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Crítica
14 de Julho de 2017 ⋅ Filosofia da ciência
“Uma das características mais salientes da nossa cultura é que há muita treta”.
Harry Frankfurt (2005, 1)
Por ora, vamos tomar o conceito de ciência como dado. A física e a biologia são muito
diferentes de várias maneiras, mas são ambas indubitavelmente ciências. Claramente, há
muita atividade intelectual que não é científica, como o caso da filosofia política ou da
crítica literária (embora ambas possam se aproveitar da ciência, especialmente a
primeira). Alguma dessa atividade pode ter como objetivo a aquisição de conhecimento, e
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pode até basear-se na recolha de evidências empíricas, como é o caso da história, por
exemplo. O conceito de não-ciência não implica juízo de valor acerca do seu objeto, e
não é particularmente pejorativo descrever algo como não-científico. Em contraste, dado
que, segundo o Oxford English Dictionary, “pseudo” significa “falso, fingido, falsificado,
espúrio, farsa; aparente, mas não real, falsa ou erroneamente chamado ou representado,
falsamente, de modo espúrio”, é bastante claro que o termo “pseudociência” tem uma
carga normativa. Contudo, uma distinção importante entre dois usos é feita pelo
dicionário em questão: o primeiro, um substantivo contável, envolve ou um sentido
derivativo do segundo, ou o que é erroneamente considerado ciência ou baseado no
método científico. O segundo, um substantivo incontável, é o que se finge que é ciência.
Abaixo será defendido que é este segundo sentido, ou o primeiro sentido deste derivado,
que os filósofos da ciência normalmente têm em mente quando utilizam o termo, e que a
ciência equivocada ou algo ser confundido com ciência não resultam em pseudociência
em nenhum sentido interessante ou importante.
A história da ciência está repleta de erros e falsidades, ainda que consideremos que só
começou na Revolução Científica. Por exemplo, a luz não é composta de corpúsculos
como Isaac Newton acreditava, as substâncias inflamáveis não contêm flogisto e a taxa de
expansão do universo não está diminuindo como pensava a ortodoxia em cosmologia até
aos anos 1990. Nenhum dos cientistas responsáveis por promulgar essas crenças falsas
parece merecer ser chamado de pseudocientista, e não seria apropriado chamar cada
teoria científica errônea de pseudociência. Parece claro que a conotação de fraude, ou de
algum tipo de fingimento, é essencial para os usos contemporâneos do termo
“pseudociência”, ou que ao menos isso deveria fazer parte de qualquer classificação do
conceito a ser proposta. Nem mesmo a má ciência divulgada como boa é necessariamente
apropriadamente descrita como pseudociência. Por exemplo, a herança lamarckista pode
ter sido recentemente recuperada em alguma medida, mas a ideia básica de que as
características fenotípicas adquiridas não são herdadas está correta. Os jogadores
profissionais de tênis desenvolvem ossos muito mais pesados e músculos maiores num
braço e num ombro, mas os seus filhos não têm nenhuma variação desse tipo. Nos anos
1920, William McDougall afirmou que os descendentes dos ratos que aprenderam o
arranjo de um labirinto particular eram capazes de percorrê-lo mais rapidamente do que
os descendentes dos ratos que não aprenderam o arranjo do labirinto. Oscar Werner Tiegs
e Wilfred Eade Agar e seus colaboradores mostraram que o trabalho de McDougall era
baseado em maus controles experimentais, coisa que fez tal trabalho ser má ciência, mas
não uma fraude ou baseado em algum tipo de fingimento. De modo mais prosaico, um
estudante universitário de física incompetente que chega à resposta errada ao determinar
experimentalmente a aceleração devido à gravidade não é considerado um
pseudocientista, e nem é o seu relatório laboratorial considerado pseudociência.
