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Marcos Napolitano

CORAÇÃO CIVIL: ARTE, RESISTÊNCIA E LUTAS


CULTURAIS DURANTE O REGIME MILITAR
BRASILEIRO (1964-1980)

Tese apresentada à Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para
concurso de Livre-Docência junto ao
Departamento de História.

Especialidade: História do Brasil


Independente.

São Paulo, 2011


2

RESUMO

A estratégia de oposição ao regime militar colocou na ordem do dia a necessidade de


conexão entre cultura e política, à medida que a primeira funcionava como espaço de
rearticulação de identidades, valores e estratégias de ação que alimentavam a
segunda. Naquele contexto, entre os anos 1960 e 1970, a resistência cultural ao
regime militar foi protagonizada por quatro variáveis ideológicas, agrupando os
seguintes atores: liberais, comunistas, movimentos contraculturais e Nova Esquerda.
As quatro correntes protagonizaram alianças e dissensos, expressando visões
diferenciadas e muitas vezes conflitantes sobre o papel das artes e da cultura na
oposição ao regime, que vai além da visão homogênea e idealizada da noção
generalizante de “resistência democrática”. Portanto, o objetivo básico desta tese é
esquadrinhar e analisar os debates entre as correntes citadas a partir das principais
produções culturais entre 1964 e 1980, período crucial de redefinições dos agentes
socioculturais em face do autoritarismo e da modernização na sociedade brasileira.
Como hipótese central, afirma-se que o eixo de ação dominante na resistência cultural
era baseado na estratégia de construção de uma frente político-cultural. Esta foi
produto de uma aliança estratégica, ainda que permeada por conflitos, entre liberais e
comunistas. O frentismo cultural se construiu sobre três pilares: a) ocupação dos
circuitos mercantilizados e institucionais da cultura; b) busca de uma estética nacional-
popular; c) afirmação do intelectual como arauto da sociedade civil e da nação. Ao
rejeitar e criticar estes três pilares, os movimentos ligados à Contracultura e os
movimentos culturais ligados à Nova Esquerda ajudaram a desgastar e inviabilizar o
“frentismo cultural” como estratégia comum na superação do regime militar,
explicitando seus impasses.

PALAVRAS-CHAVE:

1.Brasil: Regime Militar; 2. Regime Militar: aspectos culturais; 3. Brasil: história cultural;
4. Brasil: arte e política; 5. Brasil: políticas culturais
3

SUMÁRIO

Introdução..........................................................................5

Capítulo 1..........................................................................17

Resistência cultural: conceito e historicidade

Capitulo 2..........................................................................41

A gênese da resistência cultural no Brasil pós-1964

Capítulo 3.........................................................................84

Dilemas da arte engajada em busca de um público

Capítulo 4.........................................................................139

A hegemonia do vazio: lutas culturais nos anos de chumbo

Capitulo 5.........................................................................185

Políticas culturais, Estado e sociedade nos anos 1970

Capítulo 6........................................................................225

O caso MPB: resistência e mercado

Capítulo 7........................................................................271

O caso das ‘patrulhas ideológicas’ e os limites da resistência cultural

Capítulo 8........................................................................297

A nova esquerda dos anos 1970 e a implosão do frentismo cultural

Capítulo 9........................................................................329

História e memória da resistência cultural contra o regime militar

Considerações finais...........................................................353

Bibliografia..........................................................................359

Fontes..................................................................................370
4

Agradeço aos amigos Rodrigo, Miliandre e Clara, pela leitura crítica do trabalho e pelo
apoio à pesquisa das fontes.

Agradeço à paciente, rigorosa (e carinhosa) leitura da Mariana, minha companheira.


Por último, gostaria de expressar um agradecimento institucional ao CNPq, cuja bolsa de
Produtividade em Pesquisa (2005-2011) foi fundamental na pesquisa que culminou nesta
tese.

Este trabalho é dedicado ao Mateus, meu filho, sentido vivo e encarnado da (minha)
história.
5

INTRODUÇÃO

Em janeiro de 1979, o jornal Versus1, um dos representantes da imprensa

alternativa de esquerda dos anos 1970, publicou no seu editorial: “A cultura como

forma de ação era insuficiente para acompanhar as transformações registradas na

sociedade brasileira em 1978”.

Ainda que a posição defendida pelo jornal, de “assumir um discurso político”

em detrimento das ações culturais, fosse opinião de um grupo específico e minoritário

no conjunto da oposição ao regime militar, a afirmação de que a “cultura era

insuficiente” para se compreender e atuar no Brasil faz pensar uma série de questões.

Em primeiro lugar, trata-se de pensar quais “transformações” eram aquelas, e por que

elas tiravam a premência da cultura2 como forma de ação política. Em segundo lugar,

ainda que pela negação, a proposição sugeria a importância da cultura como forma

alternativa de resistência3 para o conjunto das oposições e para a oposição de

esquerda em particular, enquanto não fosse possível “assumir o discurso político”.

O ano de 1978 trouxe duas novidades. Uma, anunciada, a outra, imprevista.

A primeira – a novidade anunciada – foi o fim da vigência do Ato-Institucional

nº5, o famigerado AI-5 que ampliou a capacidade de ação do Poder Executivo, e da

1
Versus, 28, janeiro 1979, p.2. A partir de 1978, o jornal Versus foi hegemonizado pela corrente trotskista
“Convergência Socialista”.
2
Partiremos da noção de que “cultura” é uma categoria que se manifesta a partir de vetores: o “espírito
formador” de um modo de vida global, que se expressa nas “atividades culturais” como um todo
(linguagem, arte, trabalho intelectual), e as expressões de uma “ordem social” , no seio da qual emergem
culturas especificas (estilos de arte, tipo de trabalho intelectual), que podem ser consideradas produto
direto de outras atividades da vida material. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1992, p. 10-29
3
A perspectiva deste trabalho engloba na categoria “resistência” um leque de ações e posturas
oposicionistas no contexto do regime militar brasileiro, desde uma oposição moderada e institucional ao
conjunto de ações e críticas mais contundentes ao regime, como a luta armada. Portanto, o sentido
ecumênico e vago da palavra não implica na desconsideração dos matizes e conflitos internos deste
campo político. Em linhas gerais, o campo da oposição-resistência pode ser compreendido
normativamente a partir de tipologias ordenadas por formas de ação, organização e ideologia. Por formas
de ação: parlamentar, civilista ou militarista. Por formas de organização: partidário-institucional, partidário-
clandestina, associativista. Por ideologia: liberal, socialista e nacionalista-trabalhista. Cada vertente
ativista, organizativa ou ideológica, por sua vez, pode ser dividida em subcategorias, como por exemplo
no caso do associativismo sindical, popular (vizinhança) ou profissional-classista (OAB, ABI, etc). Outra
consideração importante é a interação e as dinâmicas dos vários atores organizados da oposição ao
longo dos 21 anos do regime, que acabam provocando a diluição das fronteiras rígidas de qualquer
tipologia. Por último, não podemos desconsiderar as atitudes individuais ou personalistas contra o regime
que, muitas vezes, desafiam e ultrapassam esta tipologia calcada nas ações coletivas. Sobre o sentido
histórico-conceitual da palavra, ver capítulo 1.
6

Presidência da República em particular, na tutela sobre o corpo político e social,

escancarando uma ditadura que, desde 1964, é bom que se diga, já era uma

ditadura4. No dia 31 de dezembro de 1978, o AI-5 deixava de existir, cumprindo mais

uma etapa da política institucional de “abertura política” que, na verdade, organizava a

retirada progressiva e negociada dos militares na direção política do Estado. Tendo

em vista que o AI-5 acirrou a censura e a violência estatal contra os opositores (não

apenas do ponto de vista simbólico, mas também físico), sua expiração abria novas

expectativas para a ação política das oposições como um todo. Seria exagerado

afirmar, como quer Elio Gaspari5, que ao fim do governo Geisel o Brasil tinha um

ditador, mas não tinha mais uma ditadura. Mas é inegável que o fim do AI-5 demarcou

um momento importante na agenda de transição política, que se completaria, aos

trancos e barrancos, no governo do último presidente-general, João Baptista

Figueiredo (1979-1985). Tratava-se, acima de tudo, de normalizar as relações entre o

Estado e o corpo político, entendendo-se como tal os atores institucionais da política,

organizados em partidos e atuantes no parlamento, e as correntes de opinião política

atuantes na sociedade. A agenda da abertura ainda passaria por momentos

importantes, como a reforma partidária, a reforma da censura, a Lei de Anistia que

permitiu a volta dos exilados e as eleições para governadores de Estado, em 19826.

Aliás, estas eleições encerraram um capítulo da transição e iniciaram outro, mais

complexo e irregular, que desembocaria na eleição indireta de Tancredo Neves em

4
Para tal afirmação me apoio, sobretudo em MARTINS Filho, João Roberto. O palácio e a caserna: a
dinâmica militar das crises políticas da ditadura (1964-1969). São Carlos, Editora UFSCar, 1994.
5
GASPARI, Elio. Ditadura envergonhada. São Paulo, Cia das Letras, 2003, p.35
6
A agenda de “distensão” do governo militar passava por algumas ações institucionais bem definidas e
articuladas: o fim do AI-5 (dez/1978); a promulgação da Anistia parcial e restrita (agosto/1979), a reforma
partidária (visando, sobretudo, dividir a oposição parlamentar), tendo o seu limite nas eleições gerais de
1982. A ampla vitória do PMDB nos governos dos Estados, sem falar na vitória surpreendente de Leonel
Brizola no governo do RJ, inaugurou uma nova fase nas negociações para o fim do regime. Seus
protagonistas principais eram: a oposição liberal (fortalecida pelo voto e privilegiada como interlocutora
“confiável”, articulada em torno do PMDB), a oposição de esquerda (enfraquecida, mas com boa
capacidade de mobilização popular, articulada em torno do PT) e o governo (enfraquecido, mas ainda
dispondo dos recursos do exercício do poder político e das armas). Sobre a “abertura” e a transição
política nela iniciada, ver MATHIAS, Suzeley. Distensão no Brasil: o projeto militar (1973-1979).
Campinas, Papirus, 1995. Uma visão instigante é apresentada por Adriano Codato, para quem as
negociações pelo alto determinaram a “forma” da transição política, enquanto as pressões dos
movimentos sociais determinaram o seu ritmo. CODATO, Adriano. “Uma história política da transição
brasileira: da ditadura militar à democracia”. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 25, pp. 83-106, 2005.
7

janeiro de 1985, depois do breve carnaval cívico protagonizado pelas massas no

movimento “Diretas-Já”, em 1984.

A segunda novidade de 1978 – esta sim, imprevista – foi a entrada de novos

atores sócio-políticos que não se enquadravam nem na lógica, nem na agenda de

transição conduzida pelo governo: o movimento operário e o movimento social. Não

iremos retomar, neste trabalho, o longo debate sobre a importância destes atores,

suas possibilidade e limites de operarem a tão sonhada democratização da sociedade

brasileira7. Entretanto, é importante salientar que as greves operárias de 1978, e suas

continuidades épicas em 1979 e 19808, incrementadas pela afirmação pública dos

movimentos sociais das periferias das grandes cidades brasileiras, assumiram cada

vez mais um tom de questionamento. Essa crítica não se voltava apenas ao

autoritarismo político implantado em 1964, mas ao sistema sócio-econômico que ele

afiançava, baseado na concentração de renda e na repressão aos movimentos sociais

e sindicais, que, aliás, não precisou esperar o AI-5 para acontecer. Portanto, a

emergência do movimento social e sindical, apoiado por remanescentes dos

agrupamentos de esquerda que tentavam superar a derrota político-militar da fase da

luta armada (1968-1973), significava a entrada de novos atores na política, ampliando

o corpo político da nação, não mais limitado às elites sempre hegemônicas e aos

votantes como um todo. Tais movimentos tentaram ampliar os limites da política da

“abertura”, direcionada para a normalização dos espaços institucionais e sistema de

partidos. A rua, o bairro, a fábrica, a Igreja, tornaram-se espaços de ação política e

questionamento do regime militar9.

7
Para uma visão sintética sobre os novos movimentos sociais ver SADER, Eder. Quando novos
personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-
1980). São Paulo, Paz e Terra, 1988. Ver também capítulo 8 desta tese.
8
Após o ciclo grevista de 1978 a 1980, o movimento operário passou a ser visto como epicentro da luta
mais ampla, não apenas contra o regime em si, mas por mudanças sócio-políticas mais amplas. A
“questão democrática” ao encontrar a “questão operária” deu novo sentido à resistência contra o
autoritarismo. Ao mesmo tempo, as leituras em torno do que a questão operária significava para a
sociedade brasileira foi um fator de divisão da esquerda, impossibilitando a aliança entre petistas, neo-
trabalhistas e comunistas.
9
TELLES, Vera. A experiência do autoritarismo e práticas instituintes. Dissertação de Mestrado em
Sociologia, FFLCH/USP, 1984
8

O fim anunciado do AI-5, grande instrumento jurídico e símbolo de uma era de

repressão e o começo imprevisto de uma nova ação política de massas pareciam

recolocar a resistência cultural no seu devido lugar, secundário e instrumental para os

mais ortodoxos. Ao menos, essa era a perspectiva do jornal citado no início do texto.

A tentativa de reposicionar em segundo plano a resistência10 cultural revela,

por contraste, a importância que a cultura ganhou, entre 1964 e 1979, como o grande

campo de expressão das críticas ao regime. Nestes anos, o debate e a ação cultural

em seus diversos matizes e intersecções, foram vistos não apenas como uma tática

de crítica ao regime, mas como um imperativo da boa consciência que deveria manter

vivos os valores democráticos e libertários, contrapontos da noite ditatorial. A ação dos

artistas mais comprometidos com estes valores era alimentada por um público ávido

por consumir obras de arte que unissem o deleite estético com a mensagem política,

ainda que velada. Este encontro, cada vez mais mediado pelo mercado, foi o motor da

resistência política sob a forma de ação cultural e expressão artística, nos diversos (e

desiguais) momentos repressivos do regime militar. A mediação do mercado,

transformando obras engajadas em produtos consumíveis convivia com a tradição de

inserção das artes no debate político nacional (papel potencializado pelo Modernismo),

mesmo com o fechamento dos espaços políticos strictu sensu no período do AI-5,

acabaram por aumentar a dimensão da resistência cultural ao regime militar como

experiência histórica. Para alguns, como o editorial do jornal Versus, a conquista de

novas brechas de ação política deveriam reorientar o lugar da cultura na resistência ao

regime.

10
Conforme Nicola Mateucci, o termo “resistência” se consagrou durante a Segunda Guerra Mundial,
caracterizando mais uma “reação do que uma ação, uma defesa do que uma ofensiva, uma oposição
mais do que uma revolução”, podendo assumir formas ativas ou passivas, coletivas ou individuais
(MATEUCCI, N. “Resistência” IN: BOBBIO, N. (org.). Dicionário de Política. Brasília, EDUNB, 1999,
p.1114-1115. Este último fenômeno – a resistência individual - vem sendo rediscutido por Wolfgang
Heuer, dentro da tradição arendtiana, por meio do conceito de “coragem civil”. Ver HEUER, W. “Coraje en
la política sobre un verdulero en praga, senadores norteamericanos, whistleblowers y una carreta
siciliana”. História, Questões & Debates, 41, 167-181, 2004. Sobre a relação entre a resistência à ditadura
e as várias esquerdas nos anos 1970 ver ARAUJO, Maria Paula N. A utopia fragmentada. Rio de Janeiro,
Ed. FGV, 2000. Ver capítulo 1.
9

Conhecendo a história ulterior a 1979, sabemos que não foi assim. Ainda que a

política e seus corolários (partidos, ideologias, correntes de opinião, ações de

protesto) tenham voltado a ser um palco privilegiado dos atores da oposição, a cultura

engajada não saiu de cena da noite para o dia. Entretanto, é inegável que seu lugar e

importância foram diminuídos nos anos que se seguiram até o final do regime militar,

com a sintomática perda de espaço político do seu principal protagonista, o artista-

intelectual de esquerda, sobretudo após 1980. O sentido que a palavra “intelectual”

ganhará ao longo deste trabalho, implica em uma delimitação conceitual tensionada

por duas configurações: (i) como expressão de um grupo social específico,

responsável pela produção e difusão de valores, formas e conhecimento, marcado

pela busca de autonomia em relação às ideologias; (ii) como expressão de um

conjunto de atores pautado pelo pensamento crítico, anti-autoritário, e pelo

engajamento em causas públicas que implicam em defesa da liberdade civil e política.

Em outras palavras, procuramos articular duas definições acerca do intelectual: uma

ampla e sociocultural (criadores e mediadores culturais) e outra mais estrita, fundada

na noção de engajamento. As duas noções se articulam, pois o reconhecimento

público ou institucional das capacidades e expertises intelectuais (e artísticas) autoriza

uma intervenção pública nas questões políticas, sobretudo em épocas marcadas pelo

autoritarismo e pela violência política11. Neste sentido, a tradição liberal (o intelectual

como inteligência reflexiva e arauto da liberdade individual) e a tradição socialista (o

intelectual como arauto da liberdade pública e crítico do sistema) podem se

11
As configurações teóricas acerca dos intelectuais aqui utilizadas não esgotam todas as possibilidades
de definição desta categoria, objeto de um amplo debate na história e na sociologia. Para melhor captar a
dinâmica histórica do intelectual em suas variáveis profissionais, circuitos sócio-profissionais e matizes
ideológicos durante a ditadura militar brasileira, não optei por metodologias e conceitos mais restritivos,
como “campo” ou “intelectual orgânico”. O que se ganharia, eventualmente, em rigor analítico sociológico,
perder-se-ia em configuração historiográfica. Por outro lado, este trabalho não é fiel ao programa de uma
“história intelectual”, tal como sugerida por Jean-François Sirinelli, embora tangencie certos aspectos
desta proposta. Esta opção não desconsidera o quão instigante seria fazer uma história intelectual mais
sistemática do período, ancorada em conceitos e métodos mais rigorosos. Ver SIRINELLI, Jean-François.
“Les intellectuels” IN: RÉMOND, René (dir). Pour une histoire politique. Paris, Editions de Seuil, 1996, p.
199-232
10

entrecruzar em determinadas circunstâncias históricas12. Além disso, no Brasil, as

condições sociais e políticas que marcaram a emergência do “intelectual moderno” (ou

modernista) lhes deram um papel de forjadores da nação-povo que lhe fez flertar com

o poder e com o próprio autoritarismo, sobretudo nos anos 1920 e 1930.

Isto não quer dizer que artistas e intelectuais da oposição deixaram de ser

atuantes até o fim do regime, e sim que tiveram que dividir o espaço com outros atores

estritamente ligados à esfera política, ao mesmo tempo em que se viam enredados

nas regras de mercado. Este processo ocorreu não apenas porque as ações

transgressoras e críticas no plano artístico-cultural, defendidas por correntes que se

consagraram nos “anos de chumbo” foram cada vez mais incorporadas pelo grande

mercado e pelos seus efeitos políticos neutralizantes, mas também porque a

emergência dos novos atores e movimentos sociais exigia um reposicionamento tanto

por parte dos setores da contracultura, quanto da corrente nacional-popular13 das

esquerdas ditas “ortodoxas”, as duas correntes que mais se digladiaram nos anos de

vigência do AI-5. Por outro lado, concomitante à diminuição da importância histórica da

cultura engajada que se consagrou durante o regime militar, afirmou-se um processo

de monumentalização de personagens, obras e eventos que a demarcaram. Este

processo, também será examinado, sobretudo no último capítulo deste trabalho.

12
MARLETTI, Carlo. “Intelectuais” IN: BOBBIO. Norberto et alli (orgs). Dicionário de Política. Brasilia, Ed.
UNB, 1999 (12ª), p. 640
13
O nacional-popular, em termos gramscianos, pode ser definido como uma configuração cultural
construída a partir da mediação entre o “dialetal-folclórico” e o “cosmopolita-universal”, tendo em vista a
formação de um idioma cultural comum, transregional e policlassista em diálogo com elementos estéticos
ou obras estrangeiras incorporadas pelas elites nacionalistas. Entre as duas, a nação seria o espaço de
síntese ideal do particular com o universal, na luta pelo progresso da sociedade e pela expressão legítima
das classes populares, conforme o ideário de esquerda. (GRAMSCI, A. A literatura e a vida nacional. Rio
de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1968). No caso brasileiro, devemos dizer que a perspectiva cultural
nacionalista, no que tange esta tese, tem sua origem nos modernismos dos anos 1920, sendo
incorporada à direita e à esquerda a partir dos anos 1930. A partir dos anos 1950, a cultura nacional-
popular, demarcada pela dialética entre o local e o universal, filiada a linguagens artísticas convencionais
e realistas, sob influência mais lukacsiana do que gramsciana, foi uma das marcas das correntes culturais
do PCB. A questão do “nacional-popular” no Brasil foi, antes de tudo, uma idéia força que fez o antigo
nacionalismo conservador mesclar-se a valores políticos de esquerda na busca de uma expressão
cultural e estética que se convertesse em arma na luta pela modernização e contra o “imperialismo”.. A
rigor, entretanto, a política cultural do Partido Comunista, após 1958, inclinou-se mais para a estratégia de
“frentismo cultural”, tributária de Georg Lukacs. Gramsci só seria incorporado pela esquerda brasileira, de
forma mais sistemática, a partir dos anos 1970. Ver FREDERICO, Celso. “A presença de Lukács na
política cultural do PCB e na Universidade” IN: João Quartim de Moraes. (Org.). História do marxismo no
Brasil. São Paulo, Ed.Unicamp, 1995, p. 183-221.
11

Pessoalmente, não endosso a separação essencial entre cultura e política

como premissa para discutir e analisar tais questões14. Por outro lado, a hipertrofia da

cultura como esfera de ação de resistência ao regime não deve ser tomada como um

processo que se auto-explica, resposta natural ao fechamento da esfera política

iniciado em 1964 e acirrado em 1968. Ao contrário, deve ser problematizado e

entendido à luz de suas singularidades e contradições históricas. Em outras palavras,

a chave para analisar este processo não está na visão instrumental e substitutiva de

cultura em detrimento da política strictu sensu, nem no dimensionamento exagerado e

positivado da cultura como esfera de resistência ao autoritarismo, imune a

contradições e impasses próprios. Nesse sentido, as oposições ao regime no campo

da cultura manifestaram-se a partir de duas expressões básicas: um ethos que

expressa um modo de ser da resistência à ditadura e um conjunto de produções

artísticas e culturais que traduziam formalmente as críticas ao regime e ao sistema

sócio-econômico por ele sustentado. Entretanto, essas expressões básicas eram

objeto de um amplo debate estético-ideológico que, em última instância, traduzia a

pluralidade de oposições ao regime com posicionamentos diversos acerca das formas,

meios e objetivos da “resistência”.

Dito de maneira sintética, poderíamos dizer que havia quatro grandes grupos

de atores nesta arena político-cultural (além do governo e suas instituições que,

obviamente, não fazia parte da “resistência” embora fossem permeáveis a certos

valores oriundos desta, como veremos no capítulo 5): (i) os liberais, (ii) os comunistas

(iii) os grupos contraculturais e (iv) a nova esquerda surgida nos anos 1970, com esta

última agrupando um conjunto heterogêneo de grupos sociais e valores ideológicos

14
Este trabalho está informado, teoricamente, pela articulação categorial entre política e cultura. Nesta
perspectiva, colocamos em contato as obras, instituições, movimentos, práticas culturais e discursos
ideológicos para pensar os dilemas e projetos da cultura brasileira recente. Não tomei “cultura brasileira”
como expressão de uma ideologia postiça, sistema simbólico coerente ou expressão ontológica de um
“ser nacional”, e sim como projeto ideológico e problema político que se manifesta no debate intelectual e
na produção artística. Portanto, entendemos a esfera cultural como o lugar onde “política, poder e
dominação” são mediados e contestados (ESCOSTEGUY, Ana Maria. Cartografia dos estudos culturais.
Uma versão latino-americana. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2001. p.13.)
12

como os católicos, trotskistas e socialistas, todos eles críticos do liberalismo, do

“populismo” e do nacionalismo de esquerda. Na dança das cadeiras do baile cultural

da resistência, as posições ora convergiam, ora divergiam, ora se complementavam,

ora se anulavam. O dilema entre se agrupar em frentes de oposição heterogêneas ou

manter-se isolado mas fiel aos princípios éticos e políticos no combate ao regime

perpassou essa dinâmica. Se os liberais eram os donos das corporações e empresas

culturais, os comunistas e outros setores de esquerda forneciam quadros importantes

para a produção de conteúdo destas empresas. Os militares no poder, por sua vez,

careciam de intelectuais orgânicos na área artístico-cultural, necessitando construir

algum diálogo com intelectuais de oposição, sejam liberais ou mesmo comunistas. Os

intelectuais e produtores culturais ligados à contracultura e à nova esquerda, por sua

vez, desconfiavam do nacional-popular como eixo simbólico da resistência cultural,

mas tendiam a dar peso diferenciado para o lugar da “cultura jovem” e da “cultura

popular” na construção de formas e valores críticos ao regime.

As alianças entre estes grupos também eram tensas, precárias e fluidas. Os

empresários liberais da cultura aceitavam a arte de esquerda, mas impunham certos

limites para não perder as benesses do Estado. O Estado precisava de artistas de

esquerda com trânsito na classe média, mas não podia aceitar a radicalização de suas

posições (daí a contraditória política cultural do regime). A esquerda se debatia para

afirmar qual o melhor caminho da crítica: pela palavra e pela razão ou pela crítica

comportamental e pela quebra da linguagem ou, ainda, pela rejeição do elitismo

cultural e pela aproximação com a cultura das classes populares. O saldo geral destas

aproximações, afastamentos e rupturas, foi o resultado de um aparamento das

arestas, configurando um conceito mais genérico de resistência no plano da memória

que não faz jus aos intensos debates e muitas alternativas da época.

Sintomaticamente, o discurso jornalístico, i.e. liberal, fez tabula rasa de todas as

posições da resistência cultural, construindo uma memória de consenso que, no fundo,

afirma apenas a hegemonia liberal que tem marcado a democracia brasileira. Os


13

suplementos jornalísticos rememorativos sobre o período expressam esse processo

de aparamento.

