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Eliane Cantarino O’Dwyer

O papel social do antropólogo


Aplicação do fazer antropológico e
do conhecimento disciplinar nos debates
públicos do Brasil contemporâneo

Rio de Janeiro, 2010


© Eliane Cantarino O’Dwyer/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2010.
Todos os direitos reservados a Renata Curcio Valente/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a
reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização
dos editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-287-6

Projeto gráfico e capa Conselho Editorial


Andréia Resende Beatriz Maria Alasia de Heredia Laura Moutinho
Eliane Cantarino O’Dwyer Luiz Fernando Dias Duarte
Diagramação Carla Costa Teixeira Maria Filomena Gregori
Livia Krykhtine Carlos Guilherme Octaviano do Valle Mariano Baes Landa
Revisão Cláudia Lee Willians Fonseca Mario Pecheny
Helô Castro Cristiana Bastos Patricia Ponce
Gustavo Blazquez Sérgio Luís Carrara
Jane Araújo Russo Stefania Capone
João Pacheco de Oliveira

Este livro foi viabilizado por recursos do projeto Diverso – Políticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos
de Direitos: estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e organizações de governo, realizado
com financiamento da Finep através do Edital de Ciências Sociais 2006 (Convênio Finep/FUJB nº
01.06.0740.00, REF: 2173/06), coordenado por Antonio Carlos de Souza Lima, Adriana Vianna e Eliane
Cantarino O’Dwyer.

Esta publicação encontra-se à venda no site da


E-papers Serviços Editoriais.
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Rio de Janeiro – Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

O23p
O’Dwyer, Eliane Cantarino, 1947-
O papel social do antropólogo: aplicação do fazer antropológico e do conhecimento
disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo / Eliane Cantarino O´Dwyer. - Rio
de Janeiro: E-papers , 2010.
130p. (Antropologias ; 6)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-287-6
1. Antropologia. 2. Antropologia - Pesquisa. 3. Etnologia 3. Quilombos - Brasil. 4. Políticas
públicas - Brasil. I. Título. II. Série.

10-6237. CDD: 306


CDU: 316.7
A meu pai (in memoriam) e minha mãe
Sumário

Prefácio 9

Introdução 13
Referências bibliográficas 20

Capítulo 1 Os quilombos e as fronteiras da antropologia 21


Da “pouca” contrastividade cultural das comunidades
de quilombos no Brasil 23
Critérios de pertencimento territorial
e a produção das diferenças culturais 25
Diferenças que fazem toda diferença? 27
África no Brasil? 30
Nova configuração étnica e política na relação
com o Estado brasileiro 32
Considerações finais 33
Referências bibliográficas 34

Capítulo 2 Trajetórias, contextos e perspectivas na participação


de antropólogos no reconhecimento de direitos constitucionais 35

Capítulo 3 Direitos territoriais e a nova configuração étnica


e política com o Estado brasileiro 46
Os (des)caminhos do reconhecimento 54
A Instrução Normativa do Incra e os relatórios antropológicos 56
Referências bibliográficas 60

Capítulo 4 Profetismos e práticas de cura: saber tradicional


dos remanescentes de quilombo de Oriximiná-PA 62
Referências bibliográficas 72
Capítulo 5 Processos de territorialização e conflitos sociais
no uso dos recursos ambientais pelo povo Awá-Guajá
em área da antiga reserva florestal do Gurupi 74
Nomadismo: os patrigrupos 82
Nomes de família, habitats e topônimos 87
Genocídio doméstico? 95
Alternativa à extinção 96
Referências bibliográficas 96

Capítulo 6 Informe etnográfico sobre a área indígena Awá-Guajá 98


Situação de perda 101
Genocídio doméstico e alternativas à extinção 103
Referências bibliográficas 106

Capítulo 7 Laudos antropológicos: pesquisa aplicada


ou exercício profissional da disciplina? 107
Seringueiros do Alto Juruá-Acre 113
Os quilombos do Trombetas-Pará 118
O povo indígena Awá-Guajá 122
Referências bibliográficas 128

Sobre a autora 130


Prefácio

É com enorme satisfação que apresento o importante livro de Eliane Can-


tarino O’Dwyer, abordando o papel do antropólogo na elaboração de lau-
dos periciais, os quais têm gerado polêmicas diversas no mundo acadêmico
e na mídia. Além de demonstrar a falsa oposição entre uma antropologia
teórica ou acadêmica, de um lado, e uma antropologia prática ou da ação,
de outro, o livro traz à tona, a um só tempo, o caráter elucidador da pes-
quisa antropológica e suas implicações para a compreensão dos direitos
diferenciados, conforme reza nossa Carta Constitucional de 1988.
Embora a tradição indigenista e a preocupação dos antropólogos com
os direitos dos povos ameríndios tenham marcado significativamente o de-
senvolvimento da antropologia no Brasil desde os seus primórdios, a Cons-
tituição de 1988 ampliou consideravelmente o campo de trabalho fora da
academia, através da demanda por laudos e estudos ou relatórios antropo-
lógicos diversos, com implicações diretas na defi nição ou na observação
dos direitos de minorias. Isso foi especialmente verdade no que concerne
à demarcação e ao reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas,
cujo processo é bem retratado no livro. Aliás, como o livro demonstra,
a autora tem grande experiência na realização desse tipo de trabalho, ao
mesmo tempo que nunca deixou de manter uma vida acadêmica ativa, o
que a situa numa posição particularmente favorável para discutir a dimen-
são de continuidade entre a pesquisa de campo, de caráter etnográfico,
dirigida para a conclusão de um trabalho acadêmico, e aquela voltada para
a elaboração de um laudo pericial ou para um relatório de identificação.
Em ambos os casos, o pesquisador está comprometido com os mesmos
critérios para a fundamentação da interpretação antropológica.
Os argumentos elencados pela autora são plenamente convincentes
para demonstrar como laudos e relatórios estão apoiados em pesquisa
empírica, e são sujeitos aos mesmos critérios de validade vigentes para a
produção estritamente acadêmica, sem deixar de assinalar que o resultado
fi nal não tem a precisão de um cálculo aritmético, e não é isso que deve ser
esperado, por exemplo, na defi nição do território a ser demarcado. Nesse

O papel social do antropólogo 9


sentido, gostaria apenas de enfatizar a importância de três aspectos bem
abordados no livro: (1) o respeito ao princípio do autorreconhecimento
e o lugar do laudo antropológico; (2) as dificuldades do diálogo com o
discurso jurídico; e (3) os compromissos éticos embutidos na pesquisa an-
tropológica.
(1) Além da recomendação da convenção 169 da OIT, plenamente assu-
mida pelo Estado brasileiro, assinalando a precedência do autorreconheci-
mento na defi nição da identidade dos grupos que a reivindicam, não seria
legítimo nem eticamente defensável que a identidade de um grupo social
dependesse de um parecer técnico, antropológico, à revelia da maneira
como o grupo se vê e se situa no mundo. Entretanto, quando tal reconhe-
cimento implica acesso diferenciado a direitos, como no caso da defi nição
de um território específico, por exemplo, as razões da singularidade ou
do mérito para acesso aos respectivos direitos precisam ser explicitadas.
Como argumenta O’Dwyer, aqui reside a importância do laudo antropoló-
gico ao apresentar explicações “sobre construções identitárias, formas de
organização social, práticas culturais e processos de ocupação territorial
dos grupos que pretendem reconhecimento legal” (p. 15). Isto é, o laudo
ou relatório antropológico é realizado, primeiramente, para compreender
as características e o sentido das demandas do grupo e, depois, torná-las
inteligíveis para o Estado e demais interlocutores do grupo nos processos
de defi nição de território.
(2) Nos últimos 20 anos, tenho refletido, com apoio em amplo mate-
rial de pesquisa colhido por extensa rede de pesquisadores no Brasil e no
exterior, sobre as limitações do “Direito positivo” na compreensão e no
respectivo encaminhamento de demandas que envolvem direitos de caráter
ético-moral, onde a dimensão temática do reconhecimento desempenharia
um papel particularmente importante. Ainda que tenha como foco privile-
giado causas judiciais que envolvem confl itos interpessoais ou aquelas em
que o cidadão se sente desvalorizado (e, às vezes, humilhado) pela agres-
são sofrida, refi ro-me essencialmente a causas em que o judiciário não
consegue evitar uma interpretação distorcida das demandas em tela sem
estabelecer uma articulação adequada com as intuições morais dos atores.
Em outras palavras, sem estabelecer uma conexão forte com o ponto de
vista nativo.
Um dos méritos do livro de O’Dwyer é demonstrar como fenômeno si-
milar ocorre no tratamento das demandas de reconhecimento dos direitos
diferenciados previstos em nossa Constituição. Trata-se de demandas de
acesso a território ou de proteção a conhecimento tradicional. Em ambos

10 Eliane Cantarino O’Dwyer


os casos, a compreensão do significado local, singular, atribuído ao terri-
tório ou às práticas sociais que nele têm lugar, assim como das represen-
tações que dão sentido ao conhecimento tradicional são a condição para a
produção de uma decisão não arbitrária (ou autoritária) sobre a defi nição
do território ou sobre o eventual acordo relativo à utilização do conheci-
mento tradicional do grupo. Um bom exemplo da dificuldade de diálogo
com o Direito e da falta de compreensão embutida em certas políticas de
Estado está na discussão das Instruções Normativas do Incra, como visto
no Capítulo 3, sobre os critérios para defi nição do território pleiteado por
quilombolas. A meu ver, produz-se aqui o mesmo processo de redução
a termo observado por nossas instituições judiciárias, com o objetivo de
fi ltrar os aspectos estritamente jurídicos dos processos que chegam aos
nossos tribunais, para garantir uma decisão pretensamente objetiva do li-
tígio em tela.
Assim como nos casos de confl ito interpessoal envolvendo demandas
por reparação de direitos de caráter ético-moral, mencionados acima, nas
demandas de indígenas e quilombolas pelo reconhecimento do direito de
acesso (diferenciado) a seus territórios o processo de redução a termo,
através da exigência de observação de critérios estabelecidos unilateral-
mente (de forma etnocêntrica) e, portanto, apenas pretensamente objeti-
vos, excluem de consideração os aspectos que efetivamente caracterizam e
dão sentido ao território demandado. Mais uma vez, o laudo ou relatório
antropológico revela a sua importância para traduzir e elucidar os argu-
mentos que fundamentam as demandas de indígenas e quilombolas.
(3) O livro também realça os compromissos ou responsabilidades éti-
cas do antropólogo em sua atividade de pesquisa, seja para a elaboração
de trabalho acadêmico ou de laudo judicial. Em todos os casos, o antro-
pólogo: (a) não pode falsificar seus dados ou “ajustar” sua interpretação
para favorecer interesses escusos de quem quer que seja sem ferir irreme-
diavelmente seus compromissos com os critérios de produção de verdade
vigentes na disciplina; (b) não deve prejudicar ou expor indevidamente os
sujeitos da pesquisa nem desrespeitar os direitos e interesses legítimos do
grupo pesquisado; e, como qualquer outro pesquisador, (c) o antropólo-
go também tem compromisso com a divulgação dos resultados de suas
pesquisas, como O’Dwyer tem feito em suas publicações e intervenções
públicas. Na mesma direção, a responsabilidade ética do antropólogo não
termina com a conclusão da pesquisa, mas permanece na definição do que,
quando e onde publicar os resultados, assim como no compromisso em
intervir no debate público sempre que perceber que suas publicações estão

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sendo manipuladas ou distorcidas com interesses escusos, colocando em
risco direitos e interesse legítimos dos sujeitos da pesquisa.
Finalmente, gostaria de aproveitar a oportunidade para agradecer à
professora Eliane Cantarino O’Dwyer pelos relevantes serviços prestados
à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) durante a minha gestão
na presidência (2006-2008). Além de ter representado a ABA em vários
fóruns importantes sobre direitos e interesses da população quilombola,
graças a sua assessoria pudemos ter uma atuação qualificada no encami-
nhamento do tema.

Luís R. Cardoso de Oliveira

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Introdução

Os textos reunidos nesta coletânea foram extraídos de comunicações apre-


sentadas em debates públicos, que abordam questões com as quais estamos
envolvidos como pesquisadores no contexto das relações entre saberes an-
tropológicos, demandas da administração pública e movimentos sociais.
Ao publicar intervenções feitas dentro e fora da esfera acadêmica, te-
mos o objetivo de contribuir para uma compreensão do exercício da an-
tropologia praticada no Brasil após a Constituição Federal de 1988, que
representa um marco temporal e situacional no reconhecimento de direi-
tos diferenciados de cidadania, sobretudo ao contemplar na compreensão
constitucional de cultura, formas de conceituação antropológicas, segun-
do comentário de jurista (Silva, 2007:802-803).
Os direitos culturais protegidos pelo Estado brasileiro, no caso dos “in-
dígenas” e “afro-brasileiros”, e de outros “grupos” (...), com a “valorização
da diversidade étnica e regional” (artigos 215 e 216 da Constituição Federal)
têm sido interpretados em conexão com os direitos sobre as terras indígenas
e o reconhecimento a propriedade das terras ocupadas pelos “remanescentes
das comunidades de quilombos”, neste último caso por meio das disposições
constitucionais transitórias, artigo 68 do ADCT, que disciplinam “situações
concretas”, consideradas “análogas”, porém “distintas”, as quais passam a
fazer parte integrante da Constituição (Silva, 2007:889). Assim, a noção de
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como sendo as necessárias à
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições,
tem sido utilizada igualmente no reconhecimento de direitos constitucionais
de ocupação territorial dos “remanescentes de quilombos” e outros grupos
caracterizados pela legislação infraconstitucional como “povos” e “comuni-
dades tradicionais” (Decreto 6.040 de 2007).
Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia,
têm desempenhado papel decisivo no reconhecimento dos direitos indíge-
nas ao rebater ideias de “comunidades de origem”, vinculadas à noção de
“raça natural” (Silva, 2007: 867), com base na autoatribuição e construção

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de uma identidade étnica relacionada a formas específicas de territorializa-
ção, assim como na questão dos direitos humanos de minorias.
Na situação do reconhecimento das terras aos “remanescentes das co-
munidades de quilombos”, a utilização pela nova Carta Constitucional do
termo quilombo, até então sem significação fora da ordem escravocrata,
quando designava “negros fugidos do cativeiro”, coloca na aplicação dessa
norma, tanto aos legisladores, quanto aos operadores do direito, a questão
de buscar a referência social do termo na atualidade.
No contexto dos debates sobre a aplicação do artigo 68 do ADCT,
alguns travados no Congresso Nacional, e em diálogo com o Ministério
Público Federal, a ABA, como associação científica, tem se manifestado a
partir das posições disciplinares da antropologia e de um saber experien-
cial dos pesquisadores que a integram.
Tais tomadas de posição têm questionado a utilização de formas de
identificação e classificação estranhas aos próprios atores sociais, baseadas
em critérios “historiográficos”, “arqueológicos”, “raciais” e/ou “culturais”,
em busca do “sentido” considerado “correto”, “válido” e “verdadeiro”,
como diz Weber, sobre as “ciências dogmáticas” (1991:4). Ao contrário,
os antropólogos têm insistido na compreensão dos novos significados que
o uso de termos, como “remanescentes de quilombos”, adquire nas ações
sociais orientadas pela existência do dispositivo constitucional.
Deste modo, a existência legal de um grupo depende das ações e dos
significados que são produzidos no campo de reconhecimento dos direitos
diferenciados de cidadania, os quais só podem ser interpretados “quando
se encontram situados em uma organização social e em uma práxis de
comunicação” (Barth, 1987:85). Assim, ao orientar suas ações e produzir
significados nestes contextos, indivíduos e grupos são movidos por visões
de mundo, “representações e relações sociais (...) [que] configuram e fi l-
tram [suas] experiências” (Barth, 2002: 1).
Essa perspectiva ao se contrapor a uma “ciência classificatória que en-
fatiza as diferenças entre os grupos” (L’Estoile et al., 2002:11), como prati-
cada no antigo sistema de apartheid na África do Sul, afasta-se igualmente
de uma “antropologia militante a serviço dos grupos” (L’Estoile et al.,
2002: 10) que legitima denominações legais e administrativas como novas
identidades coletivas para conferir e atribuir direitos territoriais.
Todavia, os antropólogos e seus textos têm participado nas lutas con-
correnciais que se travam na defi nição de políticas públicas e de Estado,
como no caso da promulgação do Decreto 4.887 de 20 de novembro de
2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimen-

14 Eliane Cantarino O’Dwyer


to, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comu-
nidades remanescentes de quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT,
contra o qual o Partido da Frente Liberal – PFL (atual DEM) entrou com
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN n°3.239-9/600 – DF).
Nos pareceres sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria
Geral da República e pela Advocacia Geral da União, são citados artigos
de antropólogos e o livro da ABA Quilombos: identidade étnica e terri-
torialidade (O’Dwyer, 2002), assim como utilizados seus argumentos na
defesa do Decreto, principalmente sobre o critério de autoatribuição, que
tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação ou os também
chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação dos direitos
constitucionais aos “remanescentes de quilombos”.
Além disso, os estudos e relatórios antropológicos estão previstos em
portarias do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra),
como parte dos processos de reconhecimento territorial das comunidades
remanescentes de quilombos, os quais têm sido realizados por pesquisa-
dores em universidades, ONGs ou aqueles que fazem parte do seu quadro
funcional.
Qual é então o papel do antropólogo na elaboração de relatórios so-
bre terras de quilombos, visando o reconhecimento de direitos territoriais?
Tais relatórios são espécies de “atestados” que garantem aos grupos mobi-
lizados a concessão de títulos de propriedade das terras tradicionalmente
ocupadas para sua reprodução física, social e cultural?
O entendimento do papel desempenhado pelos relatórios antropológi-
cos pode variar, mas não se deve deles esperar provas cabais que assinalem
identidades substantivadas e territórios com fronteiras inequivocamente
determinadas. O fazer antropológico que orienta a elaboração desses re-
latórios como parte de processos administrativos apresenta uma explica-
ção sobre construções identitárias, formas de organização social, práticas
culturais e processos de ocupação territorial dos grupos que pretendem o
reconhecimento legal.
Tal tipo de “tradução etnográfica” nem sempre corresponde ao que
se espera dos relatórios antropológicos pelas instâncias consideradas de
avaliação e defesa dos interesses da administração pública. Assim, novos
desafios se colocam ao trabalho do antropólogo em condições de elabo-
ração de laudos e relatórios sobre terras de quilombo e na atuação da
ABA com novos atores institucionais. Destacam-se aqui a ação da AGU,
que normatiza os relatórios antropológicos segundo critérios estranhos à
disciplina, e também do GSI, como instância de avaliação desses mesmos

O papel social do antropólogo 15


relatórios, que se manifesta sobre os estudos técnicos de acordo com o
pressuposto de que na reivindicação pelo território sempre prevalecerá “o
inato autointeresse dos seres humanos”, desconsiderando a “construção
cultural de formas de vida humana” (Sahlins, 2006). Como os antropó-
logos e a ABA poderão colocar as práticas culturais no centro do debate
possível e (im)possível com o Direito, a Administração Pública e órgãos de
segurança institucional da Presidência da República, levando em conta a
questão principal se os grupos étnicos e sociais, “através do direito e da
antropologia”, como diz Geertz (1999:356), poderão reproduzir e recriar
formas organizacionais e padrões culturais que possam na prática ser por
eles vividos.
O leitor encontrará nessa coletânea o delineamento dessa e de outras
questões, e vários tipos de controvérsias, que levam ao acionamento de ar-
gumentos desenvolvidos e compartilhados pelos praticantes da disciplina
como meio de converter os debates às categorias de pensamento e formas
de compreensão próprias da antropologia. Deste modo, poderá acompa-
nhar por meio dos textos aqui reunidos, uma antropologia ‘em ação’, no
sentido usado por Bruno Latour para “ciência em ação” (2000:31-36),
pois a argumentação desenvolvida faz parte da interlocução possível neste
campo em construção da prática profissional dos antropólogos.
Para orientar o leitor, volto-me agora para uma visão geral dos capí-
tulos seguindo as discussões e problemas que estão em jogo nas situações
de exposição das opiniões e controvérsias. Assim, o primeiro texto da pu-
blicação apresenta um debate delineado no campo da aplicação do direito
constitucional aos remanescentes de quilombos, no qual a perspectiva dos
antropólogos reunidos no grupo de trabalho Terra de Quilombo da ABA
sobre a ressemantização do termo quilombo é contraposta ao modelo das
pesquisas sobre o Suriname e comunidades quilombolas caribenhas, que
segundo esta vertente mantêm continuidade histórica das comunidades re-
beldes do tempo da escravidão em contraposição a pouca constrastividade
cultural das comunidades de quilombos no Brasil. Nele, desenvolvo refle-
xões antropológicas a partir de materiais de pesquisa etnográfica sobre
questões de etnicidade e produção das diferenças culturais. A comunica-
ção deste paper ocorreu em contextos acadêmicos de debates em seminário
promovido pela ABA em comemoração aos 50 anos de fundação, realizado
na UnB e em palestras a convite de colegas de outras instituições acadêmi-
cas, como o departamento de antropologia da UFRN, entre outros.
O segundo capítulo, “Trajetórias, contextos e perspectivas na partici-
pação de antropólogos no reconhecimento de direitos constitucionais”, re-

16 Eliane Cantarino O’Dwyer


toma debate apresentado na Reunião Brasileira de Antropologia de 2008,
realizada em Porto Seguro, Bahia, no qual procuro fazer uma reconstitui-
ção das ações desenvolvidas pela ABA, desde 1994, no campo de aplicação
dos direitos constitucionais aos “remanescentes de quilombos”, ao situar
os debates ao longo desse período de mais de uma década e apresentar os
desafios do contexto atual enfrentados pelos antropólogos nesse campo de
reconhecimento de direitos territoriais, envolvendo tanto terras indígenas
quanto de quilombos.
O terceiro capítulo, “Direitos territoriais e a nova configuração política
com o Estado brasileiro”, possibilita a reconstituição do debate realizado
no contexto de um seminário promovido pela Advocacia Geral da União
por ocasião da elaboração de nova Instrução Normativa do Incra. Os ter-
mos da proposta apresentam uniformidade jurídica, segundo orientações e
controle da AGU, que opina sobre os conteúdos necessários aos relatórios
antropológicos como etapa inicial nos processos administrativos de reco-
nhecimento, identificação e delimitação das terras de quilombo, ao consi-
derar que os mesmos devem ser devidamente fundamentados em elementos
ditos objetivos, que apontam “uma maneira específica de imaginar a reali-
dade (...) aos olhos do Direito” e da Administração Pública (Geertz, 1999:
259). Este capítulo apresenta, igualmente, palestra realizada a convite do
Grupo de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), em
Brasília, abril de 2009, para debater sobre a questão do reconhecimento
territorial das terras de quilombo, segundo preocupação demonstrada pelo
GSI com a defi nição das “áreas efetivamente ocupadas” dessas comunida-
des, tendo em vista a possibilidade, segundo pensamento institucional, do
agravamento da questão agrária e a repercussão que possa ter no processo
de defi nição das áreas indígenas e das pretensões de outros grupos, desde
populações tradicionais até trabalhadores rurais sem terra. O pressuposto,
nesse caso, é de que em condições similares as pessoas sempre agirão de
forma bastante parecida, movidas pelos mesmos desejos de poder e ga-
nho, as mesmas esperanças de obtê-los. Enfi m, a cultura não importa, nem
tem interesse, quando comparada a uma “natureza humana subjacente”, à
qual costumes e leis não podem resistir, em função do inato autointeresse
dos seres humanos (Sahlins, 2006: 10). Tais questões foram abordadas
utilizando em contraposição os argumentos e reflexões do antropólogo
Marshall Sahlins, como expressos acima, no livro História e cultura: apo-
logias a Tucídides (2006). Nele, “a noção de natureza humana” competi-
tiva, “autointeressada”, é contraposta à “construção cultural de formas de

O papel social do antropólogo 17


vida humana”, considerada fundamental para definição de dentro e não
externa do que são “terras efetivamente ocupadas” (Sahlins, 2006: 115).
O quarto texto da coletânea sintetiza o laudo antropológico realizado
para o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) do Minis-
tério do Meio Ambiente, elaborado como parte do processo de anuência
prévia ao projeto desenvolvido por núcleo de pesquisa da UFRJ, visando
a bioprospecção de espécies farmacologicamente ativas utilizadas medici-
nalmente por comunidades quilombolas de Oriximiná, Pará. O trabalho
de campo realizado em janeiro de 2007 no rio Erepecuru foi relacionado
pelos membros das comunidades negras ribeirinhas às minhas atividades
de pesquisa etnográfica anteriores nessa região, e sem a plena aceitação
dos membros dessas comunidades não seria possível nem minha presença,
em parte por indicação deles próprios, nem a realização do referido laudo
antropológico.
Neste capítulo, gostaria de ressaltar que a possibilidade de produção
de medicamentos de tipo moderno a partir de plantas nativas, nas quais os
sacacas e curadores são considerados especialistas, tem sido avaliada pela
direção da Associação dos Remanescentes de Quilombos de Oriximiná
(Arqmo) e pelos membros das comunidades que entrevistamos, como uma
possível fonte de renda prospectiva apreciável para eles próprios e suas
próximas gerações, e assim representa uma luta dessas populações não só
“por ganhos materiais, mas também pela cidadania, (...) traduzida como
busca de respeitabilidade a si mesmo, [aos] seus valores e suas formas de
ver [e viver] no mundo (Cardoso de Oliveira, 2006: 53). No entanto, tal
colaboração entre estudiosos de farmacologia e populações tradicionais
remanescentes de quilombos que utilizam plantas medicinais na Amazô-
nia brasileira, mediante práticas de cura, não deve ser compreendida como
uma equivalência entre saberes, nem uma oposição entre “especificidades
culturais irredutíveis” (Amselle, 2001: 129).
O Capítulo 5 da coletânea tem sido apresentado em contextos de deba-
tes sobre confl itos ambientais e populações tradicionais, e discorre sobre a
redução drástica do território utilizado para caça e coleta pelos Awá-Gua-
já, na área da antiga Reserva Florestal do Gurupi, e a ameaça de “genocí-
dio doméstico” que atualmente paira sobre esse povo indígena. Esse texto
foi escrito a partir do laudo antropológico por mim realizado como perita
de juiz federal no processo de contestação da Área Indígena Awá-Guajá
por interesses latifundiários e madeireiros nos anos de 2001-2003. O texto
seguinte, que corresponde ao Capítulo 6, é um informe etnográfico enca-
minhado ao procurador da República do Maranhão elaborado em viagem

18 Eliane Cantarino O’Dwyer


a aldeia Juriti, na área indígena Awá, como parte das minhas atividades de
projeto de pesquisa acadêmica. Inicialmente este tipo de relatório não fazia
parte dos nossos objetivos, porém, pelas condições de trabalho de campo
e as queixas a mim manifestadas pelos Awá sobre insuportáveis sofrimen-
tos devido a mudanças implementadas na contramão dos seus valores de
referência, inclusive expressos por adoecimento, decido elaborar o informe
com o objetivo de fornecer uma explicação para esse sentimento de parti-
cipação dos Awá, submetidos ao disciplinamento de suas práticas culturais
imposto pelo regime de tutela com a redução do território indígena.
O último capítulo apresenta uma reflexão sobre a participação de pro-
fissionais em Antropologia nas atividades de pesquisa realizadas dentro e
fora da academia, prevalecendo um constante ziguezaguear entre inserção
no mundo acadêmico e os chamados saberes aplicados que envolvem o
campo político de reconhecimento dos direitos constitucionais e do exer-
cício da cidadania. Mas o argumento principal desse texto que procuro
desenvolver a partir de minha experiência profissional sobre as condições
e possibilidades do fazer antropológico nas circunstâncias de elaboração
de laudos, como um gênero de saber jurídico e/ou administrativo é o re-
conhecimento do vínculo estreito de constituição mútua entre os “antro-
pólogos” e o “trabalho de campo”. Tal vínculo permite afi rmar que tanto
em condições de pesquisa acadêmica, quanto na elaboração de pareceres e
laudos, o trabalho de campo é a chave, o meio de acesso ao saber e fazer
antropológico, que defi ne a própria comunidade dos seus praticantes.
Nada garante, na disposição de participar desses debates e contrapor
diferentes visões e tomadas de posição, que não ocorra à “inalienabilidade
da conversão dos argumentos”, como diz Mary Douglas (1998), em função
do domínio exercido pelas instituições. Como praticantes da antropologia,
porém, continuamos a apresentar nosso ponto de vista construído pelo sa-
ber disciplinar e experiencial o qual envolve, pelas implicações desse tipo
de tradução etnográfica, a responsabilidade social dos antropólogos diante
de indivíduos e grupos que investiga.
Deste modo, o objetivo desta publicação não é justificar ou defender
nossas práticas profissionais e posições disciplinares, mas fornecer uma
explicação sobre os argumentos, conceitos e traduções etnográficas de for-
mas específicas de vida, que são utilizados ao escrever um laudo, relatório,
ou artigo permeados por debates dentro e fora do campo disciplinar e pro-
duzir uma compreensão dessas experiências que podem ser representadas
e informadas pela própria antropologia.

O papel social do antropólogo 19


A tarefa de tradução etnográfica não deve, contudo, se impor aos mem-
bros dos grupos e comunidades em que as pesquisas de campo se desenvol-
vem, de modo que o processo de construção textual possa ser contestado
por aqueles a quem se referem. Assim, é responsabilidade social do antro-
pólogo não criar uma esfera de poder decisório com a caução da ciência,
mas em nome dos princípios da autonomia e dos valores da prática da
disciplina Antropologia, adotar uma perspectiva compreensiva sobre as
representações e ações sociais de indivíduos e grupos inseridos nesse con-
texto de reivindicação de direitos territoriais.
Por fi m, os textos aqui publicados pretendem contribuir para o desafio
do presente, como proposto por Talal Asad, “de que não só é possível, mas
necessário para o antropólogo atuar como tradutor e crítico ao mesmo
tempo” (Asad, 1991: 234).

Referências bibliográficas
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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília,
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20 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 1

Os quilombos e as fronteiras da antropologia


No Brasil, a autoatribuição de identidades étnicas tem se tornado uma
questão importante nos últimos anos, por meio da organização política
de grupos que reivindicam o reconhecimento dos territórios que ocupam,
como no caso dos povos indígenas e as chamadas comunidades remanes-
centes de quilombos.
A partir da Constituição Brasileira de 1988, o termo quilombo, antes
de uso quase restrito a historiadores e referido ao nosso passado como
nação, adquire uma significação atualizada, ao ser inscrito no artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para confe-
rir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocu-
pando suas terras, sendo-lhes garantida a titulação defi nitiva pelo Estado
brasileiro.
Quilombo ou remanescente de quilombo, termos usados para confe-
rir direitos territoriais, permite “através de várias aproximações, desenhar
uma cartografia inédita na atualidade, reinventando novas figuras do so-
cial” (Revel, 1989:7). Assim, a construção de uma identidade originária
dos quilombos torna-se uma referência atualizada em diferentes situações
etnográficas nas quais os grupos se mobilizam e orientam suas ações pela
aplicação do artigo 68 do ADCT.
Pode parecer paradoxal que os antropólogos, que marcaram suas dis-
tâncias e rupturas com a historiografia, ao defi nir seu campo de estudos
por um corte sincrônico no presente etnográfico, tenham sido colocados
no centro dos debates sobre a conceituação de quilombo e sobre a identi-
ficação daqueles qualificados como remanescentes de quilombos, para fi ns
de aplicação do preceito constitucional.
Acontece, porém, que o texto constitucional não evoca apenas uma
“identidade histórica” que pode ser assumida e acionada na forma da lei.
Segundo o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos pre-
sumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de
ocupar uma terra que, por direito, deverá ser em seu nome titulada (como

O papel social do antropólogo 21


reza o artigo 68 do ADCT). Assim, qualquer invocação ao passado, deve
corresponder a uma forma atual de existência, que pode realizar-se a par-
tir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo
social determinado.
Tal aspecto presencial, focalizado pela legislação, e o fato de o pres-
suposto legal estar referido a um conjunto possível de indivíduos ou ato-
res sociais organizados em conformidade com sua situação atual permite
conceituá-los, sob uma perspectiva antropológica mais recente, como gru-
pos étnicos, que existem ou persistem ao longo da história como um “tipo
organizacional” segundo processos de exclusão e inclusão que permitem
defi nir os limites entre os considerados de dentro e de fora (Barth, 2000:
31). Isso, sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças
culturais herdadas que possam ser facilmente identificáveis por qualquer
observador externo, supostamente, produzidas pela manutenção de um
pretenso isolamento, geográfico e/ou social, através do tempo.
Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), fundada em 1955, tiveram um papel decisivo no questionamento de
noções baseadas em julgamentos arbitrários, como a de remanescente de
quilombo, ao indicar a necessidade de os fatos serem percebidos a partir de
outra dimensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais,
que pretendem em suas ações a vigência do direito atribuído pela Consti-
tuição Federal. Para tanto usaram os materiais de pesquisa etnográfica e
as reflexões antropológicas sobre etnicidade, grupos étnicos e a construção
das diferenças culturais como temas de debate nesse campo de aplicação
dos direitos constitucionais.
As defi nições podem servir de instrumento de legitimação das posições
assumidas no campo propriamente político, mas como numa via de mão
dupla, a emergência de uma identidade étnica “remanescente de quilom-
bo”, referida a uma origem comum presumida de grupos que orientam
suas ações pela aplicação do preceito constitucional (artigo 68 do ADCT),
tem igualmente fomentado debates de natureza teórica e metodológica no
campo da antropologia praticada não apenas no Brasil. Da perspectiva dos
antropólogos reunidos no grupo de trabalho Terra de Quilombo da ABA,
a etnicidade refere-se aos aspectos das relações entre grupos que conside-
ram a si próprios e são também por outros considerados como distintos.
Assim, a partir de Barth (1969), as diferenças culturais adquirem um ele-
mento étnico não como modo de vida exclusivo e tipicamente característi-
co de um grupo, mas quando as diferenças culturais são percebidas como
importantes e socialmente relevantes para os próprios atores sociais. No

22 Eliane Cantarino O’Dwyer


caso das chamadas comunidades negras rurais no Brasil, tais diferenças
culturais costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos, que
por sua vez podem ser relacionados com racismo e discriminação. Usado
analiticamente pela antropologia, o conceito de estereótipo se refere à cria-
ção e aplicação de noções padronizadas de distintividade cultural de um
grupo e também diferenças de poder (Eriksen, 1991: 66).

Da “pouca” contrastividade cultural das comunidades de quilombos


no Brasil
Há outra visão que se contrapõe a essa e reúne alguns antropólogos e his-
toriadores, os quais usam como modelo as pesquisas sobre o Suriname e
as comunidades quilombolas caribenhas e, no Brasil, só se referem como
quilombos àqueles formados durante o período da escravidão, como o qui-
lombo de Palmares no século XVIII. De acordo com tal perspectiva, an-
corada nos estudos de Richard Price, “o Brasil de hoje não abriga os tipos
de comunidades quilombolas – com evidente continuidade histórica das
comunidades rebeldes do tempo da escravidão e com profunda consciência
histórica e organização política semi-independente – que ainda florescem
em outras partes da América (Jamaica, Suriname, Guiana Francesa e Co-
lômbia) (Price, 2000:248). Esses estudos consideram, ainda, que as cha-
madas comunidades negras rurais e/ou as “terras de preto” do estado do
Maranhão, foram formadas anteriormente à Abolição, com a decadência
das fazendas e plantações de algodão, algumas resultam de doações de ter-
ra por senhores a ex-escravos, outras compradas por escravos libertos, ou
doações de terras a escravos que serviram no Exército em tempo de guerra,
como a do Paraguai (idem:249).
Segundo os argumentos que utilizam, mesmo nas comunidades de qui-
lombo da fronteira amazônica, defi nidas como formadas por escravos fu-
gidos de acordo com a documentação histórica disponível, “as semelhan-
ças principais – em tudo, da organização religiosa à social – com outras
comunidades rurais brasileiras”, são então explicadas por uma ausência de
continuidade, de longa duração, do tipo de passado quilombola vivido pe-
los Saramaka do Suriname. O antropólogo Richard Price se declara choca-
do com a falta de tradições orais profundas, como no caso do “quilombo”
Rio das Rãs (Bahia), e faz referência a uma vasta gama de continuidades
culturais com outras comunidades rurais brasileiras, o que contrasta com
os exemplos de quilombos que sustentam sua “diferença” em relação às co-
munidades não quilombolas como no Suriname. Enfi m, essa visão aponta

O papel social do antropólogo 23


para pouca contrastividade cultural e “continuidade” no tempo das comu-
nidades de quilombo no Brasil.
Deste modo, no Suriname é evidente uma notável “diferença” cultural,
social e política até mesmo para o olhar mais desavisado. Desta perspecti-
va, poucos dos afro-brasileiros classificados como “remanescentes de qui-
lombos” seriam vistos como quilombolas, como é o caso dos Saramaka,
Ndyuka e Aluku do Suriname, Mooretown e Accompong na Jamaica e
Palenqueros de San Basílio da Colômbia.
Tal visão sobre a pouca contrastividade cultural e continuidade no tem-
po dos quilombos no Brasil em contraposição à América Latina, encontra-
se referida ao paradigma africano das etnias. Contudo, também no caso
do continente africano os pesquisadores têm demonstrado que a defi nição
clássica de etnia como universos fechados, igual à concepção historiográfi-
ca e de continuidade cultural dos quilombos, não pode se aplicar a vários
povos, como no caso dos Somba do norte de Benin. Deste modo, também
no caso africano, ao contrário de conceber as etnias como universos fecha-
dos, situados uns ao lado dos outros (como bolas em uma mesa de bilhar),
os sistemas políticos pré-coloniais como entidades claramente separadas,
as concepções religiosas como mundos bem delimitados, novas pesqui-
sas têm enfocado as inter-relações e os entrelaçamentos, acentuando as
relações e a fronteira enquanto matriz das formações políticas africanas.
Segundo Amselle (1999: 29):

Se as populações anteriormente sem Estado responderam favoravelmente


a imagem que os colonizadores tinham delas é sem dúvida porque tais
populações já se inscreviam em um quadro de relações que incluem o Es-
tado como um dos seus elementos próximo ou distante. O denominador
comum de todas essas defi nições de etnia na África corresponde em de-
fi nitivo a um Estado-nação de caráter territorial. Distinguir (...) era bem
a preocupação do pensamento colonial, assim como encontrar um chefe,
no seio do amálgama de populações residentes no país conquistado, en-
contrar entidades específicas (necessárias a governabilidade). Assim, as
etnias na África procedem da ação do colonizador, que na sua intenção
de territorializar o continente africano, discriminou entidades étnicas que
foram em seguida reapropriadas pelas populações. Deste modo, a etnia
como numerosas instituições pretensamente primitivas, constituem mais
um falso arcaísmo.