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Entretanto, isso não será adequado por pelo menos duas razões. Primeiro, a intenção
deliberada de enganar acerca de fatos explicitamente expressados sobre o mundo
(normalmente incluindo dados experimentais) é uma condição necessária para a fraude
científica, mas não para a pseudociência. Por exemplo, é famosa a posição de Karl
Popper (1963) de que, embora a psicologia freudiana ou alderiana e o marxismo tenham
sido defendidos como científicos por muitos dos seus respectivos partidários, todas essas
teorias são de fato pseudocientíficas. Ainda assim, não está claro se algum partidário, ou
até mesmo a maioria deles, era desprovido de sinceridade. É absurdo sugerir que as
obsessivas pesquisas de toda uma vida de Sigmund Freud não são uma tentativa genuína
de abordar os profundos problemas da compreensão da mente e personalidade humanas,
da motivação e das formas bizarras de comportamento patológico e autodestrutivo que
chamaram a sua atenção.2 Similarmente, Frederick Engels certamente acreditava na sua
famosa afirmação de que, assim como Charles Darwin havia compreendido a evolução
biológica, Karl Marx havia descoberto as leis da evolução das sociedades humanas.
Assim, os pseudocientistas não têm de ser desonestos acerca das suas crenças explícitas
que formam o objeto da pseudociência, ainda que sejam enganadores ou que estejam
enganados de outras formas. Nem toda a pseudociência é fraude científica. Por outro
lado, os fraudadores científicos tencionam enganar os outros sobre a verdade (ou sobre o
que pensam ser a verdade). Portanto, nem toda a pseudociência é fraude científica,
embora algo da primeira possa envolver a segunda.
interesses religiosos que são a sua principal preocupação. Contudo, este tipo de
enganação não é necessário, como vimos. Nem todos os defensores da homeopatia a
promovem sem acreditarem na sua eficácia (e nem mesmo provavelmente a maioria, e
talvez até nenhum o faça). E mesmo assim a homeopatia é um exemplo paradigmático de
pseudociência. Ela nem é simplesmente má ciência, e nem é fraude científica, mas antes
algo que se afasta profundamente dos métodos e teorias científicos, ao mesmo tempo em
que é descrita (muitas vezes sinceramente) como científica por alguns dos seus adeptos.3
Larry Laudan (1982) argumenta que é um erro se ocupar com a pseudociência a nível
abstrato, bem como caracterizá-la e mostrar como difere da ciência em termos de critérios
gerais relacionados aos tipos de teorias que utiliza ou aos métodos por ela empregados.
Em vez disso, defende, deveríamos nos concentrar em avaliar afirmações de primeira
ordem sobre o mundo de modo particular e considerar se as evidências as sustentam.
Segundo essa visão, as crenças acerca da eficácia dos tratamentos médicos heterodoxos
ou acerca da idade e da geologia da Terra que são consideradas pseudocientíficas não
devem ser objeto de desconfiança por esta razão, mas antes porque não há evidência a seu
favor. Argumenta-se, então, que, para combater o que chamamos de “pseudociência”, não
necessitamos de qualquer noção do tipo, mas simplesmente da ideia de crenças que não
estão de acordo com os fatos e evidências. Mas confrontar a pseudociência dessa maneira
é problemático: isso consome muito tempo e muitos recursos, não é útil quando se
envolve em debates públicos que operam a um nível geral e é demasiado detalhado para o
público cientificamente iletrado.
