoficamepte por Platão, no Fédon. Os judeus,
seguindo a Bíblia hebraica, criam na imortalidade condicional. Mas, no período
tertestamentário, as duas correntes ilmortalismo e condicionalismo) conviveram lado
a lado. Os pais da igreja cristã ante -nicenos eram amplamente condicionalistas. No
catolicismo, a imortalidade da alma virou dogma por ordem do papa Leão X. em sua
famosa bula de 1513. A ciência moderna séria já descartou há algum tempo a idéia
de uma alma imortal.
Acima de tudo, a Bíblia classifica as tentativas de contato com espíritos de "abo-
minação ao Senhor". (Dt 18:12). Em Israel, consultar os mortos era crime ,(Lv 20:27).
Esse rigor contra os espíritos se deve ao fato de os espíritos, na verdade, serem demônios,
esníritns diabólicos A condenacão a esse tipo de "medicina", portanto, é inequívoc3.

(,)
. .REGRESSÃO

A crença em conceitos espiritualistas parece estar crescendo no Brasil e nos Es-


tados Unidos. Numa pesquisa feita em março de 1997 pelo instituto Vox Populi, de
Belo Horizonte, 22% dos entrevistados disseram acreditar que vão reencarnar ou ir
para outros planos de existência, após a morte. Nos Estados Unidos, a porcentagem
dos que acreditam em reencarnação é ainda maior.
Há várias explicações para o fenômeno. Primeiro, a reencarnação camufla o im-
pacto da morte real. Em segundo lugar, satisfaz a curiosidade dos místicos e esotéricos
ao tentar explicar fenômenos como a sensação de déjàvu, a experiência de quase-morte
e o aparecimento de "espíritos" Em terceiro, o carma parece explicar por que coisas
ruins acontecem sem motivo aparente, já que para os reencarnacionistas não existe
acaso. Em quarto, o cinema e a TV passaram a divulgar idéias espiritualistas nos filmes
(por exemplo, Ghost) e novelas (A Viagem, Anjo de Mim, Alma Gêmea), ao lado da
propaganda de estrelas como Shirley MacLaine e TinaTurner. Por fim, deve-se lembrar
que toda virada de milênio suscita uma onda mística. Apesar das explicaçé?" es', eu diria
que a ênfase atual na idéia de que a morte não é realmente a morte parece sei - resultado
de um plano estratégico deliberado para enganar a humanidade.
Na esteira da reencarnação, surgiu a.terapia de regressão a vidas passadas, que foi
parar na capa de revistas seculares e tem seduzido muitos profissionais da área médica,
a ponto de terem sido criadas várias associações de terapeutas de vidas passadas. A
técnica da regressão consiste em fazer, através da hipnose, a pessoa "viajar" mental-
,
mente a um suposto tempo passado de sua vida, ,a fim -de resgatar "acontecimentos'
que possam estar influindo negativamente em sua vida atual.
Um dos terapeutas envolvidos com a prática é 131 _3311.1X/sias, psiquiatra de reno-
me, diplomado pela Universidade de Yale, ex-professõr catedrático de um dos mais
conceituados hospitais universitários americanos, o,Mount Sinai Medical Center, em
Práticas de Cura Proibidas 95
Miami. Treinado para pensar corno cientista e médico, Weiss conta que desconfiava
de tudo que não pudesse ser provado pelos métodos científicos tradicionais. Mas as
coisas começaram a mudar em 1980, quando, durante uma sessão de psicanálise, sua
paciente Catherine, sob hi 'gnose, regrediu à infância e entrou numa outra era, pulan-
do para uma vida passadaUMesmo sendo de origem judia, ele passou a defender a
reencarnação e a divulgar a terapia de vidas passadas (TVP) ao redor do mundo.
Como explicar o fenômeno? Para os defensores da regressão, ela é uma prova

vIvos. Porém, há outras explicações alternativas. Geisler e Arnano comentam que "o
conhecimento de acontecimentos do passado não implica a presença da pessoa nesses
acontecirnentos"COHá pelo menos cinco outras explicações:
1. Fraude. Sabe-se que no terreno pouco policiado da espiritualidade escondem-
se muitos truques e enganos. Nos Estados Unidos, o famoso caso de 13ridey IVIurphy,
ligado à regressão, foi desmascarado — Bridey Murphy nunca existiu, era produto da
imaginação de uma criança.
2. Superstição ou pseudociência. Çarl Sa• (1934-1996), que era um crítico im-
placável de todo tipo de especulação com ares científicos, escreveu: "Se fosse anunciada
alguma evidência real de vida após a morte, desejaria muito examiná-la, mas teria de
ser uma evidência real científica, e não simples anedota"0
3. Fenômeno ,sicoló tico antasia, sonho, suiestão, cri .tomnésia . A Associação Psi-
2uiátrica Americana alertou, em 1993: "Não se pode distinguir, com absoluta precisão,
as lembranças baseadas em acontecimentos verdadeiros daquelas derivadas de outras
fontes." O subconsciente pode confundir lembranças reais do presente com supostos
acontecimentos passados. Às vezes, vários personagens das "vidas passadas" são versões
de pessoas com quem o paciente convive atualmente, possuindo os mesmos nomes.
Como explicar a coincidência? Argumenta-se que as almas tendem a se reencarnar
em grupo, para trabalhar seus carmas. Mas o argumento é frágil.
turiptomnésia pode, realmente, enganar a pessoa. Essa palavra esquisita significa
o ato de resgatar coisas gravadas no fundo da mente (o inconsciente), como se fossem
"misteriosas", sem perceber que essas coisas já fizeram parte da experiência real da vida da
pessoa em algum momento no passado. Belen Kel er por exemplo, foi vítima da fantasia
criptornnésica. Em 2.122.2 ela escreveu uma celebrada história sob o título The Frost King‘
Mas logo descobriu-se que o texto era uma versão modificada de outra composição
literária publicada por uma certa Sra. Canby 29 anos antes,, The Frost Fairies. Helen,
que era cega e surda, ficou arrasada. Como isso foi acontecer? Ela quebrou a cabeça
muito tempo renta .fido recordar se havia tido algum contato com The Frost Fairies,
e não se lembrou de absolutamente fiada. Mas investigações revelaram que, de fato,
uma amiga lhe havia lido em braile algumas histórias da Sra. Canby, inclusive The
Frost Fairtes, em 1888. Helen não tinha consciência dos fatos, mas eles eram reais.
Fora vítinria,cla criptomnésia.
96 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

4. Condiczonamento cultural. Sabe-se que as memórias de vidas passadas tendem


a ocorrer em culturas condicionadas a crer na reencarnação. Dc cada 300 casos estu-
dados, mais de 100 vêm da Índia. Outros locais onde o fenômeno é acentuado são Sri
Lanka, Tailândia, Vietnã, Líbano, Síria, Turquia e noroeste dos Estados Unidos.
5. Possessão demoníaca. Conjugar a teoria da regressão com a idéia da reencarnação
é certamente urna estratégia demoníaca. A Bíblia não só afirma a realidade da possessão
demoníaca, mas também alerta para as estratégias futuras de sedução e engano por
parte de Satanás (1Trn 4:1; Ap 16:13 e 14).
A conexão da terapia de vidas passadas com o mundo dos espíritos é evidente.
Durante uma sessão de terapia, ao notar a mudança no tom da voz de Catherine e
a revelação de fatos surpreendentes, Weiss perguntou: "Quem lhe diz estas coisas?"
Catherine sussurrou: "Os Mestres, os Espíritos Mestres me dizem. Eles me dizem
que vivi oitenta e seis vezes em estado físico." Catherine mostrou conhecimentos
que, reconhece Weiss, vinham "através de Catherine, mas não eram de Catherine".' 9
Weiss acredita que alguns de seus pacientes, em transe, transmitem inensagenss
"mestres". Em sua visão, os espíritos usam o corpo e os sentidos das pessoas para
se manifestar. Ele crê que Catherine foi um meio para que ele, Weiss, pudesse ter
contato com os "mestres".
Para adeptos da TVP como Weiss, nós somos seres divinos. Esse é o ensino
da Nova Era„ e também das antigas religiões orientais. A origem desse pensamento
remonta ao Jardim do Éden. No famoso diálogo da serpente com Eva, aparece a
primeira insinuação de imortalidade à parte de Deus, através de urna nova percepção.
A serpente diz que, ao comer do fruto proibido, Eva seria como Deus (Gn 3:4 e
5). E claro que a serpente (médium de Satanás) mentiu, pois devia saber que Deus
é "o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem
algum jamais viu, nem é capaz de ver" (1Trn 6:16).
Isso reforça a conclusão de que Satapás está por trás desses fenômenos, na tentativa
de dar legitimidade científica à insinuação de que somos deuses, imortais. Os defensores
da terapia de vidas passadas estão presentes em muitas univeisidades prestigiosas, fazendo
pesquisas para provar que a reencarnação é um fato científico.
A cosmovisão que dá suporte à terapia de vidas passadas é a mesma do espiritismo,
condenada explicitamente na Bíblia. Mas será que, considerando-se o aspecto pragmático,
a terapia de vidas passadas deve ser usada? Raymond Moody, psiquiatra americano famoso
por suas experiências de "quase-morte", fez uma pesquisa sobre a terapia de vidas passadas,
submetendo-se ele mesmo a incríveis regressões, e acha que o método proporciona uma
maneira rápida e inovadora de descobrir, ao menos parcialmente, o que está atormentando
o paciente'Q.Mas os cristãos sabem que os resultados podem ser desastrosos. O bom senso
diz que, ainda que a técnica funcionasse, jamais deveria ser utilizada Ela pertence a uma
cosmovisão diabólica e envolve uma fenomenologia proibida Obviamente, o inimigo de
Deus está patrocinando esses fenômenos. Os fins não justificam os meios.
Práticas de Cura Proibidos 97
Concluindo, é importante ressaltar que, entre as práticas de cura condenadas na
Bíblia, há diferentes graus de proximidade e distanciamento do ensino bíblico. O uso
de sacramentos, por exemplo, está na fronteira do aceitável, enquanto a intercessão de
santos, as cirurgias mediúnicas e a regressão estão no máximo do condenável. Embora
o cristão deva respeitar as pessoas que se envolvem com 'essas práticas arriscadas, ele
"precisa saber discernir os espíritos pela Palavra de Deus i\
Ci\mPli‘ •
NOTAS
Michael H. Cohen, "Healing at the Borderland of Medicine and Religion: Regulating Potential
Abuse of Authority by Spiritual Healers",Journa/ofLaw & Re/igion 18 (2002-2003): 373-426.
Carolyn Miller, Creating Miracles: Understanding the Experience ofDivine Intervention (Tiburon,
CA: I-I J Kramer, 1995), xi.
'Paul Pearsall, A Arte de Fazer Milagres (São Paulo: Pensamento, 1994), 243.
Dave Hunt e T A. McMahon, A Sedução do Cristianismo (Porto Alegre: Chamada da Meia-
Noite, 1995), 28 .
Benson e Stark, 7.
' Paul Yonggi Cho, A Quarta Dimensão (Miami: Vida, 1986), 42.
Jeanne Achterberg, A Imaginação na Cura (São Paulo: Surnmus, 1996), 21.
Carl Sagan, O Mundo Assombrado Pelos Demônios (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), 231.
9 Michael 13rown, 154. Entre os "salmos de doença e cura", têm sido incluídos os de número 6,
30, 38,41 69, 88, 91 (?), 102, 103, 116, 146, 147, e o salmo do rei Ezequias em Isaías 38.
1 ° John S. Strong, "Relics", The Encyclopedia of Religion,
ed. Mircea Eliade (Nova York: Macrnillan,
1986), 12278. .
" Ibid., 12281.
' 1 Luciano Sterpellone, Os Santos e a Medicina (São Paulo: Paulus, 1998), 7.
' John Halliburton, "Anointing in the Early Church", em The Oil of Gladness: Anointing in the
Christian Tradition, ed. Martin Dudley e Geoffrey Rowell (Londres: SPCK; Collegeville: Liturgical
Press, 1993),-78.
Ingo Wulfhorst, Discernindo os Espíritos: O Desafio do Espiritismo e da Religiosidade Brasileira,
34 ed. (São Leopoldo: Sinodal, 1993), 17-29.
LUÍZ (Rio de Janeiro: Mauad,
15 Roni Lima, Médicos do Espaço. Luiz da Rocha Lima e o Lar de Frei

2000), 109.
1 " Brian L Weiss, Muitas Vidas, Muitos Mestres,
22' ed. (Rio de Janeiro: Salamandra, 1991), 13-16.
Not man L Geisler e J. Yutaka Amano, Reenca, nação. O Fascínio Que Renasce em Cada Geração,
2•I ed. (São Paulo: Mundo Cristão, 1994), 65.
' 8 Sagan, 201.
19 Weiss, Muitas Vidas, 52,94

Raymond A Moody Jr. e Paul Perry, Investigando Vidas Pa.ssadaç (São Paulo: Cultrix, 1995), 53.

• ,

RELATOS DE CURA

Deus cura e o médico envia a conta.


Benjamin Franklin (1706-1790), político e cientista americano

O leitor da Bíblia não familiarizado com detalhes da História pode ser levado
a pensar que os relatos do Novo Testamento sobre milagres são os únicos da época
Mas não são.. Qual é, então, a diferença entre eles? Por que crer nos milagres de Jesus,
e não nos de outros curadores? De_É-1.21 it.milagres atuais não são reclamados.
apenas nos meios cristãos. Como saber, então, o que é real e o que é falso? Podemos
aceitar como reais os muitos casos de cura reivindicados na atualidade pelo movimento
pentecostal/carismático? Um breve panorama comparativo e descritivo dos milagres do
tempo de Jesus, seguido pela análise do enfoque carismático, pode lançar alguma luz
sobre assunto. A verdade às vezes está nos detalhes.

JESUS E OS "CONCORRENTES"

Para vários milagres de Jesus, existem paralelos na literatura antiga Historiado-


res ou escritores como Flávio Josefo (c 38-100 d.C.), Diodoro da Sicília (primeiro
século a.C.), Flutue° (c. 46-119 d.C.), Tácito (c 55-120 d.C.), Suetônio (c 69-122
d.C.) e Filóstrato (c 170-245 d.C.) narram curas milagrosas atribuídas, por exemplo,
a 4ksclépio (Esculápio), deus helênico da medicina; a Paro (falecido em 272 a.C.),
rei do Epiro; a Vespasiano (9-79 d.C.), imperador romano; a Apolônio de Tiana
(primeiro século d.C.), pregador itinerante que teria viajado de Roma à Índia, com
passagem pelo Egito; e ao rabino carismático Hanina ben Dossa. Veremos, a seguir,
três paralelos/contrastes, com alguns comentários.
e Paralelo/contraste 1. João registra uma cura feita à distância por Jesus. O bene-
ficiado foi o filho de um oficial do rei. Diz &texto:

Dirigiu- Se de novo a Cana da Galiléia, onde da água fizera vinho. Ora, havia um
oficial do rei, cujo filho estava doente em Cafarnaurn. Tendo ouvido dizer que Jesus
viera da Judéia para a Galiléia, foi ter com Ele e Lhe rogou que descesse para curar
100 O FASCINIO DOS MILAGRES

seu filho, que estava à morte. Então Jesus lhe disse: Se porventura não virdes sinais e
prodígios, de modo nenhum crereis. Rogou-Lhe o oficial: Senhor, desce, antes que meu
filho morra. Vai, disse-lhe lesus; teu filho vive. O homem creu na palavra de Jesus, c
partiu. Ja ele descia, quando os seus servos lhe vieram ao encontio, anunciando-lhe
que o seu filho vivia. Então indagou deles a que hora o seu filho se sentira melhor.
Informaram: Ontem à hora sétima a febre o deixou. Com isto reconheceu o pai sei
aquela precisamente a hora em que Jesus lhe dissera: Teu filho vive; e creu ele e toda
a sua casa (Jo 446-53).

O Talrnude também credita um caso de cura à distância ao rabino galileu Hanina


ben Dossa, cuja atividade parece ter se desenvolvido entre 20 e 70 d.C. (ou entre 40
e 90), na Galiléia. O beneficiado pela cura era o neto de Gamaliel, mestre de Paulo
de Tarso (At 22:3), e filho do Rabã Gamaliel II. Diz o relato:

Nossos rabis narram: o filho de Rabã Gamaliel tinha adoecido. Rabã Gainaliel enviou
dois discípulos a R Hanina ben Dossa, para pedir-lhe que imploi .isse a misericórdia
divina para seu filho. Quando R Hanina os viu chegando, subiu para o lugar mais alto
[de sua casa] e se pôs a rezar ao Misericordioso pelo doente.
Ao descer, disse aos dois discípulos:
—Podeis ir, a febre o deixou.
—Então és profeta?
— Não sou profeta nem filho de profeta, mas tenho uma tradição que me vem de meu
avô: se a minha oração sai facilmente de meus lábios, sei que ela é aceita; do contrário,
sei que ela é anulada.
Eles se sentaram e escreveram a hora exata [na qual R Hanina lhes tinha feito essa
previsão]. Quando voltaram a Rahâ Gamaliel, este lhes afirmou:
—Foi justamente nessa hora [que vós dizeis], nem mais cedo nem mais tarde, que a
febre o deixou e que ele nós pediu de beber@

Os dois relatos têm pontos de contato, mas também profundas diferenças.


Em ambos os textos, o beneficiado é filho de uma pessoa importante e a cura é feita
à distância, mas, diferentemente de Jesus, que afirma ser o Filho de Deus, o rabino
Hanina não reivindica ser profeta. Além disso, Hanina presume que Deus atendeu
seu pedido, curando o rapaz, porque sua oração fluiu com facilidade, ao passo que
Jesus conhecia fatos não revelados e tinha certeza de Suas curas ("Vai, teu filho vive").
Isso lhe diz alguma coisa?
• Paralelo/contraste 2. Lucas relata o caso em que Jesus Se compadece da mãe de
um rapaz que está sendo levado para o cemitério e o ressuscita:

Em dia subseqüente, dirigia-Se Jesus a uma cidade chamada Naim, e iam com Ele os
Seus discípulos e numerosa multidão. Como Se aproximasse da porta da cidade, eis
que saía o enterro do filho único de urna viúva; e grande multidão da cidade ia com ela.
• Relatos de Cura 1.01

Vendo-a, o Senhor Se compadeceu dela e lhe disse: Não chores! Chegando-Se, tocou o
esquife e, parando os que o conduziam, disse: Jovem Eu te mando: Levanta-te. Sentou-
se o que estivera morto e passou a falar; e Jesus o restituiu a sua mãe. Todos ficaram
possuídos de temor, e glorificavam a Deus, dizendo: Grande profeta se levantou entre
nós, c: Deus visitou o Seu povo. Esta notícia a respeito dEle divulgou-Se por toda a
Judéta e por toda 'a circunvizinhança (Lc 7:11-17).

Filóstrato apresenta um relato mais ou menos parecido em relação a Apolônio


de Tiana

Eis um milagre de Apolônio: uma jovem passou por morta na hora de seu casamento,
e o noivo seguia a maca, lamentando duas núpcias inacabadas; Roma inteira gemia
com ele, porque a jovem pertencia a família consular. Apolônio, testemunha desse
luto, aproximou-se e disse. "Colocai a maca em terra, porque vou deter as lágrimas
que derramais por esta jovem." Ao mesmo tempo perguntou como ela se chamava.
Os assistentes pensaram que ele fosse dirigir-lhes um discurso corno os que são de tra-
dição e que provocam lamentações, mas ele não fez outra chisa senão tocar na jovem
e pronunciar sobre ela algumas palavras misteriosas; e despertou a jovem daquilo que
, .
parecia ser a morte, e a jovem começou a falar e voltou para a casa de seu pai como
Alceste ressuscitada por Hércules. E quando os pais da jovem lhe ofereceram um pre-
sente de 150.000 sestércios, ele disse que os dava à jovem como dote. Descobrira ele
nela uma centelha de vida que tivesse escapado àqueles que lhe prestavam os últimos
deveres — conta-se, com efeito, que caía uma chuva fina e que de seu rosto subia uni
vapor — ou reacendeu e restaurou a vida que estava extinta? É impossível decidir, e isso
permaneceu misterioso não só para mim, mas também para os assistentes.

Uma rápida olhada mostra certa similaridade entre os dois relatos e também
contrastes. Nos dois relatos, há o encontro dos taumaturgos com cortejos fúnebres;
em ambos, a pessoa morta era especial para alguém; em ambos, os taumaturgos pa-
ram os féretros, compadecidos; e, em ambos, tocam nos esquifes e os mortos voltam
à vida. Mas as diferenças são maiores. No caso de Jesus, o morto é um rapaz e filho
único de uma viúva; no caso de Apolônio, é uma moça, noiva, e filha de uma família
da alta sociedade de Roma. Lucas diz que Jesus Se compadece; Filóstrato não revela
as emoções de Apolônio. Jesus não pergunta nada; Apolônio pergunta o nome da
moça. Jesus dá uma ordem direta para o rapaz se levantar; Apolônio pronuncia "sobre
ela algumas palavras misteriosaC. Lucas diz que o rapaz estava realmente <trnortd;
Filóstrato diz que a jovem "passou por morta" e foi despertada daquilo que «parecia
ser a morte". No texto tucano, não há referência a dinheiro; no filostratiano, a família
da moça tenta pagar. Lucas diz que a multidão ficou possuída de temor e glorificou a
Deus, reconhecendo que ali estava um grande profeta; Filóstrato diz que é impossível
decidir o que realmente aconteceu, e que o fato permaneceu misterioso para ele e os
assistentes. Em qual zelam você sente mais firmeza?
102 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Conhecendo a vida dos dois taumaturgos, os contrastes não param aí O es-


tilo, o caráter e a natureza do trabalho de Cristo são totalmente diferentes da vida
de Apolônio. Nascido em Tiana, na província romana da Capadócia, Apolônio
viajou por muitas partes do mundo conhecido na época (primeiro sé,culo d.C.).
Era vegetariano e fiel ao ideal pitagórico. Sua biografia, Vida de Apolônio de Tiana,
que menciona cerca de vinte milagres, foi escrita por volta de 217 d.C., a pedido
da imperatriz Júlia Dornma tesposa do imperador Sétimo Severo. Há eruditos que
defendem a idéia de que a obra foi escrita para se contrapor aos evangelhos. Se não
foi, o fato é que havia hostilidade de autores pagãos contra o cristianismo, a exem-
plo de Porfírio e Hiérocles, que tentaram contrapor Apolônio a Jesus. Quanto a
Jesus, basta ler os evangelhos para descobrir quem Ele era e o que Ele fez. Os relatos
dos milagres de Jesus, escritos por testemunhas confiáveis, poucos anos depois de
acontecidos, têm uma superioridade incontestável sobre os relatos dos "milagres"
de Apolônio, escritos mais de cem anos depois da morte do taumaturgo, a partir
de tradições e com muita liberdade por parte de Filóstrato.
• Paralelo/contraste 3. Os Sinóticos relatam a cura de um paralítico em Cafar-
naum. A narrativa de Mateus, a mais curta, diz assim:

E eis que Lhe trouxeram um paralítico deitado num leito. Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao
paralítico: Tem bom ânimo, filho; estão perdoados os teus pecados. Mas alguns escribas
diziam consigo: Este blasfema. Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Por
que cogitais o mal nos vossos corações? Pois qual é mais fácil, dizer: Estão perdoados os
teus pecados, ou dizer Levanta-te, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem
tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados --- disse então ao paralítico: Levanta-te,
toma o teu leito e vai para tua casa. E levantando-se, partiu para sua casaLIy1=,-,.
. . . .

Um dos vários textos das inscrições do Epidatiro também relata uma cura de
paralisia:

Herinódico de Larnpsaco, paralítico do corpo, foi curado por Asclépio enquanto dormia
no recinto sagrado. O deus lhe ordenou que, assim que saísse, tomasse a maior pedra
que pudesse carregar e a terówiesse para o santuário. Então ele trouxe esta que agora
está defronte do santuário

Os pontos de contato entre esses dois relatos são pequenos. Pode-se dizer, ba-
sicamente, que ambos os doentes têm em comum o fato de serem paralíticos, terem
sido curados e, em seguida, fazerem alguma coisa para comprovar a mudança em sua
condição: o paralítico do evangelho toma a sua cama e sai carregando-a; o paralítico do
Epidauro leva uma grande pedra para o santuário. As diferenças são mais profundas.
No relato do evangelho, faz-se menção à fé do paralítico; na inscrição do Epidauro,
a fé não é mencionada. Um doente foi curado enquanto estava acordado; o outro,
Relatos de Cura ' 103

enquanto dormia. Jesus reivindica a Sua divindade, ao perdoar os pecados do paralítico,


e censura os pensamentos críticos dos fariseus; Asclépio não perdoa nenhum pecado.
A ordem de Jesus para o ex-paralítico pegar a sua esteira e ir para casa é natural; já a
ordem de Asclépio para Hermódico levar uma grande pedra para a entrada do seu
santuário soa como folclore para justificar a existência da pedra naquele lugar.
As diferenças entre os milagres de Jesus e os de Asclépio ficam mais evidentes
quando se conhece quem era Asclépio e como funcionavam as curas no Epidauro.
Surgido num contexto de superstição, magia e lendas na antiguidade pré-cristã,
Asclépio era filho de Apoio e Corônis ("a mulher corvo"). Considerado ao mesmo
tempo divino e humano, o jovem deus foi criado pelo centauro Quíron, que lhe
ensinou a arte da cura. Sua fama se espalhou por toda a região do Mediterrâneo,
chegando a Roma em 296 a.C. para erradicar um peste. Lá recebeu o nome latino
de Aesculapius. Centenas de santuários lhe foram dedicados, como os de Cós,
Corinto, Atenas, Pérgamo e, claro, o Epidauro, que se tornou o centro de culto
mais importante. O templo do Epidauro, chamado de "a Lourdes da antiguidade
grego-romana", foi projetado no quarto século a.0 pelo arquiteto Teodoro; já a está-
tua de Asclépio no trono, com o bastão, a serpente e o cachorro, deve-se a Trasimedes
de Paros. Vingativo, Asclépio punia com doenças quem zombava dele ou deixava de
pagar seus votos. Por isso, talvez, as paredes do templo, escavado em 1881, contivessem
tantas inscrições em tabuinhas de barro com descrição de doenças curadas.
Os rituais de cura no Epidauro (e nos outros centros) eram altamente elabo-
rados para estimular a psiquê dos doentes. Havia todo um processo de "incubação",
acom banhado de remédios • rirnitivos atua ão de sacerdotes e su:estão hi e nótica. Will
Oursler, após observar que os templos de Asclépio foram uma espécie de precursores
dos atuais hospitais públicos, assim descreve seu ritual:

O paciente que ia a Epidauro, contudo, passava por um extraordinário procedimento de


"iniciação". Primeiro, ele recebia um resumo da história de pessoas que haviam sido curadas
de doenças parecidas com a dele. Depois, era conduzido numa excursão pelo templo -- as
curas milagrosas que haviam ocorrido num canto ou que estavam descritas nas tabuinhas
da parede eram lidas e explicadas, tudo numa aura silenciosa de mistério e santidade.
Quando a noite se espalhava pelos céus da Grécia, o paciente era vestido em trajes
brancos e limpos e posto num sofá no templo. O sacerdote lhe informava que o deus
viria enquanto ele estivesse dormindo e o curaria. Ao cair das trevas, os sacerdotes
apagavam as luzes. Na quietude da noite, nesse templo situado no meio dós montes
* helênicos, o sacerdote oferecia suas preces. De manhã, quando a luz do sol se derramava
pelas colunas do templo, o sacerdote soltava cobras amarelas inofensivas que desliza-
vam sobre o paciente; acreditava-se que o espírito do deus estava vivo newas cobras.
Os sacerdotes também conversavam com o paciente, e prescreviam remédios e ervas.
Em muitas situações, particularmente no caso dos cegos, os pacientes eram ungidos
com ungüentos sagrados.
104 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Os tegistros nada nos dizem a respeito da porcentagem de fracassos, da permanência


das curas ou do efeito psicológico sobre os que não alcançavam a cura nesses templos,
No entanto, dizia-se que aqueles que eram curados riam invadidos por uma alegria
religiosa e deixavam oferendas para AsclepioAfreqüentemente sob a forma de presentes
em dinheiro para a manutenção do templo4:_n

Não é preciso ser um erudito para perceber os profundos contrastes entre esse
ritual sugestionável e as curas simples e objetivas de Jesus. Asclépio não era conside-
rado apenas o grande deus da cura no panteão greco-romano do tempo de Jesus, mas
seus seguidores o cultuavam também como benfeitor, guia, libertador e salvador. Foi
pieciso um latros (Médico) e Soter (Salvador) real e maior do que ele para desbancá-lo
e suplantar a sua influência.

