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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018

"MADAME BOVARY SOU EU":


A ficção acuada sob a ilusão da transparência, da
correção política e da autenticidade 1

"MADAME BOVARY IS ME":


Fiction cornered under the illusion of transparency,
political correctness and authenticity

Paula Sibilia 2

Resumo: Várias obras já consagradas nos mais diversos campos artísticos


(pintura, música, literatura, fotografia, teatro, cinema), criadas nos séculos XIX e
XX, foram questionadas recentemente por serem consideradas ofensivas aos
valores vigentes na atualidade, sobretudo no que se refere ao estatuto das mulheres
na cultura patriarcal do Ocidente moderno. Interpretando esses episódios como
sintomas de uma importante transformação histórica que está afetando a moral
contemporânea, este artigo propõe uma primeira tentativa de mapear alguns dos
sentidos e das implicações desse movimento, desdobrando uma perspectiva de
análise genealógica com foco na produção de subjetividades.

Palavras-Chave: Censura. Realismo. Moralidade.

Abstract: Several works already consecrated in the most diverse artistic fields
(painting, music, literature, photography, theater, cinema), created in the 19th and
20th centuries, were recently questioned as being considered offensive to the
current values, especially with regard to the statute of women in the patriarchal
culture of the Modern West. Interpreting these episodes as symptoms of a major
historical transformation that is affecting contemporary morality, this article
proposes a first attempt to map some of the meanings and implications of this
movement, unfolding a perspective of genealogical analysis focused on the
production of subjectivities.

Keywords: Censorship. Realism. Morality.

1
Trabalho apresentado ao GT Comunicação e Sociabilidade do XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, doutora em Comunicação e Cultura
(UFRJ). paulasibilia@gmail.com.

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1. Corrigindo os clássicos pelo bem geral

Em janeiro de 2018, a notícia explodiu com toda a estridência que era de se esperar,
considerando o clima de alta sensibilidade que hoje reina nessas areias tão movediças como
ardentes. Numa montagem de Carmen realizada por uma companhia teatral da Itália, a
célebre obra de Georges Bizet tinha sido adaptada para receber um final "politicamente
correto" de acordo com a moralidade vigente. Assim, na tentativa de "denunciar o problema
dos feminicídios", em vez de morrer assassinada pelo ciumento amante abandonado, a
protagonista consegue lhe roubar a arma e é ela quem comete o homicídio para salvar a
própria vida. "Morre o assediador e não sua vítima", conclui-se recorrendo ao vocabulário e
aos valores da atualidade, bastante longínquos tanto da Sevilha de 1820 em que se
desenvolve o enredo como da Paris de 1875 em que a ópera foi estreada, lembrando que ela
ainda se baseou num romance homônimo publicado trinta anos antes, de autoria de Prosper
Mérimée.
"Em que medida a arte pode ser reescrita para atender exigências políticas, éticas e
morais de cada época ou para denunciar problemas atuais?", perguntava-se uma das tantas
matérias jornalísticas produzidas em torno ao assunto (VERDU, 2018). A problemática não é
nova, claro. A história da arte ocidental transborda de episódios comparáveis: cortes,
emendas, adaptações e versões remoçadas, quase sempre com a intenção de eliminar ou
amenizar algum detalhe que se considera capaz de irritar a suscetibilidade do público. Um
dos nomes mais habituais que esse tipo de intervenção costuma receber é "censura", desde
que a medida seja imposta pela autoridade política do momento e obedecendo às leis em
vigor. Ou então "autocensura", quando se trata de um gesto voluntário visando a evitar
possíveis repreensões. Mas o que surpreende, no caso emblemático acima mencionado, é que
ele faz parte de um movimento em aparente expansão, que está acontecendo no mundo
globalizado do final da segunda década do século XXI e, portanto, possui características bem
peculiares.
Embora as seis apresentações de Carmen programadas no Teatro Maggio Musicale,
na cidade de Florença, tenham esgotado rapidamente os mil e seiscentos ingressos de cada
noite, o gesto do diretor Leo Muscato não teve uma acolhida unânime. "E se fizermos
uma Moby Dick em que a baleia não morre, apenas é anestesiada?", ironizava o jornal La

