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NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO EM GOIÁS*

Dossiê

Allysson Fernandes Garcia**

Resumo: desenvolvo neste artigo algumas considerações aos estudos históricos sobre
escravidão desenvolvidos em Goiás. Particularmente trato aqui dos trabalhos Economia
e escravidão na capitania de Goiás, de Gilka V. F. de Salles (1992); Quilombos do Brasil
Central: violência e resistência escrava. 1719-1888, de Martiniano J. Silva (2008) e Traje-
tórias para a liberdade: escravos e libertos na capitania de Goiás, de Maria Lemke Loiola
(2009). Procuro situá-los no âmbito das grandes linhas interpretativas sobre a escravidão,
basicamente a controvérsia da escravidão benigna ou violenta.

Palavras-chave: História da Escravidão. Historiografia. Escravidão em Goiás

NOTES ON THE HISTORY OF SLAVERY IN GOIÁS

Abstract: develop in this paper some considerations to historical studies of slavery develo-
ped in Goiás Particularly dealing here work Economia e escravidão na capitania de Goiás,
Gilka V. F. de Salles (1992); Quilombos do Brasil Central: violência e resistência escrava.
1719-1888. 1719-1888, Martiniano J. Silva (2008) and Trajetórias para a liberdade: escravos
e libertos na capitania de Goiás, Maria Lemke Loiola (2009). I try to place them under the
broad interpretative lines about slavery, the slavery controversy basically benign or violent.

Keywords: History of Slavery. Historiography. Slavery in Goiás.

O
s quase quatro séculos de escravidão marcaram os destinos da sociedade brasileira, não sendo
possível conhecer a fundo a história do Brasil sem tratar das estruturas, sentidos e ações dos
agentes envolvidos na instituição escravista e as heranças presentes na cultura negra ou nas
condições sociais atuais (COSTA, 2008). Da mesma maneira não é possível compreender a realidade e

* Recebido em: 20.04.2013. Aprovado em: 05.05.2013.


** Doutorando em História Cultural pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília.
Mestre em História pela Univesidade Federal de Goiás. Professor de História na Unu-Morrinhos da Universidade
Estadual de Goiás e no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de Goiás.

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os desafios sociais, culturais e raciais do Brasil na atualidade desconectados das heranças do passado
escravista. Sobre isso quase ninguém questiona, porém, existem controvérsias interpretativas sobre
o passado escravista.
Certamente a grande controvérsia interpretativa sobre a escravidão seja a polarização entre uma
instituição benevóla e amena de um lado e de outro a afirmação de uma violência desumanizadora.
Dois representantes do pensamento social brasileiro são definidos como os arautos dessa polarização.
No primeiro caso Gilberto Freyre foi eregido como aquele que fundamentou a visão de uma escravidão
‘benigna’, enquanto Florestan Fernandes responderia a uma espécie de liderança na crítica à Freyre
em defesa da violência do sistema escravista. Antes de discutirmos os estudos sobre a escravidaão em
Goiás será interessante retomar esta controvérsia.

GILBERTO FREYRE E A ESCRAVIDÃO BENIGNA

Gilberto Freyre ao desenvolver seus estudos sobre a formação da família brasileira referiu-se
a uma “proximidade ‘confraternizadora’ entre portadores de culturas dominantes e dominada”
na defesa de uma sociedade cultura e racialmente híbrida (SOUZA, 2000, p. 231). Assim, Freyre
teria legado a perspectiva de que todo brasileiro, mesmo o mais alvo, carregaria na alma e no
corpo traços indígenas e negros. Uma miscigenação que atesta a “plasticidade” do português
na relação com os povos ‘dominados’, característica que definiu uma ideologia dominante no
pensamento social brasileiro a da “democracia racial” em oposição à ‘democracia “meramente
política” desenvolvida nos Estados Unidos da América (SOUZA, 2000, p. 244). Em Casa-Grande
& Senzala, Gilberto Freyre (1943, p. 564) salientou a benignidade da escravidão ao analisar a
influência da escravidão doméstica:

Mas aceita, de modo geral, como deleteria a influência da escravidão doméstica sobre a moral
e o caráter brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que
entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas
relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra
parte da América.

Essa docilidade possibilitava a ‘confraternização’, a negociação entre escravos e senhores cria-


dora de vínculos afetivos. O principal efeito dessa relação seria a ‘passagem’ do escravo da senzala
para a condição de ‘pessoa da casa’. Já no trabalho de mestrado antecessor a Casa-Grande & Senzala
Gilberto Freyre (1964, p. 98) destacou:

Na verdade, a escravidão no Brasil agrário-patriarcal pouco teve de cruel. O escravo brasileiro


levava, nos meados do século XIX, quase vida de anjo, se compararmos sua sorte com a dos
operários ingleses, ou mesmo com a dos operários do continente europeu, dos mesmos meados
do século passado.

É interessante perceber que a defesa de uma escravidão ‘benigna’ aproxima-se de uma repro-
dução sem maiores cuidados avaliativos das visões registradas pelos viajantes estrangeiros. O que é
complicado de afirmar, já que Gilberto Freyre desenvolve um trabalho cuidadoso com fontes primá-
rias e extensa bibliografia. Mas é tentadora tal aproximação, quando lemos Auguste de Saint-Hilaire
(1978, p. 173), por exemplo:

Todo mundo sabe, de resto, que os brasileiros tratam geralmente os escravos com grande brandura.
A esse propósito podem ser consultados os trabalhos de Gardner (“Travels”) e mais recentemente
os de Blumenau (“Sud brazilien”); finalmente, o que eu próprio escrevi.

Porém, como explicita Jesse Souza (2000, p. 212) a preocupação de Freyre era “perceber formas
de integração harmônica de contrários, interdependência e comunicação recíproca entre diferentes,
sejam essas diferenças entre cultura, grupos, gêneros ou classes”. Assim, não seria possível cobrar de
Freyre outras conclusões.

