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Introdução
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Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Orientadora: Profa. Dra.
Patrícia Coradim Sita. Email: rosolemandre@gmail.com
Vol.
5,
2012.
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Cf. Searle (1984, 1992 e 2004).
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Em Minds, Brains and Programs (1980), Searle apresenta uma experiência de pensamento conhecida
por Quarto Chinês, no qual um homem é situado dentro de um quarto com um livro de regras que irão
guiar a sua operação de inputs (sentenças em chinês) de tal modo que ele poderá formular sentenças
coerentes em chinês como outputs somente operando com as regras contidas no livro e com os símbolos
em chinês. O objetivo do argumento de Searle é demonstrar que um observador externo afirmaria que o
quarto entende chinês ainda que seus processos internos, isto é, o homem operando com símbolos e regras
mecânicas, não entenda chinês.
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Esta expressão é defendida notoriamente por Thomas Nagel em seu artigo What Is It Like to Be a Bat?
(1974). De forma resumida, Nagel argumenta que uma ciência objetiva não pode, em princípio, explicar
experiências subjetivas tais como as experiências conscientes. Assim, ainda que tenhamos uma
neurociência amplamente desenvolvida, uma explicação da consciência nestes termos ainda deixará algo
de fora, isto é, o aspecto qualitativo das experiências conscientes, o que é sentir (what it is like) algo.
Jackson (1982 e 1986) defende um posicionamento similar no que diz respeito à possibilidade de uma
neurociência desenvolvida explicar os aspectos qualitativos dos estados mentais. Estas objeções não serão
tratadas diretamente neste artigo, mas ver Churchland (1985 e 1989) e Dennett (1991) para respostas a
estes argumentos.
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Ver Dennett (1988).
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Ver Shoemaker (1982) sobre os Qualia Invertidos e Block (1980) sobre os Qualia Ausentes.
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2. Funcionalismo homuncular
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Como aponta Van Gulick (online): “Estados podem ser conscientes em um sentido de acesso bem
diferente, sentido que tem mais a ver com as relações entre estados mentais [intra-mental relations]. Em
relação a isso, ser um estado consciente é uma questão de estar disponível para interagir com outros
estados e do acesso que o sujeito tem ao conteúdo deste estado mental. Neste sentido mais funcional, o
qual corresponde ao que Ned Block (1995) chama de consciência de acesso [access consciousness], um
estado visual enquanto um estado consciente não diz muito respeito ao fato de este estado ter um
sentimento qualitativo de “como é ser algo” [what it's likeness], mas sim ao fato de este estado carregar
ou não informações visuais que geralmente estão disponíveis para o uso do organismo.” (VAN GULICK,
online, tradução nossa). Chalmers (1996) sustenta uma concepção semelhante embora ele fale de
“consciência psicológica” no lugar de “consciência de acesso”: “É natural supor que talvez haja uma
propriedade psicológica associada com a própria experiência, ou, com a consciência fenomenal. Na
verdade, eu acredito que há tal propriedade, nós a chamamos de “consciência” [awareness]. Esta é a
marca mais geral da consciência psicológica. Consciência [awareness] pode ser amplamente analisada
como um estado no qual nós temos acesso a alguma informação e podemos usar esta informação para
controlar nosso comportamento.” (CHALMERS, 1996, p. 28, tradução nossa)
será abordado nesta exposição apesar de sua importância no tema aqui tratado. Isto se
dá porque o escopo deste texto está restrito a uma análise de uma concepção mais
restrita do funcionalismo e a relação desta concepção com os aspectos qualitativos dos
estados mentais, isto é, os seus qualia9.
Tendo em vista o contexto até aqui apresentado, é possível notar que o
funcionalismo tal como descrito na primeira seção é uma concepção geral e ampla de
um conjunto de assunções teóricas feitas sobre a mente humana. Podemos dizer que o
que nos referimos por funcionalismo até agora pode ser considerado de certo modo
como uma definição geral desta posição10. Como vimos, as objeções referentes aos
qualia parecem apontar para graves problemas a esta definição. Estas dificuldades, no
entanto, não são efetivas uma vez que consideramos o funcionalismo em uma definição
mais restrita, isto é, o funcionalismo utilizando o conceito de teleologia. A este
funcionalismo teleológico pode-se denominar de funcionalismo homuncular.