A questão da Resistência: paradigmas teóricos

Roderick Kedward15 propõe quatro domínios para tipificar as ações e

movimentos de resistência: 1) existência de uma consciência da resistência; 2)

herança dos valores (influência dos valores herdados em nome dos quais se resiste);

3) presença de “mediadores”, enquanto criadores e transmissores de valores

(professores, artistas, intelectuais); 4) inversão dos valores ideológicos impostos pela

força opressora, como por exemplo, ironia e o culto ao “fora-da-lei”.

Se tomarmos a resistência ao regime militar a partir destes quatro domínios,

poderemos esboçar um conjunto de problemas históricos concretos, pensados a partir

do caso brasileiro. Podemos falar em uma consciência inequívoca da resistência

político-cultural ou numa pluralidade de valores difusos e dispersos que a informou?

Quais os valores – herdados do passado ou construídos durante o processo – que

marcaram a resistência ao regime militar? Qual o papel dos mediadores individuais e

das instituições, bem como a relação entre um e outro, na afirmação das resistências

ao regime? Quais os resultados, sobretudo no plano cultural e estético, do culto à

inversão de valores defendidos pela direita militar encastelada no Estado pós-1964?

As respostas possíveis a estas perguntas nos conduzem às hipóteses centrais

deste trabalho.

Em primeiro lugar, tentarei demonstrar vários níveis de consciência em torno

da ideia de resistência político-cultural, desde posições ideológicas consolidadas até

posições conjunturais que oscilaram entre a colaboração (ainda que em nome da paz

15
KEDWARD, Roderick. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”, IN :
GUILLON, Jean Marie et LABORIE. Pierre (Eds). Memoire et Histoire: La Résistance. Editions Privat,
Tolouse, 1995, p.109-120
14

social) e a resistência moderada. Mesmo entre aqueles artistas e intelectuais que

tinham uma posição ideológica mais firme contra a ditadura, a consciência da

necessidade de resistir nem sempre se afirmou com a mesma determinação,

oscilando de posições críticas mais ativas e agressivas às mais sublimadas e

melancólicas.

Em relação aos “valores herdados” ocorreu algo muito peculiar: a resistência,

que inicialmente se fez em nome da defesa do nacional-popular (ou nacionalismo-

populista, para alguns) se viu questionada, dentro do próprio campo de oposição ao

regime, por novos valores que repudiavam a herança nacional-popular de esquerda,

negando-a em nome da modernização, do cosmopolitismo ou, pelo contrário, em

nome da cultura popular classista e comunitária. Em suma, a história da resistência

cultural no Brasil é, também, a história da crise da uma cultura política, o nacional-

popular. Esta questão nos remete ao último ponto da tipologia proposta por Kedward –

a tática da “inversão” simbólica dos valores dominantes – que acabou por criticar não

apenas a direita, mas o pretenso moralismo comportamental e o nacionalismo da

esquerda, sobretudo após a explosão da contracultura brasileira em 1968.

Sobre o papel dos mediadores e das instituições que atuaram no circuito

cultural da resistência ao regime, apresenta-se um conjunto grande de possibilidades

de análise, diante das quais este ensaio se debruçará sobre algumas. Darei destaque

aos artistas e, em segundo plano, aos intelectuais que pensaram a arte de resistência

em todos os seus matizes, não para afirmar o voluntarismo e as intenções dos “heróis

da resistência”, mas para situá-los diante de processos institucionais e coletivos. O

mercado de bens simbólicos, a institucionalização de ações culturais e movimentos

artísticos, ou mesmo os limites para dar mais organicidade político-ideológica às ações

culturais, representam a face mais conhecida deste confronto entre vontades


15

subjetivas, intenções individuais e constrangimentos institucionais ou estruturais16.

Nesse trabalho, serão analisados muitos exemplos desse conflito, que não deve ser

visto como desmerecedor das ações dos homens e mulheres que lutaram contra o

regime, mas como uma forma de compreensão menos idealizada da feitura histórica e

das contradições inerentes às suas ações.

Esta tese se organiza em nove capítulos que, sinteticamente, obedecem o

seguinte plano: 1) O exame do conceito de “resistência” e a afirmação da cultura como

campo de oposição ao autoritarismo no Brasil pós-1964; 2) A análise detalhada das

ações, obras e debates artístico-culturais da oposição nos primeiros anos do regime

militar que consolidaram o imperativo de uma “resistência cultural”; 3) As

características e impasses de cada campo artístico que se engajou na crítica ao

regime entre 1964 e 1968; 4) As lutas culturais entre os artistas comunistas e os

protagonistas da contracultura no Brasil na conjuntura mais repressiva do regime

(1969-1974); 5) As políticas culturais levadas a cabo pelo Estado a partir de 1973, e

suas conexões com a cultura de oposição; 6) O caso da MPB como expressão da

resistência cultural e da modernização da indústria da cultura no Brasil; 7) A análise

detalhada do caso das “patrulhas ideológicas”, debate que implodiu o campo da

cultura de oposição ao regime a partir de 1978; 8) As novas perspectivas de crítica

político-cultural ao regime e à própria esquerda por parte da esquerda católica e da

nova esquerda como um todo, materializada na proposta do Partido dos

Trabalhadores, no final dos anos 1970; 9) O papel da cultura na “batalha da memória”

em torno do regime militar.

Os capítulos tentam dar conta de várias facetas da vida cultural sob o

autoritarismo no contexto brasileiro dos anos 1960 e 1970. Pautam-se pela premissa

de que as lutas culturais travadas pelos atores, os circuitos e instituições por eles

16
Aqui destaco a análise estrutural do processo de inserção dos quadros artísticos e intelectuais de
esquerda no mercado de bens simbólicos, bastante peculiar no caso brasileiro. Ver MICELI, S. “O papel
político dos meios de comunicação” IN: SOSNOWSKI, Saul e SCHWARZ, Jorge (orgs). O trânsito da
memória. São Paulo, EDUSP, 1994, p. 41-68
16

ocupados, as representações estéticas e alianças por eles desenvolvidas, são muito

difíceis de serem mapeadas e explicadas unicamente pelo viés da “resistência” ou

“cooptação”. Aqui, identifico-me com a reflexão de Antoine Prost sobre a necessidade

de uma revisão historiográfica sobre a Resistência Francesa, que vale a pena

reproduzir17: “Alguns gostariam que a França tivesse sido resistente ou

colaboracionista, inocente ou culpada, e a afirmação polarizada destas categorias são

o último recurso da polêmica. Esta instrumentação da história permite sustentar o

elogio ou a censura ao passado, mas ao mesmo tempo impede a sua compreensão.

As feridas do corpo social não cicatrizam pelo recalque ou pelo anátema ecoado a

lhes conjurar. É necessário assumi-las e ultrapassá-las por um esforço de inteligência.

Ou seja, de história”.

As páginas que se seguem não tem a pretensão de esgotar essa tarefa. Optei

por um caminho assumidamente arriscado, ao construir minha reflexão na forma de

um ensaio, sempre mais afeito a inferências e deduções nem sempre devidamente

aprofundadas na análise meticulosa do material bruto, neste caso, as fontes primárias

de natureza política, intelectual e estética. Esse risco inerente ao formato do texto se

potencializa nesta tese, à medida que ela abarca um largo período de tempo (para os

padrões historiográficos atuais), articula campos de reflexão que tem sido estudados

separadamente (história política, história intelectual e história da arte) e faz dialogar

um vasto corpo documental, de naturezas muitas vezes distintas. Se ele for superado

por pesquisas que dialoguem com suas virtudes e defeitos, terá cumprido seu papel.

Por fim, gostaria que esta tese, independente do seu olhar criticista, fosse um

tributo à riqueza e dinamismo daqueles dourados anos de chumbo18.

17
PROST, Antoine. “Résistance et sociéte: quels liens?” IN: La Resistance: une histoire sociale. Les
Éditions de l’atelier/Éditions Ouvrières, Paris 1997, p. 8
18
Tomo emprestado o jogo de palavras proposto por Daniel Aarão Reis Filho, sugerindo-lhe outro
sentido.
17

CAPITULO 1

RESISTÊNCIA CULTURAL: CONCEITO E HISTORICIDADE

O conceito de resistência

Vista em perspectiva teórica forjada a partir da experiência política do

Ocidente, a categoria “resistência” deixa pouco espaço para uma reflexão crítica de

caráter mais desconstrutivo. Isto ocorre dada a carga semântica e o sentido político

positivados que o termo ganhou após se plasmar à luta heróica contra o “mal absoluto”

do nazi-fascismo, congregando ideologias diferenciadas sob a mesma bandeira da

defesa da dignidade humana e da liberdade. Este momento foi comparado a um

“tesouro” por Hannah Arendt, quando a política assumiu sua dimensão plena de

pensamento e ação na reconstrução do mundo comum. Mesmo perdido este tesouro,

com as diferenças muitas vezes mesquinhas ou superficiais, voltando a dar o tom do

mundo político, a força da palavra perdurou na memória, imprimindo aos movimentos

de resistência, quaisquer que sejam, uma dimensão justa e digna, diante da qual as

diferenças internas que os constituem se dissolvem e se fundem. Assim plasmada na

memória, a resistência parece estar imune a uma crítica historiográfica mais

distanciada, dada sua dimensão ética e universalista, diante da qual a política e suas

diferenças parecem ficar em segundo plano. Maria Paula Araujo nos lembra que “toda

luta de resistência se faz, em primeira instância, em defesa da legalidade, da

democracia, e dos direitos humanos. Ela é uma forma de luta típica dos momentos de

quebra de legalidade. Quem resiste o faz em nome de determinados valores que o

Ocidente consagrou como universais”19.

19
ARAUJO, Maria P. Op.cit. p.123
18

Partirei de uma definição quase tautológica: resistir implica em reagir a uma

força, perturbando um quadro político de dominação que, do contrário, seria absoluta.

“Como indica, do ponto de vista lexical, o próprio termo, trata-se mais de uma reação

que de ação, de uma defesa que uma ofensiva, de uma oposição que de uma

revolução”20. A idéia de resistência está intimamente ligada a uma correlação de forças

adversa, marcada por um inimigo mais forte que se impõe em algum processo político-

cultural.

Conforme Maria Paula Araujo: “A resistência é sempre do mais fraco (...) quem

resiste faz frente à ação de algo mais forte. A resistência tem algo de heróico em

nosso imaginário, mas também traz implícita a noção de derrota: resistem aqueles que

foram derrotados, resistem os que sobraram”21. A autora ainda caracteriza a

resistência como uma tática que assume a derrota, mas, ao mesmo, tempo declara

esperança de vitória no futuro, pautada por valores humanistas como “humildade”, “fé”

e “coragem”22. A humildade marca a consciência da derrota ou, no mínimo, de uma

correlação de forças adversa. A fé alimenta a esperança da vitória no futuro. E a

coragem sustenta o enfrentamento do presente com todos os riscos da

clandestinidade, da ilegalidade e da superioridade de forças do inimigo. Conforme a

autora estas três características tem dado dignidade humana e política aos chamados

movimentos de resistência. Nota-se que, nestas definições, a resistência transborda a

mera defesa de valores políticos para tornar-se corolário de uma ação ético-existencial

de afirmação de valores essenciais da humanidade. Maria Paula Araujo ainda nos

lembra que a resistência marca a articulação entre ideologias específicas (comunismo,

nacionalismo, socialismo, liberalismo) e bandeiras universais (liberdade, democracia,

direitos) tornando ainda mais complexa a análise crítica dos “tempos de resistência” a

20
MATEUCCI, Nicola in BOBBIO, Norberto (org). Dicionário de Política. Brasilia, Editora UNB, p. 1114
21
ARAUJO, Maria Paula. Op.cit., p. 124/125
22
Neste sentido, chamamos a atenção do leitor para o conceito de “coragem civil”, que valoriza os atos
aparentemente voluntaristas e individualistas de resistência à uma determinada situação de injustiça ou
violência, mas que pode catalizar futuras ações coletivas. Ver HEUER, Wolfgang. Op.cit.
19

qualquer opressão, pois cada ideologia que formou o campo da resistência tende a

disputar e, ao mesmo tempo, se ocultar, atrás destas bandeiras universais e pouco

questionáveis. Isto ocorre, tendo em vista que “(...) a resistência é uma categoria que

atravessa a política em direção à ética e conduz a ética para a política”23.

Alfredo Bosi há muito vem discutindo o conceito e as formas de resistência,

sempre associado à reflexão sobre a natureza da poesia e do fazer artístico. Em plena

ditadura, ao analisar o “ser e o tempo” na poesia, Bosi escreveu24: “Diante da

pseudototalidade forjada pela ideologia, a poesia (...)acabou fazendo-se, de algum

modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. E quero ver em

toda grande poesia moderna, a partir do pré-Romantismo, uma forma de resistência

simbólica aos discursos dominantes. A resistência tem muitas faces. Ora propõe a

recuperação do sentido comunitário perdido (...), ora a melodia dos afetos em plena

defensiva (...), ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida”. Ao ampliar o

conceito de resistência para além da exortação direta feita a partir de um determinado

conteúdo (contra)ideológico, Bosi nos aponta para a compreensão histórica das muitas

formas – estéticas e históricas - que a resistência ao autoritarismo político assumiu. No

caso brasileiro, as muitas faces da resistência foram fundamentais para erigir novas

configurações de subjetividade crítica diante da experiência dos anos de chumbo,

inventando “honras e futuros”, ao menos tempo que aplaca as tensões passadas.

Neste sentido, a poética da resistência cultural no Brasil pautou-se na maioria dos

casos pela “sublimação lírica”, pela “paródia”, pela “nostalgia” como crítica do

presente, afirmando-se menos pela “arte de barricadas”, voltada para a exortação da

ação direta e para o apelo à mobilização coletiva. Estas últimas perspectivas também

estão presentes no contexto brasileiro, mas em menor escala, se comparados aos

contextos de resistência anti-ditatorial em outros países latino-americanos. A co-

existência das “muitas faces” da resistência, entretanto, vista para além da

23
Idem, Ib. p. 252-253
24
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo, Cia das Letras, 2000 (6ªed.), p. 167
20

cumplicidade básica daqueles que “resistem”, revela a pluralidade de opções políticas

e de identidades coletivas, nem sempre convergentes, que nasceram sob o signo da

oposição ao regime.

Em seu livro mais recente, Bosi coloca a “arte e cultura de resistência” como

um exercício de contraideologia, compreendida como recusa da naturalização das

diferenças sociais, condicionamento exterior do pensamento e objetivações pré-

fabricadas do mundo pela ideologia. Ao lado da arte e cultura de resistência, Bosi

propõe outros exercícios de contraideologa: a pesquisa científica desvinculada do

interesse econômico imediato, a autoreflexividade, o pensamento enraizado no

trabalho e a religião desalienante25. Conectando estes exercícios em abstrato à sua

manifestação histórica no Brasil dos anos 1960 e 1970, teríamos a definição dos

protagonistas e campos da resistência ao regime e seu autoritarismo tecnoburocrático

e modernizador: a comunidade acadêmico-científica, os intelectuais, as comunidades

populares do mundo do trabalho, a militância religiosa progressista (das quais a cristã

foi particularmente atuante) e o artista engajado. Mesmo aceitando a existência de um

ethos e um pathos basilares de qualquer resistência26, é preciso analisar sua

objetivação particular - histórica, conceitual e formal - ao longo do regime militar

brasileiro.

Na linha sugerida por Hannah Arendt, Odilio Aguiar recoloca a resistência no

plano dos direitos, desvinculando-a da tradição das resistências típicas do século XX,

baseadas sobretudo no modelo de guerra civil de caráter economicista ou étnico. O

autor também procura matizar a opção pela resistência ao opressor como mera

25
BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia. Tema e variações. São Paulo, Cia das Letras, 2010.
26
Lembramos que conforme Aristóteles, ethos e pathos são dimensões da retórica, fundamentais para a
ocorrência da persuasão. Éthos relaciona-se à autoridade moral do orador, e pathos relaciona-se às
disposições e pré-disposições do ouvinte em aceitar a argumentação e amplificá-la, uma vez que
comovido por ela. Para o exame da cultura de resistência, esta pode ser uma chave teórica fundamental,
pois os vários discursos da resistência se ancoraram em postulados ético-morais que se sobrepuseram
aos estritos valores político-ideológicos, provocando no receptor destes discursos um conjunto de
reações, racionais e passionais. Obviamente, a “arte poética” não pode ser subsumida à retórica,
realizando-se por outras figuras e provocando outros tipos de fruição. Ver Aristóteles. Retórica. Livro I
(introdução e tradução de Manuel Alexandre Junior. Lisboa, Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1998.
21

“reação”. Nesta perspectiva, a resistência ganha uma dimensão de “esfera pública”,

ligada ao pensamento e à ação, à vida em comum. Diz o autor: “Para Arendt, a política

é a forma e o lócus apropriado da resistência. Resistir, mais do que reagir, assumir um

lugar passivo diante das forças de destruição, é fundar. A reação é o lugar da

impotência e da violência, a fundação é o lugar da potência, da criatividade e liberdade

humana”27.

O debate historiográfico em torno da alma mater de todas as resistências

políticas – a “Resistência Francesa” ao nazi-fascismo – também tem revisado

conceitos e perspectivas que desconsideram as tensões internas dos movimentos de

resistência e suas implicações políticas. François Bedarida reconhece que o

movimento francês anti-ocupação é um modelo, símbolo e mito, articulando o

universalismo à historicidade. Entretanto, lembra que a categoria foi pensada a partir

de uma estrutura binária fundamental: submissão / resistência; resignação /recusa;


28
colaboração / revolta . É um “arquétipo da consciência que diz não”, mas parece

conviver com o seu contrário, um fantasma que sempre ronda o debate: a tendência à

adesão ou ao conformismo de amplos setores da sociedade. Portanto, longe de

constituir um espaço político fechado e isolado do seu oposto, a resistência se afirma

de maneira descontínua, irregular, perpassada por tensões internas que tendem à

aceitação da derrota, por parte da sociedade e dos grupos em nomes dos quais se

resiste,. Para o autor, existem 4 elementos constituintes do ideal-tipo da resistência: a)

uma vontade de dizer “não”; b) um combate clandestino voluntário; c ) uma lógica

político-ética que coloca de maneira positivada a democracia contra a ditadura; 4) uma

memória didática, reforçando seu papel cívico-ético, bem como a memória dos atores

e a memória institucional comum.

27
AGUIAR, Odilio Alves. “A resistência em Hannah Arendt: da Política à Ética, da Ética à Política”. IN:
Duarte, André; Lopreato, Cristina e Magalhães, Marion B.. (Org.). A Banalização da violência: a atualidade
do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, v. 1, p. 254
28
BEDARIDA, François. “Sur Le concept de resistance” IN: GUILLON, Jean Marie et LABORIE. Pierre
(Eds). Memoire et Histoire: la resistance. p. 45-52
22

Este aspecto é particularmente importante para esta reflexão sobre a

resistência político-cultural contra o regime militar brasileiro, pois a idealização da

resistência e seu apelo puramente ético podem esvaziar a análise histórica e a

compreensão das tensões políticas que informaram o movimento, sem falar no

gradiente que nos ajuda a situar os atores entre o eixo da resistência e da

colaboração, que muitas vezes se imbricam. No caso que aqui examinamos, a tensão

entre resistência-colaboração assombrou os protagonistas (e analistas) por conta das

imbricações entre arte de esquerda, mercado e política cultural do regime militar,

processo que ensejou à época um duro debate sobre a melhor maneira de dizer não

ao regime e aos valores ideológicos por ele impostos. Portanto, não se pode falar que

a sociedade como um tudo colaborou ou resistiu. Seria mais produtivo investigar os

vários núcleos de resistência e de colaboração, devidamente inseridos no conjunto do

corpo social, mediado por várias estruturas, circuitos sociais e instituições, apontando

para a “diversidade concreta de situações, intervenções e momentos”29 históricos no

decorrer do largo período aqui observado. .

Os debates historiográficos em torno da Resistência Francesa são bastante

paradigmáticos destes impasses historiográficos, sendo perpassados por traumas e

tabus frequentemente construídos pela memória dos protagonistas e sancionados por

historiadores engajados, motivo pelo qual tiveram que esperar muitas décadas para

serem revisados a partir de outras perspectivas historiográficas30. Aliás, o caso francês

também nos serve para pensar o papel da memorização da resistência nos pactos de

poder em situações de transição e reconstrução do sistema político. Nesta linha, a

resistência aos regimes autoritários tende a ser homologada na memória a partir dos

pactos políticos que marcam as lutas e os processos de transição para a democracia,

recalcando as (muitas) diferenças internas até que o inimigo maior esteja derrotado.

29
PROST, Antoine. “Résistance et sociète: quels liens?” IN: PROST, A. (dir). Op.cit. p. 5.
30
LABORIE, Pierre & CABANEL, Patrick. Penser la défaite. Privat, 2002; LABORIE, Pierre. L´opinion
française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001
23

Muitas vezes, este padrão frentista tende a se impor na forma pela qual a resistência

política e cultural tem sido lembrada após o término das ditaduras31. No caso brasileiro,

ainda sob a ditadura militar, a tensão entre frentismo e sectarismo marcou o debate

dos atores da resistência. Se este processo já é um pouco mais conhecido no âmbito

da resistência política, ainda é pouco estudado no campo da resistência cultural que,

salvo a análise de alguns casos da década de 1960 e 1970, como o debate que opôs

os artistas filiados à contracultura e os filiados ao nacional-popular, ainda é visto sob o

signo de uma unidade estética, ética e política. Aliás, mesmo este debate, já bem

conhecido pela historiografia e pela memória social, tem sido marcado pela reiteração

de posições construídas pelos protagonistas e pelos pesquisadores identificados com

um ou com outro movimento à época.

Nestes termos, parece que há pouco o que revisar e criticar sem correr o risco

de se perder nas posições conservadoras (e muitas vezes, ultra-conservadoras),

daqueles que negam o heroísmo da resistência contra as ditaduras, os colonialismos e

os fascismos. Entretanto, nos últimos anos, historiadores de ofício - conseqüentes e

progressistas - tem assumido a tarefa de matizar as idealizações e construções

ideológicas em torno da “memória da resistência”, passando a estudar como as

sociedades colaboram com os regimes autoritários32. Denise Rollemberg, uma das

31
No final dos anos 1950, o PCB definiu a “revolução brasileira” como “nacional, democrática, anti-feudal
e anti-imperialista”. Esta conceituação, aliada à lógica etapista para construir o socialismo permitiu ao
Partido fazer amplas alianças, em nome de uma “frente única” nacional-popular, tática que se manteve
como eixo da resistência comunista ao regime militar e permitiu a constituição de alianças com setores
liberais e outras correntes de esquerda entre os anos 1960 e 1970. Ver: SEGATTO, José L. Reforma e
revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954-1964). Rio de Janeiro, Record, 1995; BRANDÃO, Gil
Marçal. A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista. São Paulo, Hucitec, 1997
32
; REIS Filho, Daniel A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000; REIS
FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo, Brasiliense, 1990; REIS FILHO, Daniel
Aarão (org.). Versões e ficções. O seqüestro da História. São Paulo, Perseu Abramo, 1999;
ROLLEMBERG, D. & QUADRAT, Samantha (orgs). A construção social dos regimes autoritários. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2010; ROLLEMBERG, Denise. “História, Memória e Verdade: em busca do
universo dos homens”. IN: Cecília MacDowell Santos; Edson Luís de Almeida Teles; Janaína de Almeida
Teles (orgs.). Desarquivando a Ditadura: Memória e Justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009;
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, pp. 81-91. Note-se que esta historiografia vai na
contramão das posições defendidas por Maria Paula Araujo, citadas anteriormente.
24

historiadoras que vem atuando nesta direção, sintetiza este projeto historiográfico33:

“Uma infinidade de temas precisa ser trabalhada - ou retrabalhada - direcionando a

abordagem para as relações de compromissos e identidade entre sociedade e

ditadura, que construíram consensos. Compreendê-las é o grande desafio para os

pesquisadores do período, para as esquerdas que atuaram nos anos 1960 e 1970

contra a ditadura e/ou por outra ordem, para os envolvidos com os movimentos de

alguma forma ligados ao ‘nunca mais’ (...) Estes movimentos [historiográficos] têm um

papel importante a desempenhar na desconstrução da memória da resistência que

ainda permanece restrito a poucos na academia e quase ausente fora dela. Afastando-

se dos mitos que só têm levado ao desconhecimento das culturas políticas da

sociedade brasileira e das esquerdas, estes movimentos contribuirão numa discussão

ampla, polemizando com a sociedade, estendendo, por fim, o universo para muito

além dos limites nos quais se encontra, o das famílias dos atingidos (...). Em 1979 e na

década de 1980, inventamos nossa honra e nosso futuro, num amálgama do qual as

esquerdas - isoladas e vencidas em duas décadas - participaram”.

Outro aspecto importante que nos ajuda a compreender as dinâmicas internas

do campo das resistências políticas é a convivência no seio deste campo, entre “ética

de convicção” e “ética de responsabilidade”. A primeira se quer pura, intransigente nos

seus valores e que não faz concessões ao inimigo. A segunda ética é mais

pragmática, busca eficácia da ação e é guiada por uma lógica racionalista. Via de

regra, a primeira está ligada à atitudes e posições mais sectárias, enquanto a segunda

está ligada às posições mais frentistas. Entretanto, em muitos casos, inclusive no caso

brasileiro aqui examinado, o discurso ancorado na “ética de responsabilidade” pode

adquirir um sentido colaboracionista e submisso às políticas ilegítimas das ditaduras,

como parece ter acontecido, sobretudo, com os movimentos de resistência

33
ROLLEMBERG, Denise. “História, Memória e Verdade: em busca do universo dos homens” IN: Cecília
MacDowell Santos; Edson Luís de Almeida Teles; Janaína de Almeida Teles (orgs.). Op.cit. (versão
digital, p. 7)
25

hegemonizados pelas correntes liberal-conservadoras. A tendência histórica, conforme

Bedarida, é ocorrer, nos processos de resistências, uma migração da ética da

convicção para uma ética da responsabilidade34. Essa migração não se faz sem

dissensos e conflitos internos ao campo da resistência, que podem se transformar em

tabus e traumas, implicando em conteúdos forjados e recalcados por ocasião da

consolidação das memórias em torno da resistência. Quase sempre, a memória

responde aos sucessos políticos dos processos de transição, quando a resistência

deixa de ser mera reação opositora e passa a ter necessidade de uma “agenda

positiva” de poder e reconstrução dos elos sociais, sempre abalados pelos períodos de

ditadura e violência política. Portanto, o campo monolítico e romantizado da

resistência, em que pese a ética e o universalismo que lhes são subjacentes, pode ser

pensado como um campo conflituoso, plural e, muitas vezes, errático, uma vez que

não obedece uma trajetória de sentido pré-determinada pela vontade de resistir

ideologicamente guiada. Este impasse se acirrou no Brasil pós-1979, como veremos

adiante. A percepção da convivência entre as duas “éticas” – convicção e

responsabilidade – também ajuda a problematizar e explorar os conflitos internos e os

sentidos plurais das resistências democráticas diante dos regimes autoritários.

