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EQUIPE TÉCNICA
FLUXO EDITORIAL Edneire Franciscon Jacob
Letramento e Escrita
40
Eduem
Maringá
2010
Coleção Formação de Professores - EAD
Letramento e escrita / Annie Rose dos Santos, Edson Carlos Romualdo, Lílian
L649 Cristina Buzato Ritter, organizadores. -- Maringá : Eduem, 2010.
106 p. ; 21 cm. (Formação de Professores - EAD; v. 40).
ISBN 978-85-7628-283-9
CAPÍTULO 1
Letramento, alfabetização e escrita
> 11
Cristiane Carneiro Capistrano
CAPÍTULO 2
Teorias de aprendizagem da língua escrita > 29
Annie Rose dos Santos / Sandra Regina Cecílio
CAPÍTULO 3
Elementos de fonologia, fonética e
algumas questões relacionadas à alfabetização
> 49
Edson Carlos Romualdo
CAPÍTULO 4
Ortografia nas séries iniciais do Ensino Fundamental
Edson Carlos Romualdo / Kelly Priscilla Lóddo Cezar
> 75
CAPÍTULO 5
Práticas de letramento > 95
Renilson José Menegass
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S obre os autores
ANNIE ROSE DOS SANTOS
Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em
quita Filho (Unesp/São José do Rio Preto). Doutora em Linguística Aplicada pela
de Maringá (UEM).
Assis). Mestre em Letras pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp/
Assis). Doutor em Letras pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp/
Araraquara).
Maringá (UEM).
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rede estadual de ensino do Estado do Paraná.
A presentação da Coleção
A coleção Formação de Professores – EAD teve sua primeira edição em 2004,
com a publicação de 33 títulos financiados pela Secretaria de Educação a Distância
(SEED) do Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados
como material didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa
de Formação de Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de
2500 exemplares.
A partir de 2008 demos início ao processo de organização e publicação da segunda
edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos
deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o financiamento para
esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido
pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES) que é responsável pelo do programa denominado
Universidade Aberta do Brasil (UAB).
A principio serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros
nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados no
Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universidade
Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB.
Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado
para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum deles seus organizadores
e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e
práticas construídas historicamente no que se refere aos conteúdos apresentados. O
que se busca, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura,
da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a
formação do Pedagogo na atualidade.
Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço
coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que tem se colocado como parceiras nesse
processo.
Em função disto, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais
instituições que organizaram livros ou escreveram capítulos para os diversos livros
desta coleção.
Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação
direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias, não mediu esforços para que os trabalhos
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LETRAMENTO pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante especifi-
E ESCRITA
co, destacamos aqui o esforço da Reitoria para que os recursos para o financiamento
desta coleção pudessem ser liberados de acordo com os trâmites burocráticos e os
prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE).
Internamente destacamos, ainda, o envolvimento direito dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes (DFE), que no decorrer dos últimos anos empreenderam
esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu-
desse ser criado oficialmente, o que exigiu um repensar no trabalho acadêmico e uma
modificação significativa da sistemática das atividades docentes.
No que se refere ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido
pela Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a
Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES)
conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para libe-
ração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para
aprovação, tendo em vista a ação direta e eficiente de um número muito pequeno de
pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação
Geral de Articulação.
Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD
possa contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem
como de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de en-
sino superior que integram e possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB.
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A presentação do livro
Este livro, como o próprio título dá a entender, trata das teorias sobre Letramento
e Escrita. Sendo assim, nele serão abordadas práticas de letramento vigentes na so-
ciedade, especificamente aquelas a serem trabalhadas nas primeiras séries do ensino.
No primeiro capítulo, Cristiane Carneiro Capistrano trata do letramento associan-
do-o à ideia de inserção dos indivíduos e dos grupos em práticas sócio-históricas que
integram, de forma direta ou indireta, a escrita. A autora salienta que os estudos re-
lativos aos aspectos sócio-históricos da escrita e, consequentemente, sobre os efeitos
da presença maciça da escrita e/ou das atividades de ler e escrever em nossas práticas
sócio-históricas para os indivíduos e para os grupos acarretaram mudanças no modo
como passamos a interpretar a alfabetização e a própria escrita, discorrendo então
sobre essas mudanças.
No capítulo 2, Annie Rose dos Santos e Sandra Regina Cecílio apresentam algumas
teorias de aprendizagem da escrita, inicialmente abordando a importância da língua
escrita, e empreendendo um breve histórico desse sistema gráfico. As autoras expõem
algumas teorias de pesquisadores como Jean Piaget, Emília Ferreiro e Lev Semenovich
Vygotsky acerca da aquisição da linguagem, ou seja, sobre a aprendizagem da língua,
especificamente da escrita, objetivando apresentar o pensamento desses estudiosos
na alfabetização, visando sobretudo à melhoria da aplicação prática em sala de aula.
No capítulo 3, Edson Carlos Romualdo discorre acerca dos elementos da fonologia
e da fonética, assim como de algumas questões relacionadas à alfabetização, porque
esses conhecimentos permitem a compreensão de especificidades que envolvem a fala
e a escrita e concomitantemente auxiliam na preparação de atividades que facilitam a
aprendizagem dos alunos. São estudadas teorias que possuem a finalidade de propi-
ciar ao alfabetizador clareza das características das variedades das correspondências
entre sons e letras, possibilitando a capacidade de responder às questões elaboradas
pelos alunos referentes à representação da fala pela escrita, entendendo a hipótese
levantada pelo aprendiz e identificando a etapa da alfabetização em que cada criança
se encontra.
No capítulo 4, Edson Carlos Romualdo e Kelly Priscilla Lóddo Cezar buscam tentar
responder aos questionamentos mais comuns dos profissionais do Ensino Fundamen-
tal sobre ortografia, objetivando contribuir para a formação dos novos profissionais.
Com os exemplos elencados, os autores não se propõem a dar receitas prontas sobre
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LETRAMENTO como trabalhar os conteúdos ortográficos, mas sim apresentar teorias baseadas em
E ESCRITA
trabalhos de especialistas que dedicam anos de estudos a essa temática.
No capítulo 5, Renilson José Menegassi pretende mostrar como o conceito de letra-
mento se constrói na prática em sala de aula a partir da noção de gênero textual. Para
isso, toma como exemplo um panfleto de supermercado, colhido entre os muitos que
circulam na sociedade, que serve como modelo de trabalho para outros tantos gêneros
textuais que circulam na sociedade e nas escolas do país.
Esperamos que este livro contribua com a sua prática docente em sala de aula,
considerando que o papel que você desempenhará no ambiente escolar como alfa-
betizador é de suma relevância para o ensino, pois implica na vida atual e futura dos
alunos das escolas brasileiras.
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1 Letramento,
alfabetização
e escrita
Cristiane Carneiro Capristano
1 O filme Narradores de Javé foi lançado em 2003, pelos estúdios Bananeira Filmes, Gullane
Filmes e Laterit Productions. Foi dirigido por Eliane Caffé. O roteiro foi escrito por Luiz Alberto
de Abreu e Eliane Caffé.
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LETRAMENTO sócio-históricas que envolvem a/uma escrita ou, mais especificamente, encontrar pes-
E ESCRITA
soas não-letradas.
Os moradores adultos de Javé, excetuando-se Biá, não dispunham dos conheci-
mentos necessários para se inserirem no funcionamento simbólico da nossa escrita,
realizando, dentre outras, as tarefas de codificação e de decodificação que um siste-
ma de escrita alfabético-ortográfico como o nosso exige – justamente porque eram
analfabetos! Mesmo assim, esses moradores eram partícipes ativos de práticas sócio-
-históricas nas quais a escrita e/ou as atividades de ler/escrever constituíam, direta ou
indiretamente, uma exigência, ou seja, eram participantes de práticas de letramento.
Prova disso é o envolvimento da população do vilarejo com a árdua tarefa de registrar
a história de Javé.
Notemos que, quando afirmamos que os moradores de Javé eram letrados e par-
ticipantes de práticas de letramento, não nos referimos à antiga acepção que o termo
letrado tem em dicionários, acepção segundo a qual um indivíduo letrado seria aquele
que possuiria cultura, erudição ou profundo conhecimento literário. Referimos-nos,
sim, a outra forma de interpretar esses termos, que, em linhas gerais, os associam à
ideia de inserção dos indivíduos e dos grupos em práticas sócio-históricas que inte-
gram, de forma direta ou indireta, a/uma escrita.
De acordo com Soares (1999) e Kleiman (1995), essa ‘nova’ forma de interpretar
os termos letrado e letramento surgiu nos meios acadêmicos brasileiros na segunda
metade da década de 19802 a partir de tentativas de estudiosos brasileiros de esta-
belecerem limites mais precisos entre os estudos sobre ‘o impacto da escrita’ e os
estudos sobre alfabetização, estes últimos geralmente centrados na compreensão das
habilidades e das competências individuais envolvidas na aquisição de um sistema
de escrita (KLEIMAN, 1995, p. 15-16). A atribuição de novos sentidos para letrado e
letramento deveu-se, assim, à percepção desses estudiosos de que havia algo além da
alfabetização, mais amplo, e que, de certa forma, determinava o próprio processo de
alfabetização (TFOUNI, 2000, p. 30).
Esse ‘algo mais’ está relacionado à presença indelével da escrita e/ou das atividades
de ler e de escrever em inúmeras e multifacetadas práticas sócio-históricas modernas:
2 Segundo Soares (1999), uma das primeiras ocorrências da palavra letramento está no livro or-
ganizado por Mary Kato, publicado em 1986 (KATO, M. (Org.). No mundo da escrita: uma
perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1986). Soares destaca, também, que é possível
que o termo letramento tenha se tornado um termo técnico no léxico do campo da Educação e
das Ciências Linguísticas a partir da distinção feita por Leda Verdiani Tfouni entre alfabetização
e letramento, em livro publicado em 1988 (TFOUNI, L. V. Adultos não alfabetizados: o
avesso do avesso. São Paulo: Editora Pontes, 1988).
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em sociedades que se organizam em torno de um sistema de escrita, é possível cons- Letramento,
alfabetização
tatar que a escrita e as atividades de ler e escrever entrelaçam-se à vida das pessoas, e escrita
mesmo que elas não se deem conta disso! As mais corriqueiras tarefas do dia-a-dia,
como ir à feira ou ao supermercado, pegar ônibus, assistir aos noticiários da TV, es-
tão atravessadas, de diferentes maneiras, pela escrita e, sem dúvida, essa presença da
escrita afeta a forma como os indivíduos e os grupos se constituem e se relacionam.
Kleiman (1995) enuncia que os estudos sobre letramento, no Brasil e em outros
países, começaram a ganhar força em razão de dois interesses intimamente relaciona-
dos: por um lado, um interesse mais teórico, ao qual fizemos referência mais acima,
cujo escopo era o de descrever e explicar o fenômeno do letramento e distingui-lo
radicalmente de outro fenômeno, a alfabetização. Esse interesse se tornou possível
com o aparecimento de novos fatos sócio-históricos, como a superação ou diminuição
do analfabetismo e a universalização ou extensão da escolarização básica a diferentes
camadas sociais tanto nos chamados países desenvolvidos quanto nos chamados paí-
ses em desenvolvimento.
Por outro lado, havia, também, um interesse ‘mais social’, que levou ao apareci-
mento de estudos que examinavam
Kleiman (1995) enuncia que esses estudos, entretanto, não pararam por aí. Eles
foram se alargando em função, por exemplo, da preocupação dos estudiosos em pro-
mover uma transformação de uma realidade social bem específica: a marginalização de
grupos sociais que não dominavam a ‘tecnologia’ da escrita, tal como os moradores de
Javé. A ideia, nesse caso, era a de descrever e explicar as condições de uso da escrita
com o intuito de indicar o que acontece com pessoas não-alfabetizadas que vivem em
sociedades organizadas essencialmente por meio de práticas sociais que envolvem a/
uma escrita, uma vez que se passou a supor que a condição do não-alfabetizado em
uma sociedade atravessada por práticas letradas não era idêntica à do indivíduo que
vive em sociedades que não possuem um sistema de escrita (TFOUNI, 2000).
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LETRAMENTO Convém destacar, também, que os estudos sobre os aspectos sócio-históricos da
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escrita e, consequentemente, sobre os efeitos da presença maciça da escrita e/ou das
atividades de ler e escrever em nossas práticas sócio-históricas para os indivíduos e
para os grupos acarretaram mudanças também no modo como passamos a interpretar
a alfabetização e a própria escrita, fenômenos que foram, a partir de então, re-signifi-
cados à luz das descobertas das pesquisas referentes ao letramento.
Neste capítulo, nosso propósito é, justamente, o de promover algumas reflexões
com a finalidade de permitir ao leitor introduzir-se no debate sobre algumas possibi-
lidades de abordagem desse fenômeno complexo nomeado como letramento. É tam-
bém nosso propósito fazer alguns apontamentos que permitam o exame de outros
temas intimamente correlacionados ao letramento, tais como alfabetização, escolari-
zação e escrita. As seções seguintes são dedicadas a esses propósitos.
3 Tfouni (2000) e Soares (1999) fazem uma sistematização semelhante. Concebem uma pers-
pectiva a-histórica do letramento (TFOUNI, 2000) e uma dimensão individual do letramento
(SOARES, 1999) que corresponderiam mais ou menos ao que Street (1989) chama de modelo
autônomo. Contrapõem a essas uma perspectiva histórica (TFOUNI, 2000) e uma dimensão
social do letramento (SOARES, 1999) que, novamente, mais ou menos corresponderiam ao
que Street (1989) propõem como modelo ideológico. Obviamente, as propostas de sistematização
de Tfouni (2000), de Soares (1999) e de Street (1989) têm matizes diversos que emergem dos
objetivos teóricos e metodológicos que guiam os trabalhos de cada um dos autores, matizes que,
por limites de espaço, não serão explorados aqui.
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Além disso, nesse modelo supõe-se que a escrita, em oposição radical à fala, seria Letramento,
alfabetização
um produto completo em si mesmo, uma ‘tecnologia’ cuja interpretação não estaria e escrita
No modelo autônomo de letramento há, também, uma correlação direta entre de-
senvolvimento cognitivo e letramento (KLEIMAN, 1995; TFOUNI, 2000). Desse ponto
de vista, o letramento é considerado como a causa do desenvolvimento de habilidades
cognitivas de indivíduos e de grupos que passam a incorporar um sistema de escrita
em suas atividades.
O estabelecimento dessa correlação fundamenta-se em ‘trabalhos empíricos e et-
nográficos que têm comparado as estratégias de resolução de problemas utilizados
por grupos letrados e não letrados’ (KLEIMAN, 1995, p. 23). Nesses trabalhos, parte-se
da suposição de que existiria um ‘divisor de águas’ entre aqueles que usam a escrita e
4 Aliás, como ressalta Marcuschi (2001), essa perspectiva dicotômica das relações entre fala e
escrita, infelizmente, ‘oferece um modelo muito difundido nos manuais escolares’ (MARCUS-
CHI, 2001, p. 28) que acaba por propagar uma visão simplificadora da fala, da escrita e, por
extensão, da língua e dos usos da língua.
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LETRAMENTO aqueles que não a usam. Em consonância com Kleiman (1995, p. 23), ‘em alguns au-
E ESCRITA
tores, a divisão letrado/não letrado vem substituir as divisões mais antigas entre povos
primitivos e avançados, pré-lógicos e lógicos, tradicionais e modernos, pensamento
mítico e científico’.
Autores como Street (1989) consideram que trabalhos dessa natureza retomam
e reforçam a chamada teoria da grande divisa, teoria segundo a qual a aquisição
generalizada de uma escrita por uma sociedade traria ‘consigo conseqüências de uma
ordem tal que isso modifica[ria] de maneira radical as modalidades de comunicação
dessa sociedade’ (TFOUNI, 2000, p. 34), sociedade que passaria a ser determinada por
duas diferentes e incompatíveis modalidades de usos língua: a modalidade oral, mar-
cada por um raciocínio emocional, contextualizado e ambíguo, e a modalidade escrita,
marcada por um raciocínio abstrato, descontextualizado e lógico (TFOUNI, 2000, p.
36). Essas diferenças acabam por criar um ‘abismo intransponível’ entre aqueles que
não sabem ler e escrever e aqueles que sabem (TFOUNI, 2000, p. 36).
Essa oposição radical entre os usos orais da língua e os chamados usos letrados da
língua só é possível porque, no âmbito do modelo autônomo de letramento, consi-
dera-se que a escrita teria qualidades intrínsecas, um ‘poder transformador de nossas
estruturas mentais’ (KLEIMAN, 1995, p. 31). Para Kleiman (1995, p. 31), esse poder
transformador da escrita pode ser identificado ‘quando se tece o argumento de que a
posse da escrita permite que o possuidor, seja ele um indivíduo ou um povo, dedique
suas faculdades mentais ao exercício de operações mais abstratas, superiores’, o que
não ocorreria com as sociedades e com os indivíduos que não dominam a tecnologia
da ou de uma escrita.