Para entender o funcionalismo homuncular de modo mais preciso, considere o
emprego de análises funcionais defendido por Robert Cummins (1975). Cummins
argumenta que para explicar como um objeto ou órgão biológico realiza uma função Y,
nós precisamos nos engajar em uma análise funcional destes sistemas. A análise
funcional de um sistema visada por Cummins é conhecida na Inteligência Artificial
como “abordagem de cima para baixo” (top-down approaches) ou abordagens de
decomposição. Nestes casos, nós designamos uma função Y a um sistema complexo S e
então decompomos a tarefa complexa de realizar Y no trabalho realizado pelos diversos
sub-sistemas de S. A tarefa realizada por S é, nesse sentido, analisada a partir do
trabalho das partes (s1, s2, s3, …, sn), o que faz com que a tarefa ou função complexa de
realizar Y seja explicada pela operação de partes menores, partes que, por sua vez,
realizam tarefas menos complexas do que S:
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Dennett (1987) apresenta uma explicação de caráter conciliador entre funcionalismo e intencionalidade.
Ver especialmente Dennett (1987, capítulo 8). Ver também Dennett (1995, capítulos 13 e 14; 1980) e
Sant’anna (2012), para uma crítica do argumento de Searle apresentado aqui.
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Para uma discussão sobre as variedades de posições funcionalistas, ver Kim (1996).
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“Production [Cummins is referring here to assembly-line production] is broken down into a number of
distinct tasks. Each point on the line is responsible for a certain task, and it is the function of the
workers/machines at that point to complete that task. If the line has the capacity to produce the product, it
has it in virtue of the fact that the workers/machines have the capacities to perform their designated tasks,
and in virtue of the fact that when these tasks are performed in a certain organized way – according to a
certain program – the finished product results. Here we can explain the line's capacity to produce the
product – i.e., explain how it is able to produce the product – by appeal to certain capacities of the
workers/machines and their organization into an assembly line.” (CUMMINS, 1975, p. 760)
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determinarmos qual dos dois está correto uma vez que ambos estão relatando histórias
introspectivas diferentes sobre a mesma situação. Tendo isso em vista, onde deveríamos
então buscar a resposta para esta questão?
Para responder a esta questão, isto é, como podemos explicar um estado
qualitativo como o quale do café ou uma dor em toda a sua complexidade, podemos
recorrer a uma importante distinção que pode ser utilizada quando pretendemos estudar
a consciência cientificamente. Dennett, em Content and Consciousness (1969) apresenta
duas perspectivas pelas quais nós podemos abordar os fenômenos mentais: a perspectiva
do agente ou do indivíduo, ou seja, a análise no nível pessoal (personal level), e a
perspectiva dos níveis situados abaixo do nível do indivíduo, isto é, o nível sub-
pessoal16 (sub-personal level)17.
A concepção tradicional dos qualia enquanto propriedades homogêneas,
inefáveis e “brutas” é uma concepção característica da análise no nível pessoal. Assim,
a dor enquanto um fenômeno singular e que aparentemente não pode ser explicado por
divisões teóricas mais específicas resulta da análise no nível pessoal, análise esta que se
dá especialmente pela introspecção, o que indica sua inefabilidade e seu caráter
essencialmente subjetivo. Vimos, no entanto, que uma análise que se baseia na
introspecção não oferece os fundamentos necessários para que possamos estudar o
fenômeno da dor em toda a sua complexidade.
Tendo em vista estas dificuldades, podemos recorrer a uma análise no nível sub-
pessoal dos nossos estados mentais. Uma explicação no nível sub-pessoal não adota a
perspectiva do agente para analisar estados mentais como dores e cócegas, mas antes,
esta explicação propõe uma divisão das experiências aparentemente “brutas” percebidas
no nível pessoal, associando assim determinadas peculiaridades referentes ao fenômeno
da dor a funções mais específicas do processamento no cérebro – isto é, uma associação
aos níveis sub-pessoais –, de modo que uma atribuição funcional seja feita a cada
divisão, o que torna o grau de inteligência requerido para o funcionamento de cada parte
menor18. Em outras palavras, quanto mais divisões efetuarmos das propriedades
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Esta distinção pode ser especialmente encontrada em Dennett (1969 e 1978). Elton (2003) apresenta
uma análise esclarecedora desta distinção.