O próprio uso de etnônimos – termos de autodesignação dos grupos –


como o termo Beté da Costa do Marfi m (Dozon), que significa “perdão”,

24 Eliane Cantarino O’Dwyer


remete à submissão das populações dessas regiões aos franceses, e foi apli-
cado pela administração colonial a um território arbitrariamente dividido
por ela no seio de um contínuo cultural.

Deste modo, os etnônimos podem ser considerados como uma gama de


elementos que os atores sociais hoje utilizam para enfrentar as diferen-
tes situações políticas que a eles se apresentam e, assim, eles servem de
signos de reconhecimento. Além disso, um etnônimo pode receber uma
multiplicidade de sentidos em função das épocas, portanto, não se deve
considerar que tal modo de identificação exista eternamente, mas que sua
utilização é de natureza performativa e, assim, estabelecer os usos sociais
do termo (idem: 36,37).

Como quilombo, no caso brasileiro.


Esse debate delineado em linhas gerais “esquenta” questões teóricas
e metodológicas da prática da pesquisa antropológica no Brasil, junto às
comunidades afrodescendentes. Contudo, não é preciso “identificar etni-
cidade como propriedade de grupos culturais” (Eriksen, 1991:61), como
parecem fazer os defensores da tese que aponta para a pouca contrastivi-
dade cultural dos quilombos no Brasil. As abordagens de Barth, Eidheim
e outros, ao conceituar “etnicidade como um tipo de processo social no
qual as noções de diferença cultural são comunicadas” (Eriksen, 1991:62),
têm informado nossas reflexões sobre os grupos que orientam suas ações
pelo reconhecimento territorial das áreas que ocupam para reivindicar os
direitos de uma cidadania diferenciada ao Estado brasileiro.

Critérios de pertencimento territorial e a produção das diferenças


culturais
Gostaria, ainda, de confrontar os modelos utilizados pelos pesquisado-
res e os critérios de pertencimento territorial e a produção das diferenças
culturais pelos próprios atores sociais, a partir da minha experiência de
pesquisa.
As comunidades remanescentes de quilombos têm realizado, por meio
da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Ori-
ximiná (Arqmo), a titulação coletiva das áreas que ocupam, que segue a
prática de uso comum do território para práticas extrativistas e produ-
ção familiar de subsistência. Este procedimento passou a servir de modelo
para a ação coletiva das comunidades de “ribeirinhos”, que não se defi nem

O papel social do antropólogo 25


pela procedência comum dos quilombos e encontram-se organizados no
Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Oriximiná.
Apesar das semelhanças que as identificam com as formas de territo-
rialização coletiva das comunidades negras rurais e a defesa de interes-
ses comuns sobre o reconhecimento dos seus territórios, às populações
tradicionais ribeirinhas de Oriximiná, por meio de seus representantes e
alguns de seus membros, consideram-se muito diferentes. Neste contexto,
os chamados “remanescentes” são reconhecidos por eles como um “povo
da floresta”. Este tipo de atribuição sobre “traços e emblemas diagnósti-
cos” (Nagata, 1976) por parte daqueles com quem interagem, se por um
lado, expressa julgamentos etnocêntricos, por outro, representa uma for-
ma positiva de identificação. Costumam comentar, os chamados “colonos
ribeirinhos”, que “esses negros são todos preguiçosos; com esse monte de
terra e eles não plantam nada”. Para os trabalhadores ribeirinhos, os “ne-
gros” como dizem, não têm uma produção fi xa a não ser a castanha – “são
mais extrativistas mesmo; você chega à casa de um negro, praticamente é
dentro da mata”. Porém, a partir da história da preservação da Amazônia,
segundo suas próprias explicações, passaram a reconhecer que os negros
fi zeram o papel deles, preservando melhor do que ninguém essa floresta.
Procedem, ainda, a uma outra distinção entre eles, quanto ao comporta-
mento em contexto urbano, dizendo que na sociedade moderna de Orixi-
miná – leia-se a vida que levam na cidade – os “negros” são discriminados
e diferentemente dos “colonos ribeirinhos”, que preferem se aglomerar e
misturar, os “negros” continuam unidos e preferem morar mais isolados
no alto dos rios. Tratam-se, portanto de “unidades em contraste”, que se
consideram diferentes em termos de subsistência e das interações que pro-
movem no núcleo urbano.
Os direitos constitucionais não são os mesmos para as comunidades
“remanescentes de quilombo”, que reivindicam a aplicação do artigo 68
do ADCT, e as comunidades de “colonos ribeirinhos”, que buscam formas
alternativas para a titulação coletiva de suas terras e as distinções emergem
neste contexto de luta pela titulação coletiva das terras. Pois não é só pela
procedência comum, o uso da terra, dos recursos ambientais e a anciani-
dade da ocupação de um território comum, que as comunidades negras
rurais “remanescentes de quilombo”, diferenciam-se e invocam seus direi-
tos constitucionais. Na chamada “região interior” deste universo social, o
domínio que exercem sobre o território é simbolizado através dos relatos
sobre os dois mais famosos e reconhecidos curadores, ou “sacacas”, con-
forme o termo que usam, ambos do rio Erepecuru: o primeiro de nome

26 Eliane Cantarino O’Dwyer


Balduíno, viveu até os anos 1970, e o segundo, Chico Melo, que o sucedeu
nesses últimos 20 anos, também já é falecido.
Balduíno é citado por seus feitos notáveis, relatos de cura, de possessão
e previsões desconcertantes sobre o futuro, como o surgimento de uma
grande cidade iluminada dentro da floresta, que é hoje Porto Trombetas,
cidade industrial construída pela Mineração Rio do Norte (MRN), empre-
sa de extração mineral da bauxita.
Os sacacas aprenderam a curar com a natureza, as ervas, que conhe-
ciam, durante dias e dias que passavam, como que desorientados, embre-
nhados na floresta, e nas viagens ao fundo dos rios. Chico Melo era famoso
também por descobrir o paradeiro das pessoas e agir para que mudassem
seus destinos e voltassem para o convívio das famílias.
Desse modo, este “imbricado complexo de terras e direitos” (Revel,
1989:103), é simbolicamente construído como um território unificado sob
o controle de uma população, por meio dos seus sacacas. Pode-se dizer, que
esse tipo de conhecimento deles do território, dos seus bens e seres natu-
rais, atribuídos pelos membros dos grupos “remanescentes de quilombo”,
assim como os grandes deslocamentos espaciais dos sacacas (Balduíno era
visto crivando os pés nas águas do rio na velocidade atual das chamadas
lanchas “voadeiras”) e sua prática itinerante, permite ao mesmo tempo a
produção de um único território pertencente às comunidades remanescen-
tes de quilombo do Trombetas e Erepecuru-Cuminá, e da legitimidade do
domínio que sobre eles reivindicam, e de fato, exercem.
A crença em mundos paralelos habitados por seres sobrenaturais e o
domínio desse espaço adquirido pelos sacacas, inclusive no aprendizado
sobre o uso dos recursos naturais e das potências que lhes ultrapassam em
suas práticas terapêuticas, permite a construção do território como uma
totalidade simbólica, que defi ne as fronteiras do grupo. Assim, os “aspec-
tos fundiários” são igualmente transpostos na delimitação de um território
por “códigos culturais específicos” (Oliveira, 1998:9, 17).

Diferenças que fazem toda diferença?


É possível aplicar o termo etnicidade com referência ao processo de cons-
trução de fronteiras territoriais, antes descrito, com base em crenças e sen-
timentos religiosos compartilhados pelas “comunidades remanescentes de
quilombo” dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá. Afi nal, a etnicidade
defi nida hoje pela disciplina Antropologia faz referência à reprodução so-
cial de diferenças classificatórias entre categorias autodefi nidas de pessoas
e grupos na interação social, e que envolve a comunicação entre elas de dis-

O papel social do antropólogo 27


tintividade cultural. “Etnicidade é considerada, ainda, fundamentalmente
dual e abrange aspectos, tanto de significado, quanto de política” (Eriksen,
1998: 49).
Na situação etnográfica das chamadas comunidades negras rurais do
município de Oriximiná (estado do Pará), a etnicidade está associada ao
fenótipo, ao modo de vida ou habitus, a origem comum presumida do
tempo da escravidão e das fugas para os quilombos, e igualmente pelo (do-
mínio) aspecto da religiosidade. Assim, no caso das crenças e práticas reli-
giosas dos sacacas que participam na construção das diferenças culturais
entre os chamados “colonos ribeirinhos” e os “remanescentes de quilom-
bo”, é possível constituí-las como uma dimensão significativa e estratégica
da etnicidade, signo da identidade étnica desses grupos que reivindicam o
reconhecimento de uma cidadania diferenciada (Eriksen, 1988:73)? Tais
símbolos, contudo, podem ser contestados pelos defensores de uma abor-
dagem que invoque como marca da etnicidade as diferenças que podem
fazer a diferença, como exclusivas e tipicamente características de um gru-
po, pois as diferenças culturais consideradas a partir do domínio religioso
são igualmente compartilhadas pela população ribeirinha e fazem parte
de uma “cultura regional” que distingue o “habitante rural da Amazônia”
de outras regiões brasileiras, como chama atenção o antropólogo Eduardo
Galvão em seu livro Santos e visagens, um estudo da vida religiosa de Itá,
Baixo Amazonas, publicado em 1976.
A concepção do universo pelo chamado “caboclo” de Itá, como da
Amazônia em geral, está referida ao processo de fusão dos elementos re-
presentados por “duas tradições”, a “ibérica” e as “ideias e crenças que de-
rivam do ancestral ameríndio” (Galvão, 1976:3). Neste caso, “uma carac-
terística regional é a forte influência ameríndia, que se revela em crenças e
práticas religiosas dessa origem”, entre as quais Galvão registra os seres que
habitam a mata: “currupiras, anhangás, ‘visagens’, na fala regional; a cobra
grande, que aparece como sucuriju de grande porte (...) ao matintaperera e
aos botos que se acredita serem encantados e possam se transformar em se-
res humanos” (idem:4). Dessa extensa lista fazem parte “os companheiros
de fundo, ‘encantados’ que habitam o fundo dos rios e igarapés, às mães de
bicho, entidades protetoras da vida animal e vegetal” (idem:4). Além disso,
“muitos outros sobrenaturais a que o caboclo denomina genericamente de
bichos visagentos, em geral associado a um acidente natural, o rio, o igara-
pé, ou um trecho da mata” (idem:4).
As descrições de Galvão (1976) ao longo do livro sobre os pajés sacacas
que possuem poderes especiais e viajam pelo fundo d’água, as “práticas má-

28 Eliane Cantarino O’Dwyer


gicas” usadas no tratamento de enfermos, o poder de adivinhar ou prever
dos sacacas, correspondem ao tipo de dados etnográficos coligidos na rea-
lização de trabalho de campo nas comunidades remanescentes de quilombo
de Oriximiná (Pará). Também a iniciação de Chico Melo pelo sacaca mais
poderoso dos rios Trombetas e Erepecuru, de nome Balduíno, assim como as
crenças em feitiçaria e o uso do espelho nas práticas divinatórias, como con-
tam sobre Balduíno, fazem parte do sistema religioso como um aspecto da
cultura e tradição regional amazônica, como analisado por Galvão (1976).
O autor adverte que, apesar de justificável, a preocupação com as ori-
gens, “igualmente, senão mais, o é compreendê-las no seu papel na vida re-
ligiosa contemporânea” (Galvão, 1976:66). Deste modo, ele critica a busca
incessante de origens, como no caso do conceito de encantado, e o concei-
to de mãe, em que se acredita que “cada espécie possui a sua mãe, a mãe
do bicho, entidade protetora que castiga àqueles que matam muitos ani-
mais. (...) Também os acidentes geográficos tem mãe, os rios, os igarapés,
as lagoas, os poços e até os portos onde atracam as canoas” (idem:76-77)
e poderíamos completar a mãe cachoeira que é cantada em prosa e verso
pelos membros das comunidades remanescentes de quilombo de Orixi-
miná (Pará). Sobre a crença em mães de “bichos” ou de “coisas”, em nota
de pé de página, Galvão considera que “o conceito de mães poderia ser
atribuído à influência dos escravos africanos que trouxeram para o Brasil a
crença em um número de entidades femininas, como Iemanjá, as quais no
processo de sincretismo foram identificadas a entidades cristãs, (...) em que
pesou a influência do africano e do português, sobre crenças do indígena”
(idem:76-77). O autor constata ainda a influência recente sobre a pajelança
às manifestações religiosas comuns nas cidades da Amazônia, os chama-
dos cultos caboclos ou dos terreiros de minas, segundo ele de influência
sobretudo africana que se espalham pela zona rural, e são igualmente in-
fluenciados pelos pajés sacacas, originários da zona rural, que migram e
mantêm network com as cidades de Belém, Santarém e Manaus.
A situação etnográfica da pesquisa que desenvolvo nas chamadas co-
munidades negras rurais remanescentes de quilombo de Oriximiná (Pará),
em tudo comparável aos dados e argumentos do estudo citado sobre a vida
religiosa de uma comunidade amazônica (Galvão, 1976), não permite por
meio da religiosidade compartilhada por esses grupos sociais, qualquer
análise antropológica que aponte as diferenças religiosas, que foram du-
rante a pesquisa de campo invocadas na construção do território comum e
das fronteiras étnicas dos remanescentes de quilombo dos rios Trombetas
e Erepecuru-Cuminá, como uma característica diferencial que faz toda
diferença, isto é, uma especificidade cultural desses grupos.

O papel social do antropólogo 29


África no Brasil?
Tal visão sobre a pouca contrastividade cultural e continuidade no tempo
dos quilombos no Brasil em contraposição à América Latina, pode estar
referida ao paradigma africano das etnias, como vimos, e também da he-
rança de culturas negras originárias no Novo Mundo, representada pelos
“africanismos sobreviventes no Brasil” (Ramos, 2005:15-16).
Do ponto de vista dos estudos afro-americanos, nos quilombos, ou
como diziam nos anos 70, nas comunidades de negros (marrons), as “civi-
lizações africanas” puderam se conservar (Bastide, 1974:46). Para o autor,
entretanto, é preciso distinguir os diversos tipos de “marronage”, tanto no
tempo como no espaço. De muitos casos de “marronage” na América Lati-
na, como nas Antilhas, têm-se a emergência de “novas civilizações negras,
sem dúvida, mas não verdadeiramente africanas”, como afi rma (idem:49).
Delas “só se conservam vagos traços da África perdida”, como por exem-
plo, as formas antigas de casamento.
Assim, para Bastide, “a cultura que renascia entre os escravos marrãos
era mais uma cultura sincrética do que uma cultura puramente africana,
tanto mais que o sincretismo, segundo o autor, podia ser um meio de uni-
ficar as crenças de etnias heterogêneas transplantadas da África. Assim,
“em Palmares, no Brasil, as tropas lançadas contra os negros fugitivos
descobriram em suas cidades abandonadas igrejas católicas com imagens
de santos” (idem:49). Além disso, “muitas dessas repúblicas de marrãos
desapareceram, destruídas pelos exércitos coloniais, ou por suas terras te-
rem sido dadas aos brancos, como aconteceu com a República de Palma-
res”, ou ainda porque se misturou com a população circundante de índios
ou de mestiços.
Segundo Bastide, somente aquelas que resistiram vitoriosamente, con-
cluíram tratados de aliança com os governadores dos países em que se
haviam fundado. Na Jamaica, em 1739; na Guiana Holandesa, em 1750,
para os marrãos mais antigos, e em 1761, para os Niuka Auxa (Nyuka); e
no Suriname, os Saramaca, em 1762.
Tais argumentos parecem convergentes com a visão de Price sobre a
pouca contrastividade cultural e continuidade no tempo dos quilombos no
Brasil em contraposição a América Latina. Contudo, as semelhanças ficam/
param por aí. Segundo a conclusão de Bastide, a “marronge” é a expres-
são de uma resistência cultural e não somente econômica, na medida em
que os bandos de “marrons” formados tenderam a constituir-se segundo a
etnia, e uma vez que os mesmos se confederavam para formar República,
os elementos diferenciais tendiam a coexistir pacificamente, mais do que

30 Eliane Cantarino O’Dwyer


a se fundir. Porém, a necessidade de adaptar-se a novo meio conduziu a
mudanças mais ou menos substanciais das culturas nativas; ainda segundo
Bastide trata-se mais frequentemente da adaptação do passado e o presente
do que da criação de formas de vida inteiramente novas.
No livro O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica, Price e Mintz defendem uma tese diametralmente oposta.
Segundo eles, as correspondências e divergências entre práticas sociais e
culturais, aí incluídas as manifestações religiosas dos grupos de escravos
transplantados e “criollos” nascidos nas colônias, revelam outro tipo de
continuidade, no qual o tipo de sistema religioso e sociocultural da terra
natal, não sobrevive, intacto e inalterado, no novo contexto, apenas al-
guns exemplos de continuidades africanas em Trinidade e Cuba, consti-
tuem mais a exceção do que a regra em qualquer cultura afro-americana,
mesmo nas dos tipos dos Saramaca considerados das mais isoladas (Price,
1992:86).
Price e Mintz criticam a formulação do tipo “ou isto ou aquilo” que
tiveram um lugar significativo na pesquisa afro-americanista e sugerem
que as analogias superficiais (por exemplo, o trabalho comercial feminino
na África Ocidental e no Caribe) não conseguirão revelar tanto quanto
algumas continuidades defi nidas pelos autores como mais cruciais (por
exemplo, as atividades masculinas e femininas perante a autonomia indi-
vidual) que revelam “orientações cognitivas” e a ideia de que certas noções
africanas sobre a relativa separação dos papéis masculinos e femininos são
reforçados pela experiência nas colônias agrícolas, produzindo o que lhes
pareceu ser padrões afro-americanos característicos (idem: 109).
Para a compreensão de como realmente se forjaram as culturas afro-
americanas (p. 74), Price e Mintz abrem mão de toda busca sobre os re-
manescentes e resíduos africanos no Novo Mundo, como nas obras pio-
neiras de Herskovits (O mito do passado negro, 1930), Artur Ramos (As
culturas negras no Novo Mundo, 1943) e Bastide (As Américas negras,
1971) (idem:86, nota 18), para compreender os primórdios das sociedades
e culturas afro-americanas como parte de uma herança africana que deve
ser defi nida em termos menos concretos, concentrando-se mais nos valores
e menos nas formas socioculturais e até, conforme propõem Price e Mintz,
tentando identificar princípios “gramaticais” inconscientes que possam es-
tar subjacentes à resposta comportamental e fossem capazes de moldá-la,
enfi m, “orientações cognitivas” (herdadas) (idem:28).
Neste debate, os mesmos argumentos e dados são frequentemente uti-
lizados para se chegar a conclusões diametralmente opostas, as culturas

O papel social do antropólogo 31


afro-americanas sendo pensadas como reminiscência de um passado tra-
dicional ou como criações novas, resultado das novas condições de vida
nas colônias americanas, como dizem Artur Ramos e Edson Carneiro em
Antologia do negro brasileiro.
Mas, em ambos os casos, seja pelos “africanismos sobreviventes” no
Brasil ou por uma “orientação cognitiva” herdada do passado africano,
segundo Price e Mintz, a emergência dos estudos afro-americanos frequen-
temente tem sido uma maneira de encontrar a África na América.

Nova configuração étnica e política na relação com o Estado


brasileiro
É nesse campo de debates sobre a conceituação de quilombo e a aplica-
ção do preceito constitucional (o artigo 68 do ADCT), no qual partici-
pam igualmente procuradores, advogados, juristas e representantes do
Legislativo, que o governo brasileiro promulgou o Decreto n° 4.887 de
2003, que não prevê a elaboração de estudos antropológicos no processo
de identificação territorial das comunidades remanescentes de quilombos
pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Incra. Como o
decreto está fundamentado na convenção 169 da OIT, segundo a qual é
a consciência de sua identidade que deverá ser considerada como critério
fundamental para a identificação dos povos indígenas e tribais, a partici-
pação de antropólogos no processo foi desconsiderada na medida em que
não se fariam mais necessários relatórios antropológicos “atestando” a
identidade quilombola dos grupos que reivindicam a aplicação do artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A ABA, presente na audiência pública antes da promulgação do decre-
to, defendeu que a autodefinição utilizada pelos próprios atores sociais não
prescinde da realização de estudos técnicos especializados que venham a
descrever e interpretar a formação de identidades étnicas no bojo do pro-
cesso de reconhecimento das comunidades negras rurais remanescentes de
quilombos, na medida em que esses estudos tragam subsídios para uma
decisão governamental e forneçam elementos para que o próprio grupo
possa se defender de possíveis formas de intervenção estatal que possibi-
lite apenas a reprodução das categorias sociais, sem garantir as condições
para a perpetuação de padrões culturais, modos de vida e territorialidades
específicas.
No documento encaminhado pela ABA à Casa Civil da Presidência da
República, após a audiência pública sobre o decreto, dizíamos que deixar
por conta de uma futura ação judicial a defesa do ato de reconhecimen-

32 Eliane Cantarino O’Dwyer


to dos direitos constitucionais pelo Estado, como considerado por alguns
representantes dos quilombolas e de agências governamentais, poderia
representar uma enxurrada de questionamentos na esfera judicial, o que
terminaria por inviabilizar que se cumpram os direitos assegurados pela
Constituição Federal de 1988.
Após a promulgação do Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, de-
limitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades
remanescentes de quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT, o Partido
da Frente Liberal (PFL) entrou com uma Ação Direta de Inconstituciona-
lidade (ADIN n° 3.239-9/600 – DF) em face desse Decreto. Os pareceres
sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria Geral da Repú-
blica e pela Advocacia Geral da União recorrem ao livro da ABA Quilom-
bos: identidade étnica e territorialidade (O’Dwyer, 2002) e utilizam seus
argumentos na defesa do Decreto, principalmente sobre o critério de auto-
atribuição, que tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação
ou os também chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação
dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas re-
manescentes de quilombos.
A perspectiva antropológica adotada pela ABA passa, assim, a ser um
elemento fundamental na defesa do Decreto e, por extensão, do próprio
artigo 68 do ADCT. Após a ADIN impetrada pelo PFL, o MDA e o Incra
contataram a ABA para novamente contarem com a participação de antro-
pólogos no bojo dos processos de reconhecimento territorial das comuni-
dades remanescentes de quilombos e editaram uma nova portaria, n° 20,
que prevê a elaboração de estudos e relatórios antropológicos.
É preciso reconhecer que o conceito de grupo étnico usado neste con-
texto de aplicação dos direitos constitucionais às comunidades remanes-
centes de quilombos tem levado a uma reificação das fronteiras e subs-
tantivação desses grupos como totalidades bem delimitadas, autônomas e
autossuficientes apesar de uma enchente de dados etnográficos renitentes.
Contudo, a defi nição prevalente é de que os grupos étnicos são enti-
dades autodefi nidas: as etnicidades demandam uma visão construída de
dentro e elas não têm relações imperativas com qualquer critério objetivo
(Ericksen, 1991).

Considerações finais
Por fi m, gostaríamos de sugerir que essa busca pelas diferenças que fazem
toda diferença pode estar relacionada ao próprio campo de constituição

O papel social do antropólogo 33


da disciplina Antropologia, herdeira de significados que precede sua for-
malização, como aquele do savage slot, temática constitutiva do próprio
Ocidente, segundo Trouillot (1991), que deve ser recusada pela prática
antropológica de hoje.
Assim, o destino rebelde dos Saramaka do Suriname, dos Palenques
da Colômbia e, porque não, dos quilombolas no Brasil pode contribuir
para a construção de uma “antropologia do presente, uma antropologia
do mundo em mudança e suas histórias irredutíveis”, afastada de qualquer
pressuposto dos quilombos como o lugar de uma “fenda selvagem”, que
termina por negar a especificidade da diversidade.

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34 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 2

Trajetórias, contextos e perspectivas


na participação de antropólogos no
reconhecimento de direitos constitucionais
Nesta apresentação pretendo situar os debates que os antropólogos estão
inseridos no campo de aplicação dos direitos constitucionais, principal-
mente no que diz respeito às terras de quilombo e algumas questões que
precisamos enfrentar no contexto atual sobre o reconhecimento de direitos
diferenciados de cidadania.
A diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sob a pre-
sidência do Prof. João Pacheco de Oliveira, defi niu como um desafio da
gestão 1994-1996, que a ABA deixe de se manifestar apenas em relação às
questões que envolvam assuntos indígenas e se faça presente em outros do-
mínios e campos de atuação significativos. Foi com esta atribuição que se
constituiu o grupo de trabalho da ABA para refletir sobre a conceituação
de “terras de remanescentes de quilombos”, a sistemática administrativa
para sua implementação e o papel do antropólogo nesse processo.
A primeira reunião desse grupo de trabalho ocorreu em 17 de outubro
de 1994 e teve a participação de pesquisadores que trabalhavam com esta
questão. Nessa ocasião, na sede da ABA, no IFCS/UFRJ, reunimo-nos,
entre outros, eu, Ilka Boaventura Leite, Lúcia Andrade, Neusa Gusmão e
o advogado Dimas Salustiano da Silva, de São Luís do Maranhão. Nessa
ocasião, foi elaborado um documento para o Seminário das Comunidades
Remanescentes de Quilombos promovido pela Fundação Cultural Palma-
res/Minc, realizado em Brasília entre os dias 25 e 27 de outubro de 1994.
O documento, que trata da abrangência do significado de Quilombo visan-
do a aplicação do artigo 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988,
foi discutido com representantes de diversas associações e comunidades
negras rurais presentes no seminário, em Brasília.
De acordo com esse documento, o termo “quilombo” tem assumido
novos significados na literatura especializada e também para grupos, in-
divíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mes-

O papel social do antropólogo 35


mo vem sendo “ressemantizado” para designar a situação presente dos
segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Defi nições
têm sido elaboradas por organizações não governamentais, entidades con-
fessionais e organizações autônomas dos trabalhadores, bem como pelo
próprio movimento negro. Um exemplo disso é o termo “remanescente de
quilombo”, instituído pela Constituição de 1988, que vem sendo utilizado
pelos grupos para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhes confere uma referência presencial no sentimento de ser e perten-
cer a um lugar e a um grupo específico.
Contemporaneamente, portanto, o termo Quilombo não se refere a
resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de com-
provação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma
população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, so-
bretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de
resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida caracte-
rísticos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses
grupos também não se defi ne pelo tamanho e número de seus membros,
mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória
comum e da continuidade enquanto grupo. Neste sentido, constituem gru-
pos étnicos conceitualmente defi nidos pela antropologia como um tipo
organizacional que confere pertencimento mediante normas e meios em-
pregados para indicar afiliação ou exclusão (BARTH, Fredrik. Introduc-
tion. In: BARTH, Fredrik (Ed.). Ethnic Groups and Boundaries: the social
organization of culture difference. Bergen: Universitetsforlaget; London:
Allen & Unwin, 1969).
No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da
terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso
comum. A utilização dessas áreas obedece a sazonalização das atividades,
sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas
de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por
base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidarie-
dade e reciprocidade.
Baseados nessa perspectiva e levando em conta o campo de discussão e
de ações sociais que a aplicação do dispositivo constitucional vinha deline-
ando, sendo objeto inclusive de tomadas de posições oficiais, publicamos o
caderno da ABA Terra de Quilombo, que reunia trabalhos de antropólo-
gos e pesquisadores de áreas afi ns com distintas visões e compreensões da
problemática, como forma de contribuir para relativizar noções baseadas

36 Eliane Cantarino O’Dwyer


em julgamentos arbitrários e indicar a necessidade de se perceber os fatos
a partir de uma outra dimensão, que venha a incorporar o ponto de vista
dos grupos sociais que pretendem em suas ações a vigência do direito atri-
buído pela Constituição Federal.1
Na gestão 1996-1998 da ABA, foi desenvolvido o “Projeto Quilombos:
laudos antropológicos, consolidação de fontes e canais permanentes de
comunicação”, com apoio da Fundação Ford, visando gerar as bases de
uma sistemática para acompanhamento dos laudos periciais a partir das
demandas de comunidades negras rurais, que pretendem em suas ações a
aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitó-
rias da Constituição Federal de 1988, com a consolidação de alguns proce-
dimentos considerados necessários na identificação e reconhecimento das
chamadas “terras de preto” e/ou “terras de quilombo”.
Para refletir as particularidades deste campo de aplicação do preceito
constitucional, faz-se necessário a constituição de um canal permanente de
debate sobre a questão dos laudos antropológicos produzidos para iden-
tificação e reconhecimento das chamadas “terras de preto” ou “terras de
quilombo”, congregando antropólogos e outros parceiros institucionais da
ABA, como a Procuradoria Geral da República, órgãos governamentais
(Fundação Cultural Palmares/MinC, Incra) e organizações não governa-
mentais envolvidas nesse processo. O Projeto Vida de Negro (PVN), do
Maranhão, e a Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Re-
manescentes de Quilombos eram igualmente parceiros privilegiados nesta
troca de informações e experiências que pretendiam resultar na produção
de elementos importantes para a argumentação técnica pericial.
Assim, no decorrer de 1997, consolidamos um canal de debate com
antropólogos que realizam pesquisas em comunidades negras rurais e de-
senvolvemos uma colaboração estreita com a Comissão Nacional de Ar-
ticulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos, que solicitava
aos órgãos governamentais o reconhecimento de centenas de comunidades
negras rurais mobilizadas pela aplicação do artigo 68 do ADCT/CF-88.
Na ocasião de uma reunião em Brasília (maio de 1997) das lideranças
do movimento negro e de representantes da Comissão Nacional de Arti-
culação das Comunidades Negras Rurais, com a presidência da Fundação
Cultural Palmares/Minc, por solicitação feita no âmbito dessa reunião,
elaboramos, através do projeto ABA-Ford, as bases para execução de um

1 Colaboradores do caderno Terra de Quilombo: Siglia Zambrotti Doria; Mari de Nasaré


Baiocchi; Lúcia M. M. de Andrade; Neusa Maria Mendes de Gusmão; Rosa Elizabeth Aceve-
do Marin; Dimas Salustiano da Silva; Ilka Boaventura Leite e Eliane Cantarino O’Dwyer.

O papel social do antropólogo 37


trabalho sobre o “Mapeamento e Sistematização das Áreas Remanescen-
tes de Quilombos”, que teve o objetivo de contemplar as reivindicações
apresentadas para o reconhecimento de centenas de comunidades negras
rurais, indicadas inicialmente em número de 50.
Para realização do trabalho de mapeamento e identificação das ter-
ras de quilombo, a ABA indicou antropólogos que estavam desenvolvendo
pesquisas e reflexões sobre essa temática, com base no canal de debates
construído pelo projeto ABA-Ford. Ao assumir de forma institucional esse
projeto de interesse da comunidade antropológica, as gestões da ABA de
1996-1998 e 1998-2000 deram uma contribuição importante para o reco-
nhecimento da diversidade étnica existente no país.
Na composição das equipes estaduais setorizadas, privilegiou-se a rede
de antropólogos com experiência de pesquisa e produção de conhecimento
sobre comunidades negras rurais. O número elevado de comunidades e os
prazos administrativos dos órgãos governamentais tornavam imperativa a
participação de pesquisadores que pudessem converter para os trabalhos
e atualizar para seus objetivos, conhecimentos anteriormente produzidos
sobre várias das comunidades negras rurais mobilizadas pelo seu reconhe-
cimento de acordo com preceito constitucional.
Novos trabalhos de campo, visando à elaboração de relatórios antro-
pológicos, foram realizados nas comunidades negras rurais nos estados de
Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco e Paraí-
ba. No âmbito desse projeto, a ABA contou com a colaboração estreita dos
membros do Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, como
os antropólogos Maria de Lurdes Bandeira, nos estados de Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul; no Estado do Maranhão, além da colaboração com
o projeto Vida de Negro, houve igualmente a contribuição e participação
dos antropólogos Maristela Andrade e Alfredo Wagner Berno de Almeida.
Este último vinha refletindo criticamente sobre o conceito de quilombo
para fi ns de aplicação da legislação. Na região Nordeste, contou-se com in-
tensa colaboração de José Augusto Laranjeiras Sampaio, com larga experi-
ência em processos de identificação dos grupos indígenas, o que permitiu a
incorporação e crítica dos procedimentos adotados em relação aos grupos
indígenas os quais constituíam dentro dos objetivos do projeto ABA-Ford,
um precedente importante para o estabelecimento de sistemáticas adequa-
das no reconhecimento territorial das comunidades negras remanescentes
de quilombo.
No âmbito desse projeto, os membros do grupo de trabalho da ABA
participaram de um seminário realizado na Câmara dos Deputados (Con-

38 Eliane Cantarino O’Dwyer


gresso Nacional) sobre terra de quilombo, em 20 de maio de 1997, visando
apresentar subsídios para a elaboração do parecer do relator deputado Luís
Alberto no projeto de lei para regulamentação do artigo 68 do ADCT/CF-
88, e do V Congresso Afro-Brasileiro, com a participação na mesa redon-
da “Quilombos: implicação conceitual no reconhecimento dos direitos das
comunidades negras”, organizado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais
da Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA), de 17 a 20 de agosto de
1997, em Salvador, Bahia, assim como do seminário nacional sobre o tema
“O Poder Público e os direitos das comunidades quilombolas”, realizado
em São Luís do Maranhão pelo Projeto Vida de Negro/SMDDH e pelo
Centro de Cultura Negra/MA, no período de 17 a 18 de setembro de 1998,
com a participação da Comissão Nacional Provisória de Articulação dos
Quilombos Brasileiros. Este seminário em São Luís do Maranhão contou
com a participação de vários antropólogos do GT Terras de Quilombo, a
equipe de pesquisadores da UFMA, coordenada pelos professores Maris-
tela Andrade e Alfredo Wagner, e membros da 6ª Câmara da Procuradoria
Geral da República.
Enfi m, o resultado desses estudos e ações realizadas no Projeto ABA-
Ford foi posteriormente publicado no livro Quilombos: identidade étnica
e territorialidade, em 2002.
Essa publicação contou com a colaboração de antropólogos que nos
textos divulgados seguiam o preceito básico da disciplina de submeter con-
ceitos preestabelecidos à experiência de contextos diferentes e particulares
(Peirano, 1995), os quais permitem levantar a questão dos diferentes usos,
limites e possibilidades no trabalho de pesquisa etnográfica.
Assim, Alfredo Wagner Berno de Almeida, com vasta experiência etno-
gráfica nos casos das chamadas terras de preto no Maranhão, procede a
uma leitura crítica da representação jurídica que considera quilombo como
lugar de escravos fugidos, segundo uma defi nição do período colonial,
com a máxima de que nos libertemos da defi nição arqueológica, da defi ni-
ção histórica, estrito senso, e da definição jurídica dos períodos colonial e
imperial, que funcionam como uma camisa de força, afastando-se, igual-
mente, do “ideário das agências de pretensão mediadora (...) que reduzem
tudo ao componente agrário”, na medida em que se tratam de territoriali-
dades específicas de grupos sociais, face às trajetórias de afirmação étnica
e política.
José Augusto Sampaio – Guga – e Sheila Brasileiro destacaram a seme-
lhança entre o processo de reconhecimento das comunidades negras rurais
de acordo com o artigo 68 do ADCT e a “legitimação oficial de povos

O papel social do antropólogo 39


e terras indígenas no Nordeste, intensificado nas últimas três décadas”,
dizendo que às “comunidades remanescentes de quilombo” é “atribuído
o papel de grupo étnico (considerado) elemento fundamental formador do
processo civilizatório nacional”.
Sobre a comunidade de Conceição das Criolas, Vânia Fialho sugeriu
que, do ponto de vista dos seus moradores, a legitimidade do pleito encon-
trava-se também fundamentada na atribuição das terras “ao patrimônio
da santa”, constituindo, assim, uma situação social não reconhecida pela
legislação agrária brasileira, na qual o elemento étnico se faz presente na
autoatribuição do grupo por uma origem comum presumida, como nesse
caso da doação da “terra da santa” para os moradores de Conceição das
Criolas.
Enfim, falta tempo nesta apresentação para continuarmos a sintetizar
as diversas contribuições, inclusive de teses de doutorado, como Mocambo,
de José Maurício Arruti, sendo ainda necessário destacar a relevante contri-
buição dos relatórios e laudos antropológicos produzidos pelos pesquisado-
res vinculados à UFSC e à UFRGS, tendo como referência o laudo de Cas-
cas da professora Ilka Boaventura Leite, assim como o documento “Carta
de Ponta das Canas” elaborado na gestão do professor Ruben Oliven, em
2000, retomado no seminário “Perícia Antropológica”, realizado de 5 a 7
de março de 2008 na UnB, em Brasília, pela atual gestão da ABA.
Gostaria de chamar atenção sobre os conceitos de grupo étnico, etnici-
dade, relações interétnicas e processos de territorialização, os quais foram
utilizados para fundamentar os relatórios antropológicos nos processos
de reconhecimento territorial das chamadas comunidades negras rema-
nescentes de quilombos. Tais conceitos serviram como “instrumentos de
distanciamento para encarar criticamente a realidade, sem se deixar tragar
por ela” (Ginzburg, 2001:12).