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Repubblica, por citar apenas um exemplo (MASSINI, 2018). Contudo, e para além das
zombarias que também abundaram -- e que foram incentivadas, ainda, pelo infortúnio técnico
de a arma disparada pela empoderada cigana não ter "funcionado" no dia da estréia --, a coisa
é séria. Segundo os defensores da proposta, tratou-se de "uma provocação político-social"
que seria uma das principais atribuições da arte: chamar a atenção para questões
contemporâneas. "Refletir sobre um tema gravíssimo e sério na Itália que é a violência contra
as mulheres", explicitou Dario Nardella, responsável pela sala florentina em que a ópera foi
encenada, acrescentando que "o teatro deve ser denúncia, a cultura deve ser reinterpretada no
tempo presente, e isso vale também para a grande cultura do passado". O diretor da peça, por
sua vez, fez a seguinte declaração: "o único motivo pelo qual aceito levar um clássico ao
palco é para que suscite um debate e provoque emoções" (VERDU, 2018).
A contenda ainda fervilha, de fato, e não deixa de se desdobrar, sobretudo porque não
se trata de um caso isolado. Muito pelo contrário, aliás: parece ser um acontecimento entre
vários que vêm ocorrendo nos últimos meses, em diferentes cidades dos países ocidentais
mas com repercussão imediatamente global. É provável que sejam sintomas de uma
importante transformação histórica em andamento, que sem dúvida merece ser analisada com
todo o cuidado mas também com certa audácia teórica e em diálogo com a maior quantidade
possível de vozes dissonantes. Este artigo pretende oferecer uma contribuição inicial a esse
debate tão urgente como necessário, lançando mão do "método genealógico" com foco na
produção de subjetividades, uma estratégia para a qual o campo acadêmico da Comunicação
tem se manifestado especialmente prolífico (FERRAZ, 2013).
Poucos dias antes da ser divulgada a controversa versão operística italiana, tinha
circulado um abaixo-assinado com milhares de adesões dirigido ao Metropolitan Museum de
Nova Iorque, nos Estados Unidos, pedindo que um famoso quadro do seu acervo fosse
retirado da exposição. A obra em questão é Thérèse sonhando, pintada em 1938 pelo
surrealista Balthus. Na tela, que nas últimas décadas percorreu inúmeras mostras artísticas na
Europa e na América, observa-se uma menina recostada no que parece ser um despretensioso
ambiente doméstico, num gesto aparentemente relaxado embora também sugestivo, pois
deixa entrever a sua calcinha. Antes de virar alvo das críticas por "respaldar o voyeurismo e a
coisificação das crianças", o trabalho do consagrado pintor Balthazar Klossowski -- que
nasceu em Paris em 1908 e morreu em 2001, na Suíça -- era louvado, justamente, "pela
maneira com que ele capta a inocência da pré-adolescência" (POZZI, 2017).

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Com uma nota ponderada, mas contundente, o MET rejeitou o pedido alegando que
"as artes visuais são um dos meios mais importantes que temos para refletir ao mesmo tempo
sobre o passado e o presente"; acrescentando que "esperamos motivar a contínua evolução da
cultura atual através de uma discussão informada e respeitosa da expressão criativa" (POZZI,
2017). Já na Inglaterra e quase simultaneamente, uma situação com propósitos semelhantes
teve outro desfecho: o quadro Hylas e as ninfas, pintado em 1896 por John William
Waterhouse, foi retirado de uma galeria de Manchester em janeiro de 2018. Uma semana
depois, no entanto, tendo em vista o turbilhão midiático que o fato desencadeou, a célebre
tela -- que chegou a ser adjetivada como "soft porn" pelo jornal The Guardian -- voltou a ser
pendurada em seu lugar (PIDD, 2018).
O ato fez parte de uma obra experimental de outra artista, Sonya Boyce, configurando
portanto uma performance que foi registrada com câmeras de vídeo, incluindo na sua
narrativa as reações do público que naquele momento freqüentava a mostra. "Queremos criar
um espaço de diálogo sobre como expor e interpretar as obras de arte", afirmou na ocasião a
coordenadora da sala, esclarecendo que o gesto teve a meta de "abrir um debate e não
censurar". A obra de Waterhouse, considerada um dos principais expoentes do movimento
pré-rafaelita, encontrava-se numa ala da galeria intitulada Em busca da beleza, junto com
outros nus femininos típicos do século XIX. Ao questionar o título do espaço, a curadora
também destacou o fato de as mulheres terem sido representadas na arte ocidental "como um
sujeito passivo e decorativo ou como uma femme fatale". Após o artístico ritual da retirada do
quadro, os espectadores colaram pequenas notas na parede expressando as suas opiniões,
entre as quais havia tanto manifestações entusiastas de apoio como ácidas reclamações e
críticas. (UNA GALERIA..., 2018).
Fica claro, entretanto, que o debate não se restringiu aos limites do espaço físico desse
centro cultural britânico. Todos os episódios aqui mencionados ganharam imediata
repercussão global, em boa medida devido à eficácia das redes sociais da internet para a sua
propagação, atingindo em seguida a mídia tradicional como jornais e televisão após
"bombarem" ou virarem trending topics em canais interativos hoje muito usados como
Twitter, Facebook e Instagram. "Considerarei esta petição um sucesso se for incluída uma
pequena mensagem dizendo que o quadro pode ser ofensivo”, frisou numa dessas redes
informáticas a principal impulsora da movimentação contra o quadro de Balthus no
Metropolitan Museum. Até então, e inclusive por enquanto, a única legenda que continua