Por fim, resta-nos assinalar que, para estabelecer uma diferença entre os indivíduos
e os grupos letrados em não-letrados (ou pré-letrados), o modelo autônomo utiliza
a alfabetização como critério. Assim, é possível afirmar que, nesse modelo, existe
também um vínculo estreito entre alfabetização e letramento, já que nessa perspectiva
a condição de letrado estaria diretamente relacionada à condição de alfabetizado. Ou
seja, a alfabetização seria condição sine qua non para a inserção em práticas de letra-
mento: ser letrado seria possuir o estado ou a condição daquele que não apenas sabe
ler e escrever ou, ainda, que não apenas conhece a tecnologia da escrita, mas também
utiliza competentemente essa tecnologia em suas atividades sociais (SOARES, 1999).
Cada uma das premissas elencadas acima que caracteriza o modelo autônomo de
letramento está em franca oposição à forma de conceber o letramento e seus efeitos tal
como postulado pelo modelo ideológico. Vejamos o porquê dessa oposição.
No modelo ideológico, postula-se que as práticas de letramento são ‘social e cultu-
ralmente determinadas’ e, como tais, ‘os significados específicos que a escrita assume
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para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida’ Letramento,
alfabetização
(KLEIMAN, 1995, p. 21). Ou seja, nesse modelo focaliza-se a dimensão social da escrita e escrita
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LETRAMENTO deslocados de seus usos e de suas condições de produção e focalizados principalmen-
E ESCRITA
te com base apenas em seus aspectos materiais (sonoro, no caso dos textos falados;
gráfico, no caso dos textos escritos).
Outro fator que caracteriza o modelo ideológico de letramento é a crítica veemente
que se faz nesse modelo à vinculação entre letramento e desenvolvimento cognitivo,
ou ainda à vinculação causal do letramento com as ideias de progresso, civilidade e
modernidade. Critica-se, assim, o fato, amplamente aceito por aqueles que assumem o
modelo autônomo de letramento, de que existiria um grande divisor entre os grupos
que detêm a escrita e dominam a sua tecnologia e os que não dispõem de uma escrita
ou ainda não dominam a tecnologia da escrita da sociedade da qual participam. Na
visão de Street (1994),
A perspectiva assumida pelo modelo ideológico supõe ainda que, nas diferentes
sociedades, existiriam práticas de letramento culturalmente consideradas como do-
minantes. Para Street (1994), o fato de um tipo ou forma cultural de letramento apre-
sentar-se como dominante geralmente seria disfarçado por trás de discursos públicos
de neutralidade e tecnologia, nos quais o letramento dominante seria apresentado
como o único tipo de letramento possível. Essa interpretação leva à impossibilidade de
colocar no mesmo patamar o letramento dominante e outras práticas de letramento,
como práticas de letramento associadas a crianças, a diferentes classes econômicas e
a grupos étnicos. Estas últimas, mesmo quando reconhecidas, são apresentadas como
inadequadas ou tentativas falhas de alcançar o letramento dominante. As pessoas que
praticariam esses letramentos ‘alternativos’ seriam concebidas como culturalmente
desprovidas. Contrariamente, com a proposição de Street (1989; 1994), que supõe
a existência de diferentes letramentos, poderíamos passar a pensar o letramento tido
como padrão como apenas uma variedade dentre muitas outras.
Convém salientar, por fim, que, no modelo ideológico as relações entre alfabeti-
zação e letramento são também de natureza diversa daquelas pensadas pelo modelo
autônomo: considera-se que a alfabetização é apenas uma forma das diversas que o
letramento pode assumir. Nega-se, também, a possibilidade de existir, em sociedades
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que se organizam a partir de um sistema de escrita, iletrados, pré-letrados ou ainda Letramento,
alfabetização
não-letrados, uma vez que não associa diretamente alfabetização a letramento. e escrita
(1) focaliza a dimensão técnica e individual do (1) focaliza a dimensão social do letramento,
letramento; considerando e reconhecendo uma multiplici-
dade de letramentos;
(2) considera as atividades de leitura e escrita (2) considera que as atividades de leitura
como neutras e universais, não submetidas às e escrita estão fortemente ligadas a contextos
injunções culturais e às estruturas de poder culturais específicos e que estão sempre e
que configuram essas atividades no contexto necessariamente vinculadas às relações de
social; poder e às ideologias que permeiam a vida em
sociedade;
(3) defende que a escrita seria um produto, (3) defende que a escrita seria um processo,
sempre idêntico a si mesmo; sempre determinado por suas condições
sócio-históricas de produção;
(4) defende uma visão dicotômica das rela- (4) questiona a visão dicotômica das relações
ções fala/escrita; fala/escrita;
(5) correlaciona aquisição de um sistema de (3) crítica a ideia de que a aquisição de uma
escrita com desenvolvimento cognitivo; escrita causaria desenvolvimento cognitivo.
Mostra que ‘ ‘as habilidades cognitivas’ que
o modelo autônomo de letramento atribui
universalmente à escrita é consequência da
escolarização’ (KLEIMAN, 1995, p. 25);
(6) atribui qualidades intrínsecas à escrita (6) nega veementemente a existência de qua-
e, por extensão, aos povos ou grupos que a lidades intrínsecas à escrita e, por extensão,
possuem; aos povos ou grupos que a possuem;
(7) promove uma correlação direta entre (7) considera que a alfabetização é apenas
alfabetização e letramento, considerando uma das diversas formas que o letramento
a primeira como condição essencial para o pode assumir. Nega a possibilidade de existir,
segundo. Ainda: concebe como letrado o em sociedades que se organizam também a
indivíduo que não apenas domina as habilida- partir de um sistema de escrita, iletrados, pré-
des de ler e escrever, mas também as usa de -letrados ou ainda não-letrados, uma vez que
forma competente. não reduz o letramento à alfabetização.
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LETRAMENTO Fundamental e Médio fundamentou-se em uma concepção dicotômica das relações
E ESCRITA
entre fala/escrita, concepção que está subjacente ao modelo autônomo de letramento,
e essa forma de interpretação das relações entre fala e escrita levou e tem levado a uma
série de consequências nefastas para o ensino, tais como o desenvolvimento de uma
visão preconceituosa da fala, como o lugar do erro e do caos gramatical e, analoga-
mente, o desenvolvimento de uma visão idealizada e simplificadora da escrita: a escrita
como o lugar da norma e do bom uso da língua.
5 Essa utopia refere-se à crença, compartilhada ainda hoje ‘pela maioria (ou a totalidade) dos
governos, tanto de países em desenvolvimento como de países industrializados, e pela própria
Unesco’, de que a alfabetização constituiria ‘o passo central num processo de ‘modernização’
dos cidadãos’ (GNERRE, 2003, p. 44). Ou seja, a crença de que a alfabetização seria condição
indispensável para que ‘grandes massas mergulhadas nas culturas orais abandonassem seus va-
lores e formas de comportamento ‘pré-industrial’, se tornassem mais disponíveis para processo
de industrialização e cooperassem de forma ativa no processo de expansão do poder do Estado’
(GNERRE, 2003, p. 44-45).
20
propulsora do ‘esclarecimento das massas iletradas’ (MORTATTI, 2006, p. 2). Letramento,
alfabetização
Nesse Brasil que despontava no final do século XIX, a leitura e a escrita, antes e escrita
[...] o mundo público da cultura letrada, que instaura novas formas de relação
dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história e com o próprio Estado;
um mundo novo que instaura, enfim, novos modos e conteúdos de pensar,
sentir, querer e agir (MORTATTI, 2006, p. 3).
21
LETRAMENTO Certamente, compreender essa dimensão mais tecnológica da escrita é uma das condi-
E ESCRITA
ções necessárias para a alfabetização, mas não é a única!
O contato com as pesquisas de Emília Ferreiro, bem como o desenvolvimento de
um número significativo de pesquisas sobre o chamado processo de aquisição da es-
crita em áreas com a Linguística, a Psicolinguística e a Educação permitiram, também,
formular a proposição geral de que a alfabetização, longe de ser meramente um pro-
cesso de apropriação de um código, envolveria um complexo processo de elaboração
de hipóteses, pelas crianças, relativo ao modo de enunciação escrito7. Assim, passamos
a considerar que a criança não era apenas uma espectadora do processo de alfabeti-
zação, aquela que receberia as indicações sobre como proceder para realizar as ativi-
dades de leitura e escrita. Ela também tinha/tem um papel a desempenhar, ou ainda
uma posição a ocupar na tarefa de inserir-se no funcionamento simbólico da escrita8.
É importante observarmos que as críticas à concepção de alfabetização supracitada
se estenderam aos métodos de alfabetização fundados exclusivamente na sistemati-
zação das relações entre fonemas e grafemas, métodos que, genericamente, foram
nomeados como ‘métodos tradicionais’ ou ‘método da cartilha’. É justamente a crítica
aos limites desses métodos que é tematizada nas duas tirinhas a seguir.
Nessas tirinhas, o humor emerge a partir da sátira a práticas de alfabetização (infe-
lizmente ainda em voga!) calcadas em uma concepção reducente da escrita e de seu
funcionamento, que a circunscreve a apenas uma de suas múltiplas dimensões: sua
dimensão ‘mais tecnológica’, ignorando outras características importantes da escrita
(e das atividades de ler e escrever), tal como o vínculo necessário que existe entre a
escrita e suas condições sócio-históricas de produção.
Por fim, resta destacar que o processo de re-significação da alfabetização ocorrido a
partir da década de 1980 foi atravessado, também, pela emergência dos estudos relati-
vos ao letramento. É inegável que os estudos sobre o letramento vêm desempenhando
um papel importante na forma como entendemos a alfabetização e também no papel
da escolarização na formação de nossos alunos. Podemos asseverar que o modo como
concebemos a alfabetização tem sido favoravelmente abalado, dentre outros fatos, pela
constatação de que a escola não é a única responsável pela inserção da criança em prá-
ticas letradas. Ela é, apenas, uma das agências de letramento (KLEIMAN, 1995). Assim,
7 Obviamente, cada uma dessas áreas do saber assumiu um posicionamento sobre a natureza
desse processo de elaboração de hipóteses, que, em função dos propósitos deste capítulo, não
iremos explorar.
8 Para uma discussão referente aos efeitos não positivos da divulgação das pesquisas de Emília
Ferreiro nos meios educacionais brasileiros, cf. Leite (2006).
22
as práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social Letramento,
segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram alfabetização
e escrita
classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam
a ser [...] apenas um tipo de prática – de fato, a dominante – que desenvolve
alguns tipos de habilidades mas não outros e que determina uma forma de
utilizar o conhecimento sobre a escrita (KLEIMAN, 1995, p. 19).
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LETRAMENTO Para elucidar a afirmação feita no parágrafo anterior, pensemos no modo como esco-
E ESCRITA
la, no processo de ensinar as crianças a ler e a escrever, tem lidado com o saber linguís-
tico que elas possuem, antes mesmo de chegarem aos bancos escolares. Sabemos que
todos os falantes de uma língua detêm um amplo e sofisticado conhecimento implícito
sobre a sua língua materna9. Esse conhecimento, no entanto, raramente corresponde
aos conhecimentos linguísticos que são explorados pela escola. Isso porque, com o no-
bre propósito de levar as crianças a dominar a chamada linguagem padrão (ou a escrita
padrão), a escola tem ignorado as diferenças (sócio) linguísticas de seus alunos10.
O problema reside no fato de que o padrão linguístico que a escola tão ferozmente
tem defendido, em geral, só é conhecido por aquelas crianças integrantes das camadas
socioculturais mais prestigiadas, em que esse padrão constitui a base da comunicação
cotidiana (MATTOS e SILVA, 2004, p. 29). O mesmo não ocorre com as crianças de
classes menos favorecidas, que detêm um conhecimento linguístico oriundo de outras
variedades do português brasileiro, menos prestigiadas e quase que completamente
ignoradas pela escola.
Assim, dentre todas as dificuldades enfrentadas pelas crianças para compreender
a organização e o funcionamento do nosso sistema de escrita (como, por exemplo, as
dificuldades de compreensão das relações que devem ser estabelecidas entre fonemas
e grafemas, das regras ortográficas etc.), as crianças falantes das variedades não-padrão
do português, durante todo o processo de alfabetização, ainda precisam enfrentar e
entender, na maioria das vezes sozinhas, as diferenças entre a sua variedade linguística
e a variedade linguística preferida pela escola.
OS DIFERENTES LETRAMENTOS
Para finalizar nossas reflexões, retomamos, aqui, a seguinte pergunta, formulada
por Rojo (2009, p. 107): ‘[...] o que significa trabalhar a leitura e a escrita para o mun-
do contemporâneo?’
Com base na proposta fundadora de Street (1989) de que os significados e os
usos do letramento estão ligados a contextos culturais específicos e que as práticas
24
de letramento estão sempre vinculadas às relações de poder e às ideologias que per- Letramento,
alfabetização
meiam a vida em sociedade, os estudos mais recentes sobre o letramento têm sa- e escrita
25
LETRAMENTO universais, vernaculares e autônomos sempre em contato e conflito’ (ROJO, 2009, p.
E ESCRITA
106-107). Falta a ela que se dê conta disso e passe a buscar meios de viabilizar o
trabalho com esses diferentes letramentos, de modo a não apagar as diferenças e os
conflitos!
Referências
26
Letramento,
MORTATTI, M. R. L. História dos métodos de alfabetização no Brasil. Portal MEC alfabetização
e escrita
Seminário Alfabetização e Letramento em debate, Brasília, DF, v. 1, p. 1-16, 2006.
Proposta de Atividade
1) Qual concepção de escrita subjaz à atividade leitura e escrita hipotética descrita abaixo?
Justifique a sua resposta com base nas informações com as quais você entrou em contato
neste capítulo.
A professora Anastácia, que atua na etapa inicial do Ensino Fundamental (primeira série),
propõe as seguintes atividades para trabalhar com as relações entre fonemas e grafemas,
com o objetivo de permitir que as crianças possam iniciar o processo de codificação/deco-
dificação que o sistema de escrita exige:
27
LETRAMENTO c) Vamos ler as sílabas:
E ESCRITA
PA PE PI PO PU
TA TE TI TO TU
2) A partir da leitura dos fragmentos abaixo, redija um texto dissertativo sobre o seguinte tema
– no desenvolvimento do tema proposto, utilize as reflexões que fez a partir da leitura
deste capítulo:
Fragmento 01
‘[...] o vigor do conceito de letramento para a reflexão pedagógica não reside apenas no
reconhecimento da centralidade da leitura e da escrita no interior da própria escola, mas
principalmente no fato de que ele instiga os educadores – e a sociedade de maneira geral
– a refletir sobre a relação entre a cultura escolar e a cultura no seu conjunto, sobre as
relações entre os usos escolares e os demais usos sociais da escrita’ (RIBEIRO, 2004, apud
MORTATTI, 2004, p. 116).
Fragmento 02
‘Parafraseando Soares, entendo que a inserção do indivíduo no mundo da escrita impli-
ca a apropriação do sistema convencional e ortográfico – objeto da Alfabetização – e,
simultaneamente, o desenvolvimento das habilidades relacionadas com os usos sociais
de leitura e escrita – objeto do Letramento. Para as práticas pedagógicas, no entanto,
coloca-se o seguinte desafio: se a Alfabetização implica a aquisição do sistema de es-
crita alfabético e ortográfico, como desenvolver esse processo sem retornar às práticas
tradicionais, o que representaria, certamente, um retrocesso histórico?’ (LEITE, 2006,
p. 455-456).
Anotações
28
2 Teorias de
aprendizagem
da língua escrita
29
LETRAMENTO cultural de um povo. O propósito que inicialmente levou o homem a usar as marcas
E ESCRITA
gráficas foi registrar e comunicar. A transmissão gráfica materializa a mensagem e per-
mite ao emissor conectar-se com o receptor a distância, superando limites de tempo e
espaços; a escrita é também associada à capacidade humana de memorização, e como
consequência, de desenvolvimento de sua sociedade. Neste sentido, além da função
comunicativa, a função social do registro desempenha um papel importante na es-
crita de listas que auxiliam nossa capacidade mnemônica, na organização de ideias
que desejamos expressar, na forma de expressão artística e até como forma de clarear
nossos pensamentos e sentimentos. Enfim, escrevemos para nos comunicar, interagir,
registrar, externar nossas ideias, posicionamentos e sentimentos.