Além disso, como diz Foucault, sobre as necessidades conceituais, (...)


a conceituação não deveria estar fundada (exclusivamente) numa teoria
do objeto – o objeto conceituado não é o único critério de uma boa con-
ceituação. Temos de conhecer as condições históricas que motivam nos-
sa conceituação. Necessitamos de uma consciência histórica da situação
presente. (...) De qualquer maneira, não se trata, para nós, apenas de uma
questão teórica, mas de uma parte de nossa experiência (in Rabinow e
Dreyfus, 1995:232).

Assim, da perspectiva dos antropólogos reunidos no Grupo de Traba-


lho Terra de Quilombo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a

40 Eliane Cantarino O’Dwyer


etnicidade refere-se aos aspectos das relações entre grupos que consideram
a si próprios como distintos. Do ponto de vista da interação, o processo de
identificação étnica se constrói de modo contrastivo, isto é, pela “afi rma-
ção do nós diante dos outros” (Cardoso de Oliveira, 1976:5).
A partir de Barth (1969), as diferenças culturais adquirem um elemento
étnico não como modo de vida exclusivo e tipicamente característico de
um grupo, mas quando as diferenças culturais são percebidas como impor-
tantes e socialmente relevantes para os próprios atores sociais. No caso das
chamadas comunidades negras rurais no Brasil, tais diferenças culturais
costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos, que por sua
vez podem ser relacionados com racismo e discriminação. Usado analiti-
camente pela Antropologia, o conceito de estereótipo se refere à criação e
aplicação de noções padronizadas de distintividade cultural de um grupo
e também diferenças de poder (Eriksen, 1991:66).
A disputa em torno da posse da terra e o envolvimento de grandes em-
preendimentos agropecuários, madeireiros ou a pura e simples grilagem
com fi ns de especulação imobiliária acabaram por tornar necessários os
“relatórios de identificação” como prática administrativa de órgãos go-
vernamentais para conferir direitos. Por sua vez, estes relatórios não se
resumem a peças técnicas enviadas aos órgãos de governo. As questões
implícitas em sua elaboração e as experiências concretas dos pesquisadores
inseridos nessa rede foram debatidas em inúmeros seminários realizados
pela ABA e em seus encontros bianuais – as Reuniões Brasileiras de An-
tropologia.
Os relatórios de identificação representam um tipo de intervenção num
campo específico de articulação e envolvimento do mundo intelectual com
os movimentos sociais e a mobilização de grupos étnicos, os quais reivin-
dicam o direito à diferença cultural, à reprodução de suas práticas econô-
micas e sociais, bem como o respeito pelos seus saberes tradicionais.
A participação intensa de antropólogos na luta pelo reconhecimento
de direitos étnicos e territoriais a segmentos importantes e expressivos da
sociedade brasileira, como as comunidades negras rurais e/ou terras de
preto, rompe com o papel tradicional desempenhado pelos grandes nomes
do campo intelectual, que garantem, com sua autoridade, o apoio às rei-
vindicações da sociedade civil, subscritando, como peticionários, manifes-
tos e documentos políticos. Ao contrário, os antropólogos brasileiros, que
têm desempenhado um importante papel em relação ao reconhecimento
de grupos étnicos diferenciados e dos direitos territoriais de populações
camponesas, ao assumirem sua responsabilidade social como pesquisado-

O papel social do antropólogo 41


res que detêm um “saber local” (Geertz, 1999:11) sobre os povos e grupos
que estudam, fazem de sua autoridade experiencial um instrumento de
reconhecimento público de direitos constitucionais.
Nem por isso, os relatórios de identificação ou laudos antropológicos
produzidos, respectivamente, na esfera do poder executivo e judicial, de-
vem ser considerados como uma espécie de atestado que garante a atribui-
ção de direitos definidos pelo arcabouço jurídico. Nos relatórios e laudos
produzidos neste contexto de afi rmação dos direitos constitucionais, por
meio do cumprimento do artigo 68 do ADCT/CF-88, não há qualquer
“promessa da normatização e da felicidade através da ciência e da lei” com
a fi nalidade de “reforçar e estender o poder de especialistas” (Rabinow e
Dreyfus, 1995:215). Do nosso ponto de vista, este tipo de participação dos
antropólogos exige, ao contrário, uma “dimensão interpretativa no estudo
de fenômenos sociais” (idem: 219), em que o investigador deve fornecer
uma explicação sobre o sentimento de participação social dos grupos e do
sentido que atribuem às suas reivindicações, assim como as representações
e usos que fazem do seu território.
Nesse campo de debates sobre a conceituação de quilombo e aplicação
do preceito constitucional, o artigo 68 do ADCT, no qual participam igual-
mente procuradores, advogados, juristas e representantes do Legislativo, o
governo brasileiro promulgou o Decreto n° 4.887 de 2003, que não prevê a
elaboração de estudos antropológicos no processo de identificação territorial
das comunidades remanescentes de quilombos pelo Ministério de Desenvol-
vimento Agrário (MDA) e o Incra.2 Como o decreto está fundamentado na
convenção 169 da OIT, segundo a qual é a consciência de sua identidade que
deverá ser considerada como critério fundamental para a identificação dos
povos indígenas e tribais, a participação de antropólogos no processo foi
desconsiderada na medida em que não se fariam mais necessários relatórios
antropológicos “atestando” a identidade quilombola dos grupos que reivin-
dicam a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
A ABA, presente na audiência pública antes da promulgação do decre-
to, defendeu que a autodefinição utilizada pelos próprios atores sociais não
prescinde da realização de estudos técnicos especializados que venham a

2 Oficialmente, o governo brasileiro tem mapeado 743 comunidades remanescentes de qui-


lombos, segundo dados de 2003. Atualmente, dizem que são mais de duas mil. Essas co-
munidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma população estimada em dois
milhões de pessoas, sendo que em 15 anos apenas 71 dessas áreas foram tituladas (Almeida,
2005:17).

42 Eliane Cantarino O’Dwyer


descrever e interpretar a formação de identidades étnicas no bojo do pro-
cesso de reconhecimento das comunidades negras rurais remanescentes de
quilombos, na medida em que esses estudos tragam subsídios para uma de-
cisão governamental e forneçam elementos para que o próprio grupo possa
se defender de possíveis formas de intervenção estatal que possibilite apenas
a reprodução de novas construções identitárias, sem garantir igualmente as
condições para a reprodução de práticas culturais, modos de vida e territo-
rialidades específicas.
No documento encaminhado pela ABA à Casa Civil da Presidência da
República, após a audiência pública sobre o decreto, dizíamos que deixar
por conta de uma futura ação judicial a defesa do ato de reconhecimen-
to dos direitos constitucionais pelo Estado, como considerado por alguns
representantes dos quilombolas e de agências governamentais, poderia
representar uma enxurrada de questionamentos na esfera judicial, o que
terminaria por inviabilizar que se cumpram os direitos assegurados pela
Constituição Federal de 1988.
Após a promulgação do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, de-
limitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades
remanescentes de quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT, o Partido
da Frente Liberal (PFL) entrou com uma Ação Direta de Inconstituciona-
lidade (ADIN n° 3.239-9/600 – DF) em face desse Decreto. Os pareceres
sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria Geral da Repú-
blica e pela Advocacia Geral da União recorrem ao livro da ABA Quilom-
bos: identidade étnica e territorialidade (O’Dwyer, 2002) e utilizam seus
argumentos na defesa do Decreto, principalmente sobre o critério de auto-
atribuição, que tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação
ou os também chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação
dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas re-
manescentes de quilombos.
A perspectiva antropológica adotada pela ABA passa, assim, a ser um
elemento fundamental na defesa do Decreto e por extensão do próprio
artigo 68 do ADCT. Após a ADIN impetrada pelo PFL, o MDA e o In-
cra contataram a ABA para novamente contarem com a participação de
antropólogos no bojo dos processos de reconhecimento territorial das co-
munidades remanescentes de quilombos e editaram uma nova portaria,
n° 20, que prevê a elaboração de estudos e relatórios antropológicos, sendo
assinado um Termo de Cooperação Técnica entre a ABA e o MDA/Incra,
produto da ação das gestões consecutivas de Gustavo Lins Ribeiro e Mi-
rian Grossi na ABA.

O papel social do antropólogo 43


É claro que tudo isso parece muito animador. Os últimos acontecimen-
tos, contudo, apontam em outra direção. As versões que até agora circula-
ram sobre a nova instrução normativa do Incra têm sido gestadas no inte-
rior dos órgãos governamentais, por enquanto sem a devida participação
da sociedade civil, em descumprimento da Convenção 169 da OIT, da qual
o Brasil é signatário, que garante a aprovação e igualmente o acompanha-
mento, pelos atores sociais, de todo o processo político e administrativo
que resulta na atribuição de direitos constitucionais.
Na nova carta constitucional de 1988, tanto as terras indígenas, quanto
as terras dos quilombos, não obstante as distinções existentes na forma de
titularidade – as primeiras consideradas propriedade da União, destinam-
se a posse permanente pelos índios, submetidos ao regime de tutela, e às
segundas destinadas aos remanescentes das comunidades dos quilombos se
reconhece a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos, “pode-se afi rmar que ambas são consideradas juridicamente
como ‘terras tradicionalmente ocupadas’ seja no texto constitucional ou
nos dispositivos infraconstitucionais” (Almeida, Alfredo W. B. de. Verbete
“Terras tradicionalmente ocupadas”, mimeo).
Assim, é reconhecida juridicamente uma forma comum de apropriação
e uso das terras e recursos ambientais necessários à reprodução física, so-
cial e cultural dos povos indígenas e das comunidades remanescentes de
quilombos, segundos seus usos, costumes e tradições, fundamentados na
noção de terras tradicionalmente ocupadas, que posteriormente ao Decre-
to nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, o qual institui a política nacional
de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, ex-
pande o espectro de grupos e atores sociais que se orientam pelas novas
normas constitucionais, como os chamados ribeirinhos e povos da flores-
ta, enfi m, as populações tradicionais, que antes não tinham as práticas
econômicas, sociais e culturais que lhes são características, reconhecidas
como distintas das formas legalmente convencionais de apossamento e
propriedade rural no Brasil.
Assim, a conceituação de “terras tradicionalmente ocupadas” pela
Constituição Brasileira de 1988 corresponde a uma forma de ocupação
que considera as situações sociais em curso baseadas nos “modos de criar,
fazer e viver” de determinados grupos, assim como preconiza a constitui-
ção, os quais se orientam por relações, representações e valores que lhes
são próprios. Por isso, tais modos distintos de viver passam a ser acolhidos
pela ordem legal, ao contrário de outros institutos jurídicos de “natureza
civilista” que, desde a chamada Lei de Terras de 1850, determinam exter-

44 Eliane Cantarino O’Dwyer


namente qual a ocupação legítima a ser observada por todos (Duprat, De-
borah. Comentários jurídicos. Verbete “Direitos territoriais”).
Resta a pergunta: a diversidade dos modos de espacialização tem sido
reconhecida no âmbito do estado brasileiro, enquanto outras formas de
uso e representação do espaço?
Afinal, tal espaço não é algo fi xo, mas imbricado em processos sociais,
históricos e de poder. Tal espaço é, sobretudo, etnográfico e deve ser defi-
nido pelos diferentes contextos e às práticas sociais que lhes são próprias,
os quais lhe conferem significado. Mas a ideia de um eterno presente etno-
gráfico, no caso dos atores sociais relacionados a um espaço territorial, tem
sido frequentemente acionada em situações de disputas, inclusive judiciais,
nas quais o argumento de violação do direito de propriedade baseado na
noção de posse civil é acionado como um congelador espacial de processos
até bem recentes, ocorridos em poucas décadas, e que levaram a fragmenta-
ção e perda de áreas de ocupação tradicional de grupos indígenas, remanes-
centes de quilombo e populações tradicionais no Brasil contemporâneo.3
Sobre a ameaça atual de redução drástica dos territórios das reservas
indígenas como no caso paradigmático de Raposa/Serra do Sol, em Rorai-
ma, e o reconhecimento apenas daquilo que é considerado “área de ocupa-
ção” efetiva dos remanescentes de quilombo, reduzida aos seus roçados, na
contramão do Decreto 4.887/2003, que caracteriza as terras das comuni-
dades remanescentes de quilombo como sendo aquelas utilizadas para sua
reprodução física, social, econômica e cultural (art. 2, § 2º) e do Decreto
6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que passa a se valer do termo “territórios
tradicionais” como “espaços necessários a reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados
de forma permanente ou temporária” (Duprat, Deborah, op. cit., verbete
“Direitos territoriais”), gostaria de invocar novamente a Convenção 169
da OIT pois, citando a Dra. Deborah Duprat, da 6ª Câmara da Procurado-
ria Geral da República, “em ambos os casos, a proteção jurídica não está
limitada ao espaço geográfico da ocupação, indo além para alcançar todo
o ambiente de que se faz uso tradicional, incluída a sua potencialidade de
abrigar as gerações futuras” (idem).

3 No caso do processo judicial sobre a área indígena Awá, o período de duas décadas de
ocupação efetiva de uma fazenda agropecuária é por ela considerado na fundamentação do
pleito como um eterno presente imutável de posse civil sobre área declarada terra indígena
por portaria ministerial, sem levar em conta as cadeias causais que levaram a fragmentação,
dispersão e perda de antigos harakwa (territórios de caça e coleta), como partes constitutivas
do território Awá de ocupação tradicional, o que afeta a reprodução, tanto física, quanto
cultural desse povo indígena, segundo seus usos, costumes e tradições (O’Dwyer, 2001).

O papel social do antropólogo 45


Capítulo 3

Direitos territoriais e a nova configuração étnica


e política com o Estado brasileiro
Na questão dos direitos territoriais, os termos “terra indígena”, “terra de
quilombo”, “terras tradicionalmente ocupadas”, “terra” e “campesinato”,
que incluem a questão do meio ambiente, referem-se a um conjunto de
dispositivos legais que regulam o acesso à terra, assim como estabelecem
suas formas de apropriação, ao dispor indivíduos e grupos em categorias
às quais se atribuem as normas jurídicas.
A definição de unidades sociais feita pela legislação, segundo critérios
gerais normativos, representa uma forma de conceber a realidade social e
responde, em parte, pelas ações sociais orientadas por categorias jurídicas.
A semântica jurídica que relaciona unidades sociais a territórios dis-
tintos constitui um sistema de classificação produzido no interior do Esta-
do nacional, e adquire todo significado no contexto dos direitos vigentes
no Brasil após a Constituição Federal de 1988. Tais classificações atuais,
inscritas na Constituição, possibilitam “o gerenciamento da diferença e
não sua eliminação” (Geertz, 1999:325), substituindo uma uniformidade
jurídica anterior por uma especificação de situações sociais e culturais in-
seridas em determinadas categorias defi nidas pela legislação.
Quais os fundamentos que possibilitam ao direito conceber a realidade
e, igualmente, construí-la ao criar um sistema jurídico de classificação do
mundo social? De acordo com Geertz (1999:324), “esse poder imaginati-
vo, construtivo ou interpretativo (...) tem suas raízes nos recursos coletivos
da cultura e não na capacidade isolada de indivíduos”.
Para ilustrar semelhante argumento, consultamos os comentários jurí-
dicos à Constituição no capítulo “Dos Índios” (Silva, 2007:866), segundo
o qual o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que iden-
tifica o índio. A dizer, é índio quem se sente índio.
Esta representação jurídica normativa de “ser índio”, ao domesticar
certas imagens do senso comum que tal palavra evoca – tais como, “do-
tados de tecnologia rudimentar, morando em pequenos grupos e isolados

46 Eliane Cantarino O’Dwyer


nas matas, prestes a desaparecer diante do avanço da modernização, cada
vez mais inexorável e globalizada” (Oliveira, 1998:7) – parece se apropriar
de formas de conceituação utilizadas pelo saber antropológico, nas refe-
rências que faz a identidade étnica, etnicidade e cultura. Contudo, a temá-
tica dos direitos territoriais que aproxima disciplinas tão díspares como o
Direito e a Antropologia deve ser desenvolvida como visões distintas “que
permite(m) estabelecer a conexão entre elas através de interseções específi-
cas e não de fusões híbridas” (Geertz, 1999:352), pelos comentários recí-
procos entre saberes que, cada qual do seu modo, têm efeitos constitutivos
nas ações sociais sem serem o mero reflexo delas.
A noção de território, que enfeixa essa temática dos direitos, constitui
uma metáfora geográfica, de referência prevalente nessa disciplina, “mas
é antes de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por
certo tipo de poder”, como diz Foucault (1979:157). Tal conceituação re-
mete à questão do(s) território(s) como um campo de disputas no qual as
ações conjuntas dos atores sociais se orientam pelo reconhecimento dos
direitos, segundo acepção deles próprios, alguns juridicamente regulamen-
tados, outros que pretendem ainda vigência legal. Mas a ideia de espaço
territorial não é estranha à reflexão antropológica, que procura relacio-
ná-lo à existência de outra série de espaços: sociais, de trocas, colonial
e pós-colonial, do Estado-nação, linguísticos, culturais e religiosos. No
caso, por exemplo, das fronteiras étnicas, em vez de considerá-las apenas
como limites geográficos delimitados, que contêm “agregados humanos
que compartilham uma mesma cultura” (Barth, 2000:25), deve-se conce-
ber tais fronteiras como um sistema de classificação, no qual as formas de
pertencimento e inter-relações configuram-nas como “categorias sociais”
(Amselle, 1999:34).
Assim, na perspectiva antropológica, “o fenômeno da territorialidade
(pode estar) em conexão com o da identidade étnica” (Cardoso de Olivei-
ra, 2006:24), como nos casos dos povos indígenas e das chamadas popu-
lações tradicionais, entre elas os quilombolas, inseridas na temática da
etnicidade. No campo da aplicação jurídico-constitucionais, a etnicidade
tem sido conceituada como um tipo de processo social no qual os grupos
orientam as ações pelo reconhecimento territorial das áreas que ocupam,
com base em signos étnicos carregados de metáforas, inclusive biológicas,
referidos a uma afirmação positiva dos estereótipos de uma identidade
étnica e racial, para reivindicar os direitos de uma cidadania diferenciada
ao Estado brasileiro.
Nestes contextos sociais, o etnônimo é essencial para o reconhecimen-
to de uma existência coletiva, sendo que as categorias identidade, reconhe-

O papel social do antropólogo 47


cimento e território “passam a constituir o cerne de nossas reflexões, pas-
síveis de observação e registro etnográfico”, como diz Roberto Cardoso de
Oliveira (2006:28). O processo identitário tem ainda se caracterizado pelo
uso de nomes próprios pelos grupos que reivindicam o reconhecimento dos
territórios que ocupam, fornecidos em geral pela designação de habitats,
antigos e atuais, indicativos de um processo de territorialização produzi-
do pela pressão de interesses econômicos, conjugados às políticas desen-
volvimentistas executadas por programas de governo. A identificação dos
nomes de família como nomes de habitat, alguns antigos que precisaram
abandonar pela pressão das frentes de expansão, outros que constituíam
novas áreas utilizadas para as atividades de subsistência em condições de
reserva indígena, característica de grupos como os Awá-Guajá, que vivem
na pré-Amazônia maranhense, remete a questão dos nomes de lugares que
são retomados como patronímicos pelos grupos étnicos e sociais. A desig-
nação das unidades de parentesco por topônimos correspondentes as áreas
de ocupação tradicional é uma prática muito difundida, que o caso citado
permite ilustrar (O’Dwyer, 2001).
Deste modo, o próprio uso de etnônimos – termos de autodesignação
dos grupos – pode ser considerado “como uma gama de elementos que os
atores sociais hoje utilizam para enfrentar as diferentes situações políticas
que a eles se apresentam e, assim, eles servem de signos de reconhecimen-
to”, como quilombo no caso brasileiro.
Nessa reflexão proposta segundo uma perspectiva da disciplina an-
tropologia a defi nição prevalente é de que os grupos étnicos são entidades
autodefi nidas: as etnicidades demandam uma visão construída de dentro e
elas não têm relações imperativas com qualquer critério objetivo (Ericksen,
1991). Do mesmo modo o território de tal ou qual grupo deve ser defi nido
pelo levantamento do estoque de topônimos por meio dos quais designam
os lugares de caça-coleta, agricultura e extrativismo, dependendo do tipo
de meio ambiente e dos nichos ecológicos que formam seus ecossistemas.
Tais considerações expressam um ponto de vista disciplinar sobre a
questão da identidade étnica e/ou social – “considerada(s) em sua acepção
de identidade(s) contrastiva(s)” (Cardoso de Oliveira, 2006:22) e relacio-
nadas a um espaço territorial.
A defi nição de uma terra indígena, por exemplo, não pode ser compre-
endida de uma maneira puramente interna às unidades sociais em ques-
tão, isto é, apenas relacionando o grupo indígena ao território ocupado
segundo as representações e práticas nativas. Ao contrário, é preciso le-
var em conta que se trata de uma relação específica mediada pelo Estado
brasileiro, por meio de “processos jurídicos, administrativos e políticos”,

48 Eliane Cantarino O’Dwyer


pelos quais são reconhecidos “determinados direitos dos índios a terra”
(Oliveira, 1998:17).
O antropólogo João Pacheco de Oliveira tem contribuído para a rela-
tivização da ideia de territorialidade, como uma qualidade imanente, ao
trabalhar com a noção de processo de territorialização. Tal noção en-
contra-se presente na análise de outras situações históricas, como o con-
tinente africano, formado antes da colonização por encadeamentos de
sociedades locais submetidas a uma desarticulação pelo Estado colonial,
que se utiliza recorrentemente de taxionomias étnicas para “reagrupar
populações e designá-las por categorias comuns com o objetivo de melhor
exercer o controle”, naquilo que constitui um amplo “processo de territo-
rialização” por ele presidido (Amselle, 1999:38).
Por conseguinte, o espaço geográfico não é algo fi xo, mas imbricado em
processos sociais, históricos e de poder. Tal espaço ao qual nos referimos
é, sobretudo, etnográfico e deve ser defi nido pelos diferentes contextos e
às práticas sociais que lhes são próprias, os quais lhe conferem significado.
Mas a ideia de um eterno presente etnográfico, no caso dos atores sociais
relacionados a um espaço territorial, tem sido frequentemente acionada em
situações de disputas, inclusive judiciais, nas quais o argumento de viola-
ção do direito de propriedade baseado na noção de posse civil é acionado
como um congelador espacial de processos até bem recentes, ocorridos
em poucas décadas, e que levaram à fragmentação e perda de áreas de
ocupação tradicional de grupos indígenas, remanescentes de quilombos e
populações tradicionais no Brasil contemporâneo.
Na questão das terras de quilombo a defi nição historiográfica de qui-
lombo como lugar de escravo fugido é ressignificada no contexto de apli-
cação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhe-
cida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos res-
pectivos”. Assim, “remanescente de quilombo”, termo usado para conferir
direitos territoriais, permite “desenhar uma cartografia inédita na atuali-
dade, reinventando novas figuras do social” (Revel, 1989:7). Como não se
trata de uma expressão verbal que denomine indivíduos, grupos ou popu-
lações no contexto atual, o emprego do termo na Constituição Federal cos-
tuma levantar a seguinte questão: quem são os chamados “remanescentes
de quilombos” que têm seus direitos atribuídos pelo dispositivo legal?
Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), tiveram um papel decisivo no questionamento de noções baseadas
em julgamentos arbitrários, como a de “remanescente de quilombo”, ao

O papel social do antropólogo 49


indicar a necessidade de os fatos serem percebidos a partir de outra di-
mensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que
orientam suas ações pela vigência do direito atribuído na Constituição Fe-
deral. A perspectiva dos antropólogos reunidos no Grupo de Trabalho da
ABA sobre Terra de Quilombo, desde 1994, é expressa em documento do
período que estabelece alguns parâmetros de nossa atuação nesse campo,
segundo o qual:

Contemporaneamente, o termo quilombo não se refere a resíduos ou


resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação bio-
lógica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituí-
dos a partir de movimentos insurreicionais ou rebelados mas, sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência
na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na
consolidação de um território próprio...

No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra


não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum.
A utilização destas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam
agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso
e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base
laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade
e reciprocidade (ABA, 1994).

Ainda da perspectiva dos antropólogos reunidos na Associação Bra-


sileira de Antropologia (ABA), a etnicidade refere-se aos aspectos das re-
lações entre grupos que consideram a si próprios como distintos. Assim,
a partir de Barth (1969), as diferenças culturais adquirem um elemento
étnico não como modo de vida exclusivo e tipicamente característico de
um grupo, mas quando as diferenças culturais são percebidas como impor-
tantes e socialmente relevantes para os próprios atores sociais. No caso das
chamadas comunidades negras rurais no Brasil, tais diferenças culturais
costumam ser comunicadas por meio de estereótipos, que por sua vez po-
dem ser relacionados com racismo e discriminação. Usado analiticamente
pela Antropologia, o conceito de estereótipo se refere à criação e aplicação
de noções padronizadas de distintividade cultural de um grupo e também
diferenças de poder (Eriksen, 1991: 66).
Segundo as considerações apresentadas por antropólogos, como a cole-
ga Ilka Boaventura Leite, “o termo ‘terra de quilombo’ apresenta variações

50 Eliane Cantarino O’Dwyer


locais e regionais, tais como ‘terras de preto’, ‘terras de negro’, ‘mocambos’,
‘comunidades negras’, ‘territórios negros’, ‘terras de santo’, entre outros (e)
o seu sentido se amplia, incluindo não somente áreas rurais, mas bairros e
pequenas unidades domiciliares nos grandes centros e periferias urbanas,
como é o caso do Quilombo Silva em Porto Alegre (RS)” e de Sacopã e
Pedra do Sal, na cidade do Rio de Janeiro, ambos reconhecidos como áre-
as remanescentes de quilombos em processos administrativos para fi ns de
aplicação do dispositivo constitucional. Enfi m, não se trata de uma cate-
goria “nativa”, presente nas interações sociais, mas de um termo jurídico
usado em contextos políticos visando atribuição de direitos territoriais.
No caso das terras de quilombo, é importante igualmente registrar que
as situações de discriminação racial e do uso de estereótipos na interação
social, têm sido consideradas nas abordagens antropológicas mais recentes,
“como um tipo de processo social no qual as diferenças culturais são comu-
nicadas” (Eriksen, 1991: 62), presente na própria produção da etnicidade.
A instituição da categoria “terras tradicionalmente ocupadas” remete
a questão do “direito à diferença” prevalente na nova carta constitucional.
Nos artigos referentes ao reconhecimento de “direitos étnicos”, tanto as
terras indígenas quanto as terras dos quilombos, não obstante as distinções
existentes na forma de titularidade – as primeiras, consideradas proprieda-
de da União, destinam-se à posse permanente pelos índios, submetidos ao
regime de tutela, e às segundas, destinadas aos remanescentes das comu-
nidades dos quilombos, se reconhece a propriedade defi nitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos –, pode-se afi rmar, como escreve
o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, que “ambas são con-
sideradas juridicamente como ‘terras tradicionalmente ocupadas’ seja no
texto constitucional ou nos dispositivos infraconstitucionais”.
A emergência posterior do Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007,
que institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e
comunidades tradicionais e a sua abrangência ao incluir novas identidades
relacionadas aos territórios de ocupação tradicional, como os chamados
ribeirinhos e povos da floresta, “expande o espectro de grupos e atores
sociais que se orientam pelas novas normas constitucionais e antes não
tinham as práticas econômicas, sociais e culturais que lhes são caracterís-
ticas, reconhecidas como distintas das formas legalmente convencionais de
apossamento e propriedade rural no Brasil” (idem).
Assim, a conceituação de “terras tradicionalmente ocupadas” pela
Constituição brasileira de 1988, corresponde a uma forma de ocupação
que considera as situações sociais em curso baseadas nos “modos de criar,

O papel social do antropólogo 51


fazer e viver” de determinados grupos, assim como preconiza a Constitui-
ção, os quais se orientam por relações, representações e valores que lhes
são próprios. Por isso, tais modos distintos de viver passam a ser acolhidos
pela ordem legal, ao contrário de outros institutos jurídicos de “natureza
civilista” que, desde a chamada Lei de Terras de 1850, determinam exter-
namente qual a ocupação legítima a ser observada por todos, segundo a
Subprocuradora da República, Dra. Deborah Duprat.
Tanto os princípios constitucionais quanto as disposições de direito
relacionadas à questão territorial se realizam nos casos concretos, os quais
orientam a prática jurídica, que, em alguns contextos no Brasil, conta com
a participação de antropólogos como peritos portadores de um saber ca-
paz de produzir provas, segundo a visão do Direito, e evidências etno-
gráficas, conforme a perspectiva antropológica sobre fatos e ações sociais
a serem juridicamente consideradas. Tal interação entre as duas práticas
profissionais, principalmente na atribuição e reconhecimento de direitos
territoriais, tem sido marcada por uma ambivalência própria entre saberes
tão distintos, que, em princípio, na consideração jurídica procura determi-
nar no caso concreto o tipo de ação normativamente “correta” ou válida
em termos dos dispositivos legais, enquanto o enfoque antropológico bus-
ca uma compreensão das ações sociais orientadas pela vigência de direitos
constitucionais.
Apresentado esse panorama sobre a temática dos direitos territoriais,
gostaria de destacar que a conexão e interseções específicas entre o direito
e a antropologia praticada após a Constituição de 1988 no Brasil, tem se
dado consensualmente em torno da autoidentificação de povos e grupos
que reivindicam direitos territoriais, o que para o direito está fundamenta-
do na convenção 169 da OIT, segundo a qual é a consciência de sua identi-
dade que deverá ser considerada como critério fundamental para a identi-
ficação dos grupos aos quais se aplicam as disposições jurídicas, e para os
antropólogos contempla a perspectiva atual da disciplina que considera a
autoatribuição como fator socialmente relevante para “diagnosticar” for-
mas de pertencimento e organização social.4

4 Sobre a junção entre pesquisa antropológica e ação judicial e a problemática da defi nição
de um grupo étnico, ver Oliveira (1998:269-296). Para uma abordagem relativa a terras de
quilombo, ver O’Dwyer (2002:13-42). No texto “Os quilombos e as fronteiras da Antropo-
logia” (O’Dwyer, 2005:107-109), o leitor encontrará a descrição de um contexto político no
qual os argumentos antropológicos sobre autoatribuição passam a ser utilizados pela Advo-
cacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República na defesa do Decreto 4.887/2003,
que regulamenta o artigo 68 do ADCT, diante de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADIN n° 3.239-9/600 – DF) impetrada pelo Partido da Frente Liberal, atual DEM.

52 Eliane Cantarino O’Dwyer


Paradoxalmente, foi nesse contexto de conexão entre o direito e a antro-
pologia sobre a auto identificação de grupos que reivindicam direitos terri-
toriais que o governo brasileiro promulgou o Decreto n° 4.887 de 2003, que
não prevê a elaboração de estudos antropológicos no processo de identifi-
cação territorial das comunidades remanescentes de quilombos pelo Minis-
tério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Incra. Como o decreto está
fundamentado na convenção 169 da OIT, segundo a qual é a consciência de
sua identidade que deverá ser considerada como critério fundamental para
a identificação dos povos indígenas e tribais, a participação de antropólo-
gos no processo foi desconsiderada, na medida em que não se fariam mais
necessários relatórios antropológicos “atestando” a identidade quilombola
dos grupos que reivindicam a aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
A ABA, presente na audiência pública antes da promulgação do de-
creto, defendeu que nos relatórios e laudos produzidos nesse contexto de
afirmação dos direitos constitucionais, não há qualquer promessa da nor-
matização e da felicidade através da ciência e da lei com a finalidade de
reforçar e estender o poder de especialistas (Rabinow e Dreyfus, 1995:215).
Este tipo de participação dos antropólogos exige, ao contrário, uma dimen-
são interpretativa no estudo de fenômenos sociais em que o investigador
deve fornecer uma explicação sobre o sentimento de participação social dos
grupos e o sentido que atribuem às suas reivindicações, assim como as re-
presentações e uso que fazem do seu território. Assim, a autodefinição uti-
lizada pelos próprios atores sociais não prescinde da realização de estudos
técnicos especializados que venham a descrever e interpretar a formação
de identidades étnicas no bojo do processo de reconhecimento das comu-
nidades negras rurais remanescentes de quilombos, na medida em que es-
ses estudos tragam subsídios para uma decisão governamental e forneçam
elementos para que o próprio grupo possa se defender de possíveis formas
de intervenção estatal que possibilite apenas a reprodução das categorias
sociais, sem garantir as condições para a reprodução de padrões culturais,
modos de vida e territorialidades específicas.
No documento encaminhado pela ABA à Casa Civil da Presidência da
República, após a audiência pública sobre o decreto, dizíamos que deixar
por conta de uma futura ação judicial a defesa do ato de reconhecimento
dos direitos constitucionais pelo Estado, como considerado na ocasião,
poderia representar uma enxurrada de questionamentos na esfera judicial,
o que terminaria por inviabilizar que se cumpram os direitos assegurados
pela Constituição Federal de 1988.

O papel social do antropólogo 53


Após a promulgação do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003,
que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, de-
limitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades
remanescentes de quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT, o Partido
da Frente Liberal (PFL, atual DEM) entrou com uma Ação Direta de In-
constitucionalidade (ADIN n°3.239-9/600 – DF) em face desse decreto. Os
pareceres sobre a improcedência da ação emitidos pela Procuradoria Geral
da República e pela Advocacia Geral da União recorrem ao livro da ABA
Quilombos: identidade étnica e territorialidade (O’Dwyer, 2002), assim
como outras publicações de antropólogos e utilizam seus argumentos na
defesa do Decreto, principalmente sobre o critério de autoatribuição, que
tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação ou os também
chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação dos direitos
constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes
de quilombos.
A perspectiva antropológica adotada pela ABA passa, assim, a ser um
elemento fundamental na defesa do Decreto e, por extensão, do próprio
artigo 68 do ADCT. Após impetrada a Ação Direta de Inconstitucionali-
dade, o MDA e o Incra contataram a ABA para novamente contarem com
a participação de antropólogos no bojo dos processos de reconhecimen-
to territorial das comunidades remanescentes de quilombos e é editada a
Portaria n° 20, que prevê a elaboração de estudos e relatórios antropoló-
gicos.

