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Dissertação apresentada à
Universidade Nova de Lisboa
para obtenção do grau de
Mestre em Ciências Musicais (Etnomusicologia)
Agradecimentos ……………………………………………………….................... 5
Prefácio...................................................................................................................... 7
I. INTRODUÇÃO..................................................................................................... 9
1. Objectivos...........…….……………………...................................................9
2. Enquadramento teórico …………………………………………............... 10
3. Modelo de pesquisa …………………………………….............................12
4. Metodologia …………………………………………………….................13
2
IV. DOIS CONTEXTOS DE DESEMPENHO
1. Música Celta ...............................................................................................51
2. O Festival Intercéltico de Sendim ............................................................. 53
3. Encontro Nacional de Gaiteiros ................................................................ 60
3
BIBLIOGRAFIA CITADA
DISCOGRAFIA CITADA
ENTREVISTAS CITADAS
ANEXOS:
1. Programação do Festival Intercéltico de Sendim entre 2000 e
2005
2. Grupos participantes no Encontro Nacional de Gaiteiros entre
2001 e 2004
3. Transcrições musicais
Conteúdo do DVD
4
AGRADECIMENTOS
5
presidente da Associação Juvenil Mirai Q‟Alforjas. Um especial agradecimento
também a todos os gaiteiros, a notar: Ângelo Arribas, Desidério Afonso, Henrique
Fernandes, Célio Pires, Paulo Preto, Paulo Meirinhos, Abílio Topa, António Alves,
Manuel Martins, Ernesto Martins Lhano, Adérito Augusto Vicente, Álvaro Xavier,
Zéfiro Galvão, Domingos João, Paulo Gonçalves e Alexandre Vicente Pires.
A minha consideração ao Tiago e Ana que me acolheram em sua casa, numa das
minhas estadias em Sendim e a todos os meus colegas de mestrado.
6
PREFÁCIO
1
A Área Metropolitana de Lisboa engloba dezoito municípios: Alcochete, Almada, Amadora, Barreiro,
Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Odivelas, Oeiras, Palmela, Sesimbra, Setúbal, Seixal, Sintra
e Vila Franca de Xira. Todavia, esta investigação incidiu sobre os concelhos de Lisboa, Almada e Moita,
pelo que me irei referir em concreto a estas localidades.
7
os contextos, no período entre 1999 e 2004, altura em que começaram a actuar de
forma proeminente e sistemática.
8
I. INTRODUÇÃO
1. Objectivos
Este estudo propõe analisar o início do processo de (re)folclorização das práticas
musicais associadas à gaita-de-foles que decorre simultaneamente, e de modo
interligado, em Miranda do Douro e na área metropolitana de Lisboa, no período
que se estende entre 1999 e 2004. Pretende, igualmente, analisar e reflectir os
factores que estão na sua origem, as motivações dos agentes envolvidos, bem
como, os mecanismos económicos, culturais, sociais e políticos accionados por
eles. Visa também, analisar a adopção da gaita-de-foles como símbolo identitário
no concelho de Miranda do Douro.
9
6- Quem são os performadores e construtores da gaita-de-foles?
7- Quais são as funções musicais e sociais do instrumento?
8- Quais as mudanças no estilo performativo, na morfologia do instrumento
e qual o seu impacte?
9- Como se processa o ensino da gaita-de-foles?
2. Enquadramento teórico
A folclorização apresenta-se como o processo central em estudo. Para o efeito, e
em primazia, adoptarei a definição de folclorismo e folclorização proposta pelos
investigadores Salwa Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco: “O folclorismo
engloba ideias, atitudes e valores que enaltecem a cultura popular e manifestações
nela inspiradas, por folclorização entende-se o processo de construção e de
institucionalização de práticas performativas tidas por tradicionais, construídas por
fragmentos retirados da cultura popular, em regra, rural” (Castelo-Branco e Branco
2003:1). Estes autores consideram a existência de dois períodos marcantes no
processo de folclorização em Portugal – o primeiro ocorreu durante o Estado Novo
e o segundo teve início com o estabelecimento do Regime Democrático – e
reconhecem determinadas características que marcam a folclorização em cada um
desses momentos. Os autores propõem o seguinte modelo para o processo de
folclorização durante o regime democrático, que pretendo testar no presente estudo:
10
d) Património constituído por repertórios autenticados, tanto por recolhas
actuais, como pela revisitação a repertório gravado ou escrito.
Permanência do ideal de recolha junto das pessoas mais idosas. O
repertório constitui o património essencial na negociação da posição
artística de mercado do grupo.
11
de base de legitimação no vivo” (Branco 1995: 170), conceito que considero
igualmente central neste estudo.
3. Modelo de pesquisa
Partindo da perspectiva de Castelo-Branco e Branco (2003) e de Branco (1995), e
tendo em conta os dados que constam do meu estudo, proponho o seguinte modelo
analítico que pretendo testar.
Grupos/Património
Agentes
12
Os agentes encontram-se no centro do modelo, visto que a sua acção é fulcral para
o processo em análise. Estes são indivíduos (ensaiadores ou directores de
agrupamentos), ou entidades reguladoras do estado (INATEL, IPJ, IA,
IPAE/Ministério da Cultura), ou das autarquias (Câmaras Municipais e Juntas de
Freguesia; Região de Turismo do Nordeste Transmontano, Governo Civil de
Bragança), ou privadas (Associações; Sons da Terra - Edições Musicais;
A.P.E.D.G.F.), que exercem a sua influência aos níveis local e regional e
promovem os grupos no mercado cultural.
4. Metodologia
A estratégia de pesquisa centra-se no desenvolvimento de uma etnografia multi-
situada, conforme sugere Marcus (1999), na qual são exploradas as conexões,
paralelismos e contrastes do processo de (re)folclorização das práticas
performativas associadas à gaita-de-foles em Miranda do Douro e na área
metropolitana de Lisboa.
2
Paulo Marinho, intérprete e músico urbano, pertencente aos grupos Sétima Legião, Anaquiños da Terra e
Gaiteiros de Lisboa, professor de gaita-de-foles.
3
Vítor Félix, intérprete de música popular em diversos agrupamentos nos anos oitenta e noventa,
actualmente membro do grupo Gaitafolia e construtor de instrumentos musicais, dedicando-se, sobretudo, à
construção de Gaita-de-foles.
13
Miranda do Douro, intermitentemente, e em Lisboa, através de contactos semanais
com a A.P.E.D.G.F..
O registo fotográfico e audiovisual foi outra das técnicas utilizadas, tendo servido
para documentar e analisar eventos centrais nos contextos estudados. Para servir de
apoio à fundamentação teórica e reportagem de todo o processo inclui, também, um
DVD com excertos que ilustram alguns dos aspectos em estudo.
14
Agosto de 2003, de 30 de Julho a 1 de Agosto de 2004); o I, II, III e IV Encontros
Nacionais de Gaiteiros (8 de Julho de 2001, 8 e 9 de Junho de 2002, 9 e 10 de
Agosto de 2003, 18 e 19 de Setembro de 2004); a Famidouro 2002, Feira de
Artesanato e Multiactividades em Miranda do Douro (de 17 a 18 de Agosto de
2002); Romaria da Nossa senhora da Luz – Constantim, Miranda do Douro (28 de
Abril de 2002); II Encontro de Tocadores em Nisa (dias 9, 10 e 11 de Maio de
2003); Festas de Santa Bárbara, em Sendim (entre 3 e 7 de Agosto de 2003);
actuação de Ângelo Arribas na Biblioteca Municipal da Moita (dia 19 de
Novembro de 2004); Actuações do Grupo Gaitafolia (Quinta da Atalaia – Festa do
Avante, dia 7 de Setembro de 2003, Cacilhas, dia 22 de Abril de 2005); a actuação
do grupo Galandum Galundaina (Quinta da Atalaia – Festa do Avante, dia 4 de
Setembro de 2005), entre outros.
15
II - FOLCLORISMO E FOLCLORIZAÇÃO
1. Perspectiva histórica
O interesse pela cultura popular em Portugal teve início na segunda metade do
século XIX. Partiu do empenho de grupos de intelectuais, através do enaltecimento
da cultura popular e manifestações nela inspiradas, que Castelo-Branco e Branco
designam por folclorismo (Castelo-Branco & Branco 2003). Com o concurso “A
Aldeia mais Portuguesa de Portugal”, organizado pelo SNI (Secretariado Nacional
de Informação) em 1938, inicia-se a institucionalização das práticas do folclore,
segundo um modelo instituído pelo certame que permanece até aos nossos dias. O
movimento folclórico, iniciado pelo Estado Novo, reforça-se e expande-se em
democracia com o grande incremento de grupos folclóricos por todo o país
(Castelo-Branco, Neves e Lima 2003).
16
assentar na apreensão da “nação” como um facto científico (Ramos 2003: 25).
Nesta corrente encontramos Teófilo Braga, o qual levou a cabo uma vasta
investigação acerca das manifestações culturais do povo português, que
sistematizou na obra O povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições
(1885). Nas últimas décadas de oitocentos, intensificaram-se nos meios
aristocráticos e burgueses as manifestações culturais inspiradas no popular, que se
traduziram no organizar de divertimentos, tais como, bailes de máscaras e serões
musicais, tendo como fonte de inspiração o mundo rural, tornadas moda, tanto em
espectáculos teatrais, como na pintura, na arquitectura ou na criação musical
erudita (Castelo-Branco & Branco 2003: 4).
17
oficinas, nas ruas, no lazer, no quotidiano” (Rosas 1993: 292). A acção levada a
cabo pelo SPN era dirigida por um conjunto de instituições, como a Federação
Nacional para a Alegria no Trabalho [FNAT], as Casas do Povo, etc. Através do
SPN, o Estado Novo dá um impulso decisivo à sua política folclorista, promovendo
uma série de iniciativas na área da “etnografia e folclore”. Esta era uma política
eminentemente estetizante, que privilegiou aquilo a que se chama arte popular
(Alves 2003:191), contudo, as iniciativas do secretariado não constituíam formas de
incrementar o conhecimento das tradições populares, mas sim, tentativas de criação
de um quadro global e fixo, de uma cultura popular encenada. O objectivo era
seleccionar para exibir, transformando a cultura popular num cenário de agradável
contemplação e, por essa via, emblemático de Portugal (idem: 196).
Institucionalizava-se um modelo de grupos organizados que exibiam música, dança
e trajos associados a determinada localidade, região ou a todo o país. A delimitação
da área geográfica representada pelo repertório de cada grupo tornou-se uma
questão central para os organismos reguladores como a FNAT (Castelo-Branco &
Branco 2003: 97).
18
A institucionalização do folclore contribuiu, deste modo, para a difusão do canto,
da dança, e da prática instrumental, e os praticantes de folclore adoptaram uma
nova forma de cantar e de dançar: sobre um estrado, integrados num grupo misto,
acompanhados por tocadores e dançarinos fardados, perante uma assistência
passiva, que assumia o papel de ouvinte (Castelo-Branco & Branco 2003: 20).