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É importante notar que as assunções teóricas de Dennett (1969) refletem o tipo de análise funcional
proposta por Cummins (1975).
18
Nesse sentido, a complexidade exigida de um sistema para se explicar o fenômeno da dor no nível
pessoal seria dividida em partes específicas, e, portanto, menos complexas, que explicariam determinadas
peculiaridades da dor. Em outras palavras, podemos distribuir a complexidade do fenômeno para vários
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inicialmente brutas, atribuindo funções específicas para cada camada da divisão, menor
será a inteligência requerida para a realização desta função, de modo que a subsequente
divisão em camadas funcionalmente específicas fará com que atinjamos um ponto no
qual as interações funcionais possam ser descritas em termos da troca de 0’s e 1’s. A
soma destas divisões funcionais fornecerá diversos níveis de análise para o fenômeno da
dor, o que aumenta significativamente nossa capacidade explicativa sobre este
fenômeno.
É evidente que a proposta de Dennett endossa a abordagem do funcionalismo
homuncular. Dennett, no entanto, assume que este tipo de abordagem nos leva a uma
posição teórica conhecida por eliminativismo em relação aos qualia19. O eliminativismo
assume que a concepção tradicional de qualia como propriedades intrínsecas e brutas
não reflete de modo preciso o funcionamento do nosso cérebro, e, portanto, não é uma
concepção adequada para descrever os aspectos fenomenais de nossos estados mentais.
O funcionalismo homuncular nos moldes apresentados aqui assume de fato uma
postura eliminativista, já que a concepção de qualia enquanto propriedades brutas e não
divisíveis é questionada. Assim, o funcionalismo homuncular tal como descrito aqui
advoga em favor da eliminação do conceito tradicional de qualia visando uma melhor
compreensão dos aspectos fenomenais de nossos estados mentais.
locais no cérebro, de modo que cada local seja responsável por realizar determinada função, o que
exigiria um menor grau de inteligência relativo ao funcionamento destas partes caso fossemos explicar a
dor como um fenômeno “bruto” e homogêneo.
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Ver também Churchland (1985, 1996) e Churchland & Churchland (1990).
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“When shown a colored apple what will our hypothetical participants say? They will surely not say that
they see any colors because the areas responsible for processing color have been isolated from higher-
level areas, including language production. They will be able to identify the object as an apple because
visual areas responsible for all other aspects of visual cognition are intact and connected to these higher-
level regions. Thus, they are simply colorblind. We can imagine them saying, ‘I know you say my color
areas are activated in a unique way, and I know you believe this means I am consciously experiencing
color but I’m looking at the apple, I’m focused on it, and I’m just not having any experience of color
whatsoever’.” (DENNETT and COHEN, 2011, p. 361)
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“O indivíduo manifesta todos os critérios funcionais para não estar consciente de cores, então, o que
sustentaria a asserção de que este indivíduo, apesar destas considerações, tenha um tipo especial de
consciência: consciência fenomenal sem consciência de acesso?” (DENNET; COHEN, 2011, p. 362,
tradução nossa)
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Aqui, é importante enfatizar que a argumentação apresentada até aqui não nos permite dizer se tal
sistema será de fato consciente em um sentido fenomenal, já que, por exemplo, outros fatores deveriam
ser considerados, como a velocidade de processamento da informação (ver nota 21). O ponto, por outro
lado, é tentar explicitar que não há dificuldades no que se refere a uma compreensão funcionalista dos
qualia.
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Dennett (1987) apresenta um questionamento similar no que diz respeito ao tempo de processamento de
informação, isto é, estaríamos dispostos a atribuir consciência a seres que tenham a mesma ou maior
estrutura cognitiva comparada com a nossa, mas que processassem a informação que nós processamos em
uma escala de tempo muito maior?
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Referências
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Ver DENNETT (1978 e 1991) para mais sobre este tópico.
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Agradecimentos
Agradeço a minha orientadora, Profa. Patrícia Coradim Sita, e ao Prof. Max Rogério
Vicentini pelas discussões que foram de muito proveito para a elaboração deste artigo.
Gostaria de agradecer também ao parecerista da Revista Filogênese que fez comentários
muito esclarecedores na versão final do texto.