Há considerações pragmáticas, mas note-se também que Laudan não mostra que um tipo
genuíno não é selecionado pelo termo “pseudociência”. Como se fez notar, o fato de uma
palavra ser usada por um grupo para rotular uma categoria não implica que exista uma
categoria genuína. Contudo, do mesmo modo, o fato de um grupo às vezes utilizar mal
um termo não implica que ele seja desprovido de significado ou inútil, como Laudan
parece supor.4 No entanto, talvez o seu ceticismo acerca do valor do termo
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No caso de Laudan, o seu estudo alargado da história da ciência e dos seus métodos o
convenceu de que a ciência mudou tanto que nenhum conjunto de características estáveis
pode ser identificado. Métodos estatísticos, por exemplo, são essenciais para a ciência, e
formação alargada neles faz parte da educação dos cientistas em diversas áreas; ainda
assim, antes do século XX, esses métodos mal existiam. As técnicas de medição e os
critérios para boas explicações que temos atualmente são muito diferentes dos do século
XVIII. Entretanto, até mesmo Thomas Kuhn enfatiza cinco critérios centrais de acordo
com os quais todas as teorias científicas podem ser julgadas:
Infelizmente, Kuhn não pensa que todo cientista concordará sobre como pesar esses
critérios quando as teorias se saem bem em alguns dos critérios e mal em outros. Além
disso, não pensa que concordarão nem mesmo sobre como as teorias se saem em um
único critério, uma vez que isso envolve juízo, crenças de fundo e valores epistêmicos.
Segundo Kuhn, então, não há uma única medida para cada critério e nem uma única
maneira de lhes atribuir mais ou menos peso de modo a produzir uma classificação de
teorias. Isso é similar à abordagem de Pierre Duhem (1954) acerca do problema da
escolha de teorias, que consistia em negar que há uma regra que determina qual conjunto
de teorias empiricamente equivalentes deve ser escolhido, baseada nas virtudes de teorias
que vão além da conformidade com os dados. Duhem estava bem confiante de que
existiam tais virtudes (e.g., a simplicidade) e que elas são pesadas entre si nos juízos
sobre qual teoria escolher. Contudo, pensava que a escolha certa era uma questão de
“bom senso” irredutível que não poderia ser formalizada. Duhem difere de Kuhn ao estar
convencido de que todos os juízos desse tipo eram temporários, durando apenas até ao
momento em que mais evidências empíricas ficavam disponíveis.5
No entanto, o fato de a ciência evoluir e de ser difícil captar a sua natureza numa
definição pode ser superado pela simplicidade teórica e pela utilidade do conceito de
ciência. Além disso, há também continuidade na ciência com o passar do tempo, e não
temos nenhuma dificuldade em entender as teorias e modelos de Newton, bem como os
problemas que ele se propôs a resolver, nem leis fenomenais como as de Boyle e de
Kepler. Podemos ficar razoavelmente confiantes de que os grandes cientistas do passado
considerariam as nossas teorias e o nosso conhecimento experimental atuais como a
realização das suas ambições. Robert Boyle reconheceria a química moderna pelo seu
sucesso empírico, mesmo que considerasse muito dela desconcertante; e,
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É um fato conhecido dos filósofos, senão frustrante, que conceitos importantes e até
mesmo fundamentais, como o de conhecimento, resistem à análise de condições
necessárias e suficientes. Caso tivéssemos concluído as nossas investigações preliminares
sobre o conceito de pseudociência a identificando com os conceitos de má ciência ou de
fraude científica, não teríamos feito mais do que adiar uma definição completa até o
próprio conceito de ciência ser explicado, uma vez que tanto a má ciência quanto a fraude
científica são definidas negativamente em relação à ciência. A pseudociência certamente
tem de envolver também alguma forma de imitação da ciência ou de algumas das suas
características ou aparência. O que é distintivo da pseudociência também pode ser
esclarecido ao se considerar outro caso de um conceito intimamente relacionado à
propagação de falsidades, mas que acaba por ser curiosamente singular e que
similarmente acaba por enfraquecer a busca genuína da verdade.
A célebre investigação de Frankfurt sobre a treta parece motivada pela sua percepção de
que é importante para as nossas vidas, e não apenas pelo seu interesse intelectual. A
citação acima pode ser apropriadamente aplicada à pseudociência: a pseudociência é uma
maior inimiga do conhecimento do que a fraude científica. Frankfurt sublinha um aspecto
muito importante sobre como a treta difere das mentiras: as últimas são projetadas para
nos enganar sobre a verdade, ao passo que a primeira não está preocupada com a verdade
de todo em todo. Essa distinção é nitidamente análoga à distinção entre a pseudociência e
a fraude científica. Como uma primeira aproximação, podemos dizer que a pseudociência
está para a fraude científica como que a treta para a mentira.
