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FilippoTommaso Marinetti (1876-1944)

Discurso futurista aos ingleses


pronunciado no Lyceum Club de Londres
publicado originalmente em 1911; traduzido por Gustavo Rocha-Peixoto
do cap. 3 do original francês: MARINETTI, F.T. Le Futurisme. L’Age d’Homme, Lausanne, 1980

Este deplorável Ruskin

Acabo de dizer-lhes de um modo muito resumido o que nós pensamos da Inglaterra e


dos ingleses.
Devo escutar a resposta amável que já posso adivinhar nos seus lábios?
Vocês querem sem dúvida parar com minhas grosserias exprimindo todo o bem que se
pensa dos italianos e da Itália... Pois bem, não: não devo escutá-los! Os elogios que vocês me
vão fazer só podem entristecer-me, porque o que vocês amam da nossa cara península é
precisamente o objeto de todos nossos ódios. Vocês só cruzam a Itália para farejar
meticulosamente os traços de nosso passado opressor. E vocês ficam felizes, loucamente
felizes de trazer preciosamente para casa um miserável cascalho pisoteado por nossos
antepassados..
Quando é que vocês vão se livrar da ideologia linfática deste deplorável Ruskin, que eu
gostaria de ridicularizar diante dos olhos de vocês de um modo definitivo?
Com seu sonho doentio de vida agreste e primitiva; com sua nostalgia de queijos
homéricos e de estradas lendárias; com sua raiva da máquina, do vapor e da eletricidade, esse
maníaco da simplicidade antiga parece com um homem que, após atingir sua plena maturidade
corporal, gostasse de dormir ainda em seu bercinho e mamar no peito da sua ama de leite, já
decrépita, para reconquistar sua inocência infantil.
Ruskin teria certamente aplaudido esses passadistas venezianos que quiseram reconstruir
esse absurdo Campanile di San Marco, como se oferecessem a uma menininha que perdeu a
avó, uma boneca de papel e pano que parecesse com a defunta.
A influência de Ruskin desenvolveu singularmente entre vocês o culto obcecado do
nosso passado, e falseou inteiramente o juízo de vocês sobre a Itália contemporânea.
Com efeito, não se fala do formidável desenvolvimento industrial e comercial da
Lombardia, da Ligúria e do Piemonte, – Milão, Gênova, Turim! Eis aí, no entanto, a nova Itália
renascente, eis aí o que nós amamos! Eis nosso orgulho de italianos! Temos grandes cidades
que flamejam dia e noite desdobrando seu hálito vasto de fogo sobre o campo raso. Nós
regamos com nosso suor uma floresta de chaminés gigantes cujos capitéis de fumaça elástica
apoiam o céu que deseja parecer apenas como o vasto teto de uma fábrica. Não seguimos mais
os conselhos encantadores do bonito céu italiano, jovem rufião de sorriso sedutor que gostaria
ainda de levar a raça a cantar, dançar e beber sob os cachos do vinhedo!...
Nós temos campos cuidadosamente lavados, irrigados e servidos de inúmeros canais
servidores diligentes, com curvas luminosas, geométricas. Nós temos vales escavados,
eviscerados, pela insônia febril dos trens. Pelas nossas belas noites lombardas e lígures o
trabalho metalúrgico cresce, elevando sua voz de ferro e seus imensos gestos brancos. Todas
as montanhas iluminadas, atacadas por uma sublevação de luas elétricas que se lançam
afrontadas, gritantes, dilaceradas. Eis aí o que nós amamos na Itália. Mas vocês dedicam,
infelizmente, todos os seus amores às três cidades que nós consideramos como as três chagas
purulentas da nossa península: Florença, Roma e Veneza.
Vocês erram em adorar religiosamente a Florença, que só tem para nós o valor de um
enorme e suntuoso códice medieval caído no mais feliz campo do mundo.
Se vocês penetrarem nas velhas páginas de suas ruas, vão desarrumar verdadeiras
colônias confusas de contrapesos literários cujo esgar freqüente corrói as velhas iluminuras
guerreiras...
Fidalgos cicerones, gênios de café, irônicos profissionais, cocheiros tagarelas e insolentes,
experts de velhos quadros: Este é o povo de Florença!
Mas eu gostaria além disso de dar-lhes uma idéia de Roma, nossa pobre capital, que
perece sob a lepra de suas ruínas, com sua circulação sangüínea semestral que o ouro dos
estrangeiros empurra lentamente através das artérias de seus grandes hotéis.