A invenção do livro e sobretudo da imprensa são grandes marcos da história da hu-
manidade – ‘os jornais e revistas são hoje tão comuns quanto a comida. Para a maioria
das pessoas, além de aprender a andar e a falar, é comum aprender a ler e a escrever’
(CAGLIARI, 2001, p. 112). Assim, entendemos o quanto a escrita é um componente
indispensável na sociedade moderna, e certamente continuará sendo às sociedades
futuras. Para o linguista Luiz Antônio Marcuschi (2001), ela é mais do que uma tecno-
logia: tornou-se um bem social em nosso cotidiano e pode ser vista como essencial à
própria sobrevivência no mundo moderno.
Em uma sociedade letrada, a escrita permeia quase todas as práticas sociais e até
mesmo aqueles que não dominam as convenções do código escrito ‘estão sob a in-
fluência do que contemporaneamente se convencionou chamar de práticas de letra-
mento’ (MARCUSCHI, 2001, p. 19), isto é, de práticas de leitura e de produção escrita
em situações determinadas na sociedade. É difícil imaginar uma pessoa que não con-
viva e interaja com as práticas sociais de escrita. Mesmo quem não domina o código
escrito, de alguma maneira, tem contato com essa modalidade da linguagem e forma
de representação do mundo em seu dia a dia: vê cartazes nas ruas, identifica nomes
de produtos nos rótulos, sabe tomar um ônibus para chegar a um destino, é capaz
de fazer compras no supermercado, pagar contas, enfim, vivendo em uma sociedade
permeada pelo código gráfico, dificilmente uma pessoa pode ficar indiferente a todas
as práticas sociais de leitura e de escrita.
Ao discutir sobre o assunto, Tfouni (1995) postula que o processo de difusão e
adoção da linguagem escrita, historicamente, sempre esteve relacionado a fatores po-
lítico-econômicos. A autora acrescenta que a escrita pode ser considerada ‘uma das
causas principais do aparecimento das civilizações modernas e do desenvolvimento
científico, tecnológico e psicossocial da sociedade nas quais foi adotada de manei-
ra ampla’ (TFOUNI, 1995, p. 14). Em contrapartida, não podemos nos esquecer de
fatores como as relações de poder e dominação implícitos na utilização restrita ou
30
generalizada de um código escrito. Dessa maneira, a escrita não é um produto neutro, Teorias de
aprendizagem
já que tem por finalidade a difusão de ideias, mas, por outro lado, pode ocultá-las no da língua escrita
intuito de garantir o poder àqueles que a ela têm acesso. Para exemplificar, vejamos o
que a autora diz a esse respeito:
Serve como ilustração o caso da Índia, onde a escrita esteve intimamente ligada
aos textos sagrados, que só eram acessíveis aos sacerdotes, e aos ‘iniciados’, isto
é, aqueles que passavam por um longo processo de ‘preparação’ (que era, no
fundo, a garantia de que poderiam ler esses mesmos textos guardando segredo
deles) (TFOUNI, 1995, p. 11).
31
LETRAMENTO homens pré-históricos) que você pode pesquisar em livros de História ou em páginas
E ESCRITA
da Internet, como podemos visualizar na Figura 1.
Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=pintura+rupestre&espv=2&biw=1034&bih=591&site=we-
bhp&source=lnms&tbm=isch&sa=X&sqi=2&ved=0ahUKEwit2evj257QAhUEjpAKHSnOAEsQ_AUIBigB&dpr=1>.
Acesso em: 09 nov. 2016.
Em seguida a essa fase, a humanidade evoluiu para uma etapa de escrita mnemôni-
ca, ou seja, um desenho representava sempre o mesmo objeto ou pessoa para todos os
que compreendiam esse sistema de representação, e o homem passou a fazer registros
para a posteridade usando símbolos semelhantes aos utilizados por outros homens,
empregados com a ajuda da memória. Nesse contexto, para Barbosa (1991), ‘de indi-
vidual o símbolo adquire característica social’, o que constitui fator fundamental para
o desenvolvimento da escrita.
A fase seguinte é a da logografia: um desenho do sol significa ‘sol’, mas também
significa ‘brilhante’, ‘branco’ ou ‘dia’ – a mesma representação pictográfica possui
diversos significados, mas ainda dissociados do idioma, da fala, do oral.
Os sumérios – povo que viveu há cerca de 5 mil anos, na antiga região da Mesopo-
tâmia, hoje deserto do Iraque – foram os responsáveis pelo desenvolvimento comple-
to da escrita, por volta de 3.100 a.C., pois sua escrita era a ideográfica, isto é, composta
de sinais representando ideias e não palavras (BARBOSA, 1991).
A ideia de escrever partiu da Suméria e se difundiu rapidamente pelo mundo, sur-
gindo inúmeras variações do sistema de escrita, cada um buscando adaptar os símbolos
32
gráficos e seus usos para representar melhor a própria língua (CAGLIARI, 1999). Alguns Teorias de
aprendizagem
estudiosos, todavia, acreditam que afora a Suméria outros países tenham desenvolvido da língua escrita
O modo mais antigo de escrever era utilizado para fazer a contabilidade. As primei-
ras manifestações conhecidas da escrita, de acordo com Cagliari (1999), continham
números e a figura dos objetos que estavam sendo contados; posteriormente, surgi-
ram os nomes dos envolvidos em transações comerciais e finalmente as explicações
sobre as contas, constituindo-se, assim, em textos. Cagliari (1999) expõe que a escrita
diferencia-se do desenho quando este deixa de representar um objeto e passa repre-
sentar uma palavra de uma dada língua. Vejamos uma explicação que este autor traz
a respeito:
33
LETRAMENTO Surge então o nosso alfabeto em torno de 1350 a.C., na Grécia, onde foram co-
E ESCRITA
locadas letras representando consoantes e vogais, uma ao lado da outra, compondo
sílabas. Devido a isso, muitos estudiosos postulam que o alfabeto propriamente dito,
tal qual nós o conhecemos, foi inventado pelos gregos. Até então, sumérios, fenícios,
semitas e egípcios não usavam as letras na representação das palavras. Para o conjunto
de letras, os gregos chamaram-no de um nome composto pelas duas primeiras letras:
o ‘alfabeto’ (alfa + beta, ou seja, o a e o b tais como os conhecemos atualmente, na
língua portuguesa, derivada da língua latina, que por sua vez sofreu influência da
língua dos etruscos). O alfabeto grego passou a ter letras representando mais de um
segmento fonético das sílabas, como as letras z = [dz], x [ts], c [ks], y [ps].
O documento mais antigo da escrita grega são inscrições em um vaso, datando dos
séculos IX a.C. Apenas no século IV a.C. os gregos conseguiram uniformizar os dife-
rentes usos das letras em um alfabeto de 24 letras, com uma ortografia estabelecida,
formando a escrita do grego clássico. O tipo atual dos caracteres gregos foi lançado em
1660 (CAGLIARI, 1999).
Podemos observar, na Figura 2, exemplos do alfabeto grego antigo.
34
O alfabeto foi uma invenção muito importante, mas na prática encontrou dificul- Teorias de
aprendizagem
dades. Em consonância com Cagliari (1999), o objetivo do alfabeto ‘era escrever as da língua escrita
palavras pelos sons das consoantes e das vogais, e isso, em princípio, era muito fácil:
bastava observar os sons enquanto se falava’. No entanto, a representação das pala-
vras era o mais interessante, visto que são elas que atribuem significados à linguagem,
e não as vogais e as consoantes. Para Cagliari:
35
LETRAMENTO
E ESCRITA
Tendo apresentado um breve histórico da língua, discorreremos a seguir sobre
a concepção de ensino-aprendizagem da escrita da educadora Emilia Ferreiro,
que muito contribuiu para refletirmos sobre modo como ensinamos e acerca
da construção da escrita.
36
as crianças interpretam o ensino que recebem, transformando a escrita con- Teorias de
vencional dos adultos. Sendo assim, produzem escritas diferentes e estranhas. aprendizagem
da língua escrita
Essas transformações descritas por Ferreiro são brilhantes exemplos dos es-
quemas de assimilação piagetianos. O professor ensina, por exemplo, a palavra
GATO e alguns alunos escrevem GO ou AO ou GT. O que Ferreiro desvenda é
a razão destas transformações e a lógica empregada pela criança, ou os proces-
sos psicológicos que produzem tais condutas. A escrita produzida é fruto da
aplicação de esquemas de assimilação ao objeto de aprendizagem (a escrita),
formas utilizadas pelo sujeito para interpretar e compreender o objeto (AZE-
NHA, 1998, p. 36-37).
Nesse contexto, o sujeito aprendiz de escrita – que antes era visto como aquele que
aprende a escrever por imitação, por repetição, por associação, que copiava letras, síla-
bas, palavras e frases – passou a ser visto sob outro enfoque. Desconsiderava-se o fato
de que a criança, ao chegar à escola, já havia tido contato com a escrita em diferentes
situações vividas.
Lembremos o que discutimos anteriormente: vivemos em uma sociedade letrada,
na qual estão imbuídas práticas sociais de leitura e de escrita e em meio a tais práti-
cas a criança tem uma experiência pessoal com a escrita. A criança não é uma ‘folha
em branco’ a ser preenchida à medida que se passam os anos escolares. Para Soares
(1999, p. 52), a criança é um sujeito que aprende ‘atuando ‘com’ e ‘sobre’ a língua
escrita, buscando compreender o sistema, levantando hipóteses sobre ele, com base
na suposição de regularidades nele, submetendo a prova essas hipóteses e supostas
regularidades’.
Dessa maneira, entendemos que o contato da criança com a linguagem escrita tem
início em suas primeiras tentativas de compreender o universo letrado que a rodeia,
antes mesmo de ela entrar para a escola, e essa compreensão varia de acordo com sua
convivência no universo do mundo escrito. Em consonância com Cagliari (2001, p.
121), quando uma criança ainda não alfabetizada desenha algumas letras agrupadas de
forma aleatória e diz que está escrevendo, ela já possui uma ideia do que seja a escrita,
ela já sabe que a escrita é representada por sinais gráficos, mesmo não sabendo ainda
que tais sinais possuem uma ordem de colocação e significação. Com base no exposto,
acreditamos na importância de se considerar no processo de ensino da escrita aquilo
que o aprendiz já sabe, e a partir de seu conhecimento e de suas tentativas levá-lo a
construir novos saberes:
37
LETRAMENTO escrever, ousando escrever, fazendo uso de seus conhecimentos prévios sobre
E ESCRITA a escrita, levantando e testando hipóteses sobre as correspondências que até
então eram impostas a ela, como controle do que ela podia escrever, porque
só podia escrever depois de já ter aprendido (SOARES, 1999, p. 52-53, grifos
da autora).
Afirmamos neste capítulo que a pesquisa de Emília Ferreiro teve valor significativo
na maneira de olhar para o ensino da escrita. Na obra ‘Psicogênese da Língua Escri-
ta’ (1985), elaborada em parceria com Ana Teberosky, as autoras demonstram que
as crianças não chegam à escola desconhecendo totalmente a língua escrita. Nessa
obra, Ferreiro e Teberosky apresentam os resultados de pesquisa experimental entre
os anos de 1974 a 1976, realizada com crianças de classe social baixa. As autoras parti-
ram do problema da situação educacional da América Latina, que possuía um grande
número de crianças que não aprendiam a ler e a escrever. Em contato direto com as
crianças, elas buscavam resposta para o fracasso escolar. Reunindo os conhecimentos
da psicolinguística e da teoria psicológica e epistemológica de Jean Piaget, as autoras
mostraram como a criança constrói diferentes hipóteses sobre o sistema de escrita,
antes mesmo de chegar a compreender o sistema alfabético. De acordo com a teoria
apresentada pelas duas pesquisadoras, a criança passa por quatro fases até que esteja
alfabetizada:
a) Nível pré-silábico: é a busca de diferenciação entre as escritas produzidas pelo
aprendiz sem preocupação com as propriedades sonoras, ou seja, a criança não
relaciona as letras com os sons da fala;
b) Nível silábico: caracteriza-se pela correspondência entre a escrita das palavras
e suas propriedades sonoras. A criança trabalha com a hipótese de que a escrita
representa os sons da fala;
c) Nível silábico-alfabético: nesse nível, ocorre a transição da hipótese silábica
para a alfabética. Aqui existem duas formas de correspondência entre sons e
grafias silábica e alfabética. É chamada de silábica porque a sílaba é o som emi-
tido por uma emissão de voz e de alfabética porque ocorre a análise, pela crian-
ça, dos elementos sonoros da língua e tem nas letras o seu correspondente – o
conjunto de letras é o alfabeto. Em outras palavras, a criança escreve parte da
palavra aplicando a hipótese silábica (para escrever uma sílaba é preciso apenas
uma letra) e parte da palavra aplicando os fonemas da sílaba. A criança, então,
começa a perceber que escrever é representar progressivamente as partes sono-
ras das palavras;
d) Nível alfabético: caracteriza-se pela correspondência de sons e de grafias. Há a
compreensão de que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores
38
sonoros menores que a sílaba, e que uma palavra, se possuir duas sílabas, exi- Teorias de
aprendizagem
gindo, portanto, dois movimentos para ser pronunciada, necessitará mais que da língua escrita
O gato e a menina
Gugu é o gatoda menina.
A menina dá águaao gato
O gato mia... mia...
Amenina é fofa... fofa...
O gatonão gosta de água
(SOARES, 1999, p. 54).
O que percebemos nesse exemplo é que a criança parece só escrever palavras que
já conhece, certamente retiradas de textos de cartilhas e já ‘treinadas’ em sala de aula.
O que faz é imitar e reproduzir algo já pronto; as palavras e frases são ‘controladas’.
Em seu texto, quase inexistem erros ortográficos, há uma série de frases curtas, com
ideias soltas, sem uma sequência lógica ou narrativa. Nessa concepção de escrita, não
39
LETRAMENTO há espaço para um sujeito que levanta hipóteses acerca do processo de construção do
E ESCRITA
sistema de escrita e, se o aprendiz o faz, fica oculto e consequentemente, para Soares
(1999, p. 54), ‘a professora não pode identificá-los e, portanto, não pode orientar
a criança em seu processo de construção do conhecimento e na testagem de suas
hipóteses’.
O segundo exemplo de produção escrita pode ser chamado de escrita espontânea
– a criança lança no papel o que tem a dizer espontaneamente, independente se já
‘aprendeu’ as palavras ou não. O que importa, em um primeiro plano, é a produção
de sentidos.
A Lulu
A Lulu e uma cachora levado
Ela cebe core muito e
late muito a jente asve-
se fica com dor di cabesa.
Um dia eu estava na casa
da minha tia e estava andano
na hora que eu estava
destraida a Lulu pasou
e gal um foguete e eu cai.
(SOARES, 1999, p. 55).
(A Lulu é uma cachorra levada. Ela sempre corre muito e late muito e a gente
às vezes fica com dor de cabeça. Um dia, eu estava na casa da minha tia e estava
andando. Na hora que eu estava distraída, a Lulu passou igual a um foguete e
eu caí).
Esse texto foi produzido após a seguinte situação: houve na sala de aula uma dis-
cussão sobre animais de estimação que as crianças conheciam e sobre as experiências
com esses animais; em seguida, a produção escrita foi proposta como alternativa para
que todos contassem sua história. Nessa produção, a criança usa as palavras de que
necessita para contar aquilo que tem a dizer. Ela tem liberdade para se expressar,
diferentemente do exemplo anterior, já que aqui parece não haver um ‘controle’. O
que ocorre é uma interação em que as crianças socializam suas experiências e por isso
escrevem com um determinado objetivo. Aquilo que poderia ser considerado ‘erro’,
em outras concepções de escrita, permite ao professor conhecer o processo pelo
qual a criança está se apropriando do sistema escrito e as hipóteses que o aprendiz
40
está formulando. Tudo isso se apresenta como sintoma revelador do processo de Teorias de
aprendizagem
construção da escrita. da língua escrita
Não é nosso objetivo nesse momento fazer uma análise exaustiva do texto produzi-
do pela criança. Por isso, reportamo-nos novamente à Soares (1999) para exemplificar
as hipóteses do aprendiz. Para a autora, as grafias de ‘cachoro’, ‘core’, ‘pasou’ revelam
que a criança ainda não ‘descobriu’ que entre vogais o som de ‘r forte’ (ver quadro
p. 69), é representado por ‘rr’, e o fonema /s/ é representado por ‘ss’. Em relação ao
fonema /s/, o texto indica que a criança usa diferentes grafemas (na escrita alfabética,
grafema corresponde à letra) para representá-lo, talvez tendo já percebido que, no
sistema de escrita, mais de um grafema pode representar um mesmo som [s]. Soares
(1999) destaca como exemplo a grafia de ‘destraída’ usada no texto ‘A Lulu’ que:
indica que a criança criou uma regularidade: já terá percebido que a pronún-
cia [dis] se deve grafar muitas vezes como des (pronuncia-se, pelo menos no
dialeto de Minas Gerais, que esta criança usa, ‘disboatado’, ‘discalço’, ‘discan-
sado’, mas escreve-se desbotado, descalço, descansado), e aplica a ‘regra’ à
palavra ‘distraída’ grafando ‘destraída’ – trata-se de um caso de hipercorreção
(SOARES, 1999, p. 55-56).
