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O Banquete

O amor
O banquete O amor O Banquete (Symposion) é o diálogo platônico sobre o Amor (Eros); de estilo
fortemente teatral e poético, consiste em uma série de discursos em que o Amor é apresentado sob
diferentes aspectos. A passagem aqui selecionada, uma das mais célebres dos diálogos de Platão, é a
apresentação por Sócrates de um discurso de Diotima, sacerdotisa de Mantineia, sobre o Amor como
desejo — de beleza, de imortalidade, de sabedoria —, como processo de elevação da alma em busca da
perfeição. ... [...]
É uma longa história, disse ela, mas mesmo assim vou lhe contar. Quando Afrodite nasceu, os deuses
fizeram uma grande festa e entre os convivas estava Poros, o deus da Riqueza, filho do Engenho (Metis).
No final do banquete, veio a Penúria (Penia) mendigar, como sempre faz quando há alegria, e ficou
perto da porta. Então, embriagado de néctar — pois vinho não ” “ Platão 29 existia ainda —, Poros, o
deus da Riqueza, entrou no jardim de Zeus e ali, vencido pelo torpor, adormeceu. Então Penúria, tão
sem recurso de seu, arquitetou o plano de ter um filho de Poros e, deitando-se ao seu lado, concebeu
Amor. Assim sucedeu que desde o início Amor serviu e assistiu Afrodite, por ter sido gerado no dia em
que ela nasceu e ser, além disso, por natureza, um amante do belo, e bela é Afrodite. Ora, como filho de
Poros e da Penúria, Amor está numa situação peculiar. Primeiro, é sempre pobre e está longe da
suavidade e beleza que muitos lhe supõem: ao contrário, é duro e seco, descalço e sem teto; sempre se
deita no chão nu, sem lençol, e descansa nos degraus das portas ou à margem dos caminhos, ao ar livre;
fiel à natureza da mãe, vive na penúria. Mas herdou do pai os esquemas de conquista de tudo o que é
belo e bom; porque é bravo, impetuoso, muito sensível, caçador emérito, sempre tramando algum
estratagema; desejoso e capaz de sabedoria, a vida toda perseguindo a verdade; um mestre do
malabarismo, do feitiço e do discurso envolvente. Nem imortal nem mortal de nascimento, no
mesmíssimo dia está cheio de vida quando a sorte lhe sorri, para logo ficar moribundo e em seguida
renascer de novo por força da natureza paterna: mas os recursos que obtém sempre se perdem; de
modo que Amor nunca é pobre ou rico e, além disso, está sempre a meio caminho da sabedoria e da
ignorância. A questão é que nenhum deus persegue a sabedoria ou deseja tornar-se sábio, pois já o é; e
ninguém mais que seja sábio persegue a sabedoria. Nem o ignorante persegue a sabedoria ou deseja ser
sábio; nisso, aliás, a ignorância é confrangedora: estar satisfeita consigo mesma sem ser uma pessoa
esclarecida nem inteligente. O homem que não se sente deficiente não deseja aquilo de que não sente
deficiência. Quem, então, Diotima, perguntei, são os seguidores da sabedoria, se não são nem os sábios
nem os ignorantes? Ora, a esta altura uma criança mesmo poderia dizer, replicou ela, que são as
pessoas de tipo intermediário, entre as quais se inclui Amor. Porque a sabedoria diz respeito às coisas
mais belas e Amor é o amor do belo; de modo que a necessidade de Amor tem que ser amiga da
sabedoria e, como tal, deve situar-se entre o sábio e o ignorante. Pelo que, também, deve agradecer sua
origem: pois se teve um pai sábio e rico, sua mãe é tola e pobre. Tal, meu bom Sócrates, é a natureza
desse espírito. Que você tenha formado outro conceito de Amor não é surpreendente. Você supôs, a
julgar por suas próprias palavras, que Amor fosse o amado e não o amante. O que o levou, imagino, a
afirmar que o Amor é tão belo. O amável, com efeito, é realmente belo, suave, perfeito e abençoado;
mas o amante é diferente, como mostra o relato que fiz. Ao que observei: Então muito bem, senhora,
tem razão. Mas se Amor é assim como descreve, que utilidade tem para o ser humano? Essa é a questão
seguinte, Sócrates, retrucou, que tentarei esclarecer. Se Amor é de natureza e origem tais como relatei,
é também inspirado pelas ” 30 Textos básicos de filosofia coisas belas, como diz. Agora, suponha que
alguém nos perguntasse: Sócrates e Diotima, em que sentido Amor é o amor do belo? Mas deixe-me
colocar a questão de forma mais clara: o que é o amor do amante do belo? [...] Nesses assuntos de amor
até você, Sócrates, poderia eventualmente ser iniciado, mas não sei se entenderia os ritos e revelações
dos quais eles não passam de introito para os verdadeiramente instruídos. No entanto, vou lhe falar
deles, disse ela, e não pouparei os meus melhores esforços. Apenas faça o possível da sua parte para
acompanhar. Aquele que bem procede nesse campo deve não somente começar por frequentar belos
corpos na juventude. Em primeiro lugar, de fato, se for bem orientado, deve amar um corpo em
particular e engendrar uma bela conversa; mas em seguida vai notar como a beleza desse ou daquele
corpo é semelhante à de qualquer outro e que, se pretende buscar a ideia da beleza, é rematada tolice
não encarar como uma só coisa a beleza que pertence a todos. Tendo percebido essa verdade, deve