A UNICIDADE DE JESUS E SEUS MILAGRES

De forma didática, Alfons Weiser tenta mostrar que os relatos de milagres dos
evangelhos seguem o esquema formal das narrativas lielenísticas de milagres de cuia,
numa estrutura tripartida: „( .1j descrição da natureza da enfermidade, 21 intervenção
curativa e .2.1constatação dos efeitosda cura. No caso de expulsão de demônios, havei ia
seis "elementos estruturais típicos": (1) indicação do quadro mórbido; .(2) tentativa
de defesa por parte do demônio; Di pergunta pelo nome e indicação do nome; tal
ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saísse do possesso; L5) saída acompa-
nhada de demonstração; 2 mação dos espectadores0Mas essa suposta hermenêutica
"científica" é altamente influenciada pelo liberalismo alemão.
Uma das críticas ao estudo das formas narrativas é o fato de que todo relato
de milagre necessariamente tem que ter uma estrutura. E a ordem natural em um
relato desse tipo é descrever o doente, a ação do operador de milagres e o resultado.
Ou seja, o que poderia parecer uma dependência ou cópia de um estilo helenístico
ou rabínico de narrar milagres nada mais é do que um padrão lógico de narra-
ção: introdução do fato, desenrolar, desfecho. Vemos um fenômeno similar no
jornalismo moderno, em que praticamente todos os jornais seguem a fórmula da
"pirâmide invertida": primeiro, o lead (as informações mais importantes); depois,
o corpo da notícia; e, no fim, as informações menos relevantes (podendo até mesmo
sei eliminadas). As seis perguntas básicas que toda notícia deve responder são: o que,
quem, quando, onde, como e por que. Nos relatos de cura, as informações básicas
são sobre o que estava acontecendo com o doente, o que o taumaturgo fez por ele
e com que resultado. Elementar.
Um estudo das histórias miraculares dos evangelhos sob o ponto de vista
da crítica da forma, comparando com outras histórias similares da literatura ou
do folclore antigo, pode ser interessante, mas não dá a palavra definitiva sobre
Relatos de Cura 105
os milagres de Cristo nos evangelhos. Devemos buscar entender a dinâmica e o
significado dos milagres de Cristo.
A crítica do establishment judeu da época não dizia respeito à ocorrência dos
milagres, mas sim à sua procedência. Ou seja, a questão não girava em torno do fato,
mas da sua interpretação. Eles não negavam que Cristo expulsava demônios, mas ar-
gumentavam que o fazia pelo poder de Belzebu (Mt 13:24). O contra-argumento de
Jesus foi também na linha da interpretação: seria um contra-senso Satanás combater a
si mesmo (13:25 e 26). A frase "Se, porém, Eu expulso os demônios pelo Espírito de
Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós" (v. 28) explicita a significação
que Jesus dava de Si mesmo e de Seus milagres.
Não podemos isolar os milagres evangélicos do mistério de Cristo. Tentar decompor
os milagres em peças isoladas é destruir o mistério de Cristo, assim como dissecar um
organismo em milhares de partes nunca explicará o mistério da vida. Os milagres de Jesus
refletem a totalidade de Sua pessoa e de Sua obra e, portanto, não devem ser tomados
como atos fra•rnentários. O • rande mila• re é o próprio Cristo. Se os milagres (a,judam
, a
inter retar o evento Cristo o ró trio evento Cristo uue ex•lica os nina. res.(2"
Naturalmente, a pesquisa histórica tem valor, ao fornecer dados confiáveis para
a Mterpretação. Por mais esplêndida que seja uma teoria, se não estiver apoiada em
fatos, no fim não terá sustentação. Felizmente, para os cristãos, os milagres dos evan-
gelhos resistem à pesquisa e dão margem a uma bela interpretação. Historicidade e
interpretação, portanto, se complementam.
Uma área de pesquisa relativamente nova que tem trazido significativas contri-
buições para a compreensão dos milagres nos tempos antigos é a antropologia médica.
Mas, ao mesmo tempo em que lança luz sobre certos aspectos culturais, essa nova
perspectiva pode levantar questiediarnentos sobre a verdadeira dimensão dos milagres
de Jesus. Por isso, é apropriado fazer uma referência ao tópico neste contexto, embora
de forma resumida.
Arthur Kleintnan, médico antropologista, é um dos nomes mais importantes desse
campo de estudo. Kleinman, entre outros estudiosos da antropologia, faz uma diferen-
ciação entre os termos, em inglês, disease e illness os quais não têm correspondentes

com as mesmas nuances em português, mas poderiam ser traduzidos, respectivamente,


como "doença" e "estado doentio". Segundo ele, "disease refere-se a um distúrbio dos
processos biológicos e/ou psicológicos, enquanto o termo illness se refere à experiência
, psicológica e ao significado percebido da doença<i ) Ott seja, o primeiro termo tem a
ver com a parte orgânica, ao passo que o segundo envolve aspectos psicológicos/cul-
turais/espirituais. Antropologicamente, na verdade, ambos os termos (diseizse e i//ness),
são conceitos explicativos/descritivos do mal, enquanto outro termo mais amplo,
sickness ("doença"), é usado para indicar o problema em si, a doença real. Disease só
— ------ -
problema em seu contexto cultural,interferindo em seus relacionamentos.
106 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Essas duas palavras descrevem o problema. Mas, e quanto à terapia? Para indicar
a recuperação da saúde, os antropólogos trabalham com os vocábulos curing (que faz
par com disease)sthealit_t,gÁque faz par com iliness). Enquanto curing (cura) significa
uma resposta para um problema orgânico, heafing (restauração/cura) é uma solução
para a ausência de bem-estar.
Pois bem, a crítica dos antropólogos é que a medicina ocidental moderna, com a
sua sofisticada aparelhagem, costuma focalizar apenas o lado biopatológico/orgânico.
Seu objetivo é levar o corpo a desempenhar bem as suas funções. Ela oferece curing,
mas nem sempre healing. Já a medicina do antigo Oriente Médio focalizava mais o
significado da doença. Seu objetivo era levar a pessoa a um estado de bem-estar. Ela
oferecia healing, embora não fosse tão boa em curing. Em síntese, se a medicina de

hoje busca as causas, a medicina antiga tratava os sintomas.
A abordagem da medicina antiga era mais global/holística;envolvendo aspectos
culturais/espirituais, porque a sua cosmovisão era diferente. Não é por acaso que, en-
quanto a saúde/integridade humana é um tópico importante no Antigo Testamento,
com referências a cerca de 80 partes do corpo, o corpo físico como um todo não tem
uma palavra específica e clara para defini-lo (a palavra mais próxima da nossa concepção
de corpo é gevviyah, que ocorre 13 vezes). Analisando a cosmovisão antiga, John Pilch
explica que, em geral, a idéia de saúde no Novo Testamento enfatiza:
1. Ser e/ou tornar-se (isto é, estados), e não fazer (atividades).
2. Relacionamentos colaterais e lineares, e não o individualismo.
3. Foco no presente e no passado, e não no futuro.
4. O fator incontrolável da natureza, e não a sua manipulação ou domínio.
5. A natureza humana como boa e má, e não neutra ou rnodificáve0 )
No Ocidente, especialmente nos Estados Unidos, diz Pilch, a ênfase está em:
(1) fazer ou conseguir; (2) individualismo; (3) futuro; (4) domínio sobre a natureza;
(5) uma visão da natureza humana como neutra ou boa.
Esses insights são realmente importantes, mas aí vem o perigo, teologicamente
falando. Ao situar as curas de Jesus - no contexto de uma medicina mais preocupada
com os sintomas e o bem-estar, os antropólogos acabam por negar a real dimensão
do milagre. Pilch, por exemplo, insinua que, de uma perspectiva histórica e científica,
Jesus nunca curou ninguém. Seus milagres poderiam ser classificados como healing
(restauração), mas não como curing (cura)OEm matéria de milagres, Jesus seria nada

em seu ambiente adverso, levando Deus até elas.


Os evangelhos, porém, não dão essa opção. Os milagres neles registrados combi-
nam curas orgânicas e existenciais. Jesus fez mai do que restaurar o bem-estar de muitos
doentes, reintegrando-os ao seu ambiente; Ele ressuscitou mortos, reintegrando-os
ao mundo dos vivos. Não dá para manter Jesus como Salvador e descartar Seu poder
Reloto;de Curo 107

• para operar milagres reais. Ou rejeitamos ou aceitamos o pacote completo: pessoa e


obras, Jesus e Seus milagres. Se Jesus era quem Ele dizia ser, não há por que negar o
que fez; e se fez o que reivindicou ter feito (incluindo os milagres, a ressurreição e a
redenção), não há por que negar quem Ele era e é.
• Os defensores da abordagem antropológica (que, repita-se, é útil e esclarecedora)
pretendem ler os milagres de Jesus pela lente de alguém daquela época (perspectiva
interna), e não pela lente de uma pessoa do século 21 (perspectiva externa). Mas, ao
negarem às curas de Jesus o status de reais milagres com base no conhecimento cien-
tífico de hoje, eles na verdade estão deixando de lado a lente antiga e usando a lente
moderna voltada para o passado. Parece um contra-senso. Em :suma, os antropólogos
podem estar crtos no que afirmam e errados no que negam,
Passemos agora para as reivindicações na área da cura pelos movimentos neo-
pentecostais ou carismáticos, nas tradições protestante e católica..

A EXPERIÊNCIA CARISMÁTICA
O século 20 viu uma explosão fenomenal dos movimentos pentecostais/carisma-
ticos . Em 2000, o número de pentecostais/carismáticos no mundo foi estimado em
523 milhões (ou 27,7% do cristianismo organizado), com previsão de totalizar 811
milhões no ano 2025. Desses, 63 milhões seriam pentecostais clássicos, 175 milhões
seriam carismáticos e 295 milhões seriam neocarismáticos. - As aiferenças teológicas
entre essas vertentes não são muito significativas. No Brasil, entre 1991 e 2000, eles
cresceram a uma média de 8,3% ao ano, totalizando agora (2005) talvez uns 25 mi-
lhões (em 2000, o censo do IBGE indicou 17,9 milhões). Eles são o fator principal
da diversificação religiosa atual no país.
Uma das características desse segmento cristão é a ênfase na cura divina. Aqui não
tenho espaço para relatar casos de curas registrados na literatura pentecostal/carismática,
mas qualquer pessoa familiarizada com o assunto conhece suas reivindicações nessa
área. A questão que desejo enfocar é dupla: (1) se podemos dar credibilidade a esses

Começando com a credibilidade, embora muitos defendam a ocorrência de mi-


lagres no meio pentecostal/carismático, bom número & pesquisadores mantém uma
postura de ceticismo total. O teólogo norte-americano John MacArthur é um dos mais
ácidos críticos do carismatismo. Segundo ele, o ministério de cura de Jesus e dos apóstolos
tinha seis características que o dos carismáticos não possui. Jesus e os apóstolos: (1) cura-
vam com uma palavra ou toque; (2) furavam instantaneamente; (3) curavam totalmente;
(4) curavam todo mundo; (5) curavam doenças orgânicas; e (6) ressuscitavam mortos.
Além disso, segundo MacArthur:ps indivíduos que possuíam dons os operavam na base,
da volição, tendo controle sobre crés. Os carismáticos, diz o teólogo, deixam os doentes
retornarem decepcionados para suas casas em suas cadeiras de rodas, não preenchem os
108 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

requisitos e sabem que não têm o verdadeiro dom de cura bíblico.° O argumento de
MacArthur parece essencialmente correto, mas, como registro, vale lembrar que em
pelo menos um caso os discípulos foram incapazes de curar (Mt 17:19), e Jesus fez
duas curas em etapas, progressivamente (Mc 8:23-25; To 9:1-7).
Tohn Stott prefere uma posição mais cautelosa em relação às reivindicações
modernas de milagres. Na opinião desse respeitado teólogo e pregador anglicano, a
nossa atitude diante dos milagres não "deve ser nem uma incredulidade obtusa ('não
acontecem mais milagres'), nem uma credibilidade impensada (é claro! Milagres estão
acontecendo o tempo todo'), mas uma atitude de mente aberta, de averiguação"C)
Num estudo sobre fenômenos pentecostais, na década de 1970,0 jornalista adven-
tista.Roland Heq,alconcluiu que "muito poucas curas [divinas] têm sido documentadas
por competentes autoridades médicas. Isso não quer dizer que elas sejam falsas; apenas
que não são documentadas"DA opinião de William Nolen é mais radical. Médico
de Minnesota, Nolen resolveu rastrear alguns alegados casos de cura divina. Depois
de passar um ano e meio nessa missão, revelou vários casos de fraude e constatou que
os curadores não apiesentavarn nenhuma solução para as doenças orgânicasC Outro
caçador de fraudes famoso é o mágico James Randi, que colocou na internet uma
proposta milionária para quem conseguir provar seus6oderes psíquicos ou sobrena-
turais. Ele tem desmascarado muitos casos de fraude"
Há algumas diferenças básicas entre os milagres bíblicos e os supostos mila-
gres modernos. Os milagres bíblicos eram serenos (embora envolvendo emoção),
instantâneos (em Marcos, a instantaneidade da cura é ressaltada pela palavra grega
euthios, na mesma hora", "imediatamente"), indiscutíveis : os milagres de hoje, ainda
ni
. , •
IN/Nrah r1 ,1
[man ta na., 10... tn rn ene c n e'u'nnnrn Arr n n

nairientos. :Às vezes; os operadores de milagres parecem especialistas em criar "clima


emocional", para ver se;daagitação, sai alguma cura. Em muitos casos, há picaretagem
pura e simples, visando à exploração das pessoas, no grande mercado da fé.

é muito vulnerável. Qualquer formulação teológica na área da cura divina, assim


como nas outras áreas, precisa levar em consideração todos os dados. Uma leitura
superficial dos relatos bíblicos sobre milagres certainente tem causado distorções
no meio pentecostal/carismático. ---
Num ambiente em que se enfatiza a cura divina, há três perigos: (1) o sobre-
naturalismo exacerbado, (2) a expectativa excessiva de cura, e (3) a privatização do
' milagre. Para evitar desequilíbrios, os milagres de cura devem ser encarados sob
uma perspectiva dinâmica. Precisamos ter uma "providenciologia" (neologismo
para expressar o estudo ou a expectativa sobre a providência divina) madura, uma
soteriologia coerente e uma pneumatologia integrada.
A atitude de uma pessoa em relação à cura divina pode variar do ceticismo total
ao credulismo ingenuo. Em ambos os extremos do espectro, ha uma deformação
Relatos de Curo 109

da atividade miraculosa de Deus. Porque o cético cristão (por opção filosófica ou
doutrinária) tem, na prática, uma visão quase deísta da atuação divina, enquanto o
crédulo ingênuo tende a ver o sobrenatural em cada acontecimento, numa perspectiva
mística (e às vezes mágica) da natureza. Se no passado o ceticismo já foi mais peri-
goso, atualmente, com o crescimento do carisrnatismo e a divulgação do misticismo
oriental rio Ocidente, parece que a crença Sem critério representa maior risco. O
grau de ambigüidade cresceu geometricamente, exigindo muito discernimento.
Os credulistas acríticos têm a tendência de confundir spossibilidade com
probabilidade, num comportamento tipicamente infantil. John Berecz, professor
de psicologia nos Estados Unidos, discute essa questão a partir de uma conversa
imaginária entre urna criança e seu pai:

um leão pode escapar do zoológico?" r


"Sim, mas não é muito comum."
"Se um leão fugir, ele poderia caminhar tão longe quanto a nossa casa?"
"Sim, mas isso provavelmente nuricà acontecerá. '
"Mas na escola nosso professor disse que havia uma história sobre um leão na rodo-e
via.
"Eu sei, mas isso não acontece com frequência."
"Um leão pode comer Taffy (pequeno Cocker Spaniel) se ele aparecer no quintal?"
"Eu suponho que sim, mas um leão não está vindo para entrar no quintal." •
"Mas você disse que um leão

Segundo o psicólogo, "no mundo da criança, tudo é possível". já os adultos equili-


. „bram,"sua visão dos acontecimentos com projeções de probabilidadeC. Na consideração
dos milagres, o problema com freqüência aparece porque os "cristãos, como crianças,
algumas vezes falam eloqüentemente sobre o poder sem limites de Deus — sobre as
possibilidades-- mas parecem se esquecer das probabiliclades"C.)
Outra característica do "credulismo", na versão cristã, é dissociar a cura divina
da cura por métodos naturais ou convencionais. A primeira, feita no templo, resul-
tado da fé, tem valor; a segunda, oficializada no hospital, resultado da ciência, não
tem valor. Essa visão é imatura e perigosa, pois leva a um "sobrenaturalismo" e ao
despiezo do bom senso
Ora, se Deus é o autor da natureza, então Ele trabalha em, harmonia com ela É
certo que a natureza foi corrompida pelo pecado e ainda, geme e suporta angústias (Rm
8:19-22), mas continua sob a influência de Deus. Ele pode empregar meios naturais
para curar, do mesmo modo que pode usar Seu poder miraculoso. Ou pode combinar
elementos naturais, medicina convencional e milagre. Quando o rei Ezequias "adoeceu
duma doença mortal", Isaías levou-lhe a mensagem de que morreria (Is 38:1). O rei orou,
e Deus resolveu curá-lo. Isaías voltou ao palácio, por ordem de Deus, e lhe prometeu mais
15 anos. Um sinal foi providenciado para confirmar a promessa Apesar disso, o profeta
110 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

aconselhou: "Tome-se uma pasta de figo, e ponha-se como emplasto sobre a úlcera; e ele
recuperará a saúde" (v. 21). Conclusão: Deus não está traindo Seu poder, ou a fé de uma
pessoa, quando usa meios naturais para curar. O Eclesiástico endossa essa postura "Sê
deferente para com o médico, porquanto dele se tem necessidade, pois também ele foi
instituído por Deus" (30:1). O verso 4 completa "Deus faz sair da terra os medicamentos
e o homem inteligente não os despreza"
O equilíbrio, nessa questão, está numa visão integrada da atuação de Deus
no cosmos, que encara Deus como Autor e Senhor de todas as coisas, o único
curador de todas as enfermidades, um Deus pessoal que intervém, mas não dis-
pensa nem contraria a natureza
Em alguns meios carismáticos, é comum considerar a cura divina uma expe-
riência habitual nos tempos bíblicos e disponível hoje para todos os crentes com fé.
Isso decorre tanto de uma má compreensão do registro bíblico de milagres quanto de
uma má teologia da expiação.
nlip. '1 R %kl ; .1 ré ,B1l1 Prt en nr. ■ n/,. i rn ervisr; nn e nnantne rr rn rn ntnnne ris= nnne

de intervalo entre si. Em geral, ela focaliza os eventos importantes, desconsiderando


detalhes do dia-a-dia; sua preocupação é mais ética do que estética (descritiva). Isso pode
dar a impressão de que o povo daquela época era mais santo do que o atual, ou que o
profeta Elias, Jesus e os apóstolos viviam operando milagres. Mas, presumivelmente,

A má teologia da expiação ocorre, igualmente, por uma leitura seletiva dos dados
bíblicos. Mateus, citando Isaías 53:4, diz que Jesus «tomou as nossas enfermidades
e carregou com as nossas doenças" (8:17). Em I Pedro 2:24, lemos: "carregando Ele
mesmo em Seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos
pecados, vivamos para,a justiça; por Suas chagas fostes sarados". A partir dessas afirma-
ções, autores pentecostais têm dito que o crente possui o direito de exigir a cura divina
aqui e agora, porque curar já é sempre a vontade de Deus. Se ele fica doente, é porque
está em pecado, não tem fé ou tornou-se vítima de Satanás. As formas mais extremas
desse pensamento são vistas entre os defensores da chamada "confissão positiva".
De tão convencidos de que Deus deseja curar sempre, certos autores pentecostais
chegam a defender que a oração pelos doentes não deve incluir a frase "se for da Tua
vontade", justificando que a condicional "se" demonstra uma fé derrotista Mas o "se"
pode ser, ao invés de falta de fé, j rima expressão de plena submissão à vontade e aos pro-
pósitos de Deus. O próprio Jesus incluiu-o em Sua oração do Getsernani (Mt 26:39).
Ele não foge do ritmo do Pai; Sua agenda é a agenda do Pai, e por isso diz: "faça-se a
Tua vontade" (Mt 26:42). Das 23 vezes em que a palavra «vontade" aparece nos evan-
gelhos, 19 estão colocadas na boca de Jesus, em referência à vontade de Deus ou do Pai;
predomina um sentido "forte", geral, da vontade de Deus, mas há também o sentido de
submissão (pelo menos dez vezes) e adesão prazerosa aos desejos divinos.
Relatos de Cura 111

mas, a curto prazo, pode não ser. A ausência da cura nem sempre se deve à falta de fé.
Francis MacNutt enumera onze motivos pelos quais as pessoas não são curadas: (1) falta
de fé; (2) sofrimento redentor; (3) um falso valor atribuído ao sofrimento; (4) pecado; (5)
não orar especificamente; (6) diagnóstico falho; (7) recusa de encarar a medicina como
um meio pelo qual Deus cura; (8) não usar os meios naturais de preservar a saúde; (9)
ainda não está na hora; (10) é outra pessoa destinada a ser o instrumento da cura; (11) o
ambiente social impede que a cura ocorrapPaulo orou três vezes para Deus tirar o seu
"espinho na carne" e não foi atendido, porque era mais forte na fraqueza (2Co 12:7-10).
Vários textos indicam que o cristão, fatalmente, sofrerá por Cristo, o que pode incluir

Ora, a restauração do ser humano, em todos os seus aspectos, incluindo o físico,


só é possível pela expiação; e, obviamente, está prevista no plano da salvação. Isso
parece um consenso entre os cristãos. Mas, daí a dizer que todos os crentes podem ser
curados de todas as doenças agora, vai um grande passo.
Essa abordagem, além de desconsiderar que Deus é soberano tanto sobre a saúde
quanto sobre a doença„podendo utilizar a enfermidade para Seus propósito, confunde
conceitos e tempos. Paulo argumenta que a morte entrou no mundo pelo pecado de
Adão I, mas a vida veio pela justiça do Adão II (Rtn 5). Este conceito traz implícita a
idéia de que a solução de Deus para a morte (e, portanto, para a doença contida nela) é
global. Em um só ato, Deus resolveu o problema de todos. Ele pode curar ou ressuscitar
_g_
algumas a ora ara atenderç Set isiï mas o momento específico para
transformação geral do povo de Deus está no futurq. Dizer o contrário não enaltece
o ato salvífico de Cristo na cruz, que resolve o problema de uma vez por todas, mas
o rebaixa, pois prevê inúmeras soluções particulares e avulsas.
E por isso que a Bíblia apresenta uma solução única para o problema do pecado
e situa seu clímax (a erradicação do mal) no futuro. O autor de Hebreus (11:39 e 40)
tinha, talvez, esse fato em mente quando escreveu que os heróis da fé não deviarn ser
"aperfeiçoados" sem nós. E o Apocalipse menciona a "árvore da vida", cujas "folhas são
para a cura dos povos" (22:2), mas a situa na Nova Jerusalém. O acesso a essa árvore
será após a volta de Cristo, não antes.
O equilíbrio está em olhar para a missão salvífica de Cristo em sua totalidade,
enfocando tanto o que foi feito na cruz quanto o que será feito na parousia. Isso só é
possível quando Cristo, e não o ser humano, torna-se o foco. Um dos problemas do
movi Mento carismático é dar uma ênfase excessiva à experiência pessoal, sem levar
em considera ão a revela ao o G lano e as • nortaa. e - -
Em alguns casos, tem-se a impressão de que o Espírito Santo é "privatizado",
ficando a serviço dos crentes, e desvinculado do plano da redenção. Porém, será
que o trabalho do Espírito Santo pode ser manipulado ou controlado? Não. O
Espírito é soberano e age em perfeita consonância com o Pai e o Filho.
112 i0 EASCINIO DOS M/LAGRES