41
LETRAMENTO Sociointeracionismo
E ESCRITA
Diante das discussões aqui realizadas, consideramos que no processo de apropriação
da linguagem escrita há um processo de construção individual do conhecimento que
supõe uma interação do sujeito da aprendizagem com seu objeto – a escrita. Ao mesmo
tempo, também, devemos considerar nesse processo a interação social, pois toda escrita,
e consequentemente seu aprendizado, precisam ser permeados por um sentido, por um
desejo, e implica ou pressupõe um interlocutor (SMOLKA, 1991, p. 69).
Nessa perspectiva, concordamos com Smolka (1991) quando preconiza que quan-
do a escola alfabetiza a criança por meio de memorização de sílabas e palavras, acaba
provocando o esquecimento, pois não ocorre a construção do saber. Um exemplo é
quando a criança, ao retornar à escola depois das férias, nas séries iniciais, parece ter
esquecido o que aprendeu no ano anterior. Isso acontece porque as crianças são ensi-
nadas a repetir e a reproduzir palavras e frases feitas. Assim, na visão da autora, a alfabe-
tização não pressupõe apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavras e orações.
Implica mais profundamente ‘uma forma de interação com o outro pelo trabalho de
escritura – para quem eu escrevo o que eu escrevo e por quê?’ (SMOLKA, 1991, p. 69).
Diante disso, enfatizamos que a interação tem papel relevante nas relações de ensi-
no, e para discutir tal questão vamos conhecer as ideias de Vygotsky.
42
do sujeito (a criança) com o meio (casa, escola). Considera que a presença do interlo- Teorias de
aprendizagem
cutor – o outro – é importante à criança desde seus primeiros dias de vida, uma vez da língua escrita
que é pelo contato com outros indivíduos que ela se desenvolve. É por intermédio do
contato com o outro – mãe, pai, irmão, professor, colegas de sala de aula – pela convi-
vência, pelas instruções que a criança recebe, que ela pode se tornar capaz de realizar
tarefas que sozinha não realizaria. Para a pesquisadora Mayrink-Sabinson (1997, p. 39),
o papel do outro é o de ‘prover o que seria imitado, incorporado pela criança, num
momento de seu desenvolvimento, e, mais tarde, internalizado por ela, transformado
e modificado como novo conhecimento’.
Nos primeiros anos de educação escolar, o processo de aquisição da língua escrita é
fundamental para propiciar a inserção da criança na cultura letrada, possibilitando-lhe
condições de realizar operações mentais, além de capacitá-la à aprendizagem progres-
siva de conceitos, o que resulta no desenvolvimento das formas sociais de produção
de sua sociedade.
A apropriação da língua escrita para a criança significa mais do que apreender um
instrumento de comunicação: constitui-se na possibilidade de construir estruturas de
pensamento capazes de realizar abstrações necessárias à apreensão da realidade con-
creta (KLEIN, 1996).
Vygotsky, ao refletir sobre a relação entre aprendizado escolar e desenvolvimento
tendo como paradigma a aquisição da linguagem, apregoa que uma característica es-
sencial do aprendizado é o fato de despertar no aprendiz diversos processos internos
de desenvolvimento (teoria chamada de zona de desenvolvimento proximal), capazes
de operar apenas quando a criança interage com pessoas em seu ambiente ou quan-
do coopera com seus companheiros. Vygotsky considera que, quando internalizados,
esses processos passam a integrar as aquisições do desenvolvimento independente da
criança.
Em outras palavras, Vygotsky identifica dois níveis de desenvolvimento: o nível real,
já adquirido, que determina aquilo que a criança é capaz de fazer sozinha, e o nível po-
tencial, que se refere à capacidade de aprender com outra pessoa. Assim, na escola, o
papel do professor é essencial para intermediar entre o nível de desenvolvimento real
da criança até sua área de desenvolvimento potencial. Esse caminho, chamado de zona
de desenvolvimento proximal, deve ser, portanto, na escola, mediado pelo professor.
Nas palavras de Vygotsky, a zona de desenvolvimento proximal é:
43
LETRAMENTO Neste sentido, o aprendizado para Vygotsky não é o desenvolvimento, mas quando
E ESCRITA
o aprendizado é organizado de modo adequado resulta em desenvolvimento mental e
passa a movimentar vários processos de desenvolvimento que, de outra maneira, não
aconteceriam. O autor explica que ‘o aprendizado é um aspecto necessário e universal
do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas
e especificamente humanas’ ( VYGOTSKY, 2002, p. 117).
Para Tfouni (1995), ‘a alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto apren-
dizagens de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem’, o
que tem sido levado a efeito por meio da escolarização, da instrução formal.
Sobre a língua escrita, Vygostky (2002) ressalta que aprender a escrever significa
‘passar à linguagem abstrata, à linguagem que utiliza não as palavras, mas as represen-
tações das palavras’ e ainda que significa a ‘simbolização dos símbolos sonoros, isto é,
à simbolização de segundo grau’ (MELO, 2003, p. 47).
Outro aspecto da língua escrita destacado por Vygostky é que nesta há ausência de
um interlocutor. A linguagem escrita é, por conseguinte, um discurso-monólogo, com
um interlocutor imaginário ou apenas figurado. E essa particularidade da língua escrita
é relevante quando relacionada à outra particularidade: a motivação da escrita.
Vygotsky argumenta que quando duas pessoas estabelecem diálogo,
Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar em rela-
ção ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da
criança. Ensina-se às crianças a desenhar letras e construir palavras com elas,
mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de
ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal
[...] O que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas
a escrita de letras ( VYGOTSKY, 1991, p. 57).
44
Neste sentido, para Vygotsky a escola deve ensinar às crianças a pensar sobre o que Teorias de
aprendizagem
escrevem, a atribuir uma significação real para a sua escrita, e não apenas a decodi- da língua escrita
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, procuramos apresentar, ainda que de modo sucinto, as teorias da
aprendizagem da escrita, tomando por base autores como Emília Ferreiro e Lev Seme-
novich Vygotsky. Vimos também a relevância da língua escrita na sociedade, bem como
fizemos um breve resgate histórico da escrita, com o objetivo de levar você, aluno-pro-
fessor, a se inteirar desses fatos, aprimorando seus conhecimentos.
Esperamos que a leitura e o estudo capítulo possam auxiliá-lo em sua prática do-
cente, em especial durante a alfabetização dos alunos, etapa tão importante na vida de
uma pessoa, cujo aprendizado irá se refletir ao longo de toda a sua vida adulta.
45
LETRAMENTO
E ESCRITA
Referências
CAGLIARI, L. C. Breve história das letras e dos números. In: CAGLIARI, M. C.;
CAGLIARI, L.C. Diante das letras: a escrita na alfabetização. Campinas, SP: Mercado
de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB). São Paulo: Fapesp, 1999. p. 163-185.
KLEIN, L. R. Alfabetização: quem tem medo de ensinar? São Paulo: Cortez, 1996.
46
SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo Teorias de
aprendizagem
discursivo. São Paulo: Cortez, 1991. da língua escrita
<http://scholar.google.com.br/scholar?q=aprendizagem+da+linguagem+escrita&
hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart>. Acesso em: 09 nov. 2016.
Proposta de Atividade
47
LETRAMENTO
E ESCRITA
Anotações
48
3 Elementos de
fonologia, fonética
e algumas questões
relacionadas à
alfabetização
49
LETRAMENTO do aparelho fonador e a produção do som, a definição de Fonologia, de fonema e suas
E ESCRITA
classificações e representações. Em seguida, abordamos a Fonética e a representação
dos sons, para, depois, apresentarmos alguns aspectos fonológicos e fonéticos concer-
nentes ao processo de alfabetização.
50
Para produzirmos os sons de nossa fala, precisamos atuar sobre a corrente de ar Elementos de fonologia,
fonética e algumas
expelida pelos pulmões, gerando obstáculos a essa corrente e criando ressonâncias questões relacionadas à
alfabetização
(modificações às vibrações da corrente de ar). Nesse processo, os órgãos componentes
do aparelho fonador têm as seguintes funções:
- os pulmões, os brônquios e a traqueia: são os órgãos respiratórios que permi-
tem que a corrente de ar chegue até a laringe. Ao expirarmos, os pulmões libe-
ram o ar, que passa pelos brônquios, sobe pela traqueia até chegar na laringe;
- a laringe, a glote e as cordas vocais: são órgãos importantes na fonação, pois é
na laringe que efetivamente começa a produção do som vocal. A laringe, situada
na parte posterior da traqueia, é um tubo cartilaginoso, no qual encontramos
a glote, um pequeno orifício em forma de pirâmide, situado entre as cordas
vocais. As cordas vocais, por sua vez, são as membranas que cobrem o músculo
vocal e cujas bordas se constituem por um tecido elástico. Do fechamento ou
abertura da glote depende a sonoridade dos sons. Se a glote estiver aberta, o
ar passa livremente, sem vibrar as cordas vocais, pois elas estão frouxas, produ-
zindo sons chamados surdos ou desvozeados. Se a glote estiver fechada, o ar
faz vibrar as cordas vocais, pois elas estão retesadas, tensas, produzindo os sons
sonoros ou vozeados. Para sentirmos as vibrações das cordas vocais, podemos
colocar os dedos um pouco abaixo da região do pomo-de-adão (ou gogó) e
pronunciarmos o primeiro som da palavra ‘Zeca’. Ao pronunciarmos o som cor-
respondente à letra ‘z’ na escrita, como se fosse um zumbido, sentiremos uma
pequena vibração, pois esse som é sonoro ou vozeado. Mas se pronunciarmos
o primeiro som da palavra ‘seca’, correspondente à letra ‘s’ na escrita - somente
o correspondente à letra ‘s’ e não ‘se’ - não sentiremos tal vibração, pois, na
pronúncia desse som, a glote está aberta e as cordas vocais frouxas, o que per-
mite a livre passagem do ar. Esse é um exemplo de som surdo ou desvozeado.
Vejamos agora uma representação da glote:
52
A Figura 3 nos mostra também a cavidade nasal ou fossas nasais, que funcionam Elementos de fonologia,
fonética e algumas
como ressonadores, quando produzimos sons nasais. A produção desses sons está questões relacionadas à
alfabetização
relacionada ao papel da úvula – chamada popularmente de campainha –, que é a
terminação do palato mole. Quando a úvula está levantada, ela encosta-se na parede
da faringe, impedindo que a corrente de ar passe pela cavidade nasal. Então, o ar sai
somente pela boca, o que caracteriza os sons orais. Quando a úvula está abaixada,
parte da corrente de ar vai para as fossas nasais, causando a ressonância característica
dos sons nasais.
Vejamos as representações desses dois processos nas seguintes figuras:
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LETRAMENTO Agora que sabemos mais sobre a constituição do aparelho fonador e sobre o seu
E ESCRITA
funcionamento, podemos discutir outros conceitos que interessam para o nosso estu-
do, começando por Fonologia e fonema.
A FONOLOGIA E O FONEMA
A Fonologia, para Cagliari (1997, p. 43), preocupa-se com os sons de uma língua,
mas do ponto de vista de sua função: ‘Ela se ocupa dos aspectos interpretativos dos
sons, de sua estrutura funcional nas línguas’. Isto quer dizer que a fonologia está preo-
cupada com as funções diferenciais e com a distribuição dos elementos do significante.
Ou seja, para que certo grupo de sons evoque determinado significado, é necessário
que ele se diferencie, pelo menos em um ponto, de outro grupo.
Para explicarmos melhor o que foi apresentado anteriormente, precisamos ter claro
que a transcrição dos sons é feita de forma específica nos estudos linguísticos. Quando
tratamos de transcrição fonológica, os símbolos que indicam os sons diferenciais da
língua são representados entre barras oblíquas: / /, e a sílaba tônica de cada palavra é
indicada com a colocação do sinal diacrítico antes dela. Por exemplo, a transcrição
da palavra casa é: /z/. O diacrítico indica que ao dizermos a palavra /z/, a
sílaba // é pronunciada com mais força do que a outra /z/.
Com a posse desses conhecimentos, podemos retornar à ideia do que estuda a Fo-
nologia. As palavras ‘pato’ e ‘bato’ são duas palavras diferentes da língua portuguesa,
pois remetem a dois significados distintos. O que nos faz diferenciar essas duas pala-
vras são os sons /p/ e /b//. Da mesma forma, se compararmos // (‘seco’ - ad-
jetivo) e // (‘seco’ - verbo), percebemos que são duas palavras, cuja diferença
se faz devido à mudança das vogais. Embora na escrita não haja diferença entre as le-
tras das palavras, ao dizê-las, o falante percebe que a diferença de significado se faz em
função de uma mudança na pronúncia, entre as vogais /e/ (fechada) e // (aberta). Por
isso, dizemos que /p/, /b/, /e/ e // são fonemas do Português. Logo, podemos definir
fonema como a unidade mínima de som distintiva, pois ele tem função diferenciadora.
Cagliari (1997) afirma que os falantes do português podem pronunciar a palavra
‘escada’ com a vogal // ou //, na primeira sílaba. Como a ocorrência de // ou //
nesse contexto não muda o significado, para a Fonologia ambos têm o mesmo valor.
Mas em um contexto de sílaba tônica, por exemplo em ‘vi’ e ‘vê’, a ocorrência de //
ou // tem valor distintivo, pois se houver a troca de um pelo outro, há mudança de
significado, surge uma palavra nova. Aqui o som é usado para distinguir palavra, por-
tanto, é fonema.
Por esse processo de comparação entre palavras que se diferenciam por um único
som, podemos identificar todos os fonemas da língua portuguesa. Quando trocamos
54
um som por outro em um determinado contexto, estamos fazendo o chamado teste Elementos de fonologia,
fonética e algumas
de comutação. Com ele podemos descobrir se um som tem valor distintivo de palavras questões relacionadas à
alfabetização
ou não.
Vamos nos deter primeiramente na distinção dos fonemas consonantais da língua
portuguesa e sua classificação. Da mesma forma como mostramos que /p/ e /b/ são
fonemas do Português, comutando ‘pato’ a ‘bato’, podemos, por exemplo:
• opondo ‘rota’ a ‘roda’ , identificamos os fonemas /t/ e /d/;
• opondo ‘cola’ a ‘gola’, identificamos os fonemas /k/ e /g/;
• opondo ‘faca’ a ‘vaca’, identificamos os fonemas /f/ e /v/;
• opondo ‘caça’ a ‘casa’, identificamos os fonemas /s/ e /z/;
• opondo ‘chato’ a ‘jato’, identificamos os fonemas // e //;
• opondo ‘murro’ a ‘muro’, identificamos os fonemas // e /r/;
• opondo ‘mala’ a ‘malha’, identificamos os fonemas // e //
• opondo ‘mata’ a ‘nata’, identificamos os fonemas // e //;
• opondo ‘manha’ a ‘mana’, identificamos os fonemas // e //.
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LETRAMENTO 3) o modo de articulação. Quando a corrente de ar chega à boca, ela pode ser
E ESCRITA
totalmente bloqueada, ou comprimida de vários modos, sendo parcialmente bloquea-
da. Resultam daí os seguintes modos de articulação em português:
• Fonemas oclusivos. São os resultantes do bloqueamento total, mas sempre mo-
mentâneo, da corrente de ar, em alguma parte da boca. São oclusivos, em por-
tuguês, os seguintes fonemas: /p/, /t/, /k/, /b/, /d/, /g/.
- Fonemas fricativos. São resultantes do efeito de atrito a que se submete a cor-
rente de ar. Na boca, os articuladores modificam o percurso da corrente de
ar, que é parcialmente bloqueada e se desvia, formando, pela constrição nos
articuladores, um chiamento perceptível. São fricativos os fonemas: /f/, /s/, //,
/v/, /z/, //.
• Fonemas líquidos, subdivididos em:
- c1) fonemas vibrantes. São aqueles resultantes de brevíssimos e repetidos blo-
queamentos parciais da corrente de ar, provocados por movimentos vibratórios
da língua ao colidir com os dentes, do véu palatino, ou da úvula. Em Português,
diferenciamos a vibrante simples (com uma ou duas vibrações /r/) da vibrante
múltipla (mais de duas vibrações /).
- c2) fonemas laterais. São resultantes do bloqueamento parcial da corrente de
ar, que se escoa pelos lados da língua. São fonemas laterais: /l/, //.