Também implica em pensar a convivência destas éticas em um mesmo ator histórico,

explicando a migração entre elas pelo aspecto conjuntural, contrariando a noção de

uma consciência política imutável e inflexível que pauta a ação. Os conflitos e

impasses da transição brasileira, entre outras transições democráticas, parecem

obedecer a esta lógica.

A resistência ao regime militar brasileiro

Logo em 1964, depois de ser aplaudido pela imprensa liberal e por amplos

segmentos da sociedade, o regime militar conheceu as primeiras vozes críticas,

fazendo surgir a “questão democrática” entre liberais e entre setores da esquerda,

34
Idem, p. 45.
26

entendida até finais dos anos 1970 como a necessidade da volta da democracia

política e dos direitos civis.

A concepção de “resistência democrática” se fortaleceu no Brasil entre 1973 e

197535. Esse contexto foi marcado pela autocrítica da esquerda armada, assumindo a

derrota da luta política, ao mesmo tempo em que se esboçava uma nova fase na

política do regime, anunciando, ainda que de maneira vaga e difusa, a promessa de

uma distensão. O sentido da palavra resistência consolidou-se no vocabulário político

e na memória como sinônimo de tática de conquista das liberdades democráticas,

permitindo a recomposição do conjunto das oposições ao regime, liberais e de

esquerda, esgarçadas na segunda metade dos anos 1960. Devemos lembrar,

entretanto, que o tema da “resistência democrática”, civilista, pública e massiva, existia

desde os primeiros meses após o golpe, seja pela via dos liberais arrependidos e

assustados com a truculência do regime, seja pelas posições do Partido Comunista

Brasileiro que apostava nesta linha de ação desde o imediato pós-golpe. O PCB

reiterou sua linha frentista e civilista no VI Congresso realizado em dezembro de

1967, o que não quer dizer que esta estratégia geral tenha sido executada de maneira

linear, homogênea e sem conflitos internos. A começar pela saída de importantes

líderes comunistas que aderiram à luta armada no final dos anos 1960, como Carlos

Marighela e Jacob Gorender. A definição do regime militar brasileiro como uma

“ditadura fascista”, sugerida pelo Comitê Estadual da Guanabara em 1970 e ratificada

pelo Comitê Central em 1973 e 1977, reforçou ainda mais as posições que assumiam

a “questão democrática” como eixo da resistência frentista36. Alguns setores do

Partido, como o Secretário-Geral Luis Carlos Prestes questionaram essa linha de

ação, defendendo uma frente de esquerda mais restrita, sem abrir mão da identidade

35
ARAUJO, Maria P. Op.cit. p. 115-132
36
Os documentos em questão: “Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara” (1970); “Por uma
frente Patriótica contra o Fascismo” (1973); “Resolução Política do Comitê Central” (1977).
27

socialista e da vocação “revolucionária” do Partido37. Após a Anistia de 1979, a luta

interna se acirrou entre “renovadores” e “ortodoxos”, mas o processo partidário

vivenciado entre 1980 e 1983 acabou por isolar as duas correntes favorecendo uma

nova camada dirigente que reiterou as alianças amplas em nome da democracia, mas

sem a renovação das estruturas partidárias e das concepções teóricas defendidas

pelos “renovadores”38. Em 1980, o lendário Prestes perdeu o comando do PCB para

Giocondo Dias.

À primeira vista, dado o apoio significativo ao golpe civil-militar, causa

estranheza a velocidade com que o tema da resistência e da crítica ao regime se

disseminaram na opinião pública, a começar pela mesma imprensa que, em bloco,

exigira a intervenção militar para derrubar João Goulart. A este respeito, o caso do

jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro, é exemplar. Divulgador de dois editoriais39

bombásticos e diretos antes do golpe – os famosos “Basta!” e “Fora!”, o Correio da

Manhã logo se transformou no bastião da crítica ao regime, veiculando artigos de Otto

Maria Carpeaux, Hermano Alves, Marcio Moreira Alves, Paulo Francis, sem falar nas

famosas crônicas de Carlos Heitor Cony40.

Antes deles, um liberal conservador e católico – Alceu Amoroso Lima- foi o

primeiro a denunciar o “terrorismo cultural” do regime. A cassação de Juscelino

Kubitschek, em junho de 1964, acendeu a luz amarela nas lideranças políticas que

sobreviveram ao golpe e esperavam tirar alguma vantagem dele. Obviamente, a saída

37
PRESTES, Luis C. Carta aos Comunistas. São Paulo, Alfa-Õmega, 1980
38
A corrente “renovadora”, muitas vezes chamada de “Eurocomunista” era liderada por Armênio Guedes
e composta por Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Aloysio Nunes Ferreira,
entre outros. Sob influência de Gramsci, tentaram redimensionar o papel do Partido Comunista Brasileiro
na redemocratização, desvinculando a democracia política do capitalismo, aceitando-a como “valor
universal”. Além de defender alianças políticas amplas, defendia uma renovação teórica (criticando o
“etapismo” e o economicismo) e maior participação da militância dentro do Partido. Entre março de 1980 e
julho de 1981, essa corrente hegemonizou o semanário “Voz da Unidade”, dispersando-se a partir de
1983. Ver TAFARELLO, Paulo Moraes. Crise orgânica do Partido Comunista Brasileiro e o declínio do
socialismo real. Mestrado em Ciências Sociais, UNESP, Marília, 2009, p. 55-58
39
Sobre a redação destes editoriais e seu impacto à época ver AMADO, João. Os jornalistas e o golpe de
64. Disponível em Observatório da Imprensa, www.observatoriodaimprensa.com.br, acessado em
3/4/2007
40
Para um balanço crítico da obra de Cony, e de sua trajetória literária e biográfica, ver BUENO, Raquel
Illescas. Os invólucros da memória na ficção de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro, Academia Brasileira
de Letras, 2008 ( pp. 1-60).
28

de cena de JK foi aplaudida pelos setores civis mais à direita, não apenas por razões

ideológicas, mas por motivos eleitoreiros, tendo em vista que o ex-Presidente era o

candidato mais forte no pleito presidencial esperado para 1965. Mesmo Carlos

Lacerda, a face civil mais ligada ao golpe de 1964, entrara em conflito com o regime

alguns dias depois da queda de Goulart, percebendo que o núcleo conspirador que

assumiu o poder não lhe rendera uma posição de destaque no novo governo.

Entretanto, as ilusões dos oportunistas logo se perderiam com o Ato Institucional n.2,

cujo preâmbulo é de uma clareza cristalina, apesar do barroquismo da construção:

“Não se disse que a Revolução (sic!) foi, mas que é, e continuará”. Ou seja, os

militares avisavam as lideranças civis sequiosas para chegar ao Palácio do Planalto

que eles tinham vindo para ficar. A intervenção “moderadora” e a “ditadura”

saneadora, solicitada e autorizada pela direita civil de um sistema político em

frangalhos, se afirmava com um projeto estratégico e de longo prazo, buscando meios

para institucionalizar-se e permanecer no poder.

Não é de se estranhar, portanto, que a partir de 1966, o tema da resistência e

da oposição política ao regime ganha novo sentido e nova amplitude. Com o

adiamento sine die das eleições presidenciais, a dissolução dos partidos políticos

existentes e o afastamento das lideranças civis que se contrapunham, de uma maneira

ou de outra, ao projeto do regime, os liberais iniciam seu longo, errático e moderado

processo de afastamento em relação ao monstro político que eles mesmos ajudaram a

criar, ao apoiar o golpe militar. Neste sentido, a resistência ao regime, desde os seus

primórdios, movia-se em meio a um quadro complexo, que ia dos setores mais

conservadores aos mais radicais, marcado por três atores principais entre 1964 e

1968: os liberais críticos, porém sempre dispostos a negociar; o Partido Comunista

Brasileiro, com ampla penetração entre artistas e intelectuais, cujas principais

bandeiras – unidade e volta à democracia - fez com que eles acabassem reféns das

vicissitudes dos liberais; e, finalmente, a oposição de esquerda mais radical, disposta


29

a pegar em armas para derrubar a ditadura e que, para tal, tinha que romper com as

amarras do PCB, até então principal grupo de esquerda do Brasil.

A expressão dos liberais contra o regime, a partir de 1966, foi a Frente Ampla,

que reuniu Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, com apoio não muito entusiástico

de João Goulart, então um ex-político exilado e abatido. Os dois anos de atuação da

FA, fechada por decreto em abril de 1968, acentuou o divórcio entre o regime e alguns

setores liberais, com ampla repercussão na imprensa, quase toda ela também ligada a

um liberalismo doutrinário de matiz oligárquica (e, portanto, sempre inclinado ao

“autoritarismo de crise”, conforme feliz expressão de Décio Saes41). Entretanto, o

acirramento do conflito e a radicalização das posições, à direita e à esquerda, fez com

que as vozes moderadas se perdessem nos anos anos de chumbo. O contexto da

guerrilha de esquerda exigia também uma suspensão das críticas ao regime, pois a

luta armada assombrava as elites políticas e econômicas como um todo. O

comportamento adesista da imprensa à época, na cobertura às ações contra o “terror”

e na denúncia ainda tímidas das “torturas”, demonstrava este recuo tático, paralelo ao

fim das promessas militares de liberalização, marca do início do governo Costa e

Silva, em março de 196742.

O PCB, por outro lado, atropelado pelos acontecimentos de março de 1964 e

preocupado em garantir a integridade mínima dos seus quadros mais importantes, só

conseguiu ter uma posição oficial diante do golpe em 1965, com a “resolução de maio”

41
SAES, Décio. Classes médias e sistema político no Brasil. São Paulo, TA Queiroz, 1985
42
Sobre as relações da imprensa liberal com o governo militar, diante dos impasses colocados pela luta
armada de esquerda ver: ABREU, João Batista de. As manobras da informação: análise da cobertura
jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad, 2000; SEQUEIRA, Cleofe . A
Informação Comprometida – Um Estudo do noticiário da Folha da Tarde no Governo Médici. Dissertação
de mestrado, ECA-USP, São Paulo, 2000; LIBARDI, Ana Paula. “A guerrilha amordaçada: A ALN na
Imprensa (1969-1974)”. Revista Agora, Vitória, 6, 2007-p.1-27; GAZZOTTI, Juliana. “O Jornal da Tarde e
o pós AI-5: o discurso da imprensa desmistificado” IN: MARTINS Filho, J.R. (org). O Golpe de 64 e o
regime militar: novas perspectivas. São Carlos, EDUFSCar, 2004, 67-80. Nestes trabalhos, os autores
procuram traçar um painel plural dos órgãos de imprensa nos anos de chumbo, no qual ficam claras
algumas diferenças sutis entre eles, indo da adesão ativa à repressão (Folha da Tarde) ou do apoio
ideológico no combate aos guerrilheiros (O Globo), às posições mais distanciadas do discurso oficial,
ainda que não se endossasse a luta armada (Veja, Jornal do Brasil).
30

do Comitê Central43. Nela, se reiteram as palavras de ordem de prudência, de

reorganização dos quadros, de acúmulo de forças, de unidade das oposições, de luta

política (ou seja, não armada) contra o regime. A confirmação dos termos da “nova

política” civilista, frentista e democrática, já definida em 1958, acabou por causar uma

grande crise interna no Partido, com muitos expurgos e dissidências entre os mais

altos quadros do Comitê Central (como Carlos Marighela e Joaquim Câmara),

engrossada pela dissidência de muitas lideranças e militantes, sobretudo estudantis.

Apesar de alguns ajustes e vicissitudes, a linha de resistência do PCB não mudaria,

em linhas gerais, até o final do regime militar44. O resultado foi curioso e exacerbou

uma característica da história do partido, que ainda precisaria ser mais estudada: seu

esvaziamento progressivo no campo da política, compensado pela presença

significativa entre intelectuais e artistas, ao menos até fins dos anos 1970. A

decadência do PCB na área política não foi acompanhada, no mesmo ritmo e

magnitude, da sua decadência na área cultural. Em certo sentido, os artistas

comunistas e seus compagnons de route foram bem sucedidos na defesa dos valores

do nacional-popular, da aliança de classes pela democracia, na denúncia do

autoritarismo e das mazelas do regime, sem falar na política de ocupação de espaços,

mesmo enfrentando um duro debate na área cultural. A presença dos comunistas e

simpatizantes na Rede Globo, na burocracia cultural, nas redações dos jornais, entre

outros espaços, demonstra essa situação paradoxal vivida pelo Partido nos anos 1960

e 1970.

A questão da resistência cultural

A cultura desempenhou um papel importante na configuração de uma

identidade de oposição ao regime militar, sobretudo entre os jovens de classe média.

Se o campo cultural já era importante para a esquerda antes do golpe, como atestam

43
CARONE, E. O PCB. São Paulo, Difel, 1982, p.15-27
44
LIMA, Hamilton. O ocaso do comunismo democrático: O PCB na última ilegalidade. Dissertação de
Mestrado em Ciência Política, UNICAMP, 1995
31

as trajetórias históricas do Centro Popular de Cultura da UNE ou do Movimento de

Cultura Popular do Recife45, após o golpe o campo cultural continuou a ser um foco de

rearticulação de forças e elaboração de identidades políticas, fazendo crer que apesar

da vitória política da direita, havia uma “relativa hegemonia cultural de esquerda” no

país, conforme as palavras de Roberto Schwarz46.

As experiências e lutas culturais ocorridas nos quatro primeiros anos do regime

acabaram por forjar um conjunto de categorias e padrões de memorização cujas

implicações vão além da esfera cultural. Expressões como “resistência”, “hegemonia

cultural” ou “vazio cultural” foram construídas neste processo e devem ser recolocadas

em seu contexto, entendidas como categorias inerentes à luta política não apenas das

oposições de esquerda contra o regime, mas também como produtos de um debate

interno destas mesmas oposições na esfera cultural.

Com a implosão da "grande família comunista"47, com a crítica crescente feita

ao PCB pelos seus próprios quadros dissidentes ou por outras correntes da esquerda

após o golpe militar de 1964, o projeto de uma cultura contra-hegemônica, do ponto de

vista político-ideológico, também sofreu um conjunto de críticas virulentas. Esse

projeto foi questionado pelas correntes da esquerda armada e pela crítica cultural e

comportamental proposta pelo Tropicalismo, antes mesmo dos “anos de chumbo” da

repressão. Se antes do golpe militar, no governo Goulart, tal projeto político-cultural do

Partido Comunista estava ancorado na grande aliança de classes marcada pela

cultura nacional-popular e pelo apoio às reformas de base, após o golpe estes dois

pilares sofreram um profundo abalo. Apesar disso, entre 1964 e 1968 floresceu uma

cultura de esquerda que, passou a ser idealizada como um momento mágico na vida

cultural brasileira48. Com o Ato Institucional nº 5 os espaços públicos desta cultura de

45
Estes movimentos serão analisados mais detalhadamente no capítulo 8.
46
SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política – 1964-69” IN: Cultura e Politica. Ed. Paz e Terra, 2001, p. 7-
58 (original de 1969, publicado na Revista Les Temps Modernes.)
47
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Record, 2000.
48
SCHWARZ, Roberto. Op.cit.
32

esquerda foram fechados ou, no mínimo, cerceados, fazendo com que,

momentaneamente, todas as correntes que ocupavam o campo da resistência,

percebessem a presença de um inimigo comum. Contudo, os projetos culturais deste

campo não convergiram para um projeto homogêneo, ainda que puramente tático. Ao

contrário, estilhaçaram-se em muitos projetos, grupos e espaços de resistência e

crítica cultural. A questão central é que as várias correntes e projetos do campo da

resistência eram antagônicos e, no limite, auto-excludentes, ainda que a cultura fosse

o campo mais propício, inicialmente, para superar as divergências.

Ao menos quatro linhas de ação cultural compuseram o difuso e conflituoso

painel do espaço público da "resistência" ao regime militar, destacando-se (i) os

liberais49; (ii) os comunistas50; (iii) a contracultura; (iv) e a nova esquerda basista.

A ruptura liberal com o regime militar, ao menos no campo político, começou a

se esboçar já em 1964, e por volta de 1966 ficou plenamente caracterizada, quando

seus arautos políticos se perceberam alijados do processo político federal. Tal

dissenso não pode ser minimizado, pois desempenhou um papel significativo na

reverberação da resistência cultural, à medida que os liberais eram os donos dos

49
No Brasil, parece haver a predominância de um liberalismo de corte oligárquico-conservador que rejeita
a política como privilégio de um estamento aristocrático, mas também sempre se pautou por controlar a
“força do número”. A complexa arquitetura institucional e legal da exclusão política brasileira, com sérias
conseqüências para a realização da cidadania, foi a consequência de uma hegemonia histórica do
liberalismo-conservador (Império e Primeira República), eventualmente cedendo espaço político aos
“nacionalistas-autoritários” (primeiro governo Vargas e regime militar) nos momentos de crise no controle
social e na realização de projetos político-econômicos que exigiam a mobilização de amplos setores e
recursos nacionais. Seu mecanismo inicial foi a “eleição censitária”, complementada no Brasil pelo “voto
de cabresto” e pela exclusão dos analfabetos do “corpo politico” nacional até 1988. Ainda assim, a
presença de um voto popular-operário relativamente autônomo das correntes liberais-conservadoras,
capaz de decidir eleições, foi um fator de crise constante na “República de 1946”. Para uma analise
histórica das doutrinas do liberalismo conservador no Brasil, ver BOSI, A. Ideologia e contraideologia. p.
276-393.
50
O PCB, desde meados dos anos 1950, não tinha, propriamente, uma política cultural organizada e
sistemática. Entretanto, defendo a tese de que, ainda que as instâncias oficiais do Partido não tivessem
uma doutrina ou uma organicidade muito impositiva, os artistas comunistas (e simpatizantes) constituíam
um núcleo pensante e criador que conseguiu traduzir, com relativo sucesso e coerência, a linha frentista e
aliancista do partido. A opção pelo nacionalismo, a visão de povo como proto-consciência revolucionária,
o papel mediador do artista-intelectual e o realismo como princípio da comunicação com o público
(implicando no figurativismo nas artes, na defesa da canção como convenção melódica suportando uma
mensagem poética e o realismo dramatúrgico no cinema e no teatro), foram as bases deste projeto.
Sobre a relação entre cultura e política no PCB ver RUBIM, Antonio Canelas. Partido Comunista, cultura e
política cultural. Tese de Doutorado em Sociologia, FFLCH/USP, 1987; MORAES, Denis. O imaginário
vigiado: a imprensa comunista e a recepção do realismo socialista no Brasil. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1994
33

meios de comunicação de massa e puderam, ainda que taticamente, dar voz aos

agentes produtores da cultura de esquerda, sobretudo à corrente nacional-popular. As

correntes liberais pautavam-se pela crença fundamental na "liberdade de expressão",

o que nem sempre se traduzia na defesa da "liberdade de ação", sobretudo quando

esta ação apontava para a intransigência na luta contra o regime. Abertos à

negociação com o regime, as vozes políticas liberais foram fundamentais como

interlocutores entre a oposição de esquerda e o Estado, sobretudo ao longo do

processo de "abertura" política, após 1974. No plano cultural, os empresários liberais

deram bastante espaço para os artistas ligados à chamada "corrente hegemônica"

(comunista), como demonstra a mencionada presença de comunistas declarados entre

os quadros artísticos e técnicos da Rede Globo, ou o prestígio que os cantores e

compositores da MPB desfrutavam nos jornais liberais ou junto às empresas

fonográficas.

Os quadros culturais do PCB se mantiveram fiéis ao princípio da defesa da

cultura nacional-popular, vista como mediação construída pelo intelectual engajado

entre o regional e o cosmopolita e como linguagem simbólica comum que deveria

expressar a aliança de classes na defesa na nação contra o imperialismo e contra a

"ditadura fascista". Os comunistas defendiam a ocupação de todos os espaços

possíveis dentro do sistema, negociando até certo ponto o próprio conteúdo de suas

idéias, materializadas em peças de teatro, filmes, canções e novelas. Ao longo dos

anos 70, os agentes culturais ligados ao "partidão" foram fundamentais na

consagração de um conteúdo peculiar da indústria cultural brasileira, sobretudo no

cinema, na TV e na música popular, de ampla aceitação junto ao público consumidor

de classe média. Estes conteúdos híbridos mesclavam elementos do nacionalismo,

populismo, folclorismo, realismo socialista, temperados por uma estética narrativa e


34

realista, herdada, sobretudo, da cultura européia do século XIX. Por outro lado, não

descartavam elementos herdados do “projeto moderno brasileiro”51.

Para as subculturas jovens ligadas ao campo da contracultura, o princípio

norteador da ação cultural era a negação romântica e libertária, ora individualista ora

comunitária, do "sistema", percebido como um complexo de dominação cultural,

comportamental, econômica e política a um só tempo. A prática do "desbunde" (corte

de todos os laços com os valores morais e políticos da classe média, mesmo em

relação ao seu segmento politicamente progressista), a busca da vida "alternativa"

(comunidades de jovens, esoterismo orientalista, drogas, psicodelismo, rock) e a

quebra da linguagem como meio de comunicação (em nome de outra consciência e

expressão) marcaram as atitudes desta corrente, mais atuante na primeira metade da

década de 197052. No final da década, alguns destes valores e práticas foram

assimilados pela juventude universitária, marcando uma certa cultura libertária que

inundou os campi até boa parte dos anos 1980 e que procurava conciliar a resistência

política clássica com novas atitudes comportamentais ("políticas do corpo", luta das

minorias) e valores estéticos (abertura ao pop, ecletismo, vanguarda). Após 1980, os

setores das correntes marginais e alternativas serão, pouco a pouco, incorporados

pela própria indústria cultural, cada vez mais aberta aos elementos estéticos e

culturais das vanguardas de linhagem contracultural e pop. Apesar disso, os valores

coletivistas, hedonistas e libertários desta corrente ainda se fazem presentes nos

movimentos antiglobalização desde o final do século XX, atuando à margem dos

sistemas culturais institucionalizados.

51
A expressão “projeto moderno brasileiro” é utilizada, normalmente, para designar o mainstream da
arquitetura brasileira do século XX, inspirada em Le Corbusier. Aqui, utilizo a expressão de maneira mais
livre para englobar o conjunto dialético, plural e dinâmico dos projetos estético-culturais voltados para a
construção (ou descontrução) identitária da modernidade brasileira, gestados entre 1922 e 1968.
52
COELHO, Frederico O. Eu brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil
dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2010. Neste trabalho, o autor reconstrói as
bases da vanguarda contracultural brasileira e sua atuação no contexto cultural da “resistência” ao
regime, dando ênfase a duas figuras basilares: Torquato Neto e Hélio Oiticica. O livro procura analisar
tradição da cultura marginal brasileira para além do Tropicalismo (musical) e para além das influências da
contracultura internacional. Para uma crítica de época a esta corrente ver MARTINS, Luciano. “A geração
AI-5: um ensaio sobre autoritarismo e alienação”. Ensaio de Opinião, v.2, p. 72-103, 1979
35

A perspectiva cultural da nova esquerda, composta basicamente pela

articulação da esquerda católica, movimentos sociais basistas e militantes laicos anti-

nacionalistas, tem sido pouco estudada enquanto manifestação da resistência ao

regime militar. Na sua gênese e concepção de cultura, nota-se a grande influência das

correntes católicas de esquerda, que se pautavam pela defesa de certa noção de

"cultura popular", na maioria das vezes idealizada e voltada para a valorização das

experiências culturais comunitárias vivenciadas fora do mercado e da cultura oficial

como um todo. A ação cultural destes grupos, atuantes nos bairros e nas comunidades

ligadas à Igreja Católica (pastorais, Comunidade de Base) buscava enfatizar uma

certa "pureza” das práticas culturais vividas no cotidiano dos bairros e da vizinhança. A

diferença central em relação às praticas culturais dos comunistas ortodoxos era que a

categoria "povo" era apartada da categoria "nação". Ou seja, o nacional-popular

tornou-se objeto de suspeita para essas correntes pois implicava em uma visão

político-cultural que corroborava a aliança de classes com setores da elite, estratégia

que teria conduzido ao desastre de 1964. As classes populares eram valorizadas a

partir da sua cultura cotidiana, pragmática, local e comunitária, voltada para uma

efetiva e silenciosa resistência diante da modernização sócio-econômica do

capitalismo, patrocinada pelo regime militar. A “cultura popular", nesta ótica,

contrapunha-se à “cultura de massa” marcada pela indústria cultural, mas sobretudo

implicava numa apropriação nova dos elementos da cultura de elite ou de consumo53.