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acompanhando a obra na sala nova-iorquina informa ser um retrato de Thérèse Blanchard,


uma vizinha do pintor que posou como modelo para várias de suas obras e, na época, devia
ter por volta de onze ou treze anos de idade.

2. Genealogia da obscenidade: um caminho sinuoso e escorregadio

A extrema juventude das meninas retratadas nos dois quadros acima mencionados é a
principal causa de que, agora, essas imagens sejam consideradas "inapropriadas", pois
estima-se que elas podem constituir uma "apologia da pedofilia". A preocupação é
perfeitamente afinada com o contexto contemporâneo; contudo, no vitoriano final do século
XIX em que Waterhouse pintou as suas ninfas no lago, essa acusação teria soado anacrônica.
Já em meados do século XX, tanto o próprio Balthus como seus admiradores, "não viam nada
de sujo nos seus quadros". Para ele, as meninas que retratava -- quase sempre em poses pouco
convencionais e com certa languidez no rosto, muitas vezes ainda acompanhadas por gatos
que lambem leite, como é precisamente o caso do quadro em questão -- eram "seres puros, e
seu inocente impudor é próprio da infância", de acordo com expressões do falecido autor
(CARNOTA, 2018).
É evidente, porém, que a nudez infantil perdeu esse "inocente impudor" que ainda
podia ser evocado algumas décadas atrás. A genealogia dessa ideia remonta à fecunda
tradição cristã, que ainda alicerça boa parte de nossas crenças e nossos valores. Segundo essa
perspectiva, haveria uma enorme diferença entre dois tipos de nudez: uma pura e venerada, a
outra impura e condenável. Por um lado, há aquele que está nu num sentido comparável à
inocência prévia à queda do Paraíso; ou, então, à graça da nudez infantil em sua feliz
ignorância de si. Por outro lado, há aquele que está desnudado porque foi despido de suas
vestes e é plenamente consciente dessa falta, tanto em sentido literal como metafórico. Nessa
direção se encaminha a interpretação de Giorgio Agamben (2011, p. 100), em seu ensaio
sobre o assunto: quando Adão e Eva cometeram o pecado original, "as partes do corpo que
podiam ser expostas com liberdade na glória (glorianda) se convertem em algo que devia ser
oculto (pudenda)".
A nudez das crianças, portanto, foi largamente avaliada como "inocente" na cultura
ocidental; por não ter conotações obscenas, era permitida e até mesmo festejada em virtude
de sua graciosa pureza. Em contrapartida, havia outra nudez que se considerava ofensiva por

