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Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades

Públicas - Evolução Histórica e Regime Atual


Nos termos do artigo 22º da CRP, os Estados e as demais entidades públicas
são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos,
funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas
funções e por causa desse exercício, de que resulte violação de direitos, liberdades e
garantias ou prejuízo para outrem. A responsabilidade civil do Estado e demais
entidades públicas encontra, portanto, fundamento constitucional. Mas será esta a sua
única razão de ser?
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO afirma que os seus dois principais
fundamentos são o princípio do Estado de Direito e o «princípio da igualdade, da
solidariedade social ou da repartição dos encargos sociais»[1]. Quanto ao primeiro, não
se levantam dúvidas, uma vez que bem são bem conhecidas as suas duas dimensões
(respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e primado do Direito); relativamente
ao último, o que está em causa é o seguinte: na prossecução do interesse público, o
Estado acaba, por vezes, por causar prejuízos aos particulares. Ora, como refere
GORDILLO, «el ciudadano de hoy no está ya más dispuesto (…) a “vivir
peligrosamente;”»[2], pelo que, se das atividades, coisas ou serviços administrativos
especialmente perigosos, referidos no artigo 11º nº1 do diploma relativo à
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (de aqui
em diante, RCEEDEP), resultarem prejuízos para os particulares «(…) não será justo
que estes suportem a totalidade do prejuízo. Por esta razão, o dano é, no essencial,
transferido para a colectividade, por via do pagamento de uma indemnização, financiada
com o dinheiro dos contribuintes»[3].
Antes de prosseguirmos, apresenta-se essencial referir que a responsabilidade do
Estado tanto pode ser contratual como extracontratual. Se a primeira surge associada
aos contratos celebrados com privados ou das relações jurídicas que se estabelecem
entre os vários sujeitos que formam a Administração Pública, a extracontratual resulta
de «una conduta cualquiera de los órganos del Estado no referida a un acuerdo prévio
de voluntades con el sujeto damnificado»[4].
Passemos agora a uma breve análise da evolução do instituto em questão,
acolhendo a sequência utilizada por MATHEUS CARVALHO. Num primeiro
momento, o que existia era o princípio da irresponsabilidade do Estado. Isto coincide
com a existência de regimes de Monarquia Absoluta, nos quais o monarca, para além de
concentrar em si todos os poderes, era visto como se de uma entidade divina se tratasse.
Ora, deuses não cometem erros, não falham, pelo que, se era do monarca que emanavam
as leis, e the king can do no wrong, os seus atos eram incontestáveis e não fazia sentido
falar-se, tão pouco, em responsabilidade do Estado. Em Portugal, esta fase durou até à
Constituição de 1822[5] (conforme o artigo 14º da mesma: Todos os empregados
públicos serão estritamente responsáveis pelos erros de ofício e abusos do poder, na
conformidade da Constituição e da lei).
Um segundo momento, de Responsabilidade com previsão legal[6], surge com o
famoso caso Blanco. Perante a inexistência de responsabilização do Estado, após o
atropelamento da criança, não havia como proceder a uma indemnização pelos danos
causados, pelo que, partindo-se da injustiça que aí dominou, o Estado passou a poder ser
responsabilizado sempre que houvesse previsões legais específicas que o permitissem –
claro que isto tinha um âmbito muito restrito.
Seguiu-se o momento da responsabilidade subjetiva que é, no fundo, a que tem
por base a responsabilidade aquiliana presente no artigo 483º do Código Civil. O
problema que surge aqui reside no ónus da prova. Nos termos do artigo 487º do Código
Civil, é ao lesado que cumpre provar a culpa do autor da lesão. Ora, fazer prova da
culpa do Estado não era tarefa fácil, pelo que se evoluiu para a Teoria da culpa do
serviço ou faute du service. Este tipo de responsabilidade é prevista pela ordem jurídica
portuguesa, nomeadamente, no capítulo II, secção I do diploma da RCEEDEP, que
coloca em destaque os seguintes elementos: ilicitude (artigo 9º) e culpa (artigo 10º).
Resulta do número 3 do artigo 7º que ocorre funcionamento anormal do serviço
quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse
razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos
produzidos. A responsabilização pelo funcionamento anormal do serviço está previsto
no número 2 do mesmo artigo, havendo a distinguir entre culpa anónima (quando não
seja possível provar a autoria pessoal da ação/omissão) e culpa coletiva (quando não
tenha resultado da conduta de um concreto titular de órgão, funcionário ou agente)[7].
Da teoria da culpa do serviço, evoluiu-se para a teoria do risco integral. Já
Maurice Hauriou afirmava «ser evidente que a grande empresa é incompatível com a
teoria da culpa, que repousa sobre a presunção do pater familiae, ou seja, do homem
que toma conta da diligência de todos os detalhes de uma exploração sua. A culpa,
então, não poderia mais ser vista como a causa do prejuízo, “devendo o prejuízo ser
considerado em si mesmo como um acidente, e a reparação do prejuízo como um
encargo da empresa”. Sendo assim, à Administração Pública, vista como “uma enorme
empresa, a mais importante de todas”, não pode ser aplicada a mera Teoria da
Culpa»[8]. Fala-se aqui numa responsabilidade objetiva, uma vez que o que releva é o
facto e o nexo de causalidade, não importando, como tal, o fator subjetivo (o agente
causador da lesão ou a presença/ausência de culpa)[9].
Na nossa ordem jurídica, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entidades públicas, até recentemente, era regulada pelo Decreto-Lei nº 48051, de
21 de novembro de 1967, sendo até então feita a distinção entre responsabilidade civil