Os embates mais agressivos entre estas variáveis da resistência ocorreram

entre os comunistas mais ortodoxos, defensores do nacional-popular, e os artistas e

intelectuais ligados à contracultura, “marginal e alternativa”. Os comunistas buscavam

afirmar a linguagem como meio de expressão de consciência de mundo, à base de um

pensamento lógico-analítico. A corrente da cultura “jovem marginal e alternativa” via

na linguagem a expressão de uma experiência de mundo, mais corpórea e afetiva do

53
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular. São Paulo, Brasiliense, 1985.
36

que intelectual. Por outro lado, as estratégias e táticas de ação cultural também eram

radicalmente diferentes e até opostas: enquanto os comunistas, em pleno auge da

repressão do governo Médici, iniciaram uma tímida aproximação com alguns setores

da burocracia cultural visando esboçar uma política nacional de cultura, efetivada em

197554, as correntes alternativas e marginais procuravam reforçar estratégias de

ocupação capilar de espaços culturais pequenos e dispersos, quase sempre

freqüentados por estudantes jovens e desvinculados da herança do engajamento

político de esquerda. Em outro campo distinto, alheio às vanguardas e à indústria da

cultura e seus circuitos massivos de mercado, as correntes católicas de esquerda e os

sobreviventes dos grupos clandestinos mesclaram-se aos circuitos da cultura popular

urbana, desenvolvendo importantes atividades culturais nas periferias operárias das

grandes cidades, ligadas, sobretudo ao teatro de intenções didáticas, examinado mais

adiante.

Portanto, temos, inicialmente, três estratégias diferenciadas e conflitantes de

resistência cultural: por parte dos comunistas ortodoxos, tratava-se de ocupar os

espaços possíveis (no Estado e no mercado) buscando recompor a cultura nacional-

popular destroçada após 1968; por parte das correntes marginais da contracultura

jovem, o foco era a criação de espaços libertários e alternativos, sobretudo em torno

da sociabilidade universitária; por parte de católicos e militantes de grupos

clandestinos (dissidentes do PCB, trotskistas, maoístas), a ênfase era dada à cultura

popular operária e comunitária, nas periferias das grandes cidades.

Os atores liberais - sejam aqueles ligados à cultura de elite (meios literários,

jornalísticos e acadêmicos), sejam aqueles ligados à indústria cultural (rádio, televisão,

indústria fonográfica) - completam este quadro. Muitas vezes serviram como fiéis da

balança nas alianças civis contra o regime. Quase sempre, e isto pode parecer até

paradoxal, os liberais estiveram mais ligados aos comunistas e não seria exagero

54
RAMOS, José M.. Cinema, Estado e lutas culturais. São Paulo: Brasiliense, 1988.
37

supor que junto com estes construíram e marcaram, no plano da memória social, o

próprio conceito de resistência à ditadura, tal como consagrado hoje em dia pela

opinião pública mais ampla. A indústria cultural, hegemonizada pelos empresários

liberais, funcionou como um vórtice a assimilar diversos projetos de ação cultural da

resistência contra o regime, mesmo aqueles ligados às vanguardas hiper-críticas ou

aos comunistas. Defendo, aliás, a idéia de uma singularidade na indústria cultural

latino-americana e brasileira, em particular (em relação à européia e norte-americana),

tendo em vista que alguns elementos simbólicos oriundos de uma arte engajada55

(nacional-populismo, chancelado pela esquerda comunista) e das tradições de

vanguarda (antropofagia, tropicalismo) foram fundamentais para a constituição do

mercado da cultura, no final dos anos 1960, processo que tem sido estudado por

diversos autores56.

A afirmação destes atores e de suas posições no campo da resistência cultural

foi alimentada pelo recrudescimento da repressão sobre a cultura de esquerda,

operado a partir de 1969. Aliás, qual seria razão do recrudescimento da repressão do

regime, sobre a vida cultural de esquerda, até então tolerada? O que teria mudado,

para explicar o novo impulso para o “terrorismo cultural” do regime?

Ricardo Mendes aponta algumas pistas para entender a clivagem provocada

pelo AI-5 na área cultural57: “O ato institucional em si não se direcionava

exclusivamente ao campo cultural (...) mas, desta vez, diferentemente de 1964, o setor

cultural foi profundamente afetado. Afinal, tratava-se de um momento em que a

55
O conceito de arte engajada aqui utilizado é mais amplo do que a definição estrita de arte de
propaganda ou arte de protesto em sentido estrito, procurando abarcar todo o tipo de manifestação
artístico-cultural de esquerda, empenhada em veicular críticas ao poder, críticas culturais, projetos
nacionais de reforma ou revolução, ou ainda, denunciar desigualdades socioeconômicas e políticas. Ver
NAPOLITANO, Marcos. “A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Revista
Temáticas, 37/38, Pós-Graduação em Sociologia, IFCH/Unicamp, 2011 (no prelo)
56
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959/69). São Paulo: Annablume / FAPESP, 2001; MICELI, Sergio. “O papel político dos meios de
comunicação de massa”. In: S. SOSNOWSKI, S. et all. Op.cit. e ORTIZ, Renato. A moderna tradição
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988
57
MENDES, Ricardo Antonio S. “Cultura e repressão nos tempos do AI-5” IN: MUNTEAL Fo., Oswaldo et
alli. (orgs). Tempo negro, temperatura sufocante. Rio de Janeiro, Editora PUC/Contraponto, 2008, p.259-
287
38

Doutrina de Segurança Nacional cristalizava-se como o principal instrumento

norteador das ações de Estado e, nesse sentido, caberia uma maior intervenção deste

nos diversos campos em que estava dividido o ‘poder nacional’, dentre estes o ‘poder

psicossocial’. Outro aspecto de suma importância dentro da Doutrina e que estava

profundamente relacionado com a produção cultural era a noção de integração

nacional, que viria, tanto através da difusão da cultura em âmbito nacional, quanto

pela via da eliminação dos sinais de conflito existentes dentro da sociedade brasileira

daquele momento”

Antes mesmo desta mudança de perspectiva dos militares em relação à vida

cultural, a arte engajada, entre 1967 e 1968, ganhou novo sentido político com a

ampliação da contestação ao regime militar no seio da classe média, a começar pelo

Movimento Estudantil, que desde 1966 se rearticulara, ocupando as ruas em grandes

protestos de massa. A luta armada foi outro componente contextual que deu um novo

sentido às manifestações culturais. Não apenas porque instaurou dentro da própria

vida cultural um intenso debate em torno do papel da arte e do artista de esquerda,

cujas bases simbólicas até então eram dadas pelas posições do PCB, avesso à

guerrilha, mas também porque potencializava o papel mobilizador da cultura de

esquerda em meio a um quadro de acirramento do conflito e de radicalização da

resistência política ao regime, dando um novo estatuto político aos seus mediadores,

artistas e intelectuais. Neste momento, não por acaso, a cultura de esquerda deixou

de ter o mesmo espaço que tivera antes de 1968. Neste sentido, ela não é uma

manifestação tardia e sem lastro histórico, ou mera catarse da derrota, esboçando-se

como faceta simbólica fundamental para uma nova etapa de resistência ao regime que

foi dissuadida prontamente pelas forças de segurança. Em menos de três anos a luta

armada estaria praticamente derrotada. Mas o rigoroso controle da cultura e dos

movimentos sociais de oposição permaneceria em vigor por um bom tempo.


39

Entretanto, nos momentos mais repressivos, a cultura de resistência, até

mesmo em seus formatos mais radicais, nunca desapareceu de cena, graças à

contradição fundamental que ela expressava. Em primeiro lugar, era parte da

expressão de setores médios da sociedade (ou, ao menos, dos seus filhos mais

rebeldes) que eram vistos como a principal base social do golpe militar e como

beneficiários das políticas econômicas do regime, sobretudo após a guinada

“desenvolvimentista” do governo Costa e Silva que marcou o início do “milagre

econômico”. Por outro lado, estava solidamente implantada no mercado de bens

simbólicos que crescia a olhos vistos. Com este tipo de enraizamento social,

alimentando-se das contradições da própria política de modernização capitalista do

regime militar58, a cultura de esquerda não poderia simplesmente desaparecer, mesmo

sob a força de um regime autoritário de direita.

Cerceadas de maneira cada vez mais truculenta no campo político, as

esquerdas passaram a ver na esfera cultural não apenas um exercício simbólico de

resistência, mas um campo de afirmação de suas estratégias políticas e valores

ideológicos. O debate interno da área cultural entre os adeptos do nacional-popular, do

frentismo e os adeptos da arte de guerrilha ou da contracultura, para citar um exemplo

marcante de 1968, era sintoma deste papel da cultura não apenas como resistência

simbólica, mas como expressão político-ideológica do debate interno das oposições e

da busca de uma identidade política. No campo estritamente artístico-cultural, salvo a

condenação da censura, não havia propriamente uma “bandeira universal” a fazer

convergir plenamente a “diversidade ideológica” dos vários grupos que se opunham ao

autoritarismo. Se entre 1964 e 1967, a forte presença do PCB no meio cultural

conseguiu aplacar a violência dos debates, a partir de 1968, os impasses em torno da

linha justa de resistência ao regime se aprofundaram: para quem direcionar as obras

de arte? Como se relacionar com o mercado? Qual era o público ideal das

58
ORTIZ.R.Op.cit.
40

mensagens da arte engajada? A arte deveria se comunicar através de uma linguagem

realista, ou chocar, através de uma ruptura formal com as convenções estéticas? Qual

o lugar do nacionalismo na crítica ao regime?

Estas foram as questões centrais que marcariam a arte de resistência no

Brasil, até o final dos anos 1970.


41

CAPITULO 2

A GÊNESE DA RESISTENCIA CULTURAL

Depois do golpe civil-militar de 1964, as respostas do “setor cultural” da

oposição ao novo regime precederam as ações estritamente políticas. Diga-se de

passagem, a perplexidade foi causada menos pela surpresa diante do golpe militar, há

muito esperado pelo governo Goulart e seus simpatizantes, e mais pela derrota sem

resistência, materializada na incapacidade de mobilização de massas por parte das

lideranças políticas institucionais e dos partidos que estavam, de uma forma ou de

outra, comprometidos com as Reformas de Base. Ainda existem dúvidas se o famoso

“dispositivo militar” não foi acionado de maneira contundente pelo Presidente acuado

ou se, na hora do combate, a lógica corporativa das Forças Armadas prevaleceu sobre

as diferenças ideológicas. A hesitação da esquerda nas primeiras horas do golpe foi

fatal para o governo Jango, permitindo uma articulação eficaz, ainda que errática, por

parte dos golpistas. Tampouco as massas foram mobilizadas, em que pesem os

esforços da CGT e da UNE em decretar uma greve geral em apoio ao governo em

vias de ser deposto. Ao contrário, foram os movimentos massivos de direita, seja a

classe média ou o lumpensinato, assanhadas desde a procissão cívica de 19 de

março em São Paulo, que saíram às ruas. O mundo ficou de cabeça para baixo,

repentinamente, com as esquerdas e os progressistas perdendo a direção do Estado e

a batalha das ruas59.

59
Para uma visão geral do golpe militar de 1964, seus eventos e debates historiográficos em torno do
tema, ver FICO, C. Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de
Janeiro, Record, 2004. Desde já, assumo minha posição neste debate: 1) o golpe militar de 1964 foi
produto da articulação entre setores liberais, tecnoburocratas civis e militares autoritários contra a agenda
reformista proposta por João Goulart (independente dessa agenda ter consistência ideológica, programa
político e plano de ação efetivos); 2) A partir de 1965, com o AI-2, os setores liberais começam a se
afastar de maneira errática mas constante, do núcleo central do poder político. A partir daí, o que era um
“golpe civil-militar” começa a se transformar, efetivamente, em um “regime mlitar” 3) A construção do
autoritarismo não foi produto dos embates entre a “linha dura” e os “liberais” no interior das FFAA. Nestas,
todos eram, em princípio, adeptos da tutela autoritária sobre o corpo político e social da nação, e o que
dividia as correntes militares era o uso e o papel político da repressão legal e o grau de violência policial
direta neste processo; 4) O regime militar pautou-se pelo princípio da “ditadura republicana” de matriz
42

O impacto do golpe militar fez levantar uma questão crucial que abalava o eixo

do pensamento da esquerda da época: como um governo que está na “direção certa”

da história, propondo reformas que beneficiariam o conjunto dos trabalhadores, pode

ser deposto tão facilmente? Uma das respostas possíveis, do ponto de vista da

ideologia da esquerda, era averiguar o suposto descompasso entre a “marcha da

história” e a consciência “popular”. Em outras palavras, a percepção de que o trem da

história andou para a estação prevista, mas os passageiros esqueceram de embarcar

parecia ter tomado conta de boa parte deste segmento político.

A questão da consciência política envolvia diretamente as tarefas culturais e,

neste sentido, a responsabilidade em repensá-la recaiu sobre os artistas e intelectuais.

Esta perplexidade, compartilhada com todos os adeptos do governo deposto, somava-

se à frustração dos artistas e intelectuais engajados na “revolução brasileira”, por

terem falhado na tarefa específica de formar uma consciência social que fortalecesse

a luta pelas Reformas propostas pelo governo Goulart.

Havia também outra faceta da derrota de 1964: a frustração, somada à

sensação de isolamento político que se abateu sobre os setores nacionalistas, acabou

por estimular um processo de autonomia dos intelectuais e artistas, diante das

estruturas partidárias fragilizadas60. O vigor do debate intelectual entre 1964 e 1968 foi

potencializado por esta ânsia de “autonomia” e busca de novas perspectivas críticas

para entender o novo contexto político-ideológico afirmando ao mesmo tempo, o

espaço público ameaçado pelo autoritarismo. Sem se prender às tarefas políticas

puramente instrumentais, os artistas e intelectuais se lançaram a um debate mais

aberto, mesmo que ainda marcado por paradigmas teóricos bastante rígidos,

informados, em linhas gerais, pelo nacionalismo de esquerda. Se nos dois anos que

se seguiram ao golpe a perspectiva nacional-popular era hegemônica como lastro

positivista, impessoal, tecnocrática, cívico-nacionalista, desmobilizadora das massas, que tentou conciliar,
modernização capitalista agressiva com uma moderada política social compensatória, sob uma gestão
tecnocrática apoiada em grupos de pressão da elite econômica nacional e transnacional.
60
PECAUT, Daniel. Intelectuais e política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo, Ática, 1990, p.202
43

criativo da arte de esquerda, o debate, entre 1967 e 1968, acabou por conduzir à sua

revisão crítica. Ainda assim, o nacional popular estaria presente ao longo dos anos

1970, como um mote para o frentismo cultural de amplos setores da esquerda.

O golpe exigiu a inversão de uma equação que pautava a perspectiva política

da arte de esquerda, questionando-se até que ponto a “consciência social” deveria


61
estar à reboque do “ser social”, como parecia ser o caso até 1964 . Após o golpe, a

“consciência social” se transformava em prioridade na luta contra o regime, na medida

em que o fim do nacionalismo econômico e o autoritarismo político-institucional

colocavam em cheque as posições tradicionais da esquerda. Obviamente, esta

percepção não foi linear nem homogênea entre os artistas engajados. O que importa

destacar é que a cultura, particularmente as artes de espetáculo (cinema, teatro e

música), passou a ser supervalorizada, inclusive porque era, bem ou mal, o único

espaço de atuação da esquerda derrotada. A cultura, naquele contexto, viveu uma

situação paradoxal: por um lado, serviu para a afirmação de um frágil espaço público.

Por outro, serviu como matéria bruta para a elaboração de produtos culturais

sofisticados, num momento de reestruturação da indústria da cultura no Brasil,

processo particularmente importante na área da música popular.

Se o regime militar não impediu, de imediato, a criação artística e a expressão

de idéias de esquerda, foi criterioso em cortar os elos do artista/intelectual deste

segmento ideológico com a maioria da população - o “povo” tão almejado pela arte

engajada. Como as organizações e espaços culturais foram fechados e colocados na

ilegalidade (caso do CPC/UNE), o espaço de expressão do artista era canalizado cada

vez mais pelo e para o mercado de bens simbólicos. Aliás, o processo de incorporação

do artista engajado pelo mercado liga-se a uma tese que tem pautado as análises

sobre a cultura dos primeiros quatro anos da ditadura, afirmando que o pós-golpe foi

61
Ver Anteprojeto do Manifesto do CPC. IN: HOLLANDA, Heloisa B. Impressões de Viagem: CPC,
vanguarda e desbunde. São Paulo, Brasiliense, 1981 (2ªed), p. 121-144
44

marcado por um círculo fechado e estéril de comunicação62. Neste, o artista engajado,

isolado das massas e do circuito artístico não-mercantilizado (sindicatos, entidades

estudantis, movimentos populares), passou a comunicar-se consigo mesmo e com sua

classe, a classe média consumidora de cultura. Se em linhas gerais, essa tese não é

incorreta, alguns dos seus pontos devem ser repensados.

A historiografia e a memória social consagraram o período inicial da ditadura,

entre 1964 e 1968, como um período de relativa liberdade de expressão para a

oposição, visão que tem implicações diretas na história da cultura. A relativa liberdade

de expressão concedida pelo regime militar aos artistas e intelectuais de esquerda

entre 1964 e 1968, até hoje causa certa perplexidade, fazendo crer que estávamos

diante de uma “ditabranda” e não de uma “ditadura”. Tal concessão, na perspectiva

deste trabalho, era resultado de um tipo de autoritarismo mais preocupado com duas

questões63. Em primeiro lugar, perseguir os quadros do regime deposto, expurgando

as políticas de Estado de qualquer traço reformista. Em segundo lugar, mas não

menos importante, quebrar os elos entre os ativistas políticos e culturais de esquerda

(oriundos da classe média) e os movimentos populares, operários e camponeses.

Estes movimentos, diga-se, não precisaram esperar o AI-5 para conhecer a face mais

dura do regime, vendo seus líderes presos e torturados e seus espaços de

organização cerceados desde o primeiro dia do novo regime. A cultura de esquerda,

produzida e consumida pela “classe média intelectualizada”64, poderia se manifestar

62
Dois textos são particularmente importantes na disseminação desta tese: o já citado artigo de Roberto
Schwarz. (Cultura e política....) e o de H.B.Hollanda. Impressões de Viagem. Esta última incorpora
criticamente a tese básica lançada por Schwarz, mas mesmo assim se utiliza da imagem do “circuito
fechado” de comunicação para explicar o caminho histórico da literatura que vai do engajamento à
contracultura.
63
Sobre a ditadura em sua fase inicial nos apoiamos nas análises de MARTINS Filho, João R. O palácio
e a caserna. São Carlos, Editora UFSCAR, 1994.
64
Do ponto de vista sociológico, é sempre arriscado definir as “classes médias”, mas alguma definição é
fundamental para ir além da fantasmagoria sociológica que sempre assalta os textos sobre a história do
período. Em linhas gerais, podemos defini-la como o “conjunto dos trabalhadores não-manuais”,
composto de vários estratos de acordo com os ingressos financeiros, lugar na estrutura de produção e
formação escolar. Historicamente, no caso brasileiro, o núcleo identitário da classe média foi composto
pela “pequena burguesia” composta por profissionais liberais, sendo acrescida ao longo do tempo por
quadros gerenciais do setor industrial e funcionários públicos de todos os tipos. Nos anos 1970, os
assalariados do setor gerencial e de serviços privados e públicos (white collar) ganharam importância
neste segmento, fazendo com que boa parte da classe média fosse composta por pequenos assalariados,
frequentemente recrutados entre jovens estudantes servindo de base social para os sindicatos que
45

desde que se limitasse aos espaços autorizados, quase sempre circuitos

mercantilizados, e moderasse seu conteúdo crítico, diluindo-o em imagens metafóricas

e generalizantes. Mesmo com esta relativa liberdade, é um mito dizer que não houve

censura até o AI-5. No teatro e no cinema, sobretudo, a censura entre 1964 e 1968 foi

bem atuante65. Entretanto, nada próximo ao que ocorreria depois do fatídico 13 de

dezembro de 1968.

Nos quatro primeiros anos do regime percebe-se a paradoxal constituição de

um espaço público, na medida em que os intelectuais e artistas de esquerda perderam

as ilusões do período anterior ao golpe. Esta expectativa em relação ao Estado, muito

forte na tradição política e intelectual brasileira, transformava-o em “sujeito da história”,

promotor das reformas e da redenção nacional. Ao mesmo tempo ainda não tinham

sido tragados pelo mercado, ainda que este ganhasse importância crescente no

período pós-1964, alimentando-se, paradoxalmente, da própria arte e cultura de

esquerda, sobretudo na área de música popular e do mercado editorial de livros66. As

revistas político-culturais, a começar pela Revista de Civilização Brasileira, foram

expressões privilegiadas deste espaço público, entendido na sua definição original,

representavam estas categorias. Boa parte das classes médias no Brasil, nos anos 1970, afastou-se da
velha tradição liberal (muito próxima dos valores oligárquicos), na direção de um esquerdismo difuso e
anti-governamental. Neste sentido é que podemos compreender porque a classe média, como um todo,
foi uma protagonista importante da oposição e da resistência ao regime, seja na perspectiva liberal, seja
na perspectiva da esquerda. Sem falar que a maior parte dos intelectuais militantes do Partido Comunista,
por exemplo, estavam ligados a este setor. Ver SAES, Décio. Classe Média e sistema político no Brasil.
São Paulo, TA Queiroz Editor, 1985 (ver, sobretudo, o “posfácio” de 1979). Sobre a relação das classes
médias com o regime militar, ver também: FICO, Carlos. “La classe média bresilliène face au régime
militaire. Du soutien à la désaffection”. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire. 105, janvier-mars, 2010, p.155-
168.
65
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985).
Tese de Doutorado em História, UFRJ, 2008; SIMÕES, Inimá F. Roteiro da Intolerância: a censura
cinematográfica no Brasil. São Paulo, Ed. Senac, 1999; MARTINS, William de Souza Nunes. Produzindo
no escuro: políticas para a indústria cinematográfica brasileira e o papel da censura (1964-1988). Tese
Doutorado em História Social, UFRJ, 2009.
66
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção.; CZAJKA, Rodrigo. Praticando delitos, formando opinião:
Intelectuais, comunismo e repressão (1958-1968). Tese de Doutorado em Sociologia, Unicamp, 2009 ;
MAUES, Flamarion. Editoras de oposição no período de Abertura (1974-1985): Negócio e política.
Dissertação de Mestrado em História Econômica, FFLCH/USP, 2006
46

como espaço de troca de idéias, livre e eqüidistante do Estado (Príncipe) e do

Mercado (Mecenas)67.

Assim, entre 1964 e 1968, a cultura foi a um só tempo um campo de debate

interno das esquerdas e uma forma de afirmação ideológica diante das estratégias

derrotadas pela direita. Ao mesmo tempo, foi o locus de uma resistência sublimada, no

sentido forte do termo, ou seja, compensação e catarse de um processo interrompido

quando parecia chegar-se ao clímax da história.

Antonio Callado, em Quarup, livro paradigmático do período lançado em 1967,

resumiu em uma curta e sintética cena, os sonhos desfeitos e a impotência da

esquerda após o golpe. O personagem central, Padre Nando, detido pelos golpistas,

ouve as batidas em código de Januário, líder camponês preso em outra cela contígua.

Ainda perplexo e desinformado sobre o destino do Presidente e sobre a tão prometida

resistência popular, Padre Nando “conversa” em código Morse com o companheiro

preso: “Era sem dúvida, Januário criando um código de batidas na parede da cela.

Chegariam um dia a conversar como dois operadores do sistema Morse? Pergunta:

“Que-hou-ve-com-Jango?. Resposta: “Nas-co-xas-nas-co-xas”. Pergunta: “E-a-pá-tria-

que-faz?. Resposta: “To-ca-si-ri-ri-ca”.

A revolução abortada pelas lideranças, metaforizada pelo gozo apressado e

amargo - “nas coxas” - completa-se pela imagem da Pátria, mulher amada pelo

nacionalismo de esquerda, abandonada no momento crucial, buscando masturbar-se

para compensar a frustração da comunhão interrompida. O trecho revela a sensação

de esquizofrenia e de frustração experimentada pela étrange défaite da esquerda

nacionalista, que a partir de então viveria uma crise incontornável. Cabe perguntar,

67
Lembremos que a dimensão do mercado é constitutiva do “espaço público” tal como proposto por
Habermas. É o mercado (ainda que restrito, et pour cause) que permite a formação de uma comunidade
de autores-leitores livres do Estado e da Igreja. O problema se dá quando este mercado adquire uma
escala tal, massiva e industrial, que a subjetividade que nele se expressava fica sob risco de diluição.
Assim, em sociedades com alta industrialização da cultura, o princípio de liberdade que demarca o
espaço público entra em choque com a racionalidade industrializada da cultura. O problema teórico que
agora se coloca é avaliar o quanto há de espaço público, nos termos aqui colocados, sob a cultura
industrializada. Ver HABERMAS, J. L´Espace public.. Paris, Payot, 1978.
47

dialogando com a cena: em que pensava a Mãe Pátria abandonada, durante seus

delírios onanistas? Como sublimar a derrota política? Seria a cultura a melhor

expressão desta fantasia substitutiva da luta política perdida? O gozo estético assumia

o lugar do gozo político, ao menos momentaneamente?

A historiografia consagrou a imagem da cultura daqueles primeiros anos do

regime, como catarse e expressão tardia e inócua de valores derrotados em 1964, até

que o ano de 1968 acirrasse os termos do debate e apontasse outros caminhos para a

“resistência cultural”68. Entretanto, ainda não houve um exame mais detalhado dos

primeiros atores e discursos que construíram e disseminaram a idéia de resistência

cultural como sinônimo de resistência tout court ao regime militar. Em outras palavras,

a gênese do próprio conceito de “resistência cultural” é pouco estudada. Levar em

conta o momento fundacional deste campo de ação não significa buscar suas origens

para entender sua trajetória ulterior. Assim, o conceito historiográfico de gênese, aqui

utilizado, não se sobrepõe ao aspecto descontínuo, plural e indeterminado da análise

da experiência histórica da resistência cultural que marca a perspectiva desse

trabalho. Trata-se de analisar sua dinâmica de continuidades e rupturas, a um só

tempo, demarcando os valores, dilemas e debates que lhe deram lastro histórico.