Os (des)caminhos do reconhecimento
O debate sobre a conceituação de quilombo tem alcançado foros mais am-
plos na mídia, se tomarmos como referência matérias publicadas em revis-
tas como História, Época (“Os quilombolas contra o foguete espacial”) e
Veja, sites (Marcos Sá Correia, Vitória de Pirro na Marambaia) e edito-
riais em jornais de grande circulação.
Pode-se registrar nos diversos argumentos arrolados uma crítica aos
novos significados que o termo quilombo tem assumido na literatura es-
pecializada e também para grupos, indivíduos e organizações, conforme
já assinalado em documento elaborado pelo Grupo de Trabalho da ABA
Terra de Quilombo, em outubro de 1994. Observa-se também um consen-
so crítico entre vários articulistas, que citam a opinião de “especialistas’’
– historiadores, ambientalistas e outros – quanto aos signifi cados literais
e empíricos dos termos “quilombo” e “remanescente de quilombo” como
lugar de escravo fugido. Porém, como diz Victor Turner (1974), quando

54 Eliane Cantarino O’Dwyer


aplicados a fenômenos sociais e culturais, essas palavras não são literais e
sim metafóricas.
A metáfora do quilombo pode apontar para a liminaridade, isto é, a
passagem entre status e estado cultural que acompanha qualquer mudança
de estado ou posição social. Passagens liminares e pessoas em passagens –
pessoas ou grupos “liminares’’, como no caso dos chamados remanescen-
tes de quilombo – não estão aqui nem lá, são um grau intermediário. Tais
fases e pessoas (ou grupos) podem ser muito criativos em sua libertação
dos controles estruturais, ou podem ser considerados perigosos do ponto
de vista da manutenção da “lei e da ordem’’como diz o antropólogo Victor
Turner (1969:5).
Na perspectiva da disciplina Antropologia, símbolos e metáforas são
multivocais e, portanto, podem adquirir muitos significados, que por sua
vez costumam ser unificadores, ao serem associados e relacionados como
parte dos processos de construção identitária.
Em publicação de 2006 (Paralelo 15), Roberto Cardoso de Oliveira
aborda o tema da identidade e seu reconhecimento e apresenta o fenômeno
da territorialidade em conexão com o da identidade étnica, como nos casos
dos povos indígenas e das chamadas populações tradicionais, entre elas os
quilombolas, inseridas na temática da etnicidade. Para fins de nossa análi-
se, a etnicidade é conceituada como um tipo de processo social no qual os
grupos orientam suas ações pelo reconhecimento territorial das áreas que
ocupam, com base em signos étnicos carregados de metáforas, inclusive
biológicas, referidos a uma afirmação positiva dos estereótipos de uma
identidade étnica e racial, para reivindicar os direitos de uma cidadania
diferenciada ao Estado brasileiro.
Ao abordar o tema da identidade e seu reconhecimento, Roberto Car-
doso de Oliveira (2006: 29) levanta as seguintes questões: “o que dizer
sobre o reconhecimento das identidades sociais? O que significa a uma
pessoa ou a um grupo ter sua identidade reconhecida? Esse reconhecimen-
to tem sua expressão no âmbito da cognição ou no âmbito moral?”
Nas condições de trabalho de campo para elaboração dos relatórios
antropológicos de identificação territorial das comunidades remanescentes
de quilombo, os pesquisadores têm se deparado com situações sociais nas
quais a identidade quilombola associada à autoidentificação étnica e racial
de negro é utilizada como uma afi rmação positiva no reconhecimento de
si mesmo como ser social (Cardoso de Oliveira, 2006: 33). Assim, além do
reconhecimento jurídico há o reconhecimento como “ente moral” e, neste
caso, ainda segundo Roberto Cardoso de Oliveira, a manifestação mais

O papel social do antropólogo 55


geral desse reconhecimento seria expresso como “respeito” (Cardoso de
Oliveira, 2006: 36). Nesse sentido, trata-se de uma luta dessas populações
“não apenas por ganhos materiais, mas também pela cidadania, (...) tradu-
zida como busca de respeitabilidade a si mesmo, [aos] seus valores e suas
formas de ver o mundo” (Cardoso de Oliveira, 2006: 53).
Tais questões devem fazer parte de nossa agenda de pesquisa e reflexão
como antropólogos nesse campo de reconhecimento de direitos diferencia-
dos de cidadania. É na construção de uma “comunidade de comunicação
e argumentação, segundo os requerimentos da ética discursiva”, como diz
Roberto Cardoso de Oliveira (2006: 49), e no exercício de uma “antropo-
logia prática”, seja como professores e pesquisadores nas universidades ou
como profissionais incorporados a instituições particulares – ONGs – ou
públicas – o MP e, mais recentemente, o Incra – devotados à ação social,
que não podemos deixar de nos valer da capacidade reflexiva de nossa
disciplina, que nos habilita na mediação do diálogo intercultural, imersos
em nossas responsabilidades sociais e profissionais (Cardoso de Oliveira,
2006).

A Instrução Normativa do Incra e os relatórios antropológicos


É claro que, assim expresso, tudo isso parece muito animador. Os últimos
acontecimentos, contudo, apontam em outra direção. As versões que até
agora circularam sobre a nova instrução normativa do Incra têm sido ges-
tadas no interior dos órgãos governamentais, por enquanto sem a devida
participação da sociedade civil.
Em um dos artigos da referida minuta, é destacado o fato de que o
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação deve ser devidamente
fundamentado em elementos ditos objetivos, que apontam “uma maneira
específica de imaginar a realidade aos olhos do Direito” e da Administra-
ção Pública (Geertz, 1999: 259).
Sabemos que

a procura dos critérios ditos “objetivos” da identidade (...) étnica e/ou do


território não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios
são objeto de representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e
de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que os agentes
investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações
objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou em atos, es-
tratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista deter-
minar a representação mental que os outros podem ter destas proprie-

56 Eliane Cantarino O’Dwyer


dades e dos seus portadores, invertendo e afirmando possivelmente os
estigmas – como black is beautiful. Por outras palavras, as características
que os antropólogos e os sociólogos objetivistas arrolam funcionam como
sinais, emblemas ou estigmas, logo que são percebidas e apreciadas como
o são na prática. Só se pode compreender a forma particular de luta das
classificações sociais que é a luta pela definição da identidade social ou
étnica, com a condição de se passar para além da oposição que a ciên-
cia deve primeiro operar, para romper com as pré-noções da sociologia
espontânea, entre a representação e a realidade, e com a condição de se
incluir no real a representação do real, ou mais exatamente, a luta das
representações, no sentido de imagens mentais mas também de manifes-
tações sociais destinadas (ao reconhecimento coletivo) (Bourdieu, 1989:
112, 113).

Na nova IN do Incra, nº 49/2008, os relatórios antropológicos estão


subordinados a critérios estranhos à disciplina, como no artigo 10, se-
gundo o qual o relatório técnico de identificação e delimitação deve estar
devidamente fundamentado em elementos ditos objetivos, que apontam
uma maneira específica de imaginar a realidade aos olhos do Direito e
da Administração Pública, pois as possíveis características “objetivistas”,
na prática, funcionam como sinais, emblemas ou estigmas, sendo preciso,
portanto, se incluir no real a representação do real, que igualmente orienta
as ações sociais, como diz Pierre Bourdieu (1989). Os itens arrolados no
artigo 10 só poderão se transformar em relatório antropológico caso este-
jam englobados em uma prática disciplinar da Antropologia.
Ao contrário das visões “objetivistas”, o tipo de participação dos
antropólogos na elaboração da RTID, exige uma dimensão interpretati-
va no estudo de fenômenos sociais, em que o investigador deve fornecer
uma explicação sobre o sentimento de participação social dos grupos e
do sentido que atribuem às suas reivindicações, assim como as represen-
tações e usos que fazem do seu território, o qual deve ser defi nido a partir
dos processos de territorialização produzidos pela pressão de interesses
econômicos, conjugados às políticas desenvolvimentistas executadas por
programas de governo. Deste modo, o espaço geográfico não é algo fi xo,
mas imbricado em processos sociais, históricos e de poder. Tal espaço é,
sobretudo, etnográfico, e deve ser definido pelos diferentes contextos e às
práticas sociais que lhes são próprias, os quais lhe conferem significado,
levando-se igualmente em conta processos, alguns até bem recentes, ocor-
ridos em poucas décadas, e que levaram a fragmentação e perda de áreas

O papel social do antropólogo 57


de ocupação tradicional de comunidades remanescentes de quilombo no
Brasil contemporâneo.
A representação normativa dos relatórios antropológicos certamente
irá gerar problemas para pesquisadores envolvidos na elaboração dos mes-
mos. “As interconexões entre normas e acontecimentos em algum tipo de
manual”, pode ser uma forma não de gerenciar as diferenças, mas de eli-
miná-las por uma uniformidade jurídica que se sobrepõe a outros saberes
e tradições, como diz Geertz (1999: 323, 325).
Na nova instrução normativa chamam atenção os procedimentos de
identificação das chamadas comunidades remanescentes de quilombos, nos
quais se observa a necessidade de tornar a instrução normativa um instru-
mento de identificação eficaz, que pressupõe um tipo de rigor que não só
parece inatingível, mas, sobretudo, indesejado para formas de saber mais
ligadas à experiência cotidiana e à análise de situações sociais que caracte-
rizam o ofício antropológico, onde as regras nem sempre se prestam a ser
formalizadas nem ditas, como no conjunto das ciências humanas ancoradas
no método qualitativo.
A necessidade de um instrumento de identificação considerado eficaz
parece próprio ao funcionamento da administração pública, principalmen-
te no contexto político de questionamento dos direitos diferenciados de
cidadania, veiculados massivamente na mídia. Tal instrumento de identifi-
cação, como no caso das colônias britânicas, em que os nativos eram vistos
como analfabetos, litigiosos, astutos e mentirosos aos olhos de um europeu
e da administração colonial, parece ter justificado a introdução, no final do
século XIX, das impressões digitais como modo de assinalar cada qual por
um traço – naquele caso, biológico, mas que, atualmente, no Brasil, poderia
ser historiográfico, arqueológico e/ou cultural específico.
A questão principal é se os grupos étnicos e sociais, mediante o direito,
a administração pública e a antropologia, poderão reproduzir e recriar
formas organizacionais e padrões culturais que possam na prática ser por
eles vividos.
Sobretudo diante do foco atual da questão capitaneada pelo GSI ao
se manifestar sobre os estudos técnicos apresentados pelo Incra quanto à
necessidade de defi nição do alcance da expressão constitucional “estejam
ocupando suas terras”, principalmente nos casos em que a área proposta de
titulação é maior do que a terra que a comunidade está efetivamente ocu-
pando no contexto dos estudos para aplicação do artigo 68 do ADCT.
Nesta perspectiva, a preocupação demonstrada com a defi nição da
“área efetivamente ocupada” está relacionada à possibilidade de agrava-

58 Eliane Cantarino O’Dwyer


mento de questões agrária e a repercussão que possa ter no processo de
defi nição das áreas indígenas e das pretensões de outros grupos, desde
populações tradicionais até trabalhadores rurais sem terra.
O pressuposto, nesse caso, é de que em condições similares as pessoas
sempre agirão de forma bastante parecidas, movidas pelos mesmos desejos
de poder e ganho, as mesmas esperanças de obtê-los. Enfi m, a cultura não
importa, nem tem interesse, quando comparada a uma “natureza huma-
na” subjacente, à qual costumes e leis não podem resistir, em função do
“inato autointeresse” dos seres humanos (Sahlins, 2006: 10).
O antropólogo Marshall Sahlins, em História e Cultura: apologias a
Tucídides (2006), chama atenção que a noção de natureza humana com-
petitiva, autointeressada, como a mola mestra da história, é “ela própria
uma autoconsciência cultural particular, uma ideologia particularmente
grega e especificamente ateniense à qual Tucídides deu voz ativa” (Sahlins,
2006: 11).
A guerra do Peloponeso, tal como descrita por Tucídides, que minimi-
za as diferenças convencionais entre as culturas, ateniense e espartana, e
favorece as semelhanças de suas naturezas – a natureza humana – faz dele
o ancestral dos realistas nas relações internacionais, leitura obrigatória nas
academias militares e na Kennedy Scholl of Government de Harvard, como
diz Sahlins. De acordo com esse autor, a história da guerra do Peloponeso,
e a racionalidade prática que Tucídides achava simplesmente natural na
humanidade, representa um trabalho seminal sobre a teoria das relações
internacionais em todos os tempos, considerada a primeira obra a intro-
duzir um pragmatismo abrangente no discurso político. Assim, suas lições
têm sido ampliadas, ainda segundo Sahlins, por escritores como Hobbes,
Hamilton, Clausewitz e, em nossa própria era, Hans Margenthau, George
F. Kennan e Henry Kissinger. Deste modo, “aparentes diferenças culturais
(tornam-se) apenas expressões diversas e superficiais de uma natureza hu-
mana básica, autodignificada”.
Sobre “aquele febril desejo de poder pelo poder que apenas a morte faz
cessar” (Hobbes), e a opinião de David Hume de que “em todas as nações
e épocas, (...) a natureza humana permanece a mesma em seus princípios
e operações. (...) A humanidade é tão igualmente a mesma em todos os
tempos e lugares que a história não nos conta nada de novo ou estranho
sobre esse particular”.
Sahlins argumenta que a atribuição de ação histórica – e social – a
uma natureza humana autointeressada é, decididamente anticultural, e

O papel social do antropólogo 59


na mesma medida anti-histórica, ao remover de si a própria antropologia
(Sahlins, 2006: 115).
“O recurso à natureza humana deprecia a construção cultural de for-
mas de vida humana” (Sahlins, 2006: 115). Ao contrário, Sahlins, em sua
análise da guerra do Peloponeso em comparação com a guerra da Poliné-
sia, ocorrida no século XIX, entre os reinos Bau e Rewa, nas ilhas Fiji,
demonstra que os interesses em jogo dependiam de seus esquemas cultu-
rais, seus valores e aquilo que eles valoravam e suas motivações e ações
derivavam da ordem cultural e não da natural.
Mudar o foco de uma natureza humana genérica na forma do autoin-
teresse racional, como propõe Sahlins, e colocar a cultura, as práticas cul-
turais no centro do debate sobre o território, pode ser uma forma de evitar
um fi m trágico ao se imaginar que a variedade etnográfica não existe ou
decretar, simplesmente, que ela venha a desaparecer, com a defi nição ex-
terna e não de dentro, do que são “terras efetivamente ocupadas”.
Na contramão do pleno exercício dos direitos culturais, como preco-
niza os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, segundo a qual as cha-
madas “necessidades territoriais” compreendem os espaços necessários à
preservação e reprodução de práticas culturais, modos de vida e territoria-
lidades específicas.

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O papel social do antropólogo 61


Capítulo 4

Profetismos e práticas de cura: saber tradicional


dos remanescentes de quilombo de Oriximiná-PA
Este trabalho encontra-se fundamentado nas informações reunidas me-
diante trabalho de campo desenvolvido nas comunidades remanescentes
de quilombos de Oriximiná-Pará, para elaboração de laudo antropológico
relativo ao acompanhamento do processo de anuência prévia encaminha-
do ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (MMA) sobre o projeto
de pesquisa de doutorado: Bioprospecção de espécies farmacologicamente
ativas utilizadas medicinalmente por comunidades quilombolas de Ori-
ximiná (PA), Brasil, desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa em Produtos
Naturais da UFRJ.
No laudo antropológico são descritas as formas de organização social
e de representação política destas comunidades, assim como o grau de
esclarecimento dos chamados remanescentes de quilombos sobre o conte-
údo da proposta e suas consequências, além dos outros itens relacionados
ao artigo 4º da Resolução nº 6, de 26 de junho de 2003, do Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético/MMA. Na viagem à cidade de Oriximiná,
Pará, onde se encontra a sede da Associação dos Remanescentes de Qui-
lombos de Oriximiná (Arqmo), e às comunidades remanescentes de qui-
lombo situadas no alto do rio Erepecuru e seu afluente Cuminá, realizada
no período de 8 a 19 de janeiro de 2007, utilizamos formas de deslocamen-
to característica dos moradores dessas comunidades, subindo o rio a bordo
do barco São Benedito, pertencente à comunidade de Jauari, até a região
encachoeirada a montante, visitando todas as comunidades situadas na
parte mansa, isto é, navegável desse curso d’água. Por meio de entrevistas
realizadas com diretores da Arqmo e os membros das referidas comunida-
des no trajeto rio acima, assim como da observação in locu das relações
de pesquisa estabelecidas entre o doutorando responsável pelo projeto de
pesquisa, Danilo Ribeiro de Oliveira, vinculado ao Laboratório Bioquími-
co da UFRJ, e os atores sociais foi possível construir uma opinião baseada
no ponto de vista do referido grupo objeto da pesquisa, assim como o grau

62 Eliane Cantarino O’Dwyer


de aceitação e compreensão do mesmo quanto aos objetivos do projeto
para bioprospecção de espécies farmacologicamente ativas utilizadas me-
dicinalmente pelos seus integrantes e da parceria a ser estabelecida entre a
Arqmo e a UFRJ. Tal parceria visa o levantamento etnobotânico junto as
comunidades quilombolas para coleta de espécies vegetais e o “uso preten-
dido do conhecimento tradicional associado à prospecção de substâncias
ativas contra tuberculose, mal de Alzheimer e outras doenças neurodege-
nerativas com potencial para utilização terapêutica futura e perspectiva
de uso comercial, envolvendo contrato de repartição de benefícios entre a
UFRJ e Arqmo”.
Na primeira parte do relatório enviado ao CGEN/MMA, apresen-
tei uma leitura sintética dos dados etnográficos e da visão antropológica
construída a partir da experiência de pesquisa de campo realizada junto
aos grupos localizados na fronteira amazônica, município de Oriximiná,
Estado do Pará, considerados de exclusividade negra, que pleiteiam o re-
conhecimento legal como “remanescentes de quilombos” de acordo com o
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Consti-
tuição Federal de 1988. Tais grupos que se defi nem como “remanescentes
de quilombos”, segundo o preceito legal, vivem em territórios separados
no alto curso do rio Trombetas e seu afluente Erepecuru. A localização
e distribuição espacial de tais grupos organizados nas chamadas “comu-
nidades” (termo usado aqui em seu sentido empírico) situadas ao longo
das margens no alto dos rios, e alcançáveis somente através de transpor-
te fluvial; a inexistência de linhas regulares de barco, fazendo a ligação
com a cidade de Oriximiná, onde, periodicamente, vendem os produtos
agrícolas e extrativistas, como a castanha, e adquirem alguns bens neces-
sários ao consumo; constituem fatores que podem funcionar, na prática,
em determinados contextos sociais e políticos, como um limite espacial
usado para manter uma distância física relativa das suas famílias reunidas
em unidades residenciais localizadas no alto dos rios e as áreas de maior
circulação, principalmente a sede municipal, que visitam periodicamente,
onde se observa o encontro de diferentes comunidades ribeirinhas e outros
grupos étnicos e sociais.
Deste modo, as populações negras ribeirinhas do rio Trombetas e seu
afluente Erepecuru, de dimensão considerada próxima a do rio principal,
que possui ainda como tributário o Cuminá, vivem no território dos cur-
sos médio e alto dos rios, antes da região encachoeirada, onde seus ante-
passados formaram vários quilombos. Os quilombos do Trombetas, como
aparecem genericamente mencionados nas fontes documentais, foram alvo

O papel social do antropólogo 63


de expedições de captura, que lograram sua parcial destruição e o deslo-
camento dos seus habitantes para as cachoeiras na direção cada vez mais
a montante. Algumas povoações aparecem nos documentos reconhecidas
pelos seus nomes, como o quilombo Maravilha, Cipotea, e Santa Luzia,
este último situado no afluente Erepecuru. Tais populações negras come-
çaram a descer as cachoeiras, antes mesmo da Abolição da Escravatura,
em 1866, segundo informação do relatório de viagem do casal Coudreau,
a partir de negociações com o governo provincial, mediadas pela Igreja,
sobre a promessa de sua liberdade, dizem que em troca da participação de
alguns deles na guerra do Paraguai (Coudreau, 1901).
Atualmente, a distribuição espacial desses grupos parece acompanhar
a dos quilombos do passado, em que os “escravos fugidos” orientaram-se
na direção ou do alto Trombetas, ou do alto Erepecuru. O encontro das
águas do Trombetas em seu curso médio, com a desembocadura do Ere-
pecuru, lembra a formação do vértice de um arranjo triangular, em que se
afastam cada vez mais na parte superior dessa base, na direção das nascen-
tes, só sendo possível traçar-lhes uma reta imaginária a montante, já que
na prática não há comprovação sobre fatos especulados pela literatura de
ter havido comunicação territorial entre os quilombos formados no curso
do Trombetas e no afluente Erepecuru-Cuminá. O encontro entre as po-
pulações negras de ambos os rios costuma se dar na cidade de Oriximiná.
O deslocamento de famílias vivendo nas margens desses cursos d’água, em
uma ou outra direção, parecem acompanhar os festejos e demais ocasiões
que reúnem as chamadas “comunidades negras”, organizados por suas ins-
tâncias de representação. Apesar de termos conhecimento de casamentos
entre as famílias residentes em um e noutro curso desses rios, isso não che-
ga a se constituir em uma prática sistemática como no caso das chamadas
organizações dualistas dos povos tribais.
A região acima das cachoeiras, onde seus antepassados formaram os
quilombos, é utilizada para extração de castanha, no inverno, e pescarias,
no verão. A extração de ouro, nos garimpos, que chegou a envolver mem-
bros de algumas comunidades, como a da Pancada, no Erepecuru, tem
sido evitada por ocorrências de confl ito com a entrada de “garimpeiros”
de fora em suas localidades, onde vivem com suas mulheres e fi lhos. A
montante dessas áreas de castanhais, acima da cachoeira Porteira, no rio
Trombetas e cachoeira Chuvisco, no rio Erepecuru, encontram-se locali-
zados grupos indígenas, como os Wai-Wai no rio Mapuera, afluente que
deságua no Trombetas, os Tiriyhó, acima da cachoeira do Mel, no Erepe-
curu, e os Zoé, na divisa deste afluente com o rio Paru do Oeste. Não há

64 Eliane Cantarino O’Dwyer


relatos atuais de contato das populações negras ribeirinhas com os grupos
indígenas, que foram concentrados em aldeamentos e recebem os nomes
das etnias predominantes, sendo que na aldeia Wai-Wai há uma missão
religiosa americana, e nos Tiriyhós, encontram-se os padres franciscanos.
Sobre os Zoé, a situação de contato desse grupo indígena é bem recente.
Em visita que fi zemos a Oriximiná, em setembro de 1999, fomos informa-
dos que a direção da Arqmo recebeu uma solicitação dos Zoé, para que na
demarcação das terras das comunidades remanescentes de quilombos do
Erepecuru, estendessem os limites até a área que faz divisa com o território
dos Zoé para evitar um corredor de passagem entre eles.
Esse tipo de receio quanto à cobiça sobre seu território, é manifestada
constantemente pelos membros dessas comunidades negras ao longo do
rio Trombetas e Erepecuru-Cuminá. As áreas que ocupam são cercadas
de grandes projetos com investimentos maciços de capitais, como a Mine-
ração Rio de Norte, que faz extração de bauxita em terras antes por eles
ocupadas. Há, ainda, um projeto de construção de barragens, em Cacho-
eira Porteira, no Trombetas, e na cachoeira Chuvisco, ou do Inferno, no
rio Erepecuru. Em Cachoeira Porteira encontram-se instalações da empre-
sa Eletronorte, desativadas temporariamente pela falta de financiamento
para construção da barragem. No Trombetas, o lago do Erepecu, próximo
da boca do afluente Erepecuru, que através de um pequeno tributário, o
Acapú, permite a comunicação entre os dois rios, lugar de muitos casta-
nhais, foi transformado em Reserva Biológica, sob controle e fiscalização
do Ibama, no mesmo período de implantação da Mineração Rio do Norte,
no fi nal da década de 1970 e início dos anos 1980. A mobilização dos
remanescentes de quilombo do Trombetas e Erepecuru-Cuminá pelo re-
conhecimento do território que ocupam mediante legislação pertinente, e
sua organização política, dá-se assim em um contexto de intensos contatos
e envolvimento com agentes e agências governamentais e não governamen-
tais, locais, nacionais e multinacionais.
As populações negras do Trombetas e Erepecuru-Cuminá são princi-
palmente extrativistas, vivem do fabrico da castanha, da caça e pescarias,
voltadas para o consumo familiar, assim como de pequenos roçados de
subsistência que mantêm vastas extensões de floresta praticamente virgem.
Inexistem linhas de barco regulares entre suas moradias nos altos dos rios
e a cidade de Oriximiná, apenas uma embarcação de grande porte faz
uma viagem semanal até Cachoeira Porteira, a última localidade da parte
navegável do Trombetas. O transporte de carga e passageiros é feito por
meio de barcos pertencentes aos moradores das comunidades negras ribei-

O papel social do antropólogo 65


rinhas. Isso tem permitido um controle exercido sobre os visitantes e um
fechamento estratégico das suas áreas nos altos dos rios.
As unidades territoriais menores, que chamamos de grupo local, são
conhecidas pelos seus moradores como “comunidades”, e recebem nomes
próprios que as distinguem entre si. Existem no Erepecuru várias delas,
como a do Jarauacá, no lago do mesmo nome, a Serrinha, a de Boa Vista
do Cuminã, e acima deste tributário até as cabeceiras, podemos enumerar
as “comunidades” de Varre Vento, Jauari, Espírito Santo e Pancada. O
termo “comunidade” parece ter sido adotado por influência das chamadas
comunidades eclesiais de base, pois em Oriximiná a Igreja Católica é muito
atuante, e pelas ações políticas de mobilização e associação desses grupos
para demarcação das terras que ocupam no rio Trombetas e seus tributá-
rios. Todavia os nomes atribuídos a essas comunidades ribeirinhas já eram
utilizados para designar tais localidades em que viviam anteriormente a
nova conotação social e política que recebem. Nessas localidades, as mo-
radias são construídas em linha, parecendo acompanhar o curso d’água,
porém posicionadas de modo a evitarem as cheias do rio. Cada uma delas,
geralmente tem seu porto, que consiste em uma armação de madeira na
beira d’água, na qual lavam utensílios domésticos, roupas, banham-se e
carregam tinas d’água para o consumo da casa.
Nas chamadas “comunidades negras”, a proximidade na ocupação do
espaço e a vida em comum de diversos grupos familiares, relacionados por
laços de parentesco, garantem igualmente o uso comum do território, e a
prática da reciprocidade entre as famílias na distribuição dos produtos da
caça e da pesca, obtida em maior quantidade para o consumo, através de
um esforço conjunto.
Segundo os membros das “comunidades negras” do Erepecuru-Cuminá
e Trombetas, eles devem defender, contra as ameaças externas, esse lugar
que seus antepassados construíram, nos altos cursos encachoeirados dos
rios onde vivem. Deste modo, parecem conscientes do fato de serem seus
primeiros habitantes e costumam pela autoatribuição do termo “fi lhos do
rio” expressar sua identidade de lugar.
As comunidades remanescentes de quilombos têm realizado, por meio
da Associação dos Remanescentes de Quilombos do Município de Ori-
ximiná (Arqmo), a titulação coletiva das áreas que ocupam, que segue a
prática de uso comum do território localizado no alto dos rios Trombetas
e Erepecuru-Cuminá. Neste contexto de luta pela aplicação dos direitos
constitucionais, as populações tradicionais ribeirinhas de Oriximiná, que
não se definem pela procedência comum dos quilombos, mediante seus re-

66 Eliane Cantarino O’Dwyer


presentantes reunidos no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná
e alguns de seus membros, consideram-se muito diferentes. Os chamados
“remanescentes” são reconhecidos por eles como um “povo da floresta”.
Tal tipo de atribuição sobre traços e emblemas diagnósticos por parte da-
queles com quem interagem, se por um lado, expressa julgamentos etno-
cêntricos, por outro, representa uma forma positiva de identificação. Os
chamados “colonos ribeirinhos” costumam comentar que “esses negros são
tudo preguiçoso, com todo esse monte de terra e eles não plantam nada”.
Para os trabalhadores ribeirinhos, “os negros”, como dizem, não têm uma
produção fi xa a não ser a castanha – “são mais extrativistas, alguém chega
à casa de um negro, e ela é praticamente dentro da mata”. Porém, a partir
da história da preservação da Amazônia, segundo suas próprias explica-
ções, passaram a reconhecer que os “negros” fizeram o papel deles, preser-
vando melhor do que ninguém essa floresta. Procedem, ainda, a uma outra
distinção entre eles, sobre o comportamento em contexto urbano, dizendo
que na sociedade moderna de Oriximiná – leia-se a vida que levam na cida-
de – os “negros” são discriminados e diferentemente dos “colonos ribeiri-
nhos”, que preferem se aglomerar e se misturar, os “negros”, como dizem,
continuam unidos e preferem morar mais isolados no alto dos rios. Tratam-
se, portanto de identidades contrastivas, que se consideram diferentes em
termos de subsistência e das interações que promovem no núcleo urbano.
As comunidades negras rurais “remanescentes de quilombo” diferen-
ciam-se e invocam seus direitos constitucionais pela procedência comum,
o uso da terra, dos recursos ambientais e a ancianidade da ocupação de
um território de uso comum. Também o domínio que exercem sobre o ter-
ritório é simbolizado através dos relatos sobre os dois mais famosos e re-
conhecidos curadores, ou “sacacas”, conforme o termo que usam, ambos
do rio Erepecuru: o primeiro, de nome Balduíno, viveu até os anos 1970,
e o segundo, Chico Melo, que o sucedeu nesses últimos 20 anos, também
já é falecido.
Balduíno é citado por seus feitos notáveis, relatos de cura, de posses-
são e previsões desconcertantes sobre o futuro, como o surgimento de
uma grande cidade iluminada dentro da floresta, que é hoje Porto Trom-
betas, cidade industrial construída pela MRN. Tinha também o dom da
onipresença, sendo visto por eles e até pelas suas crianças, nos locais mais
distantes, dentro das matas, no fundo dos rios, sentado em cima de uma
sucurijú, como se fora um trono, onde passava dias sem aparecer na su-
perfície. Dizem que “ele se apresentava na Serrinha – comunidade onde
vivia, situada no início do curso do Erepecuru – e no Lago do Encanta-

O papel social do antropólogo 67


do – localizado atrás da comunidade do Jauari, quilômetros acima – ao
mesmo tempo”.
Os “sacacas” aprenderam a curar com a natureza, as ervas, que conhe-
ciam, durante dias e dias que passavam, como que desorientados, embre-
nhados na floresta, e nas viagens ao fundo dos rios. Chico Melo contou
a sua mulher que foi levado ao fundo do rio, para conhecer um hospital
onde os peixes o ensinaram a prescrever remédios, sem ajuda dos doutores
brancos da cidade. Dizia para a mulher: “Maria, o outro mundo é muito
bonito. Só que a gente não pode ficar lá, só se criar guelra” – e assim con-
sideram que aprendeu remédios para lepra, para o câncer e uma série de
enfermidades. Era famoso também por descobrir o paradeiro das pessoas
e agir para que mudassem seus destinos e voltassem para o convívio das
famílias.
Desse modo, este “imbricado complexo de terras e direitos” (Revel
1989, 103), é simbolicamente construído como um território unificado sob
o controle de uma população, através dos curadores ou “sacacas”. Pode-
se dizer, que esse tipo de conhecimento deles do território, dos seus bens
e seres naturais, atribuídos pelos membros dos grupos “remanescentes de
quilombo”, assim como os grandes deslocamentos espaciais dos “sacacas”
(Balduíno era visto crivando os pés nas águas do rio na velocidade atual
das chamadas lanchas “voadeiras”) e sua prática itinerante, permite ao
mesmo tempo a produção de um único território pertencente às comunida-
des remanescentes de quilombos dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá,
e da legitimidade do domínio que sobre eles reivindicam, e de fato, exer-
cem. As referências relativas a um tempo histórico e mítico da fuga para os
quilombos faz de imponentes paredões altos e talhados a pique na beira do
rio Erepecuru, no caso do Barracão de Pedra, um monumento do passado,
marco memorial inscrito no espaço, que os defi ne como “comunidades
territoriais fortemente enraizadas” (Revel, 1989:165).
Sobre a avaliação do grau de esclarecimento da comunidade quanto ao
conteúdo da proposta e suas consequências, segundo Resolução do Con-
selho de Gestão do Patrimônio Genético do MMA – Ministério do Meio
Ambiente, é preciso considerar as dificuldades crescentes de fazer pesquisa
de campo etnográfica nas situações em que parcelas e grupos da população
lutam pelo pleno reconhecimento do seu status legal. Este é o caso destes
grupos que se defi nem legalmente como “remanescentes de quilombos”
e vivem em territórios separados no alto curso do rio Trombetas e seu
afluente Erepecuru-Cuminá. De acordo com nossa experiência etnográfi-
ca, eles praticam um isolamento defensivo diante da entrada de estranhos

68 Eliane Cantarino O’Dwyer


em suas comunidades, ao criar uma série de dificuldades para acesso de
pessoas de fora, até quando as intenções são defi nidas em termos de puro
conhecimento.
Tal problemática de pesquisa foi abordada e desenvolvida a partir do
nosso trabalho de campo realizado mediante viagens de visita anteriores
às comunidades remanescentes de quilombo de Oriximiná-Pará. Os obstá-
culos enfrentados para realização da pesquisa de campo nesta região nos
anos de 1992/1993 e as estratégias que tive de lançar mão para obter a
aceitação do grupo, levaram-me a formular, em função das próprias con-
dições do trabalho de campo, uma interpretação etnográfica de que estes
grupos praticam um “isolamento consciente”, que não pode ser explicado
por qualquer ideia de “isolado primitivo” ou de isolamento geográfico, so-
cial e cultural, naturalizados assim face ao observador externo. Ao contrá-
rio, tal isolamento é praticado por eles em decorrência de situações novas,
impostas por processos identificados como de globalização e suas conse-
quências, com a implantação de um grande projeto de extração mineral em
seu território e as ações de vigilância e controle sobre as populações negras
do Trombetas e seu afluente, realizada através de uma política de preser-
vação ambiental, que defi ne suas práticas culturais como transgressões à
legislação (O’Dwyer, 1995).
A configuração espacial destes grupos, que ficam localizados no alto
curso dos rios, e a manutenção de um isolamento relativo atualizado de
forma consciente, adquirem toda sua significação quando relacionada à
própria experiência de pesquisa etnográfica. A aceitação da pesquisa desde
início dos anos de 1990, quando estavam voltados para produção de sua
própria história, através das lembranças dos quilombos e das lendas heroi-
cas contadas pelos moradores mais velhos das comunidades, como afirma-
ção política dos seus direitos constitucionais, foi resultado do acaso nas es-
tratégias de que lancei mão para aproximação do grupo naquele contexto.
As narrativas de fuga e fundação, por eles formuladas, contaram com
a contribuição do material que possuíamos sobre os negros do Trombetas
e Erepecuru-Cuminá, através dos relatos de viajantes, como o casal Cou-
dreau, que em 1900 subiu esses rios e citou em seus relatórios os nomes de
vários “mocambeiros da fuga”. Neste caso, ao fornecer-lhes os dados, aca-
bamos de certo modo involuntariamente, contribuindo para um achado na
região acima da grande queda d’água do Chuvisco, cheia de travessões e
cursos encachoeirados. Estávamos em viagem até a foz do Penecura, onde
nas cabeceiras, na Serra de Santa Luzia, dizem ter formado no passado um
quilombo. Levaram-nos até lá na medida em que aceitamos entrar nessa

O papel social do antropólogo 69


relação de troca e interessar-nos pelas suas histórias sobre os “princípios”.
Incorporávamos, assim, o preceito de que “o antropólogo deve seguir o
que encontra na sociedade que escolheu estudar”. Entre a cachoeira do
Cajual e a foz do Penecura, no lugar onde o relatório de Mme. Coudreau
mencionava a existência de um sítio pertencente a uma das “mocambeiras
da fuga”, chamada Figenia, encontraram vestígios arqueológicos de uma
ocupação muito antiga, localizados através do entrecruzamento das in-
formações que lia no livro dos Coudreau e o conhecimento que possuíam
da cobertura florestal de mata virgem e áreas de antigas capoeiras. Foram
identificados restos de alguidar, fundo de garrafa com inscrição em inglês,
ruínas da muralha de um forno, o provável lugar do porto de uma casa,
onde havia um jenipapeiro e laranjeiras, cacaueiros e plantas medicinais
dentro da mata. A descoberta dessa evidência etnográfica sobre seu pas-
sado, consideramos decisiva para a aceitação da pesquisa e o fato dos mo-
radores das comunidades situadas na parte “mansa”, isto é navegável do
rio, passarem a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes
contavam os pais e avós, quando ainda crianças.
Este “gosto pelas origens” constituía-se assim, em moeda de troca en-
tre a pesquisadora e seus “informantes”, em 1990, no contexto da inclusão
dos negros do Erepecuru no processo de reconhecimento dos direitos terri-
toriais, já em curso para as comunidades negras do chamado “rio grande”,
o Trombetas.
No retorno a campo em janeiro de 2007, visando a elaboração de laudo
antropológico independente no âmbito do projeto em tela, os diretores da
Arqmo foram informados da minha passagem por Oriximiná em viagem
ao alto dos rios para visita às comunidades remanescentes de quilombo.
Tal viagem juntamente com o doutorando Danilo Ribeiro de Oliveira não
poderia ter sido empreendida sem o consentimento dos dirigentes da asso-
ciação quilombola e a plena aceitação dos membros dessas comunidades
às atividades de pesquisa sobre bioprospecção de espécies farmacologica-
mente ativas desenvolvidas pela equipe da UFRJ, que exigem processo de
anuência prévia.
No que diz respeito ao alto grau de esclarecimento dos chamados rema-
nescentes de quilombos sobre o conteúdo da proposta e suas consequências
gostaria de destacar uma explicação recorrente dada pelo pesquisador da
UFRJ em janeiro de 2007 em reuniões realizadas nas comunidades rema-
nescentes de quilombo.