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A ‘ESCOLA PAULISTA’ E A VIOLÊNCIA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Se Gilberto Freyre avançou na maneira de pensar a formação da sociedade brasileira ao


abandonar, até certo ponto, a noção de raça pela de cultura e destacar positivamente o papel do
africanos e negros, porém, logo a ideia do Brasil como uma “democracia racial” seria questionado.
A partir da década de 1950, sob o efeito da catástrofe nazista a Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) desenvolveu projetos de estudos baseados em uma
agenda anti-racista. O Brasil foi escolhido para acolher estudiosos, uma vez que era um ‘laboratório
de civilização’ – expressão cunhada pelo historiador Rudiger Bilden reiterada por Arthur Ramos
que em 1949 assumia o Departamento de Ciências Sociais da Unesco - “lugar privilegiado para a
percepção e análise dos desafios da transição do tradicional para o moderno” (MAIO, 1999, p. 142).
Neste sentido o estudo do negro e do indígena visava sua inserção no mundo moderno. A ciência a
serviço da inclusão social.
Florestan Fernandes, junto com Roger Bastide desenvolveu pesquisas na cidade de São Paulo
para o Projeto Unesco. Em sua tese de livre docência A Integração do negro na sociedade de classes
Fernandes (1964) determinou a perspectiva adotada pela chamada ‘Escola Paulista’. Ainda que a abor-
dagem de Fernandes tratrasse do período pós-abolição, o fundamento do drama histórico vivido por
negros e mulatos, segundo o sociologo, estava no efeito deformador legado pela escravidão. A violência
do sistema escravista, através de coerção e repressão como forma de controle social incapacitariam o
‘negro’ “de sentir, pensar e agir socialmente como homem livre” (FERNANDES, 1978, p. 95).
Tal perspectiva de coisificação e despersonalização do escravo desenvolveu-se em diversos estu-
dos da referida ‘Escola Paulista’. Fundametavam tal pespectiva em uma visão estrutural da escravidão,
em que o processo de produção para o mercado exportador necessitava de uma extrema exploração
do trabalho do escravo baseada na violência. Uma das representantes dessa escola é Emília Viotti da
Costa (1998, p. 324) que em Da senzala à colônia avaliava que:

O tratamento dado aos escravos parece ter melhorado ao longo do século XIX, principalmente
depois da cessação do tráfico quando os preços subiram progressivamente e a opinião pública
passou a se interessar mais pela sorte dos escravos, o que não impediu que alguns senhores con-
tinuassem a maltratá-los barbaramente até a véspera da abolição.

Diferente de Gilberto Freyre, Emília Viotti da Costa destacou a constituição de mundos an-
tagônicos e irredútiveis, uma vez que baseado na exploração dos senhores brancos sobre os escravos
negros. O ponto de vista da exploração e violência seria reforçado por outro historiador - de fora da
‘Escola Paulista’ - Jacob Gorender que (1978, p. 356-7) ao desenvolver a categoria explicativa “modo
de produção escravista colonial” destacava:

[…] o extermínio da vitalidade do escravo num prazo calculado. Como implicava a coação física
num clima de aterrorização permanente da massa escrava, o que exigia castigos diários rotinei-
ros e castigos excepcionais de exemplaridade ‘pedagógica’, no Brasil não menos iníquos que em
outras regiões escravistas.

No caso dessa perspectiva questionadora da benevolência escravista é possível pensar na rever-


beração de relatos de época nas conclusões dos historiadores, como aquele feito pelo jesuíta português
Antonio Vieira (1959, p. 365) em um de seus Sermões:

Maltratados disse, mas é muito curta esta palavra para a significação do que encerra ou encobre.
Tiranizados deveria dizer, ou martirizados; porque ferem os miseráveis, pingados, lacerados,
retalhados, salmourados, e os outros excessos que calo, mais merecem o nome de martírios que
de castigos.

É necessário salientar que a polarização é uma redução que se apresentou como um elemento
importante para explicar a escravidão no Brasil. João José Reis nos lembra porém, que nem tudo era
discordância entre Gilberto Freyre (1993, p. 194) e a ‘Escola Paulista’:

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Se Freyre escrevera que os escravos teriam sido vítimas de um ‘sistema social e econômico em
que funcionavam passiva e mecanicamente’, Fernando Henrique Cardoso […] também escreveria
que os escravos existiam como ‘uma espécie de instrumento passivo só o qual operavam as forças
transformadoras da História’.

Porém essa polarização forjou uma chave explicativa fundamental, seja em sala de aula, seja
na fundamentação das pesquisas acadêmicas, como no caso daqueles desenvolvidos em Goiás que
tratarei a partir de agora.