As primeiras “respostas culturais” ao regime militar são plurais e contraditórias,

ao contrário do que afirma a visão unidimensional da resistência. Ao mesmo tempo,

foram além da mera catarse ou expressão fora de tempo e lugar. Temas como

“derrota”, “guerrilha”, “crise do intelectual”, já aparecem nas principais obras do

período, antes da radicalização proposta por Glauber Rocha, pelo Oficina e pelos

Tropicalistas, a partir de 1967. Além disso, a questão cultural foi o ponto de

convergência de críticas ao novo regime, em um momento histórico no qual as

avaliações propriamente políticas sobre o que significara 1964 ainda não estavam

muito bem delimitadas e estabelecidas, tanto por parte dos liberais, quanto por parte

68
Ver, por exemplo, os artigos produzidos à época, escritos por SCHWARZ, R. Op.cit e GALVÃO,
Walnice. “MMPB: uma análise ideológica” IN: Sacos de Gatos e outros ensaios. Duas Cidades, 1988
48

das esquerdas. Em outras palavras, a questão cultural foi o mote para que a crítica

política pudesse se reconfigurar e as alianças em torno da resistência ao regime

pudessem se recompor.

A cultura como campo da resistência.

Ainda que o espetáculo Opinião lançado em dezembro de 1964 (analisado

mais adiante) tenha sido a primeira resposta cultural da esquerda ao golpe, outras

vozes, não ligadas ao Partido Comunista já haviam sublinhado a questão cultural

como eixo da oposição ao novo contexto autoritário. Neste sentido, destaco dois

autores: Alceu Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony. Tentarei demonstrar como, em

linhas gerais, os artistas e intelectuais ligados ao PCB reiteraram algumas diretrizes da

resistência cultural emprestadas destes autores, como tática de recompor a frente

político-cultural de oposição ao regime.

O PCB, superada a fase do “realismo socialista”69, não tinha propriamente uma

política cultural centralizada, pautando-se pelo aproveitamento dos intelectuais

“naquilo em que eles eram especialistas,o trabalho intelectual desenvolvido com

autonomia”70. O marco inicial desta nova relação do PCB com os intelectuais foi a

revista Estudos Sociais, dirigida por Astrogildo Pereira71. Obviamente, em que pese

este novo contexto partidário, a atuação dos militantes culturais comunistas não era

solta e desconexa, havendo um esforço em expressar-se dentro de alguns princípios e

heranças culturais chancelados nos debates abrigados pelas instâncias partidárias ou

animados por elas. Entretanto, isso estava muito longe de um “dirigismo” cultural, o

69
Sobre o realismo socialista no Brasil ver MORAES, Denis. O imaginário vigiado. A imprensa comunista
e a recepção do realismo socialista no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. , 1994. Sobre os debates
que instituíram o conceito, ver ROBIN, Règine. Realisme Socialiste: une estètique impossible. Paris,
Payot, 1986
70
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro. Op.cit, p. 68
71
ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um marxismo criador. Dissertação de
Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2003; Sobre o papel de Astrojildo Pereira na política cultural do PCB
ver FEIJÓ, Martim C. O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e a formulação de uma política cultural.
São Paulo, Boitempo, 2001
49

que permitiu aos intelectuais e artistas comunistas desempenharem um papel muito

importante na articulação e na mediação da “resistência intelectual” contra o regime, a

primeira expressão da “resistência cultural”. Sobre a resistência intelectual, Rodrigo

Czajka destaca a ausência de uma instância organizativa. Diz o autor72: “não era uma

ação previamente determinada e colocada em prática pela intelectualidade filiada a um

‘projeto de resistência. Era de certo modo uma preleção ou, como denominou Walnice

Galvão, um ensaio geral de socialização da cultura em que intelectuais e artistas

foram concebidos como agentes do progresso social”.

A visão ampla e ecumênica do intelectual anti-autoritário como ator privilegiado

da resistência ao regime militar recém implantado, permitiu que comunistas e liberais

se unissem na defesa das “liberdades democráticas”, antes mesmo do Partido

oficializar sua linha frentista e civilista de resistência, em maio de 1965.

Em verdade, foi um católico liberal, indignado com as perseguições no meio

universitário – como as demissões de Celso Furtado, Anisio Teixeira e Josué de

Castro dos seus postos públicos - quem forjou a senha para a resistência intelectual,

ao cunhar a expressão “terrorismo cultural” para qualificar as perseguições do regime.

Alceu Amoroso Lima, ex-Tristão de Athayde, no começo dos anos 1960 já não era

mais o intelectual católico, erudito e reacionário dos anos 1920. Convertido ao

liberalismo, produziu reflexões bastante lúcidas sobre o processo de radicalização

política em curso nos anos 196073. Conforme Rodrigo Czajka: “A crônica ‘terrorismo

cultural’ serviu de elo de ligação entre diversas camadas intelectuais com o meio

acadêmico e universitário, que se via em processo de degradação pela ação dos

militares”74.

Ao disseminar a expressão “terrorismo cultural”, Alceu Amoroso Lima captou

um sentimento coletivo de importantes setores da classe média, sintetizando a


72
CZAJKA, R. Praticando delitos, Formando opinião,. Op.cit.p. 204. O autor refere-se ao artigo de
Walnice GALVÃO “As falas, os silêncios” IN: SOSNOWSKI, Saul. Brasil: memória em transito. São Paulo,
Edusp, 1994, 185-196
73
LIMA, Alceu A. Revolução, reação ou reforma. Petrópolis, Ed. Vozes, 1999, (2ªed.). Original publicado
em 1964.
74
CZAJKA, R. Op.cit. p.217
50

denuncia dos abusos e arbitrariedades do novo regime sob uma perspectiva

insuspeita, pois seu anticomunismo era notório. Em tom tipicamente liberal e afeito à

tradição da cordialidade, Alceu apontava que75:

“O terrorismo também é antibrasileiro e por isso mesmo a forma que vem

assumindo entre nós ainda assume os aspectos mais suaves e indiretos, como por

exemplo o terrorismo cultural, a guerra às idéias (...) Agora, quando pretendemos ter

feito uma revolução ‘democrática’, começam logo com os processos mais

antidemocráticos, de cassar mandatos e suprimir direitos políticos, demitir professores

e juízes, prender estudantes, jornalistas e intelectuais em geral, segundo a tática

primária de todas as revoluções que julgam domar pela força o poder das convicções

e a marcha das idéias. Os nossos jornalistas, professores, estudantes, sacerdores,

intelectuais, filósofos, ainda presos entre nós, estão sendo vítimas deste terrorismo

cultural, tanto mais abominável quanto mais disfarçado. E tão profundamente

antibrasileiro!”.

Lima ainda operava com imagens típicas da ideologia de direita – “caráter”

pacífico do brasileiro, “aversão” à violência política – para justamente criticar um

governo de direita e demonstrar que seus atos arbitrários eram “antibrasileiros”, pois

movidos pela recusa da conciliação e do diálogo. Mas há outro aspecto: a perseguição

àqueles que tinham idéias contrárias ao regime, fazendo com que atores que deveriam

ajudar a construir a nacionalidade - estudantes, jornalistas, filósofos, sacerdotes – dela

se afastassem. Perseguições feitas por um governo presidido pelo general Humberto

de Alencar Castelo Branco que, justamente, se orgulhava de ser um “intelectual”

fardado, amigo de escritores, cuja imagem pública tentava afirmar-se como um

“liberal” da caserna. Lembremos que em seu discurso de posse disse que o antídoto

para um governo totalitário não seria uma ditadura fascista e de direita. Portanto, as

tergiversações ideológicas dos primeiros meses do regime davam margem a este tipo

de cobrança, que soariam ingênuas diante de uma ditadura. Afinal, o regime se

75
Idem, Ib.p. 231-232
51

arvorava em ser “democrático”, construído por uma “revolução” que se queria

“preventiva” no combate ao marxismo. Acrescente-se o fato de Alceu Amoroso Lima

ser insuspeito, à medida que não nutria a mínima simpatia pela esquerda marxista e

fora um baluarte do conservadorismo católico.

Outro liberal, mais à esquerda e heterodoxo, que produziu um corpo importante

de críticas ao regime, foi Carlos Heitor Cony. Diga-se, o liberalismo de Cony mesclava-

se com outras influências filosóficas e ideológicas, como o existencialismo, tornando-o

mais complexo, contraditório e, por suposto, mais progressista do que a média dos

liberais brasileiros. A balbúrdia festiva dos quartéis e o aplauso geral da classe média

aos militares ainda estavam vigorosos, quando o escritor lançou um conjunto de

crônicas, posteriormente publicadas em livro, que se constituíram em grande sucesso

editorial76. Conforme Czajka, trata-se de um dos primeiros exemplos de produção

simbólica a partir da ética da resistência, constituinte do mercado editorial77: “Sua obra

referenciava tal temática [a resistência ] não porque seu autor fosse necessariamente

esquerdista, mas porque Cony dirigia-se a um público que demandava esse

posicionamento do escritor”.

As crônicas de Cony foram publicadas entre abril e dezembro de 1964, no

jornal carioca Correio da Manhã, servindo não apenas para fixar o seu autor nos anais

da história da resistência ao regime, mas também para consolidar a imagem de um

jornalismo crítico, liberal e independente, que acabou por se consagrar posteriormente

na memória social, em que pese o apoio geral da imprensa ao golpe. Lembremos que

o mesmo Correio da Manhã havia veiculado dois editoriais violentíssimos contra o

agonizante Governo João Goulart, os famosos “Basta!” e Fora!”, escritos pela equipe

de editores da qual fazia parte o mesmo Carlos Heitor Cony, e que serviram de senha

e legitimação para o levante militar. Em certo sentido, eles foram o ponto culminante

76
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003 (publicado originalmente em 1964)
77
CZAJKA, R. Op.cit. p. 214.
52

de uma conspiração da qual a imprensa não foi apenas a expressão, mas uma das

peças-chave78.

Cony não escondia sua antipatia política pelo governo deposto. Aliado a este

fato, sua independência partidária e seu individualismo crítico, exercitado com uma

corajosa virulência, ajudaram a disseminar e legitimar as duras críticas que fazia ao

novo regime. Em uma de suas primeiras crônicas, dizia: “Não pedirei licença na praça

pública ou na Rua da Relação para pensar. Nem muito menos me orientarei pelos

pronunciamentos dos líderes civis ou incivis do movimento vitorioso”79.

Em outra crônica, reitera sua posição independente: “Firmo minha posição:

votei em branco no plebiscito sobre o parlamentarismo. Não poderia votar contra a

investidura de um vice-presidente, eleito em regime presidencialista, no mandato que

o povo lhe confiara (...) Mas não poderia votar a favor do Sr. João Goulart, homem

completamente despreparado para qualquer cargo público, fraco, pusilânime e,

sobretudo, passando os extensos limites do analfabetismo”80 . Na mesma crônica

lança um apelo, em princípio estranho para alguém que se recusara a assinar o

“Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais” no ano anterior81: “Apelo aos meus colegas

de profissão, os que escrevem, os que exercem atividade intelectual, os que ensinam

e os que aprendem. Não é hora para o medo, marquemos cada qual nossa posição”82.

Imagens semelhantes se sucederiam em suas crônicas, que sempre faziam

apelos à liberdade de pensamento e opinião, bem como os intelectuais como categoria

social, consagrando-os, simbolicamente, como os personagens principais da

resistência. Neste sentido, ajudaram a consolidar o campo da cultura como o locus

das críticas ao regime. Após a promulgação do Ato Institucional, em 9 de abril de

1964, Cony denunciava que o regime preparava outro “ato punitivo dos delitos de

78
CARVALHO, Aloysio Castelo de. Imprensa e Opinião Pública: os Jornais Cariocas da Rede da
Democracia na Queda do Governo Goulart (1961-1964). Relatório de Pós-doutorado, Universidade de
São Paulo, 2010
79
CONY, C. H.“O sangue e a palhaçada”, 7/4/64 IN: O ato e o fato. Op.cit. p. 22
80
CONY, C.H. “O Medo e a reponsabilidade”, 9/4/64 IN: Op.cit. p.23
81
CZAJKA, R. “Redesenhando ideologias: cultura e política em tempos de golpe”. História. Questões e
Debates, Curitiba, v. 40, p. 37-58, 2004.
82
CONY, C.H. Op.cit. p.25
53

opinião” (p.32), reiterando o papel dos intelectuais: “É através da palavra, e

pronunciando-a clara e corajosamente, sem medo, que podemos unir contra todos os

animais que para sobreviverem exalam mau cheiro, mudam de feitio e cor, usam

chifres e patas”83 Na crônica de 21 de abril, afirmava as inquietações intelectuais como

expressão da insatisfação de um grupo social maior, afirmando que o “povo” apoiou a

queda de Goulart [sic!], mas não apóia o “ato, os expurgos, as delações, a

perseguição”, qualificando os delatores como “histéricos e analfabetos”84.

Em maio de 1964, Cony escreveu em uma de suas crônicas mais famosas:

“Acredito que é chegada a hora dos intelectuais tomarem posição em face do regime

opressor que se instalou no País”. Reafirmando os intelectuais como “consciência da

sociedade”, Cony escreveu: “Se diante de crimes contra a pessoa humana e a cultura,

os intelectuais não se moverem um dedo, estarão abdicando de sua

responsabilidade”. Na mesma linha de crítica de Alceu Amoroso Lima, denunciava a

perseguição a sacerdotes, professores, estudantes, jornalistas, artistas, economistas,

e reafirma: “No campo estritamente cultural, implantou-se o Terror”85.

As marcantes crônicas de Carlos Heitor Cony, cujo ciclo se encerrou em

dezembro de 1964, lhe renderam uma posição destacada no espaço público que se

afirmava, protagonizada por intelectuais e artistas que assumiram a tarefa de criticar o

novo regime. Mais do que isso, cristalizaram a imagem que resistir ao regime militar e

seus atos arbitrários era um imperativo ético e um exercício de livre pensamento

crítico, para além de qualquer partidarismo ou imposição ideológica. Essa definição do

espaço cultural e seu papel histórico se plasmaram na própria natureza da “resistência

cultural” como categoria histórica. Aqui, não se trata de analisar as posições

individuais de Cony, muito menos suas estratégias como ator social para se afirmar no

campo literário em mutação, abordagens que poderiam até ser instigantes. Mas sim,

de entender suas crônicas, até pelo impacto que tiveram à época, como a

83
Idem,.p.41
84
Idem, p.43
85
CONY, C.H. “A hora dos intelectuais” (23/5/1964)”. IN: CONY, C.H. Op.cit. p.89-90
54

materialização de um conjunto de valores pelos quais se afirmaria a resistência

cultural e o papel dos artistas e intelectuais no novo contexto86.

Tanto Alceu Amoroso Lima, com seu liberalismo baseado numa ética de

responsabilidades, quanto Carlos Heitor Cony em seu existencialismo individualista e

libertário, lançaram bases simbólicas importantes que perdurariam na memória da

resistência cultural contra o regime: a) a ditadura era contra a cultura; b) a ditadura era

ilegítima, sobretudo porque tentava proibir os atos de pensamento; c) a ditadura

perseguia quem deveria ajudar a reconstruir o Brasil, ou seja, os “intelectuais”, até

então sócios do Estado nos projetos políticos nacionais87; d) A ditadura, ao implantar o

“terror cultural”, erodia sua base de sustentação na classe média que, grosso modo,

havia prestigiado o golpe.

A imagem do “terror cultural” como elemento de rearticulação da oposição,

ganhou força e foi reiterada no manifesto de 14 de março de 1965, publicado no

Correio da Manhã, que pode ser visto como uma verdadeira plataforma da oposição

que se rearticulava, tendo como eixo a questão das “liberdades democráticas”88, o que

não deixa de ser supreendente para um dos jornais mais combativos a favor do golpe

dado havia um ano. O documento ainda se posicionava:

- Contra a restrição dos direitos individuais

- Contra a delação, violência e tortura

- Contra o obscurantismo e o ‘terror cultural’

- Pelas garantias irrestritas ao direito de opinião, associação, reunião e propaganda

- Pela libertação dos presos políticos

- Pela suspensão da intervenção em sindicatos e diretórios estudantis.

86
O apelo aos “intelectuais” e sua defesa como agentes privilegiados da oposição, deve ser objeto de
reflexão historiográfica, pois corre-se o risco de reforçar a idéia de que o “intelectual” (e o artista)
constituía um grupo homogêneo e fundamentalmente opositor. Os dissensos internos dos vários extratos
de trabalhadores intelectuais ainda precisa ser mapeado e analisado com mais profundidade. Ver, por
exemplo, SANFELICE, José Luis. “O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais”. Caderno CEDES,
Campinas, 28/76, p.357-378. Set/dez/ 2008
87
Sobre a relação dos intelectuais com o Estado ver PECAUT, Daniel. Op.cit.; MOTA, Carlos Guilherme.
Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo, Ática, 1990.
88
“Manifesto nacional pela democracia e o desenvolvimento” (Manifesto à nação defende a liberdade)
Correio da Manhã, 14/3/1965
55

- Pelo respeito à liberdade de cátedra e autonomia universitária.

O manifesto era apoiado por 107 assinaturas de intelectuais oriundos de

diversas correntes ideológicas, reunindo liberais como Carlos H.Cony Alceu A.Lima,

Barbosa Lima Sobrinho, Otto Maria Carpeaux, Hermano Alves; trotskistas como Paulo

Francis e Mário Pedrosa; brizolistas como Antonio Callado e Flávio Tavares;

comunistas como Dias Gomes, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos

Santos, Oscar Niemeyer e Sergio Cabral. O leque diverso de apoiadores é prova da

capacidade aglutinadora da resistência cultural, argamassa de uma aliança política

sempre difícil de obter.

Até o moderado e ambíguo “Manifesto da União Brasileira dos Escritores” UBE

atacava o terrorismo cultural sem endossar posições de esquerda.89. Conforme o

documento, a entidade “não entra na apreciação do mérito dos fatos políticos

ocorridos, mas acredita na possibilidade de ver a realização de seus propósitos sem

encarceramento nem perseguição de ideias”.

O exemplo mais paradoxal de incorporação do termo, que permite avaliar sua

disseminação ampla e ecumênica, foi dado pelo próprio Marechal Castelo Branco. Ao

saber da prisão de Enio Silveira, editor da Revista de Civilização Brasileira, para uma

mera coleta de depoimento, o Presidente-ditador teria reagido por escrito, em um

bilhete endereçado ao general Geisel: “É mesmo o terror cultural”90.

Outro texto importante que sintetizou o clima de perseguição ao meio cultural

nos primeiros tempos do regime foi o artigo de Márcio Moreira Alves, que logo depois

seria eleito deputado federal e ficaria notabilizado em 1968 como pivô da crise política

que culminaria no AI-5. O artigo era intitulado “Delito de opinião” e foi publicado no

Correio da Manhã, 24/6/1964. Ele começa fazendo referência ao apelo do general

Golbery do Couto e Silva, ideólogo do regime militar, que afirmara “a revolução não

pode se alienar da intelligentzia”. Alves prossegue: “E os demais revolucionários

89
Correio da Manhã, 24/10/64, p.14 apud CZAJKA, R. Praticando delitos..... p. 222
90
apud GASPARI, Elio. Ditadura envergonhada. São Paulo, Cia das Letras, 2002, p.231
56

pensantes, civis e militares, indagam com ingênua perplexidade, a razão da

generalizada condenação que sofrem. A resposta é simples: continua a imperar o

terror ideológico em todas as universidades do país (...) ninguém sofre de bom grado a

prepotência policialesca. Enquanto houver penas para delito de opinião, os que tem

opinião não podem apoiar o governo”.

A defesa da “liberdade de opinião” e a denúncia do “terror cultural” tinha a

vantagem de operarem num território até então considerado como convergente – a

“cultura” – vista como um valor em si e como instrumento da grandeza nacional.

Também tinha a vantagem de contornar a delicada questão da defesa do governo

deposto, tema que certamente dividiria a oposição ao regime que se forjava,

contornando também a defesa dos movimentos e organizações populares, que

certamente não contaria com a anuência dos liberais, tradicionalmente anti-populares

e marcados pelos valores oligárquicos. Assim, percebida como legítima e como

espaço de convergência de diferentes atores, ao se encaminharem para o campo da

oposição ao regime militar, a resistência cultural seria incorporada e reverberada por

outros grupos ideológicos, sobretudo pelos comunistas, em sua busca da “unidade das

oposições democráticas”. A cultura parecia o terreno menos perigoso para afirmar tal

estratégia de unidade.

Exemplo desta convergência pode ser visto no manifesto pela libertação do

editor da Revista Civilização Brasileira, Ênio Silveira, datado de 29 de maio de 1965 e

assinado por 1500 intelectuais e artistas. O manifesto sintetizava a defesa pela cultura

e pela liberdade de expressão tout court, sem referendar esta ou aquela ideologia: “Os

intelectuais e artistas brasileiros abaixo-assinados pedem a imediata libertação do

editor Ênio Silveira, prêso por delito de opinião. Não entramos no mérito das opiniões

políticas de Ênio Silveira, mas defendemos o seu direito de expressá-lo livremente,

direito garantido pela artigo n. 141, parágrafo oitavo da Constituição do País: “por

motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum

de seus direitos”.
57

No mesmo mês, Nelson Werneck Sodré, historiador e militar identificado com o

PCB, publicou um longo artigo91 no primeiro número da Revista Civilização Brasileira92

listando as violências contra a cultura, desde o golpe militar. Não por acaso, o artigo

intitulava-se “O terrorismo cultural”, demonstrando como a expressão se plasmara

como eixo da resistência, fazendo convergir liberais e comunistas. Neste texto, Sodré

reafirma os personagens da resistência cultural, apelando para a luta contra o regime

como uma defesa dos princípios gerais da liberdade de pensamento que ia além de

qualquer simpatia pelo projeto reformista ou pelo comunismo em si mesmo. Ajudando

a aparar as diferenças ideológicas de base, a defesa da cultura como campo

privilegiado de ação poderia ser a trilha para a unidade das oposições e para a

reconquista dos liberais desgarrados da via democrática, uma vez que foram

seduzidos pelo autoritarismo de crise que os levou a apoiar o liberticídio de março de

1964.

Sodré inicia o texto com rigor digno de historiador positivista: “não vamos aqui,

apresentar impressões pessoais, nem alinhar nossas idéias, mas descrever fatos,

comprovando-os pela citação sistemática da fonte”93. Afasta-se, sutilmente, das

posições defendidas por liberais, como Lima e Cony, ao redimensionar o papel dos

intelectuais, menos como expressões de valores individuais e mais como canais da

expressão das idéias e sentimentos difusos da coletividade: “Para os que pretendiam

acabar com a agitação, a solução parecia clara: amordaçar os agitadores. Essa foi a

crença ingênua que, fundada no medo, moveu os atentados cometidos contra a

cultura em nosso País, desde os idos de abril de 1964. Como a agitação continuou,

muitos dos simplistas a esta altura, terão verificado que a agitação não deriva de atos

91
SODRE, Nelson W. “O terrorismo cultural”. Revista Civilização Brasileira, 1, maio 1965, 239-297
92
A Revista Civilização Brasileira foi o principal periódico de debates intelectuais entre 1965 e 1968,
sendo uma das expressões mais vigorosas da esfera pública que se formara após o golpe. Sobre a
revista ver CZAJKA, R. Páginas de resistência: Intelectuais e cultura na Revista Civilização Brasileira
(1965-1968). Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2005 e NEVES, Ozias Paes. "Revista
Civilização Brasileira": uma cultura de esquerda (1965-1968). Dissertação de Mestrado em História,
Universidade Federal do Paraná, 2006
93
SODRE, N.W. Op.cit., p. 239
58

de vontade, mas da própria realidade: os intelectuais não a gerem, apenas a

refletem”94.

Depois de denunciar os atos de violência contra intelectuais e contra as classes

populares, não só simbólica, mas física, Sodré procura manter as portas abertas aos

arrependidos que apoiaram a queda de Jango: “De nossa parte, o diálogo fica aberto,

sem nenhum preconceito, desde que racional, sem restrições, sem sectarismos, sem

prevenções, sem tabuletas”95.

A expressão “de nossa parte” não deve ser vista apenas como uma posição

individual de Sodré, que parece falar em nome do Partido. Com efeito, só depois de 15

meses de ditadura, justamente em maio de 1965, o PCB se posicionou oficialmente

sobre o novo contexto político. Através da “Resolução de Maio”, definiu o caráter da

ditadura (anti-nacional, anti-democrática, entreguista, reacionária) e denunciou que

sua política econômica, subordinada completamente ao imperialismo norte-americano,

era lesiva à “burguesia nacional”. Portanto, na verdade, o PCB reiterava sua política

frentista lançada em 1958, com a “Declaração de Março, enfatizando a necessidade

de “isolar” a ditadura, agregando as “forças antiditatoriais” que deveriam ser pautadas

pela “unidade de ação”. A Resolução incorporava a imagem consagrada pelo texto de

Alceu Amoroso Lima, enfatizando a cultura como um dos campos de combate da

oposição: “Os intelectuais se arregimentam contra o terror cultural e para exigir a

restauração das liberdades democráticas e a retomada do desenvolvimento

econômico do país”96.

A aproximação com os intelectuais era fundamental para legitimar a luta ampla

pelas liberdades democráticas, eixo privilegiado de ação contra a ditadura. O

documento é explícito neste sentido: “A formação desta ampla frente de resistência,

oposição e combate à ditadura será possível através da luta pelas liberdades


94
Idem, p.240
95
Idem, p.241
96
“Resolução política do CC do PCB (maio de 1965)” IN: CARONE, E. O PCB (vol 3). São Paulo, Difel,
1982 p.15-26. Os termos da resistência definidos pelo PCB, e confirmados no VI Congresso do Partido,
em 1967, acabaram por estimular as dissidências internas, fazendo com que aqueles que defendiam a
luta armada rompessem com o Partido. Ver também LIMA, Hamilton. Op.cit.
59

democráticas (...) inseparável de todas as demais reivindicações, constitui por isso

mesmo, a mais ampla e mobilizadora”97.

Seguindo a mesma linha aliancista e frentista, o texto de Sodré destacava o

papel da imprensa liberal, a começar pelo Correio da Manhã, o mesmo que pedira a

queda do Presidente Jango em dois editoriais-panfletos já citados, dizendo que o

jornal “ainda sob a noite de terror desvairado (...)abriu uma clareira nas trevas

reinantes”. O autor destaca vários articulistas, mas dá destaque especial precisamente

para Cony e Alceu Amoroso Lima, demarcando um lugar privilegiado na memória (de

esquerda) para as suas crônicas e endossando, enquanto intelectual comunista, os

fundamentos da crítica de matriz liberal ao “terror cultural” patrocinado pelo regime.

