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‘Arqueologia’ (o passado mítico e remoto da Grécia); considerações metodológicas

Tucídides, cidadão ateniense, descreveu a guerra entre Peloponésios e Atenienses e a forma como
lutaram uns contra os outros. Começou logo a seguir ao rebentar da guerra, na convicção de que seria grande
e mais digna de relato do que as sucedidas anteriormente, dando-se conta de que ambas as potências se
encontravam, em todos os aspectos, no auge da preparação para essa finalidade e porque via que o resto do
mundo helénico se ia inclinar para uma das partes, uns de forma imediata, outros depois de ponderarem. [2]
Foi este o maior movimento de sempre, que galvanizou os Helenos e determinada parte dos Bárbaros e, por
assim dizer, parte significativa da Humanidade. [3] Era impossível, devido à extensão temporal, distinguir com
clareza os acontecimentos que se deram antes ou os que ainda foram mais antigos. Quanto às provas que,
investigadas por mim com a maior profundidade, julgo serem de confiar, penso que não eram importantes
nem quanto às guerras, nem quanto a outros factos que se deram. II. É evidente que o território a que hoje se
chama Hélade não foi em tempos antigos uniformemente habitado, uma vez que então se sucediam migrações e que
esses povos também abandonavam rapidamente os sítios onde se instalavam, por serem a tal forçados por outros mais
numerosos. [2] De facto não havia qualquer troca comercial nem se misturavam sem medo essas gentes entre si, nem
por terra nem por mar, limitando-se cada uma a cultivar, no terreno onde estava, o bastante para viver, sem que
obtivessem acumulação de riqueza por não plantarem as terras com culturas permanentes, pois não era duvidoso que
um invasor as não pudesse ocupar, visto que nessa mesma altura ainda não dispunham de muralhas. Julgando que no
dia-a-dia conseguiam obter em toda a parte e sem dificuldade o sustento necessário, mudavam de lugares e, por isso,
não eram fortes nem na dimensão das cidades, nem em quaisquer outros recursos. [3] Era sobretudo a parte mais rica
das terras que recebia estas migrações de habitantes, como a agora chamada Tessália e a Beócia, muitas partes do
Peloponeso, com excepção da Arcádia, e tantas quantas fossem mais férteis no resto do território grego. [4] Devido
à melhor qualidade da terra, assim era o poder gerado para as mais fortes, o que originava guerras sociais que as
arruinavam e ao mesmo tempo as tornavam mais sujeitas aos ataques de tribos vindas de fora. [5] A Ática pelo menos
desde há muito tempo foi poupada a lutas internas, devido à pouca profundidade do seu solo e por ter sido sempre
habitada pelo mesmo povo. [6] E é um exemplo não desprezível do que digo o facto de ter sido por causa das tais
migrações que os outros territórios não se desenvolveram ao mesmo nível. Afastados das outras partes da Hélade
pela guerra ou pela agitação social, emigravam para Atenas os mais capazes devido à segurança existente e, desde
tempos antigos, obtinham rapidamente estatuto de cidadãos, pelo que tornavam a cidade ainda maior pelo número
dos seus habitantes de tal forma que, por fim, já sendo a Ática demasiado pequena, teve de mandar fundar colónias
para a Jónia. III. Também para mim está claramente provada a fraqueza dos tempos antigos pelo facto de que antes
dos acontecimentos troianos parece que nada foi anteriormente e em conjunto empreendido pela Hélade. [2] Parece-
me até que nem este nome se aplicaria à totalidade do seu território, e que antes de Heleno, filho de Deucalião, nem
sequer existia essa denominação, uma vez que eram as outras tribos, nomeadamente a Pelásgica, que davam aos
lugares os seus próprios nomes; porém, quando Heleno e os seus filhos cresceram em poder na Ftiótida e passaram
a ser chamados em auxílio das outras cidades, a pouco e pouco as tribos, por motivo desses serviços, passaram de
preferência a chamar-se Helenos ainda que, por muito tempo, não fosse possível que o nome se aplicasse
exclusivamente a todos. A melhor testemunha disso é Homero. [3] Tendo aparecido este muito depois do conflito
troiano, nem por isso usa, seja em que passo for, essa denominação. para todos nem para outros, excepto para os que
da Ftiótida acompanhavam Aquiles, os quais foram de facto os primeiros Helenos, muito embora no seu poema utilize
denominações como Dánaos, Argivos e Aqueus. Não lhes chamou contudo Bárbaros, pois, como me parece, os
Helenos ainda não tinham sido separados dos outros povos, para que, como contraste, fossem denomina- dos por um
só nome. [4] Cada um dos que porventura recebeu o nome de Helenos, cidade por cidade, separadamente ou
sucessivamente, privando uns com os outros e em conjunto depois, nada empreendeu antes da guerra de Tróia devido
à sua fraqueza e falta de contacto e de união entre si. E para essa expedição só se juntaram depois de terem progredido
muito mais na experiência marítima. IV. Foi Minos que, antes de todos os que nos são conhecidos pela tradição,
montou uma armada. Dominou grande parte do que hoje é chamado Mar Helénico, e assenhoreou-se das ilhas
Cíclades, sendo o primeiro colonizador da maior parte delas e, depois de expulsar os Cários, entregou o governo aos
filhos. Quanto à pirataria, como é natural, tentou expulsá-la do mar conforme podia, de maneira a que os seus
rendimentos passassem mais para as suas mãos. V. Os Helenos, em antigos tempos, bem como os Bárbaros que no
continente viviam junto à costa, e assim também os que dominavam as ilhas, logo que começaram com maior
facilidade a navegar em barcos uns contra os outros, passaram a praticar a pirataria sob o comando de chefes não
desprovidos de capacidades, na mira de ganhos próprios e de prestarem ajuda aos aliados mais fracos, assaltando
cidades desprovidas de muralhas ou que consistiam em aldeias espalhadas, as quais pilhavam, e dessa actividade
compunham grande parte do seu modo de viver, visto que esta fonte de rendimento não era objecto de vergonha, mas
consigo trazia muito pelo contrário renome glorioso. [2] Ainda o atestam hoje, e até em tempos passados os poetas,
alguns povos continentais que consideram uma honra o proceder assim, perguntando aos que aportam à costa se são
piratas ou não, como se não estivessem a fazer a pergunta a quem julga o trabalho digno de mérito e que não vai
censurar perante os que desejam a informação. [3] Também em terra se assaltam uns aos outros e até nos dias de hoje
em muitas partes da Hélade se continua a viver à maneira antiga nas zonas à volta dos Lócrios Ozolas, dos Etólios,
dos Acarnanos e em terras do continente. O hábito dos continentais de andarem armados é um resto desse antigo
costume de assaltarem. VI. Com efeito toda a Hélade andava armada, porque as povoações não estavam protegidas
e a convivência entre as gentes não era sem perigo e o porte de armas era um sistema normal, tal como entre os
Bárbaros. [2] O facto de ainda hoje em certas partes da Hélade se manter este costume é a prova de que outrora
semelhantes comportamentos se espalhavam por toda a parte. [3] Entre estes povos, foram os Atenienses os primeiros
a depor as armas, e uma forma de viver mais à vontade levou-os a mudarem-se para um maior bem-estar. Foi devido
a esse bem-estar que só há pouco tempo os mais velhos das classes ricas é que deixaram de vestir túnicas de linho e
de pentear em nó os cabelos da cabeça, que fixavam com um broche de cigarras douradas. Daí o ter passado há muito
esse mesmo ornamento para os mais velhos dos Jónios, por serem da mesma origem. [4] Contudo um adorno mais
modesto segundo esta mesma moda foi adoptado primeiramente pelos Lacedemónios, e evitando os que eram mais
ricos que houvesse diferenças para com os outros, limitavam-se sobretudo a formas mais igualitárias. [5] Eram os
primeiros a despir-se e à vista de todos untavam-se com óleo, quando praticavam exercícios físicos. Em tempos já
idos, mesmo nos Jogos Olímpicos, usavam tangas à volta das partes vergonhosas os atletas que competiam, e não foi
há muitos anos, que deixaram de o fazer. Na verdade, ainda hoje entre os Bárbaros, especial- mente entre os Asiáticos,
onde se atribuem prémios para a luta e boxe, os que os disputam assim se preparam. [6] Seria possível demonstrar
que em muitos outros aspectos o mundo helénico tinha costumes idênticos aos do mundo bárbaro de hoje. VII.
Contudo as cidades que foram construídas mais recentemente e, quando a navegação se tornou finalmente menos
perigosa, começaram elas a ter mais abundância de riqueza e a ser construídas na própria costa e os istmos a serem
rodeados de muralhas com a finalidade de promover o comércio e de protecção dos povos frente aos seus vizinhos.
Mas as cidades já antigas, devido à pirataria, que perdurou por muito tempo, eram de preferência construídas longe
do mar, fosse nas ilhas ou no continente, pois os pira- tas não só se atacavam uns aos outros, como também os que
viviam na costa, mas que não eram gente do mar, e até aos dias de hoje ainda vivem nas terras do interior.
VIII. Não menos piratas eram os ilhéus, tais como os Cários e os Fenícios, que habitavam a maior parte das
ilhas. Testemunho é dado por Delos, quando foi purificada pelos Atenienses durante esta guerra e foram abertos os
túmulos nos quais jaziam os que tinham morrido na ilha, sendo mais de metade Cários, reconhecidos pela concepção
das armas que com eles foram enterradas e que é a mesma das que com eles ainda hoje são sepultadas. [2] Quando
se estabeleceu a força naval de Minos, tornou-se mais fácil a navegação entre os diversos povos, pois os bandidos
foram por ele expulsos das ilhas, e muitas das suas povoações foram então colonizadas [3] e os habitantes da orla
marítima começaram nessa altura a adquirir mais propriedades e a viver em maior segurança, construindo até alguns
à sua volta muralhas, uma vez que se tinham tornado mais ricos do que eram. Promovidos pelo lucro os mais fortes,
deixaram-se os mais fracos ficar na dependência destes, e os mais capazes e na posse de fortunas levaram a cabo pôr
sob o seu domínio as cidades menos poderosas. [4] Foi desta forma que, crescendo cada vez mais, se decidiram a
fazer a expedição contra Tróia.
IX. Segundo me parece, Agamémnon por ter ultrapassado em poderio os poderosos da sua época, é que
conseguiu reunir a sua armada, e não tanto por estarem ligados pelo juramento de Tíndaro os pretendentes de Helena,
que tinha sob o seu comando. [2] Também dizem os Peloponésios que receberam as provas mais seguras da tradição