ESTUDOS DE HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO EM GOIÁS

Os estudos históricos sobre a escravidão em Goiás que discutirei são: Economia e escravidão na
capitania de Goiás, de Gilka V. F. de Salles (1992); Quilombos do Brasil Central: violência e resistência
escrava. 1719-1888, de Martiniano J. Silva (2008) e Trajetórias para a liberdade: escravos e libertos na
capitania de Goiás, de Maria Lemke Loiola (2009). Todos são histórias regionais, porém, produzidas
em relação a dinâmicas nacionais e globais. Assim, o sistema colonial ibérico e mesmo o mundo
atlântico são contextos em que se inserem os estudos aqui analisados a partir de uma ampla rede de
comparações e relações estabelecidas no trato analítico e interpretativo.
Talvez, posso dizer que as três obras analisadas cobrem o período de existência do Mestrado em
História na Universidade Federal de Goiás1. Gilka Salles defendeu a primeira dissertação no progra-
ma em 1974. Intitulada Adequação da teoria de Gaston Bachelard à historiografia. Naquele primeiro
período 1972-1974 a pós-graduação da UFG foi conveniada ao programa de pós-graduação em His-
tória da Universidade de São Paulo. Período em que Gilka Salles foi vice-diretora do departamento
de História. O doutorado em História Econômica de Salles foi realizado na USP, sob orientação de
Suely Robles Reis de Queiroz – herdeira da ‘Escola Paulista’-, sua tese intitulada, Economia e escravidão
em Goiás colonial, foi defendida em 1980 e publicada pelo CEGRAF/UFG em 1983, na coleção Teses
Universitárias, número 28. Gilka Salles foi uma das precursoras do fazer histórico profissional em
Goiás, fazendo parte da primeira geração de pesquisadores e professores que ajudaram a conduzir a
consolidação e o reconhecimento da história acadêmica em Goiás.
Em Economia e escravidão na capitania de Goiás, Salles apesar do estudo anterior e iconoclas-
ta - é o que podemos dizer sobre a análise de Gaston Bachelard 2 – produziu uma pesquisa dentro da
perspectiva histórica hegemônica daquele período, a história econômica. A escravidão na capitania de
Goiás foi analisada por Salles através das estruturas econômicas e suas dinâmicas. Assim, da intenção
inicial de estudar a contribuição do trabalho escravo na exploração do ouro em Goiás a pesquisa de
Salles (1992, p. 12) mudou o foco, traçando então um “panorama geral da economia goiana no período
colonial, destacando nela a participação do escravo”.
Gilka Salles com esta obra contribuiu para delinear as bases de uma História Econômica de
Goiás. A longa duração de Fernand Braudel serviu para definir o período colonial como recorte tem-
poral, o século do ouro de Luiz Palacin definido entre 1722, ano em que a expedição de Bartolomeu
Bueno da Silva descobre ouro nas terras da futura capitania de Goiás e 1822, ano da independência
do Brasil e fim do período colonial. A perspectiva econômica no sentido da abordagem foi desen-
volvida por Salles através de um dialogo entre Marx e Weber, contribuindo para a definição de um
sistema econômico pertinente para a realidade do período analisado, com Marx a ideia de que a vida
social, política e intelectual é derivada de uma estrutura econômica surgida do conjunto das relações
de produção, enfim, o trabalho como motor da história. Já com Weber a ideia de uma realidade his-
tórica multifacetada, fruto de certa ‘poli-historicidade’ nos conceitos epistemológicos e axiológicos
necessários para estudar o conjunto dos processos relativos às atividades de produção que definem
um sistema econômico.
Nota-se que Salles produz uma história econômica de Goiás do período colonial que é visada
na sua inserção no sistema capitalista mercantil e compreendida dentro do subsistema econômico
caracterizado como ‘escravista colonial brasileiro’. Esta inserção, segundo a historiadora, contribui para
apresentar a interação existente entre os fatores componentes da história econômica da região, tornados
inteligíveis em sua dinâmica interna, evidenciando, ainda sua relação com o mundo externo. Gilka

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Salles contribuiu para delinear e evidenciar uma visão global da unidade dos fatores que compõem
a história econômica de Goiás. Uma perspectiva fundamentada nas proposições da ‘Escola Paulista’.
No desenvolvimento do estudo o que chama a atenção é que por fim o destaque dado não foi
realmente “a participação do escravo”, mas sim à estrutura econômica e política gestada ao longo
do período analisado. Os títulos dos capítulos já demonstram o que o conteúdo atesta. O primeiro
capítulo Os princípios norteadores da economia goiana, Salles constrói uma análise da conjuntura
econômica luso-brasileira do período aurífero focalizando os homens que segundo ela foram os
mentores de tal economia.
O segundo capítulo Os fatores que condicionaram a formação econômica em Goiás, Gilka
Salles focaliza a ocupação do espaço geográfico em Goiás procurando demonstrar que esta ocorreu
através dos fatores econômicos. Assim percorre o caminho seguido pelos paulistas na preia de índios
e na demanda do ouro, as entradas e bandeiras dão o tom da narrativa e os bandeirantes os princi-
pais sujeitos históricos da grande aventura de ‘descobrimento’ das minas no sertão dos Goyazes. As
formações metalíferas e as técnicas de extração, os meios de transporte são outros fatores analisados.
Salles define a empresa mineradora como responsável pela formação dos povoados, estabelecendo
como a unidade econômica da capitania. Discorre ainda sobre as atividades complementares como
agricultura e pecuária, as explorações diamantíferas e salinas, as atividades mercantis e os preços dos
gêneros e suas oscilações. A atividade econômica é o foco, assim, os sujeitos que emergem na história
são justamente os administradores, os empreendedores do período estudado.
Para o terceiro capítulo tem-se o que poderíamos chamar de uma história contábil do período
colonial em Goiás. Intitulado As filtragens de demandas e recursos, Salles analisa a política metropo-
litana de controle sobre a exploração mineradora. Assim, percorre a legislação mineradora que visava
disciplinar a mineração ultra-marina, o orçamento da capitania, através da tributação, das receitas e
despesas e do controle de saída e entrada de bens. Uma vasta documentação de difícil analise, sobretudo
pela falta de tecnologia disponível para dar conta de uma quantidade imensa de dados coletados nos
mapas de arrecadação e despesas da Fazendo Real da Capitania e Minas de Goyas e transcritos para
serem perscrutados por Salles com tremenda maestria. Conclui que a oscilante e irregular arrecada-
ção se deveu à “falta de controle adequado dos gastos”, “a inércia administrativa” que negligenciava
as obrigações fiscais e sobretudo com o “refluxo demográfico, mal crônico das regiões mineradoras”,
ocorrido com o esvaziamento do ouro (SALLES, 1992, p. 184).
Aqui é necessário fazer um adendo quanto à discussão sobre o “refluxo demográfico” ocorri-
do na capitania de Goiás com a escassez do ouro. Trabalhos recentes, como é o caso de Caminhos
de Goiás de Nasr F. Chaul (1997) vêm demonstrando que na verdade não houve tal refluxo mas sim
um crescimento da população, porém, com uma mudança econômica voltada mais para o campo na
pecuária e agricultura, atividades de rentabilidade menor do que a mineração em seu período áureo.
Tal perspectiva já estava presente em Século do Ouro em Goiás: 1722-1822 de Luís Palacín (1994) onde
reconhecia o crescimento populacional interno e por meio de imigração favorecidas pela expansão
das atividades agropastoris.
Em Os fatores de produção o quarto capítulo de EECG temos o destaque da participação do
escravo – africano e indígena – na pesquisa, interpretados como forças produtivas, são estudados
“por constituírem ambos os fatores da produtividade na vida colonial da região” já que realizaram
“os serviços mecânicos e lavouristas”, subordinados aos brancos, já que a estes “cabiam a direção das
empresas e dos negócios, e as funções administrativas” (1992, p. 216). Após afirmar que o indígena
foi uma mão-de-obra ocasional e marginal na economia goiana do período colonial, Salles justifica o
estudo do indígena “devido aos entraves que ocasionou e os esforços das autoridades em superá-los”
(1992, p. 216). Sem discutir o tremendo esforço com a massa documental analisada, acredito que
Gilka Salles reproduziu as ideias das autoridades, não fazendo uso do contraditório para analisar os
indígenas e seu papel na produção econômica goiana no período colonial.
Salles também salienta a violência da relação entre os colonizadores e os indígenas no tópico
intitulado Os aldeamentos – Eufemismo do Processo de Administração, onde demonstra como ape-
sar de serem legalmente livres os indígena foram empregados largamente no serviço das minas, na
agricultura e nos trabalho domésticos. Os aldeamentos para Gilka Salles foram meros depósitos de
índios, o que facilitava o cativeiro dos mesmos, tornados trabalhadores eventuais de baixa rentabilidade.