Nosso objetivo – dizia ele – é realizar com vocês o levantamento das plan-
tas para comprovar o conhecimento tradicional dos nativos. Para mostrar

70 Eliane Cantarino O’Dwyer


que muita dessas plantas realmente funciona na cura e que o conhecimen-
to quilombola é realmente interessante, que vale à pena para o mundo
conhecer os quilombolas desse país, e que esse conhecimento possa vir até
a gerar medicamentos. E a gente vai trabalhar em cima disso para que,
de repente, a gente possa vir a gerar medicamentos que os quilombolas
seriam autores também. Esse é o objetivo desse trabalho, inclusive de pro-
por projetos para gerar renda, devolvendo à comunidade nosso trabalho,
mediante palestras, cursos, do livro que pretende resgatar esse conheci-
mento. Essa que é nossa proposta.

Os membros das comunidades visitadas manifestaram sempre sua con-


cordância com o trabalho de bioprospecção de espécies vegetais como ex-
presso por eles na entrevista a seguir:

A gente acha que vai ser bom (o trabalho de pesquisa), porque está tentan-
do ajudar a gente a resgatar a cultura. O que a gente aprendeu, mas que
estava esquecendo e este projeto veio para reavivar o nosso conhecimento
e dar continuidade ao nosso trabalho. Algumas coisas também, reconhe-
cer (o poder de cura do) nosso próprio remédio. As próprias pessoas da
comunidade têm o conhecimento das plantas, mas não sabem como desen-
volver a medicina de um tipo que existe hoje. Nosso uso das plantas se dá
de outras maneiras. Nós conhecemos vários tipos de madeira que vamos
mostrar para ele, entre flores, cascas e folhas, que são para nós de muito
valor curativo. Então, para nós aqui, esse é um trabalho muito importante
de tornar nossos produtos iguais a um remédio que vai servir não só para
os quilombolas, mas sim para todo nosso município e regiões do país.

Por conseguinte, a possibilidade de descoberta de substâncias bioativas


de espécies vegetais utilizadas pelos quilombolas do município de Orixi-
miná com potencial para novos fármacos contra tuberculose ou doenças
do sistema nervoso central, pode vir igualmente a representar o reconheci-
mento pela nossa ciência de um saber tradicional relativo às Comunidades
Remanescentes de Quilombo de Oriximiná-Pará, o que de certo modo
passa a conferir dignidade aos seus conhecimentos e práticas culturais.
Afinal, a crença nativa em mundos paralelos habitados por seres sobre-
naturais e o domínio desse espaço adquirido pelos “sacacas”, inclusive no
aprendizado sobre o uso dos recursos naturais e das potências que lhes ul-
trapassam em suas práticas terapêuticas, permite a construção do território
que ocupam como uma totalidade simbólica, que define as fronteiras do
grupo. Tais potências sobrenaturais podem ainda se manifestar indireta-

O papel social do antropólogo 71


mente e de diversas maneiras no cotidiano do grupo, causando infortúnio
e doenças. Devem por isso ser domesticadas e esconjuradas pelas rezas e
poderes divinatórios e de cura que se manifestam em alguns dentre eles.
O poder de pajulia, como disseram durante o trabalho de campo, é consi-
derado uma tradição de família, de modo que os “curadores” nunca lhes
faltaram. “Isso é muito sério”, advertiram à antropóloga, ao mencionarem
a existência dessas práticas de natureza xamanista.
Assim, os profetismos e as curas dos sacacas dos rios Trombetas e Ere-
pecuru-Cuminá e sua farmacopéia nativa, tratados como fonte de inspira-
ção ao projeto de pesquisa associado a bioprospecção e desenvolvimento
tecnológico do conhecimento tradicional, torna os membros destas comu-
nidades remanescentes de quilombo como depositários locais desse saber
tradicional, ao permitir que os conhecimentos terapêuticos deles próprios
e de seus antepassados possam ser utilizados pelos demais brasileiros, se-
gundo declaração deles próprios, mediante conversão de medicamentos
tradicionais em remédios industrialmente desenvolvidos. No entanto, tal
colaboração entre estudiosos de farmacologia e populações tradicionais
remanescentes de quilombos que utilizam plantas medicinais na Amazô-
nia brasileira, mediante práticas de cura, não deve ser compreendida como
uma equivalência entre saberes, nem uma oposição entre especificidades
culturais irredutíveis.
A produção de medicamentos de tipo moderno a partir de plantas na-
tivas, nas quais os sacacas e curadores são considerados especialistas, tem
sido avaliada pela direção da Arqmo e pelos membros das comunidades
que entrevistamos, como uma possível fonte de renda prospectiva apreci-
ável para eles próprios e suas próximas gerações, e assim representa uma
luta dessas populações não apenas por ganhos materiais, mas também pela
cidadania, traduzida como busca de respeitabilidade a si mesmo, aos seus
valores e formas de ver e viver no mundo.

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72 Eliane Cantarino O’Dwyer


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REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difusão Editoral Ltda., 1989.

O papel social do antropólogo 73


Capítulo 5

Processos de territorialização e conflitos sociais


no uso dos recursos ambientais pelo povo Awá-Guajá
em área da antiga reserva florestal do Gurupi
O texto “Processos de territorialização e confl itos sociais no uso dos recur-
sos ambientais pelo povo Awá-Guajá em área da antiga reserva florestal
do Gurupi” foi elaborado com base no laudo antropológico apresentado
a 5ª Vara da Justiça Federal do Maranhão, como perita do juiz (Processo
Judicial nº 95.353-8).
O ponto em discussão levado à Justiça é o questionamento da Portaria
Ministerial nº 373 de 27.07.1992 (DOU 29/7/1992, p. 10.116), que declara
como de “posse permanente indígena, para efeito de demarcação, a Área
Indígena Awá, com superfície aproximada de 118.000 ha”, localizada nos
municípios de Carutapera, Bom Jardim e Zé Doca, Estado do Maranhão.
O território delimitado pela portaria parte de coordenadas geográficas que
ao norte da área confronta com a Área Indígena Alto Turiaçu e em seu
limite sul com a Área Indígena Caru; na estrema leste traça uma reta do
igarapé Água Preta até o marco (nº 23) da Funai no rio Turiaçu; e no li-
mítrofe oeste encontra a Reserva Biológica do Gurupi (mapa e memorial
descritivo da portaria). A autora da ação, a Agropecuária Alto do Turiaçu
Ltda., ao argumentar que a portaria viola o direito de propriedade pela
inclusão de suas terras na área da reserva indígena, solicita através de ação
ordinária na Justiça Federal do Maranhão, Processo nº 95.353-8, a nuli-
dade da Portaria Ministerial nº 373 de 27/7/1992, “a fim de ser declarada
não indígena a área de terras de sua propriedade”.
O território identificado como Área Indígena Awá era parte da antiga
Reserva Florestal do Gurupi, criada em 1961 pelo Decreto nº 51.026, de
25/7/1961. Os índios autodenominados Awá e reconhecidos pela literatu-
ra de viajantes, relatórios de governos provinciais e outros grupos tribais

74 Eliane Cantarino O’Dwyer


pelo nome Guajá5 habitavam esta área delimitada pela Reserva Florestal
de aproximadamente 16.740 km², juntamente com os Tembé, Guajajara e
Urubu-Kaapor. O artigo 4º desse decreto reconhecia a presença deles na
área da reserva florestal e destacava a necessidade de respeitar as terras dos
índios, de forma a preservar as populações aborígenes, segundo preceito
constitucional e legislação específica. Os conflitos intertribais e as inimi-
zades organizadas ou espontâneas determinaram uma divisão deste ecos-
sistema florestal, de modo que os Awá viviam nos contrafortes da Serra
do Tiracambu, Serra da Desordem e no seu prolongamento chamado Serra
Azul, principalmente nas cabeceiras dos igarapés que desenvolvem o curso
das águas dessa cordilheira em direção ao rio Pindaré, seu afluente Caru,
e os rios Turiaçu e Gurupi.
Em 1982, foram homologadas duas áreas indígenas na região da Reser-
va Florestal do Gurupi: Alto-Turiaçú, com superfície de 530.524 ha, através
do Decreto nº 88.002, de 28/12/1982, e Caru, superfície de 172.667 ha,
Decreto nº 87.843, de 22/11/1982. Em ambas, com populações majoritá-
rias, respectivamente, de Urubu-Kaapor e Guajajara, alguns grupos Awá
antes isolados nas matas, encontravam-se vivendo em postos de atração
formados desde a década de 1970 pela Funai, quando esse povo começou
a sofrer forte pressão das frentes pioneiras e de colonização sobre seu ter-
ritório tradicional. A abertura, nos anos 1960, de estradas de rodagem
estaduais e interestaduais e, em 1980, a construção da ferrovia Estrada
de Ferro Carajás pela Companhia Vale do Rio Doce, que atravessa toda
a área indígena Caru, pela margem esquerda do rio Pindaré, ao possibili-
tar a transferência em escala crescente de populações nordestinas, passou
igualmente a atrair interesses econômicos na formação de fazendas e espe-
culação imobiliária das terras valorizadas pelo empreendimento mineral
e industrial. Deste modo, a ligação entre os estados do Maranhão e Pará,
através do polo industrial de Carajás, tem levado a um fluxo constante
de colonos, fazendeiros, garimpeiros e madeireiros em constante pressão
sobre as terras indígenas. No avanço desta frente de expansão surgiram
as ocorrências e relatos sobre epidemias, episódios de mortes e massacres
de grupos Awá, com o aparecimento de crianças indígenas em povoados
camponeses pela morte dos pais, e famílias inteiras atacadas dentro de
fazendas ou por caçadores na região. Os postos da frente de atração da
Funai, transformados em aldeamentos Awá nas reservas indígenas Alto

5 O termo de autodesignação, Awá, será preferencialmente usado neste parecer. O nome


Guajá, contudo, pode ainda ser aplicado de modo transitivo, sobretudo nos casos em que
aparece na bibliografi a compulsada

O papel social do antropólogo 75


Turiaçu e Caru, estavam localizados em áreas de deslocamento de grupos
“isolados” em suas atividades de caça, pesca e coleta para subsistência.
Os primeiros estudos oficiais da Funai para identificação de uma área ex-
clusiva para o povo Awá, datam da Portaria nº 1921/E de 9/8/1985. Nas
áreas delimitadas pelas primeiras portarias ministeriais, encontravam-se
“isolados” nas matas vários grupos Awá. Parte dos seus membros só em
1986 foram contatados no igarapé Juriti, e no ano de 1992 nas proximida-
des dos igarapés Mutum e Água Preta. Esta população Awá fora reunida
no posto de atração Juriti, nas margens do rio Caru, que faz parte da Área
Indígena Awá sob contestação judicial.
O reconhecimento da área indígena Awá tem sido objeto de acrésci-
mos, reduções e interdições através da edição de sucessivas portarias mi-
nisteriais. A primeira delas – Portaria Ministerial nº 76, de 3/5/1988 – a
declarar de posse permanente uma área na região para os índios Awá,
delimitava uma superfície de 147.000 ha, e fora contestada pelos ante-
cessores da Agropecuária Alto do Turiaçu Ltda. A seguir substituída pela
Portaria nº 158 de 8/9/1988, que ao reduzir a menos da metade a área
indígena Awá, com superfície aproximada de 65.700 ha, excluía toda área
atualmente correspondente a propriedade da Agropecuária Alto do Turia-
çu Ltda. Desta feita, a contestação partiu de setores da sociedade civil, a
Companhia Vale do Rio Doce, que subsidiava o desenvolvimento de um
programa “Sistema de Proteção Awá”, desde 1982 e o Banco Mundial, que
nas condições de empréstimo e investimento ao grande projeto Carajás,
apoiado pelo governo brasileiro, previa a demarcação das áreas indígenas
afetadas, ou ainda sob sua influência (Carta Daniel Gross, Banco Mundial).
O Ministério Público Federal, em cumprimento à função jurisdicional do
Estado, incumbido da defesa dos interesses sociais e individuais indispo-
níveis impetrou mandado de segurança contra a diminuição do perímetro
da área. Outra portaria ministerial, nº 448, de 22/5/1990, veio acrescer a
área indígena em 18.750 ha. Por fi m, passados dois anos, após constituir
grupo de trabalho para proceder novos estudos e ser aprovado o relatório
de delimitação da Área Indígena Awá através do Despacho Funai nº 11,
de 16/7/1992, foi editada a Portaria Ministerial nº 373, de 27/7/1992, com
superfície elevada para 118.000 ha. Ela foi contestada por uma Ação Cau-
telar em 1994 – Medida Cautelar Inominada Processo nº 94.000.2455-0.
A partir de 1995, foi impetrada a Ação Ordinária/ Imóveis Processo nº
95.0000353-8, em curso, com o objetivo de declarar a nulidade da Porta-
ria Ministerial nº 373, de 27/7/1992, do sr. ministro de Estado e Justiça,

76 Eliane Cantarino O’Dwyer


com a consequente declaração de tratar-se de área não indígena. Pretende-
se, assim, o reconhecimento pelo poder jurídico de Estado do direito de
propriedade da Agropecuária Alto do Turiaçu Ltda. sobre área declarada
terra indígena de ocupação tradicional Awá.
Do ponto de vista antropológico, contudo, o estranhamento diante
dessas unidades administrativas aparentemente arbitrárias e que reúnem
praticamente a maior parte da população conhecida através do contato,
levanta a questão de saber se o povo Awá, apesar das alterações que sofreu
em seu modo de vida antes “isolado” na floresta, continua a ser uma “etnia
indígena diferenciada, portadora de direitos específicos, defi nidos em uma
legislação própria” (Oliveira Filho, 1994:118-125) e se o território de ocu-
pação tradicional dos Awá é aquele definido pela portaria ministerial.
As questões levantadas no processo judicial devem ser relacionadas a
distribuição geográfica atual do grupo Awá, ao fracionamento e descon-
tinuidades no tempo do território considerado de ocupação tradicional. A
investigação pericial implica em relacionar a multiciplicidade de espaços
aos quais eles se referem e a flutuação de suas fronteiras territoriais. É pre-
ciso descrever o “processo de territorialização” do grupo, para compreen-
der a “identidade do lugar que o funda, congrega e une” (Augé, 1994:45),
e através do reexame de suas fronteiras exteriores e interiores considerar
os efeitos e desdobramentos que essas mudanças muito mais impostas do
que aceitas, podem produzir na manutenção de suas formas de organiza-
ção tradicional e na reprodução dos seus valores identitários com ênfase
na autonomia.
Para a defi nição do território Awá e a compreensão dos efeitos pro-
duzidos pela dispersão territorial e a fragmentação em diversos grupos,
seguimos a orientação metodológica de proceder ao estudo de casos des-
dobrados, chamado ainda de análise situacional, que “consiste em tomar
uma série de incidentes específicos ligados às mesmas pessoas ou grupos
no decorrer de um período e demonstrar como esses incidentes, esses ca-
sos, se relacionam com o desenvolvimento e a mudança das relações so-
ciais entre essas pessoas e grupos, agindo no quadro de sua cultura e do
seu sistema social” (Gluckman, 1975:68). Deste modo, os limites admi-
nistrativos que dividem os diversos grupos em quatro postos indígenas,
devem ser considerados como resultado de um processo que pode refle-
tir decisões e ações tomadas intencionalmente no passado. É necessário,
portanto, o registro dessas ações específicas e o tipo de participação de
indivíduos e instituições nos fatos relacionados. Verificamos que uma série

O papel social do antropólogo 77


de eventos, principalmente relativos às situações de contato com os Awá,
encontram-se no corpo do processo, em relatórios da Funai, periódicos e
correspondências reunidas em acervos arquivísticos de instituições como
o Instituto Sócio-Ambiental (ISA). Porém, esta apreensão dos eventos “de
fora” leva a uma “acumulação arbitrária de pormenores mais ou menos
verídicos” (Lévi-Strauss, 1975:23), enquanto a única maneira de sabermos
se esses fatos ou situações sociais correspondem à realidade, “é de que
sejam apreensíveis numa experiência concreta; em primeiro lugar, de uma
sociedade localizada no espaço e no tempo; mas também de um indivíduo
qualquer de uma qualquer dessas sociedades” (idem) – no caso o Awá des-
te ou daquele grupo local. No trabalho de campo pericial coligimos uma
série de eventos que marcam a vida do grupo indígena no período de três
a quatro gerações consecutivas, vividos como um evento único, onipresen-
te, na medida em que demarcam as separações, os processos de fragmen-
tação e perda de território. Desse modo, nossa proposta de investigação
etnográfica é coligir séries de “casos interconectados numa pequena área
que envolvem um número limitado de dramas pessoais através do tempo”
(Van Velsen, 1987:369). Assim, “a análise sincrônica deve ser combinada
com uma perspectiva diacrônica dos acontecimentos” (Feldman-Bianco,
1987:31). Seguimos, ainda, a orientação metodológica de formular nos-
sas indagações aos atores envolvidos e a outras pessoas no contexto do
trabalho de campo sobre casos e incidentes específicos. Esses casos inter-
relacionados devem ser considerados parte de um processo social (Van
Velsen, 1987:370) e a partir da sua análise é possível estabelecer conexões
entre indivíduos e grupos locais Awá para além das unidades administra-
tivas. Deste modo, podemos inventariar uma rede de relações e o entre-
cruzamento de suas conexões dentro de determinado território. Afi nal,
“os limites só adquirem relevância se estiverem intercruzados” (Vincent,
1987:380) e o território indígena deve ser definido como a materialização
de fronteiras dadas a partir de relações sociais e pertencimentos étnicos.
Os eventos relativos a situação de contato, ao produzir a fragmentação de
grupos Awá, separações entre familiares, sobreviventes em fuga e perda de
áreas comuns, caracterizam um “processo de territorialização” (Oliveira
Filho, 1994:133) com todas as suas implicações no plano constitucional
dos direitos indígenas. Neste caso, é preciso igualmente reconstituir as
“rupturas e descontinuidades no espaço que representam, na verdade, a
continuidade do tempo”(Augé, 1994:58).

78 Eliane Cantarino O’Dwyer


No contexto da perícia antropológica, o trabalho de campo foi reali-
zado mediante “visitas breves e repetidas, (...) como no caso da tradição
norte-americana da etnologia nas reservas” (Clifford, 1999:79,117). A in-
vestigação de primeira mão fez uso de intérpretes nativos como forma de
garantir “interações intensas face a face” (idem:115) com os Awá-Guajá.
Neste caso, gostaríamos de destacar a necessidade que se impôs de “limpar
nosso campo” (idem:72), das visões construídas por advogados, técnicos
do órgão indigenista, missionários, e grupos econômicos que contestavam
ou defendiam a ocupação do território por um povo nômade que não vive
em aldeamentos indígenas. Segundo ainda o autor citado, “sair a um espa-
ço de trabalho pressupõe práticas específicas de distanciamento” (idem:72)
em que o antropólogo pode considerar necessário “limpar seu campo, ao
menos conceitualmente” (idem).
Ao examinar os argumentos em contraposição encontrados nos docu-
mentos do processo, verificamos que eles recortam um campo semântico
próprio, composto pelos termos “aldeamento”, usado como equivalente
a presença indígena, “posse”, “nomadismo”, “migração” e “perambula-
ção”. As expressões evocam maneiras diversas de caracterizar a questão
dos direitos e interesses coletivos e privados de pessoa jurídica sobre uma
extensa área de antiga reserva florestal da União. As divergências entre
as partes no processo implicam num consenso sobre discutir certas ques-
tões. Neste caso, está em jogo a referência às formas de aldeamento indí-
gena tomadas como modelo para caracterizar a ocupação imemorial das
terras. Em 12/1/1990 havia sido expedido um Atestado Administrativo
nº 19.375.7205.0 – Processo Funai/BSB/0313/85, que negava a presen-
ça física ou de aldeamento indígena dentro de coordenadas que a autora
(Agropecuária Alto do Turiaçu) alega tratar-se da Gleba Bela Vista, que
corresponde a sua propriedade. De um lado, a ausência de um modelo con-
vencional de aldeamento permite a tentativa de desqualificação pela autora
(Agropecuária Alto do Turiaçu Ltda.) das terras tradicionalmente ocupa-
das pelos Awá, segundo o texto constitucional. Por outro, há “indícios” e
provas em contrário sobre a existência nômade e de “perambulação” dos
Awá, comprovadas pelos servidores da Funai em seus relatórios e demais
“intérpretes autorizados” pela instituição. Alguns desses relatórios, em es-
pecial produzidos por sertanistas da Funai, parecem convincentes sobre
as formas de ocupação tradicional e atividades produtivas necessárias a
reprodução física e cultural do grupo indígena Awá, segundo seus usos,

O papel social do antropólogo 79


costumes e tradições. É o caso do relatório apresentado à Funai em setem-
bro de 1985, pelo sertanista José Carlos Meirelles Júnior. Ele percorreu
parte da Reserva Florestal do Gurupi e ao ter se deparado com vários “ves-
tígios” de presença Awá, chegou a conclusão de que esta parte da Serra da
Desordem, no rumo das águas do igarapé Turizinho e igarapé da Fome,
margeando o rio Caru, e na encosta das nascentes que jogam em direção
ao Gurupi – igarapés Aparitiua, Maronato e Mão de Onça, constituía
“área de perambulação dos índios guajá”:

notei um galho de canela de velho virado para a frente, na altura de 1,5


metro do chão, o que tira a possibilidade de ser quebrado de anta quando
quer se deitar e é considerado com certeza batida de Guajá; no topo, que
termina numa descida de uns 200 metros a pique, a vegetação é rala (...)
em cima da terra, de novo galhos virados pelos índios Guajá, subindo
provavelmente as águas do Caru, para caçar nos formadores dos igarapés
que correm para o Gurupi; região de muita caça; nesta área existem mui-
tas guaribas, alimentação fundamental para os guajá, muito jeju e traíra
em água limpa, bom de flechar, não é à toa que os guajá andam por aqui
(Relatório do Reconhecimento da Área da Serra da Desordem, 1985).

Todavia, os efeitos dos indícios para produção da prova sobre a ocu-


pação de um território tradicional Awá – inclusive os incidentes sobre a
propriedade da autora (Agropecuária Alto do Turiaçu), em que foram en-
contrados, em 1989, “vestígios” datados provavelmente de 10 anos antes,
com a ressalva de que a existência de antigos cocais não poderia mais ser
comprovada pela devastação ali promovida – já se encontravam no bojo
da documentação relativa ao processo, e não parecem ter sido suficientes
ou convincentes para resolução do conflito judicial (Relatório de Levanta-
mento da A.I. Awá, “Viagem a Terra Sem Lei”, 1989). Tanto a Agropecuá-
ria Alto do Turiaçu quanto a Funai, nos autos do processo, estão de acordo
sobre a necessidade de realização do laudo antropológico que possibilite a
apresentação de fatos novos para apreciação do Meritíssimo Juízo.
Por conseguinte, espera-se da participação do antropólogo ao atuar
como perito, que rompa com os termos estritos do debate a partir da prá-
tica profissional de sua disciplina. É preciso, portanto, marcar a ruptura
entre o tipo de investigação antropológica e as provas e contraprovas até
agora confrontadas no corpo do processo. Nele os termos “aldeamento”,
“posse”, “migração”, “nomadismo” e “perambulação” adquirem conota-
ções específicas.

80 Eliane Cantarino O’Dwyer


Os termos “nomadismo”, “migração” e “perambulação” são utilizados
com duplo sentido e intenção: em contraposição às situações de aldeamen-
to indígena para descaracterizar uma existência coletiva, e como “indí-
cios” que servem para provar a ocupação de um território tradicional Awá.
Nos estudos e relatórios da Funai, os “indícios” e os fatos relacionados
a situação de contato com os grupos “isolados” servem para descrever e
categorizar de forma aproximada a realidade social e cultural vivida pelos
Awá. O uso de tais termos, porém, implica numa abordagem referida às
categorias etnocêntricas e pontos de vista do observador. A noção de no-
madismo, associada a “migração” e “perambulação”, parece impregnar-se
de toda carga semântica dos seus significados vocabulares. Migrar é “apli-
cado para exprimir mudança de população, num mesmo país, de uma re-
gião para outra, em que vai ficar” (Plácido e Silva, 2001:533). Deste modo,
o termo “migração”, usado para caracterizar a ocupação de um território
pelos Awá, supõe que eles se deslocam continuamente em busca de matas e
fontes d’água para exercer suas atividades de caça, pesca e coleta de frutos,
principalmente nos babaçuais, sem estabelecer uma área ou porção de terra
na qual se fi xem. O que juridicamente e em sentido amplo acaba por tradu-
zir uma ideia de inexistência de território próprio (idem:809), e por exten-
são em conceito político, termina igualmente por sugerir ausência daquilo
que se possa considerar uma organização ou coletividade indígena Awá.
Por sua vez, “perambular” tem o significado linguístico de “vagar sem des-
tino, vaguear, vagabundear”, e “vaguear”, aparece igualmente como uma
versão de “andar ao acaso, à toa”; ou ainda “errar, vagar, percorrer ao
acaso” (Novo Aurélio, 1999:1.540, 2.042). Ambos, portanto, reforçam a
ideia de que os Awá percorrem aleatoriamente qualquer limite geográfico,
sem senso de direção que possibilite a defi nição de um território.
Do impasse ao consenso entre as partes sobre o papel da perícia antro-
pológica para esclarecer ou evidenciar os fatos em disputa e a nomeação
pelo Juiz para que procedêssemos à pesquisa e esclarecimento dos fatos
em questão, importam no “trabalho do antropólogo” e seus modos disci-
plinados de “ouvir, olhar e escrever,...que articulam a pesquisa empírica
com a interpretação de seus resultados” (Cardoso de Oliveira, 1998:17).
A investigação antropológica exige um “exercício de estranhamento” no
qual rompe duplamente com a defi nição arqueológica de “vestígios” e da
“evidência” como técnica jurídica, na medida em que ambas tentam ofe-
recer uma prova ou contraprova através de circunstâncias externas que
se mostram acumuladas e relacionadas de acordo com o ponto de vista
do observador. No fazer antropológico, deve-se estudar uma sociedade

O papel social do antropólogo 81


em seu contexto, a partir das categorias e valores próprios dos grupos. A
observação etnográfica e o diálogo comparativo com a teoria acumulada
pela disciplina dão lugar aos fatos etnográficos que permitem o conheci-
mento e tradução das categorias de pensamento e formas de organização
social e cultural da vida nativa. A prova em Antropologia sobre a diversi-
dade nos modos de existência coletiva é a evidência etnográfica construída
a partir das categorias êmicas do grupo e de seus valores internos, o que
implica em estudar a sociedade indígena em seus próprios termos, segundo
a lógica e a coerência com que aí se apresentam. “De que maneira trans-
formar a terminologia dos nativos em terminologia técnica, quer dizer em
conceitos sociológicos?” (Tomke Lask in Barth, 2000:11).

Nomadismo: os patrigrupos
Na documentação compulsada os grupos são nominados por um dos ho-
mens adultos e observamos no trabalho de campo pericial que essa prática
também é comum entre os próprios Awá, que assim identificam inclusive
os grupos residentes nas aldeias dos postos indígenas. No caso, por exem-
plo, de um grupo de índios sem contato até então com o pessoal da Funai,
que em agosto de 1987 visitou a chamada aldeia do bosque, na área in-
dígena Caru, os servidores do órgão indigenista, meses depois através de
informantes Awá residentes no posto indígena, identificaram-lhes como
do grupo Jacamintxia (hoje quase todos encontram-se no Pin Tiracambu,
área indígena Caru).
Esta lógica em seguir um sistema de nominação e divisão em grupos
presente na própria prática indigenista, parece estar teoricamente orienta-
da pela patrissegmentação dos tupi-guarani, como no caso dos índios “pa-
rakanã, que se dividem em patrigrupos nominados” (Fausto, 1995: 102).
Este autor chama atenção que apesar da “patri-orientação ser bastante
difundida entre os grupos tupi-guarani, de pouca significação sociocosmo-
lógica, (e podem ser interpretados) esses patrigrupos como um resquício
de uma realidade anterior, que se diluiu com o tempo, em função de cir-
cunstâncias históricas particulares” (idem). Em relação aos Awá, também
do tronco e família linguística tupi-guarani, deve ter ocorrido o mesmo
processo, ainda mais se levarmos em conta a regressão cultural do grupo,
analisada no item terceiro do parecer, sobre a perda da prática agrícola em
tempos pretéritos que já nem lembram, porém se mantém na persistência
de termos linguísticos para designar algumas plantas cultivadas.

82 Eliane Cantarino O’Dwyer


Na observação etnográfica, constatamos que, igualmente para os Awá,
o “grupo de germanos masculinos” constitui um núcleo importante da
sua “identidade sociológica” (idem:64). Os irmãos do pai, também cha-
mados de pai (txipá), de acordo com termos classificatórios de parentes-
co, e seus filhos constituem a unidade básica de organização dos grupos
Awá para as atividades de caça-coleta e outras formas de reciprocidade e
partilha. No levantamento das relações de parentesco, verificamos ainda
que ocorrem casamentos com as sobrinhas e primas cruzadas patrilate-
rais. No grupo Txipatxia, o fi lho de Merakedja, chamado Tataikamaha,
havia casado anteriormente com a filha de Maracanã, sua irmã, portanto
com a sobrinha. Outros casos puderam ser verificados sobre o casamento
com a prima cruzada, por exemplo entre Mihatxia e a fi lha de um ir-
mão de sua mãe, Amanparanohim, do grupo Jacamantxia. Todos desfei-
tos posteriormente com a reunião de vários grupos isolados na aldeia do
Pin Awá, que passaram a trocar mulheres entre si – grupos Jacamantxia
e Mirim-Mirim que reuniram-se aos grupos Txipatxia, Txiami e Wïritxi.
Pelos relatos dos próprios Awá, esta troca entre os patrigrupos era feita nas
antigas condições de isolamento anteriores a reserva indígena, apesar das
partes procederem estrategicamente de modo cauteloso, sem pressa, como
explicaram, isto é, ameri. No entanto, por uma circunstância favorável,
pode-se reunir na aldeia à margem do igarapé Presídio, Pin Awá, o grupo
Txipatxia trazido do igarapé Timbira, na cabeceira do Pindaré, e aqueles
grupos que frequentavam a margem esquerda desse rio como as nascentes
do igarapé Presídio, entre eles Txiami, Wïritxi, além dos outros que se
deslocaram para o posto Tiracambu, alguns quilômetros adiante na área
indígena Caru. Nas condições de isolamento, o índio Takea, contatado no
igarapé Mutum em 1989, atualmente residente no Pin Juriti, disse com a
ajuda de um intérprete indígena, que conhecera no babaçual do igarapé
Juriti, o índio Txiami que apareceu por lá juntamente com sua família,
vindo da cabeceira do igarapé Presídio através da Serra do Tiracambu.
Acompanhado do seu irmão Takea propôs-lhe o casamento com uma de
suas fi lhas, Pirauã, como ainda lembra, porém ele não aceitou a troca. No
mesmo babaçual colocaram-se ambas famílias em margens opostas do iga-
rapé. Nas condições da entrevista ele ficou sabendo que a filha de Txiami
casara-se depois, porém já era falecida.
A prática do casamento avuncular e com a prima cruzada patrilateral,
segundo alguns casos observados, deixa de ser seguida nas condições em
que se encontram ameaçados e pressionados em seus harakwas (territórios

O papel social do antropólogo 83


de caça-coleta). O irmão de Karapiru, Tacapen, contatado alguns anos
atrás na região de Amarantes, Maranhão, membro de um dos grupos Awá
mais pressionados, atualmente residente no Pin Juriti, num haipa afasta-
do do aldeamento na confluência do igarapé Água Preta e o Caru, estava
casado com a fi lha de um dos seus irmãos, já antes do contato, com quem
tem três filhos pequenos. Ao invés de constituir uma exceção, verificamos
outros casos como o de Kamará, último contatado no igarapé Seco, área
indígena Awá. Ele precisou deixar uma fi lha para trás, casada com seu
irmão, que não acompanhou o grupo no resgate. No Pin Guajá, Tiramu-
cum, o fi lho de Karapiru encontrado na Bahia, declarou que praticamente
todos os irmãos do seu pai trocaram entre si as filhas, segundo uma regra
não condizente com o casamento da sobrinha ou prima cruzada patrilate-
ral, o que leva a um fechamento do próprio grupo e parece ser muito mais
o efeito de pressões externas do que alguma regra nova desconhecida pelos
estudos de parentesco. Agravada pela “queda demográfica”, com a intru-
são e redução de seus territórios de caça-coleta (harakwas) pode-se aplicar
sobre os Awá as observações antropológicas referentes aos índios Guayaki,
tupi-guaranis nômades como eles, que vivem na fronteira entre o Brasil e
Paraguai, em que “as regras de casamento parecem sobretudo negativas,
pois um homem pode esposar não importa qual mulher, salvo aquelas
que caem sob as proibições maiores (mãe, irmã, fi lha), [sendo que] os gru-
pos conhecem por sua vez a poliandria e poliginia” (Clastres, 1964:123).
Apesar de comentarem conosco sobre essas formas de troca a partir dos
questionamentos que fazíamos, parece que essa situação é vivida com cer-
ta restrição entre eles, admissível apenas como uma solução extrema, pelo
“segredo” que revelaram envolver alguns relacionamentos – “namoros”,
como explicaram – entre casais com este grau de parentesco. Deste modo,
essa regra negativa de casamento é quase sempre adotada nas condições
em que o próprio grupo encontra-se ameaçado em sua reprodução – quan-
do pressionados não conseguem parar e fazer o resguardo do parto duran-
te pelo menos sete dias após o nascimento – e fica praticamente impedido
de encontrar-se com outros na interseção dos seus harakwas (territórios de
caça-coleta) para proceder as trocas matrimoniais, segundo o sentimento
coletivo de que prescrições socialmente mais reconhecidas sobre a divisão
do círculo de parentes consanguíneos e afi ns precisaram ser contextual-
mente transgredidas.
Os Awá, através da solidariedade do grupo de irmãos, organizam-se
em um sistema social segmentar, sem instituições centralizadas, que se

84 Eliane Cantarino O’Dwyer


reproduzem em uma área ecologicamente homogênea da pré-Amazônia
brasileira. Os processos que ocorreram ao longo do tempo sustentaram o
padrão de nomadismo que encontramos ainda hoje, através da ocupação
dos contrafortes das serras do Tiracambu e da Desordem e, principalmen-
te, das cabebeiras dos rios Gurupi, Pindaré, Turiaçu com seus afluentes e
inúmeros igarapés. O grupo de irmãos parte para caçar junto com suas
famílias e se deslocam pelo território de caça-coleta que reconhecem pelos
marcos assinalados como determinada árvore, cursos de rio e suas rami-
ficações, até sinais de galhos quebrados na mata. Os deslocamentos são
necessários para perseguir a caça, sua alimentação é constituída por carne
de caça, pelo mel silvestre e a farinha de babaçu. Os grupos contatados
substituíram a farinha do babaçu pela mandioca, mas misturam-lhe as
amêndoas do babaçu. No caso dos Awá, o nomadismo não representa
a busca ilimitada de florestas virgens atrás da caça. A cobertura vegetal
necessária à reprodução das espécies animais não prescinde da existência
dos babaçuais ou as chamadas “capoeiras velhas” que resultam das ativi-
dades de horticultores indígenas, como os Urubus-Kaapor e Guajajara que
compartilham com eles o território da antiga Floresta Nacional do Gurupi
e participam desse conjunto interconectado de grupos étnicos e territórios
tribais característicos do chamado indigenato (vide item 3 do parecer). Os
limites do território Awá não se distanciaram muito do início da região
montanhosa e o padrão de reclusão em ambiente inóspito no mais pro-
fundo das florestas, cabeceiras de rios, com o deslocamento constante dos
segmentos de grupos resultam em um fluxo organizado ao longo de uma
fronteira étnica e geográfica relativamente estável. O movimento desses
grupos no uso de rotas e áreas de caça-coleta resulta na formação de uma
rede pela qual circulam as informações e as trocas. Tanto que um grupo
tinha conhecimento dos outros, muitas vezes de maneira indireta, atra-
vés de quatro grandes eixos de fluxo organizado, tendo como referência
a região da serra da Desordem: ao norte da serra, no sentido do igarapé
Gurupiuna; ao leste, para o rio Turiaçu e seus formadores, rio do Peixe,
rio do Sangue e rio Turizinho, igarapé da Fome até o rio Caru; ao sul com
o Pindaré e seus formadores, igarapés Presídio, Bandeira, Traíra, rio Caru,
igarapés Juriti, do Furo, Aprígio e Mutum e os contrafortes da serra do
Tiracambu; ao oeste com formadores do Gurupi, igarapés do Milho, Gua-
riba, Maronata, Mão de Onça e Aparitiua.
A partir dos dados etnográficos, verificamos que um grupo tinha co-
nhecimento do outro, através da formação de um network social. A índia

O papel social do antropólogo 85


Merakedja, que vivia na fronteira norte da área indígena Awá delimita-
da pela portaria ministerial, residente no Pin Awá, área indígena Caru,
e Tamaikaman que vive no Pin Guajá, área indígena Alto-Turiaçu, em
entrevistas separadas sem que tomassem conhecimento um do outro, reco-
nheceram-se como hari, termo de parentesco geralmente usado para desig-
nar laços familiares muito próximos como entre irmãos e primos. Ambos
consideraram em seus depoimentos que fi zeram parte do mesmo grupo
Awá que tinha o seu harakwa nas cabeceiras do Turi (rio Turiaçu). Anos
depois Tamaikamã tornou-se a referência masculina desse grupo, contata-
do adiante no cocal às margens do Turiaçu. Merakedja havia se separado
e perdido todo contato com ele a partir de um ataque a tiros de caçadores,
no qual perdeu seu marido e fi lhos homens, em que fugiu na direção sul
do rio Caru. Desde então, eles nunca mais se viram e só tomaram conheci-
mento um do outro sobre estarem vivos a partir de uma viagem da Funai
da área Caru ao alto Turiaçu em meados dos anos 1980, acompanhada
pelo índio Txipatxia, seu marido, do grupo contatado no igarapé Timbira,
margem direita do Pindaré. Quando perguntamos a Merakedja sobre os
grupos que tivera conhecimento anteriores ao contato no igarapé Timbira,
referiu-se explicitamente a Mirim-Mirim, com quem teria permanecido
um tempo em seu deslocamento compulsório pela fronteira norte-sul antes
de juntar-se ao grupo Txipatxia, seu marido, e sabia igualmente de Txiami
com quem compartilham atualmente a aldeia do Pin Awá.
A identificação dos nomes de família como nomes de habitat e o es-
toque de topônimos que indicam as cabeceiras de rios e igarapés usados
como áreas e rotas de caça-coleta contrasta com a ausência de uma gramá-
tica nativa do parentesco, com a construção de códices genealógicos para
se referir a uma sequência linear do tempo. Só os mais velhos conseguem
remontar no máximo a duas gerações anteriores e a reticência que obser-
vamos em falar os nomes dos seus antepassados pode estar relacionada à
experiência extrema de separações e mortes provocadas pela situação de
contato e expulsão do seu território. Outra forma prevalente de nomina-
ção é individual e relaciona o recém-nascido às espécies naturais através
do estabelecimento de semelhanças que preside a escolha do nome pró-
prio, acompanhado geralmente de um sufi xo que indica se tratar de uma
pessoa – como o menino felino Wontxia. Esta espécie de vínculo e dupla
referência entre espécie humana e natural relacionadas pela atribuição dos
nomes próprios às crianças Awá estabelece um isomorfismo e contraste
característico dos sistemas totêmicos.