dos seus mais antigos predecessores, que Pélops, primeiramente na posse de enormes riquezas que com ele vieram
da Ásia para junto de gente pobre, obteve para si o poder, apesar de ser um forasteiro, e deu o seu nome à região ao
mesmo tempo que dela se assenhoreava e que depois ainda maiores bens foram legados aos seus descendentes.
Quando Euristeu foi morto em campanha na Ática às mãos dos Heraclidas, a Atreu que era irmão da mãe de Euristeu,
por ter tido a sorte de ter fugido do pai quando do assassínio de Crisipo, tinha-lhe sido confiada por Euristeu a
soberania de Micenas devido aos laços de parentesco. Visto que Euristeu não voltou, os Micénios por vontade própria
e devido ao medo que tinham dos Heraclidas e porque Atreu parecia corajoso e agradara ao povo, levaram-no a
receber o poder sobre eles e sobre aqueles em quem Euristeu tinha mandado, sendo desta forma que a casa de Pélops
se tornou mais poderosa do que a de Perseu. [3] Parece-me esta a razão por que Agamémnon entrou nessa altura na
posse de tudo isto e por dispor de um poder naval maior que o dos outros se lançou na expedição, impelido não tanto
pela generosidade, mas pelo medo. [4] Na realidade é evidente que ele apareceu equipado com o maior número de
navios, tendo mais outros ainda para ceder aos Arcádios, como Homero demonstrou, se é que Homero é testemunha
suficientemente idónea. Diz ele, quando relata a entrega do ceptro, que “mandava em muitas ilhas e em toda a Argos”.
Ora Agamémnon, estando no continente, não seria senhor dessas ilhas, à excepção das próximas da costa, que não
são muitas, a não ser que tivesse poder naval. É por esta expedição que é necessário avaliar como era a situação antes
de ela se realizar. X. E porque Micenas era pequena e também porque qualquer cidade daquele tempo pareceria agora
de pouca importância, não ficaria bem utilizar provas imprecisas para tornar pouco digna de crédito a grandeza da
expedição tal como os poetas a descrevem e a tradição confirma. [2] Se a cidade dos Lacedemónios tivesse ficado
deserta e tudo tivesse sido abandonado à excepção dos templos e das fundações dos outros edifícios, penso que, à
medida que o tempo fosse passando, alguma dúvida subsistiria sobre se /74/ o poder real de que usufruía
corresponderia ao seu renome. E no entanto ocupam dois quintos do Peloponeso e mandam em toda essa região, bem
como em muitos aliados de outras zonas. Ao mesmo tempo, visto que nem a cidade é construída com boas estruturas,
nem dispõe de templos e de edifícios valiosos, mas é habitada em povoações à maneira da antiga Hélade, esse poder
poderia parecer inferior. Atenas, por seu lado, se passasse pelo mesmo destino, só pela visão clara da cidade pareceria
duas vezes mais poderosa do que é na realidade. [3] Portanto, há que não dar crédito somente às aparências, nem
olhar mais para o que se vê das cidades do que para a sua real força, e acreditar que aquela expedição foi a maior das
que antes se fizeram, ficando atrás contudo das de hoje em dia, se quisermos confiar na poesia de Homero, o qual
por ser poeta é evidente que quis embelezar, embora pareça que mesmo assim a imaginou modesta. [4] Na verdade
numa armada de mil e duzentos barcos apresenta as embarcações dos Beócios com cento e vinte tripulantes, cada
barco de Filoctetes com cinquenta, indicando, segundo me parece, os barcos maiores e os mais pequenos. Quanto ao
calado dos outros barcos não o recorda no Catálogo das Naus. Que todos eram remadores e guerreiros distinguiu-o
ele nos barcos de Filoctetes. Com efeito fez archeiros de todos os remadores. Não é provável que houvesse tantos
supranumerários na expedição, além dos reis e dos mais poderosos, sobretudo porque iam atravessar o mar com
equipamento militar sem terem barcos com cobertas, mas simplesmente equipados conforme o estilo antigo, ou seja,
mais como barcos de piratas. [5] Para quem olhar para a média entre embarcações maiores e mais pequenas não
parece que na expedição fossem muitos homens, uma vez que eram enviados em comum de toda a Hélade. XI. A
causa não era tanto a falta de homens, quanto a falta de recursos. Era na verdade a escassez de provisões que /75/ os
levou a ter uma força armada relativamente pequena mas tão grande quanto esperavam para que pudesse sobreviver
na região, enquanto estivesse a combater. Quando chegaram, mantiveram a sua força em combate, o que foi evidente;
com efeito o sistema defensivo à volta do acampamento não poderia ter sido montado, e até parece que nem ali
utilizaram toda a sua força, mas dedicaram-se à actividade agrícola no Quersoneso e à pilhagem, devido à falta de
alimentos. Ali, visto que estavam dispersos, foi mais fácil para os Troianos fazer-lhes frente pela força durante dez
anos e ser sempre rivais à altura dos que ficavam para trás. [2] Se tivessem ido para a guerra, tendo abundância de
mantimentos e sendo numerosos, sem pilhagem e sem trabalhos agrícolas, teriam levado facilmente a guerra até ao
fim, e teriam, por serem fortes, prevalecido vitoriosos em batalhas, visto que não tendo as suas forças unidas, mesmo
assim, só com parte delas em campo, fizeram-lhes frente. Tivessem eles podido parar, montando um cerco, teriam
conquistado Tróia em menos tempo e com menos trabalhos. Devido contudo à falta de dinheiro foram os seus esforços
fracos antes de entrarem em acção, pois esta expedição, mais digna de renome do que qualquer outra que antes
sucedeu, pelos factos se demonstra ter sido inferior à sua fama e à lenda tecida agora à volta dos acontecimentos
pelos poetas. XII. E na verdade, depois da guerra de Tróia, a Hélade ainda emigrava e fundava colónias, de tal forma
que por não viver em tranquilidade, não se desenvolvia. [2] De facto nem sequer foi o retorno dos Helenos de Ílion,
depois de tão longo tempo, que causou muitas mudanças, mas, pelo contrário, começaram geralmente nas cidades a
gerar-se revoluções. E em consequência destas houve gente, que forçada ao exílio, fundou novas cidades. [3] Os
Beócios de hoje, por exemplo, no sexagésimo ano após a destruição de Tróia, foram expulsos de Arne pelos Tessálios
para a região agora /76/ denominada Beócia e habitam uma região chamada em tempos passados Cadmeida, pois
deles uma parte era outrora desse território e foi de entre estes que saíram os que foram combater em Tróia. Os da
Dória, só no octogésimo ano depois de Tróia, é que se apoderaram do Peloponeso com a ajuda dos Heraclidas. [4]
Foi apenas depois de muito tempo que a Hélade conseguiu sossegar permanentemente e o seu povo nunca mais foi
expulso dos seus lares, mas saiu para fundar colónias. Os Atenienses colonizaram a Jónia e muitas das ilhas. Os
Peloponésios, a maior parte da Itália, da Sicília e de outras regiões da Hélade. Todas estas colónias foram fundadas
depois dos acontecimentos de Tróia. XIII. Tendo-se a Hélade tornado mais poderosa e conseguindo, ainda muito
mais do que no passado, adquirir riquezas, com a abundância começaram a surgir tiranias nas cidades, quando antes
tinham existido regimes de realeza hereditária assente em prerrogativas. Então a Hélade começou a aparelhar navios
e a dar maior preferência ao mar. [2] Diz-se que foram os Coríntios os primeiros a dominar os métodos mais modernos
da gestão e ciência náuticas e foi em Corinto que pela primeira vez na Hélade se construíram trirremes. [3] Parece
que foi o engenheiro naval coríntio Amínocles, que construiu para os Sâmios quatro embarcações. Isto deu-se por
volta de trezentos anos antes do fim desta guerra do Peloponeso, quando Amínocles foi viver com os Sâmios. [4] A
batalha naval mais antiga das que conhecemos foi entre Coríntios e os habitantes de Corcira. Deu-se duzentos e
sessenta anos antes da mesma data. [5] Estabelecidos no Istmo, os Coríntios sempre ali tiveram um mercado para a
troca dos seus produtos, pois os Helenos desde antigamente, mais por terra do que por mar, dentro do Peloponeso ou
fora dele, tinham de passar pelas terras deles. Por isso eram poderosos e ricos, como é demonstrado pelos antigos
poetas. Chamavam-lhe de facto “a rica Corinto”. Mas quando os Helenos passaram a utilizar a navegação, adquiriram
os Coríntios mais barcos e limparam o mar da pirataria, e ofereceram possibilidades comerciais por terra e por mar
ao darem à sua cidade a acessibilidade necessária para a aquisição da riqueza produzida. [6] Também os Jónios
seguidamente adquiriram um grande poder naval, no tempo de Ciro, o primeiro Rei dos Persas, e de Cambises, seu
filho. Ao combaterem Ciro para defender. os seus interesses, dominaram o mar junto da costa durante algum tempo.
Tambem Polícrates, que era tirano de Samos, tendo-se fortalecido, no tempo de Cambises, com poder naval, reduziu
ao seu domínio outras ilhas e entre elas tomando Reneia dedicou-a a Apolo de Delos. Finalmente, os Foceenses ao
colonizarem Massália, venceram em batalha naval os Cartagineses. XIV. Eram estas as mais poderosas das armadas.
Mas mesmo estas, construídas muitas gerações depois da guerra de Tróia, tinham à sua disposição poucas trirremes,
e estavam equipadas como as de antigamente, com embarcações de cinquenta remos e com barcos de carga de grande
dimensão. [2] Pouco antes das guerras médicas e da morte de Dario, que reinou sobre os Persas depois de Cambises,
trirremes foram encomendadas em grande número para os tiranos que reinavam à volta da Sicília e para os povos da
Corcira. Eram estas na verdade as últimas forças navais dignas de nota que se encontravam na Hélade antes da invasão
de Xerxes. [3] Os Eginetas e os Atenienses e outros povos adquiriram armadas mais reduzidas e a maior parte delas
constituída por embarcações de cinquenta remos. Não foi há muito tempo que os Atenienses, quando estavam em
guerra com os Eginetas e ao mesmo tempo esperavam os Bárbaros, foram convencidos por Temístocles a construir
os navios, com os quais combateram em Salamina. Mas estes barcos ainda não tinham cobertas a todo o comprimento.
XV. Tais eram os mais antigos navios dos Helenos de tempos passados e que ainda hoje são feitos. Os que deste
sector se ocuparam atingiram de qualquer forma maior poder para si próprios, no que respeita a riqueza e ao domínio
sobre os outros povos. Faziam ataques navais contra as ilhas e subjugavam-nas depois, muito especialmente, porque
não dispunham de terra que lhes bastasse. [2] Por terra não havia guerra que se declarasse, da qual se pudesse retirar
qualquer poder. Todas as guerras que se faziam, fosse em que molde fosse, eram contra os vizinhos desses povos,