- Fonemas nasais. Os fonemas nasais são também classificados quanto ao modo
de articulação, pois pensa-se na maneira como o som se escoa. Para Lopes
(1985), tais fonemas resultam da passagem de parte da corrente de ar para as
fossas nasais, que atuam, conjuntamente com a boca, como caixa de ressonân-
cia. São fonemas nasais: /m/, /n/, //.
56
Elementos de fonologia,
O�������� F��������� fonética e algumas
N����� L������� V��������
Surda - Sonora Surda – Sonora questões relacionadas à
alfabetização
L������ /p/ /b/ /f/ /v/ /m/
Finalizada a classificação das consoantes, podemos passar para o estudo das vogais.
As vogais são fonemas sonoros produzidos pela livre passagem da corrente de ar
pela boca ou pela boca e as fossas nasais. Isso quer dizer que, ao contrário das con-
soantes, as vogais não têm ponto de articulação. Os articuladores movimentam-se, mas
somente para modificar a caixa de ressonância bucal. As vogais também se caracterizam
por apresentarem o maior abrimento dos órgãos articulatórios, o que significa que ao
pronunciarmos as vogais, a boca fica normalmente aberta ou entreaberta. Além disso,
os fonemas vocálicos apresentam o maior número de vibrações das cordas vocais e
são os únicos fonemas do português a integrar sílaba, isto é, sem vogal, não há sílaba.
Para Cagliari (1997), no ensino de Português é prática comum, enfatizada princi-
palmente na alfabetização, dizer que as vogais do português são a, e, i, o, u. Quando
afirmamos isso, estamos nos baseando no sistema de escrita e não no de fala. Para
descobrirmos quais são os fonemas vocálicos da língua portuguesa, utilizamos o teste
de comutação, como fizemos para descobrirmos os fonemas consonantais. Mostramos
anteriormente que comutando ‘lá’ e ‘lã’, identificamos as vogais /a/ e /ã/. Da mesma
forma,
• opondo ‘sede’ (substantivo) a ‘cede’ (verbo), identificamos os fonemas // e
//;
• opondo ‘mito’ a ‘moto’, identificamos os fonemas // e /o/;
• opondo ‘juta’ a ‘junta’, identificamos os fonemas /u/ e //;
• opondo ‘mote’ a ‘monte’, identificamos os fonemas // e //;
• opondo ‘pensa’ a ‘pinça’, identificamos os fonemas // e //.
Vemos, portanto, que o Português possui sete vogais orais (//, //, //, //, //,
//, //) e cinco nasais (/ã/, //, //, //, //).
As vogais do Português classificam-se quanto a quatro critérios:
1) a zona de articulação. A língua realiza movimentos horizontais na boca (para
frente e para trás), mas não chega a estabelecer um ponto de articulação como nas
consoantes. Por isso é que dizemos zona de articulação. São elas:
• anteriores. Quando a língua vai em direção aos dentes e alvéolos: //, //, //;
• central. Quando a língua permanece no centro da boca: //;
• posteriores. Quando a língua vai em direção ao palato mole: //, //, //.
57
LETRAMENTO 2) a elevação da língua. Esse quesito refere-se à altura da língua, isto é, à maior ou
E ESCRITA
menor proximidade da língua em relação ao palato (céu da boca):
• altas : /i/, /u/;
• médias : //, //, //, //;
• baixa : //.
Grau de Elevação
Anteriores Central Posteriores Anteriores Central Posteriores
abertura da língua
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a vogal, o ditongo se diz crescente, como em ‘quase’, ‘linguiça’, ‘frequente’. Para o Elementos de fonologia,
fonética e algumas
autor, em Português, apenas os ditongos decrescentes são estáveis. Mas a linguagem questões relacionadas à
alfabetização
coloquial apresenta estabilidade nos ditongos que têm a semivogal // precedida de
// (grafado q), ou de /g/. Assim: ‘quase’, ‘quando’, ‘enxaguando’, equestre’, ‘tranqui-
lo’, quinquênio’.
Vejamos alguns exemplos de ditongos orais decrescentes: ‘pai’: //; ‘mau’:
//; ‘sei’: //; ‘réis’: //; ‘meu’: //; ‘céu’: //; ‘viu’: //;
‘boi’: //; ‘herói’: //; ‘vou’: //; ‘azuis’: //; ‘sol’: //.
Agora, de ditongos nasais decrescentes: ‘mãe’: //; ‘mão’: //; ‘põe’:
//; ‘muito’: //.
O tritongo caracteriza-se por ser formado de semivogal + vogal + semivogal. De
acordo com a natureza oral ou nasal de seus componentes, classificam-se também os
tritongos em orais e nasais.
São tritongos orais: ‘Uruguai’: //; ‘enxaguei’: //, ‘delinquiu’:
//; ‘enxaguou’: //.
São tritongos nasais: ‘saguão’: //; ‘enxaguam’: //; ‘delin-
quem’: //; ‘sagões’: //.
59
LETRAMENTO deseja, por algum motivo, chamar a atenção. Essa transcrição se realiza entre parênte-
E ESCRITA
ses quadrados ou colchetes [ ], por exemplo: [] (‘dente’).
Quando pronunciamos uma palavra, nossa percepção da fala sofre influência do
sistema fonológico. Um falante do português sabe produzir o som [p] e sabe que este
som ocorre em palavras como ‘pata’, ‘pingo’. Da mesma forma, conhece o som [b]
em palavras como ‘bata’, ‘bingo’. Os segmentos fônicos [p] e [b] ocorrem, portanto,
em Português e a diferença entre eles constitui uma diferença fonológica, pois cor-
responde a uma diferença de significado das palavras ‘pata’ e ‘bata’, ‘pingo’ e ‘bingo’.
Sabemos que os dois sons possuem características comuns e opõem-se apenas pelo
fato de o [p] ser surdo e o [b], sonoro.
No entanto, a mesma unidade fonológica não se manifesta sempre como a mesma
unidade fonética. O fonema pode variar na sua realização. Aos vários sons que realizam
o mesmo fonema damos o nome de variantes ou alofones, que podem ser de vários
tipos: posicionais, regionais, estilísticas, livres ou facultativas. As variantes posicionais
ou combinatórias são as que mais interessam aos foneticistas, pois decorrem do pró-
prio contexto fônico em que o fonema é realizado. Por exemplo, na região noroeste
do Paraná, os fonemas /t/ e /d/ apresentam uma realização africada diante de // (‘tira’
[], ‘ditado’ [], ‘limite’ []) e uma realização alveolar
ou dental diante das outras vogais (‘tudo’ [], ‘tela’ [], ‘doca’ [],
‘dado’ []). A variação estilística ocorre quando, por intenção estilística, a arti-
culação se enriquece de traços excepcionais, por exemplo, quando pronunciamos o
nome de alguém com o alongamento de uma vogal, para indicar surpresa. Já as va-
riantes livres, como o nome traduz, dependem dos hábitos articulatórios diversos dos
falantes da língua, ou seja, são específicas daqueles falantes.
Apresentamos, a seguir, exemplos de realizações fonéticas dos fonemas. As des-
crições baseiam-se em Silva (2001), mas salientamos que nos detemos em mostrar
aquelas que são suficientes para formar o aparato teórico necessário aos professores
alfabetizadores. Assim:
60
[d] oclusiva alveolar (‘duas’) ou dental (‘deu’) vozeada Elementos de fonologia,
fonética e algumas
/d/ questões relacionadas à
alfabetização
[] africada alveolopalatal vozeada (‘dia’)
/s/ [s] fricativa alveolar ou dental desvozeada (‘sala’, ‘caça’, ‘cedo’, ‘paz’)
61
LETRAMENTO
E ESCRITA Silva (2001) afirma que as vogais [, , , ], quando pretônicas, são geralmente
pronunciadas de maneira idêntica em qualquer variedade do português brasileiro. No
entanto, podemos ter variações dialetais, nas quais o as ocorrências de [] e [] (‘d[]
dal’, ‘m[]delo’) podem ser substituídos por [] e [] ( ‘d[]dal’, ‘m[]delo’) ou []
e [] (‘d[]dal’, ‘m[]delo’). Logo, a variação entre os segmentos vocálicos [, ] –
[, ] – [, ] marca, sobretudo, variação dialetal. Para a autora, a pronúncia típica
do ‘a’ ortográfico é []: abacate.
As vogais postônicas finais sofrem também influência dialetal, mas sua realização
é distinta das pretônicas e tônicas. Segundo Silva (2001), a maioria dos falantes do
português brasileiro pronuncia as vogais postônicas finais como [, , ], portan-
to nos restringiremos a essas indicações das vogais átonas finais, por exemplo, ‘jure’
[], ‘gota’ [], ‘mato’ [].
Nossa descrição fonética considera a realização das vogais tônicas e postônicas me-
diais [, , , , , , ] e as nasais [, , , , ].
Sistematizando as realizações que se diferenciam, temos:
62
(p. 131). Como nos ditongos a articulação parte de um ponto dentro da área vocálica Elementos de fonologia,
fonética e algumas
e se dirige a outro, ou seja, os ditongos representam uma única vogal que muda de questões relacionadas à
alfabetização
qualidade durante sua articulação, eles são representados na transcrição fonética por
dígrafos – e os tritongos por trígrafos – nos quais aparecem os símbolos dos valores
mais salientes da percepção dessas articulações. Entre as possibilidades de transcrição
fonética de ditongos e tritongos, citamos alguns exemplos como exemplificação:
63
LETRAMENTO
E ESCRITA que, para ensinar com mais clareza diferenças de valores entre sons, como [] e [],
[] e [], o alfabetizador pode propor aos alunos que considerem listas de pares mí-
nimos, como ‘pata’ e ‘bata’, ‘faca’ e ‘vaca’, ou ainda formas alternantes (em variação),
tais como ‘percossu’ e ‘pescoço’, ‘paia’ e ‘palha’. Desta forma, com a elaboração de
atividades que aliem as técnicas de análise fonológica com uma boa descrição fonética,
o professor facilita o processo de aprendizagem por parte dos alunos, que receberão
‘uma explicação melhor de como a fala, a escrita, a leitura e a língua portuguesa fun-
cionam’ (p. 93).
Lemle (1987), ao tratar das capacidades essenciais para a alfabetização, coloca
como primeiro problema do aprendiz o de compreender que existe uma relação de
simbolização entre as letras e os sons da fala. O fato de os segmentos gráficos repre-
sentarem segmentos de som é uma característica de todos os sistemas alfabéticos de
escrita, entre os quais se encontra o nosso. Em um determinado momento do proces-
so de alfabetização, o aprendiz capta a ideia ou levanta a hipótese de que cada letra
é símbolo de um som e cada som é simbolizado por uma letra. Para a autora, essa
‘revelação’ deve ser seguida de alguns ajeitamentos, para que o alfabetizando conheça
a verdade, ou seja, que as relações entre sons e letras são mais complexas.
A autora postula que há uma gradação entre os tipos de relação, e os sistematiza
em:
• relação de um para um: cada letra com seu som, cada som com sua letra;
• relações de um para mais de um, determinadas a partir da posição: cada
letra com um som numa dada posição, cada som com uma letra numa dada
posição;
• relações de concorrência: mais de uma letra para o mesmo som na mesma
posição.
Compreender a gradação que existe entre os três tipos de relações pode auxiliar o
alfabetizador em seu trabalho, pois ela implica também uma gradação de facilidade na
aprendizagem das letras. Por isso passamos a explicar cada uma delas, o que também
vai tornar mais claras as observações de Cagliari (1997) colocadas no início deste item.
Lemle (1987) alega que o primeiro grande progresso na aprendizagem ocorre
quando o alfabetizando percebe que há, na escrita, representação de sons por letras.
Essa construção inicial do aprendiz é a mais simples possível: a da correspondência
biunívoca entre os sons e as letras. Mas são poucos os casos em que essa relação ideal
acontece.
64
Vejamos o quadro: Elementos de fonologia,
fonética e algumas
questões relacionadas à
alfabetização
SONS LETRAS
[] p
[] b
[] t
[] d
[] f
[] v
[] nh
[] lh
[] a
65
LETRAMENTO em vez de porta), trocas na ordem das letras (parto em vez de prato, sadia em vez de
E ESCRITA
saída), falhas decorrentes do conhecimento ainda inseguro do formato de cada letra
(rano em vez de ramo, laqis em lugar de lápis, eua em lugar de lua)’.
(Dona Baratinha
Ela estava no quintal
E achou duas moedas de ouro
Ela ficou rica
E queria se casar)
66
traço distintivo negligenciado no geral é o papel das cordas vocais, que diferencia as Elementos de fonologia,
fonética e algumas
consoantes desvozeadas/surdas das vozeadas/sonoras. Isso se deve principalmente à falta questões relacionadas à
alfabetização
de discriminação da sonoridade, pois a percepção da sonoridade exige uma perspicácia
auditiva bem desenvolvida, visto que a vibração das cordas vocais se processa na laringe.
Observemos o texto a seguir:
O texto indica que a aluna tem dificuldade em diferenciar os sons surdos dos so-
noros, o que a leva a uma falha ortográfica, pois escreve as palavras com a consoante
que representa o som que ela supõe pronunciar. O conjunto de palavras com as falhas
que estamos discutindo mostra que houve uma substituição das consoantes sonoras
pelas surdas correspondentes: // por //: ‘tia’, ‘acortafa’, ‘tesenho’; // por
//: ‘acortafa’, ‘tomafa’ ‘princafa’; e // por //: ‘princafa’, ‘poneca’. En-
contramos em textos de outros alunos não só exemplos similares aos apresentados,
como também: ‘fiachei’, ‘jocar’, ‘sebra’, que correspondem, respectivamente, às subs-
tituições de // por //, // por // e // por //. Para Cagliari (1997), até mesmo
crianças que pronunciam corretamente podem, na hora de escrever, distorcer letras.
Isso se deve ao fato do alfabetizando não ter como ponto de referência o conhecimen-
to prévio da escrita da palavra e resolver sua dúvida pronunciando-a, mas geralmente
o faz em voz baixa, sussurrada. E como o sussurro é mais semelhante ao som desvo-
zeado/surdo, grafa incorretamente a palavra.
Em seu estudo, Carvalho (1996) acompanha um aluno com as falhas apontadas
acima. Seguindo os pensamentos da autora, não devemos sempre considerar que o
aprendiz não esteja alfabetizado quando apresenta tais falhas, pois, embora a escrita
ainda não seja ortográfica e a distorção certamente dificulte a compreensão, é preciso
verificar se o aluno compreende o mecanismo da escrita, lê corretamente e, o mais
importante, interpreta o que lê. De acordo com Carvalho (1996, p. 108), para que o
aluno portador de distorção de sonoridade consiga progredir e eliminar a distorção,
67
LETRAMENTO torna-se necessário a presença marcante de um alfabetizador consciente do sistema
E ESCRITA
ortográfico e, principalmente, do fonológico. Ainda segundo a autora, o professor
deve dar espaço e condições para a progressão do aprendiz.
Embora tenhamos nos detido nos casos mais frequentes – que envolvem o papel
das cordas vocais, principalmente o ensurdecimento – salientamos que outras distor-
ções podem ocorrer, envolvendo, por exemplo, fonemas que se diferenciam somente
pelo ponto ou o modo de articulação. Vimos anteriormente o caso de ‘aso’ (achou),
no qual o aprendiz substituiu as letras ‘ch’ por ‘s’, devido à distorção do ponto de
articulação posterior // pelo anterior /s/.
Lemle (1987) apresenta outras falhas típicas do aprendiz que está retido na etapa
em que considera biunívoca a relação entre os sons e as letras, que denomina falhas
de segunda ordem. São alguns exemplos: ‘matu’ em vez de ‘mato’; ‘bodi’ em vez de
‘bode’; ‘tenpo’ em vez de ‘tempo’; ‘azma’ em vez de ‘asma’; ‘genrro’ em vez de ‘genro’;
‘eles falão’ em vez de ‘eles falam’. O aluno que apresenta tais tipos de falhas ignora as
particularidades na distribuição das letras e, na leitura, pronuncia cada letra particula-
rizando seu valor central. Assim sua escrita é como uma transcrição da fala.
A autora reforça a importância de o alfabetizador ter bem claras em sua mente as
particularidades nas variedades de correspondências entre sons e letras, pois fatal-
mente algum aprendiz fará questões do tipo: ‘Se eu falo [], por que é errado
escrever deiz?’; ‘Eu falo [] e não []. Por que dadu não é a escrita certa?’;
‘[] e [] se falam do mesmo jeito. Por que tenho que escrever pau e sal?’.
Lemle (1987) preconiza que o professor deve estar apto a explicar que a posição deve
ser levada em conta para a correspondência entre os sons e as letras, caso contrário
poderá cometer o equívoco e o desrespeito de responder: ‘a gente é que fala errado,
porque o certo é falar [], [] e []’.