19
A preservação, divulgação e transmissão da tradição para as gerações mais novas,
continuam a ser os principais objectivos que norteiam os grupos de música
tradicional no final do século XX e início do século XXI. Estes mobilizam milhares
de aderentes, perpetuam memórias, (re)criam repertórios, animam espaços
públicos, proporcionam sociabilidades, (re)constroem e negoceiam identidades e
incrementam as indústrias do património (Castelo-Branco, Neves & Lima 2003:
122).
Em 1898, um grupo de mirandeses exibiu nas ruas de Lisboa a Dança dos Paulitos,
por ocasião das comemorações do IV Centenário da Descoberta do Caminho
Marítimo para a Índia (Deusdado 1898). Segundo Ferreira Deusdado, esta não foi a
primeira vez que estes se apresentaram fora do contexto mirandês: “... vieram
4
Citada por Ferreira Deusdado (1898: 314).
5
Carta datada de 29-12-1896, publicada no jornal O repórter, nºI: 509 de 1 de Janeiro de 1897.
20
mirandezes para exibir nas ruas de Lisboa a dança dos paulitos. Há annos um
grupo d‟esses mesmos ingenuos camponeses também vieram ao Porto dançar
n‟uma festa e alguns jornaes classificaram desdenhosamente esses homens de
selvagens....” (idem).
Foi neste quadro político que, em 1933, um grupo de Pauliteiros de Miranda actuou
em Lisboa sob o patrocínio do SPN6, num espectáculo dedicado essencialmente a
artistas, escritores e alunos das escolas superiores e secundárias. Este grupo não se
dirigia à capital, estava de passagem para actuar num certame internacional de
danças regionais no Albert Hall, em Londres, organizado pelo English Folk Dance
Society. Este convite partiu do diplomata e folclorista Rodney Gallop, que na sua
estadia em Portugal entre 1931 e 1933 efectuou digressões a várias regiões,
incluindo Trás-os-Montes, onde assistiu em 1932 a uma exibição da dança dos
paulitos em Miranda. A viagem foi financiada pela Casa de Portugal em Londres,
pelo Secretariado de Propaganda Nacional, pelo Conselho Superior de Turismo,
pelo Instituto do Vinho do Porto e pelo próprio Rodney Gallop que, mais tarde,
viria a relatar: “Quando eu os vi, em 1932, os dançarinos vestiam camisa branca,
calças pretas, e colete com fitas coloridas nas costas (…) os chapéus eram
6
No subtítulo da notícia lê-se: “Foram recebidos no Secretariado de Propaganda Nacional. O quarto
espectáculo gratuito organizado por aquele organismo”, in “Os pauliteiros Mirandeses”, Diário da Manhã de
6/12/1933.
21
enfeitados com flores artificiais. A geração anterior usava saias brancas, e eles
reviveram este costume quando vieram a Londres em Janeiro de 1934” (Gallop
1961: 170).
22
Padre António Mourinho, nas suas descrições de Trás-os-Montes patenteava os
ideais preconizados pelo Estado Novo, de um país rural, tranquilo e feliz, para o
qual Miranda do Douro era tida como um exemplo: “Somos mirandeses (…)
pastores solitários e alegres do planalto árido e frio, cantando as loas ou rimances
medievais ou tocando flautas bíblicas ou gaitas de fole, atrás do rebanho…”
(Mourinho 1961: V-VI).
23
Valorizando o património local associado ao meio rural, Mourinho procura fontes
para a construção do folclore, através da recolha efectuada junto das pessoas mais
idosas da região. Parte destas recolhas foram coligidas no Cancioneiro Tradicional
e Danças Populares Mirandesas, no Cancioneiro Tradicional Mirandês de Serrano
Batista ou em outras publicações onde se apresentam desde lendas ao teatro
popular, romances e géneros associados à dança, como os lhaços. É com base
nestas recolhas que orienta o grupo, “sem perder a fidelidade e a tradição no Trajo,
na Dança e no Canto e nos instrumentos musicais...” (Mourinho 1983:8).
24
Mourinho junto da população rural, tais como: trajos, máscaras, gaitas de fole,
alfaias agrícolas e diversos instrumentos de lavoura.
O discurso regionalista, iniciado por eruditos locais no princípio do século XX, foi
fortemente desenvolvido por António Mourinho na segunda metade desse século,
contribuindo para a delimitação de uma área associada à língua e cultura
mirandesas. Em toda a obra literária de A. Mourinho existem descrições de
determinados aspectos que retratam a identidade mirandesa, não só através da
língua como, também, através do trajo, da dança, da música e do teatro. A
importância dada à língua mirandesa enquanto representação da identidade local
contribuiu para que Júlio Meirinhos, então deputado na Assembleia da República
pelo Partido Socialista, conseguisse o reconhecimento oficial da língua mirandesa.
25
pela afinação” (Mourinho 1991: 165), foi apropriada, localmente, pelos artesãos,
nomeadamente, Ângelo Arribas, que no final dos anos 1980 começou a dedicar-se à
construção do instrumento e uma década depois era considerado um dos
construtores mais conceituados da região. Mourinho, numa tentativa de preservação
da tradição mirandesa, incentiva Arribas a manter as características do modelo da
gaita-de-foles transmontana (Oliveira 1966) e a afastar-se dos modelos galegos,
como refere Ângelo Arribas em entrevista:
“...a minha 1ª gaita-de-foles, isto já foi em 84, 85, (...) pus ali um Black and
Decker e saiu a primeira gaita-de-foles. Pus-lhe um fole galego e andava
com ela no carro. Um dia passo pelo P.e Mourinho em Miranda, que olhou
para mim e perguntou-me em Sendinês:
- O que tu trazes aí?
- É uma gaita-de-foles Sr. Doutor...
- Quem se la fêz?
- Fui eu
- Tira-me isso daí para fora!... Isso não é nosso!... Isso é galego... isso não
presta!
- Bás para casa... matas le um chibo, comes la carne, põe-lhe la pele... (...)
E, eu assim fiz, fui a Sendim, falei lá com o cortador, que me matasse um
cabrito e que me tirasse a pele. Pus-lhe a pele e continuei a trazer a gaita no
carro. Daí a uns dias viu-me, que me foi buscar para irmos actuar e…
perguntou-me pelo caminho:
- Então … fizes-te o que eu te mandei à gaita-de-foles?...
- Fiz Sr. Doutor.
- E ainda fazes mais?
- Faço…
- Sim senhor, fazes bem, se continuares não te falta emprego”. (Entrevista a
A. Arribas 5/8/2003)8.
8
A minha transcrição do sendinês pretende representar a fonética transmitida.
26
Mais tarde, no final dos anos 1990, a Associação Galandum Galundaina procurou
desenvolver um modelo uniforme “da gaita-de-foles mirandesa (...), com o timbre e
a afinação que lhe é característico” (SA 1998: 79) (temática a abordar no próximo
capítulo). E, neste âmbito da genuinidade, a procura do “timbre mirandês” levou
outros gaiteiros a dedicarem-se à concepção de palhetas. Henrique Fernandes, por
exemplo, neto e bisneto de gaiteiros, iniciou a aprendizagem do instrumento com
A. Arribas, em 2000, contudo, descontente com o timbre e afinação adquiriu outro
instrumento à Associação Galandum Galundaina, e desde 2002/3 constrói palhetas
para a “gaita mirandesa”, numa tentativa de encontrar a sonoridade dos gaiteiros
mirandeses mais antigos, registados em fonogramas.
27
III. A (RE)FOLCLORIZAÇÃO DAS PRÁTICAS PERFORMATIVAS DA
GAITA-DE-FOLES: O PAPEL DA GALIZA E DOS AGENTES EM
MIRANDA DO DOURO E LISBOA
28
foles asturiana, gaita-de-foles sanabresa, gaita-de-foles alisteana (instrumentos
semelhantes quanto à morfologia, distinguindo-se uns dos outros, sobretudo, pelo
timbre ou pela técnica interpretativa).
Tal como em Espanha, Portugal foi governado por um regime ditatorial que se
apropriou das práticas folclóricas. A criação da imagem idílica, transmitida pelo
Estado Novo, de que Trás-os-Montes era uma “relíquia e mostruário do que mais
antigo ainda restava” (Leça 1942), viria a perdurar até bem recentemente 9 . Em
1938, organizado pelo SPN e enquadrado num movimento mais vasto de acção em
torno do folclore nacional, surge o concurso “A Aldeia Mais Portuguesa de
Portugal”, do qual Trás-os-Montes foi afastado devido a obstáculos colocados pelo
Júri Provincial que praticamente se opôs a participar no concurso (Félix 2003: 216).
Na verdade, a região sempre esteve muito ligada a Espanha. As fronteiras políticas
não impediram os contactos culturais e comerciais entre ambos os países, nem
durante o Estado Novo, nem após a instauração do Regime Democrático, até
porque, muitas vezes, a fronteira política atravessa a mesma aldeia, mas esta
funciona como um todo. Veja-se os casos de Rio D‟Onor (Brito 1991, 1996), a
Aldeia de Fontelas (O‟Neill 1991) e da Romaria da Senhora da Luz (Ribeiro 1967),
9
Veja-se a título de exemplo o estudo de A. Caufriez de 1997.
29
entre outros. É neste contexto que se insere Miranda do Douro, cidade fronteiriça
que sempre estabeleceu laços culturais e comerciais com o país vizinho, com
reflexos aos níveis da língua, da música, da dança e do trajo.
10
Género musical associado à coreografia da “dança dos paulitos” (ver capítulo VI).
30
Allora (Aragon), enquanto nos outros lugares foi substituída pelo calção branco ou
negro (Matellán 1987: 47-48).
31
mais próspera foi fundada em 1939, por Xosé Manuel Seivane Rivas, na província
de Lugo. De referir que, este é um dos construtores mais conceituados da Galiza na
actualidade.
No final dos anos 1990 e início do século XXI começaram a surgir alguns gaiteiros
em Miranda do Douro que se dedicaram à construção da Gaita-de-foles. O modelo
galego serviu de base, mas a influência fronteiriça deu lugar a “especificidades”
que associam cada instrumento a dada região. Célio Pires construiu a primeira
Gaita-de-foles há cerca de uma década, a partir de um modelo de Ângelo Arribas.
Descontente com a afinação procurou estudar ponteiros galegos, construindo
actualmente “gaitas galegas (em Dó e Si b), gaitas sanabresas, gaitas marciais,
escocesas e “gaitas mirandesas” (Entrevista a Célio Pires 4/8/2004). Outro gaiteiro,
Desidério Afonso, que toca gaita-de-foles desde 2000, começou a construir a partir
de 2002, com base num modelo da gaita-de-foles do gaiteiro que acompanhava os
Pauliteiros de S. Martinho em meados do século XX, freguesia onde reside.