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Quanto aos africanos o estudo de Salles reafirma o caráter violento do processo de escraviza-
ção e demonstra como se insubordinaram e buscaram a liberdade, tendo a alforria como aspiração
constante no horizonte de expectativa: “Embora aparentemente submisso, o negro rebelava-se contra
o cativeiro, solapando em silêncio os recursos do patrão, através do trabalho lento, dos roubos e fugas
para os quilombos” (1992, p. 227).
Salles respondeu a contento a problematização3 que propôs ao estudo da economia es-
cravista em Goiás no período colonial. Em Economia e escravidão na capitania de Goiás, Gilka
Salles abordou a escravidão indígena e negra em Goiás como uma “história global da economia
goiana” no século XVIII, relegando negros e índios a um segundo plano, o sistema econômico
é objeto de sua análise.
Desejosa em enxergar o fausto onde não poderia ter existido, reproduz a “imagem de decadência”
gestada nas cartas dos presidentes da capitania, nas crônicas dos viajantes e nos ensaios de historiado-
res autodidatas. A profissionalização da história em Goiás não irá questionar, de inicio, as imagens e
ideias construídas por expectativas de progresso e inserção do estado na economia nacional e global,
sobretudo porque esteve sob influência da ‘Escola Paulista’, restando aos historiadores adequar suas
pesquisas empíricas às teorias dominantes.
Em 1998, Martiniano José da Silva, defendeu a dissertação Quilombos do Brasil Central: séculos
XVIII e XIX (1719-1888): introdução ao estudo da escravidão, sob orientação de Gilka Vasconscelos
Ferreira Salles. A área de concentração do mestrado em história na Universidade Federal de Goiás
ainda era História das Sociedades Agrárias.4A pesquisa de Martiniano Silva foi publicada em 2003
pela editora Kelps de Goiânia, com uma pequena alteração no título e o desenvolvimento de um ca-
pítulo onde discute a violência contra os escravos. O título da publicação ficou assim: Quilombos do
Brasil Central: violência e resistência escrava, 1719-1888.
A perspectiva adotada por Silva baseou-se, sobretudo nos estudos de Clóvis Moura sobre a
resistência escrava. Assim, o quilombo é visto como parte do protesto negro, categoria que serviu
para definir as lutas e reivindicações dos negros organizados durante o século XX. O quilombo nesta
perspectiva passa a ser considerado enquanto “busca e construção da identidade negra” (MOURA,
2008, p. 44). Nessa medida é que desenvolve a seguinte problematização:

Por que no Brasil, por exemplo, em cada “região” se tenta encontrar uma “brasilidade” e construir
uma identidade? Apesar de sempre plural e de conceito muito fragmentado e contestado, não se
pode negar essa incessante busca na “cuiabana” dos cuiabanos; no “gauchismo” dos gaúchos; na
“baianidade” dos baianos; na “mineiridade” dos mineiros; na “goianidade” dos goianos; além de
sua dimensão maior na América do Sul, espanhola e na América portuguesa, onde a brasileira
é um enigma disfarçando a participação do negro. Que conceitos universais entraram “nelas”?
Como se definir, portanto, o verdadeiro significado do que se denomina identidade? Que ele-
mentos comporiam uma “identidade”? Seria possível uma identidade somente para o segmento
social negro? (MOURA, 2008, p. 45).