porquanto expedições em terra estrangeira para dominação de outros não as organizavam os Helenos. De facto ainda
não se tinham unido como estados vassalos às cidades maiores, nem tão-pouco tinham realizado expedições em
comum e em pé de igualdade. [3] Era muito mais umas contra as outras que as povoações vizinhas se guerreavam.
Foi muito especificamente quando da guerra que há muito fora declarada entre Calcidenses e Erétrios, que o resto
dos Helenos se decidiu a promover alianças de guerra ou por um dos lados ou pelo outro. XVI. Às outras populações
helénicas e doutras regiões levantaram-se obstáculos que-as impediam de se desenvolver. Quando o comércio corria
muito bem para os Jónios, Ciro e o império Persa, depois de dominarem Creso e todo o território entre o rio Hális e
o mar, viraram-se contra aqueles e reduziram à escravatura as cidades em terra firme, tendo sido Dario, tempos depois
e então já no poder, que com as esquadras fenícias veio escravizar também as ilhas. XVII. Quanto aos tiranos, onde
quer que existissem em cidades helénicas, tão-somente davam atenção aos seus interesses pessoais e a aumentar o
poder do seu círculo familiar por meio de medidas de segurança tão grandes quanto podiam, sobretudo na
administração das cidades e de tal /79/ forma que nada digno de atenção foi feito por eles, a não ser porventura por
alguns deles, por alguma razão contra os que lhes eram vizinhos e que com eles se travavam de razões; na Sicília no
entanto chegaram eles a ter um enorme poder. Foi por esse motivo que, durante muito tempo, fosse que parte fosse
da Hélade se quedou na inércia sem conseguir realizar em conjunto nada de notável, nem as suas cidades levaram a
cabo quaisquer feitos que denunciassem coragem. XVIII. Depois disto os tiranos de Atenas e os do resto da Hélade,
que durante muito tempo, antes de Atenas, tinha sido dominada por tiranos, a maior parte destes e os últimos de
todos, à excepção dos da Sicília, foram desapossados do poder pelos Lacedemónios. Efectivamente Lacedémon que,
depois dos Dórios se instalarem na zona que agora habitam, viveu, durante o maior período de tempo de que temos
conhecimento, em estado de agitação social, também mais cedo do que todos, chegou a ser governada por boas leis
e sempre livre de tiranos. Há certamente quatrocentos anos ou um pouco mais, já para o fim desta guerra, que os
Lacedemónios aproveitam da mesma constituição. Este foi o motivo por que conseguiram o poder de intervirem na
política dos outros estados. Depois de derrubarem os tiranos na Hélade, não muitos anos depois, a batalha de
Maratona travou-se entre Medos e Atenienses. [2] No décimo ano a seguir a essa batalha, de novo o Bárbaro, com
enorme contingente armado, veio para a Hélade com a finalidade de a escravizar. Perante tão grande perigo que sobre
eles pendia, os Lacedemónios assumiram o comando dos Helenos, que se tinham juntado para lutar, pois eram os que
tinham poder, e os Atenienses, quando os Persas avançavam, decidi- ram abandonar a cidade e, levando consigo os
seus bens, embarcaram em navios e tornaram-se marinheiros. Expulso não muito depois o Bárbaro graças ao esforço
comum, /80/ dividiram-se os Helenos, juntando-se aos Atenienses ou aos Lacedemónios, tanto os que se tinham
revoltado contra o Rei, como os que tinham formado a primeira aliança contra ele. De facto era evidente a grandeza
desses Estados: uns eram poderosos em terra, os outros no mar. [3] Mas foi de pouca duração esta aliança armada,
pois logo os Lacedemónios e os Atenienses, tendo-se desavindo, começaram jun- tamente com os seus aliados a lutar
uns contra os outros. Se alguns dos outros Helenos por alguma razão discordavam, desde esse momento tinham de
alinhar ou com um ou com o outro. E foi desta forma, desde a invasão médica que tudo continuou até à presente
guerra, ora fazendo-se a paz, ora travando guerras, quer entre si quer com os seus próprios aliados, desde que se
tivessem revoltado, o que serviu para que ambos os Estados se preparassem para a guerra e se tornassem mais
experientes para tomarem as medidas necessárias por entre os perigos. XIX. Os Lacedemónios dirigiam os seus
aliados sem que os obrigassem a pagar tributo, mas cuidavam para que houvesse em todos um regime oligárquico,
que era politicamente o que mais lhes convinha. Os Atenienses, por seu lado, juntavam aos seus os navios que iam,
com tempo, tomando dos Estados aliados, à excepção de Quios e de Lesbos, obrigando todos ao pagamento de um
imposto em dinheiro. Portanto a preparação financeira privada dos Atenienses era maior para esta guerra do que já
fora para eles próprios e seus aliados, quando entre eles existia uma aliança muito forte e em estado puro. XX. Foi
assim que eu verifiquei terem sido no passado os acontecimentos, bem como o difícil que é, em casos destes, dar
crédito a todo e qualquer testemunho. Os seres humanos aceitam o que ouvem acerca do que sucedeu antes deles,
mesmo que seja na sua própria terra, sem o disputar /81/ como se se tivesse dado com outros. [2] Os Atenienses,
por exemplo, na sua maioria pensam que Hiparco era tirano e que foi morto por Harmódio e Aristogiton e não sabem
que foi Hípias, o mais velho dos filhos de Pisístrato, que reinava e que Hiparco e Téssalo eram seus irmãos. Ora
Harmódio e Aristogiton suspeitaram naquele mesmo dia que Hípias tinha sido informado por um dos que com eles
conspirava e afastaram-se dele como se ele tivesse sido avisado, mas querendo agir antes de serem capturados e que-
rendo arriscar, foi a Hiparco que encontraram e mataram, nas proximidades de um templo chamado Leocório, quando
ele dirigia a procissão Panatenaica. [3] Mas existem ainda muitos outros acontecimentos, mesmo actuais, que o passar
do tempo não apagou da memória, os quais os outros Helenos interpretam de forma errónea, tal como é o caso dos
reis dos Lacedemónios, que não lançam cada um um voto, mas sim dois, e que os mesmos dispõem de uma “brigada
de Pítane”, a qual jamais existiu. E assim que a maior parte dos homens não se dá ao trabalho de investigar e de
preferência se volta para o que está à mão. XXI. De qualquer modo, quanto às provas que foram indicadas, quem
quer que seja que acredite que os factos se deram de forma muito parecida, não se enganará, se não conceder muito
crédito ao que os poetas sobre eles em verso escreveram embelezando-os até mais não, nem tão-pouco aos cronistas
que os embelezam para agradar às preferências de quem os ouve, mais do que para se aproximarem da verdade, pois
os acontecimentos já não são verificáveis e muitos deles com o passar do tempo, por serem incríveis, entraram no
reino do mito. Deve-se antes de mais considerar que se tentou encontrá-los pelas indicações mais seguras, uma vez
que são bastante antigos. [2] Mas esta guerra, muito embora o homem julgue que a guerra em que se está a bater é
sempre a maior, quando ela termina e /82/ pode admirar com maior facilidade o que antes aconteceu e olha os factos
a partir dos trabalhos por que passou, sem dúvida que lhe será evidente que foi esta a maior de todas.
XXII. E quantas coisas muitos disseram nos discursos ou quando estavam prestes a entrar na guerra ou quando
nela já estavam, foi dificil lembrar com rigor as palavras que proferiram, quer para mim, quando eu próprio as ouvi,
como para outros que de outras fontes a mim as transmitiam. E conforme o que me pareceu que cada um teria dito e
era mais apropriado para a circunstância presente, eu mantive-me o mais próximo possível daquilo que na realidade
havia sido dito. [2] Quanto aos feitos que foram praticados na guerra esforcei-me por escrever não sobre informações
de alguém que porventura lá estivesse, nem como pessoalmente me parecia provável, mas recolhendo dentro do
possível com rigor todos os factos nos quais estive presente ou que por outros me foram contados. [3] Foi difícil
descobrir os factos, uma vez que os que tinham estado presentes nos vários acontecimentos não davam a mesma
versão tendo eles próprios lá estado, mas de acordo com a sua simpatia por um lado ou pelo outro ou segundo o que
era a sua recordação. [4] Pode parecer menos agradável faltar o fabuloso na minha leitura. Mas todos os que quiserem
ver com clareza o que aconteceu e que virá de novo a acontecer nalguma outra vez, em conformidade com o que é
humano, seja de igual forma ou de forma parecida, se a julgarem útil, já isso me é suficiente. O que escrevi não foi
concebido para ganhar prémios ao ser ouvido de momento, mas como um legado para sempre.
XXIII. O maior dos feitos que antecederam a guerra do Peloponeso foi o conflito com os Medos que teve
contudo um desfecho rápido com duas batalhas navais e duas terrestres. Mas a enorme complexidade desta guerra
prolon-/83/gou-a e nela ocorreram desastres que assolaram a Grécia como nenhuns outros em período de igual
duração. [2] Nunca tantas cidades foram conquistadas e devastadas, algumas pelos Bárbaros e outras pelos próprios
Helenos que entre si lutavam. Houve mesmo algumas que depois de capturadas mudaram de habitantes. Tão-pouco
houvera tantos exilados e tanto morticínio, provocados pelo decorrer da própria guerra ou pela violência social
interna. [3] Os acontecimentos mais antigos, que pela tradição foram relatados e que raramente eram confirmados
pelos factos, deixaram de ser incríveis, tais como os terramotos que simultaneamente aconteceram em parte
significativa da terra e que se manifestavam com a maior violência, bem como eclipses do sol, que se sucediam com
maior frequência do que em quaisquer outros momentos anteriores de que houvesse memória; secas enormes também
surgiram e com elas a fome; finalmente a não menos destruidora peste que destruiu parte significativa da população.
[4] Todas estas catástrofes sucederam a par da guerra. Começaram-na os Atenienses e os Peloponésios depois de
quebrarem o tratado de tréguas de trinta anos que eles próprios tinham assinado depois da conquista da Eubeia. [5]
Quais as causas por que o quebraram, assim como as suas discordâncias, já sobre isso anteriormente escrevi, de tal
forma que ninguém jamais tenha de investigar por que motivo tão grande guerra se veio instalar entre os Helenos.
[6] O pretexto mais próximo da verdade e que não tem sido visível no que se tem dito é que o avanço a que os
Atenienses tinham chegado lhes conferia muito poder, o que causou medo aos Lacedemónios e os obrigou a declarar
a guerra. As causas porém que publicamente foram avançadas dos dois lados, e que os levaram a quebrar as tréguas
e a declarar a guerra foram as seguintes: [...].

TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, tradução do texto grego, prefácio e notas introdutórias de R. M. Rosado
Fernandes e M. G. P. Granwehr, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
A oração fúnebre (epitaphios logos) de Péricles: o elogio de Atenas

XXXIV. Durante este mesmo Inverno, os Atenienses, seguindo o exemplo dos seus antepassados, celebraram
da seguinte maneira funerais públicos em honra dos que primeiro morreram nesta guerra: durante três dias, as ossadas
dos mortos ficam expostas numa tenda construída para o efeito e cada um trazia aos seus mortos a oferta que queria.
Quando o cortejo fúnebre se realizou, carros levaram os caixões de cipreste, um para cada tribo. Os ossos são
colocados no caixão de cada tribo; uma carreta fúnebre é deixada sem nada dentro e adornada em honra dos
desaparecidos, cujos corpos não tenham sido encontrados para fazer o funeral. Qualquer pessoa pode tomar parte no
cortejo, quer seja cidadão quer seja estrangeiro. Também presentes, e fazendo as suas lamentações, estão as mulheres
da família dos mortos. Os caixões são colocados no sepulcro público, que fica no subúrbio mais bonito da cidade, e
aí enterram sempre todos os que morrem nas guerras, excepto os que morreram em Maratona, porque julgaram que
o heroísmo destes era extraordinário, e assim sepultaram-nos onde tinham morrido. Quando os restos mortais dos
guerreiros são enterrados, um cidadão escolhido pelo estado e considerado pelo povo como o primeiro em judiciosa
prudência e visão, profere a oração fúnebre apropriada. Depois disto, /198/ todos se retiram. É assim que os
Atenienses enterram os seus mortos. E durante a guerra, sempre que a ocasião se proporcionava, usaram este costume.
[8] Consequentemente, para o elogio fúnebre destes primeiros soldados foi escolhido Péricles, filho de Xantipo. E
quando o momento apropriado chegou, ele avançou do túmulo para uma plataforma mais alta, construída de tal
maneira que pudesse ser ouvido pela maioria da multidão, e falou assim:

XXXV. “Muitos dos que falaram aqui antes de mim elogiaram quem acrescentou este discurso ao costume
desta cerimónia como se honrar com palavras os que morreram em combate pudesse de alguma maneira igualar o
seu heroísmo. No que me toca, julgo suficiente que homens que se distinguiram por actos sejam homenageados por
actos tais como os que acabámos de presenciar, o funeral preparado pelo Estado, ainda que as virtudes de tais homens
não dependam, para serem justamente apreciadas, dum único factor, os dotes oratórios, bons ou maus, dum só
homem. É de facto difícil falar com moderação sobre tudo isto no momento em que ainda é complicado verificar
com exactidão o que é verdade. Porque o homem que conhece os factos e os escuta com simpatia pode mesmo assim
pensar que eles não foram descritos com a grandeza que ele desejava ou sabia que eles mereciam. E o que os não
conhece, sempre que ouvir qualquer coisa que ultrapassa as suas capacidades naturais, por inveja, vai pensar que é
tudo um exagero. De facto, elogios feitos por outros só são aceitáveis até ao ponto em que cada um pensa que pode
fazer o que ouve dizer que foi feito. Porém aquilo que ultrapassa esta circunstância, provoca inveja e incredulidade.
Mas uma vez que isto que foi aprovado pelos antigos como um acto nobre, também eu, obedecendo a este costume,
tenho de tentar satisfazer o melhor que puder os desejos e as expectativas de cada um de vós.
/199/ XXXVI. “Vou falar primeiro dos nossos antepassados pois é justo e apropriado que em ocasião como
a presente lhes seja dada a distinção desta memória. Na verdade até hoje em sucessivas gerações eles viveram sempre
nestas terras e graças ao seu esforço legaram-nas livres à posteridade. E se aqueles merecem louvor, mais ainda os
nossos pais que ganharam, não sem dificuldade, para além daquilo que tinham recebido, o império que agora temos
e que eles nos legaram como herança. E a maior parte deste império, nós próprios que estamos no vigor da vida,
aumentámos e também preparámos a cidade por todos os meios para ser completamente auto-suficiente quer para
tempos de guerra quer para tempos de paz. Contudo, não quero, nem vou falar de feitos militares conhecidos de todos
nós que nos deram o que temos hoje, nem tão-pouco vou lembrar como nós ou os nossos pais corajosamente
confrontaram agressões inimigas, fossem elas de origem bárbara ou helénica. Mas antes de fazer o elogio dos mortos,
vou descrever que princípios de acção nos trouxeram à presente situação e com que instituições políticas e com que
costumes nos tornámos um grande império, porque penso que este é o tema adequado ao momento presente e que o
povo aqui reunido, de cidadãos e de estrangeiros, pode escutar com proveito.
XXXVII. “Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos mas que,
pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses
não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os
cidadãos são iguais; no que respeita a prestígio pessoal, quando alguém se distingue em alguma coisa, não é preferido
para honras públicas mais por posição de classe do que por mérito; por outro lado, no que respeita a falta de riqueza
pessoal, o cidadão que tem aptidão para servir a cidade nunca, por causa /200/ da sua condição humilde, é impedido
de alcançar a dignidade merecida. Governamos a coisa pública em liberdade e nos negócios de cada dia não agimos
com desconfiança nem reagimos violentamente contra um vizinho se ele segue as suas preferências, nem tão-pouco
o olhamos com antipatia que não fere, mas magoa. Mas enquanto na vida privada convivemos com tolerância, sem
nos sentirmos ofendidos, na vida pública não desrespeitamos as leis mais por medo, porque obedecemos sempre a
quem tem o poder e também às leis, sobretudo as que foram promulgadas para ajudar aqueles que são vítimas de
injustiça e também as que, embora não sendo escritas, trazem desonra que é por todos reconhecida.
XXXVIII. Para além disto, nós proporcionamos muitas formas para o espírito se repousar dos trabalhos do
dia-a-dia, com jogos e sacrifícios durante todo o ano e com edifícios particulares elegantes; o prazer que vem de os
contemplar mantém os sofrimentos a distância. Também, em virtude da grandeza da nossa cidade, todos os produtos
de todo o mundo entram aqui e o resultado é que gozamos com o mesmo prazer produtos gerados por nós ou por
povos de outras terras.