por atos de gestão privada (regulados pelo direito privado) e atos de gestão pública
(regulados pelo direito administrativo), cabendo os primeiros na jurisdição comum e os
segundos na jurisdição administrativa. Atualmente, rege-se pela Lei nº 67/2007, de 31
de dezembro, alterada, pela última vez, pela Lei nº 31/2008, de 17 de julho.
Segundo GORDILLO[10], a responsabilidade extracontratual do Estado divide-
se em legislativa, judicial e administrativa. No mesmo sentido, FAUSTO DE
QUADROS[11] afirma que esta responsabilidade se manifesta de três diferentes modos:
i) responsabilidade do Estado-legislador; ii) responsabilidade do Estado-administrador;
e iii) responsabilidade do Estado-juiz. Isto é algo que é claramente acolhido no número
1 do artigo 1º da já referida lei. Muito importante é, também, o número 5 do mesmo
artigo, uma vez que alarga o âmbito deste regime de responsabilidade a pessoas
coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais,
representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que pratiquem aquando de
concessões/delegações de poder público, ou seja, quando ajam ao abrigo do direito
administrativo (recorde-se o artigo 2º, nº1 do Código de Procedimento
Administrativo, in fine).
Se o que importa na responsabilidade extracontratual é a transferência do dano
sofrido pelo cidadão para o seu causador, é importante saber como é que esta é feita.
Nos termos do artigo 3º do Regime da RCEEDEP, a indemnização deve consistir na
reposição da situação que existiria caso não se tivesse verificado o dano, só devendo ser
efetuada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare
integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa (cfr. números 1 e 2 do artigo
3º).
O primeiro tipo de responsabilidade que surge neste diploma é a que decorre do
exercício da função administrativa e corresponde à já referida responsabilidade civil
extracontratual subjetiva. Consta do preceito que o Estado e as demais pessoas
coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos (…) que se
devam aos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função
administrativa e por causa desse exercício, referindo o conceito de culpa leve. Quanto a
isto, há a dizer que se fala aqui em responsabilidade exclusiva, por oposição à que
ocorre quando o lesado também contribua, culposamente, para o surgimento do dano,
situação prevista no artigo 4º e na qual ocorre aquilo que JOÃO CAUPERS designa
de concorrência de culpa do lesado[12]. Por sua vez, o conceito de culpa leve, apesar
de não estar definido na lei, admite-se que, se a culpa grave é a que está associada a
ações ou omissões ilícitas, cometidas com dolo ou diligência e zelo manifestamente
inferiores àqueles que eram supostos (artigo 8º, nº1), seja a que decorre de ações ou
omissões ilícitas cometidas com diligência e zelo inferiores, mas não manifestamente
inferiores aos que eram supostos[13].
A responsabilidade objetiva, ou responsabilidade pelo risco, é contemplada no
artigo 11º que determina que o Estado e as demais pessoas coletivas do direito público
respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos
especialmente perigosos (…).
A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função
jurisdicional está prevista no artigo 12º. Quanto a esta modalidade há a dizer que são de
dois tipos os danos que lhe dão origem: violação do direito a uma decisão judicial em
prazo razoável (cfr. artigo 12º) e o erro judiciário (cfr. artigo 13º). Quanto ao primeiro
tipo, parece-nos que tal direito é algo que decorre do nº4 do artigo 20º da Constituição
da República Portuguesa, pelo que não é algo que levante dúvidas. Relativamente ao
erro judiciário, a questão já se torna mais sensível. Passamos a explicar: o artigo 216º,
nº2, da CRP estabelece que os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas
decisões, pelo que se pode colocar a questão da validade, da constitucionalidade desta
modalidade de responsabilidade. Acontece que, nesse mesmo artigo, in fine, acrescenta-
se «salvo as exceções consignadas na lei», pelo que, à partida, esta modalidade não
apresenta problemas de validade. Além disto, é de notar que esta peculiar
responsabilidade não se rege da mesma forma que a responsabilidade subjetiva,
encontrando um regime próprio nos artigos 13º e 14º.
            Finalmente, quanto à responsabilidade civil por danos decorrentes do
exercício da função legislativa, prevista no artigo 15º, há a dizer que a sua consagração
não foi pacífica. Se autores como MARIA DA GLÓRIA F.P. DIAS GARCIA a veem
como um corolário do artigo 22º da CRP, que, aliás, referimos no início da nossa
exposição, MARIA LÚCIA AMARAL vê-a como um contrassenso e como um novo
tipo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, não prevista na Constituição[14].
Parece-nos que o facto de o direito à reparação dos danos resultantes de erro judiciário
estar dependente da anormalidade destes e de uma prévia emissão de um juízo de
inconstitucionalidade sobre a lei ou omissão danosa contribui para que se possa aceitar
esta responsabilidade como um corolário do artigo 22º da Constituição.
Para finalizar, o diploma fala ainda, no seu artigo 16º, em indemnização por
sacrifício. Quanto a isto, referimos a opinião de JOÃO CAUPERS que considera que
este não é um caso de responsabilidade civil e que estamos mais próximos de «uma
situação como a expropriação por utilidade pública»[15] do que de um caso de
responsabilidade civil. Afirma ainda que «(…) não faz sentido responsabilizar
alguém… por coisa nenhuma, já que não [se] adoptou, nem sequer [se] omitiu, qualquer
comportamento»[16]. JOÃO TIAGO SILVEIRA, porém, comenta a redação do artigo
16º em sede de responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função
administrativa[17], o que sugere que considera tratar-se de um caso de responsabilidade
civil.