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seu teor erótico intrínseco e, em função disso, deveria ser pudicamente preservada na
intimidade do espaço privado ou, então, severamente censurada quando exposta na esfera
pública. Essas rígidas dicotomias têm alicerçado os significados da nudez humana em nossa
cultura; e, portanto, da revelação corporal e de sua projeção numa diversidade de imagens
possíveis. Essas crenças impregnaram as artes e delas também emanaram, pelo menos até
bem avançada a secularização do mundo.
De acordo com essa interpretação de linhagem cristã, é também por isso que na arte
canônica ocidental vigorou uma distinção bastante clara entre dois tipos de nudez. A artística
(nude), por um lado, de inspiração greco-latina e tradicionalmente associada à beleza como
um casto véu estético capaz de recobrir qualquer infâmia. Se o gênero do nu proliferou com
tanto sucesso nas artes dos séculos XIX e XX, no seio de uma sociedade ainda tão puritana
em seus costumes sexuais, foi porque esse tipo de representação estava isento daquele
incômodo exalado pela mais crua e simples exposição corporal à visibilidade pública (naked).
Este segundo e desprestigiado tipo de nudez, portanto, decorre do ato de escancarar um corpo
vergonhosamente "desvestido". Quem explicitou essa diferenciação entre o nude e o naked,
dois tipos bem distintos de imagens de nudez -- um válido e cultuado, o outro vergonhoso e
estigmatizado -- foi o historiador da arte britânico Kenneth Clark, em seu célebre livro
publicado em 1956 e limpamente intitulado O nu.
Lançando mão desses conceitos para tentar compreender os deslocamentos atualmente
em curso, poderíamos deduzir que se a nudez infantil costumava ser nude na cultura
moderna, agora ela parece ter virado perigosamente naked. Essa transformação tem
acompanhado um movimento inverso no que se refere à nudez adulta, cuja exibição foi se
tornando cada vez mais "permitida" mesmo em suas versões mais cruas ou naked
(BORZELLO, 2012). Contudo, o panorama que vem se configurando na segunda década do
século XXI reveste uma complexidade difícil de ser apreendida, inclusive porque se encontra
em plena eclosão e parece cheio de contradições e disputas.
Em dezembro de 2017, por exemplo, houve uma mobilização para que fossem
cobertos, no metrô de Londres, os cartazes que promoviam uma mostra de Egon Schiele em
comemoração ao centenário da sua morte. A nudez dos corpos retratados pelo pintor
austríaco foi considerada ofensiva para ser exibida nesse espaço urbano do século XXI.
Finalmente, os promotores da exibição optaram por colocar uma tarja cobrindo partes dos
quadros, na qual se lia: "Sentimos muito, 100 anos mas ainda hoje ousado demais". Além

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disso, usaram o hashtag #ToArtItsFreedom, inspirado no lema "A cada tempo sua arte, e a
cada arte sua liberdade", que evoca os movimentos estéticos dos quais fez parte o pintor
vienense há mais de um século (OLGUÍN, 2017).
No Brasil, por sua vez, não é necessário lembrar de alguns casos que agitaram o
debate em 2017, tais como o da mostra Queermuseum, que acabou sendo levantada em Porto
Alegre, e o da performance La Bête, que motivou acusações de pedofilia no MASP de São
Paulo. A definição do que é obsceno e, em consequência, deveria ser banido da visibilidade
pública -- no que se refere às imagens de corpos nus -- parece vivenciar uma confusa
efervescência na atualidade, compondo um território instigante que se resiste a ser mapeado.
Para tentar fugir das armadilhas desse impasse fazendo uma ardilosa cambalhota intelectual,
uma linha possível de pensamento consiste em recorrer ao método genealógico aqui proposto.
Se a "inadequação" das imagens hoje impugnadas não reside na essência nem da obra
e nem daquilo que o artista nela plasmou -- até porque antes não incomodava, ou não o fazia
pelos mesmos motivos que agora --, então o problema talvez emane do olhar de quem a
observa. Cabe notar que esse olhar é sempre histórico; e, portanto, costuma estar insuflado
pelos valores e pelas crenças de cada época, necessariamente enraizados em determinados
"regimes de visibilidade". Em trabalhos anteriores, procuramos estudar algumas dessas
mutações que afetaram tanto a percepção como o julgamento moral de certas imagens de
nudez em diferentes momentos da tradição ocidental (SIBILIA, 2014). Seguindo esse mesmo
caminho, talvez seja possível interpretar sob essa perspectiva o que está acontecendo agora.

3. A ficção como estratégia para driblar a moral burguesa

Quase vinte anos antes da estréia de Camen na Opera Comique de Paris, mas uma
década depois da publicação do livro que o inspirara, em 1856, começaram a aparecer os
primeiros capítulos de Madame Bovary em formato folhetim na revista literária La Revue de
Paris. É bem conhecida a história relatada naquele que iria se tornar um dos romances mais.
célebres e icônicos da literatura ocidental, ópera prima de Gustave Flaubert. Com uma
sentido aguçado da observação, aplicando o método da "palavra justa" à impiedosa descrição
do cotidiano, o autor retrata o drama pequeno-burguês vivido pela esposa de um médico de
províncias na França da época. Charles Bovary é um "homem bom" que cumpre o seu papel