Imaginem que Roma, com suas lojas que fecham com a partidas dos americanos pode
passar fome pela simples suspeita de um caso de cólera.
A indústria dos estrangeiros: É isso que nós combatemos sem parar; essa indústria
imunda que transforma dois terços da população romana em um provável aliado do inimigo de
amanhã: um inimigo que nossos hoteleiros terão cuidadosamente alojado, mas não terão
achacado com suficiente devoção!
É inevitável que, quando chegar a guerra, Roma só poderá oferecer um contingente de
oportunistas preguiçosos e de pacifistas a qualquer preço.
Uma noite eu cheguei a Roma num veloz 60HP e, deixando para trás a Porta San
Sebastiano, chegava ao ponto que separa o aqueduto de Nero do Horto Botânico.
Eu chispava a toda velocidade, com o volante reto para o Arco de Constantino. Na
minha ingenuidade futurista, não percebi um bloco de pedra caído das ruínas neronianas... De
repente era tarde demais e eu estava muito veloz!... Um choque violento: meu radiador
quebrado!
Era um símbolo, uma advertência ou antes uma vingança vinda da distância das idades...
Por isso gritei aos romanos a plenos pulmões:
Salve-se quem puder! E preciso que vocês isolem as ruínas da velha Roma, mais
epidêmicas que o cólera e a peste. É preciso cavar uma grande fossa e erguer um grande
muro circular, para cingir todos esses fragmentos de muralhas romanas, vingativas e
rancorosas.
E depois vão deitar seus corpos bem longe nos campos para proteger-se da mais trágica
das malárias: a que sobe das tumbas da Via Appia!
Mas os romanos me responderam com um sorriso irônico, salpicado de poeiras
arqueológicas e de festins grosseiros.
Eles continuam suas vidas de ratos empoeirados, prosas e contentes de comer as
migalhas dos bombons que as misses mascam com dentes fortes, inflando as bocas rosas e os
olhos azuis entre as imensas pernas sobreviventes do Coliseu decapitado!...
Mas, se nós coramos de vergonha por ter como capital um grande cemitério guarnecido
de bons hotéis para todos os viúvos do passado, coramos mais ainda por termos um povo de
covardes perto da fronteira...
Quero falar dos venezianos...
Querem ouvir o discurso com que eu esbofeteei a sua incurável apatia em pleno teatro
La Fenice?
Venezianos, escravos do passado, não reclamem contra a pretensa feiúra das locomotivas,
dos bondes e dos automóveis, para os quais nós reservamos a grande estética futurista!
Esses engenhos maravilhosos de velocidade podem sempre esmagar um par de austríacos
sujos e grotescos sob seus pequenos chapéus tiroleses!
Mas vocês gostam de se prosternar diante de todos os estrangeiros, qualquer que seja sua
nacionalidade, porque vocês são de um servilismo repugnante!
Venezianos! Venezianos! Por que querer ser ainda e sempre os escravos fiéis do passado,
os guardas vis do maior bordel da História, a enfermaria do mais triste hospital do
Mundo, onde se reviram almas mortalmente envenenadas pelo vírus do sentimentalismo?
Oh! não me faltam imagens quando quero definir sua frouxidão inominável, tão vaidosa
e estúpida quanto a preguiça do filho de um grande homem ou do marido de uma cantora
ilustre! Eu poderia comparar os seus gondoleiros a coveiros que cavam em cadência fossas
infectas num cemitério inundado?
Mas vocês nem se ofendem, porque sua humildade é incomensurável...
Sabe-se aliás que vocês têm a preocupação prudente de enriquecer a Sociedade dos
Grandes Hotéis e que com esse objetivo vocês estão obstinados a apodrecer nos seus postos.
E no entanto vocês foram outrora guerreiros invencíveis e artistas de gênio, navegadores
audaciosos e industriais sutis...
Mas hoje vocês não passam de garçons de hotel, cicerones, proxenetas, antiquários
fraudulentos, fabricantes de velhos quadros, pintores repetitivos, copistas, plagiários!
Vocês por acaso se esqueceram que são, antes de tudo, italianos? Saibam que esse nome,
na língua da história, quer dizer: Construtores do Porvir!... E aí então? Vocês não se
defenderão, espero eu, denunciando os efeitos embrutecedores do vento siroco! Era esse
vento mesmo que inflava com suas baforadas tórridas e belicosas as velas dos heróis de
Lepanto! Era esse mesmo vento africano que, de repente, numa tarde infernal, lançará