CURAS DA .R CC .
Um dos fenômenos mais relevantes do atual catôlicisrno, o qual mantém um es-
treito vínculo com a questão da cura divina, é o movimento de Renovação Carismática
Católica (RCC). A RCC tem um parentesco com o pentecostalismo protestante e, de
algum modo, verificar a experiência de um é ter um vislumbre da experiência do outro.
Esse movimento tem um grande significado e potencial, por ter sido talvez o primeiro
movimento de origem protestante na História a achar acolhida na Igreja Católica.
Além de facilitar o ecumenismo, a RCC participou da mudança de mentalidade no
catolicismo em relação à Bíblia. Como surgiu o movimento e qual é o seu perfil?
A RCC surgiu no embalo e no espírito do Concílio Vaticano II, com estudan-
tes universitários católicos dos Estados Unidos que desejavam uma nova experiência
espiritual. A formação de um grupo de oração em fevereiro de 1967 na Universidade
de Duquesne, Pittsburgh, marca o começo do movimento. Em seguida, o movimento
chegou ao campus da Universidade de Notre:Dame (a capital intelectual do catolicismo
nos Estados Unidos), em South „Bend, Indiana, e dela se espalhou. Na década de 1370,
os congressos anuais da RCC em Morre Dame passaram a reunir milhares de partici-
' pantes de Vários países, culminando com um público de 30 mil em 1976, quando foi
tornada a decisão de fazer conferências regionais. Hoje, a RCC tem forte presença em
mais de 100 países. Seu escritório internacional funciona em Roma. No Brasil, a RCC
chegou em 1971, através do padre jesuíta Eduardo Dougherty, e já conquistou mais de
8 milhões de fiéis, atraindo igualmente ricos e pobres. A RCC domina as cerca de 180
estações de rádio católicas no Brasil, e tem seus próprios estúdios de TV.
Os primeiros líderes da RCC, principalmente nos Estados Unidos, foram Kevin
Ranaghan, Ralph Martin, Steve Clark e Nancy Kellar. Nomes respeitados como os de
Francis Sullivan, professor na Universidade Gregoriana em Roma, Kilian McDonnell,
teólogo beneditino, e o cardeal Joseph Suenens, de Bruxelas, incentivaram o movi-
mento e deram-lhe suporte teológico. Para Suenens, o "que faz a diferença entre a
nossa fé e a dos primeiros cristãos" é "a medida do nosso acolhimento das riquezas
do Espírito". Se o resultado hoje não é fantástico,_isso se deve a uma decisão do
Espírito, mas ao fato de não haver abertura à Sua açãoom ele e outros teólogos,
o movimento ganhou a aceitação na cúpula católica. O papa João Paulo II incentivou
o fortalecimento da RCC.
A RCC, que tem pontos comuns e diferenças em relação ao pentecostalismo
protestante, possui virtudes e defeitos, na avaliação da liderança tradicional católica.
Segundo dom Antônio Miranda, na época bispo diocesano de Taubaté, SP, os bons
frutos da RCC são: (1) a consciência a respeito da Presença e ação do Espírito Santo na
Igreja e no coração de cada fiel; (2) o gosto pela oração no Espírito Santo; (3) o amor
pela Palavra de Deus escrita na Bíblia; (4) conversões de muitas pessoas; (5) uma nova
disponibilidade para o apostolado; e (6) vocações ao sacerdócio e à vida religiosa()
Ré/atos dê Cura . 1 13 •
Já os perigos, na forma de equívocos, exageros ou desvios, seriam: (1) a presunção
de alguns participantes que, inconscientemente, acham que já têm todo o conheci-
mento necessário e aprofundado da fé; (2) a concentração em determinados carismas,
em detrimento de outros; (3) uma interpretação "protestante" e fundarnentalista da
Bíblia, com desprezo pelo magistério católico; (4) aceitação de crentes pentecostais
e de pessoas de psiquismo, mórbido nos encontros carismáticos; (5) busca por parte
. ,Po mr4
de alguns de uma experiência exag eraâa de Deus e de Seus dons, gerando angústia e
desespero quando não conseguem os carismas que almejam.
Dom Miranda frisa, ainda, que o Espírito Santo opera dentro do ser humano
real, ou seja, no seu psiquismo, sempre sujeito a desvios de discernimento, passando
do razoável para o doentio. O razoável é a alegria no Espírito, a união dos irmãos, o
serviço de amor; o doentio é a algaravia do "falar em línguas", as "curas" em massa,
tify("tfrAd(rdi, iOudt ,
OS exorcismos freq
üentes, as aparições e visões .
Essa postura de aceitação crítica é vista em muitos padres, que no início geral-
mente se mostram contrários à experiência carismática, mas depois a aceitam. Isso
se deve, provavelmente, à sua visão teológica dos carismas. Se para os pentecostais
os dons do Espírito são sobretudo o maravilhoso, para os católicos os carismas são
essencialmente o dom interior do Espírito. Um olha para fora, a expressão física e o
testemunho ao microfone; o outro olha para dentro, a meditação mental e o serviço
silencioso. Provavelmente isso tenha levado os carismáticos católicos a enfatizarem
menos a glossolalia do que os carismáticos pentecostais. O desafio para a Igreja Ca-
tólica é fazer uma síntese entre o seu racionalismo (intercalado por ondas místicas) e
a experiência carisrnatica.
. Mas, aparentemente, a RCC está aprendendo rápido com os pentecostais e
carismáticos protestantes a conviver com o espetacular, a modernidade e a mídia.
Basta ver o exemplo do padre Marcelo Rossi, a maior estrela do movimento no Brasil.
Alto, porte atlético, comunicativo e simpático, padre Marcelo Rossi rapidamente se
transformou num astro popular. Virou capa de revistas seculares e passou a freqüentar
programas de TV, sempre elevando o ibope, o que revela o interesse do público pela
abordagem carismática.
Como era de se esperar, milagres rapidamente foram associados ao trabalho de
padre Marcelo. Mas, não sendo essa a principal faceta de seu sacerdócio, vamos buscar
nossas curas em outra figura carismática especializada no assunto: padre Emiliano
Tardif (1928-1999). Canadense de nascimento, Tardif tornou-se missionário do
Sagrado Coração na República Dominicana. Mas teve atuação marcante em dezenas
de congressos e concílios em todas as partes do mundo. Com seu carisma peculiar,
reunia até 40 ou 50 mil pessoas num estádio. Tal sucesso se baseou, em grande parte,
no ministério da cura.
A própria entrada de Tardif para a RCC se deve ao fato de ter sido curado mila-
grosamente de uma tuberculose pulmonar aguda, em 1973. Segundo ele, a descoberta
114 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

de seu dom de cura se deu em 18 de novembro do mesmo ano, quando "um enfermo
que sofria de artrite e artrose" pediu-lhe para orar por ele e, ao término da oração,
"começou a andar, abandonando sua bengala". Mas antes disso Tardif já orava por
enfermos em grupos de oração, e posteriormente constatou "como, com frequência,
Jesus curava sempre maior número de enfermos"P
Uma síntese do pensamento e da prática do padre canadense pode ser assim
construída:
• Jesus é o único Messias, o Salvador; Ele está vivo e continua manifestando Seu
poder hoje como há 2000 anos.
2. • As curas de Jesus sempre têm um significado mais profundo. Ele abre os olhos
aos cegos como sinal de que pode iluminar nossa vida e nos tirar da escuridão do
erro e da mentira; levanta os paralíticos como sinal dos tempos messiânicos; abre os
ouvidos dos surdos como sinal de que tojos os obstáculos à comunicação que tinha
sido cortada pelo pecado foram removidos.
3 • Jesus cura a pessoa toda. Cura o corpo, eliminando doenças, mas também o
interior, dando um coração novo,
9 • Tarclif faz uma diferenciação entre "milagre" (que a ciência médica não poderia
realizar) e "cura" (aceleração do processo de cura).
5 • Quando ia ocorrer uma cura como resultado de suas orações, o padre Tardif
recebia uma "palavra de conhecimento", ou seja, ele tinha uma certeza interior de
que alguém estava sendo curado e de que tipo de doença. Se a palavra que chegava à
mente era comunicada, apareciam "detalhes adicionais".
6 • No momento da cura, quase invariavelmente, a pessoa sente um intenso calor
na parte do corpo afetada pela doença, como se fosse uma corrente elétrica.
• Tardif dizia que não tinha propriamente um método de trabalho, mas sempre
anunciava primeiro a Jesus e animava a fé; em seguida, orava "pela cura do pecado
mediante a conversão" e depois fazia."oração pelas doenças físicas".
5 • Para Tardif, a Igreja Católica não aceita plenamente os carismas, com carta de
cidadania, porque: (1) catequiza muito e evangeliza pouco; (2) tem a tendência de
usar somente os recursos humanos e contar unicamente com os meios naturais para
realizar a obra de Deus; (3) talvez esteja reagindo aos exageros que, às vezes, acontecem;
(4) não sabe bem como usar um dom que "estava empoeirado".
3 • O dom de cura não deve ser usado isoladamente, mas no contexto da procla-
mação da Palavra e do batismo, como uma Corrente de três elos: Palavra—Cura—Sacra-
mento. "Curar sem anunciar a Boa Nova da salvação é curandeirisrno."
10 • Quanto mais se usa o dom de curar, mais ele se desenvolve. O principal obs-
táculo para receber carismas é o medo de perder a reputação.
• A cura é obra exclusiva de Deus que passa por instrumentos humanos. É um
dom gratuito, e não sinal de santidade.
{2. • Em Sua sabedoria, Deus só cura alguns, mas oferece a cura definitiva a to-
Relatos de Cura 115
dos: a vida eterna, livre de doenças elágrimas. Os casos que ocorrem são sinais para
acompanhar a evangelização.
13 • "Todos os carismas [ou dons] são para servir e, portanto, são manifesta-
ções do maior carisma: o amor." O dom de cura "é para os outros, não para nós
mesmos". O operador de milagres não pode impor as mãos sobre sua própria
cabeça e curar a si mesmo. -
m • É tempo de uma nova evangelização: nova em seu ardor, evidenciando paixão
por Jesus; nova em seu método, conjugando querigma (anúncio da pessoa de Jesus)
e catequese (transmissão do depósito da fé); nova em sua expressão, unindo anúncio
da Palavra e milagres (cura de enfermos). A nova evangelização deve ser integral: todo
o evangelho para a pessoa toda e todas as pessoas.
Pa4re Tardif relatou muitos casos de cura. A primeira cura de um cego de
•nascença que ele presenciou ocorreu ao término de uma jornada de evangelização
em Mbandaka, Zaire. Na Eucaristia de encerramento, no meio de um auditório de
15 mil pessoas, uma menina de oito anos, cega de nascença, começou a gritar: Je
vais, je vais ("Eu estou vendo, eu estou vendo"). As pessoas a rodearam. A menina,
então, perguntou quem era sua mãe. Ao ser abraçada pela mãe, exclamou: "Oh,
mamãe, como és bonita".
Um caso interessante é o de Giovanna Monzo, que tinha uma doença nos
ossos (osteoporose) desde o nascimento. Os médicos previam que, ao chegar à
idade de desenvolvimento, morreria ou ficaria paralítica. Depois de passar vários
anos vegetando na cama e de enfrentar uma série de cirurgias, ela estava cansada e
desesperada. No verão de 1985, bolou um plano "infalível" para se matar, jogando-
se de uma balaustrada. Mas, exatamente quando estava para executar o plano, sua
avó a chamou porque duas jovens desejavam conhecê-la. As moças a trataram com
muito amor. Falaram-lhe de Jesus. Giovanna sentiu um grande calor em seu cor-
po, sem explicação. Mas a revolta continuava. Na mesma tarde, suas novas amigas
voltaram, com outras 20 pessoas. Oraram. Fizeram amizade. Devagar, Giovanna
encontrou a cura interior.
Algum tempo depois, padre Tardif visitou seu país, a Itália. Os amigos de..Gio i
-

vanna insistiam que sua cadeira de rodas, finalmente, ficaria vazia. Giovanna oferecia
seu sofrimento pelo êxito do retiro. No segundo dia do retiro, Giovanna sentiu um
, forte calor nas pernas. Padre Tardif anunciou uma grande cura, acrescentando que
o Senhor estava curando um paralítico. Mas, !apesar do clima emocional, não se
atrevia a dar o passo da fé. O padre perguntou se ela sentia um profundo calor no
corpo, e ordenou que, em nome de Jesus, se levantasse e andasse. Pela primeira vez
em sua vida, ela deu alguns passos, sem a ajuda de ninguém, em direção ao altar.
"Meus amigos choravam, outros riam, todos se abraçavam, outros me beijavam",
conta Giovanna. "Aquilo parecia um manicômio." Resultado: Giovanna deixou a
cadeira de rodas e passou a levar uma vida normal.
,
(12) O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Como avaliar esse tipo de relato? Em geral, Tardif procurava ser bíblico em
suas afirmações sobre cura espiritual. Aliás, ele confessou que "o esquema" de seu
livro Jesus Está Vivo "teve como protótipo o Evangelho de Maicos", embora não
fique evidente nenhuma identidade estrutural ou remática entre as duas obras, corri
exceção, talvez, da coleção de testemunhos de cura. De qualquer modo, ler Tardif
é como ler autores evangélicos.
Normalmente, de não enfatiza o poder dos santos ou de Maria, mas apenas o
poder de Jesus. Em Tesus Está Vivo, original de 1984„Tardif fala sobre a intercessão de
Maria, comparando-a ao manto de Jesus, tocado pela mulher hemorrágica para ficar
curada. Já em Jesus é o Messias, original de 1989, Maria quase desaparece, só surgindo
em testemunhos. O papel atribuído a Maria é, biblicamente, fruto de uma teologia
defeituosa quanto ao estado do ser humano na morte e ao papel mediadorJ./mico de
--,..
,Jesus . Vem da devoção e não da teologia. 4,
Isso não significa que a devoção mariana seja pequena na Renovação Caris-
mátka; ao contrário, ela é grande, especialmente na França e no Canadá. Maria é
vista, em tetmos populares, como a "primeira pentecostal" e um modelo de abertura
ao trabalho do Espírito Santo. ,
,Mseapelévislumbiaõrt)sentitic> de
interceder do que de curar.
Quanto aos milagres, alguns fenômenos descritos por Tardif, como o calor
sentido pelo operador de milagres e o doente durante a cura e a "palavra de conhe-
cimento" aplicada à cura, não têm paralelos nos relatos bíblicos. Jesus percebeu sair
"poder" dEle (Mc 5:30), na cura da mulher hemorrágica, mas não é a mesma coisa
que "palavra de conhecimento". No geral, porém, os relatos transmitem n confiabi-
'idade, indicando fé no poder ilimitado de Deus e abertura à atuação do Espírito
Santo. Às vezes transparece um certo entusiasmo ingênuo.
{ Após estudar a literatura carismática, eu diria que algumas curas podem ser
reais elas se situam dbeascicuatm
ased
n ete noenr ude
c aspoo rdg a sn dieoaesnoças p sicteossssnotteáit
m k cass 2; ,
H
shCá ocasos
cna octo m
como vemos na Bíblia.
, ,0 reconhecimento da possibilidade de estar ocorrendo alcumas curas no rno-
virnento carismático pode chocar alguns adventistas ou evangélicos. Contudo, é Mi
e ortante lembrar e ue os mila res não são •rovas de corre ao doutrinária De a tde
ouvir e curar2essoas que ainda não têni o pleno conhecimento da verdade. Deus usa
sessoas santificadas dentro de uma orsora ão falha. Se Ele usou ate .a. aos como
Nabucodonosor e Oro tara cum 'rir os Seus iro cósitos, não toderia usar cristãos
iludidos em suas crenças
Isso também não significa que todos os relatos de curas devam ser aceitos de
maneira acrítica. O movimento pentecostal/carismático é muito heterogêneo hoje.
Como o campo é fértil para fenômenos estranhos, há nele muito joio. Inúmeros casos
de supostas curas certamente são pura charlatanice. Devemos julgar as crenças, rnani-
Relatos de Curo 11 7

festações, expressões e reivindicações carismáticas individualmente pelo que elas são,


comparando com a Palavra, e não rotular todo o movimento como falso reavivarnento
ou mesmo contrafação diabólica.
O fato de a feriornenologia em alguns casos não corresponder totalmente aos

Í relatos bíblicos não significa que a cura não possa ser de origem divina. O Espírito '
\ Santo, como o vento, sopra onde quer e corno quer (Jo 3:8). Deus é livre e soberano
driAão9d6ivino,
em Sua ação, que, no entanto, sempriv e 4seomraonDtécm reiniztAe.,ADAentgrooFt:Ic
mocsoear o np:Ar
- o Espírito tem múltiplas manifestações. Porém, devemos avaliar os espíritos, como
diz a Bíblia. Voltarei ao assunto. ,,,-- _

NOTAS X
.. ' Tálmucle Babilônico, Beracot 34k
2 FiLostrato, Vida de Apolônio de Tiana, 1V:45; citado por FILISLIÇS Cousin,
Narração de Milagres
- cm Ambientes Judeu e Pagão, Documentos do' Mundo da Bíblia 8 (São Paula': Paulinas; 1993), 80-81.
'Citado por Alfons Weiser, O Que é Milagreina Bíblia, 2. ed. (São Paulo: I Paulinas, 1978), 62.
- 4 Will Oursler, O Poder Curativo da Fé (Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1997), 37-38.
Ver Wiser 40-47, 86-91
«Ver Christian Schtitz, «Os Mistérios da Vida Pública e da Obra de Jes 11S , em Mysterium Salutis,
111/5, ed. Johannes Feinéi: we Magnus Lõhrer (Petrópolis: Vozes, 1974); 95 - 121.
" Arthur ICleinman, Patients ana' Plealers in Me Context of Culture (13erkeley: University of

Ibid., 142.
Jolln F. MacArthur, Jr., ‘ The Charhmatics: A Doctrinal Perspective (Grand Rapids: Zonciervan,
1979), 143-149.
" Stott, Batismo e Plenitude, 72.
12Roland R. Llegstad, Ratling Me Gates (Washington, DC: Review and Herald, 1974), 188.
'd Ver Williarn A. Nolen, Healing: A Doctor in Search of a Miracle (Nova York: Random
House, 1974).
14 Ver <www.randi.org/research/index.htrnl >. Em relação aos curandeiros, confira Jalnes Randi,

The Faith Healers (Bitffalo, NY: Prometheus, 1989).


-15 John M. Berecz, «Uncle Arthur's God or Probability?", Spectrttui 25(1996): 10-15, aqui 12.
Francis MacNurr , É Jesus. Que Cura, 5' ed. (São Paulo: Loyola, 1976), 245-257.
17 Léon-Joseph Silencias, Movimento Carismático: Um Novo Pentecostes,
Cristianismo Aberto 16,
2 ed: (Lisboa: São Paulo, c. 1996), 114-115.
"Antônio Afonso de Miranda, O Que é Preciso Saber Sobre a Renovação Carismatica (Aparecida,
SP: Santuário, 1993), 14-16.

2" As informações aqui apresentadas se encontram em Emiliano Tardif e José H. Prado Flores,
Jesus Está Vivo (São Paulo: Loyola, 1996); e Erniliano Tardif e José H. Prado Flores,Jesus é o Messias, la
ed. (Rio de Janeiro: Edições Louva-a-Deus, 1991). "

,
8
„AVALIAS_

Ps milagres existem para a doutrina e não


doutrina para os milagres.
Blaíse Pascal . (1623-1662), fil6sofo francês ,

Se houve uma época em que as manifestações sobrenaturais eram desprezadas e


condenadas como fanatismo e fraude, esse tempo ficou no passado. Talvez a própria
mudança de mentalidade na sociedade secular — fenômeno observável nos muitos
, títulos de filmes envolvendo elementos místicos — tenha contribuído para isso. Hoje,
o "sobrenatural" está presente em vários movimentos religiosos. Em alguns casos, os
fenômenos em si são ambíguos. Assim, para avaliar a origem e a natureza da cura mi-
raculosa, é preciso buscar parâmetros e critérios objetivos na Bíblia Vamos começar
vendo alguns tipos de ministérios de cura.

MODELOS DE CURA
Ao longo da História, como têm atuado os operadores de milagres cristãos?
Qual é a sua ênfase? Ronald Kydd, num estudo que envolveu ampla pesquisa li-
terária e diversas viagens, propõe seis modelos de curas: (I) confrontacional; (2)
intercessório; (3) relicário; (4) incubacional; (5) revelacional; e (6) soteriológico.
Para cada modelo, ele seleciona representantes do passado ou do presente e procura
sistematizar sua ação.'
O modelo confrontacional, segundo KyddCeorresponde estreitamente ao quadro
bíblico do ministério de Cristo" e é baseado na visão de que Deus foi bern-sucedido -
em Sua missão na História, vencendo Satanás. Daí a ênfase sobre o confronto, "a
vitória e a liberdade através de Cristo". A cura divina é vista como "um aspecto da
implantação do reino de Deus"P
Os representantes desse modelo incluiriam Irineu, Tertuliano, Cipriano, Oríu-
nes e Lactâncio (num plano teórico) e Johann Christoph Blumhardt e John Wimber
(num plano teórico e prático).
Teologicamente culto e um dos "mentores" do famoso teólogo suíço Karl Barth, o
alemão Blumhardt (1805-1880) acreditava que o curso da História deveria incluir três
120 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

"épocas de revelação", nas quais Deus fala e age (através de milagres). A duas ptimeiras
foram iniciadas por Moisés e Jesus, respectivamente; o último período seria a fase em
que Deus estenderia Seu poder sobre o todo da criação. Blumhardt acreditava que Deus
trabalha em silêncio. Ele não procurava cura instantânea, nem hesitava em enviar os
doentes ao médico. A cura não era o ponto focal do seu ministério. Na verdade, ele só
passou a orar privadamente com pequenos grupos ou indivíduos, para revitalizá-los física,
emocional e espiritualmente, depois de Mudar-se para Bad Boll. Mas muitas curas eram
relatadas. Tudo acontecia num contexto de calma, porque "Jesus é vitorioso".
Wirnber (1934-1998), fundador das igrejas Vineyard, introduziu um curso sobre
sinais e maravilhas" no prestigioso .Euller Theological Seminaty e depois aplicou seus _
conceitos na prática. O esquema escatológico jinça..n
"'á./ a .1 não" foi central para o ministério
de cura de Wimber. A partir dessa compreensão do reino, Wimber passou a acreditar
que manifestações de cura anunciariam o advento do "ainda não". Os milagres seriam
uma maneira de demonstrar a superioridade do poder de Deus. Não é de surpreender,
portanto, que Wimber tenha escrito quatro livros sobre "poder".
No modelo inkrcessório, as pessoas buscam o socorro de Deus recorrendo à
intercessão dos "santos" O pensamento implícito é que essas pessoas, por sua suposta
. . . -
amizade especial com Deus, têm influência sobre Ele. E como se fossem lobisras no
Céu. Virtualmente desconhecida entre os protestantes, essa abordagem é característica
da Igreja Católica e da Ortodoxa. Tal visão 'se desenvolveu à margem do pensamento
oficial do cristianismo, nas camadas populares, que viam os apóstolos e os mártires
como heróis milagrosos, gigantes espirituais com méritos especiais, e acabou sendo
incorporada pelo esta blishment religioso,
Os exemplos escolhidos por Kydd para representar esse modelo são o Irmão
André (1845-1937), em torno de quem foi construído o Oratório de São José, em
Montreal Canadá . e a Virgem Maria de Medjugorje, na Bosnia-Herzegovina. Muitas
,
,

curas têm sido atribuídas aos dois intercessores, e ambos os lugares atraem milhões de
peregrinos e visitantes a cada ano.
Irmão André, que foi beatificado em maio de 1982 pelo papa João Paulo II, era
um fã apaixonado de São José, cuja medalha usava em suas curas. Seu nome real era
Alfred I3essette. Durante o processo de beatificação dê 'Irmão André, foram arrolados
135 testemunhos de curas, mas há centenas de outros relatos. O Oratório de São José
recebe anualmente mais de 2 milhões de peregrinos e visitantes. Quanto a Medjugorje,
inúmeros relatos de curas e resPostas a orações têm sido atribuídos à Virgem. Em 1991,
uma multidão estimada em 100 mil pessoas acorreu ao local para celebrar o décimo
aniversário das supostas aparições da Virgem.
O modelo 'relicário é aquele em que as pessoas acreditam que os milagres vêm através
de coisas pertencentes a pessoas especiais, os "santos". A relíquia pode ser uma parte dos
restos mortais do "santo", um objeto de uso pessoal (roupa, instrumento de penitência)
ou mesmo algo simbólico (sepultura). Estranho ao pensamento teológico protestante,
Avaltaçao da Cura 121

o culto das relíquias teve seu auge entre a sociedade européia da Idade Média. Porém,
no quarto século, teólogos como Santo Agostinho já estavam interessados na questão.
É difícil para a mentalidade atual compreender a importância que as relíquias possuíam
na época, já que essa devoção declinou grandemente laos últimos dois séculos,
Um dos exemplos de cura através de relíquias citados pelo autor são os supostos
milagres vindos da sepultura de Prançois de Paris (1690-1727), no cemitério de St.
Médard, em Paris, na primeira metade do século 18. François era um jovem clérigo
. . .
janserusta com relativa cultura e reputação de santidade. Quando morreu, a multidão
rodeou seu corpo, beijou seus pés e pegou seus cabelos, livros e roupas. Sua tumba, no
jardim-igreja de St Médard, se tornou o point dos janserástas convulsionnaries. Relata-se
que as pessoas se deitavam em cima ou sob a lápide da sepultura e, ao tocá-la, eram
sacudidas por violentas convulsões, sendo às vezes curadas. A sepultura já não existe,
mas na época ‘década de 1730) realmente causou agitação.
No quarto modelo proposto por Kydd, a abordaum incubaciona/, os doentes
são "intiernados" em centros específicos de cura, onde são cuidados com carinho e
, convencidos progressivamente de que Deus deseja curar Seu povo. Num ambiente
de tranqüilidade, pessoas oram por doentes, e curas têm sido relatadas. Os exemplos
escolhidos para ilustrar esta abordagem são o,Instituto Elitn, em Mãnnedorf, Suíça, e
Monja (Movia), um centro de apoio espiritual, emocional e físico, mantido pela Igreja
da Fraternidade Cristã (uma pequena denominação pentecostal), também na Suíça.
O Modelo revelacional é aquele no qual Deus mostra para o taumaturgo quem
precisa de cura ou está sendo curado. O taumaturgo recebe uma informação ou co-
nhecimento especial, que de outro modo não poderia obter, e atua de acordo com
' tal insight. Esta abordagem é representada pelos controvertidos americanos William
ranham (1909-1965), que acreditava ter sido comissionado a ser um agente de cura e
sobre cuja cabeça teria aparecido um halo de luz numa foto, e Kathryn Kuhlrnan (1907-
1976), que só realizava seu serviço de cura quando se sentia ungida e preparada.
Finalmente,,o modelo soteriológico assegura que as pessoas podem ser miraculo-
samente curadas pela obra expiatória de Cristo. A idéia de que, na cruz, Cristo proveu
a cura para as doenças dos cristãos no momento em que eles precisarem, ou seja, aqui
e agora, está enraizada na tradição pentecostal. Oral Roberts (1918-), o bem-sucedido
empresário e evangelista americano, é citado como representante característico.
Após trabalhar com o seu material, Kydd chegou a algumas conclusões, que ele
expõeri a introdução do livro :
t A restauração da saúde através da intervenção direta de Deus tem Gontinuado
através da história da igreja.
Q .\ Os casos de curas apresentados pelos taumaturgos e seus apoiadores são su-
perestirnados. Em geral, há muito entusiasmo popular e poucos números exatos. Em
muitos casos, o diagnóstico é incerto.

e Não existe um taumaturgo típico. Os modos de atuação variam.


122 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

G Segundo Kydd, isso não deve surpreendei-, por-


que é Deus quem cura. O próprio Jesus não seguia um padrão ou usava fórmulas.
_ , ri
A cura nunca pode ser tina prova de correção doutrinária. Ela não serve de
selo para autenticar uma doutrina.
Os modelos de Kydd são úteis porque tornam a classificação dos tipos de curas
mais inteligível. Contudo, não servem para avaliar o grau de "biblicidade" ou con-
fiabilidade das curas. Nem dizem se as curas são de Deus ou de outras fontes. Para
detectar isso, é preciso procurar outros padrões. Nos casos em que a cosmovisão bíblica
é claramente contrariada (por exemplo, quando é invocada a intercessão de Maria),.
çntão vemos um problema de saída.

PRINCÍPIOS DE AÇÂO

Com base na Bíblia, podemos estabelecer alguns princípios de ação, que ser-
virão também de critérios para avaliai os supostos operadores de milagres. Operar
"milagres" é espetacular, mas não é tudo. Quando os 70 voltaram eufóricos de
uma missão evangelistica bem-sucedida, relatando que, em nome de Jesus, até os
demônios lhes obedeciam, Jesus vibrou com eles, mas fez uma observação: "Não
obstante, alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e, sim, porque os
vossos nomes estão ai tolados nos Céus" (Lc I 0:20). A afirmação de Paulo de que o
mal pode se apresentar com roupagem de bem ("o próprio Satanás se transforma em
anjo de luz" [2Co 11:14]) deve acender uma luz arnarely diante de todo movimento
de cura. Anjos satânicos podem atuar disfarçados de espíritos do bem.
Certos estudiosos têm destacado as semelhanças e afinidades em termos fenomeno-
lógicos e psicológicos entre certos rituais de curas espíritas e pentecostais. Essa constatação
é importante. Ela realça a necessidade de avaliar biblicamente os fenômenos. A Bíblia,
por ser a Palavra revelada, originada na mente onisciente de Deus, oferece subsídios
reais para julgar fenômenos sobrenaturais e dizer qual é a sua fonte. A psicologia e outras
ciências podem esclarecer alguns fatos, mas não podem dar a palavra final, porque não
possuem acesso a todos os dados do mundo invisível.
Segundo Colin Brovvn, "do fechamento do Novo Testamento ao terceiro século e
além, o apelo aos milagres era uma parte regular da armadura do apologista cristão". No
entanto, vários teólogos importantes como Orígenes, Calvin() e Aquino estavam conscientes
de que..afé cristã não é baseada apenas no prodigioso, pois "Satanás também poderia operar
maravilhas". Assim, enfatizaram o ensino, a preocupação com a justiça, o objeto da glória
vinda do milagre (Deus ou a pessoa) e os meios empregados na operação do milagre.'
Isso apenas confirma a necessidade de testar os milagres. E é na prática e no
ensino de Jesus e dos apóstolos, mais uma vez, que encontraremos os dados pl. incipais
para estabelecer os princípios de avaliação.
Avaliação da Cura 123

Princípio I: O operador de milagres deve combinar a cura com ensino e pregação.