Actualmente, constrói gaitas sanabresas, baseando-se nos modelos de Célio Pires e
tem vindo a desenvolver a construção de palhetas, processo que iniciou através da
13
As “bandas de gaitas” já existiam anteriormente, sendo referidas por Ernesto Veiga Oliveira em 1966, o
qual afirma que se viam “bandas compostas unicamente por gaiteiros, em número muito avultado” (Oliveira
2000: 223).
32
partilha de experiências com os construtores da Associação para o Estudo e
Divulgação da Gaita de Foles e com artesãos espanhóis.
33
como por exemplo as bandas de rock ou a acompanhar instrumentos de afinação
fixa, como o piano. Surge o gaiteiro virtuoso, o qual adquiriu um estatuto
importante no meio devido às qualidades artísticas e técnicas que lhe são
reconhecidas e não à funcionalidade da música que desempenha. Associada ao
virtuosismo, assiste-se a uma crescente complexidade das melodias. O capital
social ganho pelos gaiteiros estimula os jovens a aprender o instrumento.
14
Sobre esta questão ver a edição especial da revista DO brilhante, nº 1 de 1995, editada pela Asociación de
Gaiteiros Galegos.
15
Fundado em 1 de Maio de 1974 por José Mário Branco, organizou-se segundo uma estrutura político-
cultural a qual utilizava a música como meio de propaganda ideológica. O primeiro LP A cantiga é uma
arma (1975), utilizava, na maioria das composições, violas e baixos eléctricos. O segundo, Pois Canté!
(1976), é marcado pela influência dos instrumentos tradicionais, como a gaita-de-foles, o bombo e o adufe.
A partir deste LP, o GAC canaliza as suas preocupações políticas para o “povo” e sua representação musical,
invocando recolhas, instrumentos tradicionais, canções de trabalho, etc. Esta abordagem da música
34
minhota, que começou a visitar a Galiza com regularidade a partir dos anos oitenta
do século passado e a interessar-se pelo estilo performativo da gaita-de-foles galega
(ver capítulo III). Nos anos noventa muitos outros jovens começaram a demonstrar
interesse pela aprendizagem do instrumento e, posteriormente, iniciam-se no
instrumento em Lisboa, com Paulo Marinho.
tradicional constituiu uma referência para os grupos de recriação da música tradicional que surgiriam
posteriormente (Correia 1984: 201).
35
discursos ou representações por si produzidos sobre as tradições locais são
correlatos do poder de “autenticação” (Vasconcelos 1997: 232).
Mário Correia
Mário Correia surge em todo o processo de (re)folclorização das práticas
performativas associadas à gaita-de-foles, como agente mediador entre a população
rural, os eruditos e notáveis locais, as associações, os grupos organizados de defesa
ou promoção do património cultural, a imprensa escrita, radiofónica e audiovisual,
e os políticos responsáveis por instituições de âmbito local, regional e nacional.
36
Heróicas de Fernando Lopes Graça, à chamada “música de intervenção”, baseando-
se, sobretudo, nas entrevistas dos vários intervenientes publicadas em jornais e na
investigação sistematizada que levou a cabo. A obra contribuiu efectivamente para
a divulgação da “música popular portuguesa” e, ao mesmo tempo, para uma crítica
da política cultural do país pela negligência da música popular portuguesa, em
especial, nos meios de comunicação social, como a rádio ou a televisão (idem:
343).
Motivado por uma ideologia centrada na preservação das tradições do meio rural,
começou a realizar recolhas em Trás-os-Montes a partir do final da década de 1990.
Em 1997, convidou o Grupo Galandum Galundaina, de Fonte da Aldeia, para
actuar no Festival Intercéltico do Porto, grupo que ocupa um lugar importante na
produção da identidade local mirandesa.
37
constituição de um acervo de gravações musicais, provérbios, orações, contos,
versos, etc., obtidos através de recolhas nas zonas rurais junto da população mais
idosa. Neste centro, coloca à disposição do público interessado diversos
fonogramas e literatura relacionada com a música tradicional de várias regiões do
globo, para além do acervo musical constituído pelos documentários televisivos de
autoria de Michel Giacometti, Povo que Canta, constituídos por “fragmentos de
inquéritos musicais (...) realizados entre os anos 1970 e 1972” (Wefford 2004: 29).
De referir, que esta obra apenas se encontra disponível ao público neste local e no
Museu Verdades Faria, em Cascais. No Centro, Mário Correia também promove
exposições e conferências e, desde 2002, cursos de gaita-de-foles, pois este espaço
pretende incentivar as práticas musicais associadas ao instrumento e desenvolver
todo um conjunto de actividades que estimulem a sociabilidade entre várias
gerações, neste caso, entre os gaiteiros que ensinam e os que aprendem (Entrevista
a Mário Correia em 30/4/2002).
Para além deste centro, Mário Correia criou a empresa Sons da Terra – Edições e
Produções Musicais, oficializada em 2002, fazendo a sua gestão no mercado
cultural e turístico, no âmbito nacional, migratório, diaspórico e internacional. A
Sons da Terra serve de suporte para a edição de fonogramas baseados sobretudo
nas recolhas realizadas por Mário Correia, algumas das quais em colaboração com
outras entidades. A gestão e distribuição é feita através da Internet, venda em
museus (Museu de Etnologia em Lisboa, Museu das Terras de Miranda, etc.),
associações (Associação José Afonso) ou através da venda directa, quer no Festival
38
Intercéltico, quer noutros eventos semelhantes. Em média a tiragem de cada
fonograma é de 600 exemplares, o que a classifica como uma pequena empresa.
Apesar de ser apoiada por capitais próprios, depende ainda dos apoios de diversas
entidades oficiais, como as Câmaras Municipais, Juntas de Freguesia, Região de
Turismo do Nordeste Transmontano, IPAE, Ministério da Cultura, INATEL, entre
outros. O apoio destas entidades é determinante para o seu funcionamento.
A atenção dada aos gaiteiros por parte de Mário Correia, quer através da gravação
de fonogramas, quer através de promoção em espectáculos, contribuiu para a
valorização da gaita-de-foles e do seu repertório. Os fonogramas tornam-se numa
fonte de património constituído por repertórios autenticados, essenciais na
negociação da posição da música mirandesa no mercado de música e danças
tradicionais.
16
Termo émico referente a grupo de cantoras.
39
arranjar trabalho e estimulo. Reivindico ter sido a pessoa que introduziu o
pagamento aos gaiteiros. Fui acusado na 1ª festa da gaita-de-foles de dizerem
que eu tinha prejudicado isto, porque a partir da altura em que comecei a pagar
aos gaiteiros, não há nenhum que toque de graça. Eu pago-lhes 7 a 10 contos
por dia…” (Entrevista a Mário Correia 30 de Abril de 2002).
Além das actividades acima mencionadas, Mário Correia organiza desde 2000 o
Festival Intercéltico de Sendim, em colaboração com a Associação Mirai
Q‟Alforjas, sedeada na vila. O festival insere-se num conjunto de mercados
culturais e turísticos que promovem a “música tradicional”, a “world music”, a
“música folk” e “música celta”. A realização deste evento produziu efeitos a nível
da economia local, nomeadamente a criação de algumas infra-estruturas na região e
o desenvolvimento de áreas como o artesanato. Para além deste evento, dinamiza
desde 2003 o concurso “Arribas Folk”, que decorre em Sendim. Trata-se de um
concurso para “bandas Folk portuguesas” que surgiu como meio de estimular o
aparecimento de novos agrupamentos. Com este concurso, Mário Correia detém
alguns mecanismos de auto-regulação dos grupos participantes, ao eleger o melhor
grupo, ao qual é facultada a participação na abertura do Festival Intercéltico de
Sendim, favorecendo a aceitação pelas rádios locais ou ainda a inserção comercial
nos espectáculos do circuito turístico.
17
O Jornal o Século, datado de 21 de Maio de 1898, refere a presença em Lisboa de um grupo de pauliteiros
de Miranda, por ocasião das Comemorações do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a
Índia, cuja orquestra era composta por “um tocador de gaita-de-foles, de um exímio tocador de pífaro, que os
dirige, e um tambor e um bombo”.
40
acompanhados por instrumentos de percussão, como a caixa e o bombo, ou ainda,
formações que utilizam o material folclórico como fonte de inspiração, mas que
incorporam novos elementos, melódicos, rítmicos ou timbricos, como o Grupo
Galandum Galundaina.
41
Foi com base nesta política que a autarquia criou a Casa da Música Mirandesa (ver
capítulo VII), que representa um espaço onde se desenvolve a sociabilidade gerada
pela prática da música tradicional mirandesa.
42
musical dos seus elementos. Inicialmente formado por Abílio Topa, Alexandre
Meirinhos e Paulo Meirinhos, em 2000 integra um quarto membro, Paulo Preto.
Actualmente é constituído por quatro elementos: Paulo Preto (professor de
Educação Musical) voz, gaita-de-foles mirandesa, sanfona, flauta pastoril e
tamboril; Paulo Meirinhos (professor de Educação Musical) voz, bombo, gaita-de-
foles galega, percussões; Alexandre Meirinhos (professor de Educação Musical)
voz, caixa de guerra18, percussões e Manuel Meirinhos (estudante de engenharia
geográfica) voz, percussões, flauta pastoril e tamboril. Constituído com base numa
estrutura familiar, todos os elementos têm um percurso musical similar, com a
frequência de conservatórios de música ou instituições semelhantes. O grupo tem
dois discos editados em CD: L’ Purmeiro e Modas i Anzonas.
18
Instrumento popular português (Oliveira 2000. 255), bimembranofone de percussão indirecta, que tem um
ou mais bordões na parte inferior.
19
De referir que a construção deste instrumento foi concebida por José Preto, professor de História, em
conjunto com os elementos do grupo Galandum Galundaina.
43
espaço de representação da cultura mirandesa, e por outro lado, transformam-no
numa fonte de capital artístico, importante na negociação da posição de mercado da
música tradicional mirandesa.
20
Cf. Oliveira, Ernesto Veiga de
44
“... ponendo um cachico de I que mos bai ne I coraçon, de maneira a amanhá-las
más fermosas i cumpuné-las cun sonidos, ritmos i harmonies que séian capazes
de criar bun gusto, eimoçon i purque nó, algua modernidade” (CD Modas i
Anzonas 2005).
A associação apoia ainda iniciativas dos vários membros que lhe estão filiados,
como o grupo Os Lenga Lenga, ou Os Picatumilho, bem como, edições de livros de
sócios da associação.
45
Para além destas actividades, a associação promove sociabilidades geradas pela
prática da música e danças tradicionais, levando a cabo outras iniciativas
recreativas que envolvem a comunidade local, como passeios ciclo turísticos e
concertos de música erudita.