Martiniano Silva ao dialogar com a historiografia produzida ao longo das décadas de 1980 e
1990, não rompe com a ideia de dureza e violência do regime escravista. Porém, os escravizados não
aparecem desumanizados, coisificados subjetivamente como aprensentado pela historiografia revi-
sionista da ‘Escola Paulista’. Silva incorpora as categorias ‘negociação’ e ‘acomodação’ advindas dos
estudos de Eduardo Silva e João José Reis (2005) que avançavam para uma percepção que vai além
da polarização violência e amenidade. Ainda assim, o trabalho de Martiniano se ateve à principal
forma de contestação ao sistema escravista: a fuga e formação de quilombo, demonstrando a grande
divida para com Clóvis Moura. Este processo de aquilombamento foi considerado por Martiniano
como uma das principais forças desagregadoras do regime escravista em Goiás.
Tal perspectiva segue a linha interpretativa de Célia Marinhos de Azevedo, em Onda Negra,
Medo Branco: o negro no imaginário das elites do século XIX (1987). Azevedo, conforme João José
Reis e Eduardo Silva, desenvolve um estudo em que o escravo é considerado agente histórico e que por
meio de estratégias diferentes da grande fuga para quilombos irá negociar e pressionar os senhores
de escravo da região de São Paulo pela abolição, suscitando, dessa forma, discussões na impressa,
no poder legislativo ao longo das décadas de 1860 e 1880 sobre a necessidade de resolver o problema

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negro no Brasil daquele período. Azevedo contibuiu para revisar a perpectiva da ‘Escola Paulista’
questionando a coisificação e defendendo o escravo como sujeito de sua própria história.
Quilombos do Brasil Central deve ser considerado como um desdobramento dos estudos do
advogado-historiador iniciados na década de 1970 e vindos à público em 1974 com a publicação de
Sombra dos Quilombos, título que faz alusão a afirmação feita por Luís Palacin em seu estudo Goiás:
1722-1822 de 1972, de que não havia arraial em Goiás durante o século XVIII sem a sombra de um
quilombo. Para Palacin (1994), Goiás por ser uma região de minas os negros possuíam possibilidades
de conseguir a liberdade mais facilmente. E já em 1808 os escravos não eram a maioria da população,
apesar de uma sociedade de maioria negra e mestiça.
Em Sombra dos Quilombos, Martiniano J. Silva é o primeiro a analisar o negro na história goiana.
Buscou a influência social do negro na literatura goiana, em um dos primeiros trabalhos de crítica literária
com tal recorte – não seria inclusive muita pretensão dizer que somente com a chegada do século XXI
tal temática tenha sido trabalhada em estudos seja de crítica literária ou história. O tema principal do
trabalho, o quilombo, emerge em uma cartografia que apresenta os casos do Mesquita, de Santa Cruz e
do leste goiano, e tendo como foco principal o arraial negro da cidade de Mineiros, Cedro5.
No caso de Quilombos do Brasil Central, Martiniano traça no primeiro capítulo Quilombo:
Evolução Histórica uma genealogia do vocábulo quilombo percorrendo rica bibliografia para afir-
mar a extensão do fenômeno em termos geográficos e em sua continuidade histórica no Brasil e nas
Américas. É neste mesmo capítulo que desenvolve a problemática da identidade, em diálogo com
Abdias do Nascimento e Clóvis Moura, intelectuais que refletiram sobre o negro no Brasil de maneira
extrínseca à academia. Elemento que demonstra uma ampliação do lugar de produção da pesquisa de
Martiniano que extrapola as referências reconhecidas e eleitas pela academia.
Martiniano enfim, produz uma história que se alia à luta desenvolvida pelo Movimento Ne-
gro Unificado ao qual fazia parte. É sabido que a história sofrerá a influência do movimento negro
reorganizado na década de 1970 no Brasil, incorporando a perspectiva da resistência, da identidade
negra, da perspectiva que tratara o negro como agente histórico. Do lado da ciência, a influência dos
estudos de Edward P. Thompson contribuirão para a revisão de certas concepções a respeito do sistema
escravista e da categoria escravo. Principalmente como já afirmado acima, estes estudos questionarão
as perspectivas da coisificação do escravo e do foco na violência. Trabalhos como o de Eduardo Silva
e João José Reis sintetizados em Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista (1989) e
de Sílvia H. Lara em Campos da violência (1988), entre outros. Com tal fundamento é que Martiniano
(2008, p. 339) pode afirmar que:

Não se pode, portanto, continuar minimizando a participação do escravo negro de Goiás, a de


um mero “figurante mudo” ou “agente passivo” e romântico do processo histórico. A perspecti-
va é a de um escravo sujeito de sua ação histórica, não reificado nem mistificado, resistindo na
negociação, no conflito e até no silêncio.

A pesquisa de Martiniano, portanto, transita entre o debate acadêmico e as demandas do mo-


vimento negro, neste sentido o reforço da desumanidade da escravidão e a extrapolação do período
temporal definido caracterizam seu esforço em construir uma história que possibilite a construção
de consciência histórica aos afrodescendentes na atualidade.
Adotando uma perspectiva também macro-histórica como Gilka Salles, Martiniano Silva, desen-
volve um estudo de âmbito dedutivo, pois que a pesquisa empírica serve para corroborar o arcabouço
teórico e conceitual desenvolvido em diálogo com os estudos referidos, e outros como Eugene Geno-
vese, Roger Bastide, Robert Klein ampliando a discussão iniciada por Gilka Salles. É assim, que Silva
(2008, p. 63) constrói a hipótese do quilombo ser uma estratégia americana, fruto das contradições
estruturais do sistema escravista que refletiam na sua dinâmica “a negação desse sistema por parte
dos oprimidos”, constituindo uma contínua luta quilombola nas Américas.
O espaço de análise de Silva é a região Brasil Central, que englobaria o triângulo mineiro, re-
gião que já fez parte da capitania de Goiás, o ‘sertão da farinha podre’; a região do extremo oeste da
Bahia, o estado de Goiás, a comarca do norte, hoje Tocantins e o estado do Mato Grosso. Uma vasta
área de difícil reunião da documentação, sobretudo porque Martiniano não fez pesquisas no Arquivo