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de marido com relativa eficácia, mas dista muito de satisfazer os desvarios românticos
prometidos pela fértil literatura sentimental da época.
O fato é que Emma Bovary detesta a sua existência vulgar e anódina, ela sonha com
ter uma "vida de novela" na qual esse esposo deixa muito a desejar. O livro é una ficção,
obviamente, que nunca pretendeu ser outra coisa: pura literatura, um folhetim, apenas um
romance. O personagem da protagonista é fictício também, apesar do realismo tão bem-
sucedido que o imortalizou. Essa é uma peça fundamental deste enredo: a estética realista, tão
típica desse gênero fundamental do século XIX, o romance, vinha unida a certa crítica social
igualmente realista: um olhar mordaz dirigido aos valores da época; ou seja, à hipocrisia
aninhada naquilo que se conhece como "moral burguesa". O adultério, como se sabe, é um
dos principais e mais prolíficos fantasmas desse universo.
Por tal motivo, a história de Emma não foi bem recebida por um influente setor da
sociedade francesa. Flaubert chegou inclusive a ser processado por obscenidade naquele
mesmo ano de 1856, pois houve quem considerasse o romance "ofensivo à moral religiosa e à
moral pública". Enfim: coisas do século XIX. Pois cabe salientar que esse tipo de medidas
não eram raras naquele contexto: exatamente o mesmo destino teve Charles Baudelaire, por
exemplo, que foi processado pela obscenidade presente em sua obra As flores do mal naquele
mesmíssimo ano e pelo mesmo fiscal, o temível advogado imperial Ernest Pinard.
Sintonizados com o clima da época, aliás, os editores da revista em que o romance de
Flaubert foi publicado pela primeira vez, manifestaram as suas reticências sobre alguns
trechos da obra; e, de fato, a impressão acabou se retrasando porque eles temiam esse tipo de
acusações de imoralidade diante do inédito teor da obra. Por isso, sugeriram ao autor que
cortasse alguns fragmentos do texto. Mesmo sem concordar porque os considerava
fundamentais, ele acabou consentindo e o texto foi publicado; sem conseguir, porém, driblar
a acusação oficial. "O trabalho de Flaubert é admirável se for julgado pelo talento", disse o
seu acusador nos tribunais, "mas é execrável do ponto de vista moral" (FLAUBERT, 2011).
Ecoam, aqui, algumas repercussões suscitadas pelos casos atuais que foram
apresentados nas páginas anteriores deste artigo. Após admitir que a pose da jovem modelo
retratada por Balthus em seu quadro de 1938 pode ser considerada "bastante sugestiva", o
crítico de arte espanhol Ciprián Carnota escreveu o seguinte: "mas a pergunta é se por isso é
necessário retirar uma obra de arte tão boa". Em seguida, respondendo à sua própria questão
e em referência aos assinantes da petição elevada ao Metropolitan Museum em fevereiro de

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2018, ele adverte: "até esse pelotão de linchamento de nove mil guardiões da nossa moral tem
que reconhecer a qualidade objetiva da obra" (CARNOTA, 2018). E claro que tanto os
motivos como outros ingredientes primordiais são bem diferente, em um e no outro caso; por
isso mesmo, contudo, é que a comparação pode resultar elucidativa do ponto de vista
genealógico.
No processo sofrido por Flaubert em 1856, temia-se que o ousado romance pudesse
servir de inspiração -- como um péssimo modelo -- para a infinidade de damas que estavam
tão frustradas e entediadas como Emma Bovary, mas que nem por isso buscavam amantes
"de gostos mais refinados" e nem cogitavam o recurso extremo do suicídio. A ficção era uma
arma muito poderosa naquela sociedade em que vigoravam normas tão severas -- como, por
exemplo, as rígidas separações entre o público e o privado. O gênero do romance foi tão
bem-sucedido naquela época porque, entre outros motivos, era uma ferramenta que permitia
expressar muito daquilo que de outro modo teria sido impronunciável.
A estética realista que se desenvolveu na segunda metade do século XIX, porém, e da
qual Flaubert foi um dos grandes mestres, levou essa estratégia a um grau de refinamento tão
incisivo que acabou suscitando graves equívocos, como o ilustrado pelo processo judicial
contra Madame Bovary. Onde residia o limite entre o realismo e o real? Mesmo sendo ficção,
ao ser tão realista, por acaso aquele relato não beirava as margens da imoralidade? De fato,
quase todos os argumentos da acusação de imoralidade parecem dirigir-se ao personagem de
Emma Bovary, cujas ações foram julgadas como se pertencessem a uma pessoa real. Ela foi
acusada de não ter tentado seriamente amar seu marido, por exemplo, e de ainda se sentir
mais bela e desejável depois de se entregar ao amante, em vez de se arrepender e assumir a
culpa.
Diante dessas denúncias, o argumento da defesa hoje resulta óbvio, embora na época
não fosse: a Senhora Bovary fez tudo isso porque ela não existe, é uma personagem ficcional
e foi completamente inventada. Acontece que o autor moderno -- e ninguém duvida que
Flaubert o era -- se diferencia do narrador; e, por isso, ele é capaz de colocar em jogo toda
uma série de truques e artifícios: novas formas de narrar, que procuravam dar conta de novas
formas de viver e de sentir. Embora no seio dessa separação entre autor e narrador sempre
continue latejando a ambigüidade da máscara, e talvez seja desse nó que surgiu a mítica frase
que serve de título a este ensaio. Uma expressão que, a rigor, parece que Flaubert nunca teria