Em Mateus, Jesus é apresentado como o Messias, o Filho de Deus, revestido de divina
autoridade (exousia) para executar a atividade messiânica. Essa atividade é representada
por três verbos: "pregar" (kerysso), "ensinar" (dzdasko) e "curai" (therapeuo). Mateus
estabelece o roteiro messiânico de Jesus numa frase: "E percorria Jesus todas as cidades
e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda
sorte de doenças e enfermidades" (Mt 9:35). Para •evitar desequilíbrios, é importante
manter os três verbos-chaves (ensinar + pregar + curar) em conexão.
O ensino tem uma grande relevância nos evangelhos, especialmente em Mateus,
onde, segundo Twelftree, Jesus não é retratado "como um taumaturgo que ensina, mas
como profeta-igual-a-Moisés ou um mestre que cura". 4 Para Mateus, que escreveu
primariamente para os judeus, Jesus não é apenas um "rabino" ou "professor", que
era um título público respeitoso. Mateus quer mais. O Jesus mateano é um Mestre
exaltado, a Autoridade final. Por isso, Seu discurso mais longo é situado num monte,
em contraste com o relato de Lucas (6:17), que o situa na planície. Além disso, nos
capítulos 8 e 9, Mateus edita uma série de milagres em conexão com o tema de "seguir"
a Jesus, ligando os milagres ao conceito de discipulado.
A cura, portanto, não pode ser desvinculada da evangelização. E, evidentemen-
te, evangelizar não é apenas dizer "Deus é amor e quer que você seja curado agora".
Evangelizar é anunciar e ensinar as boas-novas em sua inteireza. Os profetas e apóstolos
não se autoproclamavam operadores de milagres. O dom de cura era apenas parte de
, sua identidade e missão.
Princípio 2: O operador de milagres deve considerar a cura espiritual prioritária
em relação à cura fisica. O primeiro caso específico de cura relatado por Mateus foi
o de um leproso (8:1-4). Mateus, provavelmente, escolheu esse milagre para abrir a
seção de cura do seu livro devido à pesada conotação negativa que a lepra tinha para
os judeus. Chamada de "o açoite" e "o dedo de Deus", era um símbolo do pecado e
separava a pessoa da comunidade. Tocar no leproso significava contaminação ritual.
Agora, aparece o Messias Jesus, e Ele não foge do leproso; ao contrário, estende a mão
e toca-o. Ou seja, o dedo de Deus é estendido não para condenar ou amaldiçoar, mas
para curar, salvar e restaurar à comunidade e ao relacionamento com Deus. O fato
de, em Cafarnaum, Jesus ter perdoado os pecados de um paralítico antes de curá-lo
fisiCamente é mais urna evidência da importância da cura espiritual (Mc 2:1-12).
Há uma mensagem no procedinfento de Jesus. Ele não é o Salvador apenas do
corpo, mas da pessoa toda. Sua cura não deve ser vista como um comprimido para
a dor, mas uma solução para a vida. É claro que, para Jesus, o corpo tem um alto
valor, pois, no pensamento hebraico, o ser humano é indivisível. Mas Jesus pensa em
primeiro lugar na capital do corpo, a cabeça, ou mente, onde se dá a transformação
espiritual. Portanto, se um operador de milagres desconsiderar o aspecto da cura
espiritual, certamente estará fora do padrão bíblico.
124 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Princípio 3: O operador de milagres deve dirigir o pedido da cura somente a Deus. A


Bíblia deixa claro que Deus é único e absoluto. A cura vem dEle. «Eu sou o Senhor
que te sara", disse Yallweh (Ex 15:26). Cristo prometeu atender os pedidos que fossem
feitos em Seu nome, não no nome de Pedro, Paulo, Maria, Lourdes ou Gaivão. Na
tradição católica, principalmente no nível popular, ha o costume de invocar a ajuda
dos santos. E como se os santos estivessem vivos e Deus não fosse sensível e bondoso
o suficiente e precisasse de um lobby para Se comover. Essa prática não tem nenhuma
base bíblica. Todo legítimo operador de milagres sabe que não pode invocar outras
fontes de poder.
Princípio 4: O operador de milagres deve ter um relacionamento salvífico com Deus.
Uma pessoa pode fazer milagres e, ainda assim, desconsiderar os ensinos de Cristo
e ter um caráter contrário ao dEle. Cristo afirmou que, no último dia, vai dizer ex-
plicitamente para muitos operadores de milagres que nunca os conheceu (Mt 7:22
e 23). Sendo que Cristo conhece todo mundo, Ele só pode estar Se referindo a um
r • ,
relacionamento salvifico. Ou seja, Ele nao os reconhece como Seus representantes,
porque esses operadores de milagres não O conheciam como Salvador.
Princípio 5: O operador de milagres deve valorizar as regras da medicina preventiva
e combater os hábitos prejudiciais à saúde. O fato de Deus fazer um milagre em prol ou
por meio de uma pessoa não a libera para agir contrariamente às leis da natureza. Em
Deuteronônaio 11 e 28, há ampla descrição de bênçãos decorrentes da obediência, e
das maldições causadas pela desobediência. A lei da causa e efeito vigora também para
quem se envolve com a cura divina.
. .
Princípio 6: O operador de milagres não deve desviar a lealdade do povo a Deus e
â Sua revelação. A iegra de Deuteronôrnio 13:1-3, estabelecida para Israel avaliar os
candidatos a profeta, continua atual e e aplicável aos operadores de milagres:

Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti, e te anunciar um sinal ou


prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio, de que te houver falado, e disser: Vamos
após outros deuses, que não conheceste, e sirvarno-los, não ouvirás as palavras desse
profeta ou sonhador; porquanto o Senhor vosso Deus vos prova, para saber se amais o
Senhor vosso Deus de todo o vosso coração, e de roda a vossa alma.

O que Moisés está frisando é que um mensageiro de Yahweh nunca pode minar
a lealdade do povo a Yahvveh e Suas leis. Se alguém fizer isso, é um falso mensageiro
ou curador.
Principio 7: O operador de milagres deve reconhecer a divindade e a humanidade
de Jesus. Este duplo teste é proposto por João: (1) quem nega que Jesus é o Cristo
(no pensamento joanino, o Filho de Deus) é o anticristo (1Jo 2:22); (2) quem nega
que Jesus veio em carne não é de Deus e tem o espírito do anticristo (1 Jo 4:2 e 3).
Qualquer agente de cura espiritual que diminua o mistério e a singularidade da natu-
reza divino-humana de Jesus não passa no teste bíblico. Essa violação da mensagem
Avaliação do Cura 125

cristológica pode acontecer por insinuar que Ele passou pela Terra cria "corpo fluídico"
ou não-material (tese defendida por alguns espíritas), ou até mesmo por eleircir o ser
humano ao status de divino.
Princípio 8: O operador de milagres não deve transformar o milagre num meio
de obter popularidade ou filma fleti. A discrição fazia parte do estilo de Jesus. Mar-
cos registra seis pedidos isolados de sigilo feitos por Jesus, no contexto de cura.
Por exemplo, ao purificar um leproso, disse: "Olha, não o digas nada a ninguém"
(1:44). Após ressuscitar a filha de Jairo, "ordenou-lhes expressamente que ninguém o
soubesse" (5:43). Jesus ptoibiu até os demônios de fazerem publicidade dEle (1:34;
3:12). Nada indica que Jesus estivesse usando urna estratégia psicológica no sentido
de pedir sigilo para estimular ainda mais a propaganda. A discrição fazia parte do
segredo messiânico. Jesus não queria antecipar problemas, pois tinha uma missão a
cumprir. Ao mesmo tempo, Marcos (7:36 e 37) sugere que esse segredo não podia
ser ocultado -- pois, quanto mais se pedia segredo, mais Jesus era reconhecido e
divulgado. Mis isso não invalida o argumento,
A lição a tirar é que, assim como Jesus não permitiu que uma glória fácil ofuscasse
a glória maior da cruz, os operadores de milagres atuais não devem tentar roubar a glória
divina. Pois a glória do milagte pertence a Deus. O agente do milagre não é a estrela'
do show; a estrela é Cristo. "Os milagres que chamam mais atenção para o agente
humano do que para Deus não são genuínos. A questão não é a fama do operador
de milagres, já que Jesus era famoso. A questão é se o ensino do milagreiro enfatiza
Jesus e Sua salvação, ou se dá destaque ao sensacional."'
Paulo foi exemplar nesse ponto. Em Listra, ele curou um paralítico de nascimento
(At 14:8-18) A multidão viu o resultado e começou a gritar: "Os deuses, em forma
de homens, baixaram até nós" (v. 11). O sacerdote de Júpiter junta-se à multidão e
organiza um sacrifício de touros em homenagem a Paulo e seu companheiro I3arnabé,
Paulo rasga suas roupas em protesto, declara sua igualdade com as demais pessoas e
chama a atenção do povo para o "Deus vivo" (v. 15). Qualquer operador de milagres
que faça menos do que isso, direcionando os aplausos para si ou seu movimento, está
roubando a glória do Deus vivo.
Princípio 9: O operador de milagres nunca deve receber pagamento pela cura. O
dom é gratuito e deve ser manifestado de graça. A Bíblia não relata nenhum caso de
pagamento por cura divina. Ao contrário, há censuras pela tentativa' de pagamento.
Eliseu rejeitou o presente de Naamã, por sua purificação da lepra, mas seu secretário
Geazi o recebeu e foi amaldiçoado (2Rs 5), Com a sua atitude, Geni estava dando urna
idéia errada, do Deus de Israel. Pedro condenou veementemente a tentativa de Simão,
o mágico, de comprar o direito de distribuir o Espírito Santo (At 8:18-24). Portanto,
se um operador de milagres se interessa mais pelo cartão de crédito do paciente do
que por sua salivação, todo cuidado é pouco. Ostentação de riqueza não serve de sinal
apenas para os agentes da Receita Federal; serve também para os crentes.
126 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

• Princípio 10: 0 operador de milagres não deve viver em pecado. Depois de definir
pecado como "transgressão da lei", João escreve: "Aquele que pratica o pecado proce-
de do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio" (1Jo 3:8). O apóstolo,
evidentemente, não quer dizer que o verdadeiro cristão é "impecável". Seu argumento
é que o filho de Deus não vive pecando (v. 6). O agente da cura divina também não
pode viver pecando. Os pretensos operadores de milagres que levam uma vida de claro
desrespeito à lei de Deus devem ser vistos como falsos milagreiros.

FALSO X VERDADEIRO
O candidato a operador de milagres deve passar em todos os testes bíblicos. Um
falso curador pode preencher algumas condições, mas o verdadeiro agente da cura
divina deve satisfazer todas as condições.
Uma das maneiras de identificar o falso e o verdadeiro, evitando o engano, é
conhecer Deus e o Seu estilo. Um especialista em reconhecer dinheiro falso foi in-
dagado sobre como conseguira tal habilidade. "Estudando continuamente as notas
verdadeiras", respondeu. Comparando os estilos de Deus e de Satanás, é possível ter
uma idéia do que é verdadeiro e do que é falso.
De alguma forma, a advertência de Jesus registrada em Mateus 7:15-23 resume
os critérios básicos para distinguir entre o falso e o verdadeiro operador de milagres,
como mostra o quadro 7. Aqui Jesus aconselha que recorramos aos frutos (ou evidên-
cias) para perceber os disfarces e desmascarar os enganadores.
Não há um consenso sobre a identidade dos falsos profetas que Jesus tinha em
mente nessa passagem. Vários grupos, como os gnósticos, os essênios, os zelotes, os
fariseus, possíveis antinomistas ligados ao apóstolo Paulo e entusiastas palestinos,
têm sido propostos. Defendendo que o verso 15 é uma criação peculiar de Mateus e
ligando esse texto com os falsos profetas do capítulo 24, David Hill analisa a hipótese
de que Mateus estava combatendo dois grupos distintos: falsos profetas (v. 15) e
profetas carismáticos (vs. 22 e 23). O último grupo pertenceria à igreja primitiva,
mas suas atividades seriam insuficientes para entrarem no Reino, pois falhavam em
cumprir as demandas de Jesus e fazer a vontade de Deus. O primeiro grupo seria
formado por fariseus vindos de fora da comunidade cristã para ameaçar, enganar,
subverter e roubar os novos crentes. No que diz respeito aos fariseus, Hill baseia
seus argumentos (1) no fato de existir alguma evidência de que eles consideravam
a si mesmos como herdeiros da grande tradição profética; e (2) no fato de que a
polêmica contra eles percorre o evangelho de Mateus, já que o evangelista parecia
considerar o farisaísmo a teologia oficial do judaísmo da época . 6
É difícil dizer se Jesus ou Mateus realmente tinha algum grupo específico em
mente. O mais correto é talvez dizer que o autor visava mais a um tipo de pessoas do
que a um grupo. Mas, ainda que originalmente ele visasse a esse hipotético grupo,
Avaliação do Cura 127

hoje as advertências contidas em Mateus 7:15-23, assim como aquelas encontradas


em 24:11 e 24, são aplicáveis a qualquer classe de crentes ou descrentes que se encaixe
na descrição apresentada.

Objetivo Glorificar a Deus, ajudar as pessoas Popularidade, fama, lucro ("lobos roubaclores")
Ê&:d.
. , . ' iS. ' Ni4lPfel4rÇO 0:-, a..4.W.0 4TA-44',4 -0parei6SWEdid4E6'W't
1 e ;da'
. mi.° 9. .,. ,;y
Estilo Serenidade e obediência Oba-oba ("Senhor!
, , Senhor!")
nlr'i è
, ,

Fruto Bom Mau

Quadro 7: Contraste entre verdadeiros e falsos operadores de milagres

Seja como for, a aplicação desses princípios e critérios é fundamental porque


a fenomenologia dos falsos taumaturgos pode ser patecida com a dos verdadeiros.
Os autores bíblicos alertaram várias vezes quanto a isso. João profetizou que a
‘`segunda besta" operará grandes sinais e seduzirá a população do planeta (Ap
13:13 e 14). Jesus afirma que a imitação será tão perfeita que quase enganará os
próprios eleitos (Mt 24:24).
Em Deuteronôrnio, transparece a idéia de que Deus permite o surgimento
de falsos profetas para testar o amor de Seu povo (13:3). Paulo levanta a mesma
tese, ao falar do anticristo:

Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e


sinais e prodígios da mentira, e com todo engano de injustiça aos que perecem, porque
não acolheram o amor da verdade para serem salvos. É por este motivo, pois, que Deus
lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira, a fim de serem julgados
todos quantos não deram crédito à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com
a injustiça (2Ts 2:9-12).

Há uma dimensão escatológica nesse aviso de Paulo sobre o engano satânico.


Comentando essa passagem, o Dr. Jon Paulien, professor de interpretação do Novo
Testamento na Universidade Andrews, destaca que (1) "Paulo retrata Deus tão
completamente no controle que Ele até 'manda' a operação de Satanás no fim" e
que (2) "o grande engano do fim vem no contexto de uma ampla disponibilidade
do evangelho"? Paulien vê aqui três desenvolvimentos históricos básicos: uma fase de
mistério, um período de revelação e um tempo de destruição. Primeiro, Deus restringe
128 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Satanás, que opera de forma velada e secreta para alcançar seus propósitos, enquanto o
evangelho é pregado. Em segundo lugar, no clímax da pregação do evangelho, quando
ele se torna amplaniente disponível, Deus retira a restrição de Satanás, que opera abeE
tamente o seu grande engano. Cada um terá a oportunidade de decidir. Finalmente, no
grande confronto final (que o Apocalipse chama de Armagedom), o grande enganador
e os seus seguidores são destruídos e o povo de Deus é vindicado.
O mesmo poder enganador denunciado em Mateus 24 e II Tessalonicenses 2
é também retratado em Apocalipse 13. Aqui João denuncia uma falsa trindade, em
que o dragão parece ser a contrafação do Pai, a besta do mar a contrafação do Filho e
a besta da terra a contrafação do Espírito Santo. O ponto central, em relação a nosso
tópico, é que a besta da terra opera maravilhas e chama atenção para a besta do mar,
assim como o Espírito Santo faz milagres e chama a atenção para Cristo. Tudo faz
parte do projeto de ilusão e sedução do mundo.
Estes mesmos poderes são retratados em Apocalipse 16 como dragão, besta e falso
profeta. Da boca desses poderes saem "três espíritos imundos, semelhantes a rãs", os quais
são "espíritos de demônios, que fazem prodígios" para enganar e reunir os reis da Terra
para a batalha (vs. 13 e 14). Por que "rãs"? Como o pano de fundo de Apocalipse 16 é o
conjunto de pragas que assolou o Egito antes do êxodo, tudo indica que João está traçando
um paralelo com o êxodo. As rãs foram a última contrafação antes do êxodo. João está
dizendo que esse grande engano ocorrerá antes da libertação do povo de Deus.
E importante notar que tudo isso ocorre na época do Armagedorn. A imagem
do Armagedom parece ser tirada do confronto entre Lhas e os profetas de Baal, no
Monte Carmelo. Segundo o Dr. Paulien, a palavra armagedom vem de duas palavras
hebraicas que significam "Montanha de Megido". Megido era uma( cidadezinha per-
to do Monte Carrnelo. Por isso, a Montanha de Megido, na verdade, seria o Monte
Carrnelo. Nesse caso, o Armagedom é uma repetição do confronto entre a verdadeira
e a falsa adoração. Só que agora, por assim dizer, o "fogo" dos falsos milagres cai no
altar errado. A contrafação parecerá verdadeira. Quem confiar em seus sentidos, ou
nas aparências, será enga.nado.
O segredo para avaliar com sucesso um operador de milagres ou um movi-
mento operador de maravilhas, portanto, é ter amor a Deus e à verdade. Quem
busca sinceramente a Deus e segue a Sua revelação não será enganado. Quem rejeita
o evangelho será enganado. Isso se aplica aos crentes em nível pessoal e também às
,
igrejas em nível comorativo.

Noi AS
' Ronald A. N. Kydd., 1-lea4ngThrough the Centuries: »deis for Understanding (Peabody: Hen-
driekson, 1998).
'Ibid., 19; ver também 20-59.
I Col(n Biown, Miracles, 3, 18.
4 Twelftree, Jesus the Miracle Work er, 103.
A VISÃO ADVENTISTA DA CURA

A relação entre a mente e o corpo é muito íntima. Quando


um é afetado, o outro se ressente
Ellen White (1827 1915), escritora adventista

Os adventistas têm uma contribuição importante para dar à sociedade em matéria


de saúde, medicina e cura Seus conceitos não surgiram do nada, nem de formulação
científica apenas, mas da revelação divina Ellen G. White (1827-1915) foi e é a grande
teórica adventista sobre o assunto. Por isso, o pensamento dela pode ser considerado
a melhor expressão da filosofia adventista de saúde.
Ellen White teve um papel fundamental na formação da Igreja Ad.ventista do
Sétimo Dia, a partir dos destroços do milerismo. Aberta, criativa e sensível ao seu
contexto, ela ministrou, aconselhou, motivou, corrigiu e liderou de forma efetiva Se
José Bates foi um dos nomes principais na formulação doutrinária do movimento,
Ellen era a voz inspirada que dava o OK ou redirecionava a questão. Sua influên-
cia moldou a personalidade corporativa adventista. Como foi possível uma jovem
frágil, pequenina (1,54 m) e sem estudo formal conquistar o respeito, a admiração
e a liderança de tanta gente?
A resposta se resume a uma palavra visão. Estima-se que Ellen White tenha tido
cerca de duas mil visões e sonhos proféticos, entre os anos de 1844 e 1915. Embora
não ostentasse o título de "profetisa", preferindo ser chamada de "mensageira do
< Senhor" (por causa dos falsos profetas da época e pela amplitude de seu trabalho), os

adventistas crêem que ela possuía o legítimo dom profético descrito na Bíblia. Mas
seus escritos não são uma substituição ou acréscimo à Bíblia
Ellen White foi uma escritora prolífica, cobrindo uma enorme variedade de
assuntos. No que diz" respeito diretamente ao nosso tópico (milagres, saúde e cura),
ela escreveu muita coisa A principal visão que marcou seu interesse pela chamada
, "reforma de saúde" ocorreu na noite de 5 de junho de 1863, em Otsego, IVIichigan,
na casa de Aaron Hilliard, dezesseis dias após a organização da Associação Geral
dos Aciventistas do Sétimo Dia Aparentemente, o assunto da "reforma de saúde"
(a qual possui uma conexão religiosa e significa muito mais do que vegetarianismo)
foi a prioridade divina número 3 no conteúdo dos primeiros vinte anos de visões de
132 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Ellen White, após a formulação doutrinária (prioridade número 1) e a organização


da igreja (prioridade número 2).
Muitas descobertas científicas confirmam pontos antecipados por Ellen Whi-
te. Recentemente, Don McMahon, um médico da Austrália, idealizou um escudo
comparando declarações médicas de Ellen White com as de outros importantes
reformadores de saúde da época: Sylvester Graham, William Alcott, Larkin Coles,
James Jackson e John Harvey Kellogg. A porcentagem de acertos dela é muito
significativa para ser casual. Por exemplo, de 46 declarações médicas e de saúde do
tipo factual ("o que") encontradas em ,Spiritual G ifi-s, 44 (96%) foram consideradas
corretas pelos padrões médicos atuais. Em contraste, um número muito menor de
declarações de seus contemporâneos ainda rem credibilidade. Já a porcentagem de
explicações (os "porquês") da autora consideradas cientificamente corretas não difere
muito dos acertos dos outros reformadores.'
Algumas declarações de Ellen White na área científica ainda causam polêmica.
Talvez a ciência, que está sempre mudando, ainda venha a validá-las. Na biografia
da autora, Herbert Douglass observa que, em muitas áreas da saúde, "mesmo pou-
cas décadas atrás, Ellen pareceria não apenas extremista, mas até mesmo fanática"
(imagine em 1863); contudo, o registro de seus conselhos foi feito, e a ciência está aí
comprovando o acerto deles.'
Naturalmente, Ellen White viveu num contexto cultural concreto. Na época,
havia grande interesse em assuntos de saúde — especialmente porque a medicina era
precária. Por volta de 1835, por exemplo, existiam oito mil sociedades de temperança
nos Estados Unidos. Mas Ellen White informa que sua filosofia de saúde não veio
daí; ao contrário, tratava-se de uma mensagem revelada, de origem divina, e dada por
razões práticas. Em relação aos reformadores da saúde de sua época, diz Douglass,
"Ellen \VIU -te era singular", e, quando "comparada ou contrastada com a sabedoria e
prática médica convencional, ela estava décadas à frente de seu tempo")
George Knight parece ter captado bem o paradoxo de Ellen White em seu contexto:
ela era uma mulher do seu tempo, imersa em seu mundo e em sua cultura, respondendo
aos desafios da época com a linguagem da época; mas, por outro lado, ela não era um
mero produto da sua época, uma repetidora aerifica das idéias prevalecentes, e apresentou
princípios aplicáveis em qualquer tempo e lugar.'

ENFOQUE INSPIRADO

A essência do pensamento de Ellen White sobre vida, saúde, doença, cura e temas
afins pode ser sintetizada nos quinze pontos a seguir. Na biografia da escritora, Douglass
dedica cinco capítulos aos princípios de saúde whiteanos e seus desdobramentos.
1. A vida provém e é dependente de Deus. Jesus é a fonte de vida de que a
nossa vida deriva.
A Visão Adventisto do Cura 133

2. Em última análise, toda doença vem do pecado e de Satanás. "Doença, sofrimento


e morte são obra de um poder antagónico. Satanás é o destruidor Deus, o restaurador."'
3. A doença não é um castigo divino, mas conseqüência natural de erros alimentares
e até comportamcntais. "A moléstia nunca vem sem causa", escieve White. "O caminho é
preparado, e a doença convidada, pela desconsideração para com as leis da saúde." White
concorda com a posição bíblica, que pode ser assim resumida:
• Sim. Existe relação entre doença e pecado (Dt 28:15, 21; Nm 12:1, 10; 2Rs
5:20-27; Jo 5:14).
• Não. Inexiste relação entre doença e pecado (Já, Jo 9:1-3).
• Solução do paradoxo: a doença é conseqüência indireta do pecado (queda)
e, às vezes, conseqüência direta de erros pessoais, podendo também vir do acaso e de
outras causas, como julgamento divino e ataques de Satanás.
4. A natureza rem um poder vital implantado por Deus, mas continua de-
pendendo dEle. Se mostra uma capacidade curadora fantástica, é porque Deus age
continuamente por meio dcla. (Esta posição não deve ser confundida com o vitalisrno
oriental, ou seja, a crença de que as funções de um organismo vivo são o resultado de
um princípio vital distinto das forças psicoquimicas.)
5. Há uma misteriosa e admirável interação entre a mente e o corpo, um agindo
sobre o outro. Se o corpo tiver problemas, a mente também será afetada, e vice-versa.
6. Há um importante elo entre a condição física e a experiência espiritual. Nosso
corpo é o templo do Espírito Santo, como diz Paulo (1Co 3:16 e 17). Ellen White
considerava as leis da natureza tão divinas como os preceitos do decálogo.
7. O corpo, com a mente e seu sistema nervoso central, é o único meio de Deus
Se comunicar com o ser humano. Por isso, Satanás tenra destruí-los, e é dever do cristão
evitar que o faça. Este conceito tem sido considerado um dos mais importantes de
toda a mensagem de saúde adventista.
8. As pessoas têm o dever de investir na conservação da sua saúde, e os médicos,
a obrigação de educar o povo. A regra de ouro é prevenção. O trabalho educacional
dos médicos e das enfermeiras, focalizando a mudança do estilo de vida, era uma
ênfase desconhecida na época.
9. Na cura, devemos combinar os esforços humanos com o poder divino, que
é realmente eficaz. O médico é apenas um instrumento de Cristo, que é o verdadeiro
Restaurador e Doador da vida.
10. Os médicos cristãos devem utilizar uma terapêutica integrada para o corpo
e a alma, como Jesus fazia.
11. A obra médico-missionária deve andar junto com o evangelismo, servindo
de ponto de contato e de apoio para abrir portas e abençoar as pessoas.
12. Deve-se orar em favor dos doentes e ungi-los com óleo, conforme prescreve
Tiago. Para Whi te, o realismo fisiológico e a lógica da natureza não eliminam de modo
algum a busca do auxílio divino.
134 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

13. Já que Deus é o Autor tanto da cura espiritual quanto da natureza, deve-se
combinar oração e medicamentos. "Não é uma negação da fé usar os remédios que Deus
proveu para aliviar a dor e ajudar a natureza em sua obra de restauração." 7 Contudo,
as drogas fortes e potencialmente venenosas devem ser evitadas (voltarei ao assunto
mais à frente). Ellen White rejeitou, assim, a filosofia contemporânea da Ciência
Cristã de Mary Baker Eddy (1821-1910), que defende a cura apenas pela oração e o
despertamento espiritual, sem depender de medicamentos e médicos.
14. Deus não faz milagres para preservar de enfermidades aqueles que vivem vio-
lando as leis da saúde e não tentam evitar a doença. Pois, nesse caso, eles raciocinariam
que têm liberdade para continuar transgredindo as leis naturais e espirituais.
15. Os milagres de cura não constituem um indício seguro do favor de Deus,
pois Satanás operará maravilhas para convencer o povo de que ele é Deus. Ele operará
inúmeros milagres para seduzir aqueles que andam em busca desse tipo de prova.

OS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO

Ellen White valorizava muito a prevenção e escreveu amplamente sobre o assunto.