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Nacional no Rio de Janeiro ou nos arquivos em Portugal, onde há uma documentação reunida. Mas
de toda maneira, seu trabalho se debruça sobre testemunhos indiretos sobre os quilombos e consegue
uma analise panorâmica que contribui para tirar da latência as estratégias de resistência escrava na
região central do Brasil.
No segundo capítulo desenvolve uma discussão que ainda é cercada de controvérsias, sobre
a Procedência Escrava. Apanhando as análises de segunda mão, não há nesta parte da pesquisa de
Martiniano um trabalho com fontes primárias, assim, reafirma as definições correntes até aquele
momento. Definindo os escravos que procederam à região do Brasil Central, dentro das duas catego-
rias já contestadas de bantus e sudaneses. Isso não quer dizer que há um esforço para compreender a
procedência étnica dos africanos escravizados que vieram para a região, porém em um sentido parcial,
uma vez que uma documentação primária poderia contribuir para desvendar com mais pertinência
a procedência dos africanos escravizados na região.
O terceiro capítulo trata do povoamento e ocupação da região. Nele Martiniano Silva amplia
uma discussão clássica sobre o povoamento da região central do Brasil, trazendo para o centro da
história os indígenas, habitantes primevos da região, para isso convoca estudos arqueológicos para
defender que o povoamento é anterior a chegada dos colonizadores europeus. Mas ao fim mantem a
tese que liga o povoamento ao apresamento de índios e a atração da riqueza aurífera.
Em Dureza e violência no trabalho escravo, Martiniano Silva, desenvolve uma critica à perspec-
tiva da amenidade da escravidão. Estudos sobre o século XIX em Goiás, por exemplo, afirmaram que a
grande porcentagem de libertos demonstrariam como nossa história seria marcada pela benevolência
e pelas relações amenas entre senhores e escravos, tanto foi assim, que com a chegada da abolição
quase não haveriam escravos para se libertar. Silva (2008, p. 192) tomando como base uma visão de
que a violência seria imanente à vida humana, convocando Karl Marx para afirmar que: “A violência
é a parteira de toda sociedade velha que leva em suas entranhas outra nova”. Sem dúvida a violência
institucionalizada foi usada contra os africanos escravizados, porém, seria preciso relativizá-la, uma
vez que ela parece justificar o aquilombamento. Será que em condições mais brandas não surgiriam
desejos de liberdade nos escravizados? Tal justificativa parece repetir as opiniões principalmente
de religiosos e viajantes europeus que relataram a violência dos castigos. É preciso considerar que
as estratégias de resistência poderiam emergir mesmo em relações menos brutais entre senhores e
escravizados.
No capítulo final Maritiniano Silva constrói uma cartografia dos quilombos no Brasil Central
enquanto resistência ao sistema escravista. Segundo os dados levantados chegariam a cinquenta.
Em relação ao recorte temporal, a pesquisa extrapola o período referido no título uma vez que as
comunidades remanescentes de quilombola apresentadas em suas estruturas sociais e culturais são
posteriores à abolição. Martiniano poderia ter deixado em aberto o recorte temporal, para, então,
tratar da continuidade histórica do quilombo no pós-abolição, nas chamadas comunidades rema-
nescentes de quilombo.
Outra questão complicada é a referência a permanências africanas nas formas de sociabilidade,
de habitação e religiosidade das comunidades estudadas, que não se sustentam a um exame mais acu-
rado. Assim, dados do período contemporâneo servem para atestar o aquilombamento e uma herança
africana, mais especificamente angolana, quando se refere, por exemplo, à comunidade “Furnas da
Boa Sorte” em Mato Grosso do Sul:

São aproximadamente 45 famílias e 250 pessoas, em maioria ainda residindo em casas de pau-a-pique
evocando costumes angolanos, conservando, assim, o aspecto tradicional dos antepassados, em co-
bertura de capim, folhas de palmeiras (coco bacuri, babaçu, indaiá e outros), lona preta ou palhas do
próprio capim (SILVA, 2008, p. 323).

Construção complicada, e de difícil sustentação sobretudo porque não se sabe a procedência


dos membros da comunidade, já que nem só africanos da região onde hoje é Angola foram tragos
para a região. Ao mesmo tempo Martiniano Silva parece se preocupar em encontrar características
“típicas”, elementos culturais imobilizados, autênticos, o que não é possível, dadas as condições his-
tóricas em que os africanos e seus descendentes vieram para o Brasil Central, e principalmente pelas