Essa é apenas uma primeira aproximação porque normalmente supomos que quem fala
tretas sabe o que está fazendo, ao passo que, como foi apontado, muitos pseudocientistas
estão ao que parece genuinamente buscando a verdade. Contudo, é possível que alguém
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Note-se que a analogia entre a mentira e a fraude científica reside, não obstante, no fato
de que, como vimos, a fraude científica pode envolver a propagação de afirmações que
são verdadeiras. Afinal de contas, as mentiras podem acabar se revelando verdadeiras.
Grosso modo, alguém conta uma mentira quando ele ou ela diz algo que acredita ser
falso, com a intenção de fazer com que a audiência acredite no que ele ou ela pensa ser
uma crença falsa acerca tanto de uma questão factual quanto do que ele ou ela acredita
sobre tal questão. Se o mentiroso está enganado sobre a questão factual, acabando, então,
inadvertidamente falando a verdade, ele ainda assim mente. A fraude científica sempre
envolve a mentira, até mesmo quando acaba sustentando afirmações verdadeiras, porque
a fraude consiste na falsificação dos dados ou da metodologia citados para sustentar
aquelas afirmações.
Contudo, uma diferença importante entre a treta e a pseudociência é que a última, mas
não a primeira, frequentemente expressa afirmações factuais de algum tipo. Considere,
por exemplo, explicações pseudocientíficas de tratamentos médicos originais, havendo
muitas variedades exóticas, bem como variedades mais convencionais como a
homeopatia: não importa quanta tagarelice e quanto barulho as cerquem, essas
explicações claramente afirmam que os tratamentos são eficazes. No entanto, pode-se
dizer que essas afirmações factuais falsas (ou ao menos duvidosas) não são o que faz com
que a pseudociência seja o que é. Introduzamos uma distinção que também se aplica às
teorias da treta, da ciência e da pseudociência, nomeadamente, a distinção entre produtor
e produto. Podemos claramente oferecer explicações que se focam nos textos ou nas
teorias que são produzidas ou nos estados mentais e nas atitudes das pessoas que os
produzem.
É importante distinguir frases que fazem afirmações factuais sobre o mundo das que não
o fazem. Tanto quem fala treta como quem faz pseudociência produz frases com a
intenção de convencer a sua audiência de que alguma afirmação factual está sendo feita,
quando na realidade não está. Por exemplo, um político, ao lhe ser perguntado como
alcançará um certo objetivo à luz de uma dada crítica, pode responder: “o importante é
assegurar que, seguindo adiante, criemos processos robustos que entregarão os serviços
que o povo corretamente espera serem da melhor qualidade, e é por isso que dei passos
no sentido de garantir que as nossas políticas responderão às necessidades existentes”.
Ele é bem-sucedido em usar o tempo disponível, utiliza seu tom de voz e a sua expressão
facial para passar uma impressão possivelmente falsa dos seus estados afetivos e valores,
e acaba não dizendo nada (ou ao menos nada além das banalidades esperadas). A função
deste tipo de treta, como diz Frankfurt, não é originar crenças na audiência, pelo menos
crenças sobre o assunto em questão, mas antes provocar crenças sobre o próprio político e
os seus bons serviços.