Sua filosofia preventiva, e até certo ponto curativa, é bem representada por esta ftase:
'Ar puro, luz solar, abstinência, repouso, exercício, regime conveniente, uso de água e
confiança no poder divino — eis os verdadeiros remédios "8 Mas será que a prevenção
é mesmo tão importante?
Na década de 1980, os médicos — tradicionalmente orientados para a doença e
os problemas reais, isto é, pessoas doentes, em detrimento dos problemas potenciais
—começaram a descobrir que a prevenção realmente funciona. No entanto, mesmo
que a classe médica como um todo ainda não se interesse pela prevenção, aprender a
permanecer saudável é responsabilidade de cada um.
Uma simples olhada em qualquer gráfico contendo os indicadores mundiais de
saúde evidencia que recursos básicos, como saneamento, água despoluída e alimentação
adequada, podem fazer diferença na expectativa de vida. A correlação é direto.. A doença
geralmente tem um histórico identificável na história genética, comportamental, psi-
cológica e espiritual da pessoa. Há também quem defenda o conceito de que a doença
ocorre em gradações, havendo uma área cinzenta entre a saúde e a doença, que pode
ser estudada pela medicina preditiva como antecipação.
A filosofia preventiva de Ellen White, representada pelos oito remédios natu-
rais, tem inspirado muitos livros e programas de sáude. Ela encerra o que se pode
chamar de "estilo de vida adventista", embora nem todos os adventistas o sigam.
As vantagens desses oito pilares é que são amplos o suficiente para abranger outros
itens, têm aplicabilidade em qualquer parte do mundo e podem ser aprofundados
de acordo com o desenvolvimento da ciência e das pesquisas, ao mesmo tempo em
que são praticados como regras gerais de prevenção. A boa notícia é que sua validade
A Visão Adventrsio do Curo 135

tem sido confirmada pela pesquisa científica e reconhecida pelo público.


Dezenas de estudos científicos têm mostrado de forma clara as vantagens do
estilo de vida adventista. Um estudo sobre mortalidade indicou que a expectativa
média de vicia dos homens e mulheres adventistas da Califórnia era substancial-
mente maior do que a de seus conterrâneos (77,4 no caso dos homens e 80,1 no
caso das mulheres, vantagens de 6,2 e 3,7 anos, respectivamente). Uma compa-
ração entre os subgrupos adventistas também mostrou significativa vantagem dos
que não comiam carne, dos que tinham peso normal e dos que comiam frutas
mais de duas vezes por dia. Ou seja, quem segue integralmente o estilo de vida
adventista obtém ainda mais longevidade, e a qualidade de vida é melhor. Novos
estudos estão em andamento. 9
Não vou discutir os oito "remédios de Deus", mesmo porque sua análise pode
ser encontrada em outras fontes, mas gostaria de comentar algo sobre o último deles,
a confiança em Deus. Na época do êxodo, Deus fez uma promessa a Israel: "Servireis
ao Senhor vosso Deus, e Ele [...I tirará do vosso meio as enfermidades" (Ëx 23:25).
Numa leitura superficial e mecanicista, essa promessa pode parecer um tanto automá-
tica, quase urna "proposta indecente" de conceder prosperidade e saúde em troca de
lealdade. Mas, examinando-a por outro ângulo, vê-se na frase o resultado esp&acular
e natural do relacionamento com Deus: a bênção como conseqüência de ser leal a
Deus, confiar nEle e seguir Seus princípios.
Centenas de estudos sobre o papel da religião e da espiritualidade foram produzidos
nos últimos anos. Se até alguns anos atrás nenhum cientista de prestígio admitiria a relação
entre espiritualidade e cura física, e muito menos pensaria em desenvolver pesquisas nessa
área, para não comprometer sua credibilidade e carreira, hoje as coisas mudaram. De
1994 a 2004, o número de faculdades americanas que bferecem cursos sobre medicina e
espiritualidade saltou de 17 para 84. Uma explicação para esse novo interesse tem a ver
com a química do cérebro. A fé é intangível, mas a química cerebral pode ser testada e
medida. Outra explicação é que instituições ricas como a John Templeton Foundation
(dos Estados Unidos) estão patrocinando pesquisas nesse campo.
O "surpreendente" é que a maioria desses estudos oferece evidência de que a religião
faz bem para a saúde. Os cientistas já comprovaram os seguintes fatos, entre outros:
• A pressão sanguínea dos freqüentadores de igreja é mais baixa do que a dos
não-freqüentadores.
• As pessoas que vão regularmente à igreja correm menos risco de morrer de
doenças coronarianas.
• As pessoas com forte fé religiosa sofrem menos de depressão e, quando sofrem,
tendem a se recuperar mais rápido.
• As pessoas religiosas têm um estilo de vida mais saudável.
• As pessoas que freqüentam regularmente a igreja têm sistema imunológico
mais resiStente do que aquelas que não freqüentam.
136 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

• As pessoas religiosas vivem mais.


A religião tem um impacto rnultifacetado na vida da pessoa. Um estudo condu-
zido pelo Dr. Melvin Pollner, da Universidade da California, apus de Los Angeles,
revelou que as pessoas que possuem muitas relações sociais, recebendo apoio da família
e dos amigos, tendem a experimentar maiores níveis de bem-estar mental e físico do
que aquelas que têm poucas relações. No estudo, mais de 3 mil norte-americanos foram
interrogados sobre suas crenças e seu comportamento social e religioso. Um aspecto
interessante é que, paralelamente à rede social real, as pessoas costumam rer uma rede
social imaginária, incluindo personagens da rnídia, da História ou da Bíblia. Para boa
parte das pessoas, Deus compõe essa rede imaginária, ou é mesmo o centro dela. A
conclusão do Dr. Pollner é que as "relações divinas", nessa rede imaginária, podem ser
tão significativas para o bem-estar psicológico quanto as relações sociais."'
Dale Matthews diz que ele já estava convencido do valor da fé (religião) antes
de participar da edição de uma bibliografia de quatro volumes sobre o assunto, mas a
pesquisa o convenceu ainda mais. Ele enumera 12 "remédios" que a religião oferece: (1)
serenidade (o recurso da oração e da meditação para enfientar o estresse da vida); (2)
temperança (a motivação para honrar o corpo como o templo do Espírito Santo); (3)
beleza (o prazer de apreciar a arre e a natureza); (4) adoração (o movimento de ativar
todo o ser na direção de Deus); (5) renovação (a chance de confessar e começar de novo);
(6) comunidade (a rede de apoio mútuo); (7) unidade (a segurança de partilhar a fé com
outros); (8) ritual (o conforto de tomar parte em atividades familiares); (9) significado
(a descoberta de uma razão para viver); (10) confiança (a certeza de que Deus está no
controle); (11) transcendência (a expectativa do encontro com um Deus grandioso);
(12) amor (o sentimento/compromisso de cuidar e ser cuidado)."
Segundo o autor, "os doze remédios que formam o fator fé são exponen-
cialmente efetivos: eles se combinam para formar um todo que é maior do que a
soma de suas partes". Ele diz que todos os fatores são importantes (embora não
precisem ocorrer simultaneamente), mas, se fosse para destacar uma variável, seria
a adoração, "pois é no contexto da adoração que todos os doze componentes mais
freqüentemente coexistem"."
Se há o lado positivo na religião, há também o negativo. O mau relacionamen-
to com Deus, caracterizado pela culpa e o senso de separação por causa do pecado,
provavelmente enfraqueça o sistema imunológico e gere doenças. O rei Davi, num
período conturbado de sua vida, parece ter ficado doente por causa da culpa gerada
pelo adultério com Bate-Seba e pelo assassinato de Urias. Sua experiência parece ter
seguido a seguinte seqüência: (1) o pecado causou crise emocional e problema físico (SI
32:3; 38:3 e 7; 51:8); (2) confrontado, Davi confessa e se arrepende (Si 32:5; 51:1-7);
(3) ele crê que o perdão divino trará cura emocional, espiritual, física e social (51:8-
15). Com base nisso, podemos dizer que o pecado e a culpa geram tristeza, depressão
e doença, ao passo que a confiança em Deus proporciona saúde e alegria.
A Visão Adventisto do Curo 1 37

A prevenção das doenças, através de um estilo de vida saudável, deve ser levada
a sério pelos cristãos. Há pelo menos três motivos para isso.
Primeiro, existe uma razão existencial. O bom senso sugere que a pessoa saudável
tem mais chance de ser feliz e obter ,sucesso. Ou seja, ela vive mais e melhor. A própria
. . .
sociabilidade depende, em parte, da saúde.
Segundo, existe uma razão espiritual. O relacionamento com Deus é sensi-
velmente afetado pela condição física, uma vez que a espiritualidade se desenvolve
no corpo, e não fora dele. Devemos valorizar o conceito de que o nosso corpo, em
especial o cérebro (sede da mente), é o templo de Deus (ver Rrn 12:1 e 2; 1Co 3:16;
6:19). Evidentemente, a doença pode ser utilizada por Deus como instrumento de
aperfeiçoamento espiritual, mas isso é exceção. A regra é um corpo saudável servir
de suporte para urna experiência espiritual vigorosa, melhorando a percepção e
ajudando a vencer as tentações.
Terceiro, existe uma razão missiológica. Uma pessoa saudável tem, presumi-
velmente, mais condições de testemunhar do poder do evangelho. Contudo, é outro
ângulo que desejo destacar: o fato de que um corpo forte aumenta a longevidade,
e a longevidade serve de "propaganda religiosa", derrubando barreiras e vencendo
preconceitos. O caso de Israel é típico. A expectativa de vida dos israelitas, embora
estivesse muito longe da média dos antediluvianos, que passava de 900 anos, era mais
alta do que a dos povos vizinhos. Enquanto os israelitas aparentemente viviam em
média 70 a 80 anos (ver SI 90:10), a expectativa de vida das culturas adjacentes girava
em torno de 18 a 25 anos, especialmente por causa das altas taxas de mortalidade
infantil. Evidências arqueológicas sugerem que mesmo pessoas da aristocracia egípcia
frequentemente rnoi-riam por volta de 35 anos. Moisés insistiu que, ao obedecer às
leis de Deus, Israel teria grande longevidade e sucesso — e isso chamaria a atenção dos
outros povos. No caso dos aclventistas, sua longevidade tem chamado a atenção de
autoridades médicas e da mídia.
Mas, se há sólidas razões para investir num estilo de vida saudável, é preciso
paralelamente buscar uma experiência espiritual vigorosa, centralizada em Cristo e
energizada pelo Espírito Santo. A base que sustenta um programa de saúde inclui o
desejo/compromisso de crescer em, espiritualidade e desenvolver o caráter. Não há
mérito em ser apenas um pecador saudável.

Os FATORES PSICOSSOMÁTICOS
Hoje, há uma nova ênfase no ser humano total. A redescoberta do conceito holís-
tico está abrindo as portas para diversos tipos de terapias alternativas. Mas até há pouco
tempo as coisas não eram assim. O conceito dualista separando mente e corpo — o qual
veio dos gregos (especialmente Platão), encontrou eco em Santo Agostinho e ganhou
nova teorização com Descartes -- dominou o pensamento ocidental durante séculos.
138 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Para René Descartes (1596-1650), o ato de pensar era uma atividade separada do
corpo. Ele escreveu que o "eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente
distinta do corpo [...] e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que
é". Por isso, considerava sua famosa afirmação Cogito ergo sum ("Penso, logo existo")
"o primeiro princípio da Fi lo
sofia".' 3
Mas Descartes estava errado, na opinião do conceituado• neurologista Antônio
Damásio e de outros pesquisadores modernos. O erro de Descartes foi "a separação
abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível,
com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, por um lado, e a
substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível". Damásio
— para quem a razão não é tão pura quanto se pensa, nem os sentimentos tão intan-
gíveis quanto se supõe — acredita que "o corpo, tal como é representado no cérebro,
pode constituir o quadro de referência indispensável para os processos neurais que
experienciamos como sendo a mente"»
Joseph LeDoux explica que, embora a concepção funcionalista considere a mente
um mero programa de computador, que poderia "ser rodado em qualquer máquina
(mecânica, eletrônica, biológica)", o mesmo não pode ser dito das emoções, que em
sua maioria envolvem reações físicas. Diz o pesquisador: "Mesmo se a argumentação
funcionalista (de que o hardware é irrelevante) pudesse ser aceita para os aspectos
cognitivos da mente (o que não está claro), ao que parece ela não iria funcionar nos
aspectos emocionais da mente (pois o hardware parece fazer urna grande diferença
quando se trata das emoções)."b
Um computador não pode ser programado para ter emoção, ainda que pudesse
ser programado para se tornar consciente. Resultado: nem o famoso Cogito ergo sum
de Descartes sai incólume, pois só pensamos porque existimos. A atividade cerebral
é dependente da existência corporal. Sendo a pessoa uma unidade indivisível, não dá
para separar suas "partes" sem destruir o todo.
Mas se, com base nas descobertas da neurologia, mais do que nunca a
dicotomia e a tricotomia estão sendo questionadas, isso não é novidade para os
adeptos da visão holística do ser humano. Segundo este conceito, as diferentes
dimensões do ser humano funcionam de forma dinâmica e integrada. A ênfase
está na totalidade. O holismo pressupõe que a pessoa é mais do que a soma de
suas partes, assim como um livro é mais do que papel e tinta, e cada aspecto
afeta o todo.
Os adventistas são adeptos do holisrno, em sua versão judaico-cristã. Ou seja,
vêem o ser humano como uma unidade indivisível, em que todos os aspectos físicos,
mentais e espirituais são integrados e inter-relacionados. Em 1905, muito antes
de surgir a expressão "psiconeuroimunologia" (estudo das interações entre estados
emocionais e a resistência corporal à doenças), Ellen White já falava da influência da
mente sobre o corpo e vice-versa.
A Visão Adventisto do Curo 139

As emoções, ensinava ela, têm impacto positivo ou negativo na saúde. Emoções


negativas como desgosto, ansiedade, descontentamento, culpa e desconfiança exaurem
a energia vital, enquanto emoções positivas como alegria, entusiasmo, esperança, fé,
simpatia e amor comunicam saúde e prolongam a vida. A maioria abso luta das doenças
)
tem origem mental, e a doença imaginária pode matar. O corpo é tão suscetível aos
humores da mente que até a maneira de o médico ou a enfermeira tratar o doente faz
diferença na cura. Em outras palavras, o ritual médico pode ter um efeito placebo. Ao
lado das emoções positivas, o propósito, a determinação e a vontade também exercem
um papel fundamental na saúde.
De 1915, ano da morte de White, para cá, especialmente nos últimos anos, as
pesquisas têm confirmado a sabedoria de suas afirmações. Na área do estresse e da
in-mnologia, houve muitas descobertas. Hoje, parecem conclusivas as provas cien-
tíficas de que a depressão pode inibir a eficiência do sistema imunológico. Sabe-se
agora que o cérebro e o sistema imunológico se interagem, enviando contínuos e
rápidos sinais um para o outro, o que pode explicar a influência dos estados mentais
sobre a saúde.
Embora desde os primórdios da medicina se acreditasse que a mente influi
nas doenças físicas, uma nova postura surgiu depois da descoberta dos antibióticos:
os cientistas, ignorando que a resposta do próprio corpo pode influenciar a suscep-
tibilidade à doença, passaram a postular que bastaria eliminar os agentes invasores
para tratar doenças infecciosas ou inflamatórias. Mas, por ironia, pesquisas feitas no
mesmo campo das doenças infecciosas e inflamatórias estão provando o contrário. As
evidências indicam que o estresse afeta, por exemplo, a resposta imunitária do corpo
aos vírus e bactérias. Já um ambiente social estimulante pode aumentar a resposta
imunológica e a resistência às doenças, inclusive câncer. As fronteiras que demarcavam
mente e corpo eram artificiais .
A ciência já comprovou, também, a influência do placebo (substâncias inócuas)
na cura de várias doenças, quando o paciente realmente confia no "remédio" e no
médico. Norrnan Cousins comenta que o placebo "é poderoso n.o apenas porque
'engana o corpo, mas porque transforma o desejo de viver em realidade física'', pro-
vocando "alterações bioquímicas específicas no organismo"» 6 Mas existe também a
contraparte negativa do placebo, que recebe o nome de "nocebo". O "nocebo" é um
poder paralisante tão perigoso que pode matar, como nos casos clássicos do vodu. O
efeito placebo (ou nocebo) mostra que a psicologia afeta a biologia.
Até o valor do envolvimento desinteressado na comunidade já foi investigado.
Allan Luks desenvolveu uma pesquisa com centenas de voluntários para documentar
o poder curativo de fazer o bem. Ele descobriu que os "auxiliadores voluntários e
assíduos vivem melhor. Os entrevistados, descrevendo seu estado, indicaram um
aumento de energia, sensação de euforia e, a longo prazo, calma e relaxamento 17 Q
amor, junto com o bom humor, é o melhor remédio.
140 O FASCINIO DOS MILAGRES

Esses dados, entre muitos outros, além de confirmar teoricamente a natureza


holística do ser humano, indicam que nem sempre a solução para as doenças está nos
remédios. De fato, calcula-se que 60 a 90% das consultas aos médicos tenham a ver
com estresse e pressões mentais. Cada pessoa fica doente de um jeito único, porque
ela é única, singular. Portanto, qualquer iniciativa na área da saúde deveria levar em
conta os fatores espirituais e psicossomáticos.

A BUSCA DA EXCELÊNCIA MÉDICA

Ellen White condenou fortemente o uso irracional de drogas potentes. Na


verdade, chegou a escrever que mais mortes têm sido causadas pelo uso de "drogas"
(ou medicamentos) do que todas as outras "causas combinadas" e que "multidões" de
médicos e de medicamentos têm sido uma maldição para os habitantes da Terra. As
drogas "matam centenas enquanto trazem benefícios a um só" . 18 Ao mesmo tempo,
deu ênfase à medicina narural. Para ela, é a natureza que cura, e não a droga. O que
a autora, realmente, queria dizer? Qual a diferença entre "drogas" (medicamentos)
e "remédios simples", no contexto do século 19? Será que toda e qualquer terapia à
base de ervas teria o seu endosso?
Para começai, Ellen Whire certamente piotestaria contra o uso indiscriminado de
plantas medicinais e as terapias alternativas baseadas em filosofias místicas e espiritualistas.
É sabido que, nessa área, a charlatanice facilmente floresce. Excelência, ao lado de raciona-
lidade, bom senso e equilíbrio, é a palavra que melhor define a medicina preconizada por
ela. A medicina só poderá proteger a saúde das pessoas e a espiritualidade cristã se seguir
critérios lógicos e testados. Para entender melhor a posição da autora, é preciso analisar a
relação entre terapias naturais e medicina científica (ou natureza X laboratório).
Embora o uso de plantas medicinais venha aumentando sensivelmente no Brasil
e em outros países nos últimos anos, os produtos fitoterápicos obviamente não são urna
novidade do início do século 21. O Papiro Ebers, datado de 1500 a.C., menciona o uso
de ervas com propósitos medicinais. John Parkinson, herbalista inglês, documentou
3.800 plantas medicinais em seu monumental Theatrum Botanicum, escuto em 1640.
Durante mais de 1.700 anos, o livro-texto básico dos médicos ocidentais foi uma obra
que descrevia cerca de 600 remédios da natureza, com ênfase nas plantas medicinais: a
De Materia Medica Ltbri Quinque, ou simplesmente "o Dioscórides". Escrito no primeiro
século d.C. pelo médico e botânico grego Pedacius Dioscórides, a obra foi sendo ampliada
poi seus discípulos até alcançar seis volumes. Sua difusão só teria sido superada pela da
Bíblia. A medicina chinesa tradicional, apoiada em mais 2.200 anos de conhecimento e
muitas superstições, ainda usa cerca de 7 .300 espécies de plantas.
Foi a partir do século 18, com o progresso da ciência e o surgimento da farmacologia,
que os médicos passaram a substituir as receitas à base de plantas por medicamentos quí-
micos . Contribuiu para isso a sintetização de várias substâncias medicinais. Por exemplo,
A Visão Adventista da Cura 141

em 1803, o jovem farmacêutico alemão Sernimer isolou um alcalóide a partir do ópio da


dormideira, chamando-o de morfina, em homenagem a Morfeu, deus grego do sono.
Em meados do século 19, o também alemão Hoffmann tirou a aspirina da casca do
salgueiro. E, em 1920, os franceses Pelletier e Caventou isolaram a quinina (da árvore
da quina). Mais potentes (puros), mais fáceis de dosar e mais cômodos para usar, era
natural que esses medicamentos despertassem o entusiasmo da classe médica
No entanto, as drogas não resolveram todos os males da humanidade, e, nos últimos
anos, a medicina volta a utilizar cada vez mais as plantas curativas. Nas décadas de 1970
e 1980, a própria Organização Mundial da Saúde incentivou o emprego de terapias
tradicionais, criando um serviço especializado na Secretaria da sua sede em Genebra
Atualmente, cerca de 25% dos medicamentos contêm alguma substância derivada dos
vegetais. A idéia básica é que, antes de tudo, não se deve fazer dano.
Como foi mencionado, Ellen White condenou fortemente o uso de drogas
(medicamentos sintéticos). Isso pode suscitar a pergunta: "Ela aprovaria a medicina
científica atual?" Para elaborar uma resposta, deve-se levar em conta duas coisas: (1)
o contexto em que ela viveu e (2) seu pensamento geral sobre medicamentos.
Qual era o seu contexto? A medicina da época (século 19) era altamente agressiva
e ineficaz. Para colocar a questão de forma mais clara, a medicina era quase assassina.
Num estudo recente sobre o assunto, o Dr. Mervyn Harclinge, doutor em medicina,
em farmacologia e em nutrição, mostra que o treinamento médico no século 19 era
incrivelmente precário. "A educação médica era, na maior parte, uma questão de
empreendimento particular. Vários médicos vivendo na mesma localidade uniam-se
para prover instrução médica"i 9 Ellen White repetidamente incentivou os médicos
e enfermeiras da igreja a buscar um preparo da mais alta qualidade.
Ao contrário de hoje, quando há critérios científicos e controle legal mais ou menos
rígido no uso de medicamentos (sem eliminar, no entanto, os Malogros médicos), na época
havia poucas drogas testadas, e os conhecimentos eram fragmentários Não havia controle
qualitativo e quantitativo da eficácia das drogas. Alguns remédios" daquele tempo são
considerados venenos hoje: arsênico, estricnina (nox vomica), ópio, heroína, antimônio,
mercúrio. O pior é que potentes venenos eram combinados em um só "remédio". A
poderosa Food & Drug Admirústration (FDA), órgão fiscalizador dos assuntos de
saúde e alimentação nos Estados Unidos, só foi criada em 1927.
Um dos recursos médicos mais utilizados era a famosa sangria, que, em dezembro
de 1799, levou à morte George Washington. O general tinha se exposto a uma chuva
fria e aparentemente pegou faringite e laringite. Os médicos o trataram com quatro
sangrias, retirando cerca de 2,6 litros de sangue, o equivalente a mais ou menos 40%
do seu sangue total (7 litros). Além disso, entre outras coisas, aplicaram-lhe repetidas
doses de antimônio para provocar vômito e o submeteram a "vapores de vinagre". O
tratamento era suficiente para matar até um general — e matou! Foi um assassinato
bem-intencionado, em nome da melhor medicina da época.
142 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

A medicina oficial era ruim porque desconhecia fatos fundamentais. Embo-


ra muitos movimentos de temperança estivessem surgindo nos Estados Unidos
e na Europa na primeira metade do século 19, a ignorância sobre princípios de
saúde e tratamentos de doenças era a regra. Lembremos que foi só no Final da
década de 1840 que o húngaro Ignaz Philipp Sernmelweiss (1818-1865) con-
cluiu que a febre puerperal, o terror das vienenses, era causada por «partículas
putrefatas" (que, na verdade, como Pasteur descobriria 17 anos depois, eram
micróbios); que foi em 1876 que Robert Koch (1843-1910) associou os germes
a determinada doença; que foi em 1879 que Armauer Hanser (1841-1915) des-
cobriu o bacilo da lepra; que foi em 1880 que Karl Joseph Eberth (1835-1926)
descobriu o bacilo do rifo; e que foi em 1882 que Koch descobriu o micróbio
causador da tuberculose.
Além disso, as ferramentas médicas eram rudimentares. Foi em 1870 que Thomas
Mlbutt projetou o termômetro clínico. O chamado estestocópio duplo só apareceu no
início do século 20. Os exames de laboratório, como conhecemos hoje, não existiam
nem em sonho. O diagnóstico era feito a partir dos sintomas e do "achômetro".
E qual era a opinião geral de Ellen White sobre medicamentos? Em resumo, ela
fazia uma diferença entre "drogas" (medicamentos pesados, compostos venenosos,
típicos da época), "remédios simples" (uma erva ou remédio extraído de uma erva,
algo pouco agressivo) e "remédios naturais" (os oito princípios de vida já men-
cionados, ou seja, ar puro, luz solar, temperança, repouso, exercício, alimentação
apropriada, água e confiança no poder divino).
Ela aconselhava o uso de medicamentos naturais, mas dentro da racionalidade
científica Defendia o uso de métodos racionais de terapia, com tratamento baseado na
compreensão do funcionamento do corpo humano. Ao mesmo tempo, excluiu formas ir-
racionais de terapia, condenou o uso do hipnotismo e atacou teorias científicas espúrias.
Adepta da coerência e do bom senso (seus livros estão cravejados de expressões
contrastantes, como "meio-termo", "fanatismo" e "perigo"), ela não condenava um
medicamento ou terapia simplesmente por condenar; devia haver uma razão médica ou
filosófica/espiritual para isso. Pragmática, como iria desprezar o uso da quimioterapia,
por exemplo, se esse tratamento pode ajudar a destruir um câncer? Ou o uso de anestesias
e vacinas? O radicalismo, por certo, não era o estilo de Ellen White.
Assim, parece correto concluir que provavelmente Ellen White apoiaria em
boa parte a medicina científica atual, sem retirar sua conhecida ênfase no estilo de
vida saudável e na importância dos remédios naturais. Uma forma de conciliai suas
afirmações sobre drogas e remédios naturais, quando não estão envolvidas questões
filos6ficas/espirituais, é usar o critério da eficácia. Se o medicamento sintético é mais
eficaz para determinada doença, deve ser usado; se o medicamento natural resolve,
então ele é preferível, por gerar menos efeitos colaterais. Em qualquer caso, os me-
dicamentos devem passar nos testes científicos da mensurabilidade, previsibilidade
A Visão Adventista do Curo 1 43

e reprodutividade. Esses três ciitérios, utilizados pela ciência para testar os méritos
de qualquer pesquisa, já estão sendo usados nos Estados Unidos para separar o joio
do trigo nos tratamentos não-convencionais. O quadro 8 contrasta as vantagens e
desvantagens dos dois tipos de medicamentos.
O Dr. Hardinge sintetiza em poucas sentenças seu estudo sobre o que Ellen White
ensinava e praticava quanto a terapias e medicamentos: (1) hábitos não saudáveis de vida
devem ser vencidos prontamente; (2) drogas fortes e venenosas devem ser usadas
raramente; (3) os medicamentos menos nocivos no uso comum devem ser usados com
moderação; (4) os remédios mais simples podem ser empregados livremente; (5) os
remédios naturais devem ser praticados perseverantemente; e (6) a confiança no poder
divino deve ser buscada incessantemente?'
Enquanto a medicina do século 19 tratava o paciente com desrespeito, diagnos-
ticava na base do palpite e usava uma terapia para aliviar os sintomas, Ellen White
defendia uma medicina que tratasse o paciente com respeito (por ser criação de Deus),
diagnosticasse "da causa para o efeito" e que empregasse uma terapia para mudar o
estilo de vida. Hoje, a medicina trata o paciente com respeito, tem um arsenal tec-
nológico formidável para diagnosticar com precisão e visa curar a doença. As coisas,
portanto, melhoraram. Mas ainda falta o foco na mudança do estilo de vida, que é
apenas acidental. Essa é urna tarefa dos médicos adventistas.