Marinho teve o primeiro contacto com o instrumento nos anos oitenta do século
XX. Em 1982, com dezoito anos, ingressou no Sétima Legião como gaiteiro, um
grupo de pop-rock, formado em Lisboa por jovens. Este apresentava uma
interpretação vocal influenciada pela pop britânica dos finais da década de setenta,
acompanhada por instrumentos musicais conotados com a música tradicional, como
a gaita-de-foles, flauta e acordeão. O grupo teve bastante êxito nos anos oitenta e
início dos anos noventa do século passado, tendo gravado oito fonogramas. Um ano
depois, Paulo Marinho associa-se ao Centro Galego em Lisboa e a partir de 1984
começa a fazer parte dos Anaquiños da Terra, grupo afecto a este centro.
46
Em 1992, Paulo Marinho começou a ensinar gaita-de-foles no Centro Galego em
Lisboa e a fomentar alguns “workshops de gaita-de-foles”. O ensino surgiu como
meio que visava a promoção da gaita-de-foles no contexto urbano, iniciativa que
estimulou o aparecimento de um grande número de interessados pelas práticas
performativas associadas ao instrumento.
47
realizada, no âmbito da Associação, acerca do instrumento gaita-de-foles e da
música tradicional” (Marinho 2001: 3).
48
organização de encontros de gaiteiros, a divulgação do instrumento e de informação
sobre actividades associadas à cultura expressiva tradicional, através do seu site na
Internet, actualizado quase diariamente.
3. Conclusão
Na acção de todos os agentes aqui referidos existe uma ideologia centrada na
preservação da tradição que é transversal a todos eles. A ideia de “tradição” está
associada a um “passado”, consolidado secularmente, que confere e garante a
“autenticidade” e “legitimidade” às práticas revivificadas (Kirshenblatt-Gimblett
1995: 371). Os agentes envolvidos no processo de (re)folclorização das práticas
musicais associadas à gaita-de-foles detêm mecanismos que controlam os mercados
culturais e turísticos, produzem alterações nos espaços simbólicos de representação
da prática folclórica, e na diversificação dos agrupamentos. O repertório e
construção do instrumento transformam-se em capital artístico, herança a partir da
49
qual são produzidas exibições para turistas, transformando a cultura num produto
de exportação.
50
IV. DOIS CONTEXTOS DE DESEMPENHO
1. Música Celta
O fenómeno do celtismo teve impacte importante na indústria musical nos anos
1990. O celtismo refere-se a um movimento que surgiu nas últimas décadas do
século XX, como resposta ao capitalismo, e reflectiu-se nas artes, artesanato,
literatura, política, aprendizagem de línguas arcaicas, estudos académicos,
migrações para o meio rural, etc. (Chapman 1992: 219). O termo “música celta”,
como categoria internacionalmente reconhecida (Chapman 1992, 1994, Reiss 2003,
Stokes & Bohlman 2003), surgiu nos anos 1970 a partir do interesse de alguns
antropólogos pelas questões relacionadas com a etnicidade dos países de línguas
associadas à “cultura celta”, nomeadamente o gaélico e o bretão (Chapman 1992:
207; 1994: 29 e 32).
A definição e fronteiras da “música celta” são vagas. Podemos dizer que ela existe
apenas como comunidade imaginada (Anderson 1983), que nasce no estúdio, e
51
sobrevive nos CDs e cassetes, na rádio e na TV, nos filmes, na Internet e em palco
(Reiss 2003: 158). Trata-se de uma tradição inventada (Hobsbawm 1997) pela
indústria musical (Reiss 2003: 160), tal como a categoria world music, criada em
1987 por executivos ligados à indústria musical, como forma de desenvolver o
interesse pela música africana (Taylor 1997:2).
Estes fenómenos podem ser explicados através daquilo que Appadurai identifica
como landscapes, “paisagem identitária dos grupos”, característica do pós-
modernismo, que incorpora cinco categorias:
52
2. O Festival Intercéltico de Sendim
Como forma de promoção, divulgação e preservação da “música celta”, surgem
uma série de eventos, como concursos e festivais. O Festival Intercéltico de
Lorient, realizado na Bretanha desde 1970, é considerado o maior festival de
“música celta” (Wilkinsos 2003: 228). A participação dos grupos nos festivais dá-
lhes visibilidade e uma certa notoriedade, permitindo que estes entrem no circuito
comercial e profissional.
53
entradas para o festival, número que sofreu um incremento nos anos seguintes,
passando para 4150 entradas vendidas no ano de 200421.
21
(Entrevista a Mário Correia em 7 de Agosto de 2003 e Agosto de 2004)
54
organização como os mais conceituados no mercado da música “folk” ou “celta”. O
público, proveniente das povoações próximas de Sendim, de outras regiões do país
e de Espanha, dança e aplaude todas as apresentações que ocorrem no palco. É
notória a presença de um maior número de pessoas quando actua a última banda
(ver DVD filme 1). Em alguns casos, o repertório tradicional de cada país é
completamente transformado, dando lugar a combinações próximas do jazz, da
música de dança, música latino americana ou africana, constituindo por vezes
completas secções de improviso sobre a chamada “world music”. Como observa
Reiss, a inclusão da música tradicional irlandesa na categoria de world music,
poderá ter sido uma das razões que levou alguns agrupamentos a incluírem nas suas
formações instrumentos como djembe, congas, didjeridu, bouzuki e outros, que não
deixando de ser comuns na “música celta”, produzem sonoridades que a colocam
num imaginário exótico (Reiss 2003: 161). As configurações globais da tecnologia,
e a facilidade com que esta circula através dos meios de informação, levam a
configurações que tornam a identidade dos grupos cada vez mais ténue.
55
“ (...) faço parte do júri de um concurso que se faz nas Astúrias e pareceu-me
uma excelente ideia para Portugal fazer um concurso e dar prémios aliciantes,
como seja o 1º prémio actua na abertura do festival em Sendim, o 2º prémio na
abertura do festival em Vizela, para além de um CD editado sem fins comerciais
para ser distribuído pela vária imprensa, concertos em Espanha e em festivais.
Portanto a ideia surgiu, essencialmente como forma de criar um espaço para
divulgar e dar visibilidade. O concurso chama-se “Concurso Nacional de música
folk” e destina-se apenas a grupos nacionais porque tem uma estrutura de apoio
do Ministério da Cultura (...)” (Entrevista a Mário Correia a 7/8/2003)
56
mais contribuem para a (re)folclorização das práticas musicais associadas à gaita-
de-foles, uma vez que a interacção entre as pessoas é muito maior. Nos cafés e
esplanadas é frequente juntarem-se vários grupos de espanhóis (sobretudo galegos)
e portugueses a cantarem e a tocar gaita-de-foles, tamboril, caixa, tinwistle,
pandeireta e todo um conjunto de objectos utilitários que permitem obter som
através da percussão, como garrafas de plástico ou vidro, colheres, ou
simplesmente o percutir das mãos na mesa ou no corpo. As melodias sucedem-se
umas às outras e o repertório integra a Dança dos Paus, o Pingacho, a Murinheira
de Chau, A Saia da Carolina, comum a várias regiões de Espanha e Portugal (Trás-
os-Montes, Galiza Leão e Castela) (ver DVD filme 4).
“Miranda do Douro tem uma série de cultura aqui enraizada: os celtas, os pauliteiros,
as gaitas” (Entrevista a António Carção, 2/8/2004, vereador da cultura da CM.M.D.).
A presença dos celtas na região começa a ser um dado adquirido para a população
local, que procura um fundamento nas fontes históricas. Monumentos como os
“castros celtas” (ver Associação Galandum Galundaina, no capítulo III) fazem
parte dos roteiros turísticos da região, bem como a gaita-de-foles, podendo
57
encontrar-se em folhetos de promoção turística da região expressões como: “Os
celtas (...) terão começado a aportar a estas paragens por volta do século VIII (...)
crê-se que estes povos celtas também se apresentaram com gaita-de-foles” 22 .
Evidentemente que esta afirmação não tem fundamento histórico, contudo, esta
imagem começa a ser aceite pela população em geral sem qualquer
questionamento. O seu autor, tem publicadas algumas obras em mirandês, que são
apoiadas por organismos como o INATEL, Ministério da Cultura, IPJ, para além
dos apoios locais de Juntas de Freguesia, Governo Civil de Bragança ou C.M.M.D.
Como observa Morgan, ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, foram criadas
várias sociedades que se dedicavam à promoção dos hábitos e costumes gauleses,
através do convívio social entre os membros, cujos passatempos passavam pelos
concursos de poesia, literatura e música, dando origem à competição em festivais,
nos quais a música parecia ter uma maior influência, sobretudo a harpa. Edward
Williams, membro de uma destas sociedades, era obcecado pelos mitos e pela
história, e a partir do interesse pelo druidismo no século XVIII, inventou que
bardos e gauleses eram herdeiros dos antigos druidas e deles tinham herdado os
rituais, a religião e a mitologia. Na verdade, não fundamentando as suas ideias em
factos históricos mas apenas nas suas obsessões, Williams acabou por criar novas
tradições que foram decisivas para a história, como por exemplo a restauração do
druidismo (Morgan 1984: 71).
22
Fernandes, José Francisco (S.d.) in Folclore Mirandês. Pauliteiros e outras expressões folclóricas.
Associação para o Desenvolvimento Integrado de Palaçoulo.
58
Ernesto Veiga de Oliveira (11966, 32000: 105). Mário Correia pretendeu, deste
modo, integrar esta prática no Festival Intercéltico, o que incentivou a sua
continuidade em outras ocasiões litúrgicas. As primeiras reacções por parte das
senhoras mais idosas quanto à opção da gaita-de-foles no decurso da missa foram
negativas, não a considerando adequada, contudo, o discurso do Padre Silva viria a
justificar a opção tomada:
“Nesta igreja, desejamos as boas vindas aos que hoje nos visitaram, movidos
pelo Festival Intercéltico, na sua IV Edição, bem-vindo sejais e que tudo sirva
para o reconhecimento integral da nossa terra. Estamos em festa (...) Deus é o pai
de todas as músicas, toda a música canta a música de Deus... a música é a
colectânea de Deus sempre actualizada... Deus canta com todos os sons da
terra...”(Agosto de 2003)
Carla- Alguma vez tinha celebrado uma missa assim deste género? Com gaita-
de-foles... os pauliteiros...
Padre Silva- Foi um pouco diferente... Nós tínhamos... projectado... planeado...
eee... e executámos... como tínhamos pretendido... Quisemos foi dar..., e a
comunidade estava... preparada para isso..., dar um sentido..., um pouco... que...,
tudo pode entrar na eucaristia..., e a eucaristia tem que ir a tudo..., tudo aquilo
que seja... para valorização do homem... nós temos que levar a eucaristia a isso...
Portanto, esta foi a finalidade..., com que nós organizamos uma missa destas....
Quando soube da festa... imediatamente... combinámos... os organizadores
comigo, e eu com eles... e fomos... orientando as coisas para que hoje
acontecesse...
Carla- Porque é que se chama missa intercéltica?