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Em todo caso, Popper sabia que a falsificabilidade do produto não é suficiente para
distinguir a ciência da pseudociência, pois ele caracteriza a pseudociência tanto em
termos dos seus produtores como dos seus produtos. Apesar de argumentar que as teorias
psicanalíticas são infalsificáveis, aceita que as teorias marxistas fazem previsões sobre
fenômenos, mas insiste que o marxismo é uma pseudociência porque os marxistas vivem
modificando o produto para torná-lo compatível com os novos dados e se recusam a
aceitar a falsificação dos seus principais compromissos. No entanto, Popper foi
muitíssimo criticado por fazer exigências desarrazoadas aos produtores do conhecimento
científico, exigências essas que não são satisfeitas na história da ciência. Os cientistas
individuais podem muito bem teimosamente se apegar às suas teorias e continuarem a
responder ao fracasso com modificações de componentes periféricos, trabalhando duro
para encaixar os fatos nos seus quadros de referência. Isso é necessário porque as teorias
requerem grandes esforços e a exploração de vários becos sem saída, e a persistência e o
comprometimento são necessários.
Não obstante, há algo de correto na ênfase na testabilidade empírica. Assim como o aval
coletivo na matemática exige uma prova geralmente aceita, também na ciência o aval
coletivo requer que as teorias passem por testes rigorosos de adequação empírica que são
aceitos até mesmo pelos seus oponentes na comunidade científica. O atomismo triunfou
no século XIX tardio porque foi bem-sucedido em várias frentes ao prever com sucesso
quantidades que os seus críticos diziam que jamais seria capaz de prever. A pseudociência
não tem qualquer análogo do tipo na sua história. A lição dessa falha das abordagens do
método científico que se focam em teorias, propondo critérios de testabilidade, por
exemplo, é que deixam de fora as atitudes dos produtores relativas a tais teorias. Mas o
problema de prescrever, em vez disso, os estados mentais e as atitudes dos produtores
individuais é que essa abordagem negligencia o fato de a ciência ser um empreendimento
coletivo; a maneira como os cientistas individuais pensam e se comportam está
condicionada em uma maior medida pelas suas interações com os seus pares e os seus
respectivos trabalhos. A confiabilidade da ciência como um meio de produzir
conhecimento sobre o mundo não será encontrada no conteúdo das suas teorias, e nem em
um modelo da mente científica ideal, mas antes nas propriedades emergentes da
comunidade científica e nas interações entre os seus membros, bem como nas interações
entre eles e os seus produtos.
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Espero ter mostrado que a investigação seminal de Frankfurt sobre a treta se aplica à
pseudociência porque a) como a treta, a pseudociência é largamente caracterizada não por
um desejo de enganar acerca de como as coisas são (como ocorre na fraude científica),
mas por não dizer praticamente nada sobre como as coisas são; e b) oferece uma distinção
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Conclusão
A pseudociência é atraente para as pessoas por duas razões. Primeiro, a desconfiança
geral que algumas pessoas têm em relação aos cientistas e à ciência enquanto instituição.
A confiança na ciência sempre foi parcial e contestada, e os abusos do conhecimento
científico e o poder da ciência tornam essa reação compreensível em vários casos. A
desconfiança foi e continua sendo gerada pela pseudociência e pela fraude científica no
seio da ciência convencional, levando alguns à conclusão de que a distinção entre ciência
e pseudociência é como a distinção entre ortodoxo e heterodoxo, se tratando apenas de
uma questão de poder e autoridade. Alguns exemplos cruciais de falsidade na ciência
convencional refletiram e indiretamente desculparam ideologias sociais prejudiciais sobre
o sexo e a raça. Abusos espantosos na ciência médica deram ao público razão para
duvidar de que a medicina convencional sempre tem em mente o melhor interesse público
em mente.7 Na psiquiatria, há não muito tempo, as mulheres no Reino Unido eram
encarceradas pelo que agora é considerado nada mais do que um interesse saudável pelo
sexo. Até 1973, a Associação Psiquiátrica Americana considerava a homossexualidade
uma doença mental. E certamente alguns pesquisadores médicos são corrompidos por
interesses corporativos, exagerando a eficácia de tratamentos potencialmente lucrativos
ou minimizando ou negando seus efeitos negativos.