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transformações sofridas ao longo do tempo através das trocas com europeus, indígenas e com os
próprios africanos de etnias e sociedades diversas.
Outro ponto que chama a atenção no trabalho de Silva e que reforça a preocupação apresen-
tada acima é o trabalho com fontes orais, incongruente ao meu ver por conta do recorte proposto6.
Sobretudo porque não há uma memória da escravidão e nem o reconhecimento do aquilombamento
na maior parte dos testemunhos. Por outro, lado é perfeitamente possível que o distanciamento e o
processo de silenciamento e posterior esquecimento quanto ao passado escravista tenha sido uma
estratégia de sobrevivência destas comunidades, haja vista que o desmantelamento das mesmas era
uma política de estado.
É válido lembrar outro trabalho que trata da resistência quilombola em Goiás desenvolvido pela
brasilianista Mary Karash (1996), Os quilombos do ouro na Capitania de Goiás. Neste estudo Karash
procurou reconstruir a história dos quilombos a partir de documentos oficiais. Seu trabalho amplia
e confirma a tese de Palacín, da “sombra dos quilombos” sobre os arraiais da capitania de Goiás.
Karash demonstra o papel importante dos africanos e seus descendentes na formação econômica e
social da capitania, tanto pela descoberta de novos veios de ouro, bem como pela diversificação da
produção agrícola. De norte a sul, de leste a oeste, a capitania de Goiás foi coberta pelos quilombos.
O que é interessante salientar no trabalho de Karash é o acesso a uma documentação descomunal,
certamente possibilitada por prazos e apoios financeiros e também hospitaleiros que a possibilitaram
realizar tal exame.
O trabalho de Martiniano contribuiu para o desenvolvimento dos estudos sobre a escravidão
em Goiás. Ampliando o olhar e removendo um silêncio estranho quanto à temática. Seu trabalho
tem como principal característica abrir um leque variado de questões que podem ser desenvolvidas,
sobretudo quanto a uma história do negro no pós-abolição, silêncio ainda mais funesto na historio-
grafia produzida em Goiás.
Deslocando o olhar historiográfico para uma história social que percebe a questão cultural
como relevante, um artigo de Cristina de Cássia Moraes, Devotos de Nuestra Señora del Rosário de
los Hombres Negros y seguidores del Vudú: Los rituales sudaneses en la Région de los Guayases al final
del siglo XVIII (2002), apresenta-nos a prática cultural do vodu no sertão goiano a partir do estudo
de uma prática africana reenraizada e inserida na construção da sociedade goiana durante o período
colonial. Destaca-se no trabalho de Cristina Moraes a mudança na perspectiva da ocupação e povoa-
mento de Goiás. Extrapolando a visão economicista e afirmando ser a religião o fator preponderante
na fixação e reinraizamento das populações no sertão goiano.
No ensaio em questão Moraes analisa uma denúncia feita contra a escrava Margarida crioula.
Margarida e alguns irmãos de irmandade participavam do ritual dahomeano do vodu ressignificado
em terras goianas e aceito até certo ponto pela população e clero local, até ser denunciada pelo uso
de uma bolsa de mandinga. Esse caso afirma a presença de elementos culturais do grupo que ficou
definido como sudanês e ioruba.
O trabalho de Moraes apresenta a agência negra, ao focalizar o âmbito das relações sociais e
culturais a partir das práticas dos grupos de sudaneses que se organizaram em irmandades de devoção
a santos católicos, e que nos interstícios reconstruiram o culto a seus antepassados (loas), recriando
aqui o ritual da árvore sagrada mapu. A guinada para uma perspectiva cultural da história de Goiás
irá influenciar no desenvolvimento de pesquisas posteriores, principalmente através da regência de
cursos de História de Goiás e orientações de monografias e projetos de iniciação científica em docu-
mentação primária dos séculos XVIII e XIX.
Em diálogo com este desenvolvimento da pesquisa histórica é que o trabalho de Maria Lemke
Loiola, Trajetórias para liberdade: escravos e libertos na capitania de Goiás, será gestado. Fruto da pes-
quisa de mestrado defendida em 2008 com o título: Trajetórias Atlânticas, Percursos para a Liberdade:
Africanos e Descendentes na Capitania dos Guayazes. Foi vencedora do concurso Teses e Dissertações
na área de Humanas, sendo publicada na coleção Expressão Acadêmica pela editora da UFG em 2009.
O trabalho de Loiola apresenta dentro do campo estudos sobre a escravidão em Goiás uma
novidade7, que será a variação da escala de análise. Trajetórias para liberdade se insere na perspectiva
da micro-história italiana, complementada pela “noção de escala como operador de complexidade”
advinda da geografia através de Iná de Castro (2009, p. 17), permitindo assim o seguinte agrupamento:

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[...] a presença dos africanos minas, a importância da atribuição colonial, a condição social e
as experiências do fazer-se livre sob a perspectiva de estratégia políticas – como um conjunto,
passível de ser interpretado com base em inter-relações.

Marai Loiola reafirma a presença de uma maioria de africanos provenientes da costa da mina
durante o século XVIII, aspecto confirmado através de uma análise dos “assentos de batismo de
escravos existentes no Arquivo Geral da Diocese de Goiás” do período entre 1764 a 1792, “78% dos
declarados pretos (africanos) nos batismos correspondem aos minas. Angolas, nagôs e congos tota-
lizam 3%. Os pretos cuja nação não foi especificada somam 19%” (LOIOLA, 2009, p. 46). Esta será a
discussão do primeiro capítulo Escravizados e atribuição colonial em Vila Boa, onde Loiola reconstrói
as rotas de africanos escravizados para a região de Goiás no século XVIII, avaliando as designações
dadas aos escravizados na procura de definir a procedência, assim, a documentação estudada para o
caso goiano é cotejada com os estudos de Mariza de Carvalho Soares principalmente Devotos da cor:
identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Analise que contribui para
confirmar a complexidade da realidade histórica do setecentos nos arraiais goianos, desenvolvendo
uma compreensão mais apurada do que aquela apresentada pela historiografia da escravidão em Goiás
até então, como fica explicito no trecho abaixo:

A nação, tal como a cor, é parte da atribuição colonial e, portanto, está sujeita a variações regionais
e investida de crenças construídas em torno de justificativas pouco convincentes. A documentação
reflete o que se escreve dos negros, escravizados ou forros, e sobre os indígenas. É a palavra da-
quele que domina dando cor e signos àquele de quem se escreve, matizando-os segundo interesses
alheios à sua vontade (SOARES, 2009, p. 46).

Assim temos a ratificação de que as atribuições dadas aos africanos e seus descendentes es-
cravizados estabeleceram as nações africanas a partir do porto de embarque e não de grupos étnicos
específicos. Este cuidado com as categorias históricas marca a preocupação de Loiola – necessária
para qualquer estudo histórico – em não cometer anacronismo. A categoria ‘escravizado’ também
contribui para a efetivação de outro imaginário sobre os africanos traficados para o Brasil, uma vez
que ‘escravo’ se tornou uma categorização estática e que acabou por desenvolver uma condição es-
sencialista, naturalizada. Percebe-se que Loiola (2009, p. 57) contribui para desnaturalizar a condição
dos africanos e seus descendentes ao ter como principio o cuidado com as categorizações:

A documentação existente nos arquivos de Goiás é farta em abordar qualificações referentes à


cor dos indivíduos, escravizados e libertos. Nos assentos de batismo existem pretos, crioulos,
pardos, mulatos, mestiços e cabras, nunca negros. O termo negro é encontrado na documen-
tação administrativa e carrega forte carga pejorativa, pois se refere aos supostos salteadores,
vadios, quilombolas e desordeiros. Nas diferentes espécies e tipologias documentais, pode-se
perceber que todo negro era preto, mas nem todo preto era negro, conquanto se comportassem
bem. A cada “desordem”, os crioulos e pardos (que não eram pretos por não terem nascidos na
África) tornavam-se negros.