Essas observações nos levam ao segundo tipo de relações entre sons e letras colo-
cadas anteriormente, isto é, as relações de um para mais de um, determinadas a
partir da posição.
A primeira possibilidade dessas relações é a de uma mesma letra representar dife-
rentes sons, dependendo da posição em que aparece.
Vejamos o quadro apresentado a seguir, baseado em Lemle (1987), mas adaptado
de acordo com nossas transcrições:
68
Elementos de fonologia,
LETRA SONS POSIÇÃO EXEMPLOS
fonética e algumas
questões relacionadas à
[] Início de palavra Sala, sapo
alfabetização
[] Intervocálico Casa, duas aves
s Diante de consoante surda ou em final de Resto, duas casas
[]
palavra, no falar carioca
69
LETRAMENTO
E ESCRITA [] qu Diante de a, o Aquário, aquoso
qu Diante de e, i Cinquenta, equino
70
Passamos agora a tratar do terceiro tipo de relação entre os sons e as letras: as rela- Elementos de fonologia,
fonética e algumas
ções de concorrência, nas quais há mais de uma letra para o mesmo som na mesma questões relacionadas à
alfabetização
posição.
Atentemos para o quadro seguinte:
Esses tipos de relações são as mais difíceis para o aprendiz, pois duas letras estão
aptas a representar o mesmo som, na mesma posição, e não temos nenhum princípio
fônico capaz de guiar quem escreve. Para Lemle (1987, p. 23-24), nesses casos ‘a única
maneira de descobrir a letra que representa dado som numa palavra na língua escrita
é recorrer ao dicionário. E decorar, aprendendo a grafia das palavras, uma a uma,
guardando-as na memória’.
O alfabetizando que já incorporou a terceira versão da teoria da correspondência
entre sons e letras, cometerá apenas as chamadas falhas de terceira ordem, que se
limitam às trocas de letras concorrentes, tais como: ‘açado’, ‘trese’, ‘chícara’, ‘giló’,
‘gou’, entre outras.
71
LETRAMENTO A autora aponta quatro sugestões para que o alfabetizador auxilie o alfabetizando
E ESCRITA
a integrar em seu conhecimento ortográfico os fatos resumidos nesse último quadro:
• fornecer aos seus questionadores as respostas corretas às perguntas que lhe
são feitas, ou seja, responder que há casos na língua em que letras diferentes
representam o mesmo som. Lemle (1987) recomenda que os professores te-
nham também pelo menos um pouco de conhecimentos históricos da língua;
• conduzir, de forma organizada, o aluno a saber exatamente quais são os con-
textos nos quais duas ou mais letras concorrem na representação do mesmo
som;
• depreender palavras de letras de músicas ou de poesias conhecidas, procu-
rando saber com que letras essa palavra é representada na escrita, com a
finalidade de ajudar a fixação do conhecimento das relações de concorrência;
• não dar muita importância a erros de escrita dessa espécie, pois gradativa-
mente, com a prática de leitura e escrita, tais erros diminuirão. A autora con-
sidera essa a mais importante recomendação, porque a preocupação com a
ortografia não deve chegar a inibir a expressão escrita do aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os conhecimentos de Fonologia e Fonética apresentados tiveram por objetivo
formar um arcabouço teórico capaz de auxiliar os alfabetizadores em seu trabalho.
Eles propiciam que o professor seja capaz de diagnosticar e avaliar os problemas
que seus alunos demonstram na escrita bem como as hipóteses que levantam na
construção de seu conhecimento. Assim, o bom alfabetizador conseguirá saber em
que momento o aluno se encontra e preparar atividades que conduza seu aprendiz
à etapa seguinte.
Mostramos algumas questões de Fonologia e Fonética relacionadas à alfabetiza-
ção, baseando-nos principalmente no trabalho de Lemle (1987). O que apresenta-
mos aqui não tem a pretensão de abarcar todas as relações entre as duas disciplinas
e a alfabetização. Além disso, há outras disciplinas da Linguística que também devem
ser consideradas quando pensamos no processo de alfabetização, tais como a Mor-
fologia, a Sociolinguística, a Psicolinguística. O alfabetizador não tem que ser um
linguista, mas cremos que conhecer alguns conceitos básicos dessa ciência, prin-
cipalmente de Fonologia e Fonética, é crucial para seu bom exercício profissional.
72
Elementos de fonologia,
fonética e algumas
questões relacionadas à
Referências alfabetização
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização & Lingüística. 10. ed. São Paulo: Scipione,
1997.
CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da Língua Portuguesa. 11. ed. Rio de Ja-
neiro: FAE, 1986.
73
LETRAMENTO
E ESCRITA
Proposta de Atividade
(Eu viageu para Cianorte na gasa da minha vó Ela mora no sitio éla tem balango,
rio, pé-de laranga limão e mai um monte de fruta e nadava todo dia no riu meu
primos tanben ia durmi figava muito frio).
Anotações
74
4 Ortografia nas
séries iniciais do
ensino fundamental
A ortografia, embora seja um conteúdo familiar visto desde os primeiros anos es-
colares, envolve grandes lacunas teóricas e práticas na formação e no trabalho dos
professores das séries iniciais do Ensino Fundamental. É comum encontrarmos esses
profissionais se questionando sobre o que é ortografia, se devem ou não corrigir os
erros dos alunos, quando e como corrigi-los e, principalmente, se a ortografia é algo
que se ensina ou se o aluno deve decorar as palavras para não errar mais.
Diante dessas questões, frequentemente nos deparamos com duas atitudes opos-
tas: ou o professor supervaloriza o erro, marcando e cobrando dos alunos a escrita
ortográfica desde o começo de sua alfabetização, ou, pelo contrário, não dá a devida
atenção aos aspectos ortográficos do ensino da escrita, considerando que os alunos
‘naturalmente’ melhoram com o tempo. Ambas as atitudes geram problemas na apren-
dizagem da escrita.
Estudos referentes ao tema, como o de Morais (2003), mostram que os erros orto-
gráficos funcionam como uma fonte de censura e discriminação tanto na escola quan-
to fora dela. Na escola, por exemplo, a competência textual do aluno é muitas vezes
confundida por certos professores com o seu rendimento ortográfico, o que quer
dizer que diversos profissionais acabam ignorando os avanços do aprendiz em sua ca-
pacidade de produzir textos em função dos erros que ele comete. A supervalorização
do erro leva alguns alunos a diminuir conscientemente o tamanho de suas produções
textuais, a partir do princípio de que se escrevendo menos se erra menos. Além disso,
essa atitude propaga a ideia de que ‘escrever certo é difícil’, que só ‘gente inteligente é
que consegue’, contribuindo para a continuidade de preconceitos referentes à língua
portuguesa e a seus usuários na escola.
75
LETRAMENTO No entanto, a atitude inversa também não é produtiva, porque a ortografia é uma
E ESCRITA
convenção social e, por isso, o aprendiz precisa de auxílio para entendê-la, ou seja, o
conhecimento ortográfico é algo que o aluno não pode descobrir por si só, sem ajuda.
Neste sentido, o papel do professor é essencial, visto que ele pode conduzir o aluno
nesse processo de descoberta. Desprezar o erro, sem refletir sobre ele, pode fazer com
que o aprendiz não construa o conhecimento relativo àquela questão, perpetuando
o erro nas séries futuras. Não é raro vermos em textos de alunos que até mesmo já
saíram do Ensino Fundamental erros ortográficos que seriam facilmente corrigidos nas
séries iniciais se esses alunos tivessem refletido sobre aquele problema.
Os estudiosos dessa temática também salientam que o ensino de conteúdos orto-
gráficos na escola envolve diretamente não só os objetivos das atividades propostas
pelos educadores como também o domínio de conhecimentos referentes à fonética,
fonologia, escrita e ortografia desses professores. Assim, pretendemos aqui tentar res-
ponder aos questionamentos mais comuns dos profissionais do Ensino Fundamental
sobre ortografia, com o intuito de contribuir para a formação dos novos profissionais.
Salientamos que não nos propomos a dar receitas prontas de como trabalhar com
os conteúdos ortográficos, pois qualquer tentativa nessa direção falharia, pois é impos-
sível abranger todas as questões e problemas vivenciados pelos professores em sala de
aula. Ressaltamos ainda que não pretendemos fazer propostas de ensino inovadoras.
As ideias que apresentamos baseiam-se em trabalhos de especialistas que dedicam
anos de estudos a esse assunto.
Nosso ponto de partida é a compreensão de que o ensino de conteúdos ortográ-
ficos não deve se restringir à simples memorização, mas se basear em um trabalho de
reflexão que envolve professor e alunos. Para isso, nosso percurso passa pela discus-
são do que é a ortografia, pela abordagem do tema pelos Parâmetros Curriculares Na-
cionais (PCN) e por propostas de encaminhamentos para o trabalho desse conteúdo
na escola.
O QUE É ORTOGRAFIA?
Normalmente, ao procurarmos uma definição do que seja ortografia, somos re-
metidos à etimologia, isto é, à origem da palavra. A palavra ortografia vem do grego
orthographia (ortho = correta, graphia = escrita, logo ‘escrita correta’), para definir
um termo técnico, haja vista que não era usada na língua grega antiga. De acordo com
Cagliari (s/d), a nossa tradição escolar, baseada nos livros didáticos, nas gramáticas e
nos dicionários, fortaleceu o sentido tradicional de ortografia como a ideia de grafar as
palavras com as ‘letras corretas’ com as quais as pessoas escrevem a língua que usam.
Entretanto, para o autor, a definição por si mesma não aborda questões importantes
referentes à ortografia.
76
Para Cagliari (2009), uma de suas funções fundamentais é permitir a leitura. De- Ortografia nas
séries iniciais do
vemos lembrar que a escrita é uma representação gráfica que existe para permitir a ensino fundamental
leitura e sua unidade básica é a palavra. Todo sistema de escrita é controlado por uma
ortografia, porque sem ela a leitura de um texto escrito não seria feita de um modo
fácil e, por vezes, nem de modo correto, em função das formas diferentes que sua
escritura apresentaria.
Um outro aspecto refere-se ao fato de que a ortografia existe necessariamente para
neutralizar a variação linguística. Sabemos que todas as línguas variam devido ao seu
processo dinâmico de transformação, enquanto que a escrita é um meio permanente
de registro da fala. Para Cagliari [200-], as mudanças mais evidentes para os falantes
são as de natureza dialetal, seja geográfica, seja social. O autor exemplifica as variações
com exemplos, entre eles: no Rio de Janeiro, ouvimos alguém falar [], []
e []; as mesmas palavras são pronunciadas [] no sul do Brasil, []
numa variedade de Alagoas e Sergipe, e [] em uma variedade do Mato Grosso.
Cremos que esses exemplos são suficientes para demonstrar que, embora haja modi-
ficação na fala, as palavras são sempre escritas da mesma maneira, graças à ortografia:
‘tia’, ‘doido’ e ‘chuva’.
Assim, como a escrita sempre esteve vinculada à fala, em razão das variações dia-
letais, a escrita poderia se perder se tentasse representar a fala de cada usuário. Para
evitar esse possível caos, o sistema de escrita alfabético se transformou em alfabéti-
co-ortográfico (MASSINI-CAGLIARI, 2001, p. 30). Vemos, portanto, que a ortografia
cristaliza uma forma de escrita, isto é, congela uma sequência de letras que deve com-
por uma palavra, fazendo com que a escrita cumpra sua função de permitir a leitura,
sem precisar representar a fala ou mesmo o dialeto de cada falante. Por outro lado,
segundo Cagliari [200-] e Morais (2003), como é da natureza da ortografia não trazer
a fala de uma pessoa específica ou de um dialeto, ela permite que o leitor parta das
letras, descubra a palavra escrita e as leia em seu próprio dialeto, ou seja, a ortografia
permite, por exemplo, que falantes diferentes, ao ler um mesmo texto em voz alta,
tenham liberdade de pronunciar à sua maneira. O que queremos dizer é que uma pa-
lavra escrita ortograficamente como ‘balde’, pode ser lida como [], [],
[] ou [], dependendo do dialeto do falante.
Para finalizarmos este tópico, lembramos que a forma correta de se escrever uma
palavra, sua ortografia, é sempre uma convenção social, algo que foi definido social-
mente. Para Morais (2003), a ortografia é uma invenção relativamente recente. Em
relação à língua portuguesa, Kemmler (2009) faz um percurso histórico e mostra que
houve várias modificações nos sistemas ortográficos do Brasil e de Portugal, principal-
mente no século XX. No entanto, a ortografia dos dois países, embora muito parecidas,
77
LETRAMENTO só serão iguais, juntamente com a de outros países que usam a língua portuguesa,
E ESCRITA
quando o Novo Acordo Ortográfico passar a ser obrigatório.
OS PCN E A ORTOGRAFIA
Os PCN do primeiro e segundo ciclos iniciam sua abordagem sobre ortografia cri-
ticando a maneira como, de forma geral, ocorre o seu ensino, basicamente por meio
da apresentação e repetição de regras como se fossem fórmulas, da correção que o
professor faz de redações e ditados, procedida de tarefa na qual o aluno copia várias
vezes as palavras que escreveu errado.
De acordo com os PCN (BRASIL, 1997), a intervenção pedagógica na aprendiza-
gem da ortografia tem muito a contribuir, porque, ainda que tenha um forte apelo à
memória, esse aprendizado não é um processo passivo, mas uma construção indivi-
dual. Desse modo, preconizam que as estratégias didáticas para o ensino de ortografia
se articulem em torno de dois eixos básicos:
1) é preciso distinguir o que é ‘produtivo’ do que é ‘reprodutivo’ na notação da
ortografia da língua. Isso quer dizer que, no primeiro caso, é possível descobrir-
mos explicitamente regras geradoras de notações corretas, ou seja, é possível
identificarmos regularidades do sistema ortográfico. Logo, o papel do professor
é fazer com que os alunos explicitem suas suposições de como se escrevem as
palavras, refletindo sobre possíveis alternativas de grafia. Lemle (1987) lembra
que as relações em que uma mesma letra representa mais de um som ou em que
um mesmo som representa mais de uma letra, quando determinadas a partir
da posição, são regulares. Um professor bem preparado pode levar os alunos
a determinarem quais são as regras geradoras nesses contextos, isto é, quais
regras subsidiam a escrita de determinadas palavras. Segundo os PCN (BRASIL,
1997, p. 85), para isso é necessário fazer com que os alunos explicitem suas su-
posições de como se escrevem as palavras, ‘reflitam sobre possíveis alternativas
de grafia, comparem com a escrita convencional e tomem progressivamente
consciência do funcionamento da ortografia’. Para darmos um exemplo, é uma
regra geradora que as letras ‘qu’ terão sempre o som de /k/, quando seguidas
das letras ‘i’ e ‘e’: ‘quilo’ [], ‘queijo’ []. Chamamos a atenção para o
fato de que, embora para nós adultos escolarizados isso possa parecer fácil, para
a criança que está começando a escrever tudo é novo. Cagliari (1990) afirma
que o fato de a criança conhecer a palavra oralmente não significa que terá a
mesma facilidade e familiaridade para escrevê-la. Portanto, quando ela refletir
sobre esse problema ortográfico e tomar consciência dessa regra, deixará de
cometer erros de uso das letras ‘c’ e ‘qu’ nessa posição.
78
No que diz respeito ao caráter ‘reprodutivo’ na notação da ortografia da lín- Ortografia nas
séries iniciais do
gua, os PCN (BRASIL, 1997) chamam nossa atenção para os casos em que não ensino fundamental
79
LETRAMENTO AS REGULARIDADES E AS IRREGULARIDADES ORTOGRÁFICAS
E ESCRITA
Ao analisarmos produções textuais de alunos da primeira a quarta séries do En-
sino Fundamental1, encontramos erros ortográficos dos seguintes tipos: 1) *omem
(homem), 2) *sidade (cidade), 3) *converça (conversa) 4) *jente (gente), 5) *tronbou
(trombou), 6) *aceli (aquele), 7) *lobu (lobo), 8) *rroda (roda). Nos casos de ‘ho-
mem’, ‘cidade’, ‘conversa’ e ‘gente’ não existe uma regra ou um princípio ortográfico
capaz de nos ajudar a saber por que essas palavras se escrevem com ‘h’, ‘c’, ‘s’ ou ‘g’.
Essas ocorrências são de natureza irregular e o processo de ensino deve ser fundamen-
tando em recursos memorísticos e de leitura.