Medicamentos Químicos Plantas Medicinais

Absorção Limitada, em caso de substâncias Facilitada, por se tratar de moléculas orgânicas


químicas inorgânicos ou minerais. (ou seja, que já fazem parte de um organismo
vivo, a planta).
Dose de princípio Conhecida com exatidão. Apresenta diferenças conforme 'a variedade,
ativo terreno e época de colheita, o que pode dificultar
o tratamento com plantas muito ativas ou tóxicas.
Ação terapêuticT Depende de uma substância Depende da combinação de tridas as substâncias
quimicamente pura. • ativas da planta, que se reforçam ou equilibram;
o conjunto da planta é mais ativo do que seus
componentes separados.
Rapidez de ação Maior que as das plantas, mas com risco de Ação mais lenta, porém mais resistente, sem o
aparecer um efeito de "ricochete", ou de efeito de "ricochete" nem resistências.
resistência a longo prazo. _.

Efeitos Podem ser importantes, e não completamente Em relação à maioria das plantas, não existem
secundários e
tóxicos conhecidos até que tenham sido usados ou são pouco importantes, devido à baixa
durante vários anos; pode haver reações concentração dos princípios ativos.
alérgicas perigosas.
Risco de criar É maior quanto mais purificada for a A planta em estado natural, mesmo no caso das
dependência substância ativa. Por exemplo, a morfina estupefacientes, é menos perigosa do que o
(princípio ativo isolado) é muito mais princípio ativo purificado. As plantas sedativas
perigosa do que o ópio (substância natural), suaves não criam dependência, ao contrário dos
e a heroína (derivado químico da morfina) é tranqüilizantes químicos.
ainda mais tóxica e viciante.
Quadro 8: Plantas medicinais x medicamentos sintéticos'
144 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

COMO AVALIAR AS TERAPIAS ALTERNATIVAS

Richard Gordon escreveu: "Alternativa' é a palavra da moda para fazer


parecer importante o que não tem nenhum significado. Ela serve para enfeitar
um misto de misticismo medieval, bobagem hei balista, lixo dietético, brinquedos
elétricos, superstição, sugestão, ignorância e pura fraude "22
Apesar da frase irônica (e parcialmente correta) de Gordon, adepto da me-
dicina científica e dos remédios bioquímicos, parece que está ficando no passado
o tempo em que a palavra "alternativa" despertava preconceitos e era sinônimo
de exotismo, excentricidade e charlatanice. Várias terapias não-convencionais
consideradas "alternativas", como acupuntura, aromaterapia, homeopatia, hi-
droterapia, cromoterapia, quiropatia, massoterapia, iriclologia e magnetoterapia,
vêm conquistando cada vez mais adeptos, tanto entre os pacientes quanto entre
a classe médica, no Brasil e no exterior. Dados recentes indicam que 20% dos
cerca de 310 mil médicos brasileiros empregam acupuntura e homeopatia, e 75%
da população do país já recorreram pelo menos uma vez à homeopatia. O sucesso
dessas terapias deve-se a uma combinação de fatores, incluindo menos efeitos
colaterais, preço mais baixo e maior sensação de conforto e atenção.
. .
O quadro 9, na página seguinte, traz uma amostra da variedade de terapias alternati-
vas, classificadas por áreas. Eu não apresento uma descrição mais detalhada da origem, da
filosofia e do método de cada terapia por causa do espaço e porque esses dados podem ser
encontrados facilmente em obras específicas sobre o assunto. O interesse aqui é ressaltar
os princípios e as implicações para que o próprio leitor faça a sua avaliação.
Ellen White valorizava as terapias naturais, mas, seguramente, ela não endossaria
o "falso natural", ou terapias baseadas em filosofia não-cristã. Isso é evidenciado pelo
fato de ter condenado fortemente o magnetismo animal do médico alemão Franz Anton
Mesmer (1734-1815), retomado mais tarde na forma de hipnotismo, como a ciência
de Satanás?' As terapias alternativas defendidas pelos adeptos da Nova Era, em es-
pecial, mereceriam a sua reprovação. Embora a Nova Era também adote o holismo,
há diferenças conceituais fundamentais entre os dois "holisrnos": um (o de White)
é baseado na cosmovisão teísta bíblica e segue a racionalidade científica, enquanto o
outro (o da Nova Era) apóia-se em cosmovisões espiritualistas não-bíblicas, como o
monismo e o panteísmo, e é especulativa
Alguns autores cristãos, incluindo médicos, têm questionado duramente o
holismo de saúde da Nova Era exatamente nessas duas frentes: eficácia duvidosa e,
principalmente, cosmovisão mística -. Ankerberg e Weldon escrevem:

Quando a Nova Medicina afirma "funcionar", nenhuma das razões caracteristicamente


citadas pelos seus patrocinadores causa o seu funcionamento. As coisas podem funcionar
e ser mesmo assim perigosas, como acontece com os carros-bombas. As coisas podem
furícionar e continuar sendo erradas e perigosas, tais como as práticas que se apóiam nos me-
A Visão Adventista do Curo 1 45

todos ocultistas. Finalmente, as coisas podem sei falsas e somente aparentar que funcionam
Inúmeros tratamentos holísticos parecem a princípio dar certo com base em seus princípios
declarados, mas na realidade funcionam apenas por razões ligadas à psicologia humana (o
efeito placebo) ou ao elemento tempo (capacidade natural de cura do corpo)?
--
Estilo de Vida Botânica Manipulação/Massagem Mente sobre o Espírito

Macrobiótica: dieta Aromaterapia: uso de Reflexologia: manipulação Colorterapia: brilho de


baseada no equilíbrio Óleos essenciais de de área nos pés para afetar luzes coloridas no corpo
entre yin (energia plantas e flores o corpo inteiro para alterar suas "vibrações"
passiva) e yang massageados na pele ou ou aura
(energia ativa) • inalados Rolfing: massagem
profunda e às vezes Cura pelos Cristais: terapia
Medicina Yurvédica: Herbalismo: uso de dolorida para realinhar o da Nova Era visando extrair
sistema indiano de 4 poções derivadas de corpo energia curadora de quartzo
mil anos cm que a plantas para tratar é outros minerais
dieta e terapia doenças e promover a Shiatsu: massagem
dependem do saúde terapêutica japonesa Bionergética: troca de
tipo do corpo usando pontos depressão "energia" entre o paciente e
Homeopatia: o terapeuta
Medicina Holística: tratamento de doenças , Quiroprática:
sistema que enfatiza o com minúsculas doses manipulação da espinha Imaginação Controlada: ,
estilo de vida e os de substâncias naturais para aliviar dor nas costas terapia em que os pacientes
fatores psicológicos, que, em grande e outros problemas são encorajados a visualizar
,
tratando a pessoa quantidade, causariam seu proprio sistema
, .
completa os mesmos sintomas que A cupressura: uso dos imunologico combatendo a
dedos cm vez de agulhas doença
o mal •
em uma técnica similar à
acupuntura Hipnoterapia: sugestão
terapêutica a pacientes em
Acupuntura: um método transe semiconsciente para
chinês de 2 mil anos para, aliviar a dor ou apressar a
aliviar a dor e manter a cura
saúde, no qual finas
agulhas são inseridas em Biofeedback: uso de
pontos específicos que se máquinas para ensinar as
relacionam com diferentes pessoas a controlar funções
, .
partes do corpo involuntárias, como tensão
maxilar e batidas cardíacas

Quadro 9: Variedades de terapias alternativas (as terapias na base da lista tem um


pouco mais de credibilidade aos olhos dos cientistas do que as que estão no altar

O método terapêutico não deve ser adotado apenas com base no resultado,
porque coisas funcionais podem ter fontes malignas. De fato, o Dr. Warren Peters,
da Universidade de Lorna Linda, acredita que o movimento médico chamado 'saúde
holística' é parte do plano-mestre de Satanás para capturar pessoas despercebidas,
embora bem-intencionadas". Para ele, a atual onda de interesse na saúde holística é
a repetição de um padrão histórico, só que com uma nova roupagem: declínio reli-
gioso, desenvolvimento do materialismo (alimentado pela ciência), desilusão com as
promessas do materialismo e da ciência, busca de respostas na espiritualidade.26
146 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

Se o padrão de Peters estiver correto, o florescente interesse espiritual do Ocidente


é uma reação ao materialismo do século 20. Seria uma tentativa de achar respostas para
as perguntas sobre a origem e o destino do ser humano. Evidentemente, as respostas
a esse tipo de pergunta só podem ser dadas pela religião. Uma opção é buscá-las na
fonte revelada, a Bíblia. Outra é reciclar antigas crenças, principalmente aquelas de
caráter esotérico ou ocultista que permitem livre reinterpretação, e dar-lhes um toque
aparentemente científico. A última estratégia é perigosa porque trabalha idéias sincréti-
cas, misturando premissas falsas e verdadeiras. Não há um rigor lógico e conseqüente,
nem consistência no uso da fonte sagrada cristã:, a Bíblia.
Mas, na prática, como saber quais terapias e medicamentos são aceitáveis e quais
são questionáveis? Manuel Vasquez analisou essa questão e concluiu que as terapias
baseadas em cosmovisões místicas e espiritualistas oferecem riscos para a saúde e a vida
espiritual dos cristãos. Ele propõe 11 critérios para identificar e avaliar tais terapias:

1. Tem [a terapia] uma cosmovisão teísta bíblica? Se a terapia (ou remédio) é derivada
da medicina tradicional chinesa ou da medicina ayurvédica, ou tem qualquer coisa
a ver com as chamadas "energias universais", como Chi, Qi, Ki (Yin e Yang), prana,
mana, etc., esteja seguro de que essas terapias e remédios não são baseados numa
cosmovisão teística bíblica. -
2. Aplique a filosofia adventista de saúde à terapia ou remédio. O praticante considera
a si mesmo um co-obreiro com o Grande Médico, Jesus Cristo?
3. As terapias funcionam de acordo com as funções anatômicas e fisiológicas do
corpo humano?
4. Um estado alterado de consciência e meditação do ripo introspectivo (como medi-
tação oriental, yoga ou meditação transcendental) são parte da terapia? É a imaginação
ou visualização uma parte da terapia?
5. Os praticantes têm credibilidade? [...] Estão eles envolvidos em parapsicologia
ou astrologia?
6. Eles atuam fora de um centro de bem-estar holístico da Nova Era? [...]
7. Que outras terapias são oferecidas e praticadas pelo profissional? [...I
8. Ervas deveriam ser utilizadas com suficiente compreensão de seu valor medicinal,
' de forma moderada e quando possível, emseu estado natural. [...]
9. Qualquer terapia que tenha a ver com "adivinhação", seja [—I uso do pêndulo ou
cinesiologia aplicada, é veementemente condenada na Bíblia (Dt 18:9-14).
10. Qualquer terapia que tenha a ver com [poder] psíquico, vidência ou leitura de
sorte, como quiromancia [...1 ou leitura de sinais astrológicos, é condenada na Bíblia
(Dt 189-14).
11. As terapias de massagem da Nova Era, com exceção do shiatsu (que é baseado
nos pontos da acupuntura), usam a técnica "centrífuga", que alegam mover a energia
vital do centro do corpo para as extremidades e algumas vezes para fora do corpo. As
A Visão Adventista da Cura 147

formas de massagem mais aceitáveis são aquelas que empregam a técnica "centrípeta",
que trabalha com o sistema circulatório no sentido de promover a boa circulação do
sangue das extremidades para o coração, onde é purificado e recirculaelo?

Esses critérios podem parecer radicais para alguns médicos, mas não deixam de
ser um referencial objetivo no que diz respeito à cosmovisão em que se baseiam essas
terapias. O cristão, médico ou não, deve evitar todo terreno onde Satanás possa ter
semeado a semente do mal. -

MINISTÉRIO DE ORAÇÃO

A Igreja Adventista é forte em medicina preventiva e curativa. Deveria ela também


investir num equilibrado (e discreto) ministério de oração para a cura? Penso que sim,
mas desenvolvendo o seu próprio modelo.
Os adventistas do final do século 19 valorizavam a cura divina por meio da
oração. Ellen 'White participou de orações por doentes, vendo-os sarar, e ela própria
recebeu curas especiais. Em 1854, por exemplo, um "célebre médico de Rochester"
diagnosticou-lhe um tumor na pálpebra esquerda .como câncer, mas disse que ela
morreria de apoplexia antes de o câncer matá-la. Foram feitas então orações em seu
favor. Pouco tempo depois, ela ficou curada de ambos os problemas. Quando visitou
o médico novamente, ele notou que havia ocorrido uma completa mudança e disse
que o caso era um mistério para ele. 28
Mas os casos de cura divina entre os adventistas, na segunda metade do século
19, não se restringiam a Ellen White. No verão de 1891, a cura divina havia ganhado a
adesão de alguns dos mais ilustres pregadores adventistas, como John N. Loughiçorough,
T. Jones e W. W. Prescott. Pode-se dizer que a Igreja Adventista era muito mais "ca-
rismática" do que atualmente, embora houvesse uma crítica oficial ao fanatismo. Havia
muitos paralelos entre os movimentos reavivamentalistas da época e a ênfase aclv-entista
pós-1888 sobre "santidade". Alguns adventistas chegaram até a aceitar a idéia pentecostal
de que, na cruz, Cristo proveu cura para todas as doenças, sendo a falta de fé a única
razão para alguém não ser curado. Embora Ellen White se opusesse a esses conceitos
extremos, a simples existência deles sugere um interesse no assunto da cura divina
Por que os a.dventistas, na prática, perderam o "entusiasmo" pela cura divina
através da oração? Vejo pelo menos cinco hipóteses:
1. Medo do fanatismo. Alguns curadores adventistas da década de 1890 eram
radicais, achando que a pessoa por quem oravam não devia recorrer a remédios.
Essa linha de procedimento logo gerou críticas. A crise chegou ao auge no dia
30 de setembro de 1891, quando John Hobbs, que havia sido declarado curado
durante um acampamento no Michigan, morreu no campas do Union College,
no Nebraska. O Dr. Harvey Kellogg, diretor do Sanatório de Battle Creek, era o
maior crítico do "zelo fanático" dos curadores. Ellen White, que se encontrava na
148 (.) FASCÍNIO DOS MILAGRES

Austrália, também era contra a oração incondicional, e a favor dos recursos médicos
combinados com a oração de fé. Essas experiências parecem ter ajudado a esfriar o
entusiasmo pentecostal adventista.
2. Fuga das contrafações. Elien White escreveu:
,
A maneira por que Cristo trabalhava era pregar a Palavra, e aliviar o sofrimento p or
obras miraculosas de cura. Estou, porém, instruída de que não podemos agora trabalhar
dessa maneira, pois Satanás exercera seu poder pela operação de milagres. Os servos
de Deus hoje não poderiam trabalhar mediante milagres, pois espúrias obras de cura,
pretendendo ser divina[s], serão operadas. 29

Por sua relevância, essa declaração clássica também pode ter ajudado a definir
a postura adventista quanto à cura divina. O mesmo talvez pode ser dito dos textos
bíblicos advertindo contra os falsos profetas. Porém, será que uma superênfase no
discernimento não tem gerado a negligência da busca do genuíno poder miraculoso
em nosso meio? O temor do que o diabo pode fazer não deveria condicionar a maneira
de ver o que Deus quer e pode fazer.
3. Ênfase no dever de fizer a nossa parte. A Enciclopédia Adventista esclarece que
os adventistas crêem que a promessa de Tiago 5:14 e 15 (sobre cura divina) continua
válida e que curas milagrosas ainda acoptecem, mas ressalva que eles "crêem também
no princípio conhecido como 'a economia do milagre' -- que, pelo menos sob circuns-
tancias comuns, Deus não emprega meios sobrenaturais para efetuar o que o próprio
homem pode conseguir por meios naturais sob seu comando» 3()
David Larson vê inclusive, alguns "perigos morais" nos milagres. Segundo ele,
os milagres podem, entre outras coisas: (1) incentivar-nos a evitar a responsabilidade
pessoal; (2) viciar-nos no exótico e no espetacular; (3) frustar a busca de maior conhe-
cimento; (4) levar a explorar os vulneráveis; (5) distrair-nos das muitas maneiras pelas
quais Deus nos agracia a cada momento; (6) tolher a liberdade pessoal; (7) transformar
a oração numa experiência pontual. 31
Essa posição parece incontestável, mas, levada a extremos, pode relegar a busca do
milagre a segundo plano. Em parte, isso pode ter acontecido na Igreja Adventista.
4. Sucesso do sistema adventista de saúde. Os adventistas se tornaram conhecidos,
em grande parte, graças a suas iniciativas na área de saúde/temperança. Os escritos de
Ellen White, o Sanatório de Battle Creek (cujo paciente de n° 100 mil foi o ex-presi-
dente americano William Howard Taft), a fama de cirurgião habilíssimo do Dr. John
Harvey Kellogg, as dezenas de hospitais e clínicas ao redor do mundo, a revista Vida
e Saúde e suas congêneres, o Plano para Deixar de Fumar em Cinco Dias (criado em
1959), o filme Um em 20.000 (visto por um público estimado em mais de 75 milhões),
as fábricas de alimentos naturais, a Universidade de Lorna Linda e o seu legado. Tudo
isso fala de uma história de sucesso na área de saúde, contribuindo para conquistar a
liderança adventista e diminuir, na prática, o espaço da cura divina pela oração.
A Visão Adventisto da Curo 149

5. Intelectualização da fé. A Igreja Adventista é altamente comprometida com o


conceito de "verdade". Os pioneiros adventistas não receberam suas doutrinas básicas
como um pacote fechado do cristianismo. Eles as elaboraram através de estudo. De suas
pesquisas, eles se aproximaram do corpo cristão tradicional (católicos e protestantes) em
alguns pontos, como as doutrinas da Trindade e da divindade de Jesus, e se distanciaram
em outros, como as doutrinas do sábado e da imortalidade condicional. Porém, nesse
processo de constante refinamento doutrinário-teológico, podemos ter negligenciado
o aspecto experimental, incluindo a questão da cura divina. Em certo sentido, a Igreja
Adventista pode ter se tornado doutrinária/teológica demais, no sentido de falar do
Deus vivo num plano abstrato e teórico. Ora, teologia e experiência, doutrina e rela-
cionamento, verdade e amor, fé e oração, cura científica e cura espiritual, entre outros
elementos, podem estar em tensão, mas não são mutuamente éxclusivos.
Os hospitais cristãos em geral e os adventistas em particular têm um potencial evan-
gelístiw muito grande, até porque não podemos estabelecer uma linha divisória rígida entre
cura física e espiritual. Mas a legitimidade e o sucesso da obra médica, assim como eventuais
problemas com o radicalismo no ministério de cura pela fé, não podem anular urna prática
claramente endossada pela Bíblia e por Ellen White. Não existe incompatibilidade entre
curar com os recursos da ciência e da natureza e curar com os recursos da fé.
À luz desses fatos, será que a Igreja Adventista não deveria desenvolver uma
teologia da cura divina e, mais que isso, estruturar, de forma efetiva e consistente,
um ministério de oração para a cura? Jon Dybdahl, especialista em missões, vê quatro
razões para isso razões com as quais concordo . 32
1. Razão histórica. Os primeiros adventistas tinham uma grande afinidade
com o tema da cura divina. Há também o paradigma da igreja apostólica, carac-
terizado por sinais e prodígios.
2. Razão teológica. Primeiro, os adventistas aceitam a continuidade dos dons
espirituais; e na lista de I Coríntios 12 está incluído o dom de curar. Segundo, crêem
que o ser humano é indivisível, e a pessoa inteira precisa ser tratada.
3. Razão pastoral Parece claro que o modelo de medicina predominante no
mundo não tem atendido às profundas . necessidades das pessoas. É preciso um minis -
tério de cura que vá além do "somatisrno" e do "holisrno místico". Vale lembrar que o
Guia Para Ministrosprevê a unção dos doentes para a cura e que a maioria das pessoas
espera que se ore por sua saúde. Calcula-se que 70 a 90% dos pedidos de oração nas
igrejas têm a ver com saúde/doença.
4. Razão missiológica/evangellstica. O trabalho da igreja apostólica era acompa-
nhado de "sinais e maravilhas". As evidências indicam que, onde há curas espirituais,
o interesse do povo é despertado para o evangelho. As portas se abrem.
Dybdahl discute sete falsas ênfases que têm prejudicado o desenvolvimento de
um ministério de cura no adventismo e propõe alternativas. Uma síntese de sua análise
pode ser vista no quadro 10, na página seguinte.
1 50 O FASCfNie DOS MILAGRLS

Ao formular ou reformular seu ministério de oração para a cura, a Igreja Ad-


ventista deveria criar o seu próprio modelo. No entanto, é recomendável observar os
diversos modelos existentes. Vejamos três deles, sem julgar os méritos ou vulnerabili-
dades dos modelos em si, ou do ministério de seus proponentes (na minha dissertação,
menciono outros dois modelos).

Falsos Conceitos Conceitos Verdadeiros


Modelo Monocausal Modelo Multicausal
Idéia de que na área da cura tudo tem apenas Compreensão de que o ser humano é tão
uma causa, como vírus ou bactérias, e uma solução. complexo que diferentes causas e fatores
podem operar ao mesmo tempo.

Cariszaafobta Carismafinidade
Medo de parecer com os carismáticos, uma vez Reconhecimento honesto de que a teologia
que usam extensamente a oração para a cura. adventista tem vários pontos em comum
com a teologia pentecostal.

Ênfase no Modelo Ênfase tio Motivo


A abordagem do assunto da cura é feita a partir dos Se o motivo é válido (ou seja, ajudar e curar as
modelos existentes — e nem sempre legítimos. pessoas), então é preciso desenvolver
modelos aceitáveis.

Superênfase na Fé Ênfase no Amor


Alguns têm enfatizado demais o papel A oração pelos doentes deveria ocorrer num
da fé e do poder individual na cura. contexto de obediência por causa do amor que os
membros da comunidade têm uns pelos outros.

Cativeiro Cultural Receptividade Bíblica


Muitos são prisioneiros da cosmovisào A cosmovisão bíblica admite uma atuação
naturalista que domina a cultura ocidental. dinâmica de Deus em favor das pessoas.

Defesa da Verdade Ofensiva na Missão


A ênfase do adventismo tem sido na proteção das A verdade deve continuar a ser defendida,
doutrinas bíblicas, o que é bom, mas não exclui a mas é preciso ampliar a ênfase na missão,
cura. Os adventistas têm algumas doutrinas dando uma chance para a mente secular ver
peculiares e, por isso, tendem a ser super-racionais que Deus está vivo.
e a não se identificar com os grupos "emocionais".

Pessoal Princípio
Muitas pessoas observam demais a integridade da O principio bíblico é que a oração em nome de
pessoa por quem vão orar se estão fazendo Jesus tem algum efeito; não precisamos aceitar
isso ou aquilo. a teologia de uma pessoa ou concordar com a sua
ética para orar por ela.

Quadro 10: Falsas ênfases e propostas de renovação do ministério de


oração para a cura na Igreja Adventista"
A Visão Adventisto da Cura 1 51

Modelo de Foster. O modelo de Richard Foster, autor quacre respeitado no meio


evangélico por seus livros sobre espiritualidade e oração, inclui quatro passos:
Passo 1: Ouvir "Este é o passo do discernimento. Ouvimos as pessoas, e ou-
vimos á Deus:"
Passo 2: Pedir "Este é o passo da fé À medida que se vai esclarecendo o que é
necessário, convidamos a cura de Deus a vir. Falamos uma declaração definitiva, direta
do que vai sèr. Não fraquejamos ou pedimos com se, e, ou mas."
Passo 3 Acreditar. "Este é o passo da convicção. Acreditamos de todo o ser corpo,
mente e espírito." A convicção é baseada na "fidelidade de Deus".
Passo 4: Agradecer. "Este é o passo da gratidão. [...1 A gratidão em si mesma
freqüentemente é muito poderosa."'
Foster; para qüêm a "Oração de Cura faz parte da vida cristã normal", não de-
vendo sei- stipervalorizada, tampouco subvalorizada, aconselha ainda: (1) procurar os
recursos da oração e os da medicina ao mesmo tempo; (2) começar a orar pelos casos
mais fáceis ; até descobrir os caminhos da oração de cura, pois o princípio da progressão
se aplica a todas as áreas da vida; (3) orar em equipe; (4) sempre mostrar compaixão;
(5) usar à imposição das mãos, para canalizar o fluxo da vida celestial; (6) em caso de
insucesso, aunei]: dizer ao doente que a culpa é dele, por falta de fé ou pecado."
Modelo de Stanger. Frank B. Stanger, pastor metodista que desenvolveu seu
36
ministério de cura nos Estados Unidos, sugere seis passos para a cura Seu foco aqui
é o doente, e hão o agente da cura, mas certamente ambos (paciente e taumaturgo)
estão unidos tio processo.
Passo I: Pelakamento. A pessoa deve se posicionar em estado de calma e sereni-
dade, sem telisão, diante de Deus.
Passo 2: Purificação. O subconsciente deve ser purificado de todos os estados
pecaminosos e emoções negativas
Passo 3: Clarificação. A natureza exata do mal/doença deve ser identificada.
Passo 4: Consagração. O doente deve ter uma atitude de completa entrega a Deus
Passo 5: Antecipação. Deve haver uma atitude de ardente expectativa e fé ativa.
Passo 6: Apropriação. Como clímax do processo, a pessoa que está buscando a cura
começa a agir na força do poder restaurador recebido de Deus e expressa sua gratidão.
Modelo de Kiesler. Herbert Kiesler escreveu um artigo sobre a unção para o
Instituto de Pesquisas Bíblicas, da Associação Geral, analisando o que seria a posição
do escritor bíblico Tiago e a de Ellen White sobre o assunto. Kiesler concluiu que a
unção deve ser conduzida em favor dos 'crentes que são movidos pelo Espírito Santo
a pedir o serviço, num ambiente privativo (não elb grandes reuniões públicas), e sem
transformar a cerimônia num exercício rotineiro (pois trata-se de um rito sagrado).
Ele sugere quatro procedimentos para os pastores, evangelistas e anciãos: 37
Passo I: Encontro. Os anciãos se reúnem na casa da pessoa doente ou ao lado de
seu leito no hospital.
152 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Passo 2: Leitura. Após uma palavra de saudação, um dos anciãos deve ler a pas
sagem de Tiago 5:13-18.
Passo 3: Indagação. Um dos anciãos, de maneira breve e gentil, pergunta se c
doente entende o significado da passagem, a natureza da doença e se ele acertou as
coisas com Deus e seus semelhantes, incluindo confissão e reconciliação. Ele devet ia
ser indagado se sente que o Espírito Santo está dirigindo o serviço e se crê que a
vontade de Deus deve prevalecer.
Passo 4: Unção e oração. O doente é então ungido com óleo, enquanto os anciãos
impõem as mãos sobre ele e um dos anciãos ora.
Qualquer que seja o modelo 'adotado ou criado, os seguintes pontos parecem
importantes na oração de cura:
1. Sempre demonstrar compaixão, amor e aceitação. A compaixão fazia parte
das curas de Jesus (ver Mc 1:41).
2. Procurar discernir claramente qual é a natureza do problema. Diferentes tipos
de doenças (espirituais, emocionais, físicas) exigem diferentes tipos de oração.
3. Incentivar a pessoa a confessar seus erros a Deus e, se for o caso, à igreja.
"Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes
curados", aconselha Tiago (5:16). A confissão, acompanhada do perdão, pode ser uma
experiência sanaclora, assim como as más relações podem gerar conflitos e doenças.
Ninguém, contudo, deveria ser exposto de forma humilhante.
4. Ressaltar o amor e a disposição de Deus para perdoar te curar. Isso pode ser
feito mediante a leitura de textos bíblicos relacionados com a cura (Êx 1 5:26; Is 53:4
e 5; SI 1033; Tg 5:14 e 15).
5. Orar em equipe (Tiago menciona os "presbíteros", no plural), num ambiente
agradável. O momento emocional pode ajudar a fortalecer a fé do doente.
6. Orar com calma e profunda confiança, sem emocionalismo ou palavras má-
gicas. Não é o barulho que cura, mas sim o poder divino.
7. Ungir com óleo e impor as mãos (Tg 5:14; Mc 16:18). O simbolismo destes
recursos bíblicos recomenda-os por si mesmo.
8. Não impor condições ou tentar chantagear Deus. A fé madura permite que
Deus faça a Sua vontade. Isso não significa, porém, ficar frisando as condições da cura,
de modo que se tornem um obstáculo à fé.
9. Incentivar o uso paralelo de agentes naturais e medicamentos. Deus é também
o autor da natureza.
10. Sugerir mudanças nos hábitos errôneos, quando for o caso, mas sem trans-
formar o erro pessoal passado num obstáculo à cura. Jesus não fazia um interrogatório
ao doente antes de curá-lo.
11. Se ocorrer a cura, incentivar o testemunho e a gratidão pela bênção obtida; se não
ocorrer, manter a confiança e incentivar a continuidade na oração. Continuar a orar inde-
pendentemente dos resultados é uma expressão de confiança na bondade de Deus.
A Visão Adventista da Cura 153