86 Eliane Cantarino O’Dwyer


Nomes de família, habitats e topônimos
No trabalho de campo pericial, na primeira viagem ao Pin Awá, ao per-
guntarmos sobre os nomes das famílias residentes no posto indígena, os
Awá entrevistados respondiam designando o nome dos territórios de caça-
coleta por eles utilizados – os harakwas. Deste modo, os nomes de família
eram identificados como nomes de habitats, alguns antigos que precisaram
abandonar pela pressão das frentes de expansão, outros constituíam novas
áreas utilizadas para as atividades de subsistência em condições de reserva
indígena. Sobre essa “designação das unidades de parentesco por topôni-
mos correspondentes a locais de residência” (Bensa, 1998:56) constitui
uma prática recorrente no caso de outros povos tribais como os Kanak da
Nova Caledônia (idem).
O levantamento do estoque de topônimos por meio dos quais os Awá,
nos diversos postos indígenas, designam os lugares de caça-coleta, inclusi-
ve aqueles em que viviam anteriormente às condições de reserva indígena,
permite decifrar a combinação que fazem entre as localidades atuais e os
habitats que deixaram desocupados para trás. A própria organização social
dos Awá passa igualmente por esse sistema de nomes pelos quais os grupos
relacionados aos seus lugares são por eles designados como harakwas.
Apesar dos povos amazônicos serem a princípio considerados a-histó-
ricos, o interesse dos Awá pela história pessoal e do seu grupo encontra-se
diretamente relacionado à passagem de uma forma de vida indígena iso-
lada ao envolvimento maior com as frentes de expansão econômica e o
Estado nacional. Neste caso, o passado concebido como modelo atemporal
que se expressa no mito de Maíra sobre a criação do mundo, comum em
sua versão a cosmologia dos seus vizinhos Urubu-Kaapor (Ribeiro, 1996:
444-447), é igualmente relacionado a um tempo histórico marcado pelos
eventos do contato interétnico. O modo próprio de organizar e exprimir
sua historicidade é relacionado ao estoque de topônimos atribuídos aos seus
harakwas, ao remontar a cadeia de lugares onde residiram eles próprios e
seus antepassados. Nos postos indígenas Awá, Tiracambu, Guajá e Juriti,
que reúnem os grupos Awá contatados, os harakwas são relacionados ao
lugar de origem e a ocupação de diferentes habitats podem remeter a um
contexto espacial muito mais extenso. O grupo Txipatxia, por exemplo,
pertence ao harakwa pikwera (“antigo”), forçado a abandonar a margem
direita do rio Pindaré e que hoje se encontra em outro harakwa amoa (isto
é, “recente”), a partir da tranferência do grupo para a área indígena Caru.
O grupo Txiamim é do harakwa tea, que tem uma continuidade no tempo
e é compartilhado hoje com outros harakwas formados nas cabeceiras dos

O papel social do antropólogo 87


igarapés Presídio, Bandeira, Traíra e na direção da serra do Tiracambu.
Txiami, porém diz que não pode mais ir ao Gurupiuna atravessando a
serra do Tiracambu como costumava fazer quando rapaz. No Pin Guajá os
grupos Tamaikamã e Txipomuhutxia, este último sempre mais isolado até
que passou a viver no posto indígena, citam o território que foram obriga-
dos a abandonar nos formadores do Turiaçu, rio do Peixe, do Sangue e o
Turizinho, igarapé da Fome até o Caru, hoje invadido por roças, fazendas
e “picadas”, como eles próprios disseram, que impedem seus deslocamen-
tos para esses antigos harakwas, que abrigavam ainda outros grupos dessa
região do Alto Turiaçu.
Embora os grupos Awá possam querer evitar o acesso de outros às
áreas que costumam usar, normalmente se misturam e não tem prerroga-
tiva defi nida, independente e irrestrita sobre os territórios dos harakwa. O
acesso aos territórios de caça-coleta ocorre automaticamente desde que se
exerça esse tipo de atividade de subsistência, redundando em ser Awá. Este
tipo de adequação ao ambiente natural, quando não se colocam limites a
sua viabilidade ecológica, através dos desmatamentos, redunda igualmente
num certo estilo de vida e no conjunto de características (vide item 2 do pa-
recer) subsumidas na denominação étnica Awá. O desempenho adequado
dos papéis necessários para realizar essa identidade requer tais recursos,
o que tem sido de certo modo ameaçado pelas intrusões na área indígena
Awá delimitada pela portaria ministerial, situação que igualmente obriga
os grupos das reservas indígenas Caru e Alto Turiaçu a um confi namento
progressivo e forçado, o que no caso do Pin Guajá no Alto Turiaçu tem
levado a uma aproximação do contato com os Urubus-Kaapor, vista com
restrições pelos mais velhos que tiveram a experiência de confl itos com
mortes e raptos de suas mulheres. A alteração imediatamente percebida na
variação da pronúncia, isto é, do acento como sinal diacrítico indicativo
do falar Awá, conforme o comentário de um informante nativo, pode im-
plicar em outras mudanças, inclusive na redução da diversidade étnica e
cultural característica dos grupos tribais do Alto Turiaçu, que mantinham
uma complementariedade – sedentarização dos Kaapor e nomadismo dos
Awá – mas também uma autonomia expressa através do próprio confl ito.
As atividades de caça realizadas por um grupo em seu harakwa não
significam que percorram em conjunto todo esse território. Os trechos de
floresta do harakwa (meu território) ou do hakwa, usado na terceira pessoa
do indefi nido para se referir ao território de outrem, são utilizados pelas
diferentes unidades familiares do grupo em seus deslocamentos, no que

88 Eliane Cantarino O’Dwyer


resulta em nova subdivisão das áreas por eles chamada de haka’a, isto
é, “meu mato”, segundo tradução literal que fi zeram. As caçadas obede-
cem ao ciclo próprio de reprodução dos animais, como macacos, paca,
anta, veados, porcão (tiahu) etc. Quando abatem uma fêmea com filhotes,
recolhem-nos e entregam a uma das mulheres do grupo, que pode assumir
o papel de provedora. Ela passa a cuidar do filhote e o tipo de laço criado
na domesticação dos animais tem se manifestado como afetivamente for-
te. Quando crescem e entram na fase reprodutiva, os animais são levados
para as áreas distantes dos seus harakwas para evitar que matem e se ali-
mentem dessa criação. Pela combinação das esferas de caça e domesticação
de animais silvestres, os Awá integram-se como elemento humano nesse
ecossistema da pré-Amazônia maranhense.
O aldeamento nos postos indígenas e a reunião de uma população mui-
to maior do que os grupos isolados que mantêm em média 20 a 30 pes-
soas, quando não estão pressionados, só é viável através da agricultura,
principalmente o plantio da mandioca e fabrico da farinha, que garante
a concentração recorde de uma população de 106 pessoas no Pin Awá,
área indígena Caru – sobre o censo populacional, ver dados demográficos
em anexo. O modo atual de viverem concentrados no aldeamento do pos-
to indígena, onde constroem seus haipa, isto é, suas habitações, tem sido
associado por eles a uma colmeia de abelhas, de que são especialistas em
retirar o mel. Esta acumulação de pessoas e de uma série de habitações
num mesmo local, após o contato interétnico, chamam de hairohú pela
semelhança que estabelecem com as abelhas – haira. Sobre a área agricul-
tável e a produção de farinha encontram-se diretamente relacionadas ao
número de pessoas e ao tempo de permanência na mata programado para
as atividades de caça-coleta, que pode durar alguns meses. A alternância
entre sedentarização e nomadismo encontra-se relacionada a sazonalidade
agrícola e os períodos mais afeitos às atividades de caça-coleta de deter-
minada espécie animal ou vegetal. De acordo com um servidor da Funai:
“passam às vezes seis meses vivendo do modo como sempre fi zeram, quan-
do voltam a vida nômade deles na mata”.
O movimento contínuo dos grupos em seus harakwas e o entrecru-
zamento das rotas na área montanhosa pode ser pensado em termos de
fluxos produzidos no espaço em várias direções, a imagem e semelhança
dos seus rios caudalosos, mas também de estreitos riachos e igarapés, tan-
to correntezas isoladas como confluências. Este fluxo de grupos Awá em
movimento, como também de significados culturais compartilhados, foi

O papel social do antropólogo 89


cortado por descontinuidades e obstáculos produzidos fora das comuni-
dades indígenas que partilhavam o território da antiga Reserva Florestal
do Gurupi.
As separações forçadas, a perda de antigos harakwas e as pressões
constantes ao longo das fronteiras do território Awá, com a imobilização
de antigos fluxos e a impossibilidade para os grupos contatados, princi-
palmente os que ficaram no Alto Turiaçu e se encontram em condições de
maior confi namento, de atravessar as cabeceiras de rios e cadeias monta-
nhosas como faziam anteriormente, teve consequências dramáticas que se
revelam através das experiências e trajetórias de vida de homens e mulhe-
res desse povo indígena.
A forma essencialmente dramática dos relatos, ouvidos no trabalho de
campo pericial sobre separações e mortes no passado de suas vidas, repre-
senta pelo que pudemos verificar sequências de eventos que acarretam mu-
danças ao longo do tempo nas formas de organização do espaço antes ocu-
pado e suas interações baseadas em laços de consanguinidade e alianças
pelo casamento. Sobre as separações forçadas, como verificamos através
dos relatos, os sobreviventes em fuga não perdem sua identidade étnica e
são acolhidos em outro grupo Awá, onde obtêm proteção e se incorporam,
como no caso da índia Merakedja, atualmente no Pin Awá, área indígena
Caru. Outros sobreviventes encontrados em povoados camponeses foram
entregues a Funai e reincorporados aos grupos contatados nas reservas
indígenas, como Geï Guajá que ainda criança viveu na reserva do Alto Tu-
riaçu e atua como intérprete nos quadros do órgão indigenista. Os relatos
feitos por diferentes informantes nativos em ocasiões diversas e os comen-
tários de outros participantes nos postos indígenas Guajá, Awá, Tiracam-
bu e Juriti, permitem evidenciar, pelas operações comparativas envolvidas,
as formas de pertencimento cruzado e interconexões entre grupos ao longo
de uma fronteira étnica e territorial, em que se viram dispersos pelos ata-
ques de caçadores e invasores dessa área de antiga reserva florestal.
A dimensão trágica desses acontecimentos vividos pode ser expressa no
depoimento de Merakedja, que perdeu pai, esposo e filhos, obrigada ainda
a separar-se do seu grupo de origem no Alto Turiaçu, em fuga solitária na
direção da fronteira sul da área indígena Awá. Na entrevista, perguntada
sobre seus pais, avós e fi lhos, com ajuda do seu neto Yrakatakoa como
intérprete e a presença do atual marido, filhos e outros índios do Pin Awá,
Merakedja, com idade calculada superior a 70 anos, recordou-se ter nas-
cido na cabeceira do Turi (rio Turiaçu). Quando nova, porém já casada,
disse ter sido forçada a caminhar na direção sul do rio Caru, para livrar-

90 Eliane Cantarino O’Dwyer


se dos tiros de caçador “branco” que atacou o grupo e os perseguiu na
debandada. Cada um correu para um lado e “na mata não tem lugar de
chamar”, como observou, então, espalharam-se e ela, na separação, seguiu
uma rota que já conhecia, por eles usada na direção do rio Turizinho até
o igarapé Juriti. Adiante, sozinha com seu macaco, como ainda lembra –
até hoje Merakedja dedica-se ao xerimbabo desses animais – ela viu um
tarutu, isto é, um rapazinho, identificado como Txipatxia que veio a ser
anos depois seu marido. Antes desse último casamento e já depois da fuga,
Merakedja teve seus filhos homens, Tataikamaha, Tiboha, e uma fi lha mu-
lher, Maracanã, que se encontram com ela no Pin Awá, todos do grupo
Txipatxia resgatados no igarapé Timbira, margem direita do Pindaré.
Os fatos relativos a sua vida, posterior a separação dos parentes no Alto
Turiaçu, que envolvia os familiares presentes, não foram quase tocados. O
assunto principal do seu relato foi o tempo da juventude, o período em que
viveu com seu pai e o primeiro marido, imena Yaputxia, e de situações
mais dolorosas mencionadas de passagem como a morte de um fi lho em
confl ito com os índios Kaapor. O “branco atirou faz tempo, muito tempo
– kurï, kurï – quando vivia no mato e não era conhecida de karaï”, isto é,
“branco”, referindo-se a um período anterior ao contato com o pessoal da
Funai. Textualmente disse ainda: “conheço toda cabeceira do Turi, eu sou
a mais velha, conheço a área toda”. Sobre esse tempo dois nomes foram
ainda lembrados, o de Tamaikamã e Tapanihum, que se encontram no Pin
Guajá e faziam parte do mesmo grupo de Merakedja. Segundo os termos
do próprio relato, na corrida ela já conhecia a mata e, aos poucos, foi se
reencontrando com outros índios na descida. Fez menção, neste caso, ao
pai de Mirim-Mirim e a ele próprio que conhecera ainda menino. O grupo
Mirim-Mirim, como anteriormente citado, só foi atraído para as condi-
ções de aldeamento em posto indígena no ano de 1996, posteriormente a
sua morte. Neste tempo, como disse, “eu não tinha mais pai”, porém na
fuga e perdida após a separação, ela se dirigiu para o Iutiura, nome atri-
buído pelos Awá à cabeceira do igarapé Juriti, na área indígena delimitada
pela portaria ministerial. Recorda-se que o pai dela andava por ali em seu
harakwa até um iuropen, isto é, um braço do rio Caru. “Essa é minha
história”, disse Merakedja no término da sua entrevista realizada no Pin
Awá, área indígena Caru.
Nas histórias de famílias e grupos Awá projetadas por informantes
vivos, o testemunho de Tamaikamã do grupo contatado no Alto Turiaçu,
apresenta vários elementos que convalidam as declarações de Merakedja,
sem que um tivesse conhecimento sobre o relato do outro. Antes do con-

O papel social do antropólogo 91


tato, o harakwa de Tamaikamã ficava na cabeceira do Turi (rio Turiaçu)
e rios do Sangue e Turizinho. Sobre Merakedja disse que nos tiros se di-
vidiram e ela correu na direção do rio Caru. Tipomonhumtxia, outro ín-
dio dos primeiros contatos na região do Alto Turiaçu, disse que era fi lho
de um irmão de Merakedja. Reafirmaram que a separação foi por causa
do “branco que entrou”. Além das “roças” e das “picadas”, outro índio
Takedja disse ainda que o “branco entrou com motosserra e todo mundo
correu para o mato porque queriam nos matar”. O pai e o irmão dele o
“branco matou”.
Tamaikamã pergunta sempre aos fi lhos se pode visitar parentes que
ficaram do outro lado da reserva Alto Turiaçu. A separação, segundo ele
próprio e as explicações de Macahi e Yapó, ambos seus sobrinhos, deu-se
por conta dos brancos, porque “o karaï entrou fazendo picadas”. Nessa
época – kuri, kuri – “os fazendeiros matavam os índios e a picada es-
palhou os grupos – ohyri – e atravessou o harakwa”. A mãe de Macahi,
Amanparanohum, do segundo contato no cocal do Alto Turiaçu, depois
do grupo Tamaikamã, onde estava com o marido falecido em 1979 pelo
envenamento com farinha na cabeceira do rio do Sangue (vide item 4 do
parecer), lembrava-se que andava com seu pai das nascentes do Turiaçu
ao Caru, quando tinha a idade de uma menina, e apontou como exemplo
para uma jovem índia sentada próximo a ela durante a entrevista, com ida-
de aproximada de 12 anos, portanto, no fi nal dos anos 1950 e início dos
1960, ela fazia esse percurso quando criança. Tamaikamã disse também
que conhecera a Serra da Desordem, mas nunca mais foi lá, e citou o nome
de alguns igarapés, como itamikwaha, mas “faz tempo que não vou lá”.
Disse ainda que Merakedja nasceu “aqui, na ponta do Turi”, e os irmãos
dela foram mortos. Esta entrevista foi encerrada com eles dizendo que
atualmente o território de caça-coleta, o hakwa, é do Karaï, e um antigo
cocal que eles iam “acabou, não tem mais”.
Pelos relatos pode-se observar o encadeamento de várias “separações”
e “ataques” vividos como um só evento que faz a passagem do tempo da
“mata”, como disse Merakedja em seu relato, quando “não eram ainda
conhecidos por Karaï”, ao tempo posterior ao contato, da vida atual nos
aldeamentos dos postos indígenas. A dimensão trágica desses aconteci-
mentos vividos pode ser expressa na entrevista de Tamaikamã, um índio
já idoso que encabeça o patrigrupo do Pin Guajá, no Alto Turiaçu, sobre a
separação de Merakedja e da saudade – txiakuritã – que sente ainda hoje.
Esta situação singularizada no tempo e no espaço vivida por Mera-
kedja, Tamaikamã, e os grupos dos primeiros contatos no Pin Guajá, pode

92 Eliane Cantarino O’Dwyer


ser ainda comparada a outros relatos. Sobre separações mais recentes, te-
mos a do índio Kamará, atualmente vivendo no Pin Juriti, contatado em
1998 no igarapé Seco, entre o Mão de Onça e Aparitiua, obrigado pelas
circunstâncias a deixar para trás um irmão e uma fi lha casados entre si,
estando ela grávida, sem saber do paradeiro de ambos na outra extrema
a oeste da área Awá. Na visita ao posto indígena Juriti, tivemos também
uma informação sobre encontro, ao invés de separação, no cocal do iga-
rapé Juriti entre o índio Takea e Txiami, que negou-se a ceder-lhe a filha
em casamento (ver item 4). Takea foi contatado no igarapé Mutum, em
1989, e este fato calculado em mais de 20 anos atrás dificilmente pode se
repetir na situação presente, levando em conta o grau de intrusão da área
e a dificuldade de deslocamento de Txiami do seu harakwa, na cabeceira
do igarapé Presídio até o cocal do Juriti, com o confi namento progressivo
dos Awá excluídos do fluxo e da rede de comunicação que mantinham em
várias direções entre as reservas indígenas Caru, Alto Turiaçu e a atual Re-
serva Biológica do Gurupi. No Pin Awá, ouvimos o índio Yrakatacoa citar
um haka’a (meu mato) que costumava caçar, abandonado pelas ameaças e
riscos que importava frequentar essa área.
Outro caso dramático, que se soma à série de incidentes ocorridos na
região do Alto Turiaçu, ao norte da área indígena Awá, foi contado por
Geï Guajá no posto indígena Tiracambu. Ele foi encontrado na casa de um
posseiro às margens do rio Caru, próximo ao povoado de Conceição do
Caru, em 1972. Pelos cálculos tinha cerca de sete anos e estava na compa-
nhia de Tonha, outro índio de 15 anos, segundo relatórios da Funai, que
veio a falecer algum tempo depois no Pin Guajá, área indígena do Alto
Turiaçu. De acordo com seu relato, o pai chamava-se Yaputxia e tinha
caminhado com a família na direção do Turizinho, lembra-se que para
pesca da arraia. Lá ficaram impossibilitados de voltar para a cabeceira do
Turi (rio Turiaçu), o pai e a mãe com um recém-nascido, ficaram doentes
e vieram a falecer. O menino mais velho, Tonha, tinha sido encarregado
de providenciar a sobrevivência da família, cinco crianças na companhia
dos pais. Contudo, passaram-se dias e ele não voltava, até que ambos gri-
pados e sem forças amanheceram mortos. Geï, emocionado, lembra-se de
detalhes, pois vira ela morta na rede com o bebê ao lado e ele deitado
no chão. Um morrera antes, de noitinha, mas quando amanheceu todos
dois estavam mortos. Botaram palha por cima e “a gente deixou eles ali
e seguimos sem nada. Aí, nós saímos. Tonha já tinha sumido, nem viu
morrer”. As crianças ao abandonar o haipa foram em direção a casa de
um posseiro. De longe, disse que ficaram vendo o movimento, até serem

O papel social do antropólogo 93


avistados e chamados para o interior da casa. Lá estava Tonha, segundo
Geï, deitado na rede. Foram alimentados com uma tigela de arroz e disse
que decidiram, os meninos, na companhia de Tonha, deixar a irmã mais
nova, muito pequena, na casa do karai. Depois disso, Geï só lembra que
sozinho resolveu sair da mata e voltar para o povoado, de onde foi levado
para a casa do índio em São Luís e de lá para o Pin Guajá, no Alto Turiaçu,
junto ao grupo do qual fazia parte Yaputxia, seu pai, como confirmado
pelos relatos que ouvimos nesse posto indígena.
Os três casos apresentados – Merakedja, Tamaikamã e Geï Guajá – fo-
ram escolhidos pelo seu caráter representativo. A trajetória de cada nativo
por trás de sua especificidade permite expor concretamente as questões
que a perícia antropológica esforça-se por resolver, ao revelar os elementos
constitutivos da ocupação de um território tradicional pelos Awá. Os flu-
xos entrecruzados e os limites impostos encontram-se graficamente expres-
sos no mapa em anexo, realizado com ajuda do técnico em agrimensura,
assistente do outro perito, a partir das informações etnográficas obtidas
no trabalho de campo pericial.
A validação deste modelo graficamente representado está na possibili-
dade efetiva de reconstituir as cadeias causais que levaram a fragmentação,
dispersão e perda de antigos harakwa, como partes constitutivas do territó-
rio Awá de ocupação tradicional, tal como descrito e proposto na portaria
ministerial em questão. O fechamento da fronteira norte-sul que impede
antigas trocas e o fluxo em direção ao norte é consistente e consideravel-
mente antigo.
O internamento na floresta para as caçadas em noites de lua cheia é
precedido do ritual da Karuara, que acreditam favorecer espiritualmente
o grupo contra malefícios de toda ordem, como doença, acidente, falta de
sorte ou ficar “panema”. Sobre o ritual obtivemos as informações através
de perguntas e nas conversas que ouvimos, pois não conseguimos assisti-lo,
visitando o Pin Tiracambu um dia depois de terem-no ali realizado. Ainda
vimos a tacaia que construíram no terreiro da aldeia, uma casa de palha
toda fechada onde os homens entram para a “viagem ao céu” e voltam
incorporados aos espíritos dos antepassados mortos, como explicaram. Na
dança ritual entram em “contato com os parentes falecidos que acreditam
viver no céu” – o iwapi dos Awá. As mulheres fazem um círculo e ajudam
a invocar os espíritos que através dos homens realizam consultas com fins
de cura e propiciação de potências sobrenaturais. Fora do ritual, procedem
a cura dos enfermos através do sopro e sucção, especialidade de todos os
homens adultos Awá. Para a dança da Karuara enfeitam-se com penas de

94 Eliane Cantarino O’Dwyer


tucano coladas ao corpo e de urubu-rei nas pernas para propiciar a “via-
gem ao céu”. No Pin Tiracambu mostraram-nos uma cabaça onde guardam
a plumagem branca do ritual, outra com um estilete, onde fica a cola e mais
outra com penas coloridas de tucano. A plumagem branca, macia como
algodão, é da mesma cor que os Awá representam o paraíso no céu.

Genocídio doméstico?6
Diante de uma situação de ameaças e ataques os Awá residentes no posto
Juriti resistem às invasões e constrangimentos extralegais. No trabalho de
campo realizado em dezembro de 2005, segundo depoimento dos próprios
Awá do Pin Juriti e servidores da Funai, no harakwa do Água Preta, existe
uma invasão de 500 pessoas, representadas por José Otávio, gerente dos
interesses latifundiários dos Galetti, residentes no município de Impera-
triz, que tem delimitado e vendido lotes dentro da área indígena Awá.
Há muitos roçados nessa área, sendo que os confl itos agravaram-se após
a demarcação da área, em 2002, pela Funai, que aguarda uma decisão
judicial para desintrusão da reserva indígena. Além de ameaçarem índios
e servidores do órgão indigenista, divulgam em reuniões políticas de uma
cooperativa de distribuição de terra formada em São João do Caru, que o
objetivo deles é reduzir a área demarcada pela Funai ao igarapé do Água
Preta, distante apenas 7,5 km do posto indígena.
Sobre a ameaça atual de redução drástica desse território de caça e
coleta, pode-se considerar que o fechamento da fronteira norte-sul da área
Awá, que impede a reprodução dos fluxos territoriais e as interconexões
entre os diferentes segmentos desse grupo indígena ao longo de uma fron-
teira étnica e territorial, pode repercutir no fracasso de manter sua identi-
dade e na alternativa sempre aberta de assimilação. Tal fracasso em garan-
tir a adequada proteção para o povo Awá prover sua subsistência através
de seus tradicionais meios de caça e coleta, pode igualmente representar
uma transformação radical da cultura Awá e da relevância organizacional
que ela assume para um dos últimos povos coletores-caçadores das terras
baixas da América do Sul.

6 Na defi nição do genocídio doméstico têm sido considerados os atos cometidos com a inten-
ção de destruir, no todo ou em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, incluindo formas
de genocídio cultural. Dentre os tipos de genocídio doméstico, se encontra aquele praticado
contra povos indígenas. Esta é uma forma contemporânea dos massacres do período colonial,
atualmente perpetrada contra pequenos grupos de caçadores e coletores ameaçados de extin-
ção, vítimas de uma economia de desenvolvimento predatório (Kuper, 1982:216).

O papel social do antropólogo 95


Alternativa à extinção
Deste modo, a demarcação da área indígena Awá segundo os limites da
Portaria Ministerial nº 373, de 27/7/1992, e a garantia de uma fronteira
étnica e geográfica relativamente estável pode resultar em um movimento
desses grupos através da fronteira norte-sul que leve a reconstituição de
antigas trocas, inclusive matrimoniais entre aqueles que se encontram nos
quatro postos indígenas citados e deles com os ainda isolados nos contra-
fortes das serras da Desordem e Tiracambu.
Segundo recomendação do antropólogo Ballé (1994) sobre povos caça-
dores-coletores como os Awá: “este estilo de vida não poderia continuar
sem a continuação das áreas de cocais, como os babaçuais, isto é, sem a
proteção das mesmas. Tal política seria altamente coerente com os esfor-
ços contra a extinção de espécies vegetais também, pois várias espécies
que ocorrem nas capoeiras velhas são exclusivas a este tipo de floresta, e
são raras”. Além disso, o rematamento de algumas dessas áreas em que
ocorre intrusão na reserva indígena Awá pode assegurar a preservação de
várias espécies animais, como os macacos, utilizados como caça e animal
domesticado morando com as famílias em seus haipa (habitação). Assim,
“a preservação das reservas indígenas (igualmente) provêm um refúgio
para as espécies” (Cormier, 2003:38), tanto vegetais, como animais, e na
reprodução de um padrão de nomadismo que implica no próprio uso e
destinação sustentável dos recursos ambientais considerados necessários
ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições – como conceitua a Constituição Federal do Brasil
sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

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RIBEIRO, Darcy. Diários índios: os Urubus-Kaapor. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.

O papel social do antropólogo 97


Capítulo 6

Informe etnográfico sobre a área indígena Awá-Guajá


No âmbito do projeto “Políticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de
Direitos: estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e organi-
zações de governo”, desenvolvido mediante convênio Finep/Ministério da
Ciência e Tecnologia,7 realizamos visita breve à Área Indígena Awá em no-
vembro de 2007. Esta viagem a campo foi precedida por outras situações
anteriores de pesquisa etnográfica, como no caso da perícia antropológica
realizada entre os anos de 2000-2003 (Processo Judicial nº 95.353-8 da
5ª Vara da Justiça Federal do Maranhão), e posteriormente integrando
a equipe do projeto “Etnoarqueologia dos Awá-Guajá”,8 quando foram
efetuadas visitas breves e repetidas, seguindo a tradição norte-americana
da etnologia nas reservas (Clifford 1999: 79, 117), respectivamente, em
novembro de 2005 e novembro de 2006, ano no qual se encerrou nossa
participação no referido projeto e iniciamos nossas atividades de pesquisa
no projeto supracitado, com apoio do Fundo de Desenvolvimento Científi-
co e Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Nesta viagem de campo ao Posto Indígena Juriti (A.I. Awá), onde se
encontram os últimos grupos Awá, antes isolados nas matas, que foram
contatados em 1986 e 1992, respectivamente, no igarapé Juriti, e nas pro-
ximidades dos igarapés Mutum e Água Preta, o deslocamento foi feito
num veículo da Funai, do Serviço de Apoio de Santa Inês (Sasi). A partir

7 O referido projeto é desenvolvido no Laboratório de Pesquisa em Etnicidade, Cultura e


Desenvolvimento (Laced), vinculado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional/
UFRJ, sob a coordenação do Dr. Antonio Carlos Souza Lima e cocoordenado pela Dra.
Adriana de Resende Barreto Vianna e pela Dra. Eliane Cantarino O’Dwyer, do Departamen-
to de Antropologia e PPGA/UFF, com fi nanciamento do convênio Finep nº 01.06.0740.00 –
REF : 2173/06 – Processo FUJB n. 12.867-8, com recursos do FNDCT/Ministério de Ciência
e Tecnologia.
8 Projeto: “Etnoarqueologia dos Awá-Guajá” – Pesquisadora Responsável: Dra. Almudena
Hernando Gonzalo – Departamento de Pré-História da Universidade Complutense de Ma-
drid – Pesquisadora colaboradora: Dra. Eliane Cantarino O’Dwyer – Departamento de An-
tropologia / Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFF.