Padre Silva - Não sei! A missa é sempre só missa. Aquilo foi o que puseram nos
cartazes. Já sabe, as pessoas às vezes... usam palavras... não é tanto com o rigor
da... dos termos... mas é mais às vezes com o cartaz. A missa é uma missa cristã,
59
uma missa católica..., aaa... puseram lá o nome missa celta ou intercéltica,
precisamente por estar inserida nas festas... no festival... (Entrevista ao Padre
Silva a 3 de Agosto de 2003)
60
aprenderem o instrumento. A construção de património, constituído por repertórios
autenticados, através da recolha junto dos gaiteiros mais idosos que participavam
no encontro, também integrava as motivações iniciais do evento. A valorização do
património (repertório) e a atenção dada aos gaiteiros por parte das camadas mais
jovens (membros das associações organizadoras e público) concedeu aos gaiteiros
“capital artístico”, essencial na negociação da sua posição no mercado de música e
dança tradicionais.
61
agrupamentos centrados na gaita-de-foles eram constituídos por elementos do sexo
masculino. As transformações sociais ocorridas em Portugal nas últimas décadas do
século XX produziram alterações a nível das mentalidades, dando lugar à
integração de elementos femininos nestes agrupamentos, sem que para tal existam
quaisquer relações de parentesco.
O desfile pelas ruas surge como uma “elaboração cénica” (Branco 1995: 170) das
arruadas e dos peditórios, frequentes ao longo do século XX nas festas no contexto
rural (ver DVD filme 7). O espectáculo em palco no período da noite dá
continuidade à institucionalização do folclore que ocorreu no período do Estado
Novo, onde os grupos adoptaram uma nova forma de cantar e de dançar: sobre um
estrado, integrados num grupo misto, acompanhados por tocadores e dançarinos
fardados, perante uma assistência passiva, que assumia o papel de ouvinte (Castelo-
Branco & Branco 2003: 20). A apresentação em palco, apesar de remeter para uma
esfera rural, indicia uma prática urbana, na qual os seus protagonistas já não são só
gente do campo, mas sim operários, empregados no sector terciário ou estudantes,
no caso dos mais jovens (ver DVD filme 6).
62
encontram-se determinadas opções quanto aos instrumentos usados, afinação,
concepção de palhetas ou técnicas de construção da gaita-de-foles.
O vector visual surge como o primeiro meio de comunicação com o público. Este
manifesta-se através do trajo com que se apresentam a maioria dos grupos. O trajo,
que no início do século XX reflectia o elemento paródico equivalente à inversão de
papeis, onde as filhas da burguesia se transformavam em camponesas, com a
institucionalização do folclore perde o significado de representação invertida, para
dar lugar a exibições evocativas de lugares, tempos passados, papeis e estatutos
sociais (Castelo-Branco & Branco 2003). São sobretudo estes últimos que estão
representados nos trajos com que se apresentam os gaiteiros neste encontro. A
título de exemplo, o trajo dos gaiteiros mirandeses, poderá evocar Trás-os-Montes
num tempo passado (primeira metade do século XX), associado a pessoas de
condição social desfavorecida, isolados do resto do mundo, ou o trajo dos Gaiteiros
do Espírito Santo do Carregueiro, do distrito de Santarém, cuja indumentária
representa o fato domingueiro do campino ribatejano do século XX, ou ainda a
inspiração nas bandas filarmónicas ou militares.
63
seguem o modelo implementado na Galiza por Xosé Lois Foxo, cujas opções
estéticas os distingue dos demais pelo trajo, inspirado em iconografia do século
XVIII ou da idade média, pela postura em desfile, que apresenta uma coreografia
própria com base no compasso, pelo uso de gaitas de fole semelhantes às Gaitas
escocesas, pelo repertório, baseado sobretudo em composições galegas, escocesas,
irlandesas e de outras culturas musicais. Para além destas características, estas
bandas procuram uma qualidade técnica a nível da afinação, do rigor na execução,
etc., condições que lhes são “impostas”, para serem aceites em campeonatos de
bandas de Gaitas na Galiza ou em outras regiões.
64
V. TRÊS OCASIÕES PERFORMATIVAS
65
1. O grupo Galandum Galundaina23 nas Festas de Santa Bárbara em
Sendim (6 de Agosto de 2003)
O palco encontrava-se às escuras começando a ouvir-se o som de um
membranofone, que pouco a pouco se tornará visível. Alexandre Meirinhos sentado
numa cadeira ao centro do palco, segurava tal instrumento que se fazia ouvir,
percutindo-o com as mãos. Os elementos do grupo foram-se aproximando. Todos
se encontravam trajados: calça de burel24, colete de cor castanha, camisa branca.
Uma melodia tocada na flauta de tamborileiro, por Alexandre Meirinhos, fazia a
transição para a gaita-de-foles mirandesa, tocada por Paulo Preto, acompanhada
pelo bombo, caixa, tamboril e castanholas. Diversas variações, bastante
ornamentadas, sobre o tema da Bitcha, introduzem o lhaço Campanitas de Toledo
(ver anexo 3 e DVD filme 11). Sendo a primeira alocução oportunamente proferida
por Paulo Meirinhos, em mirandês:
“Deus vos dê Buenas noites. Bom então, nós vamos a tocar e vós a ver se bailais, porque
também estar assim… nós a tocar aqui com tanto esforço e a asudar com estes casacos e
com estas calças que até picam, se vós não bailardes nós aqui estamos a perder el tiempo.
A ver se bailais que é para vos animardes e nos animaresde-nos a nós.” 25
23
Ver referências acerca da constituição e formação do grupo na página 43.
24
Burel – tecido de lã simples e grosseiro.
25
A transcrição do mirandês é de minha autoria e não obedece a qualquer regra de escrita formal da língua,
mas apenas pretende representar a fonética apresentada.
66
a performance musical, o que só veio a acontecer no final da actuação, após
diversas solicitações por parte do grupo.
26
Espécie de reco-reco constituído por uma garrafa ondulada a qual é friccionada com um garfo. Este
instrumento está descrito no livro Instrumentos Populares Portugueses, de E.V. Oliveira, classificado como
instrumento avulso (Oliveira 2000: 308).
27
Optei por Passa calhes porque esta é a grafia que o grupo adopta no CD L Purmeiro.
67
esta sucedeu Redondo, igualmente na gaita-de-foles mirandesa e instrumentos de
percussão. Recursos estilísticos como o vibrato e ornamentação são bastante
explorados na gaita-de-foles em todos os temas apresentados.
A moda Redondo, ou, Nós daqui e vós dali, apresentada anteriormente na versão
instrumental, surge na versão cantada, acompanhada pela Gaita galega, sanfona,
garrafa com garfo e cântaro28. A estrutura melódica foi AB, em que A foi cantado
por todos os elementos do grupo, em uníssono, e B correspondente ao refrão,
cantado a duas vozes à distância de terceiras. A recriação desta composição denota
alguma influência da interpretação deste tema pelo grupo Gaiteiros de Lisboa, cujos
materiais musicais parecem estar submetidos à mesma leitura.
Cerigoça faz parte do repertório de baile circular (Mourinho 1984: 555), e foi a
composição seguinte. Após uma secção improvisada, a flauta tamborileiro
introduziu o tema, cuja melodia silábica, foi cantada em terceiras e acompanhada
pelos instrumentos de percussão. A esta seguiu-se outro romance, Chin- Glin-Din,
numa tonalidade menor. O canto foi acompanhado pela sanfona, caixa, triângulo e
bombo, enquanto a gaita-de-foles galega intervinha nos interlúdios instrumentais.
No final, e pela primeira vez, a gaita-de-foles acompanhou em simultâneo o canto.
28
(Oliveira 2000: 309).
68
Apesar dos constantes apelos do grupo, o público revelava-se pouco participativo,
limitando-se a aplaudir no final de cada composição apresentada. Na alocução que
seguiu Paulo Preto evidencia, mais uma vez, a necessidade de manutenção da
língua mirandesa, música e dança:
“Isto é pedagógico. Desculpem lhá mas tenhemos que parar porque só vemos os
novos a bailar, e aos bilhos é que saibam, porque não ensinais aos vossos filhos a
dançar o Repasseado? Porque não agarrais num filho vosso e dizeis: «anda cá que
havemos de bailar o Repaseado». Mas tenemos que ser muitos se não paramos outra
vez.”
69
Após este breve interregno, o público interagiu com o grupo dançando e cantando
ao longo da performance. Parte da assistência, que se encontrava na praça a assistir,
começou a dançar a pares, enquanto outra cantava ou acompanhava com aplausos.
70
“Muito boa noite a todos. Nós somos o grupo Ao Sons das Arribas, de Miranda do Douro
e é com muito gosto que estamos aqui para actuar com vocês. Vamos apresentar algumas
músicas tradicionais mirandesas. Para já começo a apresentar o grupo. Aquele senhor ali é
o nosso avô, que é o mestre e artesão de gaitas de fole, de bombos, de tamboris, de flautas
pastoris, de caixas de guerra29, que é este instrumento que eu tenho estado a tocar, dos
pandeiros, ou adufes, como vocês lhes queiram chamar. De seguida passo a palavra ao
meu avô, que vai falar um bocadinho em mirandês… e espero que gostem… da nossa
actuação. Aaa… alem do mais, este é o meu irmão, o Dinis, que gosta de tocar gaita-de-
foles desde pequeno e que é estudante, depois, aqui ao meu lado esquerdo é a minha
prima, que é a Celine, que é fisioterapeuta e gosta também de nos acompanhar e de tocar
os nossos instrumentos tradicionais, eu chamo-me Anita, sou trabalhadora social, e
também adoro tocar os instrumentos tradicionais e também de manter a tradição. De
seguida passo a palavra, como eu já tinha dito, ao meu avô, que vai falar um bocadinho
em Mirandês.”
Ângelo Arribas:
“Portanto, o que acabámos de tocar chama-se Alvorada, que é a música que se costuma
tocar no início das festas. De seguida vamos tocar o Passacalhes que é uma moda que
tocamos depois de tocar a Alvorada porque a Alvorada tem o nome con‟ elha, alvor do
dia, tocava-se às cinco da manhã ou cinco e meia para a seis da manhã para anunciar a
festa. Depois costumamos “matar o bitcho”, que nós dizemos: vamos a “ceionar”. Depois
tocamos então a Passacalhes, é a primeira moda que tocamos que é para tirar a esmola
pelas portas, que é para fazer a festa. Então vamos tocar o Passacalhes”.
29
Caixa de guerra é a designação émica para caixa de rufo. Optei pela designação de caixa, tal como E. V.
Oliveira (Oliveira 2000: 257).
71
O programa evoca a sequência do repertório, apresentado no contexto festivo, com
a Alvorada a dar início à actuação, representando o anúncio da festa, seguida de
Passacalhes, que é uma moda tocada em arruadas e peditórios. As alocuções
pretendem informar o público acerca do repertório a apresentar:
“De seguida vamos tocar uma música que é dançada pelos pauliteiros, que é o grupo
tradicional de Miranda, que são rapazes, com saias que dançam com paus”.