12. Quando houver necessidade de exorcismo, exercer a autoridade em nome de


Cristo, mas sem um diálogo extensivo com os demônios e procurando expulsá-los todos
de uma só vez. A idéia de criar um "ministério de libertação" especializado em combater
o diabo pode ser perigosa e negativa, uma arma do próprio Satanás.
Há outros componentes do processo de cura que também merecem atenção.
Com base em alguns estudos e em suas observações, Stuart Bate identifica sete fatores
psicomédicos importantes 38
1. O status do terapeuta/taumaturgo. O prestígio e a competência do terapeuta,
ao lado de sua habilidade em manter uma poderosa persona diante do paciente, são
um componente psicológico essencial.
2. O relacionamento terapêutico. O "tratamento" será mais eficaz se houver uma
relação de confiança, em que o paciente exerça fé e o terapeuta demonstre amor.
3. O tipo de personalidade do paciente. Enquanto algumas pessoas se voltam para
seu próprio senso interior de equilíbrio, outras se abrem para fatores externos e aceitam
mais facilmente o método da cura pela fé.
4. A atitude do paciente. A cura é mais provável quando a pessoa cultiva a fé e o
pensamento positivo, tem uma postura expectante, vê vantagens em sarar e sente o
desejo de trocar a sua situação por um estado emocional mais positivo.
5. Expressão de emoções. A habilidade do paciente em expressar as emoções que
estão à raiz dos sintomas físicos influencia no processo terapêutico. Recursos como o
convite para ir ao altar e a unção com óleo podem ser dteis.
6. Experiências bem-sucedidas. Os relatos de casos bem-sucedidos suscitam emo-
ções positivas e sinalizam para o paciente que o processo de cura é efetivo.
7. Transferência psicológica. O terapeuta deve ajudar o paciente a transferir
para si, o terapeuta (ou, melhor ainda, para Deus), os relacionamentos frustrantes/
doentios do passado.
Além disso, Stuart Bate menciona (1) fatores culturais (é importante que o
terapeuta e o paciente partilhem a mesma moldura cultural; que o paciente entenda
o que se passa; que ele adquira um novo senso de propósito e significado para a
sua vida; que o terapeuta apresente símbolos e que o paciente se aproprie deles),
e (2) fatores sócio-econômicos (a cura é uma resposta a uma privação social; é
uma busca de estabilidade na instabilidade social; leva a um movimento para o
.interior
. em tempos de crise; é um processo de reconstrução pessoal e social, ou

re-humanização). 39
Embora Deus possa curar em condições adversas, o agente humano deve coope-
rar, pois, em condições adequadas, o paciente se abre mais facilmente à cura. Buscar
o poder do Espírito, a cada momento, é o caminho mais seguro para desenvolver
um abençoado ministério de oração pelos doentes. Devemos pedir o poder do
Espirito e, comprometidos, unidos e abertos à experiência, recebê-lo e usá-lo para
abençoar o mundo.
154 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

NOTAS
Don S. McMahon, Acquired or Inspired? Expl oring the Ori gins afilie Adventzst Lifestyle (Warburton,
Austrália: Signs, 2005). Ver também Leonard Brand e Dou S. McMahon, The Prophet and her Cri tia:
A Striking New Analysis Refletes the Charges that Ellen G'. White aBorrowed» the Health Message (Nampa,
1D: Pacific Press, 2005), 53-79. ,
Herbert E. Douglass, Mensageira do Sen8r (Tatuf, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001), 320.
3 Ibid., 336.

'George R Knight, Ellen White1Wórld (Hagféfftoven, MD: Review and Herald, 1998), 141-144.
Ellen G. Whitc, A Ciência do Bom Vitia-; 4. ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira,
1990), 113.
Ibid., 234.
' Ibid., 232.
Ibid., 127.
Uma das melhores análises desses estudos fcti feita pelo Dr. Gary E. Fraser, no livro Diet, Life
Expectancy, and Chronic Disease: Studies of Seventh-day Adirehtists and Other Vegetarians (Nova York:
dxford University Press, 2003).
Melvin Pollner, "Divine Relations, Social Relations, and Well-Being", Journal of Health and
Social Behávior 30 (1989): 92-104.
D. A. Marthews e Connie Clark, The Faith Factor: Proof of the Healing Power of Prayer (Nova
York: Penguin, 1998), 42-52.
12 Ibid., 52.

R Rene Descartes, Discurso do Mtitádo, em Descartes, Os Pensadores, 4' ed. (São Paulo: Nova
Cultural, 1987), 47, 46.
• ' 4 António R. Damásio, O Erro de DescaRtes, Fófum dá Ciência, 5' ed. (Mein Martins, Portugal:
Publicaçôes Europa-América, 1995), J.55, 14, 16, á.
15 Joseph LeDoux, O Cérebro Emocional Cajá de Janeiro: Objetiva, 1998), 37 e 38.

16 Nortnan Cousins, A Força Ctikadora tia Mente (São Paulo: Saraiva, 1993), 46.

12 Ver Allan Luks, The Healing Power of boing Good (Nova York:13allantine, 1993).

1"Ellen G. White, Mensagens EscolhidaS,5d ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2001[CD-
Rom]), 2:450,454.
' 9 Mervyn G. Hardinge, A Physician Explams Ellen WItite's Counsel on Drugs, Herbs, & Natural
Rernedies (Hagerstowii, MD: Review and Herald, 2001), 21.
2"Ibid., 196, itálico no original.
"Adaptado de Jorge D. Pamplona Roger, Enciclopedia de las Plantas Medicina/es (Madri: Editorial
Safeliz, 1996), 1:111.
Richard Gordon, A Assustadora História da Medicina (Rio de Janeiro: Ediouro, 1996), 171.
11 Ellen G. White, Mente, Caráter e Personalidade (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1989),

2:701,711720; 1:19.
John Ankerberg e John Weldon, Os Fatos Sobre Saúde Holística e a Nova Medicina (Porto Alegre:
Chamada da Meia Noite, 1995), 8, negrito mudado para itálico.
2 Extraído de Claudia Wallis, "Why New Age Medicine Is Catching Orf, Time, 4 de no-
vembro de 1991, 72. _
26 Warren R. Peters, Mystical Medicirze (Brush tom NY: Teach Services, 1995), 4 e 9.

• " Manuel Vasquez, "New Age Holistic Healch: lmplications for Seventh-day Adventist Faith and
Practice" (tese de D.Min., Andrews University, 1996), 138-140.
221 Arthur L. White, Ellen Wh ite: The Early Years (Washington, DC: Review and Herald,
1981), 292-293.
29 White, Mensagens Escolhidas, 2:54.
A Visão Adventisto da Curo 1 55
30 Seventh-day Ackentist Encyclopedia, ed. Don E Neufeld, ed. rev. (Washington, DC: Review and
Herald, 1976), s. v. "Healing, Faith".
3 ' David Larson, "The Moral Danger of Mirados", Spectrum 18 (1988): 13-18.

" Jon Dybdahl, "Should We Pray for the Sick?", em The Master's Healing Touch, ed. _James Za-
ckrison (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1997), 30-32.
31 Adaptado de Dybdahl, 32-38.

3 ^ Richard J. Foster, Oração: O Refúgio da Alma, 2 .' ed. (Campinas, SP: Editora Cristã Unida,

1996), 236-241.
" Ibid., 129, 230-235.
• 36 Erank Bateman Stanger, God's HealingCommuni5, (Nappanee, ID: Francis Asbury, 2000), 63-72.
" Herbert Kiesler, "The Anoinring Service", documento disponível no Biblical Researchlnstitute,
12501 Old Columbia Pike, Silver Spring, Maryland, 20904, USA. Na Internet: <http://biblicalresearch.
gc.adventist.org/documents/anointingservice.htm >.
Stuart C. Bate, "Does Religious Healing Work?", Neue Zeitschrifi für Missionswissenschafi 55
(1999): 268-270.
:39 Ibid., 272-274.
I. o

METÁFORAS DA CURA TOTAL

Saúde é um estado dinâmico e integrado de equilíbrio e diálogo


entre o corpo, a mente e o espírito, os s i stemas fisiológicos do corpo,
as outras pessoas na comunidade, o ambiente externo e Deus.
Kenneth Bukken, médico e pastor luterano nos Estados Unidos

A cura vení de Deus. Não existe outra fonte de saúde e cura a não ser Deus. Essa
é uma idéia central na Bíblia. Porém, a Bíblia apresenta um poderoso e belo símbolo
da origem da cura divina: a árvore da vida. Ao mesmo tempo, apresenta uma palavra
que sintetiza e expressa o resultado da cura: shalom.

A ÁRVORE DA VIDA
A árvore da vida (no Éden), segundo Ellen White, "era um tipo da grande Fonte
da imortalidade" (Custo) e seu fruto "possuía virtude sobrenatural". O pecado fechou
o acesso a essa árvore e, agora, "vida e imortalidade são trazidas à luz mediante Jesus
Cristo") O que a Bíblia tem a dizer sobre esse "tipo" ou símbolo?
Bem no início do Gênesis, lemos que havia uma "árvore da vida" no Jardim do
Éden (Gn 2:9). Após a queda, o ser humano foi proibido de ter acesso a essa árvore,
pois continuar comendo do seu fruto miraculoso significaria viver eternamente na
condição de pecado (Gn 3:22-24). Note-se que, no relato de Gênesis 2, a árvore da
vida é a primeira coisa a aparecer após a criação do ser humano (v. 9), como fonte de
nutrição e saúde, e, no capítulo 3, é a última coisa a sair de cena após a queda (v. 24),
com os querubins sendo comissionados a guardar o caminho de acesso a ela.
No Apocalipse, a mesma árvore da vida" é situada na Nova Jerusalém. Com a
restauração de todas as coisas, o acesso à árvore da vida, "que se encontra no paraíso
de Deus", será liberado ao "vencedor", e o fruto mensal e as folhas da árvore servirão
de "cura dos povos" (Ap 2:7; 22:2, 14 e 19; ver Ez 47:12).
Estariam os autores bíblicos falando de uma árvore real? A existência de uma
árvore desse tipo pode parecer inicialmente incrível, mas, para quem é cristão e está
informado sobre as pesquisas no campo da nutrição e da farmacologia, a idéia não é
158 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

tão estranha. O interesse pelas propriedades medicinais das plantas torna-se cada vez
maior. Há algum tempo, numa matéria de capa, a revista Time abordou a questão
da "pirataria genética". 2 O problema gira em torno de três pontos: (1) os cientistas
reconhecem que as florestas podem encerrar as drogas milagrosas do futuro; (2) as
multinacionais têm interesse em pesquisar e patentear, esse tesouro; (3) os países
emergentes, onde está localizada a maior parte das florestas tropicais, começam a se
sentir roubados, pois a pirataria genética tem sido facilmente praticada. Contudo,
quem é o proprietário da natureza? A conclusão é que, se os países pobres fecharem
seus depósitos de genes, a ciência se atrasará e todos vão sofrer; mas, enquanto não
houver leis e salvaguardas adequadas, as tribos afastadas desses países fazem bem em
guardar seus segredos para si mesmas.
Enquanto isso, em alguns países, incluindo o Brasil, esse resouro biológico vai
sendo destruído pelas queimadas e a extração de madeira. Se as florestas tropicais fos-
sem preservadas, os governos poderiam trocar os "tostões" obtidos atualmente com a
venda de madeira pelos "bilhões" que virão da biodiversidade no futuro. A invenção
do computador abriu um novo e imenso horizonte nas pesquisas de medicamentos,
contidos na flora, uma vez que toda tecnologia revolucionária tem um impacto na
maneira de investigar a natureza. O computador, com sua capacidade de transformar
o contínuo da natureza em fragmentos de informação, pode permitir a construção de
modelos de funcionamento dos processos naturais.
Todos os seres vivos contêm um grande número de informações, e as plantas encerram
muitos princípios curativos Calcula-se que um quarto (ou 25%) de todas as drogas medi-
cinais vendidas nos Estados Unidos seja extraído de plantas. Em 1984, os consumidores
americanos já gastavam 12 bilhões de dólares nesses produtos farmacêuticos. Trata-se de
um lucro obtido de menos de 50 entre milhões de plantas. Apenas na Amazônia existem
supostas 80 mil espécies de plantas superiores
Voltemos à árvore da vida. Não é razoável supor que, assim como existem
elementos curadores espalhados em vários tipos de plantas, Deus poderia ter con-
centrado numa única árvore todos os elementos essenciais à vida? A assombrosa
idade de quase mil anos que o Gênesis atribui a Adão (930 anos) e a outros perso-
nagens pré-diluvianos (ver Gn 5), mesmo depois da queda, deve ser encarada como
resquício da vitalidade do Éden.
Mas, embora a árvore da vida deva ser considerada como literal, os elementos
da vida não são originais dela. A vida foi concentrada nessa árvore, assim como
no "rio da água da vida" (Ap 22:1), por Deus. A árvore da vida era apenas um
tipo da Fonte da imortalidade. Um tipo é mais do que um símbolo, mas é menos
do que ,a realidade. O tipo tern um valor conferido; a realidade tem um valor
inerente. Se a árvore era, é e será real, ela não era, não é e não será a origem da
vida. A origem, a fonte, é o próprio Deus. "Eu sou [...1 a vida", disse Jesus (Jo
14:6), que também usou as metáforas da água e do pão da vida para falar de Si
Metáforas da Cura Total 1 59

mesmo. A árvore da vida é um lembrete permanente da finitude do ser humano,


cuja existência sempre dependerá de Deus, e um meio de transcender essa finitude.
O ser humano não tem vida em si, mas, ao aceitar a vida que vem de Deus através
de Cristo, encontra a vida eterna.
Antes da queda, o acesso à árvore da vida representava o acesso direto ao próprio
Deus e à vida eterna; depois do pecado, o acesso só se tornou possível através de Cristo,
o único "caminho" (Jo 14:4). Jesus veio assumir o pecado do ser humano, vencer a
morte e liberar o acesso à vida eterna. Ele é o elo entre a árvore da vida do Éden e a da
Nova Jerusalém — ou melhor, Ele é o caminho de retorno à árvore da vida, já que ambas
devem ser a mesma árvore. E, uma vez que essa árvore representa Deus (e, portanto, o
próprio Jesus), Ele é o caminho de retorno à vida.
O fato de Jesus ter morrido crucificado é altamente sugestivo, no contexto da
árvore da vida, e pode proporcionar um estudo interessante. Sem aprofundar a ques-
tão, devemos lembrar que Pedro e Paulo se referem pelo menos cinco vezes à cruz
como "madeiro" (At 5:30; 10:39; 13:29; GI 3:13; 1Pe 2:24). O mais significativo é
que, embora dendron seja a palavra grega mais comum para "árvore", o termo csylon
("madeiro"), utilizado por eles, também pode ser traduzido por "árvore", como o
faz a Versão King James. É, também, csylon zoes ("árvore da vida") que aparece em
Apocalipse 2:7 e 222 e 14.
A afirmação de Paulo em Gaiatas 3:13 remete-nos diretamente a Deuteronômio
21:23, onde é pronunciada uma maldição sobre a pessoa pendurada no madeiro. Mas
o apóstolo associa a "maldição", como lemos na seqüência (v. 14), a uma "bênção", que
se estende de Abraão ao resto da humanidade ("gentios"). Em II Coríntios 5:21, Paulo
ensina que o inocente Cristo morreu no lugar do culpado pecador, a fim justificá-lo.
Portanto, poderíamos dizer que, para Paulo, Cristo, ao ser pendurado numa árvore,
assumiu a maldição que bloqueou o acesso da humanidade à árvore da vida, a fim de
devolver-lhe o acesso a essa árvore.
Parece que, desde cedo, os cristãos estabeleceram uma conexão entre a árvore
da vida e a cruz. Diz o erudito J. Schneider:

A arte cristã primitiva indica uma relação muito próxima entre a árvore da vida e a
cruz. A cruz de Cristo, o madeiro de sofrimento e morte, é para os cristãos a árvore
da vida. Nas pinturas das catacumbas do segundo século, ela aparece, pela primeira
vez, como o símbolo da vitória sobre a morte. E a partir daí será uni tema recorrente.
A idéia de que do tronco vivo da cruz brotam folhas e rebentos é um motivo cristão
comum na antiguidade.'

A imagem da árvore cósmica como símbolo da vida ou mesmo de Deus não é


restrita ao cristianismo, tampouco se limita a interpretações biblicamente ortodo-
xas. Jacoba Kuikman — que, em um artigo com teor panteísta/panenteísta, defende
160 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

o simbolismo de Cristo como árvore cósmica como uma metáfora visual concreta
para falar da revelação de Deus na criação, reconectar o ser humano à natureza e
nutrir atitudes ambientalistas positivas --- diz que a árvore da vida, ou árvore cós-
mica, "representa urna filosofia esotérica comum a muitas culturas e mitologias"»
Simon Scharna comenta que, se o cristianismo tivesse sido "inflexivelmente ascéti-
co" e "negado a si mesmo a irresistível analogia entre o ciclo vegetal e a teologia do
sacrifício e imortalidade'', ele "teria sido único entre as religiões do mundo em sua
rejeição do simbolismo arbóreo" — pois em todos os outros cultos árvores sagradas
funcionavam como "símbolos de renovação")
Um antigo texto místico/cabalístico intitulado Sefer ha Bahzr (Livro da Ilumina-
ção), atribuído ao rabino Nehuniah Ben Ha-Kana (primeiro século d.C.), apresenta
uma passagem contendo o motivo da árvore cósmica Helena, mãe do imperador
romano Constantino, promoveu uma "cruzada" em busca da cruz, pois se acreditava
que esta possuía podeles especiais, por ter sido feita da madeirada árvore da vida, "o
protótipo de todas as plantas miraculosas que trazem os mortos à vida, cura os doen-
tes, restaura a juventude, e assim por diante"! Na Idade Média, a "lenda dourada"
também associava literalmente a árvore da vida (visualizada como a maior árvore no
meio do paraíso) com a madeira da santa cruz. A representação pictórica da árvore
da vida e da história da santa cruz era especialmente significativa nos conventos da
ordem franciscana. "Nenhum dos dois temas foi uma invenção franciscana", diz Rab
Hatfield, "mas somos tentados a pensar que ambos se tornaram propriedade espiritual
daquela ordem ." 8 Sin-ion Schama afirma que, entre 1550 e 1650, por força da Con-
tia-Reforma, "uma grande floresta de árvores sagradas e cruzes verdejantes brotou em
igrejas, capelas e santuários de beira de estrada '. 9
Entre a galeria de obras de arte em torno do tema da cruz verdejante, há um
formidável afresco intitulado A Árvore da Vida (ou A Árvore da Cruz), pintado no
século 14 por /acide° Gaddi no refeitório de Santa Croce, em Florença. O artista
apresenta Cristo pregado em urna cruz/árvore com doze "galhos" (representando os
apóstolos), cada um carregado com os frutos do evangelho (inscrições em latim),
e São Francisco abraçando o tronco da árvore-cruz. Outra bela obra intitulada
Cristo na Árvore da Vida, a qual mostra Cristo pregado numa macieira com frutas
e Maria sob a sombra da cruz viva, foi pintada em 1610 pelo grande humanista
holandês Hendrik Goltzius.
O motivo da árvore da vida, então, tem uma vasta história e um amplo espectro
de significações. Mas , as interpretações fora do padrão bíblico não devem levar-nos
a descartar essa rica imagem, mesmo porque Isaías apresenta o Messias como uma
irvore (Is 11:1) e o próprio Cristo Se identificou como a "videira verdadeira" (Jo
15:1). Eliminando os elementos místicos e esotéricos do símbolo, ainda testa um
ignificativo conteúdo. Comentando a ligação entre a árvore da vida e a cruz, marna
eflexão teológica interessante, o teólogo Enio Mueller escreve:
Metáforas da Cura Total
61

O que mais me impressiona nessa associação, e nisso também vejo sua correção teológica
e aguda relevância para os nossos dias, é o método de percepção. A árvore da vida é
árvore, a cruz é árvore. Porém uma é árvore viva, outra é lenho seco (cfLc 23:31!). Uma
é testemunho ecológico, viçosa, exuberante. A outra é também testemunho ecológico,
mas ao reverso: é árvore derrubada à força, violentada, morta e depois usada para o fim
mais vergonhoso que se possa imaginar. A cruz é árvore da vida sub specie contraria, na
linguagem da teologia medieval. E isso é o que chamo de método de percepção»

Para ele, seria "sugestivo imaginar que à medida em que gotas de sangue vão
pingando sobre aquela árvore morta, ela, por uma química que transcende tudo que
se conhece, vai revivendo". Em seguida, ele pondera que essa "árvore" cresce rumo ao
céu, aprofunda-se rumo ao âmago da terra, estende-se para a direita e para a esquerda,
e transforma - se no centro do planeta. Então, completa:

A cruz, a árvore morta mas revivificada, não se estende [apenas] geograficamente,


mas também historicamente. É como se pudéssemos imaginar a história como uma
linha contínua, ou espiral contínua, como se queira. Do lado de cá, à nossa esquerda,
o início para os nossos propósitos está na árvore da vida do paraíso. Do lado de lá, à
nossa direita, o fim da linha na árvore da vida da Nova Jerusalém. No centro, a cruz de
Jesus. E o ramo se estende simultaneamente em ambas as direções, até ligar o princípio
ao fim da história, ligar uma árvore à outra. Ele não é o Alfa e o Ômega, princípio e
fim da história (Ap 1:8)?' '

A figura 3 representa essa idéia graficamente.


Se essa interpretação cristocêntrica da árvore da vida estiver correta, como parece
estar, temos nela um referencial importante para evitar uma série de distorções relacio-
nadas à cura, como o naturalismo, o misticismo espiritualista, a magia e o carismatismo
"sobrenaturalista". Essa visão é uma salvaguarda contra: o naturalismo, porque sustenta
um
que a cura vem de Deus, e não apenas da natureza; o misticismo, porque pressupõe
Deus pessoal e propriedades curativas reais na natureza, ao contrário de uma energia
difusa; a magia, porque devolve a Deus o controle do acesso à árvore da vida e à cura;
cura diretamente
e o carismatismo "sobrenaturalista", porque mostra que Deus tanto
como através da natureza, e porque possibilita a cura divina atual, mas reserva para o
futuro o acesso amplo e definitivo a ela.

Jesus na cruz Árvore da vida na Nova Jerusalém


Árvore da vida no Éden

Figura 3: A cruz como elo de ligação (ou ponte) entre a vida no Éden e na Nova Jerusalém
162 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

• Em última instância, portanto, é o Cristo crucificado que nos garante a cura e


a vida. O Filho, juntamente com o Pai e o Espírito Santo, é a Fonte cósmica da vida.
Como diz João (1:4), a "vida estava nEle, e a vida era a luz dos homens". Usando
uma frase de Schama, podemos dizer que a imagem da cruz verdejante, enraizada no
tema da árvore da vida, expressa com "poética concisão a complexa teologia pela qual
a crucifixão" faz expiação "pela queda"»

SHALOM

Na Bíblia, há uma série de palavras relacionadas com a saúde. No Antigo Testa-


mento, as principais características da pessoa saudável são "bem-estar", "integridade",
"obediência", "força", "fertilidade" e "longevidade". No Novo Testamento, onde a
palavra grega clássica para saúde (hugieia) não aparece, o conceito de saúde reflete o
pensamento do Antigo Testamento, sendo apresentado em termos de "bem-estar",
"bênção", "totalidade", "maturidade", "santidade", "força", "vida" e "salvação".
Quanto aos verbos relacionados à cura, também existe uma variedade. No
hebraico do Antigo Testamento, entre outras raízes, podemos destacar rapa', que
ocorre 67 vezes e parece teto sentido primário de "restaurar/reparar" (e não "curar",
como ensinaram muitos eruditos); 'sp, que ocorre mais de 200 vezes e significa "reu-
nir", "remover", "recuperar"; hbs, que aparece 33 vezes e quer dizer "atar", "curar";
swb, que significa "voltar", "restaurar"; e sim, que se relaciona com cura no sentido
de "bem-estar" (esta raiz, que dá origem à palavra shalom, tem mais a ver com o
estado de saúde do que com o processo da cura). Já no grego do Novo Testamen-
to, podemos citar os seguintes verbos usados no sentido de curar nos evangelhos:
therapeuo, "curar", "servir", que aparece37 vezes; iaomai, "curar", que aparece 20
vezes (sendo mais freqüente em Lucas, talvez porque a raiz desse verbo deu origem
ao termo iatros, "médico"); e sozo, "curar", "tornar são", "libertar", "salvar", que,
juntamente com a sua forma intensiva diasozo, aparece 58 vezes, sendo 11 aplicadas
a curas físicas ou exorcismo; apokathisterni, "restaurar a uma prévia condição", que
aparece 4 vezes; apoluo, "libertar de urna condição ou situação", que aparece 69
vezes, mas só uma no sentido de libertar de doença; e kathanzo, "tornar limpo",
usado duas vezes no contexto de cura de lepra.
Pois bem, se fôssemos escolher uma dessas palavras para representar o resultado para
o ser humano da cura provida por Deus/Cristo, qual usaríamos? O Antigo Testamento
usa uma importante palavra para expressar o estado de harmonia e integridade da
pessoa saudável: shalom. Essa é, talvez, a melhor expressão da cura divina.
• Shalom, juntamente com seus derivados, é uma das palavras teológicas mais
importantes do Antigo Testamento, onde ocorre mais de 250 vezes em 213 ver-
sos. Etimologican-iente derivada da raiz sumérica si/im e da raiz acádica shalamu
e traduzida pela Septuaginta como sozo, eirene, teletos e vários outros vocábulos
Metáforas da Cura Total 1 63
(mais de 20, no total), shalom significa "paz", "prosperidade", "segurança",
"bem-estar", "saúde", "completude", "integridade", "harmonia" e "equilíbrio".
Era uma palavra tão forte que acabou influenciando eirene — primariamente
negativa no grego clássico, eirene incorpora os aspectos positivos de shalom e
passa a expressar suas qualidades espirituais no Novo Testamento, ligando-se a
termos como graça, vida e justiça.
Há dois fatos relacionados a shalorn que a tornam ainda mais significativa, no
contexto do nosso estudo. Primeiro, shalom, quando aplicada a objetos inorgânicos,
significa "inteiro", "não quebrado"; quando aplicada a coisas orgânicas, significa "são",
"sadio" e "saudável"; e, quando aplicada a relacionamento social, significa "estar em
ordem, "vivendo em felicidade'. Em segundo lugar, sozo (uma das traduções gregas
de shalom e que deu origem ao termo soteriologia) significa "salvar", "curar", "preser-
var", "tornar inteiro", "resgatar". Ou seja, salvação e saúde holística, ou "vida plena"
(Jo 10:10), estão intimamente relacionadas.
A condição expressa por shalom não é primariamente ou apenas ausência de
guerra e conflito, mas um estado de plenitude e tranqüilidade em vários aspectos
da vida, inclusive nos relacionamentos. Na cultura bíblica, perguntar pela shalom
de alguém era uma prova de interesse pelo bem-estar e a qualidade de vida da
pessoa. Desejar shalom a alguém é votar-lhe o bem, a bênção de Deus. Por isso, a
palavra é usada nos cumprimentos. Em qualquer parte do mundo, quando dois
judeus se cruzam, eles dizem: Shalom!
Shalom destaca o bem-estar holístico da pessoa, envolvendo tanto aspectos
pessoais (físicos e psicológicos) quanto interpessoais. Não por acaso, uma das me-
lhores definições de "saúde" inclui exatamente esses elementos: saúde é o estado
de harmonia da pessoa consigo mesma, os outros, a natureza e Deus. O indiano
Deepak Chopra, modernizador da medicina ayurvédica, mesmo postulando uma
cosmovisão não-cristã, também reivindica para a sua "cura quântica" o poder de
integrar corpo/mente e produzir paz. 13
Num sentido mais profundo, shalom só pode vir de Deus. É, o resultado de Sua
presença na vida, um dom divino, uma bênção espiritual e material. Por isso, em Gê-
nesis 28:20-22, Jacó ora para Deus acompanhá-lo na viagem rumo ao exílio e permitir
que volte "em paz" (shalom). Deus concede shalom ao indivíduo e ao Universo. Ao
retratar o Messias como o Príncipe da Paz, Isaías (9:6) quis ressaltar Sua qualidade
moral e Seu poder para levar adiante um projeto cósmico de paz. As descrições bíblicas
da era escatológica/messiânica têm a ver essencialmente com a paz.
No Novo Testamento, Jesus situa a paz no âmbito individual, como resul-
tado do relacionamento com Ele. Ao dizer "Deixo-vos a paz, a Minha paz vos
dou" (Jo 14:27), é como se dissesse "Eu sou a Paz". De fato, shalom é uma pessoa,
não a-penas um conceito. Ele é a pare produz a paz. A justificação efetuada por
Cristo leva à paz com Deus.
164 o FASCÍNIO DOS MILAGRES

Shalom, portanto, simboliza a saúde total do ser humano que, além de estar bem
consigo mesmo, possui um relacionamento ideal com Deus. Só no ambiente da Nova
Jerusalém, com o acesso livre à árvore da vida, o ser humano desfrutará shalom em sua
plenitude; mas, mesmo aqui, é possível ter shalom, uma yez que Cristo, a Fonte da
Vida, é "a nossa paz" (Ef 2:14). Jesus é a fonte de nossa saúde, integridade, equilíbrio,
harmonia, paz, enfim, da nossa vida.