massas de águas corrosivas sob os fundamentos dos seus palácios.
Oh! nós dançaremos bastante naquele dia. E aplaudiremos, para encorajar a laguna...
As mãos vão procurar-se umas às outras para formar uma ronda imensa e louca em
torno da ilustre ruína submersa... e nos ficaremos enlouquecidos de felicidade, nós, os
últimos estudantes revoltados deste mundo prudente em demasia!
Foi assim, ó venezianos, que nós cantamos, dançamos e rimos diante da agonia da ilha de
Philæ, que morreu como uma ratazana velha na barragem de Assuã, fonte imensa de
impulsos elétricos onde o gênio futurista da Inglaterra aprisiona as águas sagradas e
fugidias do Nilo.
Vocês podem me chamar de bárbaro, incapaz de degustar a poesia divina que flutua
sobre suas ilhas de encantos!... Francamente! Não há nada de que se orgulhar! Vocês
devem apenas descartar Torcello, Burano, l’Isola dei Morte e toda literatura doentia e do
imenso devaneio nostálgico de que elas foram revestidas pelos poetas, para lhes seja então
possível, considerar comigo – entre risadas – essas ilhas como bostas gigantes que os
mamutes defecaram aqui e ali quando atravessavam a esmo suas lagunas pré-históricas.
Mas vocês as adoram em êxtase, contentes de apodrecer na sua água suja, para enriquecer
infinitamente a Sociedade dos Grandes Hotéis que prepara cuidadosamente as noites
galantes dos grandes da terra.
Com certeza não é coisa pouca excitar o amor de um imperador... É preciso para isso que
seu hóspede coroado navegue longamente na água gordurosa desta pia imensa de cozinha,
cheia de velhos potes quebrados... É preciso que os seus gondoleiros agitem com seus remos
vários quilômetros de excrementos liqüefeitos, num odor divino de latrinas, serpeando
entre barcaças carregadas de belas imundices.
“É bem essa a sua glória, venezianos!
Oh, ruborizem de vergonha, e caiam de barriga uns sobre os outros como sacos de areia e
pedras, para formar uma paliçada na fronteira enquanto nós preparamos a grande e forte
Veneza industrial e militar, que deve desafiar a insolência austríaca sobre o mar
Adriático, esse grande lago italiano!
A monarquia italiana vai colaborar conosco na realização desse grande sonho? É
permitido duvidar, porque ela não quer sair de seu papel pacífico, puramente honorário e
decorativo que preserva desde o dia em que Mazzini, Garibaldi e Cavour lhe ofereceram nossa
península independente e unificada. É por isso que nós não reconhecemos à monarquia
nenhum direito direto sobre a nação, mas deveres urgentes que deve cumprir sob pena de
desaparecer antes da hora.
1- A monarquia italiana deve antes de tudo consolidar o orgulho nacional em
preparação para a guerra.
2- Ela deve romper a Tríplice Aliança, covarde, vergonhosa que nos mantém
atados, contra nossa própria vontade, ao nosso único inimigo: a Áustria.
3- Ela deve arrasar e triturar nosso mais grave inimigo interno: o clericalismo, e
livrar do Vaticano a nossa capital.
4- Ela deve reconstituir Roma sobre uma dupla potência industrial e comercial, e
livrá-la desta desonrosa e aleatória indústria dos estrangeiros.
Note que, ao afirmar essas verdades, nós não somos absolutamente o porta-voz dos
socialistas, nem dos republicanos.
Todos os partidos políticos italianos estão hoje apodrecidos de oportunismos e de
covardia. E nós somos seu desinfetante futurista, o ácido corrosivo revolucionário.
Nós concebemos a república, não como um fim ideal e definitivo, mas como uma forma
de governo transitória, que sucederá fatalmente à monarquia e nos permitirá de ir mais adiante.
Nosso grande movimento de liberação e de renovação intelectual só poderia nascer na
Itália, essa terra mais viva que qualquer outra, porém, mais que qualquer outra, sobrecarregada
de um passado admirável. Seria necessário que uma força poderosa se levantasse contra o culto
opressivo deste passado, neste preciso momento da história que separa nitidamente todas as
sensibilidades defuntas da humanidade, da grande sensibilidade aérea que se anuncia
vitoriosamente.
Nós não temos quase nada mais em comum com nossos antepassados. Devemos
renegá-los corajosamente.

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