tornar-se amante de todos os belos corpos e arrefecer o seu sentimento por um único, desprezando isso
como uma bobagem. Seu próximo passo será dar um valor maior à beleza das almas do que à do corpo,
de forma que, por menor que seja a graça de qualquer alma promissora, bastará para o seu amor e
cuidado e para despertar e pedir um discurso que sirva à formação dos jovens. E por último pode ser
levado a contemplar o belo que existe em nossos costumes e leis e observar que tudo isso tem
afinidade, assim concluindo que a beleza do corpo é questão menor. Dos costumes pode passar aos
ramos do conhecimento e aí também encontrar uma província da beleza. Vendo assim a beleza no geral,
poderá escapar da mesquinha e miúda escravidão de um único exemplo em que concentre como um
servo todo o seu cuidado, como a beleza de um jovem, de um homem ou de uma prática. Dessa forma
voltando-se para o oceano maior da beleza, pode pela contemplação despertar em todo o seu
esplendor muitos e belos frutos do discurso e da meditação, numa rica colheita filosófica; até que, com
a força e ascensão assim obtidas, vislumbra o conhecimento específico de uma beleza ainda não
revelada. E agora peço que preste a maior atenção, disse ela. Quando um homem foi assim instruído no
conhecimento do amor, passando em revista coisas belas uma após outra, numa ascensão gradual e
segura, de repente terá a revelação, ao se aproximar do fim de suas investigações do amor, de uma
visão maravilhosa, bela por natureza; e esse, Sócrates, é o objetivo final de todo o afã anterior. Antes de
mais nada, ela é eterna e nunca nasce ou morre, envelhece ou diminui; depois, não é parcialmente bela
e parcialmente feia, nem é assim num momento e assado em outro, nem em certos aspectos bela e em
outros feia, nem afetada pela posição de modo a parecer bela para alguns e feia para outros. Nem
achará o nosso iniciado essa beleza na aparência de um rosto ou de mãos ou de qualquer outra parte do
corpo, nem numa descrição Platão 31 específica ou num determinado conhecimento, nem existente em
algum lugar em outra substância, seja um animal, a terra, o céu ou outra coisa qualquer, mas existente
sempre de forma singular, independente, por si mesma, enquanto toda a multiplicidade de coisas belas
dela participam de tal modo que, embora todas nasçam e morram, ela não aumenta nem diminui e não
é afetada por coisa alguma. Assim, quando um homem, pelo método correto do amor dos jovens,
ascende desses particulares e começa a divisar aquela beleza, é quase capaz de captar o segredo final.
Essa é a abordagem ou indução correta dos assuntos do amor. Começando pelas belezas óbvias, ele
deve, pelo bem da mais elevada beleza, ascender sempre, como nos degraus de uma escada, do
primeiro para o segundo e daí para todos os corpos belos; da beleza pessoal chega aos belos costumes,
dos costumes ao belo aprendizado e do aprendizado, por fim, àquele estudo particular que se ocupa da
própria beleza e apenas dela; de forma que finalmente vem a conhecer a essência mesma da beleza.
Nessa condição de vida acima de todas as outras, meu caro Sócrates, disse a mulher de Mantineia, um
homem percebe realmente que vale a pena viver ao contemplar a beleza essencial. Esta, uma vez
contemplada, superará em brilho o seu ouro e as suas vestes, os seus belos rapazes e garotos cuja
aparência agora tanto o perturba e o torna disposto, como muitos outros à simples visão e companhia
dos seus favoritos, a passar mesmo sem comida e bebida, se isso fosse de algum modo possível, apenas
para poder olhá-los e desfrutar de sua presença. Mas diga-me o que aconteceria se um de vocês tivesse
a sorte de contemplar a beleza essencial inteira, pura e genuína, não contaminada pela carne e a cor da
humanidade e todo esse refugo mortal. E se pudessem divisar a própria beleza divina em sua forma
única? Acha que é uma vida lamentável para um homem — ver as coisas dessa maneira, adquirir essa
visão pelos meios adequados e tê-la sempre consigo? Apenas considere, disse ela, que isso fará somente
com que, ao ver a beleza através daquilo que a torna visível, não alimente ilusões, mas exemplos de
virtude, porquanto seu contato não é com a ilusão mas com a verdade. Assim, quando adquirir uma
verdadeira virtude e desenvolvê-la, estará destinado a conquistar a amizade do Céu. Este, acima de
todos, é um homem imortal. Foi isso, Fedro e demais companheiros, o que Diotima me disse e do que
estou convencido; e tento, de minha parte, persuadir os vizinhos de que para alcançar essa visão a
melhor ajuda que a natureza humana pode esperar é do Amor. Por isso digo-lhes agora que todo
homem deve reverenciar o Amor, como eu de minha parte reverencio com especial devoção todas as
questões do amor e exorto todos os outros homens a fazer o mesmo. Agora e sempre glorifico ao
máximo o poder e o valor do Amor. Assim eu lhe peço, Fedro, que tenha a bondade de considerar este
relato um elogio do Amor ou chame-o como melhor lhe aprouver. [...]

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