Em que pese as suas diferenças em relação aos liberais, Sodré reiterava o

personagem central da resistência naquele momento: os intelectuais. Escrevia ele: “A

verdade, felizmente, é que os intelectuais portaram-se muito bem: os que tinham uma

coluna, tomaram posição contra os atentados à cultura; a maioria, porém, não tinha

onde escrever, a maioria estava foragida, presa, exilada”. Valorizando o papel da

cultura, em termos genéricos, fazendo-a ponto de convergência das várias oposições

ao regime, conclui: “O que existe, hoje, neste país, é um imenso, gigantesco,

ignominioso IPM contra a cultura”98.

O artista-intelectual como herói da resistência

Animados pelas denúncias do “terrorismo cultural” feitas por liberais e

endossadas pelos comunistas, vários artistas e intelectuais passaram a se ver como

os principais atores da resistência, atendendo a um imperativo ético e político. Ao lado

das “respostas culturais” ao golpe militar, como Opinião e Zumbi (espetáculos que

serão analisados mais adiante), uma série de manifestos intelectuais e ações de

protesto ocorridos entre 1965 e 1968 davam visibilidade aos intelectuais em uma

97
“Resolução política do Comitê Central do PCB (maio de 1965) IN: CARONE, E. Op.cit, p.16
98
SODRÉ, Nelson W. Op.cit., p. 247
60

esfera pública que ainda resistia à marcha repressiva e autoritária. Por meio dessas

expressões, podemos acompanhar as vicissitudes e impasses da “hora dos

intelectuais” como arautos da primeira resistência ao regime. Ao que parece, entre

1965 e 1967, essa resistência se fez em nome do frentismo cultural, sob o qual as

diferenças partidárias e estético-ideológicas ficavam suspensas. Já em 1968, as

tensões ficaram mais evidentes e apontavam para sérias dissidências intelectuais e

artísticas.

A imprensa que havia pouco, apoiara o golpe militar em bloco, beneficiou-se do

ativismo intelectual, dando voz tanto aos manifestos, quanto ao debate cultural que

envolvia o meio99. Neste sentido, delimiitando o espaço público, ao lado das revistas

intelectuais que abundaram no período, a imprensa conseguia diluir parte de suas

responsabilidades diretas no golpe, passando a se auto-representar como um dos

lugares privilegiados da resistência e, como tal, vítima do arbítrio100.

Os exemplos do ativismo intelectual neste primeiro momento da resistência ao

regime são vários e foram crescendo para além dos intelectuais militantes da

“revolução brasileira” derrotada, na medida em que o projeto autoritário ficava mais

declarado101.

O “Manifesto dos 1500 intelectuais e artistas pela liberdade” (Correio da

Manhã, 30/05/1965) foi um dos documentos mais contundentes nesse sentido e

afirmava a vocação da resistência dos artistas e intelectuais, em discurso endereçado

ao Presidente da Republica: “Sr. Presidente: os intelectuais e artistas brasileiros

temem pelo destino da arte e da cultura em nossa pátria, neste instante ameaçada no

99
Dois artigos de época são sintomáticos deste debate, reveladores das tensões do meio intelectual de
oposição: ALVES, M. “A esquerda festiva”. Correio da Manhã, 1/7/1965; FRANCIS, Paulo. “A crise das
esquerdas”. Reunião, 20/10/1965.
100
Exemplar desta perspectiva heróica é o livro: ANDRADE, Jefferson. Um jornal assassinado: a última
batalha do Correio da Manhã. José Olimpio, 1991. Ver também DINES, Alberto et alli. Os idos de março
e a queda em abril (Rio de Janeiro, J.Alvaro, 1964). Nesta precoce crônica do golpe militar, já se aponta
para um revisionismo da atuação golpista da imprensa, mudando o foco para a crítica ao arbítrio do
regime. Ao que parece, os jornais liberais e os jornalistas mais identificados com esta variável,
esperavam, sinceramente, uma “intervenção rápida e saneadora” contra o Governo Jango. Quando os
militares no poder deixaram claro a que vieram, os liberais iniciaram seu afastamento crítico, ainda que
sempre moderado, aproximando-se em muitos momentos da crítica da esquerda derrotada.
101
CZAJKA, R. Praticando delitos: formando opinião.
61

que tem de fundamental: a liberdade. Estamos conscientes do papel que nos cabe na

sociedade brasileira e da responsabilidade que temos na representação dos

sentimentos mais autênticos do nosso povo. Como desempenhar este papel e exercer

esta responsabilidade, se direito à opinião e à divergência democrática passam a ser

encarados como delito, e a criação artística como ameaça ao regime?”

A linguagem nacionalista e o papel do intelectual como arauto da sociedade

dão a tônica do documento, revelando a permanência da auto-imagem do intelectual

artífice da nação, mesmo que as condições políticas fossem diferentes após 1964.

Obviamente, tratava-se também de uma tática para colocar o regime em cheque,

escamoteando a cultura como “resistência” na defesa geral da liberdade de crítica e

opinião. A Comissão Coordenadora do documento revela a predominância da lógica

frentista, galvanizada pela categoria “intelectuais”, suficientemente genérica para

aplacar as diferenças político-ideológicas. O mote do “terrorismo cultural” era seu eixo

principal. A Comissão reunia alguns liberais (Alceu Amoroso Lima), muitos comunistas

(Oscar Niemeyer, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Alex Viany) e outras correntes

de esquerda (Thiago de Melo).

O protesto na frente do “Hotel Glória” no Rio de Janeiro (9/11/1965) foi um dos

atos da resistência intelectual mais notórios daqueles primeiros tempos do regime102.

Alguns intelectuais e estudantes protestavam contra a reunião da Organização dos

Estados Americanos sediada naquele hotel, vista como braço de intervenção dos

Estados Unidos na América Latina. Perspectiva, aliás, comprovada pela intervenção

militar na República Dominicana para combater o movimento popular de apoio ao

presidente reformista Juan Bosch eleito em 1963, e derrubado no mesmo ano por um

golpe militar. A intervençã composta por 1.100 militares brasileiros (ao lado dos 21 mil

mariners norte-americanos) foi comandada por um general brasileiro (Hugo Alvim),

sendo devidamente sancionada pela OEA. O ato de protesto culminou na prisão de

102
Ver o depoimento de Antonio Callado sobre o episódio em RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo
brasileiro. p. 123-124.
62

oito intelectuais por uma semana, que ficaram conhecidos como “Os oito do Glória”,

tornando-se símbolo do ativismo intelectual contra o regime. As faixas por eles

carregadas, “Abaixo a ditadura” e “Viva a Liberdade” tornaram-se emblemáticas da voz

geral da resistência. Vestidos a caráter, de terno e gravata, comme il faut para um

intelectual da época, foram todos presos, após certa perplexidade das autoridades que

não sabiam muito como agir contra aquele estranho grupo de senhores engravatados.

Eram eles: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro (fotógrafo

cinematográfico), o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues (afastado do Itamaraty por

suas simpatias a Cuba), o diretor teatral Flavio Rangel e os jornalistas Antônio Callado

e Márcio Moreira Alves.

Em princípio, o ato em si foi um fracasso. Conforme Antonio Callado: “Eu

estava pensando que fosse aparecer pelos menos uns cem [intelectuais e artistas].

Apareceram oito. Tinha um pouco mais, que desapareceram antes da gente ser

preso”103. De toda forma, o que tinha tudo para ser um ato brancaleônico de protesto,

ganhou repercussão na imprensa e acabou por aliviar a repressão que os setores

mais duros do regime queriam aplicar aos presos. Em certo sentido, ficava provada a

capacidade da resistência cultural em potencializar-se quando ocupava o espaço

público, neste caso materializado pela ocupação da rua, ainda que por um pequeno

mas eloqüente grupo de pessoas.

Teatro: síntese da primeira resistência cultural e dos seus impasses

A área teatral foi uma das mais aguerridas na fase da primeira resistência

cultural contra o regime, mobilizando atores, diretores e dramaturgos na luta “contra a

censura e pela liberdade de expressão”104. As lutas na área teatral tinham um inimigo

concreto e que ajudava a mobilizar as várias correntes políticas e de opinião que

compunham os profissionais da área (dramaturgos, atores, diretores e técnicos). As

103
Apud RIDENTI, M. Em busca do povo....Op.cit., p.122
104
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam. Op.cit.
63

proibições arbitrárias de textos e as interdições a montagens feitas quase na estréia,

causavam grande apreensão e insegurança no meio teatral. Outro fator a se

considerar no impacto das lutas nessa área era a importância que o teatro tinha nos

anos 1960 como aglutinador da opinião pública, ainda que seu público fosse

relativamente reduzido. Aliás, talvez esta fosse a razão do seu pathos mobilizante.

As lutas na área teatral podem ser acompanhadas por meio de diversas ações

de protesto (manifestos, assembléias, atos públicos, passeatas) que obedecem uma

cronologia regular entre 1965 e 1968, e tiveram grande impacto na área artística e

intelectual como um todo, apontando para um modelo de resistência que articulava a

produção e a atividade artística em si mesmas com a ocupação do espaço público105.

Em junho de 1965, no Teatro Santa Rosa (Rio de Janeiro), foi organizada uma

das primeiras assembléias da categoria, com a entrega de documento contra a

censura ao Presidente Castelo Branco, contendo 100 assinaturas106. Em São Paulo, no

Teatro Ruth Escobar, no dia 9 de julho organizou-se outra assembléia para construir

as “comissões estaduais em defesa da cultura” e divulgar assembléia permanente do

“Estado da Guanabara”107. Esboçava-se a articulação política do eixo teatral Rio-SP,

que daria frutos até 1968.

A proibição da peça “O Berço do Herói”, de Dias Gomes, quatro horas antes da

estréia, também foi um evento que mobilizou ainda mais a categoria na luta contra a

censura108. A atividade censória provocou nova onde de protestos entre 1965 e 1966109

A subida do Marechal Costa e Silva ao poder, em março de 1967, com suas

vagas promessas de “liberalização” do Regime, criou a expectativa de que a censura

pudesse retroceder. Mas as proibições e declarações ofensivas ao meio teatral,

105
Para uma descrição detalhada destes eventos ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam.
p.145-178
106
“Teatro reage à censura”. Jornal do Brasil, 20/6/65
107
Atenção, assembléia amanhã. Ultima Hora, São Paulo, 8/7/1965
108
Sobre este episódio ver GOMES, Dias. “Intelectuais não abdicam da liberdade” (Folha da Semana,
apud GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro. Ed. Bertrand Brasil, 1998, p.220)
109
Ato na sede da ABI, com leitura de manifesto por Paulo Autran. Ver “Teatro grita pela cultura”. Ultima
Hora, RJ, 26/10/65; Correio da Manhã, 24/6/1966 (ato contra “terrorismo cultural”). Panorama do Teatro.
JB, 27/12/67
64

proferidas por militares responsáveis pela censura, logo voltaram a mobilizar a área110.

De qualquer forma, boa parte do movimento teatral de resistência apostou no dialogo

crítico com o governo, até para ganhar mais visibilidade e legitimidade nas suas

ações. Nessa linha, foi montada uma “comissão de contato” com o governo, em

reunião no teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro111. A iniciativa de abertura do diálogo

com o governo não anulava as iniciativas de protesto contra a censura, que se

acirraram ao longo de 1968112.

O ponto máximo da mobilização foi a greve nos teatros em Rio e SP, com ato

vigília durante três dias (11 a 13 de fevereiro de 1968) na escadaria dos Teatros

Municipais do Rio e de São Paulo, coletando quase 8 mil assinaturas de apoio113. O

protesto transformou-se em um verdadeiro movimento artístico-intelectual “contra a

censura pela cultura”. O protesto resultou em uma audiência com o Ministro da Justiça

Gama e Silva, em 13/2/1968, na qual o movimento apresentou as seguintes

reivindicações114:

1) Liberar peças e filmes proibidos.

2) Suspender penalidades impostas à atriz Maria Fernanda (que protestara no

palco contra a censura à peça “Bonde chamado desejo”, silenciando no tempo

que deveria ser ocupado pelos diálogos cortados).

3) Descentralizar a atividade censoria e devolver às delegacias regionais a

competência para emitir alvarás.

4) Revogar portaria que modificou a estrutura censória.

5) Organizar comissão para reorganizar a censura, com participação de

representantes dos artistas (teatro e cinema)

6) Revogar a resolução que criava o INC, visto como censura estética.

110
“Ofensas do General Juvenal Façanha une os artistas contra a censura”. Correio da Manhã, 25/1/68
111
Panorama do Teatro. JB, 27/12/67
112
Protesto e manifesto (lido por Paulo Autran) contra a censura na sede da ABI. (“Protesto contra a
censura reúne 300 a lotar o auditório da ABI”. JB, RJ, 9/1/68)
113
Ver os nomes dos participantes GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam.... p. 162. Via de
regra, reuniam a nata da classe teatral brasileira, como Tonia Carrero e Paulo Autran, entre outros.
114
Idem, p.163
65

Em São Paulo, a “greve do teatro” terminou com passeata pelo Centro da

cidade e assembléia na sede do TBC. Seguiram-se mais três horas de debates e

divergências, opondo a atriz Nidia Licia, mais moderada, e Maria Della Costa, mais

radical, defensora da continuidade da greve. Mas foram os comunistas, Juca de

Oliveira, Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri que deram o tom das reivindicações:

redigir um manifesto para ser lido nos teatros; convidar o ministro Gama e Silva a vir

para São Paulo; formar uma comissão permanente de vigilância da liberdade

artística115. Apesar das promessas do ministro da Justiça, a censura continuou ativa e

agressiva, o que levou à convocação de nova assembléia no Teatro Glaucio Gil

(20/2/68), na qual se elegeu uma nova comissão contra a censura, com o envio

imediato de dezenas de bilhetes endereçados ao marechal-presidente. O

acampamento de cerca de 50 artistas nas escadarias do Teatro Municipal e da

Assembléia Legislativa (RJ) em 18 de março de 1968, “constituiu-se numa das ultimas

manifestações coletivas, de reunião de núcleos divergentes, no campo da produção

artística”116.

A partir de então, alimentada pelas divergências estéticas e ideológicas que

dividiam o meio, as lutas contra a censura na área teatral começaram a ser marcadas

por posições conflitantes. Por exemplo, na entrega do premio Molière, em 15 de junho

de 1968, Renato Borghi, ator do Teatro Oficina, leu um manifesto que chamava o

ministro da justiça Gama e Silva de ‘mentiroso”. Em contraponto, a atriz Tonia Carrero,

presidente da “comissão de diálogo com o governo”, afirmou publicamente que a

opinião do ator não representava o pensamento da categoria. Assim mesmo, a

categoria se uniu no ato contra a censura à peça Rei da Vela , realizada na sede da

115
Idem, p. 165
116
Idem, p. 172-174 (apud “Artistas voltam às ruas em movimento contra a censura”. Jornal do Brasil,
19/3/68). Naquele contexto, Augusto Boal tentou elaborar uma proposta para “qualificar” a censura,
transformando-a em “classificatória” e indicativa, com representantes do meio artístico-teatral. O impasse
nos debates o levou a um ato de “desobediência civil”, encenando a proibida “Feira Paulista de Opinião”
em junho de 1968, ato que terminou com violenta intervenção policial. Ver Correio da Manhã, 15/6/1968
66

ABI, no Rio de Janeiro, em 22 de julho117. A radicalização e divisão do meio ficou

patente na manifestação realizada nas escadarias do Teatro Municipal, 24 de julho de

1968, alternando palavras de ordem contra a censura e em apoio à greve de Osasco,

com o apoio de estudantes. Desta vez, a polícia reprimiu com violência, dispersando

os manifestantes. Era a primeira vez que isto ocorria em atos da “classe teatral”,

sendo um prenúncio da violência policial direta que se abateria sobre as artes nos

anos seguintes. Paralela a esta violência policial direta, começaram as violências

clandestinas, animadas pela direita paramilitar. No dia 18 de julho de 1968, um grande

grupo do Comando de Caça aos Comunistas, composto por 70 civis e 40 militares,

ocupou o Teatro Galpão em São Paulo, agrediu os atores e atrizes e destruiu os

cenários e dependências. O “teatro de agressão” experimentava a agressão de fato118.

Paralelamente, as palavras de ordem de 1968 foram definitivamente incorporadas pelo

protesto mais radical do meio teatral, realizado em 24/9/68, que além da censura,

esbravejava contra o imperialismo, “apenas uma faceta continental imposta pelo

imperialismo norte-americano aos povos oprimidos da América Latina para evitar suas

lutas de libertação”119

O ativismo na área teatral entre 1965 e 1968 teve grande impacto na

sociedade, exigindo posicionamento do governo militar, então conduzido pelo

Marechal Costa e Silva que tentava passar a imagem de um regime tolerante,

sobretudo com as classes médias intelectualizadas de oposição. Ao mesmo tempo, na

área teatral, para além das diferenças estéticas que já se anunciavam entre a

vanguarda do “teatro da agressão” e a dramaturgia realista e nacional-popular, outras

dissidências começaram a sugir. A principal polêmica era alimentada pela definição do

grau e nível do diálogo com o governo. Ao se colocarem como “intelectuais”, portanto,

como setor uno e compacto na luta contra o “terrorismo cultural”, os profissionais de

117
Idem, p. 178
118
Ver o depoimento do líder da ação da direita sobre os detalhes da “operação”, em entrevista a Luiz
Antonio Giron, em http://www.chicobuarque.com.br/critica/rep_fsp_170793.htm (acessado em 24/8/2010)
119
apud GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam. p. 177
67

teatro foram os primeiros a experimentar a difícil tarefa de conciliar o frentismo político-

cultural com as necessidades profissionais específicas, sem falar nas diferentes e

excludentes concepções do papel político do teatro e da estética mais adequada e

coerente para desempenhá-lo. Se o frentismo apontava para a eleição de plataformas

mínimas de luta em nome da liberdade, as demandas específicas empurravam os

setores mais comprometidos com o mercado para uma negociação crítica com o

regime, evitando assim o colapso artístico e profissional da área. Em outras palavras,

o setor teatral foi um dos primeiros que conheceu o impasse entre radicalizar a luta ou

atuar como resistência negociada e moderada, prenúncio das grandes lutas culturais

que dividiram a área nos anos 1970. Seus diversos grupos, companhias, profissionais

e artistas foram perpassados por estes dilemas. A luta armada, lançada em 1968,

potencializou o debate intelectual e as dissidências internas de um grupo social

(artistas e intelectuais) que se imaginava compacto e coeso contra a ditadura

“anticultural”, para além das diferenças ideológicas120.

Aliás, não se pode dizer que os artistas e intelectuais de esquerda, em bloco,

aderiram ao chamado da luta armada, com ou sem sabedoria literária, como queria o

famoso texto de Roberto Schwarz121. Até porque, muitos deles afinados com o PCB,

eram efetivamente contra a opção da guerrilha. O que parece ter predominado,

sociologicamente falando, foi a adesão de artistas e intelectuais aos movimentos de

massa que se esboçavam em 1967 e 1968, contra a censura e pelas liberdades

120
Lembremos que uma parte da classe teatral, sobretudo o “teatro universitário”, estava cada vez mais
radicalizada na direção da “revolução”. Ver, por exemplo, os dois números da Revista Aparte de 1968,
publicada pelo Teatro da USP (TUSP). No campo intelectual como um todo, as revistas Teoria e Prática e
Aparte abrigaram os debates intelectuais pró-luta armada. Ambas tiveram vida editorial efêmera. Ver
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro, p. 133.
121
Segundo Marcelo Ridenti, trabalhando com dados do projeto “Basil Nunca Mais”, entre os 3.698
denunciados como “subversivos” existiam 24 artistas (profissão declarada), perfazendo menos de 1% do
total, quase todos envolvidos com a ALN e a VAR-Palmares. No geral, as organizações de esquerda dos
anos 1970 tinham cerca de 24% de estudantes entre os seus quados, e 10% de professores. As
organizações que não aderiram à luta armada, como a POLOP e a AP, tinham, respectivamente, 26% e
30% de estudantes. Já a média percentual da esquerda armada era maior: MR-8 (49%), POC (40%) e
PCBR (40%). A esquerda armada nacionalista, como o Movimento Nacional Revolucionário (MNR), quase
não tinha estudantes. Estes dados são sugestivos do envolvimento das “classes médias intelectualizadas”
na luta armada e explicam, em parte, porque o regime militar cerceou a arte de esquerda direcionada
para estes grupos, no mesmo momento em que a luta armada se acirrava. Ver RIDENTI, M. “A canção do
homem enquanto seu lobo não vem” IN: O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo, Editora Unesp,
2010(2ªed.), p. 71-161.
68

democráticas, além da participação destes grupos nas redes de apoio, diretas e

indiretas, dos grupos da esquerda armada. Neste sentido, explica-se o tom geral de

sublimação, catarse e denúncia, predominantes em relação às peças e obras

exortativas à ação direta contra o regime. Este tom, vale destacar, também era

propício à incorporação da arte engajada pelo mercado.

Os primeiros e famosos libelos musicais-teatrais já traziam diferenças de

perspectivas, ainda que sutis, algumas delas incrementando um tipo de “consciência

de resistência” mais voltada às ações armadas e diretas contra o regime.

A afirmação da arte como campo da ação da resistência ao regime militar

O fator que torna a arte engajada pós-1964 mais complexa é a crise e

fechamento de um dos dois canais de relação artista-público: o canal das entidades

desligadas do mercado capitalista, como o CPC/UNE e as outras entidades estudantis

e sindicais. Mas a perspectiva de flertar com o mercado não era completamente

estranha à arte engajada, mesmo antes de 1964. Por outro lado, até 1967, a ideia que

o artista engajado possuía do mercado era bem diferente da que aflorou a partir

daquela data. Em linhas gerais, podemos dizer que, naquele primeiro momento do

regime, o artista engajado se pautava por uma visão mais instrumental e neutra do

mercado, como canal de distribuição das suas ideias colocadas na forma de bens

culturais e linguagem estética. Esta visão coincidia com um momento em que o

mercado ainda não havia aprofundado seu processo de reestruturação, em direção à

hegemonia das grandes agências de produção e distribuição da cultura122. Nos

primeiros anos após o golpe, a “ida ao mercado” (como se dizia na época) não era

122
A definição adorniana de indústria cultural, como sistema integrado, dotado de razão técnica
desenvolvida para subordinar à sua lógica todas as fases de realização do produto, não podia ser
aplicada para o caso em questão (ADORNO, T. & HORKEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2006). Aliás, na segunda metade dos anos 1960, o Brasil assistiu ao
aprofundamento da capitalização e da racionalização do mercado dos bens culturais e artísticos. Na
música, os festivais da canção foram o grande laboratório comercial, onde não só surgiram novas
canções de sucesso, mas novas estratégias de promoção e distribuição desses produtos, como veremos
a seguir.
69

vista como incompatível com a vontade de atuar politicamente na condição de artista

engajado nacionalista. Somente por volta de 1968 as estruturas de mercado sofreram

uma crítica aguda: desenvolveu-se, a partir daí, a percepção de um público

consumidor “passivo” do protesto e a ideia de revolução foi vista como “produto

vendável”, entre outros, direcionado, sobretudo para os setores médios da sociedade.

Mas a postura do historiador não pode ser a do analista que julga os fatos a posteriori

e condena os protagonistas por não saberem o desenrolar da história ulterior ao

momento vivido. As respostas dos artistas e intelectuais frente aos impasses

operavam com um número limitado de opções. Entre elas, o mercado se abria para a

arte nacionalista e engajada num momento em que outros espaços se fechavam, por

conta, sobretudo, da repressão sobre as organizações populares e de esquerda.

No caso específico da música popular, o quadro pós-1964 colocou novas

questões para a canção engajada: O que cantar? Onde cantar? Para quem cantar?

Onde estaria o “povo”, receptor idealizado das mensagens conscientizadoras?. Era

preciso repensar os parâmetros e procedimentos de criação/recepção da obra. Este

debate foi acompanhado pela reestruturação da indústria cultural brasileira. Sutil até

1967, a crise da perspectiva nacional-popular clássica, aliada a esta reestruturação do

mercado por onde circulavam os bens culturais (sobretudo as canções), foram cruciais

para a configuração próprio conceito renovado de MPB123.

Nas áreas de teatro e da música popular, a discussão sobre a

profissionalização do artista e a necessidade de assumir o debate sobre o mercado,

não surgiu como mera reação ao novo contexto autoritário e capitalista, criado no pós-

64, embora tenha sido potencializado e redimensionado por ele124. O debate em torno

do nacionalismo musical como desenvolvimento da Bossa Nova já ocorria nos marcos

123
NAPOLITANO Marcos. Seguindo a canção..
124
Oduvaldo Vianna Filho, já no começo da década de 1960, apontava para a necessidade de
profissionalizar a atividade teatral “engajada”. Este era um dos debates internos do CPC, conforme
depoimento de Carlos Estevam Martins (Arte em Revista, 6, out/1981). Ver PATRIOTA. Rosangela.
Vianinha-um dramaturgo lançado no coração de seu tempo. São Paulo, Hucitec, 1999
70

da canção comercial. A dupla situação do artista, como criador cultural engajado e

produtor de bens culturais para o mercado era administrável, na medida em que os

destinatários principais da sua “mensagem” - “povo” (operários e camponeses,

trabalhadores em geral) e “juventude universitária” - situavam-se às margens do

mercado fonográfico. Os shows do circuito universitário entre 1960 e 1964, muitos

deles patrocinados pelas entidades estudantis e sindicatos, acabaram

desempenhando o papel de intermediários institucionais entre o artista e seu novo

público, ampliado após o golpe militar.