98 Eliane Cantarino O’Dwyer


do município de São João do Caru, trafegamos por estrada de rodagem,
que atravessa a A.I. Awá, ao longo do igarapé Água Preta na direção do
igarapé Araçatiwa, já na divisa com a Reserva Biológica do Gurupi, sendo
que algumas variantes dessa estrada, abertas pelos madeireiros, foram per-
corridas por uma operação da Polícia Federal em meados de 2006.
No percurso pela estrada, atravessamos o povoado do Caju, dentro da
A.I. Awá e a partir de uma variante, aberta neste ano de 2007, no rumo do
rio Caru, chegamos na localidade de Nova Olinda, considerada fora dos
limites da reserva, mas situada bem nas proximidades do posto indígena,
onde vivem algumas famílias de pequenos agricultores. Lá foi deixado o
veículo e numa canoa a motor subimos o curso do rio Caru, durante apro-
ximadamente uma hora, até chegar ao Posto Indígena Juriti. A abertura
dessa variante, que leva à localidade de Nova Olinda, fora festejada pelos
moradores, que solicitaram a realização desta obra, a um senhor conhe-
cido como Bidu, considerado provável candidato a prefeitura de São João
do Caru. O maquinário usado na abertura, conservação e melhoria das
condições de rodagem na estrada que atravessa a área indígena, e pela qual
observamos a passagem de caminhões carregados de madeira, é considera-
do de propriedade do Sr. Bidu, tendo sido adquirido, segundo informações
da população regional, por um fi nanciamento do Banco do Nordeste no
valor de 350 mil reais. Tal fi nanciamento visava atividades agropecuárias
na fazenda dele, que dizem estar situada dentro da A.I. Awá.
No diário de campo encontram-se as seguintes anotações relativas a
esse percurso de carro de São João do Caru até as imediações do PIN
Juriti:
 Km 22: bifurcação da estrada que leva à reserva indígena. No rumo à
esquerda aos povoados do Caju, situado dentro da área indígena, Nova
Olinda e Nova União e a direita aos povoados de Maronata, Cabeça
Fria e Vitória da Conquista, todos situados no interior da reserva, ao
norte da A.I. Awá.
 Km 27: um caminhão sem placa carregado de ipê, atravessado na pista
obstruía a passagem de veículos. Na troca de um pneu havia quatro
homens, além do motorista. Segundo informações, o dono do cami-
nhão chamava-se William, vereador em São João do Caru e dono de
movelaria na sede desse município.
 Km 28: avistamos a sede da fazenda do Diquinho, como identifica-
da pelos informantes, considerada por eles dentro dos limites da A.I.
Awá.
 Kms 29/30: grande desmatamento numa área de floresta recém-quei-
mada e reduzida a cinzas, situação que se repete sistematicamente ao

O papel social do antropólogo 99


longo da estrada. A extração de madeira, com a derrubada e a queima
da cobertura vegetal, cria áreas de clareiras onde são plantados ro-
çados de mandioca e arroz por pequenos agricultores regionais, que
ajudam no trabalho de derrubada da madeira a ser comercializada e na
maioria das vezes substitui, após a colheita, as lavouras pelo plantio de
capim que dão lugar a fazendas agropecuárias. Essa prática tem exce-
ções, como no caso dos agricultores familiares que possuem lotes fora
da área de reserva indígena, sendo inclusive observada no percurso
da viagem uma área preservada, que dizem pertencer a um líder co-
munitário chamado Talioca, o qual não permite desmatamento nessa
pequena reserva florestal para fi ns extrativistas.
 Km 32: atravessamos o Povoado do Caju, dentro dos limites da área
indígena, onde a prefeitura de São João do Caru construiu recentemen-
te uma escola.
No nosso retorno a São João do Caru, a 6 km da localidade de Nova
Olinda, passamos por um caminhão em sentido contrário, que estava car-
regado com tábuas de madeira de lei, maçaranduba, já beneficiadas pelo
uso da serra elétrica. O veículo tinha a placa DEV 2765 – SP.
Deste modo, o avanço da frente de expansão madeireira e agropecuá-
ria sobre a reserva indígena Awá, com a diminuição drástica da área de
118 mil ha demarcada pela Funai, reduz na prática o território utilizado
pelos Awá para atividades de caça e coleta, independentemente da ação
judicial em curso na 5ª Vara da Justiça Federal do Maranhão, conclusa
para sentença. Segundo informações dos servidores do posto indígena e
da população regional, em 2004, o então prefeito de São João do Caru,
Dr. James Ribeiro, disse em programa de rádio local que a A.I. Awá ia ser
alterada para o limite do Água Preta e que a população poderia morar e
fazer suas roças dentro da reserva. Assim, políticos locais, conforme disse-
ram os informantes, incentivam colonos do povoado de Santarém e outras
localidades de São João do Caru, e dos municípios de Zé Doca e Bom
Jardim, “a invadir a reserva indígena”. Nem as contestações judiciais e ma-
nifestações anteriores a favor e contrárias aos acréscimos e diminuições da
A.I. Awá, até a Portaria Ministerial nº 373, de 27/7/1992, alcançaram tal
efeito restritivo à reprodução do modo de vida e as práticas culturais dos
Awá, considerado um dos últimos povos caçadores e coletores das terras
baixas da América do Sul.
O harakwa – território de caça e coleta – do Água Preta, com suas
margens invadidas pelos karaí, como chamam os homens brancos em tupi,
não pode mais ser utilizado pelos Awá do Pin Juriti, só sendo possível “pe-

100 Eliane Cantarino O’Dwyer


rambular” atualmente na direção do igarapé Mutum, ao sul da A.I. Awá
no limite com a A.I. Caru, onde vivem os Guajajara e estão situados dois
postos indígenas da frente de atração dos Awá-Guajá, os Pin Awá e Tira-
cambu. O chefe do posto indígena Juriti acredita que é nessa direção que
devem se encontrar ainda alguns poucos grupos Awá, isolados na mata,
que foram casualmente vistos há cerca de dois anos por Wyroho, que se-
gundo seu relato confundiram-no com um karaí pelo calção que trajava e
só o largaram quando se comunicou com eles na mesma língua e saíram
juntos em direção a um acampamento onde ouvira vozes e conseguiu fu-
gir em disparada pela mata de volta ao posto indígena. De acordo com
suas palavras, esses Awá da mata falavam com um sotaque muito rápido e
ao segurarem-no com força pelo braço, disseram para segui-los porque o
acharam muito triste. A expressão desse sentimento atribuído a observa-
ção sobre ele feita por outro Awá, ainda “índio brabo”, conforme a clas-
sificação dos servidores do posto indígena assumida por ele próprio, pode
representar a autoatribuição de um sentimento de perda e dor na nova vida
a que foram obrigados a se habituar nas condições de confi namento nos
postos indígenas.
Os Awá do Pin Juriti foram em parte transformados em agricultores,
pelo disciplinamento de uma prática segundo as diretrizes do posto indí-
gena, que contrata alguns lavradores entre os regionais para desenvolver
o cultivo e conta com a participação praticamente integral dos homens jo-
vens adultos Awá, que são assim subtraídos das atividades de caça e coleta,
realizadas nesse mesmo período do verão quando se derruba as capoeiras
e/ou a mata para o plantio do roçado. Só os mais velhos, as mulheres, as
crianças e alguns que não puderam ser disciplinados mantêm-se afastados
das atividades agrícolas, confi nados, contudo, a pequenas caçadas perto
do posto, e sem contar com os jovens adultos, imprescindíveis para os des-
locamentos maiores em direção aos harakwas – território de caça e coleta
– dos igarapés Mutum e Água Preta, esse último recentemente invadido,
usados tradicionalmente pelo grupo inclusive para as atividades de coleta
de palmeira para cobertura dos haipa (habitação), de coco babaçu, usado
como comestível e folhas de tucum, sendo esta última atividade exclusiva-
mente feminina visando a confecção do vestuário e de redes.

Situação de perda
Nas condições anteriores de trabalho de campo, realizado em novembro
de 2006, um trágico episódio, recém-ocorrido naquela ocasião, se impôs
como tema de nossas conversas por iniciativa dos próprios índios. A morte

O papel social do antropólogo 101


de To’o, residente no PIN Juriti, representou um drama social que reproduz
as situações de perda e separações forçadas que se somam à série anterior
de incidentes ocorridos com este povo indígena (O’Dwyer, 2001:100-101).
A liminaridade dessa experiência pessoal e coletiva encontra-se incorpora-
da nos eventos trágicos que fazem parte da história de cada grupo Awá e
da trajetória de todo índio identificado pela situação de contato. A forma
essencialmente dramática dos relatos, ouvidos no trabalho de campo pe-
ricial sobre separações e mortes no passado de suas vidas, representa pelo
que pudemos verificar sequências de eventos que acarretam mudanças ao
longo do tempo nas formas de organização do espaço antes ocupado e suas
interações baseadas em laços de consanguinidade e alianças pelo casamen-
to. Assim, a dimensão trágica desses acontecimentos é revivida e atuali-
zada por este caso dramático da morte de To’o, o qual integrando uma
equipe da Funai se preparava para contatar grupos Awá isolados vivendo
na proximidade da Área Indígena Arariboia, Maranhão.
Os Awá do Pin Juriti manifestaram-se com pesar sobre a trágica perda
aos pesquisadores em visita ao posto indígena com palavras e gestos de
desalento. Tal fato pode ser, em princípio, objeto de estranhamento na me-
dida em que é praticamente “normativo” para os Awá “esquecer o nome
dos mortos” (Cormier, 2005:6), “não sendo eles capazes de relembrar no-
mes da segunda geração ascendente” (Cormier, 2003:75). O processo de
“amnésia genealógica” fora por eles expresso nas condições de trabalho de
campo ao manifestarem dor e desgosto, ao mesmo tempo em que diziam
para esposa de To’o e fi lhos, que deveriam superar a perda, esquecer aos
poucos o passamento e voltar a casar, caçar e criar seus fi lhos.
No Pin Juriti realizaram o ritual da Karuara na segunda noite que
passamos no posto indígena, em 24/11/2007. Os cânticos e a dança se ini-
ciaram por volta das 21h30min e às 3h ainda ouvíamos o canto agudo de
mulheres e jovens. No cair da tarde haviam nos pedido para mostrar o ví-
deo da viagem a campo no período da perícia antropológica, no qual To’o
aparece algumas vezes durante as entrevistas. Na dança ritual entram em
contato com os parentes falecidos que acreditam viver no céu – o iwapi dos
Awá. Para o ritual constroem uma tacaia no terreiro da aldeia, uma casa
de palha toda fechada onde os homens entram para a “viagem ao céu” e
voltam incorporados aos espíritos dos antepassados mortos. As mulheres
fazem um círculo e ajudam a invocar os espíritos que através dos homens
realizam consultas com fi ns de cura e propiciação de potências sobrena-
turais e procedem a cura mediante sopro e sucção, especialidade de todos
os homens adultos Awá. Para a dança da Karuara enfeitam-se com penas

102 Eliane Cantarino O’Dwyer


de tucano coladas ao corpo e de urubu-rei nas pernas para propiciar a
“viagem ao céu”. Ainda por ocasião do ritual da Karuara, costumam fazer
uso da planta medicinal ka’akaçu’u, classificada como analgésico e anti-
térmico, que além dos borrifamentos medicinais, serve igualmente como
“repelente de fantasma aiyã (...) que podem funcionar, em certo sentido,
para afastar memórias e lidar com a dor da perda” (Cormier, 2005:1).
Deste modo, o contexto etnográfico de realização da Karuara pode ter
funcionado como um “mecanismo de obliteração da memória (...) e do so-
frimento, considerado um estado de espírito tão devastador que é preciso
tomar medida para evitar esse mal (idem).
O ritual da Karuara costuma igualmente preceder as caçadas em noi-
tes de lua cheia, pois acreditam favorecer espiritualmente o grupo contra
malefícios de toda ordem, como doença, acidente, falta de sorte ou ficar
“panema”. Naquela noite no PIN, Juriti, a lua cheia em tom avermelhado e
a dança ritual pareciam anunciar a véspera de uma caçada de anta, veado,
porcão e macaco na floresta. Contudo, no dia seguinte, foram os meninos,
acompanhados das mulheres, que trouxeram três cotias para a aldeia e
pescaram no arpão um surubim grande e outros peixes. Os homens jo-
vens adultos estavam no roçado e nisso verificamos que também se paga
um preço, expresso pela indignação de três jovens mães quando pergun-
tadas sobre as vestimentas tradicionais, a saia de tucum e a tipoia na qual
costumam carregar os seus bebês, confeccionada com o mesmo material,
atualmente feitas de pano, ao mencionar a queima das palmeiras situadas
próximo à aldeia, em virtude da derrubada de áreas para roçado de subsis-
tência das famílias Awá. Sobre as roupas feitas de tucum, disseram-nos que
“ninguém tem mais, é muito longe de buscar” e só elas mulheres podem
coletar. Na atividade tradicional de caça e coleta na floresta elas costumam
acompanhar seus maridos juntamente com os fi lhos e nessas ocasiões se
dedicam a coleta das palhas de tucum usadas para a confecção tradicional
de roupas e redes. Atualmente, desde 2002, só a velha Ameritxia é vista
com saia de tucum, segundo a vestimenta tradicional.

Genocídio doméstico e alternativas à extinção


O mapa da invasão madeireira elaborado pela equipe do projeto “Etnoar-
queologia dos Awá”, que fazia trabalho de campo no Pin Juriti em agosto-
setembro de 2006 e acompanhou a operação da Polícia Federal foi im-
presso por nós e mostrado na situação de trabalho de campo aos Awá. As
imagens da invasão impressionaram a todos e foram objeto de comentários
gravados como um libelo para reivindicar a desintrusão do território de

O papel social do antropólogo 103


ocupação tradicional Awá. Com roupas de camponês, calça, botas, camisa,
chapéu e facão na cintura, oferecidos pelo posto indígena, Pirahimahá, na
beira do roçado de onde saíra para tomar água, sujo de fuligem, disse-nos
que na véspera ouvira o barulho de motosserra na direção do Água Preta
e três paus (árvores) caindo. E se dirigindo a mim: “cheio de caboclo aí
na mata, Dra. Eliane. Quero matar um de flecha, de flecha matar, esperar
muito a Polícia Federal”. Os servidores do posto aconselharam-no a aguar-
dar a ação das autoridades competentes e explicaram-me que a operação
de fiscalização nessa época do ano não evita a broca e derrubada da mata,
que se inicia em junho, mas pode impedir o plantio e obrigar a retirada dos
invasores que se encontram a 7,5 km da aldeia. Nesse contexto Pirahimahá
igualmente se queixou ao chefe de posto, na minha presença, de fortes do-
res nas pernas e nas costas, pelas quais soube que ele precisou ser atendido
por um médico em Santa Inês. Disse ele ainda que Wyroho não conseguira
trabalhar no roçado, por queixar-se igualmente de dores, prestando assim
conta dessa ausência ao chefe de posto, curiosamente num domingo, dia
de folga semanal, que essa nova mão de obra indígena sujeita aos trabalhos
agrícolas não consegue reconhecer ainda. Os índios queixam-se muito do
enfermeiro do posto porque solicitam remédio para dor e não são atendi-
dos, sendo-lhes dito que procurem os remédios do mato os quais sempre
fi zeram uso. Contudo, recorrer ao remédio dos brancos como uma cura
dos males causados por uma atividade física por eles desconhecida até a
situação de contato, pode ser relacionada às disposições corporais próprias
para as atividades de caça, esgueirando-se na mata, e na coleta de produ-
tos vegetais. Assim, não suportam sem sofrimento físico o disciplinamento
forçado a outras práticas corporais relacionadas ao trabalho de derrubada
e queima da mata para o plantio de roçados, o que exige igualmente um
novo disciplinamento dos corpos.
Sobre a ameaça atual de redução drástica do território dessa reserva
indígena, pode-se considerar que o fechamento da fronteira norte-sul da
área Awá, que impede a reprodução dos fluxos territoriais e as interco-
nexões entre os diferentes segmentos desse grupo indígena ao longo de
uma fronteira étnica e territorial, pode repercutir no fracasso de man-
ter sua identidade e na alternativa sempre aberta de assimilação, ao norte
pelos urubu-kaapor e ao sul pelos guajajara. Tal fracasso em garantir a
adequada proteção para o povo Awá prover sua subsistência através de
seus tradicionais meios de caça e coleta, pode igualmente representar uma
transformação radical da cultura Awá e da relevância organizacional que

104 Eliane Cantarino O’Dwyer


ela assume para um dos últimos povos coletores caçadores das terras bai-
xas da América do Sul.
Deste modo, a demarcação da área indígena Awá segundo os limites
da Portaria Ministerial nº 373, de 27/7/1992, e a garantia de uma fronteira
étnica e geográfica relativamente estável com a retirada dos invasores e a
vigilância constante da área pode resultar em um movimento desses grupos
através da fronteira norte-sul que leve a reconstituição de antigas trocas,
inclusive matrimoniais entre aqueles que se encontram nos quatro postos
indígenas Juriti, Awá, Tiracambu e Guajá e deles com os ainda possivel-
mente isolados nos contrafortes das serras da Desordem e Tiracambu.
Segundo recomendação do antropólogo Ballé (1994) sobre povos caça-
dores e coletores como os Awá: “este estilo de vida não poderia continuar
sem a continuação das áreas de cocais, como os babaçuais, isto é, sem a
proteção das mesmas. Tal política seria altamente coerente com os esfor-
ços contra a extinção de espécies vegetais também, pois várias espécies
que ocorrem nas capoeiras velhas são exclusivas a este tipo de floresta, e
são raras”. Além disso, o rematamento de algumas dessas áreas em que
ocorre intrusão na reserva indígena Awá pode assegurar a preservação de
várias espécies animais, como os macacos, utilizados como caça e animal
domesticado morando com as famílias em seus haipa (habitação). Assim,
“a preservação das reservas indígenas (igualmente) provêm um refúgio
para as espécies” (Cormier, 2003:38), tanto vegetais, como animais, e na
reprodução de um padrão de nomadismo que implica no próprio uso e
destinação sustentável dos recursos ambientais considerados necessários
ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições – como conceitua a Constituição Federal do Brasil
sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Deste modo, os “sujeitos biologizados” e discriminados por práticas
sociais e culturais distintas, como os Awá-Guajá, são considerados “obs-
táculos ao desenvolvimento”, e assim, submetidos às ações de integração
forçada tendo em vista a destruição dos recursos ambientais por eles uti-
lizados.
Na defi nição do genocídio doméstico têm sido considerados os atos co-
metidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupos étnicos,
raciais ou religiosos, incluindo formas de genocídio cultural. Dentre os
tipos de genocídio doméstico, se encontra aquele praticado contra povos
indígenas. Esta é uma forma contemporânea dos massacres do período
colonial, atualmente perpetrada contra pequenos grupos de caçadores e
coletores ameaçados de extinção, vítimas de uma economia de desenvol-

O papel social do antropólogo 105


vimento predatório (Kuper, 1982:216), como no caso do povo indígena
Awá-Guajá que habita a antiga área da reserva florestal do Gurupi, na
pré-amazônia maranhense.
Por fi m, o acompanhamento etnográfico dessas situações sociais, como
no âmbito desse Informe, encaminhado ao procurador da República no
Estado do Maranhão, não deve ser visto como uma “antropologia do sal-
vamento”, mediante a coleta de costumes exóticos antes que os grupos
tribais como os Awá, considerados os últimos povos coletores caçadores
da América do Sul, desapareçam completamente. Ao contrário, tais povos
representam testemunhos vivos de resistência a processos que podem ser
caracterizados como contrários as suas práticas culturais, assim como aos
usos e representações dos seus territórios de ocupação tradicional.

Referências bibliográficas
BALLÉ, William L. Footprints of the Forest. New York:Columbia University Press, 1994.
CLIFFORD, James. Prácticas espaciales: el trabajo de campo, el viaje y la disciplina de la
antropología. In: Itinerarios Transculturales. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., 1999.
CORNIER, Loretta A. Kinship with monkeys. The Guajá foragers of eastern Amazônia.
New York: Columbia University Press, 2003.
—. Um aroma no ar: a ecologia histórica das plantas anti-fantasma entre os Guajá da Ama-
zônia. Mana, Rio de Janeiro, v.11, n.1, abr. 2005.
KUPER, Leo. International Protection Against Genocide in Plural Societies. In: MAYBURY-
LEWIS, David (Org.). Procedings of the American Ethnological Society. Washington
DC., 1984. p. 207-219.
O’DWYER, Eliane Cantarino. Laudo antropológico. Processo judicial nº 95.353-8. 5ª Vara
da Justiça Federal do Maranhão, 2001.

106 Eliane Cantarino O’Dwyer


Capítulo 7

Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício


profissional da disciplina?
Os laudos antropológicos são considerados formas de intervenção fora da
esfera acadêmica e frequentemente associados à produção de um “conhe-
cimento menor”. Concebidos como um “exercício de antropologia aplica-
da, marginal em relação ao trabalho propriamente científico” (L’Estoile,
Neiburg e Sigaud, 2000:237),9 este tipo de “expertise judiciária” (idem)
tem assumido uma importância cada vez maior na prática profissional da
disciplina no Brasil. Diante da mobilização crescente da sociedade civil e
da formação de movimentos representativos dos direitos dos povos indí-
genas, dos “remanescentes de quilombos” e de outros grupos sociais, a
demanda por especialista em antropologia tem emergido em instituições
defi nidas como de defesa dos direitos dos cidadãos e das minorias, como
o Ministério Público Federal e órgãos da Administração encarregados da
política do Estado na identificação e gestão de populações reconhecidas
pelos direitos constitucionais. Há um pressuposto comum, neste caso, so-
bre o papel do antropólogo e da antropologia enquanto “disciplina consa-
grada à exploração das diferenças entre populações” (idem). Porém, bem
menos consensual e fluida tem sido no Brasil a definição sobre a formação
do profissional em antropologia. Muitas vezes, apenas o diploma a nível de
graduação tem servido para habilitar candidatos aos concursos públicos
para analistas periciais nessa matéria, tanto no Ministério Público, quan-
to na ocupação de outros cargos que exigem formação antropológica em
órgãos governamentais. A importância do papel assumido por tais funcio-
nários no aparelho do Estado, seja no acompanhamento de procedimentos
administrativos, seja em ações judiciais, não tem sido questionada. Porém,

9 Longe de concordar com tal afi rmativa, que serve aos propósitos de nossa argumentação,
os autores do texto citado tem por objetivo justamente “analisar alguns aspectos das relações
entre a construção da antropologia como forma de conhecimento de certas populações e a
elaboração e colocação em prática pelos Estados de políticas visando administrar essas popu-
lações” (L’Estoile, Neiburg e Sigaud, 2000:233).

O papel social do antropólogo 107


no caso da elaboração dos laudos antropológicos tem-se destacado a ne-
cessidade de contar com profissionais considerados de formação plena na
disciplina. Deste modo, o convênio recentemente assinado entre o Minis-
tério Público Federal e a Associação Brasileira de Antropologia prevê que
os laudos antropológicos sejam realizados por profissionais que tenham
obtido grau de mestre e/ou doutor em instituições reconhecidas de ensino
e pesquisa na disciplina. Observa-se cada vez mais, através da participação
desses profissionais em antropologia, que a fronteira entre atividades de
pesquisa realizadas dentro e fora da academia deixa de se constituir em
uma linha demarcatória rígida, prevalecendo um ziguezaguear constante
entre inserção no mundo acadêmico e os chamados saberes aplicados que
envolvem o campo político de aplicação dos direitos constitucionais e do
exercício da cidadania.
Ainda assim, o rótulo “antropologia da ação” usado pela comunidade
antropológica e frequentemente aplicado no Brasil à produção de laudos
tem sido, por vezes, confundido com um tipo de “trabalho social” e, na
medida em que se afasta da ciência pura, é visto igualmente como simples
aplicação de conhecimento a um “problema social prático” (Tax, 1975).
Tax admite que o termo “antropologia da ação”, primeiramente usado
por ele em 1951, tinha o objetivo de qualificar as pesquisas realizadas por
antropólogos que trabalhavam juntos na Universidade de Chicago, mas
terminou por assumir em certos círculos uma conotação negativa, como
acima indicada. Assim, o artigo de 1975 pretendia duplamente esclarecer
o significado implícito dessa autoatribuição e demonstrar como os antro-
pólogos mencionados vinham naquele contexto “praticando a ação antro-
pológica”. A expressão, segundo ele, fora usada para indicar o trabalho do
antropólogo em situações de contato entre povos e “comunidades de pes-
soas” culturalmente diferentes, principalmente, quando tais situações en-
volviam relações de poder que impunham uma direção única à mudança,
como no caso dos povos indígenas na América do Norte. Era nesse contex-
to restrito, denominado de “situação de aculturação”, que se manifestava
o interesse em desenvolver a teoria antropológica. O autor ainda argumen-
tava que, confrontados com tal situação os pesquisadores mantinham-se
na “tradição antropológica” ao estudá-la “em primeira mão”. Sabemos
que o trabalho de campo constitui uma prática clássica de investigação
antropológica. Deste modo, ao defi nir a si próprio e aos seus pares da Uni-
versidade de Chicago como “pesquisadores de campo”, Sol Tax utilizava
critérios de pertencimento e afiliação próprios ao fazer antropológico.

108 Eliane Cantarino O’Dwyer


No Brasil, o termo “antropologia da ação”, proposto por Sol Tax,
foi primeiramente usado no âmbito dos estudos sobre “contato interétni-
co”, principalmente em situações consideradas de “fricção” entre popula-
ções indígenas e o chamado “mundo dos brancos” (Cardoso de Oliveira,
1978:197-222). A pesquisa antropológica, naquele contexto, deveria igual-
mente “apreender” e “compreender” as “aspirações” da população indí-
gena levando em conta o “sistema interétnico, no qual índios e regionais
desfrutam de um convívio extremamente desfavorável para os primeiros”
(idem:213). Dentre estas possíveis “aspirações” destaca-se principalmente
o reconhecimento do “território indígena” “como localidade sobre a qual
se assenta a identidade tribal” (idem:216). No contexto daquele debate crí-
tico com o campo de ação indigenista, pensava-se a possibilidade de uma
antropologia da ação através da “criação de novos conhecimentos como
condição do trabalho prático” (idem: 220). A pesquisa de campo antropo-
lógica era considerada imprescindível na medida em que só “à luz de novos
conhecimentos empíricos continuamente renovados (seria possível) relacio-
nar produtivamente a teoria com os fatos, eludindo qualquer possibilidade
de aplicar no campo modelos aprioristicamente elaborados em gabinete
(...) de planejadores (...) situados no mundo dos brancos” (idem:220-221).
Deve-se reconhecer que dos anos 1970, nos quais os textos acima ci-
tados foram redigidos, ao contexto atual ocorreram mudanças considera-
das significativas na prática profissional da Antropologia, tanto no plano
conceitual, quanto em relação ao papel desempenhado pelo antropólogo
no campo político. Os conceitos de grupo étnico e etnicidade se tornaram
novos instrumentos analíticos que usados em substituição as abordagens
anteriores sobre “situação de aculturação”, no exemplo norte-americano,
igualmente serviram para alavancar os estudos sobre “contato interétnico”
no Brasil. Durante o período dos governos autoritários, principalmente nos
anos 1970, as questões políticas envolvendo sociedades indígenas e outros
grupos estudados pelos antropólogos assumiram o estatuto de um debate
entre “especialistas”, contrapondo-se às visões desenvolvimentistas de téc-
nicos ligados ao aparelho de Estado, outro tipo de saber produzido pela
academia, em que os pesquisadores, em nome de uma competência especí-
fica, passavam a se manifestar a favor da questão indígena e camponesa no
cenário político que restringia o exercício da cidadania. A partir dos anos
1980, no Brasil, a crescente organização dos povos indígenas e a retomada
em novas bases do movimento social no campo, ambos contando com a
participação ativa de antropólogos, levaram a uma autonomização maior
desses grupos como atores no campo político. Nesse contexto, podia-se

O papel social do antropólogo 109


observar certa divisão do trabalho intelectual entre produção acadêmica e
o papel desempenhado pelos antropólogos em assessorias aos movimentos
sociais e suas entidades representativas, assim como em organizações não
governamentais, inclusive com participação ativa em consultorias e pro-
gramas de governo. A atuação dos antropólogos sempre se dava em nome
dos interesses e demandas específicas dos grupos em que realizavam suas
pesquisas, o que constituía igualmente uma forma de legitimar este tipo
de inserção na política. O tom aqui não deve ser compreendido como de
crítica, assim como não temos intenção de realizar uma análise do cam-
po de atuação do profissional em antropologia. Trata-se apenas do ponto
de vista que construímos como mais uma praticante da disciplina. Dessa
perspectiva, não podemos deixar ainda de constatar que os anos 1990 fo-
ram marcados por lutas e polêmicas dentro e fora da academia, nas quais
se pretendia eliminar os concorrentes através de acusações de academicis-
mo e utilização sem retorno de suas pesquisas, ou então de colaboração
com órgãos e programas governamentais em detrimento dos “nativos”. As
acusações eram frequentemente feitas em nome de um monópolio da rela-
ção com povos indígenas, “remanescentes de quilombos” e grupos sociais
que pudessem trazer não só dividendos simbólicos, mas também o acesso
a recursos que, aplicados ao “trabalho social” e de mobilização política,
ainda viessem a sustentar posições hegemônicas nas articulações fora e
dentro da academia, ou até permitir as condições de realização das pró-
prias pesquisas e carreiras academicamente reconhecidas.
Todavia, este tipo de embaralhamento das fronteiras entre prática an-
tropológica dentro e fora da academia deixa intacta a questão do estatu-
to da pesquisa e produção do conhecimento antropológico. Neste artigo,
nosso objetivo é delimitar tal questão às demandas jurídicas e administra-
tivas para elaboração de laudos antropológicos, principalmente depois da
Constituição Federal de 1988, em que o Estado deve garantir direitos terri-
toriais e culturais aos povos indígenas, aos “remanescentes de quilombos”
e aos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (artigo 216).
De acordo com os comentários de um jurista sobre este artigo, “a noção de
patrimônio cultural aí presente tem em vista o sentido etnográfico de cul-
tura”, desdobrando-se em cinco incisos, dos quais citaremos apenas dois a
título de ilustração, “as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer
e viver” (Bulos, 2001:1.244-1.245).
Nesta interseção entre a Antropologia, o Direito e demandas adminis-
trativas, a ausência de fronteiras profissionais claramente demarcáveis com
o implemento de ações vinculadas muito mais ao campo indigenista do

110 Eliane Cantarino O’Dwyer


que propriamente ao exercício da antropologia, principalmente em órgãos
públicos como a Funai, parece recolocar a divisão clássica entre “antropó-
logos ‘práticos’ (vinculados ao Colonial Office) e ‘teóricos’ (vinculados às
universidades)” (Oliveira, 1998:271).10 A “reedição” no contexto brasileiro
desta “distinção”, segundo o autor, “não teria cabimento” e a proposição
do seu artigo é “problematizar o encontro entre a Antropologia e o Direi-
to”, considerando que “a preparação de laudos periciais toca em assuntos
e exige cuidados que apenas um antropólogo com formação plena e inte-
gral será capaz de lidar com a necessária competência” (idem). De nossa
parte gostaríamos de acrescentar que diante do espectro da “antropologia
aplicada”, a alternativa para alguns pode ser a de refugiar-se no mundo
acadêmico. Hoje considerada difícil para um “antropólogo de campo”,
cuja tarefa é “andar por lugares e povos”, como diz Geertz (2001:10), em
interatividade com associações, sindicatos, grupos mobilizados pela apli-
cação dos direitos constitucionais, com demandas específicas, principal-
mente após a Carta Constitucional de 1988.
Assim, pode-se constatar que não obstante as mudanças de contexto
que acompanham a prática profissional da disciplina no Brasil, o termo
“antropologia da ação”, proposto por Sol Tax e retomado por Cardoso de
Oliveira, tem sido ainda hoje usado em contraposição à chamada “antropo-
logia aplicada”, considerada “praticista, esquemática, menos comprometi-
da com a população na qual se aplica, do que com os setores da sociedade
inclusiva, governamentais ou particulares, religiosos ou seculares, finan-
ciadores de seu trabalho” (Cardoso de Oliveira, 1978:212-213). Ao contrá-
rio, a “possibilidade de uma antropologia da ação” passa a ser circunscrita
às questões relacionadas com a responsabilidade social do antropólogo
junto aos povos e grupos em que pesquisa. Para tanto, o antropólogo deve

10 Para uma abordagem crítica deste tipo de “indigenismo de Estado” e a caracterização dos
“relatórios de identificação” para reconhecimento de terras indígenas no âmbito da Funai,
ver Lima, 1998, p. 221-268.
Sobre os pareceres emitidos pelos Grupos de Trabalho designados pela Funai para elaboração
dos “relatórios de identificação”, o indigenismo é ainda caracterizado “como um conjunto
de saberes práticos e um discurso com efeitos ideológicos, (que) acaba por nivelar e homo-
geneizar o comportamento do antropólogo (‘e de outros técnicos’) com o do indigenista. Há
antropólogos dentro da instituição que se transformaram em indigenistas pela força do tipo
de intervenção econômica e política do órgão; assim como há indigenistas que funcionam
como antropólogos, diluídos que estão em práticas de irrecusável similitude. Práticas simi-
lares em que os critérios objetivos (‘os dados precedentes de observação direta são poucos,
assistemáticos, sendo minimizada a significação do observado’) cedem sempre lugar à visão
dos impressionismos da experiência e ao formalismo das decisões burocráticas” (Oliveira e
Almeida, 1998:87).

O papel social do antropólogo 111


“manter-se basicamente como um schollar, isto é, portador de uma sólida
formação teórica, (pois assim) sempre poderá evitar cair em simplismos
e em receituários de modo algum raros em práticas assistenciais” (idem).
Deste modo, “sem perder sua base acadêmica”, o antropólogo mantém-se
como “um profissional controlado pela comunidade científica” (idem).
De nada adianta, contudo, seguir afi rmando a diferença entre “antro-
pologia aplicada”, comprometida com interesses externos a prática antro-
pológica, e uma “antropologia da ação” eticamente comprometida com os
povos e grupos estudados pelo antropólogo, sendo ele próprio avaliado e
reconhecido pelos seus pares como portador de uma sólida formação na
disciplina.11 É preciso que os pesquisadores implicados nessas situações,
principalmente com a elaboração dos laudos, refl itam sobre as condições e
possibilidades nessas circunstâncias do fazer antropológico.12
Pretendemos desenvolver essa reflexão a partir de nossa própria expe-
riência etnográfica, em três situações que podem representar um embara-
lhamento da fronteira que define uma pesquisa acadêmica e duas outras
investigações conduzidas no âmbito, respectivamente, de um inquérito civil
e uma ação judicial, ambas destinadas a elaboração de laudos antropológi-
cos. Essa mistura de gêneros (pesquisa e laudo), que pode surpreender o lei-
tor ao abalar a linha de demarcação entre o conhecimento antropológico e
outras formas de saberes aplicados, tem como denominador comum a prá-
tica do trabalho de campo, considerado ainda hoje na Antropologia uma
“característica central da autodefinição disciplinar” (Clifford, 1999:72).

11 Em contraposição à “antropologia aplicada”, consensualmente considerada um “pecado


original da disciplina”, tem sido igualmente usado o termo “antropologia implicada”, que
parece ser uma variante moderna da “antropologia da ação” (Lima, 1998:262-263).
12 Devem ser registradas duas iniciativas anteriores, distintas entre si, mas que levantam
questões e desenvolvem argumentos importantes sobre a elaboração de laudos antropoló-
gicos. A pergunta que não quer se calar – “Há Antropologia nos Laudos Antropológicos?”
– fora objeto de uma intervenção no seminário “A perícia antropológica em processos ju-
diciais”, organizado pela ABA e a Comissão Pró-Índio de São Paulo, em 1994. Entre as
questões levantadas por esta participante sobre o papel do antropólogo na realização dos
laudos, seja como pesquisador de campo, seja como profi ssional com competência específica,
destacamos a seguinte passagem: “o conhecimento produzido para o juiz não é ‘aplicado’ mas
é ‘aplicável’, com consequências muito reais e, ainda assim, é conhecimento” (Silva, 1994:61).
Em outro texto que trata das “expectativas e possibilidades de trabalho do antropólogo em
laudos antropológicos”, os argumentos desenvolvidos pelo autor sobre a defi nição de um
grupo étnico e da ocupação de um território, assim como a problematização deste tipo de
encontro entre duas disciplinas distintas como a Antropologia e o Direito, têm servido como
uma espécie de guia para os antropólogos que precisam lidar com “certas regras e expec-
tativas que não são defi nidas no contexto estrito da prática antropológica”, sem contudo,
deixarem de “pautar-se pelos cânones de sua disciplina, partilhando de suas potencialidades
e limitações” (Oliveira, 1998:271, 285).

112 Eliane Cantarino O’Dwyer


Seringueiros do Alto Juruá-Acre
No caso do parecer antropológico realizado em 1989 e publicado pratica-
mente uma década depois sob o título Seringueiros da Amazônia: dramas
sociais e o olhar antropológico (O’Dwyer, 1998), fora solicitado a partir
de denúncias sobre violação das liberdades pessoais e formas de constran-
gimento ilegal perpetrado contra populações seringueiras no Estado do
Acre. De fato, tratavam-se de problemas sociais postos ao antropólogo,
em um contexto de confl ito e intensa mobilização dos seringueiros, após
o assassinato de seu líder Chico Mendes, e não de questões levantadas
através da construção de um objeto de pesquisa. Enquanto problemas pu-
blicamente reconhecidos se transformaram em uma questão de Estado,
o que provavelmente exigiu um tratamento supostamente garantido pela
investigação científica.
Deste modo, se o parecer antropológico sobre formas de trabalho es-
cravo nos seringais do alto rio Juruá não constituía uma pesquisa orienta-
da pelas exigências do campo acadêmico, por outro lado podia ser situado
dentro das ações coordenadas no âmbito da Associação Brasileira de An-
tropologia, que envolviam a colaboração entre antropólogos e a Procurado-
ria Geral da República, no reconhecimento dos direitos de grupos étnicos e
sociais. Desta perspectiva, como vimos, deveria ainda ser considerado um
caso particular da possibilidade de uma “antropologia da ação” (Cardoso
de Oliveira, 1978:212), pois a ABA, naquela circunstância, procurou in-
dicar um profissional com qualificação a nível de doutorado, reconhecido
assim pelas normas de formação acadêmica na disciplina. Mas a escolha
recaiu sobre nós ainda por outra razão, relacionada à experiência de pes-
quisa à época em áreas de confl ito social no campo, o que se não constituía
um critério adequado de distinção na academia, apontava para o aspecto
experiencial da pesquisa etnográfica, o que ocorria no domínio não da
subjetividade, mas de uma atividade especializada.
A relevância social deste tipo de parecer pode ser considerada inques-
tionável do ponto de vista dos direitos humanos. Contudo, a população
seringueira do Alto Juruá, comunicada sobre nossa viagem pelo presidente
do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul, em programa
matutino de rádio, teve uma certa decepção logo na nossa chegada, pois
ao anúncio da visita de uma “cientista” tinham entendido que receberiam
uma “dentista”, o que, pelo menos, segundo a expectativa de alguns pode-
ria resolver problemas inadiáveis de saúde. Ironias à parte, um dos efeitos
sociais deste parecer antropológico, realizado no âmbito de um inquérito

O papel social do antropólogo 113


civil público movido pela Procuradoria Geral da República, foi a criação
da primeira Reserva Extrativista do Brasil no Alto Juruá.
É preciso, contudo, reconhecer os limites impostos a este tipo de tra-
balho de pesquisa, levando em conta que os problemas são a princípio
defi nidos em uma esfera jurídica. Contudo, ao discutir as denúncias enca-
minhadas ao Ministério Público Federal, do ponto de vista das populações
seringueiras, foi possível introduzir a problemática sociológica sobre “quem
acusa quem”, como um modo de investigar os tipos de relações sociais em
que ocorrem e relacionar casos e incidentes, procurando esclarecer as co-
nexões entre eles (Gluckman, 1975:71). A questão do desenvolvimento e
da mudança de relações entre essas pessoas e grupos, agindo no quadro
da sua cultura e do seu sistema social, não pôde ter desdobramentos de
pesquisa, como inicialmente cogitáramos, pois o parecer transformara-se
em instrumento de inquérito policial contra os chamados “patrões seringa-
listas” visando apurar possíveis transgressões de conduta ao código penal
e, naquele contexto, soubemos que na volta a campo correríamos risco
quanto a nossa integridade pessoal.
Poderíamos então perguntar, seguindo outros autores citados, o que
haveria ainda de antropológico nessa perícia? Ao reler as páginas introdu-
tórias do parecer (O’Dwyer, 1989:15-20), gostaríamos de destacar o uso
de uma argumentação que confere ao trabalho de campo como “prática
espacial” (Clifford, 1999:72-73) de deslocamento físico e residência tem-
porária em outro lugar, o papel metodológico de estabelecer ao mesmo
tempo o “olhar distanciado” e servir como meio de acesso às representa-
ções sociais ou ao assim chamado “ponto de vista dos nativos”. Transcre-
vemos as seguintes passagens a título de ilustração:

“Fazendo parte da tradição do trabalho antropológico, as viagens mar-


cam o contato com grupos sociais distantes do universo rotineiro do pes-
quisador. Nada mais rotineiro, portanto, na prática dessa disciplina, do
que o deslocamento que empreendi nos meses de maio e junho (de 1989)
pelo rio Juruá, no Estado do Acre, até as nascentes nos extremos da fron-
teira com o Peru, linhas limítrofe e montante.