Os quatro últimos exemplos estão na particularidade regular, o que significa dizer
que, para além da memorização, temos como saber porquê se escreve com ‘m’ e não
‘n’ (trombou), com ‘qu’ e ‘e’ e não ‘c’ e ‘i’ (aquele), com ‘o’ e não ‘u’ (lobo), com ‘r’ e
não ‘rr’ (roda). Isto é, podemos depreender a regra que se aplica a várias ou todas as
palavras da língua nas quais essa dificuldade aparece, obtendo êxitos até em palavras
desconhecidas do aluno.
Compreender os dois fenômenos (regular e irregular) da ortografia permite que o
professor modifique o seu procedimento de intervenção ao não considerar que todos
os erros ortográficos possuem uma mesma natureza. Ao ficar clara essa distinção bási-
ca, o profissional pode proporcionar ao aprendiz a reflexão sobre as várias formas de
resolver suas dúvidas de ortografia, decidindo o que precisa memorizar e o que precisa
compreender.
As regularidades podem ser diretas, contextuais ou morfológico-gramaticais.
Nas regularidades diretas, encontramos o grupo de relações letra-som em que não
existe outra letra competindo para grafar determinado som, como, por exemplo, /p/,
/b/, /t/, /d/ etc. São os casos em que há, segundo Lemle (1987), uma correspondência
biunívoca entre os sons e as letras.
Nas regularidades contextuais, a palavra é o contexto que vai determinar qual le-
tra ou dígrafo (duas letras para representar um único som) deverá ser usado. Vejamos
o quadro a seguir:
1 Essas produções textuais fazem parte de um Banco de Dados de escrita infantil, organizado
pelo Grupo de Pesquisa Estudos sobre a linguagem (CNPq), coordenado pelo Prof. Dr. Lourenço
Chacon Jurado Filho.
80
Ortografia nas
séries iniciais do
Os principais casos de correspondências regulares contextuais em nossa ensino fundamental
ortografia são:
• o uso de R ou RR em palavras como ‘rato’, ‘porta’, ‘honra’, ‘prato’, ‘barata’
e ‘guerra’;
• o uso de G ou GU em palavras como ‘garoto’, ‘guerra’;
• o uso do C ou QU, notando o som /k/, em palavras como ‘capeta’ e ‘quilo’;
• o uso do J formando sílabas com A, O e U em palavras como ‘jabuti’, ‘joga-
da’ ou ‘cajuína’;
• o uso do Z em palavras que começam ‘com o som de Z’ (por exemplo,
‘zabumba’, ‘zinco’, etc.);
• o uso do S no início das palavras, formando sílabas com A, O e U, como em
‘sapinho’, ‘sorte’ e ‘sucesso’;
• o uso de O ou U no final de palavras que terminam ‘com o som de U’ (por
exemplo, ‘bambo’, ‘bambu’);
• o uso de E ou I no final de palavras que terminam ‘com o som de I’ (por
exemplo, ‘perde’, ‘perdi’);
• o uso de M, N, NH ou ~ para grafar todas as formas de nasalização de nos-
sa língua (em palavras como ‘campo’, ‘canto’, ‘minha’, ‘pão’, ‘maçã’, etc.).
Fonte: Morais (2003, p. 31).
81
LETRAMENTO gramatical, exprimindo-se com palavras como ‘adjetivos’, ‘sufixos’, ‘subjuntivo’, etc.
E ESCRITA
Nesse momento, para o aluno, conseguir refletir sobre o problema e elaborar a regra,
ainda que seja com suas próprias palavras, é mais importante do que simplesmente
repetir uma ‘fórmula’ com palavras que ele não entende. Aliás, os próprios PCN (BRA-
SIL, 1987, p. 86) mostram que ‘é importante observar que a realização desse tipo de
trabalho não requer necessariamente a utilização de nomenclatura gramatical’.
A nomenclatura gramatical pode ser introduzida pelo professor aos poucos, sem
causar nenhum receio no aluno a ponto de ele pensar que aprender a falar sobre o
funcionamento de questões relacionadas à língua portuguesa seja algo intimidador e
difícil. Por exemplo, para elaborar uma regra sobre o uso do –esa, o aluno pode fazê-lo
dizendo que ‘a gente usa o –esa quando quer mostrar o lugar onde as pessoas nasce-
ram’; nesse momento, o professor não precisa transformar a fala/regra dos alunos em
‘o sufixo –esa é empregado no processo de derivação para indicar origem ou proce-
dência’. Isso pode não fazer sentido para o aprendiz, visto que ainda tem pouco con-
tato com a nomenclatura gramatical, inibindo-o de tentar formular ou explicar outros
fenômenos da língua. Também não é necessário, inicialmente, que as explicações do
professor se baseiem na nomenclatura. Assim, para trabalhar o –eza, pode relacionar
os substantivos com os adjetivos dos quais derivam dizendo, por exemplo: ‘quem é
rico possui muita riqueza, e quem é belo, possui o quê? E quem é safado?’. Outras per-
guntas e direcionamentos são possíveis para explorar palavras como pobreza, tristeza,
avareza, etc. O importante é o professor fazer com que os alunos percebam e reflitam
sobre a regularidade. Lembramos que as estratégias didático-pedagógicas a serem em-
pregadas pelo professor dependem das especificidades da turma para a qual leciona.
Algo que funciona bem em uma turma pode não dar certo em outra.
Apresentamos a seguir dois quadros, com regularidades de natureza
morfológico-gramatical:
82
Ortografia nas
séries iniciais do
Exemplos de regularidade morfológico-gramatical observados na formação de palavras por de- ensino fundamental
rivação:
• ‘portuguesa’, ‘francesa’ e demais adjetivos que indicam o lugar de origem se escreve com
ESA no final;
• ‘beleza’, ‘pobreza’ e demais substantivos derivados de adjetivos e que terminam com o
segmento sonoro /eza/ se escrevem com EZA;
• ‘português’, ‘francês’ e demais adjetivos que indicam o lugar de origem se escrevem com
ÊS no final;
• ‘milharal’, ‘canavial’, ‘cafezal’ e outros substantivos semelhantes terminam com L;
• ‘famoso’, ‘carinhoso’, ‘gostoso’ e outros adjetivos semelhantes se escrevem sempre com S;
• ‘doidice’, ‘chatice’, ‘meninice’ e outros substantivos terminados com o sufixo ICE se es-
crevem sempre com C;
• substantivos derivados que terminam com os sufixo ÊNCIA, ANÇA, ÂNCIA também se es-
crevem sempre com C ou Ç ao final (por exemplo, ‘ciência’, ‘esperança’ e ‘importância).
As regras morfológico-gramaticais se aplicam ainda a vários casos de flexões dos verbos que
causam dificuldades para os aprendizes.
Eis alguns exemplos:
• ‘cantou’, ‘bebeu’, ‘partiu’ e todas outras formas da terceira pessoa do singular do passado
(perfeito do indicativo) se escrevem com U final;
• ‘cantarão’, ‘beberão’, ‘partirão’ e todas as formas da terceira pessoa do plural no futuro
se escrevem com ÃO, enquanto todas as outras formas da terceira pessoa do plural de
todos os tempos verbais se escrevem com M no final (por exemplo, ‘cantam’, ‘cantavam’,
‘bebam’, ‘beberam’);
• ‘cantasse’, ‘bebesse’, ‘dormisse’ e todas as flexões do imperfeito do subjuntivo terminam
com SS;
• todos os infinitivos terminam com R (‘cantar’, ‘beber’, ‘partir’), embora esse R não seja
pronunciado em muitas regiões de nosso país.
Ao contrário dos casos regulares que o aluno pode compreender e utilizar as regras
para escrever palavras que nunca tenha visto, nos irregulares não existem regras fixas
83
LETRAMENTO que facilitem o trabalho do aprendiz. Nesses casos é preciso consultar dicionários, gra-
E ESCRITA
máticas e materiais didáticos e memorizar. Apresentamos abaixo um quadro com exem-
plos de irregularidades, elaborado a partir das observações de Morais (2003, p. 35):
84
de escrita a fim de internalizar as formas ortográficas regulares e irregulares. O contato Ortografia nas
séries iniciais do
com textos bem escritos de jornais, revistas e livros é um passo no processo de ensi- ensino fundamental
2 Essa atividade baseia-se em experiências do autor nas quais solicitou que os alunos fingissem ser
um estrangeiro e errassem de propósito a ortografia de palavras que consideravam que o estran-
geiro erraria em um ditado previamente realizado. Em seguida pediu para que os alunos verba-
lizassem porque o estrangeiro escreveria daquela forma, explicitando assim seus conhecimentos
sobre o sistema ortográfico. Entre as transgressões apareceram *baxareu, *famozo, *cavalu, *ci-
dabi, *xineza, *comformi, *disserrão. Morais (2003) percebeu que os bons alunos em ortografia
concentravam mais suas transgressões nos pontos problemáticos da norma do português.
85
LETRAMENTO nessa direção, afirmando que ‘antes de o professor tratar da ortografia, na alfabetiza-
E ESCRITA
ção, o mais importante, essencial mesmo, é que o aluno aprenda a ler e, consequen-
temente, consiga escrever alguma coisa’. O professor precisa compreender que nessa
fase erros aparecerão e devem ser tratados como algo natural. Nesse momento, o estí-
mulo à curiosidade das crianças sobre a ortografia e momentos de discussão e reflexão
sobre o tema são necessários.
De acordo com os PCN (BRASIL, 1997), espera-se, para o primeiro ciclo, que o
aluno seja capaz de escrever textos alfabeticamente, preocupando-se com a ortografia,
mesmo que não saiba fazer uso adequado das convenções. Para o segundo ciclo, es-
pera-se que o aluno já demonstre conhecimento das regularidades ortográficas e saiba
utilizar o dicionário e outras fontes impressas para a resolução de dúvidas quanto às
irregularidades.
2) Que metas estabelecer para cada turma, para cada série?
O estabelecimento de metas pelo professor está sujeito a um diagnóstico prévio que
ele realiza com a turma para saber quais são as principais dificuldades de seus alunos. ‘A
partir dessa sondagem inicial é que ele pode planejar quais questões crê possível prio-
rizar em seu trabalho com a turma durante certo período escolar’ (MORAIS, 2003, p.
69). Além disso, acreditamos que os critérios de avaliação de língua portuguesa para o
primeiro e segundo ciclos dos PCN (BRASIL, 1997), apresentados na pergunta anterior,
também servem para nortear o professor no estabelecimento de suas metas.
3) Como sequenciar o ensino de ortografia?
Morais (2003) propõe que a sequencialização dos conteúdos ortográficos conjugue
os critérios de regularidade ou irregularidade das correspondências letra-som e a fre-
quência de uso das palavras na língua escrita. No critério da regularidade, depois do
domínio da base alfabética, a tendência é a de os alunos apresentarem muitas dúvidas
com relação às regras de tipo contextual (G ou GU, R ou RR, M ou N, entre outras). As
regras morfológico-gramaticais (OU do passado, AM ou ÃO, ESA ou EZA, entre outras)
são superadas lentamente pelos aprendizes. No critério das irregularidades, torna-se
relevante compreender que a dúvida sempre paira sobre a escrita em qualquer fase
de aprendizado escolar ou mesmo fora dele. Para o autor, isso não quer dizer que o
professor vá estabelecer uma sequencialização artificial, deixando para tratar depois
tudo o que é regular de tipo morfológico-gramatical ou irregular. Baseando-se na con-
junção das regularidades/irregularidades com a frequência de uso, o professor pode
fazer com que os alunos reflitam, desde o início do ensino sistemático de ortografia,
sobre palavras com notação irregular, mas que necessitam memorizar porque utilizam
repetidamente em suas produções textuais espontâneas, por exemplo, palavras como
‘homem’, ‘chuva’, ‘casa’ etc.
86
Ainda em relação ao planejamento e à condução das situações de ensino-aprendi- Ortografia nas
séries iniciais do
zagem, Morais (2003, p. 72-75) chama nossa atenção para os seguintes pontos: ensino fundamental
87
LETRAMENTO questões ortográficas que foram anteriormente selecionadas ou mesmo levantadas du-
E ESCRITA
rante a atividade. Assim, o professor faz várias interrupções no ditado, interagindo
com os alunos, seja por meio de perguntas sobre quais palavras eles acham difíceis,
seja pela indagação explícita se dada palavra é difícil para eles em termos de escrita
ortográfica.
Na releitura com focalização, o professor, durante a releitura coletiva de um tex-
to previamente conhecido, faz interrupções, questionado os alunos sobre a grafia de
determinadas palavras.
Na reescrita com transgressão ou correção, ou os alunos propõem transgressões
às normas ortográficas, como já vimos anteriormente, ou corrigem um texto ou o
reescrevem seguindo a ortografia. O trabalho apresentado por Morais (2003) foi a
reescrita de uma história do Chico Bento, personagem de Maurício de Souza. Moraes
(2003, p. 85) explica que, no desenvolvimento da proposta, houve um cuidado em
fazer com que os alunos percebessem e discutissem questões de variação linguística
a partir da caracterização da personagem Chico Bento e de seu modo de falar. Isso
levou à reflexão sobre como pessoas de diferentes grupos sociais e regiões falam de
maneira diversa nossa língua e, visto que não escrevemos da mesma forma que fala-
mos, sobre o cuidado que precisamos ter ao escrever. Como nas historinhas, o modo
de falar das personagens é ‘transcrito’ pelos autores, os alunos encontraram palavras
como, ‘vamo’, ‘ocê’, ‘pru’, ‘armoço’. Depois, foi pedido aos aprendizes que reescre-
vessem a história, mas não na forma de quadrinhos, contando o que tinha acontecido.
Ao contarem a história em discurso indireto, sem utilizar os diálogos, foi desnecessá-
ria a manutenção da pronúncia dos personagens na escrita, reescrevendo, portanto,
ortograficamente.
O autor chama nossa atenção para o fato de que a reescrita não deve restringir-se a
uma atividade em que as crianças simplesmente transformem o ‘errado’ em ‘certo’. A
postura que o professor deve ter é a de discriminalizar o erro e usá-lo como forma de
explicitar as questões ortográficas. Por isso a atividade é uma proposta de mão dupla,
na qual os alunos tanto vão do ‘errado para o certo’, como do ‘certo para o errado’.
Aliás, lembramos que em todas as atividades descritas acima, o principal objetivo é
fazer com que os aprendizes sempre discutam o que fazem, proporcionando a reflexão
e a conscientização das questões ortográficas.
Quanto ao ensino de ortografia cujo objeto é a palavra, entre as propostas de tra-
balho do autor encontramos a classificação de palavras reais. Nessa proposta, depois
de o professor desencadear a reflexão sobre uma regularidade contextual, solicita aos
alunos que organizem em conjuntos ou colunas palavras que apresentem a mesma
dificuldade ortográfica. O exemplo mostrado pelo autor continha a seguinte instrução:
88
‘procurar em revistas outras palavras que tenham R e RR e que possam ficar em cada Ortografia nas
séries iniciais do
coluna da ficha, abaixo de ‘risada’, ‘trabalho’, etc.’ (MORAIS, 2003, p. 93). Vemos que ensino fundamental
a instrução já oferece aos alunos palavras que servem de referência para as palavras
que eles procurarão nas revistas e colocarão nas colunas. Assim, os alunos centram
seus esforços em sistematizar mentalmente os diferentes contextos ortográficos, bem
como voltam sua atenção para as letras ou dígrafos e os sons que representam em cada
contexto.
A construção de quadros de regras também é outra proposta de trabalho apresen-
tada pelo autor que o professor pode realizar com suas turmas. O quadro de regras
baseia-se na anotação no caderno e em um quadro coletivo as regras que os alunos
formularam. Essas anotações possibilitam não só a potencialização das descobertas
que os aprendizes vão fazendo, como também permitem que eles repensem a ques-
tão ortográfica em foco, reanalisem e reelaborem seus conhecimentos. O professor
deve se lembrar de que as regras não são ‘ladainhas prontas’, com um formato único
e que envolvam um linguajar sofisticado (MORAIS, 2003, p. 104). Sobre o uso do ‘i’
e do ‘e’ no final de palavras, o autor exemplifica com as seguintes regras formuladas
pelas crianças: ‘1) Quando a sílaba mais forte está no fim da palavra, se escreve com
I. Ex.: saci, Timbi. 2) Quando a sílaba mais forte estiver no início ou no meio, se
coloca E no final. Ex. doce, gente’ (MORAIS, 2003, p. 106). Embora não tenham um
linguajar sofisticado, as produções dos alunos dão conta de explicar o funcionamento
do emprego das letras ‘i’ e ‘e’ no final das palavras. Chamamos novamente a atenção
para o fato de que o professor não deve se preocupar tanto com a sofisticação da
linguagem a ponto de descaracterizar a produção dos alunos. Por estarem expostas
no quadro coletivo, as produções podem sofrer reelaborações conforme a avaliação
dos próprios alunos.