Em Estratégias políticas dos escravizados e libertos, o segundo capítulo, Maria Lemke Loiola, rea-
valia o aquilombamento, as insurgências e estratégias nos arraiais e capelas de Goiás, o sujeito emergente
e percebido em sua agência histórica é o negro, o ‘desordeiro’ para as autoridades coloniais. Seguindo a
perspectiva iniciada por Cristina Moraes, Maria Lemke Loiola tem nos devotos das irmandades o foco
de seu estudo. A variação de escala e o avanço para além das relações de trabalho e econômicas contri-
buíram para chegar a certas conclusões que ampliam a própria noção de estratégias e ação dos sujeitos
escravizados em Goiás. As fugas e insurreições possibilitam perceber que “os significados da liberdade
iam além da escravidão”, uma vez que a lutas dos escravizados parecem questionar “a opressão do cati-
veiro e as limitações decorrentes dessa condição”, garantir o direito a uma morte decente, por exemplo,
demonstra os “diferentes artifícios para fazer-se livre” (LOIOLA, 2009, p. 71).
A alforria, forma oficial de fazer-se livre, foi buscada por um grande número dos escravizados,
porém, segundo Maria Loiola os crioulos, nascidos em terra brasileira, possuíam maior possibilidade

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de se alforriar do que os africanos. Assim, no último capítulo Caminhos de saída, Loiola procura
apresentar a agência de pretos e pardos em suas trajetórias rumo à liberdade, casos individuais como
o de Adão e Justina alforriados na pia batismal e com relevo especial a trajetória de Joanna preta-mina,
que vem comprovar a diversidade das ações dos escravizados e contestar a perspectiva da benevolência
senhorial neste processo.

Embora o agente normatizador estivesse distante no espaço, os escravizados e os grupos subal-


ternos tinham conhecimento das brechas coloniais e como elas poderiam ser exploradas. Pelo
prisma da variedade de experiências cotidianas dos escravizados, tem-se outra percepção acerca
do passado, de suas ambiguidades e incertezas (LOIOLA, 2009, p. 119).

Por fim, podemos concluir que houve uma transformação nos estudos sobre o passado escra-
vista em Goiás. O que se pode depreender da análise é que desde o trabalho de Salles nos fins dos
anos 1970 até o trabalho de Loiola finalizado em 2008, passando pela extensa pesquisa de Silva pu-
blicada em 2003, os historiadores goianos têm acompanhado, e adentrado no diálogo historiográfico
que não se atém às fronteiras nacionais. É nessa medida que notamos as mudanças ocorridas nas
perspectivas teórico-metodológicas ao longo desses anos. Confirma-se, ainda, através dos resultados
apresentados nestas pesquisas a parcialidade do conhecimento histórico. Ao mesmo tempo, pode-se
perceber o desenvolvimento da historiografia regional sobre a escravidão em termos heurísticos e de
critica documental que ainda sobre a influências das perspectivas dominantes conseguiu criar uma
produção autonoma e original.

Notas

1 Para uma abordagem histórica sobre o Mestrado em História da UFG, cf. SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira
de; FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira de . ‘Mestrado em História das Sociedades Agrárias: uma aborda-
gem histórica (1972-1995)’. In: História Revista. Vol. 1, Nº 2. Goiânia: Edi.UFG, 1996, pp. 1-18. Disponível em:
http://www.revistas.ufg.br/index.php/historia/article/viewFile/10930/7233, acesso em 15/01/2011. SERPA, Élio
Cantalício; MAGALHÃES, Sônia Maria de. ‘Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás’.
In: (Orgs.). História de Goiás: memória e poder. Goiânia: Ed. da UCG, 2008, p. 07-16.
2 SALLES, Gilka F. V. Adequação da teoria de Gaston Bachelard à historiografia. Goiânia: Pós-graduação em
Hisória/UFG, 1974. (Dissertação de Mestrado). Disponível em : http://www.historia.ufg.br/pos-historia/?id_
pagina=1245816996&site_id=112, acesso em 16/01/2011. Orientada pelo professor Shozo Motoyama um
historiador das ciências.
3 [...] de que maneira o ciclo aurífero em Goiás integrou-se na conjuntura histórica do século XVIII? Que
fatores intervieram para criar o descompasso entre a amplitude econômica da atividade mineradora, as
ambições desencadeadas e os resultados obtidos? Que papel representou o escravo na economia goiana?
Como se fez a passagem de uma economia mineradora para a agro-pastoril? (SALLES, 1992, p. 23-4).
4 Este trabalho foi o segundo a tratar da escravidão nas pesquisas realizadas no mestrado, o primeiro foi
Quando a corda arrebenta do lado mais forte: senhores e escravos em Goiás (século XIX), de João Carlos
Parada Filho, defendida em 1992. Parada Filho desenvolveu um estudo sobre os crimes cometidos pelos
escravos contra seus senhores ao longo do século XIX, mas sua análise ficará para outro momento.
5 Que também foi objeto de estudo em excelente trabalho da antropologa Mari N Baiocchi. Negros de Cedro:
estudo antropológico de um bairro rural de negros em Goiás. São Paulo: Ática; Brasília: INL, Fundação
Nacional Pró-Memória, 1983.
6 Um relato de um membro da Comunidade dos Malaquias, MS, narra um combate com a Coluna Prestes.
7 Em termos de pesquisa total, já que o trabalho de Cristina Moraes citado acima é um exercício de estudo
sobre a perspectiva Bakhitiniana da circularidade cultural, uma das bases da renovação desenvolvida por
Carlo Ginzburg em especial em O queijo e os vermes.

Referências
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