XXXIX. “E se falarmos das práticas de guerra, também nestas somos diferentes dos nossos adversários.
Abrimos a nossa cidade a todo o mundo e não existem, como em Esparta, medidas para manter os estrangeiros fora
da cidade, nem impedimos ninguém de aprender ou ver aquilo que, porque não foi escondido, pode ajudar qualquer
dos nossos inimigos que o veja; não confiamos mais em preparativos e estratagemas do que na coragem que existe
em cada um de nós, quando chamados a agir. Também no que respeita a educação, enquanto desde crianças eles por
meio de dolorosa disciplina procuram tornar-se homens de coragem, nós /201/ participa na vida pública não é
apolítico mas sim inútil no que diz respeito aos interesses da cidade. E também somos os únicos que não só
escolhemos mas verdadeiramente reflectimos sobre os negócios do Estado e não somos de opinião de que estas
reflexões são prejudiciais a uma intervenção em qualquer acção, sim, porque o mal vem de não se ter feito um plano
antes de se entrar em acção. Na verdade, temos isto de diferente em relação a outros povos; por um lado, somos
resolutos, por outro, reflectimos naquilo que vamos tentar fazer, enquanto outros homens têm a coragem que a
ignorância lhes traz, e a hesitação é causada pela reflexão. Mas aqueles que são Julgados como os mais fortes na sua
alma são justamente os que conhecem com maior segurança o que é perigoso e o que é agradável e por isso mesmo
não voltam as costas aos perigos. Também no que diz respeito a fazer bem, somos o oposto de outros homens pois
não é recebendo favores, mas sim concedendo-os que nós arranjamos amigos. Na verdade, quem concede o favor
está sempre em posição superior, pois que o favor concedido num acto de benfeitoria ajuda aquele a quem é
concedido; mas o que o recebe está em posição inferior, sabendo que quando o retribuir, não é como um favor, mas
sim como pagamento de uma dívida. Somos também os únicos que prestamos ajuda não com a ideia de obter
vantagens para nós mas pela crença que temos na nossa visão de liberdade.
XLI. “Em resumo, eu digo que não só a nossa cidade serve de exemplo a toda a Hélade mas também, na
minha opinião, cada um de nós, Atenienses, como indivíduo, na maioria dos casos, é exemplo do cidadão que cuida
de si próprio com brandura e habilidade. E que isto não é presunção minha inventada para esta ocasião, mas sim a
pura verdade dos factos, é provado pelo poder da nossa cidade adquirido como consequência desta forma de estar.
De /203/ facto, Atenas é a única cidade que, posta à prova, é melhor do que a fama que tem e é também a única que
nem dá aos inimigos que a atacam razão para se sentirem humilhados por causa do que sofreram às nossas mãos,
nem a quem lhe paga tributo, motivo para a criticarem como não sendo ela merecedora. Porque somos poderosos, e
disto temos dado muitas provas, seremos olhados com admiração não só pelas gentes de hoje, mas também pelas
gerações vindouras. E não precisamos de um Homero para nos elogiar, nem de qualquer outro poeta, cuja poesia
encantará no momento em que é escrita, mas será desmentida pela verdade dos factos, pois forçámos todo o mar e
toda a terra a conceder acesso à nossa bravura e por todo o lado deixámos monumentos que para sempre conservarão
a memória dos nossos feitos, bons e maus. É pois esta a cidade pela qual estes homens combateram e morreram,
julgando que era seu dever não deixar que ela fosse conquistada pelo inimigo; é Justo também que os sobreviventes
estejam prontos também a sacrificar-se por ela.
XLII. “É por esta razão que me demorei mais a falar da grandeza da nossa cidade, querendo mostrar-vos que
a nossa luta é diferente da luta dos que não têm os mesmos valores que nós, e também estabelecer com testemunhos
incontestáveis o elogio destes homens que agora celebro. Na verdade, grande parte deste já está feito, pois quando
fiz o elogio da cidade, as virtudes que a honram são as destes homens e doutros como estes e a fama dos feitos
daqueles mostrou a muitos Helenos que estes não poderiam nunca ser igualados. Também me parece que ao apontar
para coragem de um guerreiro se tem de falar do que primeiro foi revelado e agora, por fim, da sua morte que foi
confirmada.
/204/ E até para os que não agiram com o mesmo valor, é justo tornar pública a bravura com que combateram
por Atenas contra os seus inimigos. Na realidade, substituindo o mal pelo bem, ajudaram a causa comum mais do
que a prejudicaram com o seu comportamento individual. Nenhum destes homens, pelo prazer de gozar a riqueza ou
na expectativa de escapar à pobreza, se tornou um comodista, como se escapar à morte pudesse enriquecê-lo e adiar
o sofrimento. Mas tendo tomado o castigo dos inimigos como bem mais desejável do que isto, e ao mesmo tempo
considerando aquele como o mais glorioso dos perigos, escolheram vingar-se do inimigo, abandonando os outros
interesses, deixando a esperança duma prosperidade incerta para o futuro mas confiando em si próprios para a tarefa
que os enfrentava. E assim, quando o momento de combate chegou, decidiram que era melhor defenderem-se e
sofrerem do que fugir para se conservarem vivos; escaparam assim à desonra de tal decisão e aguentaram o ataque
com o seu próprio corpo; portanto, mais no auge da sua glória do que do seu medo, foi assim que deixaram este
mundo.
XLIII. “Estes homens morreram de maneira que honra a nossa cidade. E vós que estais vivos, muito embora
por certo pedindo aos deuses um fim mais favorável, deveis enfrentar o inimigo com a mesma coragem, mas sem dar
atenção aos benefícios que já conheceis, sobre os quais alguém pode fazer-vos um longo discurso enaltecendo a honra
de defender a cidade dos inimigos; vós deveis sim contemplá-la em cada dia na grandeza do seu poder e tornar-vos
seus amantes. E quando compreenderdes bem essa grandeza, considerai que homens corajosos, sabedores dos seus
deveres, conscientes do sentimento de honra em acção, fizeram estas coisas para si próprios e, apesar da probabilidade
de insucesso, decidiram que a cidade não merecia ser /205/ privada da sua coragem e assim concederam-lhe,
servindo-a, a melhor oferta que podiam dar-lhe. Na realidade, ao sacrificar as suas vidas pela causa comum, eles
obtiveram a admiração que nunca morre e o mais ilustre de todos os túmulos, não aquele em que os seus corpos
jazem sepultados mas sim aquele em que a glória deles fica guardada como memorial para em cada oportunidade ser
celebrada com palavras ou emulada em acções. O mundo inteiro é de verdade o túmulo dos homens famosos, e não
é só o epitáfio gravado nas pedras tumulares na pátria onde nasceram, mas também a memória não escrita que em
terras que não são as suas comemora mais a sua coragem do que as suas acções. E vós que seguistes o seu exemplo,
e decidistes que felicidade é liberdade e liberdade é coragem, não hesiteis perante os perigos da guerra. Na verdade,
os desgraçados não podem dar a sua vida de maneira mais digna, eles que não têm nada de bem a esperar, mas o
mesmo não pode dizer-se daqueles para quem, no tempo que ainda têm para viver, existe sempre a possibilidade de
mudança de fortuna, ou daqueles que, se falharem nisto, sofrerão consequências muito sérias. Para um homem de
carácter, adversidade com covardia é mais dolorosa do que a morte, que chega de repente sem ser prevista, quando
ainda se tem vigor e uma esperança em comum.
XLIV. “Por esta razão, não são pêsames mas sim palavras de conforto que vou dirigir aos pais destes homens
aqui presentes, pois sabem que passaram muitas vicissitudes. Boa sorte é daqueles homens que, como estes, têm um
fim glorioso, muito embora isto vos cause tristeza, e também que tenham sido felizes na vida e tenham um fim
condigno dela. No entanto, eu sei que é difícil convencer-vos disto, quando muitas vezes os sucessos de outros, com
que em tempos vos alegrastes, vos lembrarem a sua memória, porque o sofrimento existe não por causa do que a
pessoa /206/ foi privada de experimentar, mas sim por causa do que lhe foi tirado e que já tinha experimentado.
Aqueles que estão ainda em idade de ter mais filhos devem tê-los; na verdade, os filhos que nascerem daqui para o
futuro serão para vós motivo para não vos lembrardes tanto dos que já partiram, e para a nossa cidade trarão duplo
benefício: não a deixam despovoada e asseguram a sua estabilidade. De facto, só são imparciais e justos os pareceres
dos homens que os dão, tendo entregado à causa comum os seus próprios filhos. Quanto a vós, que já sois de mais
idade, considerai como ganho a maior parte da vida que já vivestes e em que éreis felizes e, como o resto do tempo
que vos resta vai ser breve, aliviai o vosso sofrimento por meio da fama destes. Na realidade, só o culto da honra não
envelhece e não são riquezas, como dizem alguns, mas sim honra que dá prazer quando se chega à idade.