“De seguida vamos cantar uma música que se chama O pandeiro, que vai ser tocada
com a flauta pastoril com três buracos e o tamboril, o bombo e as conchas… e o
pandeiro”
Ângelo Arribas:
“Vocês… ou vós… em mirandês, vós de certeza que não davas nada por este
palico, pois não? Este palico, não queria mentir…, tinha eu, oito, nove anos…,
andava com as ovelhas…, nas arribas do Douro! Não tenia com que me
entretener… fiz um tamborenico pequeno das lhatas das sardinhas de escabeche de
quilo e meio e fiz uma fraitita pequena e já tocava, já tocava… começava a tocar
três modas, três cantigas, e casa-se um rapaz vizinho, da minha terra, com uma
rapariga de Miranda, o que é que se havia de lembrar, de chamar-me a mim”.
72
Em seguida, outro género coreográfico associado à dança, Mira-me Miguel, uma
dança a pares (idem: 565), foi tocada por Ângelo Arribas na flauta e tamboril, e
cantada por Anita e Celine. A estrutura melódica apresentada foi AA BB (Ver
anexo 3), em que a parte A funcionou como refrão, cantada primeiro em uníssono e
repetida a duas vozes em terceiras, numa alternância entre parte instrumental e
vocal. De salientar, que esta dança é inserida na categoria de romance por Anne
Caufriez (1997: 48).
“De seguida vamos mudar outra vez para gaita-de-foles e vamos a mais uma que se
chama o Repasseado, que é uma dança… que é uma cantiga dançada pelos ranchos
folclóricos da nossa cidade, Miranda do Douro.”
Ângelo Arribas:
“De seguida vamos tocar outra que se intitula Oh Helena, que é tocada e cantada, mas
neste caso vai ser só tocada pela gaita-de-foles só. A Helena, sendo um baile muito
tradicional mesmo… mirandês, eu vou demonstrar com a minha neta como é que se
dança a Helena, e gostaria que… depois de lhes ensinar aqui, que dançasses ao toque
da gaita-de-foles”
73
numa primeira intervenção à capela e depois na versão instrumental com a gaita-de-
foles, bombo, caixa e pandeiro.
A introdução de repertório por parte dos mais jovens começa a ser frequente.
Passeado, foi recolhida em Rio de Onor por J. A. Sardinha e registado em Portugal
Raízes Musicais - Trás-os-Montes (1996). Esta composição foi, ainda, recriada pelo
grupo Gaitafolia, e publicada em notação musical na revista da associação Gaita de
Foles. A circulação de informação pelos média e as configurações da tecnologia,
favorecem a integração de novo repertório, que é assimilado pelos grupos.
A expressão usada por Arribas: “esta é vossa”, reflecte a noção de divisão do país
em regiões musicais, reflexo da folclorização instituída pelo Estado Novo.
Contudo, a facilidade de circulação de pessoas, bens e informação, faz com que
seja cada vez mais difícil aos grupos invocarem o seu espaço em referência a um
território. O público continua a assumir uma posição passiva.
74
Ângelo Arribas tece algumas considerações acerca dos lhaços, contextualizando o
lhaço Vinte Cinco, o lhaço Balentina e algumas das melodias mediatizadas que se
transformaram em lhaços, isto é, que se converteram em melodias dançáveis pelos
grupos de pauliteiros:
“Os lhaços dos pauliteiros são vinte cinco. Hoje… já mudou muita cousa, há mais que
25 lhaços, dança-se nos pauliteiros o Fado, o Raspa, Maria Alice, as Pombas das
Catrininhas, e vários lhaços que não são lhaços. O 25 é um lhaço guerreiro… que todos
os lhaços eram lhaços guerreiros, a não ser o Padre António, o Padre António que é um
lhaço religioso, as campanitas, que foi a primeira que tocámos, são religiosas, o Acto
de contrição com Deus Miu, é um lhaço religioso, Carmelita, é um lhaço religioso,
pronto!… mas este não é religioso, o que vou tocar, também é um lhaço dos pauliteiros,
há quem lhe chame a Esmola, ou a Balentina. A Balentina era uma mulher de
Freixenosa, da mi tierra, e que era de “pelo na venta” como se costuma dizer, era assim
um bocado… terrível. E a dança dos pauliteiros, que são oito, mais os tocadores…
Gaita, caixa e bombo, andavam a dar a volta, mas quando chegaram a la porta dessa
senhora, ela disse ao gaiteiro… ao mordomo da festa: «Eu só te dou uma esmola se me
ajeitares um lhaço só para mim!» e o gaiteiro disse assim: «Nada mais. Está feita,
vamos embora.» Pronto não pegaram a esmola, ela não lha dava, queria um lhaço só
para ela sozinha, e deram a volta ao povo 30 e quando chegaram novamente à porta
dessa mulher já levavam o lhaço estudado”.
30
Povo significa aldeia, povoado.
75
As alocuções ocuparam cerca de 50% do tempo total da actuação. Termos como
“muito tradicional” ou “músicas tradicionais mirandesas” foram usados com
frequência para legitimar o repertório apresentado. Foi feita alusão a três contextos:
a festa, o trabalho e a devoção. O espaço da festa remete para questões temporais.
O anúncio da festa através da Alvorada às “cinco e meia para as seis da manhã”,
seguido do Passacalhes para “tirar a esmola pelas portas para fazer a festa” ou a
Balentina. O contexto do trabalho sugere um tempo passado e é colocado em
evidencia nas descrições de uma paisagem bucólica, ilustrada através da imagem do
pastor guardador de ovelhas que como “não tinha com que me entretener” fazia os
seus próprios instrumentos. A devoção é outro dos contextos apresentados
sobretudo, quando se faz a distinção entre lhaço religioso e guerreiro.
O público reagiu com aplausos aos primeiros sons provenientes dos instrumentos,
continuando a manifestar-se durante todo o espectáculo de forma entusiasta.
76
segunda secção. A escolha de um tema galego para o início da actuação revela a
influência da região e a forma como esta se reflecte nas opções estéticas do grupo.
Seguiu-se A Minha Rosinha, uma valsa que faz parte do repertório dos ranchos
folclóricos da região de Torres Vedras. Nesta última, a introdução foi realizada por
Mário Estanislau, entrando os restantes elemento do grupo na parte B (ver anexo
3). A melodia, composta por duas frases curtas, caracteriza-se pelo movimento
ondulatório onde predominam os graus conjuntos, movendo-se num âmbito de
sétima. O grupo continua a actuação sem proferir qualquer alocução. O público
manifesta-se entusiasticamente trauteando a melodia.
77
Seguiram-se três composições recolhidas em Trás-os-Montes:
Mirandum/Carvalhesa e Carvalhesa de Vinhais. As duas primeiras foram tocadas
sem interrupção. André Ventura apresentou Mirandum num andamento lento, que
foi repetido pelos restantes elementos do grupo. A estrutura melódica, ABB‟
constrói-se sobre uma melodia onde se destacam os cromatismos e predomínio de
graus conjuntos. Carvalhesa, é uma dança recolhida em Trás-os-Montes, e registada
em fonograma por Anne Caufriez (1997: 286). Carvalhesa de Vinhais, registada
por E.V. Oliveira em 1960/3, faz parte da categoria de dança, encontra-se transcrita
em notação musical na Revista Gaita de Foles. Em ambas as composições, a
estrutura melódica repete diversas vezes em uníssono e a duas vozes à distância de
terceiras.
Por Entre Vales é uma composição inédita, de autoria de Mário Estanislau, que a
introduziu a solo na gaita-de-foles. É composta por três frases, repetidas duas
vezes cada uma, onde predominam os graus conjuntos numa melodia que vai
desenhando pequenos movimentos ondulatórios num âmbito de sexta. Esta
estrutura foi repetida por mais quatro vezes pelos restantes elementos do grupo
(anexo 3). A maioria das composições apresentadas é composta por duas frases
curtas que repetem diversas vezes, estrutura seguida por Mário Estanislau nesta
composição.
A composição galega Quero que... foi transmitida a Vítor Félix por um galego, num
dos E.N.G., e recriada pelo grupo, passando a fazer parte do seu repertório.
Composta por duas frases, repetidas duas vezes cada, foi repetida por todo o grupo
num total de cinco vezes (DVD filme 10). A introdução de repertório através da
forma directa num dos eventos promovidos pela A.P.E.D.G.F. vem corroborar a
ideia veiculada no capítulo anterior (ver página 62).
78
AABB, precedida de uma introdução realizada por André Ventura na gaita-de-
foles, num andamento moderado, culminando num movimento melódico
descendente por graus conjuntos, que conduziu ao tema principal (ver anexo 3),
repetida diversas vezes pelo grupo. O público começa por acompanhar a
performance de André com palmas e entra em êxtase quando os restantes elementos
do grupo começam a tocar. De súbito, o grupo circula pela sala enquanto toca,
misturando-se com o público que se manifesta dançando, cantando e aplaudindo de
forma efusiva (ver DVD filme 10).
O Fado Batido foi a penúltima composição. Esta foi recolhida por J. A. Sardinha
em Torres Vedras. A uma introdução lenta, realizada na gaita-de-foles
transmontana por Mário Estanislau, em que se fez uso de recursos estilísticos
como os vibratos e portamentos, seguiu-se a estrutura melódica AABB, tocada
alternadamente pelos vários elementos do grupo, repetida num total de doze vezes
num andamento cada vez mais acelerado.
79
4. Conclusão
A ideologia ruralista centrada na preservação da tradição é princípio subjacente aos
grupos aqui apresentados. Em Galandum Galundaina e Som das Arribas, a prática
folclórica evidencia a necessidade de manutenção das tradições mirandesas. A
primeira forma de comunicação com o público ocorre quando estes se apresentam
em palco trajados, remetendo para a representação do espaço mirandês, evocando
um tempo passado e uma condição social. A “tradição mirandesa” apresentada
através da língua mirandesa, utilizada tanto nas alocuções proferidas, como nas
cantigas, reforça a diferença entre a população de Miranda e o resto do país e define
a identidade territorial de ambos os grupos. As duas actuações ocorreram em
espaços distintos e dirigiam-se a públicos diferenciados: Galandum Galundaina no
espaço mirandês, para um público conhecedor da língua e de todas as práticas
musicais associadas ao contexto, e Som das Arribas no distrito de Setúbal, perante
um grupo de cerca de quarenta pessoas com idades compreendidas entre os trinta e
sessenta anos, assistência pouco ou nada familiarizada com as tradições
mirandesas.
80
as fronteiras entre performadores e assistência. A (re)folclorização levada a cabo
pelo grupo inverte a relação distante entre performadores e público, geralmente
passivo, instituída no período do Estado Novo. O grupo estimula a participação de
todos e a performance envolve o grupo e toda a assistência.
81
VI. REPERTÓRIO
Neste capítulo pretendo reflectir acerca de alguns dos géneros musicais mais
significativos no repertório da gaita-de-foles, disseminados tanto em Miranda do
Douro como na área Metropolitana de Lisboa. O repertório da gaita-de-foles
reflecte, em primeiro lugar, a institucionalização do folclore no período do Estado
Novo, em segundo, a institucionalização da música instrumental associada ao
contexto rural, em terceiro lugar, as movimentações populacionais motivadas pela
migração e pelo turismo, e, por último, a circulação de informação pelos média,
bem como, a criação de imagens difundidas por estes meios.