Para o ensino de palavras que envolvam dificuldades de tipo irregular, Morais (2003)
sugere que o professor defina com os alunos listas de palavras que eles não poderão
errar mais. Dessa forma, o professor ajuda os alunos a internalizar progressivamente
as irregularidades da língua, deixando de lado a cobrança para que eles acertem tudo.
Os critérios para a escolha das palavras podem ser variados, por exemplo: palavras que
apresentem determinada dificuldade (como o ‘h’ em seu início), ou palavras usadas
no cotidiano escolar, ou, ainda, palavras de uma área de conhecimento ou de um tema
que os alunos estejam estudando.
Sem esgotar todas as possibilidades mostradas pelo autor, encerramos esta seção
com a proposta do uso do dicionário pelos alunos para sanar dúvidas ortográficas. Os
PCN (BRASIL, 1997, p. 87) destacam que a:
89
LETRAMENTO consulta ao dicionário pressupõe conhecimentos sobre as convenções da es-
E ESCRITA crita e sobre as do próprio portador: além de saber que as palavras estão orga-
nizadas segundo a ordem alfabética (não só das letras iniciais mas também das
seguintes), é preciso saber, por exemplo, que os verbos não aparecem flexiona-
dos, que o significado da palavra procurada é um critério para verificar se de-
terminada escrita se refere realmente a ela, etc. Assim, o manejo do dicionário
precisa ser orientado, pois requer a aprendizagem de procedimentos bastante
complexos.
Em função dos pontos supracitados, Morais (2003) afirma que a implantação pro-
gressiva de uma consulta mais constante e autônoma ao dicionário implica alunos que
já dominam o sistema de escrita alfabética e que estejam realizando um ensino-apren-
dizado sistemático da ortografia. No entanto, o autor enuncia que não devemos adiar
o contato dos aprendizes com os dicionários, pois hoje há no mercado dicionários
menos áridos, especialmente dirigidos para o público infantil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar, neste capítulo, respostas às principais questões que afli-
gem os professores em serviço e em formação sobre o tema ortografia. Para nossas
observações, seguimos os trabalhos de pesquisadores que já se dedicaram muito ao as-
sunto, como Cagliari e Morais. Deste último, sugerimos a leitura completa de sua obra
citada em nosso texto, pois ela pode verticalizar os conhecimentos e propostas mos-
tradas aqui, além de colocar os leitores em contato com outros pontos não abordados.
Relembramos que em nenhum momento tivemos a pretensão de dar receitas pron-
tas, porque os problemas de uma sala de aula real são muito diversificados. Entretanto,
o professor em formação pode tomar como base os pontos tratados aqui e, a partir de-
les, aprofundar seus conhecimentos e elaborar sua própria metodologia de trabalho.
O que consideramos fundamental é a mudança de atitude do futuro professor em
relação ao erro ortográfico. É importante que ele saiba que todos os erros não têm a
mesma natureza e que ele não deve nem desmerecer nem supervalorizar um deslize
ortográfico de seu aluno. As falhas de ortografia dizem muito acerca das hipóteses e
reflexões dos alunos sobre a escrita, e conhecer com mais profundidade os problemas
que envolvem a ortografia e seus entornos certamente contribuirá para que o futuro
profissional não tema o erro de escrita dos aprendizes sob sua responsabilidade.
90
Ortografia nas
séries iniciais do
ensino fundamental
Referências
CAGLIARI, Luiz Carlos. Aspectos teóricos da ortografia. In: SILVA, Maurício (Org.).
Ortografia da Língua Portuguesa: História, discurso e representação. São Paulo:
Contexto, 2009. p. 17-52.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Diante das letras: a escrita na alfabetização. 2. ed. Campinas,
SP: Mercado de Letras; São Paulo: Associação de Leitura do Brasil – ALB; Fapesp,
2001. p. 33-48.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Ortografia não é apenas escrever palavras com a grafia
correta. Com Ciência, [S.l.], [200-]. Disponível em: <http://www.comciencia.br/com
ciencia/?section=8&edicao=51&id=636 >. Acesso em: 09 nov. 2016.
KEMMLER, Ralf. Para a história da ortografia simplificada. In: SILVA, Maurício (Org.).
Ortografia da Língua Portuguesa: História, discurso e representação. São Paulo:
Contexto, 2009. p. 53-94.
91
LETRAMENTO MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. 4. ed. São Paulo: Ática,
E ESCRITA
2003.
VOGT, Carlos. Ortografia. Revista Com Ciência, [S. l.], n. 113, 2009. Disponível em:
<http://www,comciencia.hbr/comciencia/handler.php?section=8&edicao=51>.
Acesso em: 09 nov. 2016.
92
Ortografia nas
séries iniciais do
ensino fundamental
Proposta de Atividade
93
LETRAMENTO 2) Considere a seguinte situação hipotética: Você é professor do terceiro ano do Ensino Fun-
E ESCRITA
damental e trabalhou com seus alunos a fábula de Esopo ‘A cigarra e as formigas’, apresen-
tada abaixo. Agora, vendo que há um número significativo de palavras nas quais aparecem
o ‘r’ e o ‘rr’, você quer utilizar o texto para fazer com que os alunos reflitam sobre o uso da
letra e do dígrafo e depreendam suas regularidades. Explique quais os passos você seguiria
para chegar ao seu intento final, qual seja, a explicitação das regras que subjazem aos usos
e a escritura de um quadro de regras.
A CIGARRA E AS FORMIGAS
Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para
secar suas reservas de trigo. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado
completamente molhados. De repente aparece uma cigarra:
__ Por favor, formiguinhas, me dêem um pouco de trigo! Estou com uma fome
danada, acho que vou morrer.
As formigas pararam de trabalhar, coisa que era contra os princípios delas, e
perguntaram:
__ Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de
guardar comida para o inverno?
__ Para falar a verdade, não tive tempo – respondeu a cigarra.
__ Passei o verão cantando!
__ Bom... Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno dançando?
-- disseram as formigas, e voltaram para o trabalho dando risada.
3) Considere a seguinte situação hipotética: Você está trabalhando com seus alunos a temática
sobre ‘a formação das cidades’ e quer elaborar com eles uma lista de palavras com irregula-
ridades que eles não poderão mais errar depois de um tempo. Pesquise sobre esse tema e
proponha uma lista de palavras com irregularidades que seriam memorizadas pelos alunos.
Anotações
94
5 Práticas
de letramento
95
LETRAMENTO Gênero textual panfleto de supermercado
E ESCRITA
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
O estudo de um gênero textual em sala de aula, assim como sua leitura em
qualquer situação social, passa pelo conhecimento das condições de produção em
que ele se realiza. Nesse âmbito, o gênero textual panfleto deve inicialmente ser
compreendido pelos elementos: finalidade, interlocutor, gênero textual, circulação
social, suporte textual e posição do autor.
96
Finalidade: Todos os textos têm uma finalidade determinada. O panfleto possui, Práticas
de letramento
dessa forma, a finalidade de apresentar quais são os produtos que estão em oferta
(MÊS DE AGOSTO VARIEDADE QUALIDADE E PREÇO BAIXO É AQUI!) em determina-
do período (OFERTAS VALIDADE DE 01/08/09 ATÉ 15/08/09).
A finalidade é o primeiro dos elementos que devemos encontrar na produção de
sentidos para o gênero textual. Dessa maneira, assim que o gênero for identificado,
isto é, que foi conhecido seu nome na sociedade, devemos buscar junto ao aluno,
em situação de sala de aula, qual é a sua finalidade social, ou seja, para que ele foi
produzido. Essa finalidade é uma das características da dimensão social da escrita
dos textos, que devem ser necessariamente discutidas na escola.
Essas marcas implícitas, que o leitor consegue ler sem problemas, são possíveis
de serem compreendidas porque o consumidor sabe que ele é o interlocutor elei-
to e espera essa conversa, que se mostra através de marcas interlocutivas como as
grifadas.
Assim, no trabalho com o panfleto na sala de aula, é preciso que o interlocutor
seja delimitado e que as marcas linguístico-discursivas dessa interlocução sejam des-
tacadas, para que o aluno tenha consciência de como elas aparecem na produção
do texto. É justamente o despertar para essas marcas que caracteriza uma parte do
trabalho com o letramento em sala de aula, pois o aluno passa a compreender e a
identificar qual o leitor preferencial do gênero textual lido.
97
LETRAMENTO Gênero textual: Os textos que circulam na sociedade têm nomes certos, com
E ESCRITA
finalidades, interlocutores, lugar de circulação social e suporte material textual defi-
nidos pelo corpo social. Todos os textos têm um nome e são reconhecidos por seus
usuários a partir da visualização, tratando-se aqui daqueles textos escritos, de sua
estrutura. Desse modo, ao batermos os olhos em um texto que contém o nome de
um supermercado em realce no alto da folha, com uma série de imagens de produ-
tos alimentícios, de limpeza e de higiene pessoal, acompanhados do preço de venda
de cada um, identificamos que seja um ‘panfleto’. O mesmo ocorre com os demais
textos que encontramos no cotidiano da vida. Dessa forma, esse texto, por conter os
elementos descritos, é conhecido como um gênero textual, por isso deve ser traba-
lhado por seu nome específico. Com isso, afirmamos que na escola os textos devem
ser conhecidos e tratados por seus nomes sociais, não por designações que muitas
vezes o corpo escolar cria para eles.
Além disso, os gêneros textuais apresentam três elementos básicos que os cons-
tituem: uma temática definida, uma organização composicional que evidencia a sua
estrutura textual e um estilo de linguagem próprio empregado por esse texto.
Temática: Cada gênero textual apresenta uma temática própria. Neste sendido,
a temática do panfleto é a apresentação de uma série de produtos de alimentação,
higiene e limpeza, com seus valores unitários. Não caberia, por exemplo, na temá-
tica desse gênero, anúncios publicitários de venda de casas e carros, porque não é
objetivo do supermercado vender tais produtos. Assim, o tema é sempre marcado
de maneira muito determinada. No panfleto analisado, observamos que há apenas
produtos alimentícios, sem os de higiene pessoal e limpeza. Isso mostra que mesmo
dentro do seu tema maior ainda há possibilidades de fazermos recortes específicos,
como é o caso do exemplo.
98
extrato de tomate), até chegar aos produtos in natura, como a carne; Práticas
de letramento
• frase com o período de validade das ofertas, informando que se restringem à
capacidade do estoque.
Nesse âmbito, vale mais a linguagem visual dos produtos e dos preços do que
possíveis explicações que o leitor buscaria.
99
LETRAMENTO Suporte textual: Os textos são apresentados às pessoas em um determinado as-
E ESCRITA
pecto visual, em um portador visual certo. Dessa maneira, o panfleto é produzido
normalmente em um papel do tamanho de uma folha de sulfite ou até mesmo em
tamanho maior. Esse papel é colorido e facilmente dobrável, para ser colocado nos
lugares sociais já citados. Por outro lado, ao ir para a sala de aula, através do livro
didático ou até mesmo de fotocópia, seu suporte textual se altera, já que ele não
terá a mesma formatação, o papel não terá a mesma espessura, tamanho e largura,
descaracterizando-se. Por isso, é recomendável ao professor que sempre leve para a
sala de aula um exemplar original do suporte textual trabalhado, para que os alunos
o reconheçam. Dessa forma, se for trabalhar com a letra de uma música que está no
material didático, recomenda-se que o docente leve para a sala o encarte de um CD,
onde se encontra normalmente a letra da música escolhida, ou até mesmo outro en-
carte, para que o aluno reconheça ao menos o suporte textual original desse gênero.
Posição do autor: Todo texto é produzido por alguém ou por um grupo de pes-
soas, que assinam essa produção, muitas vezes no nome de uma pessoa jurídica.
Dessa forma, a produção do panfleto é realizada pelo Supermercado São Jorge,
que é uma empresa comercial, pessoa jurídica, de acordo com as leis do país. Neste
sentido, a posição assumida pelo autor do panfleto é a de ofertar aos seus clientes
os produtos que estão com preços baixos na primeira quinzena do mês de agosto.
100
unidade. Na comparação com outros anúncios, em panfletos, na televisão e no rádio, Práticas
de letramento
você pode definir qual é o melhor lugar para comprar os refrigerantes para a festa.
Outra situação de letramento social ocorre quando realizamos a compra mensal
de produtos que são utilizados constantemente nas casas, a conhecida ‘cesta básica’,
composta por produtos como arroz, feijão, macarrão, óleo de soja, açúcar, farinha
etc. Ao recebermos o panfleto no portão de casa, podemos realizar a sua leitura bus-
cando identificar os produtos e os seus valores que compõem a cesta básica. Assim,
é possível notarmos que há, no panfleto, os seguintes produtos: açúcar, macarrão,
café e óleo. Somando-se esses produtos, podemos ter uma ideia se o Supermercado
São Jorge está com preços em oferta ao compararmos com outros mercados que
oferecem produtos semelhantes.
Com essa leitura comparativa, verificamos que o Supermercado São Jorge apre-
senta valores menores para os produtos da cesta básica, cabendo ao consumidor op-
tar por adquirir ou não os produtos nesse estabelecimento. A partir desse exemplo,
podemos produzir algumas outras leituras:
• quais são os produtos e quanto gastaríamos para preparar uma macarronada:
macarrão, molho ou extrato de tomate, óleo e carne bovina;
• quais são os produtos e quanto gastaríamos para preparar um churrasco: pa-
leta suína, carne bovina, óleo, cerveja, refrigerante.
Os diversos modos de leitura na sociedade são reflexos dos objetivos que o leitor
tem para o panfleto que está lendo. Dessa forma, os objetivos de leitura definem o
quê, para quê e como ler os gêneros textuais que circulam na sociedade.
101
LETRAMENTO plena noção de que a escola é o lugar em que se aprende, desenvolve e pratica a
E ESCRITA
leitura com fins sociais, isto é, com a finalidade de se aplicar nas leituras dos textos
que circulam na sociedade.
Descrevemos alguns exemplos de modos de leitura na escola a partir da apresen-
tação de questões de leitura, como é comum nesse ambiente escolar.
a) Leitura de valores dos produtos – Cada um dos produtos anunciados pelo
panfleto apresenta seu valor unitário. Assim, algumas perguntas são apresentadas
ao aluno, leitor desse texto, para que compreenda como o trabalho com o gênero
textual pode ser realizado na sala de aula.
• Quais são os produtos que têm o mesmo valor?
• Qual é o produto enlatado mais caro? Qual é o valor desse produto?
• Quais produtos custam menos de R$1,00?
• Qual é o produto mais barato?
• Quais são os produtos com o mesmo valor?
• Quanto se paga por um refrigerante uma lasanha?
• Quanto custa uma lata de cerveja?
• Quanto custa um quilo de açúcar cristal?
• Quais produtos compram-se com R$10,00? Qual é o valor do troco que sobra?
• Quantas caixas de leite condensado compram-se com R$5,00?
• Quanto se gasta para se comprar os ingredientes para se fazer cafezinho?
• Quanto se gasta para comprar dois pacotes de açúcar?
• Quanto custa um quilo de massa para lasanha?
• Quanto se paga por dois quilos de carne suína e três de carne bovina?
• Quantos litros de refrigerante compram-se com R$10,00?
102
• Quais são as medidas apresentadas nos produtos do texto? Práticas
de letramento
• Quais produtos são medidos em massa e volume no panfleto?
• Qual produto empacotado é mais pesado?
• Qual produto enlatado é mais barato?
• Qual produto enlatado possui menor peso?
• Duas latas de molho de tomate pesam mais ou menos do que um quilo?
• Quais os produtos que se apresentam em estado líquido?
• Quantos pacotes devem ser comprados para se obter um quilo e meio de
café?
• Quantos litros têm duas garrafas de refrigerantes?
103
LETRAMENTO Todas essas questões são trabalhadas após as práticas de leitura sobre as con-
E ESCRITA
dições de produção e os modos de leituras sociais do panfleto de supermercado.
Elas auxiliam na formação e no desenvolvimento do leitor, possibilitando ao aluno
conhecer como o gênero textual panfleto pode ser trabalhado na escola, visando ao
desenvolvimento de práticas leitoras que atinjam a sociedade.
As práticas de leitura aqui apresentadas são modelos de trabalho com práticas
de letramento com gêneros textuais de circulação social definida. Elas devem ser
tomadas como referência para outras práticas de letramento, porém não se fecham
em si mesmas, pelo contrário, nas mais diversas situações sociais possíveis, essas
práticas constituem-se em outras, que levam à construção de muitos outros sentidos
ao texto trabalhado.
Referências
Proposta de Atividade
2) Para auxiliar na atividade, siga as práticas de letramento propostas para o panfleto de su-
permercado aqui apresentado.
104
Práticas
de letramento
Anotações
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LETRAMENTO
E ESCRITA
Anotações
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