XLV. “Para vós, filhos ou irmãos destes homens que estais aqui presentes, eu vejo que o conflito é grande
uma vez que o costume é louvar quem já não vive; ainda que com dificuldade vos mostreis superiores em coragem,
não sereis nunca apreciados como iguais mas sim até como um pouco inferiores. A verdade é que os vivos são objecto
de inveja por parte dos seus rivais, enquanto os que foram afastados do nosso caminho gozam de apreço indiscutível.
Se me é permitido recordar também a virtude feminina, como a das mulheres que acabaram de ficar viúvas, vou dar-
lhes com brevidade o seguinte conselho: grande será a vossa glória se não ficar abaixo das qualidades que a natureza
vos deu e se o vosso bom nome não se prestar a ser falado entre os homens em louvor ou em má-língua.

XLVI. “Obedecendo ao nosso costume, proferi as palavras que achei apropriadas a esta ocasião e, com os
nossos actos estes homens, cujo funeral agora fazemos, já foram cele-/207/brados; também os filhos deles a nossa
cidade vai manter com fundos públicos até chegarem à maior idade, concedendo assim aos mortos e aos seus
sobreviventes como prémio destas lutas uma coroa benéfica para todos. Na verdade, onde as recompensas da coragem
são as melhores, aí existem os melhores cidadãos. E agora, assim que cada um de nós concluir as suas lamentações,
podeis regressar às vossas casas”
XLVII. Foram estas as cerimónias fúnebres que tiveram lugar durante este Inverno. Assim acabou o Inverno
e com ele o primeiro ano desta guerra.

TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, tradução do texto grego, prefácio e notas introdutórias de R. M.
Rosado Fernandes e M. G. P. Granwehr, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

A peste em Atenas
[2] Assim que o Verão começou, os Peloponésios e os seus aliados, dois terços das suas forças, como anteriormente,
invadiram a Ática comandados por Arquidamo, filho de Zeuxidamo, rei dos Lacedemónios e, depois de tomarem
posições, arrasaram a região. [3] Ainda não tinham estado na
Ática muitos dias, quando pela primeira vez surgiu entre os Atenienses a peste. Dizia-se que já tinha aparecido antes
em muitos lugares, principalmente em Lemnos e outras áreas, muito embora não houvesse memória em lugar nenhum
duma tal pestilência causadora da morte de tantos homens.
[4] No princípio nem os médicos podiam ajudar uma vez que estavam a tratar uma doença que não conheciam e
morriam em grande número especialmente porque visitavam muitos doentes; mas também nenhuma outra arte
humana ajudava, como ir aos santuários como suplicante, ou o recurso a profecias, e outras coisas, tudo era inútil.
No fim abandonavam tais esforços vencidos por tal calamidade.