82
músico-instrumentais, de acordo com as formas e manifestações musicais
características de cada uma, e o instrumento ou conjunto instrumental com que
estas eram realizadas” (Oliveira 1196632000: 14).
1. Géneros instrumentais
O Passacalhes é um género musical associado às rondas, alvoradas e marchas de
procissão, com uma estrutura melódica composta por duas frases musicais curtas,
repetidas duas ou três vezes cada uma, numa métrica regular de 2/4 ou 4/4. A
designação de Passacalhes parece ter sido importada do espanhol, uma vez que o
83
termo significa literalmente ronda pelas ruas (calhes em castelhano), tendo sido
adoptado por Ernesto Veiga de Oliveira em 1966 (Oliveira 2000: 108).
2. Géneros coreográficos
O repertório da gaita-de-foles reflecte a apropriação de algumas das práticas
associadas à dança e ao canto, presentes na componente performativa dos ranchos
folclóricos. Daí a institucionalização do folclore mirandês através de géneros como
os lhaços, repasseados e jotas. Todavia, a influência de Espanha, resultante de
movimentações populacionais e da circulação de informação pelos média, dá
também lugar à introdução de géneros e categorias como as muiñeiras, valsas, entre
outros.
Associados ao contexto profano, os bailes “no terreiro” eram uma prática comum
no meio rural na primeira metade do século XX. Estes marcavam o final das
celebrações religiosas ou, fora do contexto festivo, tinham uma função lúdica. De
entre as categorias mais representativas encontra-se o Repasseado. Este faz parte da
categoria de danças mistas praticadas no distrito de Bragança, caracterizado pela
84
coreografia, com letra e repertório associado. A estrutura musical consiste em duas
frases, cada uma repetida duas vezes (ver anexo 3: repaseado, passeado, giriboilas).
A referir ainda as Jotas, que constituem um género musical associado a uma
coreografia de dança mista em círculo, caracterizada pela métrica regular de 3/4,
3/8 ou 6/8. Esta dança, executada em festas locais em Trás-os-Montes, tem na
maioria das vezes uma letra associada. A estrutura musical consiste em duas frases,
cada uma repetida duas vezes, em geral, frases muito curtas, (ver anexo 3:
Pandeiro). Este género tem uma grande expressão em Espanha, sobretudo na região
de Aragão.
85
Verifica-se ainda a introdução de repertório associado a outros contextos, sobretudo
da região da Galiza. Assim como o folclorismo em Espanha promoveu o flamengo
para consumo turístico dando-lhe um grande protagonismo (Manuel 1989, Martí
1998), na Galiza promoveu-se a gaita-de-foles e todo um conjunto de práticas
associadas à dança, em particular a muiñeira, numa apresentação da tradição como
objecto estético, lúdico e de consumo (Martí 1998: 338). As movimentações
populacionais deram origem à introdução deste repertório no contexto português.
3. Géneros vocais
Como observa E. V. Oliveira, “em Portugal, as gaitas de fole só em casos raros
acompanhavam o canto” (1966: 176) à excepção de certas danças, como o
Pingacho, o Galandum, etc., que também tinham parte vocal (idem), facto que
podemos contactar a partir dos registos áudio disponíveis. A institucionalização do
folclore mirandês não parece ter alterado este facto, contudo, o romance
acompanhado por instrumentos começa a fazer parte do repertório dos GUR,
sobretudo a partir dos anos 1980, em grupos como a Brigada Vítor Jara (1981,
1989) ou Gaiteiros de Lisboa (1995).
86
apenas a fazer parte da cultura rural (1997: 13). Através de um estudo sobre o
romance em Trás-os-Montes, Caufriez constata que algumas das versões que se
cantam nas comunidades rurais actualmente são idênticas às dos cancioneiros do
século XVI (idem). Encontramos nos romances mirandeses temáticas religiosas,
pastoris, amorosas, guerreiras, entre outras. Estes eram cantados nos serões ou nas
festas religiosas, no contexto rural, ao longo do século XX. Como resultado do
recente processo de (re)folclorização, o romance começa a fazer parte do repertório
da gaita-de-foles, como se pode observar na actuação do grupo Grupo Galandum
Galundaina, em que a gaita-de-foles galega acompanhou o canto no romance Chin-
glin-din (ver página 68-69).
4. Conclusão
A institucionalização do folclore no período do Estado Novo veio dinamizar uma
série de actividades em torno da dança, à qual era associada uma coreografia e
melodia com letra específica. A dança transforma-se num acto social importante na
vida aldeã, assumindo uma vertente de exibição que se dissemina pelo mundo rural
(Castelo-Branco & Branco 2003: 19). A passagem para o regime democrático não
provocou uma ruptura com estas práticas, pelo contrário, estas reforçam-se e
expandem-se, dando lugar a processos de (re)folclorização das práticas associadas
ao meio rural. Sendo a dança uma arte de síntese (Roubaud 2003: 337) e a política
do Estado Novo eminentemente estetizante (Alves 2003: 191), os ranchos
folclóricos tornaram-se um veículo importante na acção do SPN/SNI, uma vez que
87
constituíam uma encenação protagonizada por indivíduos do mundo rural, usando
vestes que vinham de tradições remotas e formas de dança e música igualmente
antigas (idem: 204). Por conseguinte, a acção de divulgação destas práticas levou à
difusão e apropriação deste repertório pelos GUR no regime democrático, que o
exibem fora do contexto da dança, reflectindo uma visão crítica que estimula a
diversificação das abordagens da música tradicional.
88
VII. NOVAS VIAS: Mudanças no ensino da gaita-de-foles
1. Miranda do Douro
Tal como a construção, a aprendizagem da gaita-de-foles processava-se através da
observação e da audição. Apenas no final dos anos noventa é que começaram a
surgir incentivos por parte da administração local (C.M.M.D./Juntas de Freguesia),
ou através de iniciativas particulares (Centro de Música Tradicional Sons da Terra),
com vista à formalização do ensino.
89
século passado. Uma década mais tarde foi convidado para ministrar um curso de
gaita-de-foles, apoiado pela Associação para o Desenvolvimento integrado de
Palaçoulo e pela Câmara Municipal de Miranda do Douro. Depois deste ministrou
outros cursos em Cércio e, posteriormente, em Sendim, este último gerido pelo
Centro de Música Tradicional de Sendim, liderado por Mário Correia. Actualmente
Ângelo Arribas continua a dedicar-se ao ensino em Miranda do Douro, agora de
modo independente, sendo as aulas remuneradas pelos alunos. A maioria dos
jovens gaiteiros em actividade em Miranda do Douro teve o seu primeiro contacto
com o instrumento através de Ângelo Arribas. Depois da iniciação ao instrumento,
muitos procuraram outras formas de aperfeiçoamento da sua técnica em Espanha
em escolas junto à fronteira, ou como auto didactas aprendendo novo repertório
através da audição dos fonogramas disponíveis.
“... Isto é como tudo, o que interessa é aprenderam uma moda, chega! A partir
daí é, mete-las todas no ouvido. Um indivíduo que saiba tocar uma moda na
gaita-de-foles ou na flauta, de resto é só meter modas no ouvido. Eu faço assim,
começo o curso… eu tenho feito assim, meto a alvorada que é a mais custosa, a
Alvorada é a mais comprida delas todas, quando souberem tocar a alvorada é só
meter o disco na cabeça. Porque eu hoje... aparece uma moda nova e aprendo. Eu
ensinei-lhes! Três ou quatro, ficaram a tocar nove, mas não precisava ensinar-
lhes as nove, só precisava de lhes ensinar uma… Depois ele começa a descobrir
as outras, é ele a aprende-las, porque a mim ninguém mas ensinou. Eu aprendi a
tocar uma, na flauta de lata, depois eu sentia alguém a cantar e… que moda é
esta?…, à já sei… e aprendia-a e a partir daí tocava-a na flauta…” (Entrevista a
Ângelo Arribas 5/8/2003).
90
A Alvorada poderá não ser a mais difícil em termos técnicos, mas “é a mais
comprida delas todas”, desenvolvendo por isso a memória auditiva. Como nem
todos os alunos têm o mesmo ritmo de aprendizagem, no final do curso alguns dos
alunos aprendem todas as modas ensinadas, enquanto outros apenas duas ou três.
Outros, ainda continuam a tocar apenas na ponteira 31 , sobretudo por razões
económicas, porque uma gaita-de-foles pode custar entre 250 a 700 euros.
31
Designação em Miranda do Douro para o tubo melódico da Gaita-de-foles.
32
E. V. Oliveira apresenta através de registo fotográfico gaiteiros a tocarem em simultâneo na zona de Viana
do Castelo e em Barcelos a gaita com o clarinete e saxofone soprano (Oliveira 2000: 49 e 56).
91
inaugurada a 10 Julho de 2004, e adquirida pela C.M.M.D. à Direcção-Geral do
Património do Estado por 115 mil euros, tendo a sua recuperação custado cerca de
300 mil euros. No edifício foi projectado o funcionamento de vários gabinetes, um
auditório e uma sala de exposições permanentes que darão a conhecer a cultura e
música mirandesas.
2. Lisboa
Paulo Marinho
Seguindo a mesma linha de orientação do ensino da gaita-de-foles em Miranda, ou
seja, a transmissão directa, surge o ensino no Centro Galego de Lisboa, orientado
por Paulo Marinho, ligado a este centro desde os anos oitenta, como saliento na
página 46.
33
Este não foi o primeiro workshop do género, como refiro na página 47, contudo foi o que teve um maior
impacto ao nível do ensino do instrumento em Lisboa.
92
espectáculo dos Gaiteiros de Lisboa. Os elementos deste grupo nunca tinham tido
contacto com este ou outro instrumento, à excepção de dois ou três elementos que
já tinham pertencido a grupos de Música Tradicional ou frequentado a Escola
Profissional de Música de Almada. Trata-se de uma decisão de um indivíduo, Paulo
Marinho, ao qual se associou um pequeno grupo de militantes, que passou a
organizar determinadas actividades para a promoção da prática da gaita-de-foles.
A maioria dos alunos orientados por Paulo Marinho continuou ligado a actividades
relacionadas com a gaita-de-foles, quer através da participação nas actividades da
A.P.E.D.G.F., quer no aprofundar de conhecimentos em outros contextos, como a
Galiza, nomeadamente na Universidade Popular de Vigo, ou mesmo a Escócia.
93
divulgação da escola refere-se que o curso, “para além de se destinar a ensinar a
tocar gaita-de-foles, inclui noções teóricas e práticas de afinação, solfejo, técnicas
de execução e adornos, conceitos fundamentais de história do instrumento,
etnomusicologia e contextos culturais, etc, com os quais se procura formar não
apenas simples músicos ou gaiteiros, mas também pessoas atentas, capazes de
interpretar e avaliar a riqueza do instrumento e o contributo português para a sua
diversidade mundial” (http://www.gaitadefoles.net).