[1] Aragão, Alexandre dos Santos, Curso de Direito Administrativo (2013), 2ª Ed.


rev., atual. e ampl., Forense, Rio de Janeiro, p.601
[2] Gordillo, Agustín, Teoría General Del Derecho Administrativo (2013), Tomo 8,
1ª Ed., Fundación de Derecho Administrativo, Buenos Aires, p.537
[3] Caupers, João, Introdução Ao Direito Administrativo (2009), 10ª Ed., Âncora
Editora, Lisboa, p.333
[4] Gordillo, Agustín, Teoría General Del Derecho Administrativo (2013), Tomo 8,
1ª Ed., Fundación de Derecho Administrativo, Buenos Aires, p.539
[5] Barra, Tiago Viana, Responsabilidade Civil Administrativa do
Estado (2011), in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 71 – Vol. I – Jan/Mar –
Doutrina, p.134. Página consultada às 12h17 de 30 de outubro de 2016
<http://portal.oa.pt/upl/%7B915b1a77-e7cb-48fa-9b7c-3399815c19dd%7D.pdf>
[6] Carvalho, Matheus, Manual de Direito Administrativo (2015), 2ª Ed. Ver.,
ampl., e atual., Editora JusPODIVM, Salvador, Bahia, p.326
[7] Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e das Demais Entidades Públicas (2008), Coimbra
Editora, Coimbra, p.132
[8] Aragão, Alexandre dos Santos, Curso de Direito Administrativo (2013), 2ª Ed.
rev., atual. e ampl., Forense, Rio de Janeiro, p.598
[9] Miranda, Henrique Savonitti, Curso de Direito Administrativo (2005), 3ª Ed.,
revista, Senado Federal, Brasília, p.312
[10] Gordillo, Agustín, Teoría General Del Derecho Administrativo (2013), Tomo 8,
1ª Ed., Fundación de Derecho Administrativo, Buenos Aires, p.537
[11] Quadros, Fausto de, A responsabilidade civil extracontratual do Estado –
problemas gerais, Página consultada a 29 de outubro de 2016, às 12h42 e
disponível em <http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-
eventos/anexos/sections/informacao-e-eventos/anexos/prof-doutor-fausto-
de/downloadFile/file/Fq.pdf?nocache=1210675906.12>, p.7
[12] Caupers, João, Introdução Ao Direito Administrativo (2009), 10ª Ed., Âncora
Editora, Lisboa, p.330
[13] Idem
[14] Caupers, João, Introdução Ao Direito Administrativo (2009), 10ª Ed., Âncora
Editora, Lisboa, pp.336-339
[15] Idem, p.343
[16] Idem, p.342
[17] Silveira, João Tiago, A Reforma da Responsabilidade Extracontratual do
Estado, in revista jurídica 26. Página consultada em 31 de outubro de 2016 às
20h30 e disponível em <
http://joaotiagosilveira.org/mediaRep/jts/files/Responsabilidade_Civil_Extracon
tratual_-_Revista_Jur__dica_26.pdf>, p.91

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