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pronunciado nem escrito -- de acordo com os especialistas que vasculharam seus textos --
mas que, no entanto, é una de suas frases más citadas: "Madame Bovary sou eu".
Mesmo sendo falsa, a famosa alocução é valiosa, pois ela tenta dar conta de algo bem
típico desse realismo do século XIX aqui em foco. Tanto a historia narrada como sua
protagonista são fictícios, nunca existiram na realidade, mas elas são fruto da imaginação do
seu autor. Existem porque foram inventadas, surgiram da interioridade mais profunda do seu
eu, por isso "Madame Bovary é ele, sim, Flaubert". Não porque ele se identifique com a
personagem, evidentemente, mas porque ela a inventou. "Madame Bovary não tem nada de
verdadeiro", escreveu, agora comprovadamente, Gustave Flaubert numa carta datada em
1857. "É uma historia totalmente inventada; não coloquei nada de meus sentimentos, nem da
minha existência".
Não se trata, portanto, de uma obra autobiográfica, já que o livro não conta nada da
vida do autor. Não há, portanto, nenhuma coincidencia entre autor, narrador e personagem
(LEJEUNE, 2008). Mas o relato surgiu da pluma e da alma do autor, por assim dizer -- ou do
seu gênio, como então se dizia -- que foi capaz de inventar esse personagem altamente
realista com as armas de seu ofício de romancista: observação, introspecção, trabalho e
talento literário. Nesse sentido, sim: Madame Bovary é Flaubert. E a ficção realista era, sem
dúvida, a tática mais eficaz para dizer algo tão explosivo como isso que Flaubert ousou
escrever em 1856.

4. Realismo (e espetáculo) em primeira pessoa

No início do novo milênio, ano 2001, um fenômeno literário inédito surpreendeu o


mundo. Tudo começou com a crítica de arte contemporânea Catherine Millet, diretora e
fundadora da prestigiosa revista Art Press, que semeou um pequeno escândalo ao lançar o seu
livro intitulado A vida sexual de Catherine M. Tratava-se de um relato claramente
autobiográfico, que inclusive tinha a foto da autora-narradora e protagonista na capa,
completamente nua e olhando de frente para o leitor. Nessas páginas, Millet narra suas
peripécias eróticas, contando en detalhe como se entregou "a um número incalculável de
mãos e de cacetes" e como "trepava além de toda repugnância". Somente na França e nos três
primeiros anos, o livro vendeu setecentos mil exemplares, além de ter sido traduzido para
quarenta idiomas. A autora se tornou muito mais famosa do que já era, deu centenas de

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conferências e reportagens no mundo inteiro; e, de algum modo, inaugurou um novo gênero