94
com instrumentos que pertencem à A.P.E.D.G.F. e que esta disponibiliza a todos os
alunos.
34
Os cursos da A.P.P.E.D.G.F. decorreram na Sede da Sociedade Incrível Almadense, em Almada.
Frequentei este curso entre Janeiro e Maio de 2004.
95
usada na música erudita, se devia ao facto do instrumento pertencer aos
instrumentos tradicionais e por isso não se usar esse tipo de terminologia.
3. Conclusão
A aprendizagem directa, a criação de espaços específicos nos meios urbanos, a
introdução de conceitos teóricos e iniciação à música escrita constituem as
principais alterações no ensino da gaita-de-foles. Estas representam um modelo de
ensino implementado na Galiza nos anos 1980, que começa a ser seguido em
Portugal, contribuindo para a diversificação dos agrupamentos que integram o
instrumento nas suas actuações e despertando o interesse por outros contextos
musicais onde este assume uma posição de destaque na cultura local.
96
VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Actualmente assiste-se um pouco por todo o país a acções que visam preservar a
música instrumental associada ao contexto rural, através de processos de
(re)folclorização de instrumentos tais como: a concertina, a rabeca, a viola
braguesa, no Minho; a palheta, o bombo, o adufe, na Beira Baixa; a flauta de
tamborileiro, a gaita-de-foles em Trás-os-Montes; a viola campaniça, no Alentejo,
etc. Motivados por uma ideologia centrada na preservação da tradição, mediadores,
agentes e entusiastas promovem encontros, festivais, seminários e workshops onde
se identifica a tradição e se produzem “objectivações” (Handler 1988).
97
Como observa Vasconcelos, através da objectivação da cultura e da invenção das
tradições, os movimentos que pretendem ver reconhecida a autonomia política de
um grupo humano ou território, tendem a acentuar a regionalidade, a nacionalidade
ou a etnicidade como elemento essencial. Existe uma notória continuidade entre as
práticas e os artefactos que foram monumentalizados pelos primeiros descobridores
da “cultura popular” e daqueles que se dedicam a mantê-los vivos (Vasconcelos
1997), como se faz notar na acção dos agentes envolvidos no processo de
(re)folclorização associado à gaita-de-foles. Fortemente influenciados pelas
recolhas dos folcloristas e etnógrafos ao longo do século XX e, principalmente,
pelo trabalho de E. V. Oliveira, estes agentes actuam sobretudo nas zonas onde
Oliveira encontrou uma maior representatividade do instrumento: “no Alto Trás-os-
Montes, de Chaves a Freixo de Espada a Cinta, e mormente nas zonas fronteiriças,
norte e leste; e nas terras baixas ocidentais do Minho ao Tejo (Alto Minho, região
de Coimbra e Estremadura) ” (1966: 171), recuperando práticas instituídas pelo
processo de folclorização da música instrumental.
98
envolvendo-se num diálogo com a nação e os diversos poderes (locais, regionais)
(Raposo 2002:110).
99
Em Portugal este fenómeno começa a manifestar-se através da acção dos agentes
envolvidos na (re)folclorização das práticas musicais associadas ao contexto rural:
as visitas turísticas aos castros celtas em Miranda do Douro, o Festival Intercéltico
de Sendim, bem como a influência da música irlandesa com a introdução de
composições irlandesas, evidenciam esta tendência.
100
busca de virtuosismo; uma maior exigência ao nível da apresentação em público,
em virtude da criação de um público cada vez mais conhecedor e exigente;
alterações em termos de conteúdo de repertório, com a introdução de composições
da música erudita, ou outros contextos musicais, sobretudo contextos onde o
instrumento tem bastante representatividade, como a Galiza, Irlanda ou Escócia.
Esta alteração reflecte a institucionalização do ensino na Galiza, derivada da
criação de escolas como a Universidade Popular de Vigo, a Escola Provincial de
Gaitas de Ourense e muitas outras. O ensino, dinamizado pelos vários agentes,
produziu alterações no estilo interpretativo, influenciadas pelas diferentes
ideologias subjacentes. Estas manifestam-se não só em termos de postura em palco,
desfile e repertório, como também através da afinação e timbre do instrumento. As
diferentes abordagens conduziram a formações instrumentais diversas, que incluem
não só instrumentos de percussão, o que levou, por um lado, a alterações na escala
e um maior rigor na afinação do instrumento, e por outro, a mudanças na sua
morfologia, com a criação da “Gaita transmontana” e/ou “Gaita mirandesa”. “O
fabrico artesanal, aspecto rude, pesada e grossa, de boa sonoridade plena e forte”
(Oliveira 1966: 176) são recuperados por artesãos que pretendem (re)inventar a
tradição (Hobsbawm 1997: 12). Em 1966 Oliveira encontrou “o fabrico (...) em
total decadência, a maioria dos gaiteiros aspirava apenas possuir uma vistosa e fina
Gaita galega, os instrumentos que vemos nas suas mãos são praticamente todos
dessa proveniência e os velhos tipos nacionais perderam-se completamente”
(Oliveira 1966: 176). Em torno da recuperação dos “velhos tipos nacionais”,
inventam-se tradições, que afirmam ser o seu passado e tradições, dando origem ao
aparecimento de uma comunidade cada vez menos “imaginada” (Anderson 1983).
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Stokes & Bohlman (2003) “Introdution” in Martin Stokes & Philip V. Bohlman
(Ed.), Celtic Modern. Music at the Golbal Fringe, 1-26. Oxford: The
Scarecrow Press
Taylor, Timothy D. (1997) Global Pop. World Music, World Markets. Nova
Iorque: Routledge
Wefford, Alexandre Branco (2004) “Povo que canta. Ciência e militância cultural
em Michel Giacometti” Michel Giacometti. Caminho para um Museu, 29-
36, Cascais: Câmara Municipal de Cascais
DISCOGRAFIA CITADA
António Fernandes e Henrique Fernandes, rec. 1976 e 2001, Sons da Terra, STMC
0223 (2002)
António Ribeiro, “Toni das Gaitas”, Porto, rec. 2000, Sons da Terra, STMC 0015
(2000)
Brigada Vítor Jara, Quem sai aos seus, Lisboa, Vadeca (1981)
109
Brigada Vítor Jara, Monte formoso, Lisboa, MBP (1989)
Cantos da nossa terra, rec. 1999, Sons da Terra, STMC 0010 (2000)
Clementina Rosa Afonso, rec. 1997, Sons da Terra, STMC 9803 (1998)
Desidério Luis Afonso, rec. 2003, Sons da Terra, STMC 0429 (2003)
Domingos Esteves Afonso, rec. 1999, Sons da Terra, STMC 0011 (2000)
José Maria Fernandes, rec. 1999, Sons da Terra, STMC 0014 (2000)
110
Manuel Paulo Martins, Gueiteiro de Bal de Mira, Miranda de L Douro, rec. 1998,
Sons da Terra, STMC 0118 (2001)
ENTREVISTAS CITADAS
A. Mourinho – 29/04/2002
111
ANEXOS
112
1. Programação do Festival Intercéltico de Sendim entre 2000 e 2005
113
2000 2001 2002 2003 2004 2005
♫ Pïca ♫* Lelia ♫* Lenga ♫* Animação ♫* Pauliteiras ♫* Gaiteiros
Tumilho Doura Lenga espontânea de Valcerto de Moimenta
(Sendin) (Porto) (Sendin) por gaiteiros e (Mogadouro) (Vinhais)
Portugal ♫ SangriSulta tamborileiros ♫* Animação ♫* Animação
(Sendim) espontânea espontânea
♫*Mandrágor por gaiteiros e por gaiteiros e
a (Porto) 35 tamborileiros tamborileiros
♫* Comvinha
Tradicional
(Porto)
Espanha ♫* Os ♫* Ultreia ♫* Gaiteiros
Xarelos (Galiza) Los Yerbatos
(Galiza) (Galiza)
Canadá ♫ Judith
Cohen -
Tamar Adams
35
* Os grupos marcados com este sinal usam Gaita-de-foles nas suas performances.
114
2. Grupos participantes no Encontro Nacional de Gaiteiros entre 2001 e 200436
Distritos
► Manuel, Luis,
VILA REAL
Fábio Machado,
Horácio Rodrigues,
"Grupo de Gaiteiros
de Sanfins do Douro”
- Alijó
36
Os gaiteiros estão agrupados por distrito. As cores servem para uma melhor visualização dos mesmos ao
longo dos vários E.N.G..
115
► Aníbal Santos,
►Constantino ►Constantino António Anibal,
Teixeira & Fausto Teixeira & Fausto Bruno, Adelino, José
BRAGA
►Manuel Lima,
Armindo Azevedo,
Ricardo Lima, Jorge
Gonçalves, Grupo de
GUARDA
Zés-Pereiras "Os
Divertidos" - Delães,
Famalicão
►Alberto Lima &
José Cunha, “Grupo
de Zés-Pereiras "Os
Delaenses" - Delães,
Famalicão
37
Fábio João é neto de José Albuquerque que era o gaiteiro do grupo e faleceu.
116
►Eduardo ►José Neves Simão, ►Fausto Rosa, "Os ►António Cupido,
Carvalho “Os “ Gaiteiros do Três Amigos" – “Os Gaiteiros da
Carvalhos” – Mondego” – Ribeira Coimbra Alegria” –Soure
Ribeira de Frades de Frades. ►"Os Dinâmicos", ►Carlos Martins,
►Flamínio ►Manuel Marques Gaiteiros de Paleão - “Os Dinâmicos” –
Rodrigues “Os Figueira, Condeixa a Soure Soure
Heróis do Nova. ►Flamínio de ►João Santos
Mondego” – Torres ►João Santos Almeida, "Os Heróis Pereira, “O Três de
do Mondego Pereira, “O Três de do Mondego" – Portugal” -
► Mário Manuel Portugal” - Torres do Mondego Cantanhede
COIMBRA
117
►Emídio José ►Mário Estanislau – ► Grupo de ►Joaquim Roque -
Gomes – Lourinhã Torres Vedras Gaiteiros "Gaitafolia" Torres Vedras
►Joaquim Roque - ► Paulo Marinho, – Lisboa ►Gaitafolia
Torres Vedras Francisco Pimenta, ►Joaquim Roque - (Associação Gaita de
►Mário Estanislau Gonçálo Marques, Torres Vedras Foles) – Lisboa
– Torres Vedras Ricardo Garcia, João ►Emidio Gomes, ►Emídio João
►Banda de Gaitas Ventura, Miguel "Gaiteiro de Gomes, “Gaiteiro de
Gaitafolia - Lisboa Mimoso, José Casalinho das Casalinho das
LISBOA
118
3. Transcrições musicais
119
Nota explicativa:
120