XLVIII. Dizia-se que tinha começado na Etiópia para além do Egipto e depois passou para o Egipto, Líbia e [208]
grande parte do território do Grande Rei. De repente, caiu sobre a cidade de Atenas, atacou primeiro as gentes do
Pireu e por isso foi dito por eles que os Peloponésios tinham envenenado as cisternas. Na realidade, ainda não havia
ali fontes. Mas depois alcançou a cidade e aí muitos mais morreram. Agora, que qualquer cidadão, médico ou não,
faça o seu diagnóstico sobre a origem desta doença e que causas semelhantes a estas explicam tal mudança. De facto,
como eu próprio tive esta doença e vi muitas das suas vítimas, vou falar dos sintomas e assim pelo estudo destes, no
caso de a doença voltar, alguém pode reconhecê-la.

XLIX. Aquele ano, segundo a opinião geral, tinha sido particularmente saudável no que respeita a outras doenças.
Mas se uma pessoa já estava doente, a doença que tinha transformava-se nesta. Noutros casos, sem qualquer motivo,
de repente, estando de boa saúde, as pessoas eram tomadas por febres altas, vermelhidão e inflamação dos olhos e
por dentro a garganta e a língua ficavam ensanguentadas e emitiam um cheiro não natural e nauseabundo. Depois
disto, espirravam, tinham dores de garganta e em muito pouco tempo o mal descia ao peito com tosse muito forte. E
quando se fixava no estômago transformava-o de tal maneira que vómitos de bílis, das espécies todas a que os
médicos tinham dado nomes, [4] os afligiam com grande sofrimento físico. Para muitos seguiam-se arrancos secos
que produziam terríveis convulsões, em certos casos depois de terem melhorado dos vómitos secos, noutros muito
mais tarde. [5] Quando tocado por fora, o corpo não estava nem muito quente nem pálido, mas um pouco
avermelhado, lívido e coberto de pústulas ulceradas, mas por dentro ardia em fogo de tal forma que os doentes não
suportavam contacto nem com mantos, nem com coberturas de tecido leve e não queriam senão estar nus; e também
se atiravam para água bem fria, na verdade, muitos dos que não tinham /210/ quem cuidasse deles, atiraram-se para
dentro de poços, atormentados pela sede que não podiam mitigar. De qualquer modo, o resultado era igual, quer
bebessem muito ou pouco. [6] Também tinham dificuldade constante em descansar ou dormir. E o corpo, enquanto a
doença estava no auge, não ficava debilitado mas, pelo contrário, aguentava o sofrimento de tal modo que ou a
maioria deles no sétimo ou no nono dia morria da febre que os consumia por dentro muito embora ainda conservassem
algum vigor ou, se escapassem, a doença descia aos intestinos e, criada ali uma
ferida grave acompanhada de diarreia excessiva, muitos morriam vítimas da debilidade assim causada. [7] Na
verdade, tendo a doença começado em cima, estabelecendo-se primeiro na cabeça, espalhava-se por todo o corpo e
se alguém sobrevivia a todos estes sofrimentos, o ataque às suas extremidades deixava marca. [8] Com efeito, esta
doença, destruiu as partes pudendas, dedos de pés e mãos e muitos escaparam mesmo sem aqueles, enquanto outros
perderam os olhos. Havia também pessoas, que mal se restabeleciam da doença, eram atacadas por falta de memória
de tudo o que fosse e nem se reconheciam a si próprias nem aos seus amigos.

L. Na verdade, o carácter geral desta pestilência foi tal, que não há palavras para a descrever; além disto, atacou cada
vítima com mais violência do que a natureza humana podia tolerar e assim mostrou que era diferente das outras
doenças habituais. [...]
LII. A juntar à calamidade que tinha surgido, a vinda de muitos habitantes do campo para a cidade, e estes foram não
menos afectados, tornava a situação mais difícil. [2] Porque não havia casas para eles mas viviam em barracas muito
abafadas no calor da estação, a doença apareceu entre eles sem controlo; não só os mortos e os moribundos eram
postos uns em cima dos outros, mas pelos caminhos e perto de todas as fontes deambulavam os semimortos no seu
anseio por água. [3] Os templos em que viviam estavam repletos de cadáveres dos que ali tinham morrido e as pessoas
tão desanimadas pela doença, não sabendo o que ia acontecer-lhes, passaram a desprezar igualmente as coisas
sagradas e as profanas. [4] Todos os costumes que observavam antes no que dizia respeito a funerais foram lançados
em confusão uma vez que enterravam os mortos como cada um podia. Muitos, porque lhes faltava o que era
necessário por causa dos muitos que já tinham morrido, recorreram a formas de sepultar que eram abomináveis. Em
piras alheias construídas antes por outros, colocavam o cadáver que lhes pertencia e pegavam-lhe fogo; outros
lançavam o cadáver que transportavam sobre outro que já estava a arder e iam-se embora.
LI. Noutros aspectos, a peste introduziu na cidade um desrespeito total pela lei. Na verdade, todos se tornaram mais
descarados naquilo que antes faziam às escondidas não para seu prazer, quando viram a mudança repentina na sorte
dos que eram ricos e morriam de repente, enquanto quem primeiro nada possuía num momento ficava com os bens
dos outros. Uma vez que consideravam que a vida das pessoas e riquezas eram igualmente transitórias, resolveram
que valia a pena gozar rapidamente o que lhes dava prazer.
Ninguém estava interessado em sofrer com antecipação por aquilo que parecia honroso porque, não sabendo se iam
morrer antes de alcançar esse objectivo, o que quer que desse imediato prazer ou a isso levasse, passava por nobre e
/213/ útil. [4] Nem o medo dos deuses nem as leis dos homens os dissuadiam ao compreender que ser piedoso ou não
eram a mesma coisa uma vez que viam todos a morrer igualmente e ninguém esperava estar vivo até ser feita justiça
e receber o castigo das suas faltas. E parecia-lhes que um castigo muito maior estava iminente e antes de ele cair
sobre eles, queriam ter algum prazer na vida.

LIV. Tal era a desgraça que caíra sobre os Atenienses e os fazia sofrer: dentro das muralhas, o povo a morrer e fora
delas, o território, que lhes pertencia, a ser pilhado. [2] E no meio desta calamidade pareceu natural que recordassem
o seguinte verso que os homens mais velhos diziam ter sido cantado muito tempo antes:
“VIRÁ UMA GUERRA DÓRICA E COM ELA UMA PESTILÊNCIA”.

[3] Surgiu então uma polémica entre os homens; dizia-se que a palavra usada no verso pelos antigos não era loimós”
pestilência, mas sim “limós” fome. Naturalmente, dadas as circunstâncias daquele tempo, prevaleceu loimós'
pestilência, como a palavra usada. De facto, os homens recordavam segundo aquilo que sofreram. E, penso eu, se
houver outra guerra dórica no futuro e acontecer que fome a acompanhe, não é absurdo que escolham “limós' como
a palavra apropriada. [4] Entre aqueles que sabiam coisas como esta, recordava-se o oráculo dado aos Lacedemónios
pelo deus que, quando consultado, respondeu que se lutassem com valentia, a vitória seria deles e ele próprio os
ajudaria. [5] Portanto, no que dizia respeito ao oráculo, eles tomaram os acontecimentos como a realização do
prometido. A peste rebentou assim que os Peloponésios invadiram a Ática e não entrou no Peloponeso, mas espalhou-
se sobretudo por Atenas e outros locais mais densamente povoados. Esta é a história da peste.

TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso, tradução do texto grego, prefácio e notas introdutórias de R. M.
Rosado Fernandes e M. G. P. Granwehr, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

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