literário.
Embora seu caso seja bastante singular, Catherine Millet foi uma pioneira mas não foi
a única a pisar nesse terreno até então inédito. Em 2005, a brasileira Raquel Pacheco, mais
conhecida pelo seu pseudônimo Bruna Surfistinha, tornou-se uma celebridade graças ao seu
blog que em seguida foi publicado como livro, com o título O doce veneno do escorpião:
Diário de uma garota de programa. A obra também foi um best-seller, traduzida para várias
línguas e apresentada nas feiras literárias de dezenas de países diferentes. No mesmo ano, a
italiana Melissa P. publicou seu próprio best-seller internacional Cem escovadas antes de
dormir, no qual relata suas aventuras sexuais aos dezesseis anos de idade. "Voyeurismo, sexo
grupal, amor lésbico, sadomasoquismo...", procura resumir a sinopse do livro. Também está a
francesa Lolita Pille, que aos dezoito anos publicou Hell, de 2003, uma crítica à "vida fútil da
alta sociedade parisiense" com ingredientes semelhantes. Outra blogueira brasileira, Clarah
Averbuck, a partir de 2003 publicou vários livros de sucesso nessa mesma linha. Já a
argentina Cielo Latini é outra adolescente que, em 2006, publicou a sua autobiografia
intitulada Abzurdah, na qual mistura algumas doses de anorexia nesse coquetel já clássico. A
maioria desses textos foi traduzido para várias línguas, tornaram-se best-sellers internacionais
e foram adaptados como filmes para o cinema, seriados ou peças de teatro.
Mas por que mencionar essas obras aqui? Porque no caso destas autoras -- que
também são narradoras e personagens principalíssimos de seus textos -- parece mais
literalmente verdadeira a falsa frase de Flaubert: "Madame Bovary sou eu". E isso não se
deve aos pequenos escândalos ou às efêmeras polêmicas midiáticas que suscitaram ao colocar
em primeiro plano -- e em primeiríssima pessoa -- assuntos ainda incômodos como a
prostituição, o adultério e o desejo feminino. Nenhuma delas foi processada por "ofender a
moral", aliás, embora estas damas do século XXI tenham exposto seus corpos, suas
intimidades e sua sexualidade atingindo certos extremos de explicitação que nem Emma
Bovary nem Gustave Flaubert poderiam ter sequer imaginado.
Em todas essas obras da literatura erótico-confessional conjugada em feminino, que
floresceram no início deste século, há também um eu estridente, que não se oculta sob
nenhuma máscara ficcional mas faz tudo o possível por se mostrar abertamente. Além disso,
há uma clara pretensão de verdade autobiográfica. Mesmo assim -- e sem julgar a qualidade
estética de cada um desses livros, mas examinando-os como eloqüentes sintomas

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socioculturais -- a identidade entre autoras, narradoras e personagens também não é algo que
deva ser assumido ingenuamente nestes casos, assim como a autenticidade desses eus não é
tão evidente como se esforça por parecer.
Mas a contraposição entre os dois momentos históricos continua sendo gritante.
Porque talvez o que mudou, em nossa sociedade tão espetacularizada e midiatizada, seja a
relação entre realidade e ficção. É possível que as suas confusas fronteiras tenham se tornado
ainda mais ambíguas; e, portanto, seus efeitos geram outros sentidos no mundo. Quanto mais
a vida cotidiana é ficcionalizada e estetizada com recursos midiáticos, mais avidamente se
busca uma experiência autêntica, verdadeira, não simulada ou encenada. Busca-se o
realmente real — ou, pelo menos, algo que assim pareça. Por outro lado, a própria vida
tende a se "ficcionalizar" recorrendo aos códigos midiáticos, especialmente aos recursos
dramáticos dos meios audiovisuais, com os quais fomos persistentemente alfabetizados ao
longo das últimas décadas.
Há, portanto, um fluxo duplo: uma esfera contamina a outra: vida real, por um lado, e
ficção ou espetáculo, por outro. Assim, a suposta nitidez que antes parecia ter essas
definições, agora se vê comprometida e em permanente questão. De algum modo,
aprendemos a recorrer aos imaginários ficcionais expelidos pelos meios de comunicação para
tecer as narrativas de nossa cotidiano real. Algo comparável ao que ocorria ao personagem
(fictício) de Madame Bovary, naquele outro mundo da França oitocentista, com a sua fatal
compulsão pelas novelas românticas que acabaram lhe intoxicando alma e corpo.
No entanto, o fato de que a comparação seja viável e proveitosa não significa que se
trate da mesma coisa; muito pelo contrário, aliás: é no destaque à diferença onde reside a
maior riqueza desse contraste. Há, agora, uma ênfase no eu autêntico que fala de si e que não
perde oportunidade para se mostrar do modo mais fotogênico possível. A "transformação do
mundo em imagens" diagnosticada por Guy Debord em seu livro-manifesto de 1967, A
sociedade do espetáculo, parece ter se acentuado nas últimas décadas, com a inusitada
proliferação de telas e câmeras que agora todos levamos sempre conosco. E, também, com a
invenção e a súbita popularização de uma série de gêneros inovadores -- dos reality-shows às
redes sociais da internet -- que exploram uma inquietante zona de indeterminação entre vida
real e ficção, desembocando na tão atual "instagramização do mundo" (MATCHAR, 2017).
À luz dessa crescente ambiguidade ou indeterminação, portanto, entre realidade e
ficção ou entre vida e espetáculo, caberia examinar a alteração no final da ópera de Bizet