NOTAS
' Ellen G. White, Medicina e Salvação, 2-1 ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1991),
233, 234.
2 Tirn McGirk, "Gene Piracy » , Time, 30 de novembro de 1998, 20-25,
J. Schneider, "Csylon", Theological Dictionaty of the New Testament, ed. Gerhard Kittel (Grand
Rapicls: Eerdrnarts, 1967), 540-41.
Jacoba Kuilcrrian, "Christ as Cosmic Tree", Toronto fournal ofTheology 16 (2000): 144.
Simon Schama, Landwape and Ilifemoty (Nova York: Alfred Á Knopf, 1995), 218.
' Ver Aryeh Kaplan, trad., The Bahir (York Beach, ME: Samuel Weiser, 1990), 9.
Mircea Eliade, Patterns in Comparative Religion (Nova York:IVIeridian, 1963; publicado inicial-
mente em 1958), 292.
8 Rab Hatfield, "The Tree of Life and the Holy Cross: Franciscan Spiritualiry in the Trecento

and the Quattrocento", em Christittní and the Renaissance: Image and Reltgiotis Imagination in the
Quattrocenw, ed. Timothy Verdon e John Henderson (Nova York: Syracuse University Press, 1990),
132-160, aqui 133.
Schama, 223.
O
Ênio R. Mueller, "Em Busca da Árvore da Vida — Ou a Última Aventura de Indiana Jones",
Vox Scripturae 4 (1994): 172.
Ibid., 174.
12 Schama, 219.

Deepak Chopr-a, A Cura Quântica: O Poder da Mente e da Consciência na Busca da Saúde Integral,
14' ed. (São Paulo Bar Seller-, s.d.), 285.
CONCLUSÃO

O corpo é nossa área primária de poder, liberdade e, por-


tanto, responsabilidade.
Dallas VVIllard, autor de best-sellers sobre espintualidade

Vimos uma série de conceitos ao longo deste livro, alguns familiares e outros
nem tanto. Ao final de nossa caminhada, talvez seja útil colocar alguns desses
conceitos juntos.
Os milagres, que fazem parte virtualmente de todas as tradições religiosas,
estão muito presentes na Bíblia. Os autores bíblicos usam várias palavras para
expressar a idéia de "milagre", tanto no hebraico quanto no grego, enfatizando
desde o mero teras ("prodígio") até o significativo serneion ("sinal"). Do ponto de
vista teológico, o milagre pode ser definido como um ato especial de Deus dentro
da ordem criada e mantida por Ele, para realizar Seus desígnios, o qual tem um
significado religioso. O milagre é um fenômeno provocado por um Poder superior
às leis naturais, mas não contrário a elas.
A lógica do milagre é a lógica do amor, do poder e da inteligência: a lógica de
Deus. Milagre é iniciativa divina. Deus está acima de tudo. Logo, o milagre faz parte
das regras do jogo. A cosmovisão dos autores bíblicos é teísta. Os milagres existem
porque existe um Deus miraculoso.
Os milagres têm sido criticados em várias frentes. Por exemplo, o filósofo
judeu-holandês 13aruch Espinosa argumentou que é impossível haver milagres, o
escocês David Hume tentou provar que eles são inacreditáveis e o alemão Rudolf
Bultmann classificou-os como mitos. Esses argumentos não conseguiram negar a
possibilidade teórica dos milagres.
A crença em milagres depende, essencialmente, da cosmovisão adotada. O te-
ísmo judaico-cristão não apenas prevê a possibilidade de acontecerem milagres, mas
considera a sua ocorrência altamente provável. A criação do mundo e a ressurreição
de Cristo são os milagres-âncoras, pois, além de serem milagres por excelência, au-
tenticam os outros milagres e apontam para o seu Agente: um Deus pessoal sábio,
poderoso e amoroso.
166 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

Os milagres têm funções multifacetadas. Eles não devem ser encarados apenas
corno elementos comprovadores e acreditadores da fé ou de uma pessoa. Todo milagre
tem um significado mais profundo. A dimensão mais rica do milagre está no seu enfo-
que como sinal, quando a pessoa, pela fé, vê o significado por trás da maravilha. Mas
a dimensão "semiótica" do milagre não anula a sua factualidade. Para ser percebido
como sinal, o milagre deve ser real e visível.
Os dons miraculosos não se restringiam à época da fundação da igreja. A teo-
ria "cessacionista" nasceu na época da Reforma (século 16) para negar os inúmeros
"milagres" reivindicados pelo cristianismo oficial e corrupto da época. Uma teologia
bastante sofisticada sobre a cessação dos dons miraculosos foi desenvolvida nos séculos
seguintes, destacando o papel único dos apóstolos. Contudo, por mais méritos que
essa teologia tenha, seus argumentos não eliminam a validade dos dons miraculosos
na atualidade. Sua estrutura teológica restringindo a categoria do miraculoso a uma
época passada é artificial, para dizer o mínimo. Os milagres não devem ser vistos
apenas por uma perspectiva evidencialista.
O movimento liderado pelos pentecostais e carismáticos defende que os dons
têm um papel importante na missão evangelizadora da igreja e continuam disponíveis.
A teoria "carismática" tem pontos relevantes, mas também não leva em conta todos os
dados bíblicos. Uma ênfase exagerada no sobrenatural está transformando o milagre
numa moeda fácil e altamente comercializada no mercado da fé.
Assim, uma terceira abordagem, combinando aspectos das duas anteriores, pro-
põe uma visão "ondulatória" dos milagres (não no sentido dispensacional). Chamado
de abordagem cíclica contínua, este modelo pressupõe a validade dos dons miraculosos
hoje e a ocorrência de milagres em todas as épocas, mas não na mesma quantidade
dos períodos de concentração.
A abordagem cíclica contínua prevê que, pouco antes da volta de Cristo, acon-
tecerá um novo ciclo de milagres. Momentos especiais exigem atuações especiais.
O movimento• pentecostal/carismático, biblicamente, não corresponde a esse ciclo.
Isso não significa que todos os seus milagres sejam questionáveis. Curas reais podem
estar acontecendo, embora não na proporção ou qualidade divulgada. Além disso, é
bom lembrar que os crentes normalmente crêem nos milagres que divulgam (não se
trata de fraude deliberada), o que não garante que os fenômenos sejam reais. Esses
movimentos estão, talvez, contribuindo para uma mudança de paradigma, o que
preparará o mundo para o último grande ciclo de milagres através do remanescente
fiel. O problema é que muita gente pode se maravilhar com o miraculoso e esquecer
a verdade bíblica, sendo enganada por Satanás.
Num estudo teológico sobre os milagres, é preciso levar em consideração todos
os dados bíblicos, para não haver distorção. Deve-se ter uma visão coerente sobre a
atuação de Deus no cosmos, o alcance do• plano da salvação e o papel do Espírito
Santo na história da igreja. Uma visão escatológica na perspectiva do já/ainda não,
Conclusão 1 67

igual àquela da igreja primitiva, possibilita vivenciar com intensidade e seriedade a


dinâmica atuação do Espírito.
As "ferramentas" bíblicas da cura incluem (1) a oração, que deve ser dirigida a
Deus, em nome de Jesus; (2) a fé expectante, no sentido de uma forte confiança no
poder de Deus e na Sua disposição de curar, acompanhada de abertura à ação divina;
(3) a vontade, que envolve o desejo de viver e o comprometimento com a ação divina;
(4) o toque, que serve tanto para causar uma reação emocional quanto para expressar
amor e autoridade; e (5) unção com óleo, que simboliza o poder divino e deve ser
administrada para a cura, e não para a morte. A ciência têm procurado validar o uso
terapêutico especialmente da oração, da fé, da vontade e do toque. Esses elementos
têm um papel importante na cura divina, mas não são sempre indispensáveis e jamais
devem ser usados num sentido mágico.
Todos os recursos utilizados por Jesus e os apóstolos têm um uso legítimo hoje.
É importante frisar, porém, que Jesus era singular, devido ao Seu poder absoluto. Mais
importante do que tentar imitar Seus gestos é manter um relacionamento salvífico com
Ele. Satanás pode levar os falsos operadores de milagres a tentar imitar superficialmente
o procedimento de Jesus, para seduzir os incautos. É preciso discernimento.
As práticas usadas para a cura que não têm paralelos bíblicos ou são condenadas
na Bíblia incluem a fé no poder mental, a visualização como estratégia para interferir
na realidade, a busca da cura em lugares sagrados, a veneração de relíquias, a interces-
são de santos, o uso de sacramentos, as cirurgias mediúnicas e a terapia de regressão a
vidas passadas. Esses itens têm diferentes graus de distanciamento do ensino bíblico.
Teologicamente, a intercessão de santos, as cirurgias rnediúnicas e a regressão estão
no máximo do condenável. A tentativa de dar um caráter científico a fenômenos
espiritualistas torna-os ainda mais sutis e perigosos.
A sutileza, porém, pode estar também dentro dos templos evangélicos. A fé como
técnica de manipulação da realidade, uma espécie de mágica cristianizada, que se vê em
alguns meios pentecostais/carismáticos, é totalmente inconsistente com a teologia bíblica.
O mesmo pode ser dito da fé que desconsidera a vontade de Deus e, presunçosamente,
tenta transformá-Lo apenas num coadjuvante cósmico do operador de milagres.
As curas de Jesus tinham alguns paralelos com os relatos de curas de outros
operadores de milagres da época, como o rabino Hanina ben Dossa e Apolônio de
Tiana, mas as diferenças eram ainda maiores. O que distinguia Jesus era a Sua natu-
reza divina-humana. Ele não era o Messias porque fazia milagres, mas fazia milagres
porque era o Messias. Basicamente, não são os milagres que explicam Jesus, mas Jesus
é quem explica os milagres. Em Cristo, pessoa e obra são coisas inseparáveis. Assim
como Ele era único, Seus milagres eram singulares.
Os diversos modelos de cura divina — confrontacional, intercessório, relicário,
incubacional, revelacional e soteriológico — podem ser úteis para a compreensão e
sistematização dos movimentos de cura, mas não fornecem parâmetros definitivos para
168 0 FASCÍNIO DOS MILAGRES

a avaliação dos fenômenos. Ou seja, o estilo empregado pelo operador de tyálag


geralmente não diz se o que ele está fazendo é de Deus ou não. Os operadores de n
lagres devem coadunar seu comportamento com a cosmovisão e o ensino da Bíbli
A visão adventista sobre saúde, doença e cura é melhor entendida a partir
pensamento e do ensino de Ellen White. Uma de suas maiores contribuições CO3
ceituais é a idéia de que o corpo, sede da mente, constitui o único meio pelo qu
Deus pode Se comunicar com o ser humano. Por isso, Satanás tenta destruí-lo e
nosso dever preservá-lo.
A mensageira do Senhor ressalta a importância da prevenção, através do clu
mado "estilo de vida adventista", que oferece maior longevidade; o papel dos fatort
emocionais e espirituais na saúde; a necessidade de buscar a excelência na área médica
usando com equilíbrio e bom senso os remédios sintéticos e naturais, o que signific.
descartar as terapias alternativas místicas; e a relevância de se buscar a cura pela oração
em combinação com os recursos da medicina. Devemos usar o melhor da natureza
o melhor da ciência e o melhor da fé.
A árvore da vida é um símbolo da Fonte da Vida, Jesus, o qual é e nos proporciona
shalorn (bem-estar, saúde, integridade, equilíbrio, harmonia, paz e vida).
E agora>
A esta altura, alguém pode perguntar: "Para ter saúde e testemunhar hoje, deve
o povo de Deus dar ênfase exclusiva ao estilo de vida saudável e à obra médica, ou
também à cura divina miraculosa?"
A resposta depende da avaliação que se faz do mau uso de uma coisa boa. As
notas verdadeiras de dólar devem ser descartadas por haver falsificações na praça?
As bolsas Vuitton devem ser desprezadas por existirem cópias piratas no mercado?
Determinado tipo de instrumento musical deve ser evitado na igreja por ser utilizado
em lugares suspeitos?
O bom senso diz que, se algo é bom e não tem substituto, deve ser utilizado, apesai
das falsificações, mas com cuidado redobrado. Paulo parece ter usado esse critério na
questão do dom de línguas em Corinto. O dom de cura está sendo e será falsificado
por Satanás. Mas, se ele é uma coisa boa para as pessoas e a evangelização, não deve ser
descartado. O teólogo evangélico Wayne Grudem expressa bem o ponto de vista de que
os erros e abusos não devem invalidar o dom em si: "O abuso de um dom não significa
que devamos proibir o uso apropriado do dom, a menos que possa ser demonstrado que
é impossível haver uso apropriado -- que todo uso tem de ser abuso."'
Sem dúvida, a Igreja Adventista era mais "carismática" em seus primórdios do
que é hoje. Em muitos aspectos, a igreja cresceu e amadureceu. Sua perspectiva foi
ampliada; sua teologia, refinada; e sua experiência, melhor definida. Mas em outros
aspectos, conío é o caso do ministério de oração para a cura, ela parece não ter evoluído:
Ao contrário, pode até mesmo ter regredido, já que na prática passou a focalizar quase
apenas a cura por meio da medicina convencional ou de meios naturais. É possível
- Conclusão 1 69

errar por enfocar demais a cura divina em detrimento cia medicina, mas é também
possível errar por focalizar muito a medicina em detrimento da cura divina.
Há pelo menos cinco razões práticas ou históricas para a mudança de postura
da igreja: (1) medo do 'fanatismo; (2) fuga das contrafações; (3) ênfase no dever de
fazer a nossa parte; (4) sucesso do sistema adventista de saúde; e (5) intelectualização
da fé. Mas existem sólidas razões para investir mais nas orações para a cura divina
— entre elas, o fato de que o dom de cura é bíblico, o mundo é um vasto hospital e o
evangelismo é mais efetivo quando acompanhado por testemunhos de milagres.
- Nas últimas décadas, para o bem ou para o mal, tem havido uma acentuàda
inclinação dentro do cristianismo na direção do uso total dos dons espirituais, bem
como um movimento no mundo cristão e secular na direção da cura integral, envol-
vendo os aspectos físicos', mentais e espirituais. Algumas igrejas já perceberam isso, e
procuram seguir a onda, embora às vezes com distorções teológicas e experienciais. A
Igreja Adventista; que historicamente defende ambos os conceitos (dons e cura total),
deve também aproveitar essas ênfases.
Cedo ou tarde, a interação da igreja com as tendências mundiais acaba ocor-
rendo. Sem dúvida, as religiões e as igrejas influenciam umas às outras na teologia e
na expertencta. Seria a Igreja Advennsta uma exceção? É um contra-senso pensar que
podemos/devemos influenciar sem ser influenciados. A influência ocorreu no passado
e continuará ocorrendo. As mudanças são inevitáveis. Não há como controlar esse
fenômeno a menos que a igreja deixe o cenário da vida real e se isole do mundo. A
atitude sensata, portanto, é observar as mudanças que estão acontecendo e procurar
capitalizá-las de modo legítimo e positivo. .
A Igreja Adventista precisa incentivar mais a expressão de todos os dons. O
dom de profecia foi e é uma bênção inestimável para a igreja e, sem exagerar, para o
mundo. Mas é preciso não apagar o Espirito. Assim como pode haver umainstitu-
cionalização, através do White E,state e seus centros associados, do dom de profecia
manifestado em Ellen White, poderia também ocorrer uma institucionalização do
dom de cura através da obra médica. Do ponto de vista organizacional, esse proce-
dimento seria mais seguro. Evitaria surpresas e o imprevisível; facilitaria o controle
e o domínio. Mas seria o plano de Deus? A longo prazo, ele fossiliza ou revitaliza a
igreja? Seria saudável a igreja solidificar ainda mais a sua estrutura institucional em
vez de caminhar em outras direções?
Parece que, desde os tempos bíblicos, o bloco institucional e o bloco carismático
dentre o povo de Deus convivem em tensão. De um lado, sacerdotes, reis e líderes
eclesiásticos desejam manter o status que; de outro, juízes, profetas e líderes carismáticos
clamam por mudanças e renovação. Na superfície, eles são mutuamente exclusivos.
Porém, no fundo, os dois grupos têm o seu papel, desde que não impeçam a atuação
do Espírito, e devem atuar de modo mutuamente complementar. Não é uma questão
de este-ou-aquele, mas de ambos.
170 O FASCÍNIO DOS MILAGRES ,

O trabalho de prevenção e cura pelo estilo de vida saudável tem um papel


relevante ria Igreja Adventista e deve continuar — sempre apresentando princípios
testados em conexão com as novas descobertas. Nos últimos anos, infelizmente, a
igreja não lhe tem dado a devida ênfase. De igual modo, a obra médica científica (ou
convencional) da igreja é importante e tem seu espaço garantido. Contudo, isso não
. , . .
impede que a igreja paralelamente valorize a oração para a cura. Recursos medicinais
e recursos espirituais devem atuar juntos.
Se os modelos de ministério de oração para a cura disponíveis são inadequa-
dos, deve-se criar um modelo próprio. O ideal é que esse modelo inclua aspectos
que visem ao ministério privado, nos lares dos doentes; ao ministério ocasional no
templo, onde o Médico Supremo Se manifeste de modo especial; e ao ministério
nos hospitais, onde os médicos humanos exerçam a cura num contexto cristão. Tal
ministério deve incorporar aqueles que porventura tenham o dom de curar pelo
poder do Espírito Santo (1Co 12:9); os anciãos/pastores que forem chamados pelos
doentes (Tg 5:14); e os membros comuns que, pela oração, confissão e o perdão (Tg
5:16), num ambiente de graça e amor, podem facilitar a cura. E possível também
combinar dom e treinamento médico.
Keith Bailey diz que o ministério de cura "nunca cessou totalmente, nem
mesmo durante a Idade Média". A doutrina da cura, ressalta o autor, não é uma
inovação do século 19, nem se acha restrita a um sistema teológico específico,
mas faz parte da fé cristã histórica, sendo que os valdenses praticavam "a mais
correta forma de ministério de cura do período medieval". Ele acrescenta que,
. .
historicamente, há uma conexão entre "um intenso despertarnento espiritual" e
"um renovado interesse na unção d.os enfermos"!
Nos tempos modernos, ao que parece, Adoniram J. Gordon (1836-
1895), um ministro batista de Boston, Massachusetts, foi o primeiro a cunhar
ou usar a expressão "o ministério da cura" (em inglês, the ministry of heahng). 3
Alguns anos depois, Ellen White utilizou-a no título de seu clássico de 1905,
traduzido para o português como A Ciência do Bom Viver. Mas o conceito de
um ministério de cura total, envolvendo orações e milagres, pode ser traçado
de volta ao Novo Testamento.
Primeiro, a missão do Messias anunciada em Isaías 61 e aplicada por Jesus a Si
mesmo em Lucas 4 inclui a cura dos quebrantados, a proclamação da liberdade aos
cativos e a restauração da vista aos cegos. Ou seja, o ministério de Jesus tinha uma
dimensão curadora/restauradora "oficial", motivada por Seu amor e Sua compaixão.
A cura era uma parte central da identidade e da missão do Messias, que curava a
pessoa toda (corpo, mente, espírito). '
Depois, ao outorgar poder (dynamis) e autoridade (exousia) aos discípulos em sua
, primeira missão evangelística, Cristo em certo sentido deu-lhes também a incumbência
de desenvolver
, um "ministério de cura":
Conclusão 171

• Mateus 10:1: "Tendo chamado os Seus doze discípulos, deu-lhes Jesus auto-
ridade sobre o espíritos imundos para os expelir, e para curar toda sorte de doenças
e enfermidades."
• Marcos 6:7: "Chamou Jesus os doze e passou a enviá-los de dois em dois,
dando-lhes autoridade sobre os espíritos imundos."
• Lucas 9:1: "Tendo Jesus convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre
todos os demônios, e para efetuarem curas."
Evidentemente, essa preocupação de Jesus com os doentes não acabou no pri-
meiro século, nem Se esgotaram o Seu poder e a Sua autoridade, tampouco findaram
os dons miraculosos. A Grande Comissão, em Mateus 28:18-20 e seu paralelo em
Marcos 16:15-20, aparentemente não exclui o comando anterior para curar, mesmo
porque os apóstolos continuaram pregando e curando.
Estudos mostram que o cristianismo primitivo tinha um interesse maior pelo
assunto da doença e da cura do que as religiões rivais da época. Além de ser evidente
nos evangelhos, esse nível de interesse se reflete nos documentos cristãos do segundo
ao quarto século.' Utilizando uma abordagem interdisciplinar, Hector Avalos sugere
que o sistema de saúde promovido pelo cristianismo era mais eficaz em termos de
custo, acesso e resultado do que os outros sistemas. Mais simples (até por pregar a fé
em um único Deus curador), o sistema cristão oferecia uma alternativa real à com-
plexa e lucrativa indústria médica daquele tempo. Isso tornava a nova religião atrativa
e ajudou em sua expansão.'
Se Jesus pretendia que os discípulos/apóstolos curassem os doentes, se o poder
para isso continua disponível e se a igreja é a responsável por levar adiante hoje a tarefa
dos discípulos/apóstolos, então o corolário é que ela deve desenvolver um ministério
de oração para a cura. Esse ministério tem um elo seqüencial claro: Jesus curou, os
discípulos/apóstolos curaram, a igreja deve curar. A cura não pode ser relegada aos
grupos marginalizados e periféricos.
Só assim, levando cura total a todos, num mundo que mal oferece cura
apenas para o corpo e só para a classe mais privileziada, a igreja tornará sua men-
sagem realmente relevante, e a missão será cumprida mais plenamente. Em certo
sentido, os milagres de cura têm o potencial de trazer Deus para o plano real da
existência, como na época de Cristo e dos apóstolos. Eles são uma maneira de
conectar publicamente Deus ao sofrimento, o que ocorreu em nível máximo na
cruz. Os milagres acendem uma luz, sinalizam a esperança, mostram que Deus
ainda ouve, num tempo em que o silêncio divino tem sido tão inquietante. Eles
são também uma expressão de graça, um toque de amor. A lei da causa e efeito
num mundo imperfeito diz que as conseqüências de um erro, presente ou pas-
sado, são doença, dor e morte. Mas, de repente, a graça entra em ação e reverte ,
esse caminho, , trazendo cura, prazer e vida. Não podemos privar o mundo dessa
manifestação da graça.
1 72 O FASCÍNIO DOS MILAGRES

TOQUE PESSOAL

Num plano pessoal, tenho testemunhado o poder da oração para a cura. Na


década de 1980, minha mãe tinha um problema de tireóide e precisou passar por uma
cirurgia arriscada. Foi operada em Belo Horizonte. No processo, sofreu uma parada
cardíaca e quase morreu. Não tenho dúvidas de que foi salva não só pela habilidade
dos médicos, mas também pelo poder de Deus em resposta às orações intensas dos
familiares e amigos. Mais recentemente, meu pai também surpreendeu os médicos
por sua recuperação de uma cirurgia complicada. No dia em que defini com o Dr.
,
J ose Carlos Ramos o tema da minha tese de mestrado, a qual deu origem a este livro,
ele sofreu um acidente de carro, em que perdeu um filho. Ele mesmo ficou muito
mal. Muita gente orou por sua recuperação. Na época, sonhei que ele ficaria bom.
Quase por milagre, sobreviveu e voltou às suas atividades no seminário. Também já
vi e participei de unção em que o doente se restabeleceu muito bem.
É verdade que em certos casos oramos e a cura não ocorre. Já passei por situações
assim. Há alguns anos, o meu irmão travou uma batalha contra a leucemia. Todos os
irmãos fizemos testes de compatibilidade na Unicamp para tentar um transplante, mas a
incompatibilidade impediu-o. Em 1999, num sábado, minha família, eu e alguns amigos
fomos visitar a Igreja All Nations, em Berrien Springs, Michigan, e o pastor pregou um
tocante sermão sobre o sangue de Cristo. Fiquei pensando em meu irmão, cuja doença
afetava exatamente o sangue. Na época, eu estudava na Universidade Andrevvs. No
domingo, recebi a notícia de que ele havia falecido. Muita gente tinha orado por ele,
que resistiu com resignação e bom humor durante um bom tempo. Porém... Depois de
enviar uma mensagem aos familiares, saí caminhando pelas ruas de Berrien Springs
numa longa, solitária e triste meditação. Sabia da gravidade do problema, mas tinha
esperança de que ele sarasse.
Isso pode acontecer com qualquer crente, por maior que seja a fé. Embora fique-
mos tristes ou mesmo desolados com o sofrimento e as perdas, temos de reconhecer _
que a decisão de curar (ou não) pertence à esfera da soberania e cio mistério de Deus.
Ha uma infinidade de fatores envolvidos. Só Ele sabe o que é melhor para nós. Deus
tem desígnios que nossos sonhos desconhecem. Temos de ter fé em meio à dor. Afinal,
a morte não é a palavra final para quem crê. Jesus é a palavra final. ,
Acredito em Deus como o grande e, em certo sentido, o único Médico. Espero
que a leitura deste livro tenha despertado ou aprofundado a sua fé também. Você pode
confiar no toque divino, no milagre.

NOTAS
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BIBLIOGRAFIA

Aqui você encontra uma amostra representativa da bibliografia que cobre os


principais tópicos abordados neste livro. Embora haja relativamente pouco material
em português, há inúmeras fontes em outras línguas, principalmente o inglês, e os
lançamentos estão se multiplicando.

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