Ainda em 1964, quando a Bossa Nova perdia espaço no Rio de Janeiro para os

espetáculos voltados para o “Samba de morro”, o panorama musical de São Paulo

retomava a “Bossa” em perspectiva engajada125. Os espetáculos musicais no velho

teatro paulistano reuniam, num só espaço, o circuito boêmio e o circuito estudantil,

organizados de forma profissional, tendo à frente o radialista Walter Silva126. Em

parceria com os centros acadêmicos de importantes faculdades paulistanas, Silva

conseguiu reunir artistas estreantes e consagrados em uma sequência de shows

concorridos e vibrantes, marcados pelo samba-jazz, mas que se reconheciam acima

de tudo como samba “autêntico”, o que na época assumia importância ideológica. Em

nossa opinião, a sequência de espetáculos que ocupou o calendário de 1964 e 1965,

pode ser considerada o “elo perdido” entre o círculo restrito da primeira Bossa Nova e

a explosão da MPB engajada nas televisões. Como atesta Arnaldo Contier: “A

gravação de muitos discos ao vivo favoreceu a divulgação da canção aliada à vibração

do público. Músicos e platéia faziam parte do mesmo show: palmas, gritos, vaias,

assobios...”127. Por exemplo, um dos espetáculos deste novo circuito, o Primeira

125
O Teatro Paramount, situado na Av. Brigadeiro Luis Antonio, perto do Centro da cidade, em 1967 se
transformou no Teatro Record-Centro, abrigando os Festivais de MPB. Recentemente, foi rebatizado
como “Teatro Abril” e abriga os musicais à Broadway em São Paulo.
126
Walter Silva era um disc-jockey da Rádio Bandeirantes e através do seu programa “O Pick-Up do
Picapau” foi o primeiro a tocar o disco Chega de Saudade de João Gilberto, em fevereiro de 1959,
tornando-se um dos principais divulgadores da Bossa Nova. (Conforme depoimento concedido ao autor
em 14/05/1996).
127
CONTIER, Arnaldo. “Edu Lobo e Carlos Lyra: o Nacional e o Popular na canção de protesto”. Revista
Brasileira de História, 35, 1998,,p.45
71

Audição, realizado no Colégio Rio Branco, foi o piloto da fórmula televisiva que

desembocou nos musicais da TV Record, a partir de 1965. Esta fórmula tentava

reproduzir a vibração dos shows ao vivo do circuito estudantil.

O ciclo de espetáculos pós-golpe foi inaugurado em 25 de maio de 1964, foi

organizado o show O Fino da Bossa, no Teatro Paramount de São Paulo, patrocinado

pelo C.A. XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP, em benefício da AACD,

produzido por Horácio Berlinck e Walter Silva. O sucesso deste show junto ao público

estudantil, logo percebido como uma afirmação da cultura nacional frente à “ditadura

entreguista” no poder, abriu caminho para muitos outros, deslocando o centro do

consumo musical para São Paulo. Esse circuito aprofundou a busca da síntese entre a

Bossa Nova “nacionalista” e a tradição do samba, paradigma de criação já apontado

antes do golpe militar. O entusiasmo da platéia diante das apresentações demonstrou

o enorme potencial de público para a música brasileira, logo percebido pelos

produtores e empresários ligados à TV. Nestes espetáculos foram surgindo para o

grande público nomes como Elis Regina, Chico Buarque, Toquinho, Rosinha de

Valença, Paulinho Nogueira, Zimbo Trio, Gilberto Gil entre outros. Por outro lado,

figuras já conhecidas no Rio de Janeiro, como Nara Leão, Tom Jobim, Oscar Castro

Neves, passaram a se apresentar para o público estudantil de São Paulo.

A platéia estudantil de São Paulo transformou os eventos do Paramount em

exemplos de afirmação de uma cultura de oposição, jovem, nacionalista e de

esquerda, mas ao mesmo tempo "sofisticada e moderna". Além desse aspecto, os

shows do Paramount, dotados de uma estrutura profissional mínima e expondo os

artistas a uma performance que rompia os pequenos públicos das casas noturnas e

dos palcos escolares, demonstravam o amplo potencial de público dos gêneros

musicais tributários da Bossa Nova.

A interação de linguagens e audiências entre as artes performáticas de

espetáculo (cinema, teatro, música) esboçava aquilo que a televisão, pouco mais

tarde, levaria às últimas consequências, dentro de outro contexto cultural e mercantil:


72

imagem, encenação gestual e interpretação musical iriam encontrar na TV um meio

técnico propício, indo ao encontro de um público amplamente massivo, boa parte

oriunda de espaços culturais pouco impactados pela Bossa Nova, pelo teatro engajado

e pelo cinema novo. As “artes de espetáculo” ou as artes “performáticas” pareciam ser

o caminho natural da “popularização” da cultura engajada e nacionalista, como

resposta ao golpe militar.

Entre 1964 e 1965, antes do advento triunfal dos programas televisivos

voltados para a música popular, as peças musicais tiveram papel central na

articulação das artes performáticas, tornando a música também um campo de

expressão privilegiado das esquerdas. Era um teatro de vocação profissional,

buscando a ampliação do público para além das boates e dos circuitos estudantis mais

restritos. A cultura engajada brasileira assumia a necessidade de atingir o público

massivo, o consumidor “médio” de bens culturais, na esperança de que a popularidade

fizesse os artistas reencontrarem a expressão genuína do próprio “povo”, com toda a

carga política que o termo possuía. Entre estas peças, “Opinião” e “Arena conta

Zumbi” foram paradigmáticas, apontando para superações simbólicas diferenciadas

em relação aos impasses da esquerda.

Opinião e Zumbi: a rearticulação da frente popular nos palcos

O teatro engajado brasileiro, desde o final dos anos 1950, se constituía em um

importante pólo de formulação dos problemas estéticos e ideológicos. O Teatro de

Arena, criado em 1953 e posteriormente fundido ao Teatro Paulista do Estudante

(Filosofia-USP), tinha um papel central. Oduvaldo Vianna Filho, o mais importante

dramaturgo daquela geração, egresso do Arena, foi um dos criadores do CPC. O

grande sucesso popular de Eles não usam Black-Tie, em 1959, cristalizava a marca

fundamental do grupo, já defendida na tese do TPE e apresentada no II Festival de

Teatro Amador, em 1956: o primado da emoção, que levaria ao desentorpecimento do


73

homem e, consequentemente, criaria a base para a consciência social. Nesta peça,

cujo eixo dramático girava em torno dos conflitos oriundos de uma greve operária, o

“morro” é apresentado como um local edênico, marcado pelo auxílio-mútuo e pela

solidariedade espontânea, em oposição à “cidade”. Qualquer semelhança com o

imaginário CPC e com a canção engajada não é mera coincidência128.

Antes mesmo das forças políticas de oposição se organizarem e formalizarem

suas críticas ao regime, a cultura de esquerda assumiu seu lugar de resistência ao

novo regime, como demonstra a precocidade da resposta cultural ao novo contexto

político. O Grupo Opinião, fundado sobre as cinzas do CPC (extinto junto com a UNE

em abril de 1964) foi pioneiro na resistência cultural. Fundado por Oduvaldo Vianna

Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar, entre outros, a proposta do

Opinião era a de buscar o meio expressivo adequado para ampliar o público. A

recorrência à música popular, portanto, era mais do que tática, na medida em que era

uma arte de público massivo por excelência. Seu manifesto, assinado por Paulo

Pontes, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, foi traduzido em forma de programa

do espetáculo homônimo, que estreou em dezembro de 1964129: “A música popular é

tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na

captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando

mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais. A música popular não

pode ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte e razão de

música”.

A afirmação do nacional-popular como termo de unidade cultural e política

contra o reacionarismo, da mediação necessária entre o artista de esquerda e “povo”,

e a ultrapassagem do mero consumo de arte, ainda que o circuito fosse

mercantilizado, como se vê, traduzem as táticas que, em linhas gerais, serão mantidas

128
GARCIA, Miliandre. Do Teatro militante à música engajada. A experiência do CPC da UNE. Editora
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2007
129
As intenções do Opinião (dezembro de 1964) IN: Arte em Revista, 1, jan-mar 1979, p.58
74

pelos comunistas e simpatizantes, até o ocaso da arte engajada, já nos anos 1980.

Junte-se a estes ingredientes a necessidade de comunicação com amplas camadas

de público a partir de uma linguagem convencional e realista, e teremos as bases

estético-ideológicas pelas quais se afirmou a resistência cultural, tal como pensada

pelos artistas identificados com o Partidão. O golpe militar potencializou e apressou o

ensejo de massificação das artes de conteúdo político (no sentido de ampliar a sua

audiência), mas esta discussão, como vimos, era anterior.

O espetáculo Opinião, em análises críticas posteriores, filiadas à corrente que o

vê como expressão do isolamento da arte de esquerda, foi acusado de operar num

“circuito de comunicação fechado”130. Em outras palavras, ao invés de ampliar a

relação “artista-massa”, essa vertente teria reforçado o elo intelectual-intelectual,

aprofundando seu isolamento ideológico e facilitado sua incorporação pelo mercado.

Opinião estreou em 11 de dezembro de 1964, escrito por Oduvaldo Vianna Filho,

Paulo Pontes e Armando Costa, protagonizado pelos artistas Nara Leão

(posteriormente substituída por Maria Bethania), Zé Keti e João do Valle131. Nas

palavras de Claudia Campos: “Vindo na esteira do sucesso crescente desde o advento

da Bossa Nova, de shows de música popular brasileira, Opinião é o grande marco na

voga dos espetáculos musicais de protesto em que vão se inserir, de certa forma

Zumbi e Tiradentes”132. Na verdade, Opinião inaugura um novo tratamento ideológico,

do qual a música popular brasileira deveria ser revestida. Da Bossa Nova este

espetáculo herdou, o tratamento diferenciado dos materiais sonoros populares,

oriundos do “morro e do sertão”, materializado, sobretudo, nos arranjos e nas

performances de Nara Leão. Por outro lado, o público estudantil e jovem, formado a

partir da Bossa Nova nacionalista também estava lá. Opinião incorporou a forma do

teatro-de-revista, tradicional espaço popular de crítica ligeira ao contexto social e

130
E. MOSTAÇO, E. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo, Proposta, 1982, p. 77
131
A direção musical do show foi de Dorival Caymmi Filho, sucedido por Geni Marcondes. A estrela Nara
Leão, foi substituída por Maria Bethania (após breve período protagonizado por Suzana Moraes).
132
CAMPOS, Claudia. , Zumbi, Tiradentes. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1988, p. 8
75

político. Boa parte do material poético e musical apresentado foi resultado do método

“folclórico”, como o próprio programa faz questão de frisar. Heitor dos Prazeres e

Cartola recolheram o material do “partido alto”. Cavalcanti Proença recolheu o

“desafio” entre os cantadores Cego Aderaldo e Zé Pretinho. Pete Seeger (norte

americano, criador do protest song) e José Marti (poeta cubano) são citados, dando

um toque de internacionalismo ao espetáculo. As canções eram alternadas com

piadas e diálogos que procuravam demarcar o posicionamento crítico diante da

situação política “autoritária e entreguista”, patrocinada pelo regime militar. Do

repertório total de Opinião , cerca de 5 músicas são de João do Vale, 7 de Zé Keti e 2

folclóricas. As outras músicas são de compositores conhecidos do circuito

bossanovista, como Sergio Ricardo e Carlos Lyra (“Esse Mundo é meu” e “Marcha de

4ªfeira de Cinzas”). A base instrumental era o violão (Roberto Nascimento, Dorival

Caymmi Filho), Flauta (Alberto Hackel Tavares e Carlos Guimarães), bateria (João

Jorge Vargas e Francisco Araujo). A presença da bateria e do contrabaixo era

indicadora de certa influência jazzística, embora restrita a algumas peças. Luis Giani

classifica Opinião como um dos exemplos de tentativa de recuperar o contato direto

entre artistas de elite e das classes populares, ao lado de Telecotecto Opus nº1

(ambos montados pelo Grupo Opinião e Rosa de Ouro, de Hermínio Bello de

Carvalho133. A escolha de uma jovem de classe média (Nara Leão), de um camponês

do norte (João do Valle) e de um “sambista do morro” (Zé Keti), como protagonistas do

espetáculo, sugere o microcosmo social que fundamentava a “frente nacionalista”

proposta ainda em 1958 pelo PCB.

As críticas à base ideológica e estética do espetáculo, sobretudo aquelas feitas

no final da década de 1960, quando a crise do modelo cultural nacional-popular era

perceptível, devem ser vistas com cuidado se quisermos entender historicamente o

133
Para um maior detalhamento da estrutura e do enredo destas peças ver GIANI, Luis A. A música de
protesto: d’O subdesenvolvido à canção do bicho e proezas de santanás (1962-1966). Dissertação de
Mestrado, USP, São Paulo, p.237-309
76

espetáculo. Em certo sentido, Opinião radicalizava e tentava realizar os termos do

“Manifesto do CPC”. Colocando-se como uma autocrítica ao campo musical e teatral

de esquerda, desenvolvido antes do golpe, o espetáculo procurou desenvolver formas

populares de comunicação, negando tanto o “teatro de autor”, quanto a “música de

elite”, de acordo com os termos da época. Também é preciso destacar que o CPC foi

muito mais complexo do que o seu anteprojeto de manifesto, palco de debates

internos e de tensões entre os artistas das várias áreas que o constituíram134.

O “triunfo” político do Opinião pode não ter se restringido aos limites

imaginários do palco, como afirmam alguns autores135 para os quais a reiteração do

frentismo classista após o golpe militar fazia com que a esquerda, derrotada em 1964,

triunfasse “sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito” 136.

Tornando-se um evento paradigmático, representou uma das vertentes da

institucionalização (inclusive no seio da indústria cultural) da nova Música Popular

Brasileira que a partir de 1965 tornava-se uma sigla ideologicamente reconhecível, a

MPB que trilharia caminhos múltiplos e diferenciados deste espetáculo inaugural da

resistência artístico-cultural ao golpe. De qualquer forma, Opinião se destacou por ter

assumido a necessidade de colocar os problemas sócio-culturais do país, numa

perspectiva mais “popular” que “nacional”, e esse talvez seja o seu sentido histórico

mais importante, calibrando o frentismo político que ameaçava diluir as táticas de

resistência do PCB na oposição liberal ao regime. Ao mesmo tempo em que

representou uma continuidade na tática de aliança de classes, Opinião redimensionou

o papel simbólico dos grupos sociais específicos que a formavam, dando mais ênfase

ideológica e estética aos segmentos “populares”.

134
GARCIA, Miliandre. Do Teatro militante à canção engajada. Op.cit. Ver particularmente os capítulos 1
e 2, p. 13-56, nos quais a autora mapeia detalhadamente os debates internos e os grupos formativos do
CPC da UNE.
135
Edelcio Mostaço, em seu trabalho sobre o teatro de esquerda, reforça esta idéia. Seu substrato reside
numa tese de fundo para pensar a cultura engajada entre 1964-1968, a do “circuito fechado” intelectual-
intelectual na circulação de mensagens simbólicas, complementada por outra tese de fundo, a da
“cooptação” desta cultura de esquerda pela indústria cultural capitalista, consagrando sua esterilidade
política junto às massas. O texto de Schwarz tem um papel seminal em ambas. MOSTAÇO, E.Op.cit.
136
SCHWARZ, R. Op.cit., p.41
77

O Grupo Opinião aprofundaria esta linha frentista no espetáculo Liberdade,

Liberdade (escrito por Millor Fernandes e dirigido por Flávio Rangel). O espetáculo

estreou em 21 de abril de 1965, Dia de Tiradentes, uma das datas máximas da

“história pátria”, simbolicamente apropriada pela oposição ao governo militar. Paulo

Autran, Tereza Rachel, Vianinha e Nara Leão. Textos de diversas autorias e origens

ideológicas em torno do tema “liberdade” eram articulados entre si e a cerca de 30

canções. Trechos de autores insuspeitos de serem “subversivos” ou “comunistas”

como Jesus Cristo, Abraham Lincoln, Castro Alves, Shakespeare, Cecília Meirelles,

Winston Churchill eram apropriados para expressar a importância da liberdade para a

condição humana e para a emancipação social, direcionadas, obviamente, para a

crítica do contexto político brasileiro pós-Golpe. Tal estratégia permitia uma leitura

ampla e agregadora do conceito de “liberdade”, galvanizando o sentimento de

oposição ao regime. Entre recepções entusiasmadas dos segmentos oposicionistas,

críticas das autoridades e ataques da direita, a peça excursionou por várias cidades

brasileiras, com ótima recepção de público e repercussão na imprensa. No folder do

espetáculo, o Grupo Opinião assumiu o lugar e a importância da cultura para a

oposição ao regime137: “Muitos acharão que Liberdade, Liberdade é excessivamente

circunstancial. O ato cultural muito submetido ao ato político. Para nós, essa é a sua

principal qualidade”.

A questão da frente de resistência ao regime militar foi colocada também pelo

outro espetáculo marcante da época: Arena conta Zumbi. A peça estreou em São

Paulo em 1º de maio de 1965, inaugurando uma longa temporada de apresentações

até 1967. Teve alguns problemas com a censura, mas este fato acabou se revertendo

positivamente, como propaganda. Arena Conta Zumbi foi, basicamente, um

espetáculo musical que dramatizava a resistência do Quilombo de Palmares, surgido

no século XVII, em Alagoas, para homenagear a resistência dos oprimidos de todas as

137
Apud PINHEIRO, Gabriela Maria L. “Liberdade, Liberdade e o moderno teatro brasileiro”. Paper
apresentado no VI Congresso de pesquisa e pós-graduação em artes cênicas. São Paulo, novembro de
2010, p.3 (disponível em www.portalabrace.org/vicongresso/teatrobrasileiro, acessado em 31/1/2011).
78

épocas. O sucesso do espetáculo tornou conhecido o jovem compositor Edu Lobo,

nome importante no panorama musical dos anos 1960, cujo trabalho se direcionava a

uma articulação singular entre materiais musicais folclóricos e técnicas de

composição bastante complexas. Como salienta Claudia Campos a respeito da peça:

“A música de Edu Lobo tem quase a mesma importância do texto, sendo na verdade o

seu ponto de partida” 138.

Nesta obra, o universo musical para representar os brancos é formado,

basicamente, por hinos patrióticos e pelo Iêiêiê ( a versão nacional do Rock dançante).

O mundo dos negros é cantado através de Sambas e batuques. No primeiro gênero

podem ser incluídas as faixas: Fuga dos Escravos, Samba dos Negros e das Negras,

A mão livre do negro, Venha ser feliz, Upa Neguinho, e Tempo de Guerra. Podemos

qualificar como batuque: Zambi no açoite, Zambi no Navio Negreiro, o Açoite Bateu e

Construção de Palmares. O cruzamento de temas poéticos e de gêneros musicais

nos leva a uma conclusão curiosa: o batuque é utilizado para mostrar a condição do

negro como cativo. A partir da fuga e durante toda a “utopia” em torno de Palmares, o

gênero preferido é o Samba. Essa sutil separação, reforça o paralelo entre a “utopia”

de libertação dos escravos e a “utopia” de afirmação do povo-nação, na medida em

que Samba não se trata de uma música africana, mas já “brasileira”.

A tese de fundo, e neste sentido Zumbi procura ser mais crítico que Opinião,

era que os negros revoltosos foram derrotados pela repressão porque acreditaram em

uma possível aliança com os brancos pobres, com os quais comercializavam seus

produtos. Fragilidades historiográficas à parte, o alvo desta crítica era a fracassada

“frente única” que garantiria as Reformas de Base. Neste sentido, Arena... também

funcionou como um momento de repensar a perspectiva política que informava os

segmentos nacionalistas (endossados pelo frentismo comunista), após o golpe de

1964, e seu amplo leque de alianças. Conforme a idéia central da peça, o “povo”,

138
CAMPOS, C.Op.cit. p. 72
79

abandonado pelas elites, sozinho e “ingênuo”, acabou derrotado pelas forças da

repressão reacionária. Tratava-se, pois, de recuperar certos valores políticos, numa

perspectiva mais “popular” e menos “nacionalista”, mais radical que Opinião, para

repensar a estratégia política de libertação nacional139.

Augusto Boal, em sua autobiografia, ainda destacou outras diferenças em

relação ao Opinião140: “Em Opinião, cantores confundidos com personagens, cada

qual era um e outro. Em Zumbi, os atores se retiravam dos personagens e os

revelavam à distância: é ele, não sou eu. Opinião era show-verdade. Não poderíamos

continuar fazendo shows-verdade (...) Os personagens que queríamos apresentar

tinham que ser separados dos atores. Para isso servia a interpretação coletiva, o

rodízio.

Se Opinião apontava para a suspensão do tempo histórico, reafirmando uma

estratégia do passado para resistir no presente, enquanto se esperava pelo futuro141,

Zumbi era a declaração voluntarista do “tempo de guerra”, palavra de ordem que abre

o espetáculo, funcionava como uma convocatória para a ação no presente, a fim de

construir o futuro, metaforizando o passado histórico.

Apesar de algumas diferenças estéticas e ideológicas, de certa maneira,

Opinião e Zumbi se equivalem: ambos tiveram uma função aglutinadora da resistência

cultural e seu epicentro social - o “jovem intelectualizado de classe média”142 - para

139
Guardadas as devidas diferenças históricas, reedita-se no Brasil a diferença entre as táticas da “frente
única operária” e da “frente popular”, que dividiu a esquerda nos anos 1930. A primeira seria formada por
operários e por partidos de esquerda, uma frente classista de autodefesa e conquista de poder, enquanto
a segunda tendia a ser “policlassista”, mais voltada para a luta eleitoral, ainda que ancorada em
mobilizações de massa. No Brasil, desde 1958, o segundo conceito de “frente” foi o que predominou,
chancelado pelo PCB. O tema da “frente única classista” foi reeditado em 1979, sob a égide do PT, mas
nunca se afirmou como opção política efetiva. Entretanto, as oscilações entre os pólos “popular” e
“nacional” no imediato pós-golpe recolocam este debate histórico da esquerda.
140
BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro, Record, 2000,p.231
141
O “Dia que virá” como figura poética da MPB. Ver GALVÃO, W. Op.cit.
142
CAMPOS, C. Op.cit, p.91. Aliás, este aspecto identitário parece estar presente na música e nos
espetáculos engajados de outros países, como os EUA, onde a música folk, sobretudo, teve um papel
importante na configuração de uma identidade política nos grupos que lutavam pelos direitos civis no
começo dos anos 60. Ver também: EYERMAN, R et alli. “Social Movements and cultural transformation:
popular music in the 60’s”. Media, Culture and Society, vol.17/3, p.449-498
80

além da eventual função catártica em relação à frustração política e pela manipulação

da emoção e do riso. Este aspecto comum às duas peças, não prejudica o

reconhecimento do fato de que Zumbi quis ir além do Opinião, ao anunciar a crise da

aliança de classes defendida pelo PCB, afastar-se do realismo como linguagem

absoluta e declarar o “tempo de guerra”, anúncio da luta armada que viria e que

acabaria comprometendo o próprio diretor da peça, Augusto Boal143. Ajudaram a

delimitar uma comunidade de valores, ao reforçar sua vontade de resistir ao regime,

como um imperativo ético e político. Se é inegável que estes espetáculos exercitaram

um “circuito fechado” de comunicação, representaram, paradoxalmente, a ampliação e

a massificação do público, bases fundamentais para entender a entrada dos

produtores culturais de esquerda na indústria cultural brasileira. Assim, defendo a tese

de que este processo não deve ser visto como uma simples cooptação ideológica,

mas como um pólo constitutivo do novo cenário de consumo cultural que se

desenhava naquele momento histórico específico – 1964/1965. Qualificar as peças

musicais como mero exercício de catarse escapista, praticada por uma juventude

impotente frente aos desafios políticos maiores, é desconsiderar os desdobramentos

históricos intimamente articulados àqueles eventos, independente da sua função

eventualmente catártica para a derrota de 1964. Portanto, a tese do “circuito fechado”

da cultura deve ser entendida mais em seu contexto de formulação, por ocasião do

impasse das formas de resistência cultural causado pelo impacto do AI-5 e do

conseqüente fechamento dos espaços de expressão cultural contra o regime, do que

como um problema histórico efetivamente enfrentado pela cultura de esquerda, por

volta de 1964144.

143
BOAL, A. Op.cit, p.270
144
Lembramos que o texto, já citado, de Roberto Schwarz, que lançou esta tese seminal, foi escrito em
1969 e pode ser visto como um artigo escrito “no calor da hora”, que reflete sobre as causas profundas da
“dupla” derrota da esquerda nacionalista (1964 e 1968). Aliás, até 1968, a derrota não era “dupla” e esse
fato nos obriga a tomar cuidado com os termos do julgamento político e ideológico dos protagonistas.
81

O espetáculo Opinião e outros espetáculos musicais da época, em suma,

procuravam equacionar uma nova perspectiva popular para os dilemas nacionais. Seja

reafirmando a “resistência civil” baseada na aliança de classes, ou a “resistência

armada”, buscava-se o redimensionamento do “popular” para a tarefa de “libertação

nacional”. Nos quatro primeiros anos da ditadura, a tensão entre duas categorias

básicas - “popular” e “popularidade” - não conhecia a voracidade do mercado, ainda

em fase de estruturação na direção de uma indústria, e que se afirmaria como um

locus privilegiado da cultura de esquerda na década de 1970.

O nacional-popular pós-1964 não era uma mera reafirmação dos valores

derrotados. Também não era mais visto como cimento para a estratégia reformista dos

tempos de Goulart, e sim como núcleo ético e político para a construção de uma

“consciência da resistência”145. Tratava-se de fazer com que o popular desse sentido

ao nacional e não com que o nacional configurasse o popular. A canção engajada

pré-golpe era caracterizada por uma tentativa de adequação entre sofisticação estética

e pedagogia política, na busca de um produto cultural nacional de alto nível. Já os

espetáculos musicais do teatro que inauguraram a resistência cultural ao regime militar

se pautaram por outras questões. Grosso modo, marcaram a busca utópica da

identidade popular mais genuína possível, que deveria nortear a perspectiva do

intelectual nacionalista. Essa postura, por mais que se tentasse, não conseguia

resolver o velho dilema da aliança entre intelectuais e povo: o primeiro ao falar pelo

segundo construía seu discurso através de um conjunto de representações simbólicas

que tendia a desconsiderar as contradições do povo “real”. Não quero afirmar que

estes problemas fossem desconhecidos, ingenuamente, pelos artistas da época. Mas

a forma assumida pela arte engajada para resolver o impasse entre ser popular e

popularizar-se (no sentido de ampliar sua audiência e comunicar a sua mensagem),

acabou conduzindo a novos impasses na medida em que, entre o artista e o povo, se

145
KEDWARD, Roderick. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”.IN :
Op.cit.
82

impunha cada vez mais a mídia e a indústria fonográfica, processo que ganharia

densidade maior na década de 1970, e que estaria na base da crise da própria arte

engajada e do seu principal arauto, o artista-intelectual de esquerda.