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comentada no início deste artigo. Se o território da ficção ainda possuísse a firmeza defendida
por Flaubert em seu julgamento -- argumento que lhe concedeu a absolvição --, o personagem
de Carmen teria uma trágica solidez que a impediria de mudar o seu destino rumo a finais
considerados mais dignos ou edificantes. Trata-se de uma solidez fatal, por outro lado, pois a
sua condição de possibilidade reside no fato de ser ficcional. Contrariamente ao que acontece
agora, as fronteiras entre ambos os universos estavam bem claras na era moderna, assim
como aquelas que separavam o âmbito público da esfera privada. Certas liberdades só eram
toleradas num dos lados dessa barreira, enquanto do outro lado seriam severamente punidas -
- ou até mesmo inimagináveis, por serem obscenas e imorais. Se uma personagem fictícia
como a Carmen oitocentista -- ou, então, como Emma Bovary -- pretendesse ultrapassar o
muro que separava ambos os mundos, proclamando-se como uma personagem real que narra
e assina seus próprios dramas ou suas aventuras em primeira pessoa, sem dúvida teria sido
duramente condenada.
Já na contemporaneidade, à luz das transformações em curso, não só esses limites se
tornaram mais difusos e confusos, mas a ficção parece ter perdido boa parte de suas antigas
potências libertadoras. Em certa medida, isso se deve às liberdades conquistadas com relação
aos velhos tabus da "moral burguesa", que ampliaram as possibilidades de relatar certas
experiências, mostrar-se e alçar a voz publicamente sem ter que recorrer à proteção de
máscaras fictícias. Por outro lado, essa crise da ficção vem ocorrendo em proveito de um real
que se reconhece cada vez mais espetacularizado, embora também pressionado pelas
igualmente crescentes exigências de autenticidade e transparência. Por isso, se esse realismo
espetacular da "vida instagrameável" que hoje nos convoca com tanta insistência --
participando ativamente da produção de subjetividades e sociabilidades -- pode ser
comparado ao realismo clássico oitocentista, é na sua singularidade onde reside sua face mais
significativa. Enquanto Flaubert não era mesmo Madame Bovary, nós todos de algum modo
somos instados a sermos, sim, o melhor personagem de nós mesmos.
Como se sabe, o paradoxo do realismo clássico consistia em inventar ficções que
parecessem realidades. Para isso, os autores e artistas procuravam angariar ou renovar todos
os recursos de verossimilhança imagináveis, como fez Flaubert tão magistralmente com a sua
Madame Bovary, por exemplo, e até mesmo Bizet com a sua Carmen. Agora, porém, rege
uma ânsia por inventar realidades que pareçam ficções; ou seja: experiências reais que
pareçam espetáculos. Ou, então, vidas espetaculares que pareçam autênticas. Espetacularizar

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cotidianamente o eu, do jeito que aprendemos a fazer, consiste precisamente nisso:


transformar nossas personalidades e vidas, já nem tão privadas assim, em realidades públicas
"ficcionalizadas" com recursos midiáticos. En suma: espetáculos realistas, que pareçam
autênticos e dissimulem a sua condição necessariamente performática (SIBILIA, 2015).
Essas mudanças históricas nos modos de constituir as subjetividades -- bem como nas
formas de organizar nossas vidas, de nos inventarmos e auto-tematizarmos, de nos relacionar
conosco, com os outros e com o mundo -- poderiam explicar, pelo menos em certa medida,
tanto a proliferação de manifestações autobiográficas na atualidade como o renovado auge de
certa estética realista nos diversos gêneros artísticos e midiáticos (JAGUARIBE, 2007). E,
dentro dessa tendência em expansão, a ênfase na autenticidade desse eu mais
espetacularizado que nunca, em sintonia com uma ambígua demanda de transparência
generalizada. Tudo isso sugere que mudaram os vínculos -- sempre confusos -- entre ficção e
realidade, assim como se deslocaram e nublaram as fronteiras entre o público e o privado.
Essas complexas redefinições, ainda em andamento, estão nos distanciando dos
códigos realistas herdados do século XIX, que se apoiavam numa diferenciação tão nítida
como necessária entre real e fictício. Assim, numa época ofuscada pela espectacularização de
todos os aspectos da existência, noções outrora sólidas -- pelo menos, em aparência e função
-- como realidade e verdade, têm se visto seriamente estremecidas. Numa das reviravoltas
mais recentes desse jogo, enquanto vida e espetáculo se fusionam de modos cada vez mais
naturalizados, o ideal de transparência e a "correção política" a ele associado ensaiam
tentativas -- mais ou menos quixotescas -- de fazer coincidir, à força e por decreto, a nova
realidade com as velhas ficções.

Referências

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