A segunda razão para a influência contínua da pseudociência é que muitas pessoas sofrem
de padecimentos e moléstias a respeito dos quais a ciência médica pouco pode fazer,
quando o pode, ou para os quais o tratamento apropriado exigiria muitos recursos. As
pessoas podem até mesmo ter muito a ganhar ao acreditar nas soluções pseudocientíficas
dos seus problemas. Trabalhos sobre o efeito de placebo mostram que podem ter razão ao
dizer que a pseudociência as “ajuda”, muito embora, é claro, o tipo de terapia furada
escolhida seja mais ou menos irrelevante, por mais que alguns possam preferir um
embrulho pseudocientífico em vez de sobrenatural.
James Ladyman
Extraído de Philosophy of Pseudoscience: Reconsidering the Demarcation Problem, org. Massimo Pigliucci e
Maarten Boudry (Chicago: The University of Chicago Press, 2013) cap. 3, pp. 45–59. Revisão da tradução de
Desidério Murcho.
Referências
Bird, A. 2007. “What Is Scientific Progress?” Nous 41:64–89.
Carnap, Rudolf. 1966. “The Value of Laws: Explanation and Prediction.” In Philosophical
Foundations of Physics, org. Martin Gardner, 12–16. Nova Iorque: Basic Books.
Cioffi, Frank. 1999. Freud and the Question of Pseudoscience. Peru, IL: Open Court.
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Duhem, Pierre Maurice Marie. 1954. The Aim and Structure of Physical Theory, trad. Philip
P. Wiener. Princeton, NJ: Princeton University Press.
Frankfurt, Harry G. 2005. On Bullshit. Princeton, NJ: Princeton University Press.
Ivanova, Milena. (2010). “Pierre Duhem’s Good Sense as a Guide to Theory Choice.”
Studies in History and Philosophy of Science pt. A41 (1): 58–64.
Lakatos, Imre. 1977. “Science and Pseudoscience.” In Philosophical Papers, vol. 1.
Cambridge: Cambridge University Press.
Laudan, Larry. 1982. “Commentary: Science at the Bar—Causes for Concern.” Science,
Technology and Human Values 7 (41): 16–19.
Popper, Karl. 1963. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge and Kegan Paul.
Notas
1. Apesar de “treta” ser comumente utilizada no Brasil como gíria, cujo significado é algo
como “briga”, “confusão”, etc., há ainda outra definição para a palavra que capta muito bem
o significado da palavra “bullshit”. Por exemplo, o Dicionário Online de Português tem o
seguinte como um dos significados de “treta”, que casa muito bem com o significado de
“bullshit”: “Ação ardilosa feita com o objetivo de enganar, de iludir; artimanha: conseguiu o
emprego na base da treta”. (https://www.dicio.com.br/treta/) ↩
2. Isso não quer dizer que Freud não cometeu alguma fraude científica, na medida em que ele
inventou afirmações de sucesso clínico e estudos que não existiam (ver Cioffi 1999). ↩
3. É importante notar que pode haver uma boa quantidade de fraude científica associada à
pseudociência, dado que a tentação de forjar resultados para substanciar o que os
pseudocientistas talvez acreditem sinceramente ser a verdade pode ser muito grande. Neste
respeito, no entanto, ela não é diferente da ciência. ↩
4. Ver o capítulo 2 do presente volume, onde Martin Mahner argumenta que o conceito de
pseudociência carece de condições necessárias e suficientes, mas que pode ser individuado
como um conceito agregado, como o conceito de espécie em biologia. Ver também o
capítulo 1, por Massimo Pigliucci, para um argumento semelhante. ↩
5. Ver Ivanova (2010). ↩
6. O experimento de Michaelson-Morley é um bom exemplo, pois se acreditava que tal
precisão era inatingível. ↩
7. Tenho em mente o experimento de Tuskgee e outros onde os pacientes eram na realidade
contaminados com sífilis. ↩
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