“Cumprindo solicitação da Procuradoria Geral da República de realizar


um levantamento antropológico das bacias dos rios Tejo e Breu, tributá-
rios do conjunto hidrográfico do Alto Juruá, subi o rio em direção às ca-
beceiras para reconhecimento in loco das relações sociais e do sistema de
dominação caracterizado como forma de trabalho escravo prevalente nos
seringais. Essa atividade extrativista secular distingue aquela região por

114 Eliane Cantarino O’Dwyer


uma especialidade: a exploração da borracha, apropriação da natureza
pelo trabalho do homem.

“O antropólogo, neste caso, tem que mobilizar a metodologia de pesquisa


produzida pela prática do seu saber para responder às questões levantadas
através de denúncias chegadas ao conhecimento do Ministério Público
Federal. Denúncias essas sobre violações das liberdades pessoais e formas
de constrangimento ilegal perpetrado contra as populações seringueiras
daquelas áreas.

“A viagem representa uma necessidade de percurso, meio de contato di-


reto com as populações mencionadas. Em lugar da intermediação de ter-
ceiros que pudessem dar seus depoimentos sobre os fatos denunciados,
utiliza-se a rotina do trabalho de campo antropológico que não supõe
mediadores entre o pesquisador e o grupo estudado.

“Quando o antropólogo atua como inquisidor às avessas, a procura das


informações disponíveis, dos testemunhos e depoimentos coletivos, a prá-
tica de pesquisa antropológica oferece caminhos – pelos jogos de trans-
formar, através da experiência de campo, o exótico em familiar, permitin-
do a construção de fatos muitas vezes do desconhecimento dos próprios
contemporâneos.

“O antropólogo funciona, nesse caso, como observador direto e, até certo


ponto, participante, ao intermediar uma ação pública, que se pretende
nessas circunstâncias sem intermediários. Já o poder judiciário do Estado
atua como representante da sociedade, encarregando-se de proceder a um
inquérito com a possível abertura de um processo judicial.

“A enunciação dos fatos por um terceiro – no caso a antropóloga – opera


enquanto testemunho sobre as verdades dos que não têm força, nem peso
social e político para serem apoiados em um confl ito. As provas testemu-
nhais servem para indicar a verdade dos fatos. Esse é o inquérito como
forma de saber. Em relação ao trabalho antropológico, podem-se apontar
outras circunstâncias envolvidas nesse saber. Não se trata de escrever este
relatório pericial como um quadro classificatório das verdades, porque
implica o caso em mostrar o contexto em que elas aparecem e sua relação
com as esferas sociais que a produzem.

“Busca-se o testemunho dos que viveram pelo lado das vítimas as situ-
ações denunciadas. Viveram e/ou viram. O poder que por acaso se faça

O papel social do antropólogo 115


exercer em excesso sobre grupos sociais, colocando-se fora das fronteiras
do Direito, é chamado a dar explicações dos seus atos. Isso feito a partir
da valorização dos testemunhos de uma memória coletiva por uma ca-
tegoria de personagens sociais, despossuídos do prestígio do poder e do
saber, que passam a enunciar a verdade da perspectiva em que a viven-
ciam.

“A prática da viagem na realização deste parecer antropológico permitiu


obter diretamente os testemunhos dos grupos sociais de seringueiros, no
contexto de suas experiências e de acordo com a racionalidade própria
que as informa. A relação direta com as populações “nativas” permite
revelar a especificidade da sua lógica que a priori é reconhecida por todo
antropólogo social, ainda quando a desconheça.

“Para acesso aos dados deste trabalho, fez-se necessária a realização da


viagem fluvial, única possível. A entrada na área se deu através da viagem
no batelão do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), que vem im-
plantando um sistema de cooperativas no rio Tejo e seus afluentes, sendo
Bagé o maior deles. Esse sistema de cooperativas está sendo implantado
a exemplo do que já foi feito pelos caxinauá dos rios Jordão e Breu, que
limitam a área da bacia hidrográfica do Tejo, rompendo através das coo-
perativas o sistema de dominação secular dos patrões. A entrada na área
pelo CNS foi uma escolha que permitiu um contato com os seringueiros
afastando a possibilidade de identificarem-nos com os patrões seringalis-
tas. Como segmento dominante local, eles subordinam os seringueiros,
tanto na comercialização da borracha, quanto nas relações de trabalho.

“O CNS, por ser uma entidade muito atuante, permitiu “naturalizar”


a entrada na área de uma pessoa a princípio “de fora”, que poderia ser
vista como a serviço dos patrões, para apontar os que não cumprem as
exigências por eles impostas. Nossas incursões aos seringais do Alto Ju-
ruá ficaram assim legitimadas aos olhos dos seringueiros, o que possibili-
tou coligir testemunhos que do contrário nos seriam certamente negados.
Esse tipo de entrada através do CNS, que coordena um sistema de coope-
rativas no Tejo, constituiu um acesso às avessas em relação ao sistema de
dominação prevalente nos seringais ao longo do rio Juruá.

“Os dados que obtivemos foram marcados por essa forma de deslocamen-
to e suas variações: de canoa pelos rios e suas margens, entrando nos iga-

116 Eliane Cantarino O’Dwyer


rapés e paranás, a pé nas varações pela floresta, visitando os seringueiros
em seus locais de moradia, participando nos encontros entre os associa-
dos da cooperativa e conversando com os que se abastacem nos depósi-
tos dos patrões. Por isso, o relato da viagem serve de curso e varadouro
para alcançar a margem mais oculta em que os fatos e as representações
costumam se dar. Em outras palavras, pretendemos com este trabalho
alcançar as relações sociais, formas de dominação e visões de mundo dos
que vivem como seringueiros e de seus patrões.

“Ao navegar no Juruá até as nascentes do rio, mais do que um plano de


curso, possuíamos um objetivo. Entrar em contato com as populações
seringueiras, verificando as denúncias sobre formas de trabalho escravo
enunciadas através de depoimentos, confrontados com a observação di-
reta das práticas econômico-sociais desses grupos, recriando-se assim,
para o conhecimento, as relações sociais daquele mundo dos seringais. A
viagem dirigiu-se para esse objetivo e, por isso, passamos a considerá-la
de caráter expedicionário. O curso de obtenção dos dados dependeu dos
deslocamentos empreendidos em direção aos nossos objetivos.

“A reconstituição a posteriori da navegação pelo universo social do Alto


Juruá levou-nos a optar por uma apresentação dos dados em função da
forma como chegaram ao nosso conhecimento. O que se espera de um
antropólogo é que construa a concepção dos fatos vividos pelos grupos
sociais estudados. Em lugar de enquadrar prévia e juridicamente os fatos
denunciados e o contexto observado – para o que não se precisaria con-
tar necessariamente com a intervenção de um antropólogo – procurou-se
perceber o modo como as populações representavam em seus próprios
termos o sistema jurídico abrangente, que inclusive pode não ser objeto
de referência explícita”.

A viagem, como forma específica de aquisição de um saber, presidiu este


parecer antropológico. Assim, podemos considerar que apesar de juridica-
mente defi nido, o parecer antropológico foi realizado a partir da prevalên-
cia do modelo nativo e a utilização de técnicas de observação etnográfica,
que permitem introduzir uma dimensão interpretativa na abordagem de si-
tuações sociais. Sabemos do “papel da viagem”, do “deslocamento físico”
e da “residência temporária” longe de casa na “constituição do trabalho de
campo” como “um legado antropológico crucial” (Clifford, 1999:72).

O papel social do antropólogo 117


Os quilombos do Trombetas-Pará
Após a realização deste parecer antropológico deu-se um deslocamento de
nossos interesses de pesquisa para a Amazônia. Novas pesquisas de campo
defi nidas no contexto de nossas atividades acadêmicas foram realizadas
no início dos anos 90, na região onde funciona o campus avançado da
Universidade Federal Fluminense, no município de Oriximiná, Estado do
Pará. A paisagem etnográfica do rio Juruá foi substituída pela do Trombe-
tas, ambos tributários das águas do Amazonas. O extrativismo da seringa
foi trocado pelo da castanha e as identidades relacionadas a uma atividade
econômica, defi nida pelo uso do termo seringueiro, e a um tipo de inserção
no mundo marcada por um ambiente particular, a floresta, que faz deles os
bichos seringueiros na acepção dos seus patrões, pelas identidades étnicas
relativas às crenças compartilhadas sobre uma origem e destino comum,
que caracterizam estes grupos étnicos do rio Trombetas e seu afluente Ere-
pecuru, que se defi nem como “remanescentes de quilombos” de acordo
com a legislação (artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
sitórias – ADCT – da Constituição Federal de 1988).
Mas é preciso igualmente considerar as dificuldades crescentes de fazer
pesquisa de campo antropológica, defi nida em um contexto propriamente
acadêmico, nas situações em que parcelas e grupos da população lutam
pelo pleno reconhecimento do seu status legal. Este é o caso da experi-
ência de pesquisa etnográfica que realizamos junto aos grupos étnicos de
exclusividade negra, localizados no norte da fronteira amazônica, onde
permanecemos por dois períodos consecutivos, nos meses de fevereiro a
junho de 1992 e de novembro de 1992 a fevereiro de 1993, seguidos de
três visitas mais curtas pelo período de 30 dias, cada uma, totalizando um
ano de trabalho de campo. O período de um ano tem sido considerado
pela comunidade antropológica como tempo de duração mínimo – por um
período contínuo é bem verdade – para definir o trabalho de campo na dis-
ciplina, “como encontro de investigação especialmente profundo, extenso
e interativo” (Clifford, 1999:73).
Sobre a experiência etnográfica procuramos, inicialmente, situar a
forma como fomos incluídos na elaboração da história do grupo, a qual
permitiu que tivéssemos acesso ao material etnográfico. Na primeira fase
do trabalho de campo, a identidade histórica do grupo foi um assunto
de certo modo imposto por eles e, em parte, o resultado das situações da
pesquisa.
Na cidade de Oriximiná, enquanto esperávamos permissão para viajar
às “comunidades” no alto dos rios, instalados em uma sala da Unidade

118 Eliane Cantarino O’Dwyer


Avançada José Veríssimo – campus avançado da Universidade Federal Flu-
minense (UFF), na Amazônia – passamos a consultar bibliografia histórica
sobre a região e relatos de viajantes que atravessaram o alto curso do rio
Trombetas e de seu afluente Erepecuru-Cuminá no fi nal do século XIX
e início do XX, como o casal Henri e Otille Coudreau, que fi zeram tra-
balhos de levantamento socioeconômico e geográfico para o governo do
Pará, em 1898 e 1900.
Na Unidade Avançada, o mapa afi xado com a expedição de Otil-
le Coudreau ao Erepecuru-Cuminá – dois anos depois da morte de seu
marido, ocorrida durante a expedição de 1898 ao rio Trombetas, acabou
funcionando como um roteiro de nossa viagem. Sua cartografia nos levou
para além dos cursos navegáveis, às áreas encachoeiradas onde os grupos
“remanescentes de quilombos” praticam o extrativismo da castanha, no
inverno, e a pescaria, no verão. Esta viagem pela região acima da parte
navegável do rio e as duras condições que enfrentamos longe de suas casas,
situadas no curso navegável mais abaixo, foi decisiva para a aceitação da
pesquisa.
No percurso a montante, passamos a proceder à leitura, em voz alta,
do relatório de Mme. Coudreau para nossos acompanhantes das “comu-
nidades” de Jauari, Espírito Santo e Cachoeira Pancada. Como traduzía-
mos um texto francês, podíamos suprimir certas partes do relato em que
a antiga viajante manifestava suas opiniões etnocêntricas e racistas, de-
tendo-nos nas informações de viagem em que mencionava a topografia,
os nomes dos igarapés, as cachoeiras e seus acompanhantes, em especial
seu guia nativo do Erepecuru-Cuminá, Guillermo (como estava grafado
no relatório do início do século XX), o qual era tio-avô de Joaquim Lima,
morador da “comunidade” do Espírito Santo e que fazia conosco agora a
viagem ao alto do rio.
A partir da relação de pesquisa, as informações do relatório da viagem
de Mme. Coudreau foram inseridas no presente etnográfico, e esse docu-
mento, então, pode ser “liberado” do contexto histórico que o produziu –
repleto de passagens onde os chamados “mocambeiros” eram desqualifica-
dos e as informações, dadas por seu guia ou ouvidas da população nativa,
desacreditadas e consideradas, por vezes, sem importância.
As condições e acasos da pesquisa de campo que levaram a sua aceita-
ção, se deu em virtude de um episódio, sem precedentes, ocorrido durante
a descida dos cursos encachoeirados, quando baixamos do igarapé Pene-
cura. Como já o fi zéramos na subida do rio, voltamos a mencionar as in-
formações da expedição Coudreau sobre o local onde seu guia, Guillermo,

O papel social do antropólogo 119


assinalara a antiga tapera da Figéna, considerada uma das “mocambeiras”
da fuga. Na época da expedição, Mme. Coudreau a encontrara morando
já na parte mansa do rio, para onde descera pouco antes da Abolição da
Escravatura, juntamente com Lotário e outros “mocambeiros da fuga”,
premidos, segundo explicação do relatório, pelos confl itos com os índios
Pianocotós, acima das cachoeiras do Erepecuru-Cuminá.
A partir das descrições que líamos no relatório de viagem sobre os
meandros do rio e a existência de uma vegetação mais baixa do que a flo-
resta, nossos acompanhantes identificaram o possível local citado como o
antigo sítio da Figéna. “Pelo aceiro do terreno e aquela árvore grande, teve
gente ali”, disse Joaquim Lima. A seguir, Profeta da Cachoeira Pancada, e
outro dos nossos acompanhantes, presumiu: “o jenipapo (árvore indicada
por Joaquim) devia ficar bem no porto de uma casa”. Ao ser rodeada toda
a área de capoeira que pode ter se constituído no sítio da Figéna, consta-
taram a existência de “terra preta”, apropriada para o plantio, além de
vários cafeeiros que pareciam tronqueiras, e outras árvores bem grossas,
indícios prováveis de uma ocupação muito antiga.
Entre a cachoeira do Cajual e a foz do Penecura, no lugar onde o
relatório de Mme. Coudreau mencionava a existência deste sítio perten-
cente à “mocambeira da fuga” – chamada Figéna –, encontramos vestí-
gios arqueológicos de uma ocupação muito antiga, localizados através
do entrecruzamento das informações que líamos no livro dos Coudreau
e o conhecimento que os negros possuíam da cobertura florestal de mata
virgem e áreas de antigas capoeiras. Ali, identificamos restos de alguidar,
fundo de garrafa com inscrição em inglês, ruínas da muralha de um for-
no, o provável lugar do porto de uma casa onde havia um jenipapeiro e
laranjeiras, cacaueiros e plantas medicinais. A descoberta dessa evidência
etnográfica foi considerada decisiva para a aceitação da pesquisa. Tanto
que, ao descermos as cachoeiras e visitarmos os moradores das “comuni-
dades” situadas na parte “mansa” do rio, isto é, navegável, eles passaram
a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes contavam os
pais e avós (O’Dwyer, 1999:140).
Começamos essa expedição ao alto do rio como uma forma de manter
contato com o grupo fora do perímetro urbano, já que havíamos conquis-
tado sua adesão à ideia da viagem, em parte por eles próprios sugerida
em função do material que consultávamos. Não podíamos prever, a não
ser pela persistência em cumprir nosso objetivo, que seu resultado levasse
a uma maior aceitação, pelos negros do Erepecuru-Cuminá, das nossas

120 Eliane Cantarino O’Dwyer


atividades de pesquisa, ao nos colocarmos diante deste tipo de evidência
etnográfica relativa ao seu passado.
Este relato serve para situar a forma como fomos incluídos na elabora-
ção da história do grupo, bem como para situar a forma de como tivemos
acesso ao material etnográfico. Nesta primeira fase do trabalho de campo,
a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo sugerido por
eles e, em parte, o resultado dos acasos e condições da pesquisa.
Foi assim que, ao fornecer-lhes os dados, acabamos, de certo modo in-
voluntariamente, contribuindo para um achado na região acima da grande
queda d’água do Chuvisco, cheia de travessões e cursos encachoeirados.
Estávamos em viagem até a foz do Penecura, em cujas cabeceiras, na Serra
de Santa Luzia, dizem ter-se formado, no passado, um quilombo. Fomos
levados até lá porque aceitamos entrar na relação de troca com eles e por-
que nos interessamos por suas histórias sobre os “princípios”. Incorporá-
vamos, assim, o preceito de que “o antropólogo deve seguir o que encontra
na sociedade que escolheu estudar” (Evans-Pritchard, 1978:300).
Esse “gosto pelas origens” (Augé, 1994:44) constituía-se, assim, em
moeda de troca entre nós, da pesquisa, e nossos “informantes”, no con-
texto da inclusão dos negros do Erepecuru-Cuminá no processo de reco-
nhecimento de seus direitos territoriais, já em curso, para as “comunidades
negras” do chamado “rio grande” – o Trombetas.
Gostaríamos de destacar que na situação de pesquisa não procuramos,
deliberadamente, a existência de provas materiais que comprovassem a
formação de quilombos na região. A constatação de vestígios arqueoló-
gicos surgiu como resultado da própria relação de pesquisa. Desse modo,
constitui-se numa evidência etnográfica sobre o passado, apropriada pelo
grupo – no presente – na construção do que chamam a “história dos prin-
cípios”.
Esse tipo de evidência etnográfica é estranha a qualquer ideia de com-
provação arqueológica para aplicação do artigo 68 do ADCT. Na 21ª Reu-
nião Brasileira de Antropologia, realizada em Vitória, Espírito Santo, de
5 a 9 de abril de 1998, os antropólogos reunidos no Grupo de Trabalho
Terra de Quilombo já haviam se posicionado contra o laudo encomendado
pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) a um renomado ar-
queólogo, que participou conosco do debate. Em seu trabalho, ele negava
o direito da comunidade de Porto Corís, município de Leme do Prado, no
vale do Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais, atingida pelo projeto de
construção da barragem de Irapé, à sua identificação como “remanescente
de quilombo”. Os argumentos contrários ao reconhecimento da comuni-

O papel social do antropólogo 121


dade baseavam-se na inexistência de vestígios arqueológicos deliberada-
mente procurados nas terras ocupadas pelo grupo, particularmente em
uma formação rochosa onde havia uma caverna que poderia, na visão da-
quele arqueólogo, ter sido um possível esconderijo de escravos. Este lugar,
contudo, não estava investido de qualquer significado importante para o
próprio grupo, segundo relato do antropólogo que elaborou o relatório de
identificação sobre a comunidade de Porto Corís para a Fundação Cultural
Palmares, do Ministério da Cultura.
No contexto desse debate,

a procura dos critérios ditos ‘objetivos’ da identidade (...) étnica não deve
fazer esquecer que, na prática social, estes critérios (por exemplo, a lín-
gua...) são objeto de representações mentais, quer dizer, de atos de per-
cepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento em que
os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de repre-
sentações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou
em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em
vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas
propriedades e dos seus portadores. Por outras palavras, as características
que os etnólogos e os sociólogos objetivistas arrolam, funcionam como
sinais, emblemas ou estigmas, logo que são percebidas e apreciadas como
o são na prática. (...). (Deve-se, assim,) romper com as pré-noções da
sociologia espontânea, entre a representação e a realidade, com a condi-
ção de se incluir no real a representação do real, ou mais exatamente, a
luta das representações, no sentido de imagens mentais mas também de
manifestações sociais destinadas (ao reconhecimento coletivo) (Bourdieu,
1989:112-113).

Essas considerações servem para situar os debates que os antropólo-


gos têm enfrentado no campo de aplicação dos direitos constitucionais às
comunidades negras rurais “remanescentes de quilombos”. Elas indicam
também a fluidez da fronteira que separa pesquisa acadêmica e utilização
aplicada dos seus resultados, no caso de grupos mobilizados pelo reconhe-
cimento de direitos constitucionais.

O povo indígena Awá-Guajá


Permitam-me, ainda, uma derradeira reflexão sobre as possibilidades do
fazer antropológico em condições de elaboração de um laudo por soli-
citação da Justiça Federal. Neste caso, o objeto do confl ito judicial é a

122 Eliane Cantarino O’Dwyer


defi nição do território Awá-Guajá, povo indígena situado atualmente na
pré-Amazônia maranhense, na região próxima ao rios Caru, Turiaçu e
Gurupi, sendo que este último curso d’água faz divisa entre os estados do
Maranhão e Pará.
Desta feita, o trabalho de campo foi realizado através de “visitas breves
e repetidas, (...) como no caso da tradição norte-americana da etnologia
nas reservas” (Clifford, 1999:79, 117). A investigação “de primeira mão”,
levou-nos ao uso de intérpretes nativos como forma de garantir “intera-
ções intensas face a face” (idem:115) com os Awá-Guajá. Porém, neste
caso, gostaríamos principalmente de destacar a necessidade que tivemos de
“limpar nosso campo” (idem:72), das visões construídas por advogados,
técnicos do órgão indigenista, missionários, e grupos econômicos que con-
testavam ou defendiam a ocupação do território por um povo nômade que
não vive em aldeamentos indígenas. Segundo ainda o autor citado, “sair a
um espaço de trabalho pressupõe práticas específicas de distanciamento”
(idem:72) em que o antropólogo pode considerar necessário “limpar seu
campo, ao menos conceitualmente” (idem).
Deste modo, ao examinar os argumentos em contraposição encontra-
dos nos documentos do processo, verificamos que eles recortam um campo
semântico próprio, composto pelos termos aldeamento, usado como equi-
valente a presença indígena, posse, nomadismo, migração e perambula-
ção. Eles evocam maneiras diversas de caracterizar a questão dos direitos
e interesses coletivos e privados de pessoa jurídica sobre uma extensa área
de antiga reserva florestal da União. As divergências entre as partes no pro-
cesso implicam num consenso sobre discutir certas questões. Neste caso,
está em jogo a referência às formas de aldeamento indígena tomadas como
modelo para caracterizar a ocupação imemorial das terras. Em 12/1/1990
havia sido expedido um atestado administrativo, nº 19.375.7205.0 – Pro-
cesso Funai/BSB/0313/85, que negava a presença física ou de aldeamento
indígena dentro de coordenadas que a autora (Agropecuária Alto do Tu-
riaçu) alega tratar-se da Gleba Bela Vista, que corresponde a sua proprie-
dade. De um lado, a ausência de um modelo convencional de aldeamento
permite a tentativa de desqualificação pela autora (Agropecuária Alto do
Turiaçu Ltda.)das terras tradicionalmente ocupadas pelos Awá, segundo o
texto constitucional. Por outro, há “indícios” e provas em contrário sobre
a existência nômade e de “perambulação” dos Awá, comprovadas pelos
servidores da Funai em seus relatórios e demais “intérpretes autorizados”
pela instituição. Alguns desses relatórios, em especial produzidos por ser-
tanistas da Funai, parecem convincentes sobre as formas de ocupação tra-

O papel social do antropólogo 123


dicional e atividades produtivas necessárias a reprodução física e cultural
do grupo indígena Awá, segundo seus usos, costumes e tradições. É o caso
do relatório apresentado à Funai em setembro de 1985, pelo sertanista José
Carlos Meirelles Júnior. Ele percorreu parte da Reserva Florestal do Gu-
rupi e ao ter se deparado com vários “vestígios” de presença Awá, chegou
a conclusão de que esta parte da Serra da Desordem, no rumo das águas
do igarapé Turizinho e igarapé da Fome, margeando o rio Caru, e na en-
costa das nascentes que jogam em direção ao Gurupi – igarapés Aparitiua,
Maronato e Mão de Onça, constituía “área de perambulação dos índios
guajá”:

notei um galho de canela de velho virado para a frente, na altura de 1,5


metro do chão, o que tira a possibilidade de ser quebrado de anta quando
quer se deitar e é considerado com certeza batida de Guajá; no topo, que
termina numa descida de uns 200 metros a pique, a vegetação é rala ...
em cima da terra, de novo galhos virados pelos índios Guajá, subindo
provavelmente as águas do Caru, para caçar nos formadores dos igarapés
que correm para o Gurupi; região de muita caça; nesta área existem mui-
tas guaribas, alimentação fundamental para os guajá, muito jeju e traíra
em água limpa, bom de flechar, não é à toa que os guajá andam por aqui
(Relatório do Reconhecimento da Área da Serra da Desordem, 1985).

Todavia, os efeitos dos indícios para produção da prova sobre a ocu-


pação de um território tradicional Awá – inclusive os incidentes sobre a
propriedade da autora (Agropecuária Alto do Turiaçu), em que foram en-
contrados, em 1989, “vestígios” datados provavelmente de 10 anos antes,
com a ressalva de que a existência de antigos cocais não poderia mais ser
comprovada pela devastação ali promovida – já se encontravam no bojo
da documentação relativa ao processo, e não parecem ter sido suficientes
ou convincentes para resolução do conflito judicial (Relatório de Levanta-
mento da A.I. Awá, “Viagem a Terra Sem Lei”, 1989). Tanto a Agropecuá-
ria Alto do Turiaçu quanto a Funai, nos autos do processo, estão de acordo
sobre a necessidade de realização do laudo antropológico que possibilite a
apresentação de fatos novos para apreciação do Meritíssimo Juízo.
Por conseguinte, espera-se da participação do antropólogo ao atuar
como perito, que rompa com os termos estritos do debate a partir da prá-
tica profissional de sua disciplina. É preciso, portanto, marcar a ruptura
entre o tipo de investigação antropológica e as provas e contraprovas até
agora confrontadas no corpo do processo. Nele os termos “aldeamento”,
“posse”, “migração”, “nomadismo” e “perambulação” adquirem conota-

124 Eliane Cantarino O’Dwyer


ções específicas. Em relação à noção de posse civil como equivalente a
posse indígena que aparece nos argumentos apresentados pela autora, há
uma resposta do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, em Despacho
de 9/7/1996, ao processo nº 08620.0961/96 de iniciativa da Agropecuária
Alto do Turiaçu. As contestações apresentadas à identificação e delimita-
ção da área indígena Awá, ainda relativas a primeira portaria que delimi-
tava a área indígena em 147.000 ha, foram consideradas improcedentes,
vez que, entre outros argumentos, “o alegado domínio e posse pelo con-
testante sobre parte da área não tem força jurídica para descaracterizar
a natureza indígena das terras porque, consoante disposição expressa do
artigo 231, parágrafo 6º, da Constituição Federal, tal posse é ineficaz em
relação às comunidades indígenas, situação que remonta à Carta de 1934”.
Levaremos em conta essa conceituação jurídica em nossa análise.
No que se refere ao nomadismo e aos termos migração e perambu-
lação, são utilizados com duplo sentido e intenção: em contraposição às
situações de aldeamento indígena para descaracterizar uma existência
coletiva, e como “indícios” que servem para provar a ocupação de um
território tradicional Awá. Nos estudos e relatórios da Funai, os “indí-
cios” e os fatos relacionados a situação de contato com os grupos “iso-
lados” servem para descrever e categorizar de forma aproximada a rea-
lidade social e cultural vivida pelos Awá. O uso de tais termos, porém,
implica numa abordagem referida às categorias etnocêntricas e pontos de
vista do observador. A noção de nomadismo, associada a “migração” e
“perambulação”, parece impregnar-se de toda carga semântica dos seus
significados vocabulares. Migrar é “aplicado para exprimir mudança de
população, num mesmo país, de uma região para outra, em que vai fi-
car” (Plácido e Silva, 2001:533). Deste modo, o termo “migração”, usado
para caracterizar a ocupação de um território pelos Awá, supõe que eles
se deslocam continuamente em busca de matas e fontes d’água para exer-
cer suas atividades de caça, pesca e coleta de frutos, principalmente nos
babaçuais, sem estabelecer uma área ou porção de terra na qual se fi xem.
O que juridicamente e em sentido amplo acaba por traduzir uma ideia de
inexistência de território próprio (idem:809), e por extensão em conceito
político, termina igualmente por sugerir ausência daquilo que se possa
considerar uma organização ou coletividade indígena Awá. Por sua vez,
“perambular” tem o significado linguístico de “vagar sem destino, vague-
ar, vagabundear”, e “vaguear”, aparece igualmente como uma versão de
“andar ao acaso, à toa”; ou ainda “errar, vagar, percorrer ao acaso” (Novo
Aurélio, 1999:1.540, 2.042). Ambos, portanto, reforçam a ideia de que os

O papel social do antropólogo 125


Awá percorrem aleatoriamente qualquer limite geográfico, sem senso de
direção que possibilite a defi nição de um território.
Outro termo utilizado nos estudos e relatórios sobre os Awá, relaciona-
do, como vimos, à prática sertanista dos seus servidores em tentativas de
contato com os ainda “isolados” para demarcar o percurso ou “caminho”
por eles seguido, é o de “vestígio”, que atesta a presença desse grupo indí-
gena em determinada área ou porção de terra. Novamente, parece difícil
livrar-se da carga etnocêntrica deste termo, que procura em sua utilização
revelar a ocupação pelo povo Awá de determinada extensão de território
e termina ao contrário por sugerir uma associação metafórica indevida
entre homem e animal que costuma deixar sinal no lugar por onde passa,
no sentido de “rastro”, “pegada”, “pista”. Nesta perspectiva, a passagem
inversa sugerida e impensável da cultura para a natureza, parece em parte
igualmente comprometer o direito dos Awá a uma existência em coleti-
vidade legalmente reconhecida, ao categorizá-los de forma naturalizada
como parte das espécies a serem preservadas do ecossistema. Porém, em
sentido arqueológico e inclusive jurídico, a ideia de “vestígio” tem outras
implicações. Do ponto de vista da arqueologia, os “vestígios” representam
a possibilidade de testemunhos materiais da presença e da atividade do ho-
mem em determinado local, que revelam igualmente as condições do meio
ambiente em que ele vive ou vivia. Na técnica jurídica, ao levar em conta
a pluralidade de suas manisfestações, os “vestígios” ou “rastros” podem
construir o “indício”, ou usado geralmente no plural, os “indícios”, que se
acumulam para a comprovação do fato assim tido como verdadeiro. No
vocabulário jurídico, “indício”, “em sentido equivalente a presunção, quer
significar o fato ou a série de fatos, pelos quais se pode chegar ao conhe-
cimento de outros, em que se funda o esclarecimento da verdade ou do
fato que se deseja saber” (Plácido e Silva, 2001:426). Do modo como têm
sido usados na elaboração dos relatórios de identificação pela Funai, que
declaram como de posse permanente indígena para efeito de demarcação a
Área Indígena Awá, os “indícios” têm constituído o meio comum de prova
ao estabelecer as formas de existência coletiva e a ocupação de um territó-
rio pelo povo Awá. Os “indícios”, tomados como provas circunstanciais e
indiretas podem até ser considerados “concordantes” pela relação de inter-
dependência que possuem com o fato a provar, isto é, a existência social e
cultural Awá em determinado território. Porém, essa presunção parece que
tem induzido a incerteza sobre esse fato controverso. O confl ito entre as
duas posições que se expressam no campo jurídico através de argumentos

126 Eliane Cantarino O’Dwyer


contraditórios, revelam um esquema comum de pensamento e meios de
convencimento na construção da prova pericial.
Do impasse ao consenso entre as partes sobre o papel da perícia antro-
pológica para esclarecer ou evidenciar os fatos em disputa e a nomeação
pelo Juiz para que procedêssemos à pesquisa e esclarecimento dos fatos
em questão, importam no “trabalho do antropólogo” e seus modos disci-
plinados de “ouvir, olhar e escrever,...que articulam a pesquisa empírica
com a interpretação de seus resultados” (Cardoso de Oliveira, 1998:17).
A investigação antropológica exige um “exercício de estranhamento” no
qual rompe duplamente com a defi nição arqueológica de “vestígios” e da
“evidência” como técnica jurídica, na medida em que ambas tentam ofe-
recer uma prova ou contraprova através de circunstâncias externas que
se mostram acumuladas e relacionadas de acordo com o ponto de vista
do observador. No fazer antropológico, deve-se estudar uma sociedade
em seu contexto, a partir das categorias e valores próprios dos grupos. A
observação etnográfica e o diálogo comparativo com a teoria acumulada
pela disciplina dão lugar aos fatos etnográficos que permitem o conheci-
mento e tradução das categorias de pensamento e formas de organização
social e cultural da vida nativa. A prova em Antropologia sobre a diversi-
dade nos modos de existência coletiva é a evidência etnográfica construída
a partir das categorias êmicas do grupo e de seus valores internos, o que
implica em estudar a sociedade indígena em seus próprios termos, segundo
a lógica e a coerência com que aí se apresentam. “De que maneira trans-
formar a terminologia dos nativos em terminologia técnica, quer dizer
em conceitos sociológicos?” (Tomke Lask in Barth, 2000:11). Para Barth,
depende do “contexto local em que esses termos estão inseridos” e devem
ainda ser levados em conta os “significados variados que podem ter numa
mesma sociedade” (idem). Enfrentar essa tarefa passa a ser nosso objetivo
na realização deste laudo antropológico, o que exige, como condição, a
pesquisa de campo etnográfica para estudar o grupo indígena Awá em seu
contexto e “compreender os valores inerentes dessa sociedade indígena”
(idem), assim como descobrir a partir das práticas sociais e das interações
entre seus membros, o significado das categorias êmicas, que consolidam a
“investigação etnológica, junto as populações ágrafas e de pequena escala”
(Cardoso de Oliveira, 1998:34), como os Awá.
Para concluir, pretendemos retomar a questão que procuramos de-
senvolver a partir de nossa experiência profissional sobre as condições e
possibilidades do fazer antropológico nas circunstâncias de elaboração de
laudos, como um gênero de saber jurídico e/ou administrativo. Na Antro-

O papel social do antropólogo 127


pologia o trabalho de campo tem sido considerado como um “encontro
de investigação especialmente profundo, extenso e interativo” (Clifford,
1999:73). De fato, o trabalho de campo antropológico tem ao longo da
história da disciplina apresentado “problemas de defi nição”, como nos
adverte este autor, porém a “visão de interação social” e “obtenção de
dados etnográficos de maneira disciplinada e interativa” tem caracterizado
“experiências heterogêneas de trabalho de campo” que se afastam de ca-
sos considerados “exemplares” (mínimo de um ano de campo por período
contínuo) e, ainda assim, mantêm no trabalho de campo sua ancoragem
(idem:74).
Na Antropologia, “as fronteiras da comunidade relevante têm sido es-
tabelecidas mediante lutas em torno dos possíveis significados aptos do
termo” trabalho de campo (Clifford, 1999:75). Porém, é preciso reconhe-
cer o vínculo estreito de constituição mútua entre os “antropólogos” e o
“trabalho de campo”. Para o autor citado “a comunidade (antropológica)
não usa (‘defi ne’) simplesmente o termo ‘trabalho de campo’; (mas ela) é
materialmente utilizada (e ‘defi nida’) por ele” (idem). Deste modo, os três
casos aqui apresentados permitem-nos afi rmar que tanto em condições de
pesquisa acadêmica, quanto na elaboração de pareceres e laudos, o traba-
lho de campo é a base do fazer antropológico.

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O papel social do antropólogo 129


Sobre a autora

Eliane Cantarino O’Dwyer, antropóloga, professora do Departamento e


do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Fede-
ral Fluminense, tem experiência profissional em pesquisa, elaboração de
relatórios de identificação e laudos antropológicos sobre as populações
seringueiras do Acre, comunidades remanescentes de quilombo do Baixo
Amazonas e do estado do Rio de Janeiro e de área indígena da pré-Amazô-
nia maranhense. É bolsista de produtividade em pesquisa e coordenadora
do Grupo de Estudos Amazônicos (GEAM) do Diretório de Pesquisas do
CNPq e Assessora em Laudos Periciais da Comissão Especial de Apoio à
Presidência da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

130 Eliane Cantarino O’Dwyer

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