Em princípio, a aparente vacuidade da resistência artístico-cultural, isolada das

massas e operando em um circuito fechado de comunicação entre intelectuais de

classe média, passava longe das preocupações do regime militar, mais preocupado

em destruir a elite política reformista e as organizações de trabalhadores do campo e

da cidade. Se esta afirmação pode ser válida para os três anos iniciais do regime, a

aproximação da luta armada, que tinha como base social a juventude de classe média

consumidora dessa mesma cultura, passou a exigir maior repressão à arte de

esquerda. Portanto, este campo artístico não era uma “floração tardia” de valores

derrotados, mas, ao atualizar e calibrar os termos da frente que deveria resistir,

dialogava com uma consciência em formação. Ainda que restrita a setores médios da

sociedade, e canalizada pelo mercado, a resistência cultural, conjunturalmente,

poderia representar algum risco na perspectiva do regime militar, à medida que se

imbricava com uma conjuntura de radicalização política.

Este aspecto não passou despercebido para os militares. Numa clara sugestão

para apertar o cerco aos intelectuais, percebendo que o espaço da cultura e das artes

se articulava contra o regime, o texto do IPM 709, conhecido como “IPM do PCB”,

afirmava: “A infiltração comunista no meio intelectual é extremamente variada, em

seus agentes e suas formas. Existe um certo número de elementos que pertencem

aos quadros partidários (...) Há também numerosos escritores, artistas, jornalistas,

professores que trabalham em proveito do Partido sem exercerem uma militância

ostensiva (...) Isso lhes dá grande independência e flexibilidade de ação permitindo-

lhes atuar em várias frentes, legais e semilegais sem se exporem às sanções judiciais,
83

nem à disciplina partidária”146 . Conclui, em tom sutilmente lamentoso: “De um modo

geral, a maioria destas pessoas escapou às sanções da Revolução de 31 de março”.

Em outras palavras, o “terrorismo cultural”, sob o ponto de vista do regime, nem

mesmo havia começado. Mas que ninguém duvidasse: a “hora dos intelectuais” (e

dos artistas) não tardaria a chegar.

146
Exército Brasileiro. IPM 709. Biblioteca do Exército, 1967, p. 233
84

CAPÍTULO 3

DILEMAS DA ARTE ENGAJADA EM BUSCA DE UM PÚBLICO

O baile das cinco artes

Além dos debates em torno de categorias gerais das políticas culturais da

oposição, o campo artístico foi fundamental para a configuração da resistência. Nos

quatro primeiros anos do regime militar, é possível identificar pontos de contato e

problemas comuns às várias áreas de expressão artística que se manifestaram contra

o regime, fazendo tangenciar obras e debates estéticos oriundos de linguagens

artísticas diversas, sem prejuízo da busca de soluções específicas para os impasses

de cada linguagem. Diante desta estratégia de análise, poderíamos traçar um mapa da

resistência cultural no período, a partir do “baile das cinco artes”: cinema, música

popular, teatro, literatura e artes plásticas. Nessas áreas artísticas desenvolveu-se um

conjunto de debates sobre temas e formas apropriadas para exercer a crítica ao

regime, que exemplifica a riqueza e a pluralidade estético-ideológica na qual se

configurou a resistência cultural. Obviamente, cada área mereceria um estudo

aprofundado não apenas sobre os debates mais gerais, mas também sobre as suas

faturas estéticas.

Claramente, nos anos de 1964 e 1965, há o surgimento de um conceito que

permite a articulação de diversos atores sócio-culturais e artistas oriundos de

diferentes linguagens artísticas, em torno da resistência ao regime. Este conceito é o

de “terrorismo cultural”. Ele permite que os artistas e intelectuais se reconheçam como

vítimas do golpe, apesar de serem, paradoxalmente, os segmentos que tinham maior

liberdade relativa para criticar o regime. Ao menos, até que os militares no poder

reconhecessem artistas e intelectuais como ameaças efetivas, conectados à ação


85

política de massa e à luta armada, o que ocorreu por volta de 1968. Neste momento,

de acordo com os princípios da Doutrina de Segurança Nacional, a esquerda

subversiva estaria avançando na “guerra psicológica” - fase crucial para a efetivação

da “guerra revolucionária”- com a inestimável ajuda dos artistas.

Elaborado por um católico liberal, Alceu Amoroso Lima, o conceito foi

reverberado por um liberal-existencialista, Carlos HeitorCony, em crônicas que

marcaram época, e que também faziam do intelectual o personagem central da

resistência ao regime, a “voz dos que não tinham voz”. Esse hiperdimensionamento do

intelectual e da ação cultural como locus da resistência, também ganha força com as

posições pacifistas do PCB, de grande influência na área cultural. O espetáculo

Opinião era a síntese desta tática de resistência, ao mesmo tempo em que

demonstrava o potencial da cultura de esquerda para os gestores do mercado de bens

simbólicos, confirmado pela explosão da MPB nos festivais da canção. Por outro lado,

o processo de reafirmação do intelectual, libertado a fortiori da antiga parceria com o

Estado, e ainda não completamente inserido no mercado, ocupou posição central

numa fugidia esfera pública, limitada politicamente, porém marcante em termos

históricos ao permitir reconfigurar posições e exercitar um intenso debate de idéias

num contexto autoritário.

Entretanto, as tensões internas do campo da resistência cultural não se fizeram

tardar. No “baile das cinco artes” que marcou a resistência, começaram a surgir, entre

1967 e 1968, dissensos e rupturas radicais em torno dos temas, formas e circuitos

mais adequados para se combater a ditadura, o que acabava por colocar em xeque a

relação da arte engajada com seus públicos. Em cada área artística específica, este

debate assumiu formas estéticas e graus diversos de radicalismo (no sentido do

posicionamento diante do sistema artístico-cultural e do próprio regime), de acordo

com as tradições e linguagens que estavam em jogo.


86

Artes plásticas

As artes plásticas brasileiras, logo depois do Golpe de 1964, acirraram a

estratégia da guerrilha cultural na medida em que radicalizavam sua vocação para a

ruptura formal em relação às suas próprias tradições mais acadêmicas e

institucionalizadas. Esta postura muito peculiar em relação às outras formas de

“resistência cultural” pode ser percebida em manifestos, personalidades criativas,

eventos e obras que hoje fazem parte da história “oficial” das artes plásticas no Brasil

e que, sem exagero, constituem um capítulo importante da história da arte do século

XX, dada a dimensão internacionalista da vanguarda brasileira.

No entanto, para Aracy Amaral “o que ocorre nas artes plásticas em todo o

correr da década de 60 não seria senão um pálido reflexo, por parte de uns poucos,

dessas aspirações dos artistas de preocupação social que emergem com força, em

particular no teatro, a grande trincheira de nossa vanguarda artística desse tempo.

Essa palidez da contribuição dos artistas plásticos é explicável, como sabemos, pelo

elitismo dos canais distribuidores da produção plástica. Ao contrário dos grandes

auditórios dos teatros e festivais, bem como pelo isolacionismo que caracteriza o

processo de produção individual do artista, ao contrário de outros setores da criação

artística em equipe”147

Essa perspectiva vem sendo questionada pela historiografia mais recente.

Autores como Paulo Reis ou Artur Freitas destacam que nas artes plásticas a

resistência cultural confundiu-se com a própria radicalização de uma poética de

vanguarda, operando no próprio circuito de exposições da segunda metade da década

de 1960148 e culminando com a explosão da arte conceitual que propunha uma nova

147
AMARAL, Aracy. Arte para que?. A preocupação social na arte brasileira. 1930-1970. Itau
Cultural/Studio Nobel. 2003, p..328 (3ª Ed.)
148
REIS, Paulo. Exposições de arte - vanguarda e política entre os anos 1965 e 1970. Tese de Doutorado
em História, UFPR, Curitiba, 2005
87

arte de guerrilha, contra o regime e contra o sistema de artes, em si149. Apesar do seu

circuito altamente elitizado e da sua poética direcionada para um certo círculo de

iniciados nas questões e debates estéticos, as artes plásticas brasileiras dos anos

1960, ganharam uma dimensão pública notável. A começar pelo sentido político, para

além do sentido estético inegável, que as exposições de arte adquiriram ao longo do

período 1965-1970. O ciclo que vai de Opinião 65 a Do corpo à terra marcam o

apogeu do impacto político das artes plásticas, na busca de uma poética que

conciliasse engajamento e pesquisa formal. Essa operação não foi linear e

consensual, marcando um debate intenso, na forma de textos críticos e obras de arte,

entre diversas concepções de vanguarda e participação150. No campo das vanguardas,

debatiam-se duas correntes principais, disputando estatuto de arte de resistência: uma

tendência figurativa, reunida em torno da pop-arte brasileira e uma tendência

construtiva-abstrata, sintetizada pela “Nova Objetividade”. O debate entre Ferreira

Gullar e Hélio Oiticica pode ser visto como a síntese dos debates e interações entre as

duas tendências. Para Gullar, compagnon de route num primeiro momento e depois

intelectual militante do PCB, a vanguarda poderia ser aceita como espaço de

resistência desde que não abrisse mão da possibilidade de comunicação representada

pela figura. Para Gullar, a operação antropofágica do pop brasileiro, incorporando uma

tendência que se queria “universal” pelo viés das tensões políticas e demandas

históricas às quais deveria responder o artista brasileiro, era o exemplo de conciliação

entre experimentação e participação, sob o signo da vanguarda151. Para Oiticica, a

figuração deveria ser substituída por uma operação mais radical, mergulhando na

dimensão “objetual” da arte, chave para reposicionar o artista diante do cotidiano, do

público e da própria tradição. A tradição construtiva (concretismo e neoconcretismo)

era a base para uma vanguarda brasileira, permitindo, ao mesmo tempo um outro

149
FREITAS, Artur. Contraarte: vanguarda, conceitualismo e arte de guerrilha - 1969/1973. Tese de
Doutorado em História, UFPR, Curitiba, 2007.
150
REIS, Paulo. A arte de Vanguarda no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, p. 15
151
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1968
88

nível de diálogo com a realidade nacional, bem como a superação de impasses

criativos do próprio campo artístico. Esta posição era validada por importantes críticos,

como Mário Pedrosa e Frederico Morais152

O que alguns autores chamam de “vanguarda nacional”, que teria adensado as

várias tradições do modernismo entre os anos 1920 e 1950, foi gestada neste ciclo. Se

as grandes exposições, entre 1965 e 1968, aconteciam em diálogo com as instituições

do campo artístico, como a Bienal de São Paulo, as galerias e o MAM-RJ, a partir do

final da década de 1960 e até o início da década de 1970, a arte conceitual buscou

ultrapassar os limites em todos os sentidos – novos materiais, novas poéticas, novo

conceito de artista – impondo-se como uma guerrilha não apenas em termos políticos,

paralela à guerrilha armada de esquerda, mas em sua dimensão hipercrítica em

relação à “instituição-arte”153. Nas palavras de Paulo Reis154: “As exposições Opinião

65, Propostas 65, Nova Objetividade Brasileira e ‘Do Corpo à Terra’ formalizaram a

possibilidade de uma arte experimental através do debate, com obras e textos, de um

projeto de arte comprometida”. Se os debates em torno do figurativo e do realismo,

como estratégias para efetivar o compromisso social da arte, deram o tom das duas

primeiras exposições, a partir da Nova Objetividade, há uma retomada programática

da tradição construtiva (vale dizer, “abstrata”) e um mergulho radical na revisão da

entre arte e sociedade.

O texto “Declaração dos Princípios Básicos da Vanguarda”, de autoria

coletiva155, foi o manifesto estético e político desta corrente. Ele apontava para a

superação da dicotomia entre participação e experimentalismo, alienação e

consciência, nacional e estrangeiro. A obra-ambiência “Tropicália” de Hélio Oiticica

152
REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil, Op.cit. Sobre as posições divergentes de Gullar e Oiticica,
ver também ZILIO,Carlos. “Da antropofagia à tropicália” IN: Artes Plásticas e Literatura. O nacional e
popular na cultura brasileira. São Paulo, Ed. Brasiliense1982, p. 11-56
153
BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Porto, Vega, 1990
154
REIS, P. Op. Cit. p; 29
155
Idem, p. 27
89

pode ser tomada como a sua síntese. Tropicália trabalhava com materiais e objetos

presentes nas favelas e casas populares – madeira, plástico, televisão. Seguindo a

linha dos “parangolés” (tendas, capas e estandartes, largamente inspirados nos

passistas das escolas de samba cariocas), a ambiência exigia a participação do

público para além da contemplação da obra. Literalmente, o público penetrava na obra

e experimentava sensações a partir do contato com o objeto artístico, sendo instigado

a pensar a realidade ao seu redor. O passeio pelo labirinto-barraco culminava na

televisão ligada em estática, como objeto de culto no meio de uma sala de estar.

Oiticica, além de refundar uma noção de vanguarda, mirava as classes populares de

outra maneira, diferente do romantismo mimético da esquerda nacionalista. Rendia

uma homenagem à criatividade da bricolagem popular, do samba, dos barracos, do

movimento corporal, sem estilização folclorista, nem mimese realista-socialista. No

entanto, a visão de Brasil e dos brasileiros “desde sempre condenados a serem

modernos”, dava o tom à sua obra. O estandarte “Seja marginal, seja herói”, diatribe

do artista em homenagem ao bandido “Cara de Cavalo”, morto pelo esquadrão-da-

morte, poderia ser pensado como um diálogo com as fotos de outro morto célebre dos

anos 1960, Che Guevara. Obviamente, um diálogo estritamente estético, mas que

apontava para o problema da violência social e política no Terceiro Mundo de maneira

inusitada.

O lema do estandarte foi levado às ultimas conseqüências pela arte conceitual,

cuja intervenção histórica na virada da década de 1960 para a de 1970 adquiriu um

sentido de radicalização simbólica e real que ajudou a consagrar o termo “guerrilha

cultural”. O artista incorporou o gesto marginal para consagrar o ato artístico,

culminando num rito estético que testava os limites entre vida e arte. Por gesto

marginal, entendo a radicalização de uma persona criativa construída contra todos os

padrões e valores vigentes na sociedade, em forte diálogo com a contracultura. Na

verdade, este tipo de guerrilha cultural será analisado mais adiante, mas desde já fica
90

apontado como um desdobramento dos debates e posturas que marcaram a

resistência cultural no campo específico das artes plásticas. Eventos como Opinião 65

(MAM, Rio de Janeiro 1965), Propostas 65 (FAAP, São Paulo, 1965), Bienal de São

Paulo de 1967, Nova Objetividade Brasileira (MAM, Rio de Janeiro, 1967) e, sobretudo

Do Corpo à Terra (Belo Horizonte, 1970), podem ser vistos como expressões de um

circuito de arte sincrônico e diacrônico, a um só tempo, que expressou o auge da

função pública e política da arte brasileira156. Nas primeiras duas exposições – Opinião

e Propostas – a vanguarda artística brasileira reiterou o caráter indissociável entre

pesquisa formal e crítica política ao regime militar, ainda que os caminhos do primeiro

termo fossem diversos. Até a Bienal de 1967, os debates propostos pela vanguarda

concentravam-se no realismo, figuração e pop art. Entretanto, lembremos que já em

Opinião 65, a performance de Hélio Oiticica com seus parangolés vestidos pelos

passistas da Mangueira (que foram impedidos de entrarem no museu) causou um

“curto-circuito” na instituição-arte, ao colocar duas questões cruciais para esta nova

vanguarda: a interação entre obra-público e o caráter sensorial e propositivo da arte,

diluindo o conceito de obra como representação orgânica e objeto de culto

distanciado. Esta perspectiva seria aprofundada na exposição Nova Objetividade, em

1967, e radicalizada no evento Do Corpo à Terra, organizado em praça pública na

cidade de Belo Horizonte já em meio a um clima de repressão política. Nesta última,

os ritos artísticos romperam com todos os padrões estéticos e comportamentais

vigentes, cujos melhores exemplos foram as imolações de galinhas vivas por Cildo

Meirelles (Totem ao preso político) e as “trouxas ensangüentadas” de Artur Barrio,

lançadas no Ribeirão das Neves, fazendo as vezes de cadáveres executados pelos

esquadrões da morte157. O grau de violência – ritual e efetiva – destas obras-

proposições apontam para o limite da resistência estritamente cultural (ou seja,

simbólica e apelativa à consciência crítica). Foram expressões da radicalização da arte

156
REIS, Paulo. Op.cit.
157
Voltarei a estes eventos no capítulo 4, quando serão analisados de forma mais detalhada pela chave
da “guerrilha cultural”.
91

enquanto auto-reflexão e ação no mundo, levadas a cabo pelas artes plásticas

brasileiras durante o regime militar e que, ao mesmo tempo, exigem uma reflexão

sobre a arte como ação e representação.

Literatura

Na literatura, a crise do intelectual de esquerda, num primeiro momento, não

significou a crise da forma-romance como expressão da consciência política e literária.

Ao contrário, a elaboração do conceito de “resistência cultural” nesta área, significou o

reforço da forma-romance e suas variáveis, em chave realista, como atestam os

sucessos de Pessach e Quarup.

O romance Pessach – a travessia, escrito por Cony em 1966 transformaria em

matéria ficcional o exercício de liberdade crítica das crônicas, temperado pelo clima de

radicalização da luta contra o regime que já se anunciava, com o chamado às armas

feito inicialmente pelos brizolistas158. No livro, um intelectual existencialista e libertário,

inicialmente crítico da luta armada, acaba por se engajar na guerrilha como um ato de

liberdade de pensamento, portanto, mantendo sua condição de intelectual e livre

pensador. Depois de vários episódios quase rocambolescos, nos quais se destaca

uma improvável habilidade do personagem-intelectual nas táticas de luta armada, sem

falar na sua coragem diante do perigo, o intelectual se mantém íntegro, realizando sua

passagem, escolhendo seu destino por opção e coerência de idéias. Ou seja,

mantendo sua independência intelectual.

Paulo Francis escreveu sobre o romance159: “Cony estabelece a absoluta

incompatibilidade do intelectual com as linhas mestras da sociedade brasileira (...) o

‘herói’ se contempla e vê o próximo com precisão e lucidez, mas não passa disto

158
Antes mesmo das dissidências do Partido Comunista Brasileiro irem às armas, os ex-militares
nacionalistas inspirados pelo trabalhismo brizolista, lançaram a chamada à luta armada, em 1965/66. A
guerrilha do Caparaó foi seu “balão de ensaio”, estourado pela repressão antes de alçar qualquer vôo.
159
FRANCIS, Paulo. “A travessia de Cony”. Revista Civilização Brasileira., 13, 1967. p.179-183
92

(...)Diante da solução revolucionária que lhe é proposta por dois tipos a quem

despreza pessoalmente, o protagonista manifesta um tom cético, fundado não só em

razões de temperamento como na descrença da viabilidade dos esquemas em ação

da esquerda local”. Transmutando os impasses do personagem ficcional para a

condição histórica efetiva dos intelectuais brasileiros, ao se referir ao autor Cony,

Francis arremata160: “Seu individualismo continua intransigente, mas ele incorporou à

personalidade um senso impessoal de alternativa, onde forças coletivas podem

afirmar-se (...) os intelectuais são uma espécie de sismógrafo social(...) em países

subdesenvolvidos onde a maioria vive em condições adequadas à era da Pedra

Lascada, eles são muitas vezes forçados a deixar seus gabinetes e agir como

vanguarda na humanização dos oprimidos” .

Nada mais distante, portanto, enquanto paradigma de intelectual engajado, do

outro romance de sucesso da época – Quarup, de Antonio Callado – no qual o

intelectual, representado pelo personagem do padre Nando, se “deseduca” no contato

com as classes populares, despojando-se das sutilezas e contorcionismos do

pensamento especulativo para aderir à luta armada, guiado pelo herói camponês.

Mesmo Ferreira Gullar, ligado ao PCB e, portanto, pouco simpático a esta opção

política, reconhece que a dimensão política do livro vai além da questão estrita da luta

armada161: “Pode-se discutir se o único caminho de reintegração do intelectual

brasileiro é o seguido finalmente pelo Padre Nando e mesmo se a melhor maneira de

lutar contra a opressão é essa a qual ele adere. Mas este é o aspecto episódico da

questão: o fundamental é a afirmação implícita no romance, de que é preciso

deseducar-se, livrar-se das concepções idealistas alheias à realidade nacional, para

poder encontrar-se (...)dentro do mundo que o romance define a realidade pessoal

deságua no coletivo. Não se trata de apagar-se na massa, mas entender que o seu

160
Idem, p. 183
161
GULLAR, Ferreira. “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”. Revista de
Civilização Brasileira, 15, 1967, p.251-258
93

destino está ligado a ela, de encontrar um ‘centro’” . Ao definir a trajetória do Padre

Nando, Gullar define o ideal de resistência intelectual dos comunistas, desviando a

exortação política da luta armada que eventualmente poderia sobressair da leitura de

Quarup162.

Sintomaticamente, os finais dos romances são bem distintos. Enquanto o

personagem intelectual-guerrilheiro de Cony faz a travessia para o interior de si

mesmo, reiterando sua luta como opção individual, o personagem central de Callado

segue para o interior do Brasil, guiado por um camponês, dissolvendo sua

individualidade na terra e no povo pelo qual lutaria, menos como opção, e mais como

o resultado de uma dialética histórica de transformações coletivas na qual ele se dilui

como individuo e subjetividade autocentrados. Em ambos, entretanto, residia a falha

trágica que deveria ser redimida: a impossibilidade de permanecer na machadiana

“torre de marfim”, eqüidistante das lutas políticas terrenas. A própria sobrevivência das

atividades de espírito impunha a resistência, que mais do que política, era vivida como

uma afirmação ética. Entretanto, como apontam as resenhas, as duas saídas para a

ação não resolvem os dilemas da intelectualidade confundida com a consciência

crítica da nação sob o autoritarismo. Ao contrário, a opção da luta armada explicita os

dissensos e dilemas internos a este grupo social, como apontam as duas resenhas

escrita por Francis e Gullar. O então trotskista Francis e o comunista Gullar não

endossam prontamente a opção da guerrilha. Mas valorizam a necessidade do

empenho como imperativo ético e existencial do intelectual que queira fazer jus ao

adjetivo. Justamente, esta auto-imagem do intelectual como reserva ética, política e

162
Pessach – A travessia, desde sua primeira edição em 1967, esteve no centro de uma polêmica
envolvendo Cony e alguns intelectuais que formavam o “Comitê Cultural” do Partido Comunista Brasileiro
no Rio de Janeiro, como Ferreira Gullar e Leandro Konder (autor da orelha da primeira edição). Cony
acusou os membros do Comitê de terem tentado boicotar o livro e o autor, tendo em vista que ambos não
seguiam a cartilha do PCB. Konder negou tal “censura”, dizendo apenas que Cony digerira mal as críticas
e polêmicas em torno de suas posições políticas e literárias. Cony reiterou sua crítica aos comunistas
anos depois no jornal O Globo (27/3/1997), por ocasião da 3ªedição de Pessach. Para maiores detalhes
sobre este episódio ver KUSHNIR, Beatriz. “Depor as armas – a travessia de Cony e a censura no
Partidão” IN: REIS Filho, Daniel A. (org.). Intelectuais, história e política. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000, p.
219-246
94

moral da nação será duramente questionada pela própria literatura ao longo dos anos

1970, ajudando a redimensionar o seu papel no campo da “resistência cultural”. Os

fatores para esta mudança de configuração e posicionamento foram vários: as

demandas do mercado, a pressão da vanguarda anti-intelectualista, a crise das

esquerdas, o mecenato oficial, as novas estruturas de oportunidade profissional nos

quadros da modernização capitalista e, finalmente, a emergência de um novo conceito

de militância intelectual, no final da década de 1970. Estes fatores, ao que parecem,

tiveram um efeito particularmente intenso na literatura, uma arte que sempre foi vista

como a expressão mais sofisticada do intelectual, ao exigir maestria no domínio da

língua vernácula e da escrita.

A crise do romance viria na década seguinte, portando certa fragmentação da

linguagem e da consciência narrativa, como se percebe nos romances de Antonio

Callado dos anos 1970 – Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976), ou na

tentativa de um romance “realista-contracultural”, como se poderia notar em Zero, de

Loyola Brandão (lançado em 1974 na Itália, em 1975 no Brasil, mas proibido no ano

seguinte até 1979). As grandes respostas literárias dos anos 1970, à ditadura militar,

no campo da ficção, retomaram a narrativa realista, ainda que fragmentada e

conectada ao conceito de decupagem audiovisual, cujas expressões mais notórias e

contundentes foram Em Câmara Lenta (de Renato Tapajós) e A Festa (de Ivan

Angelo)163. Em ambos, o tema da derrota, trabalhado pelo viés do martírio e solidão do

guerrilheiro-herói (Em Câmara Lenta) ou da impotência e pusilanimidade da sociedade

como um todo frente ao autoritarismo (Festa), se apresentam como rupturas com a

consciência literária que esteve na base da gênese do conceito de resistência cultural:

a desconstrução do intelectual de esquerda e seu renascimento como revolucionário,

homem de ação. Obviamente, a literatura do período vai além destes temas,

163
MAUES, Eloisa. Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência histórica da
repressão e narrativa literária. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2008; FRANCO,
Renato. Itinerário político do romance pós-64: a Festa. São Paulo, Editora UNESP, 1998.
95

constituindo-se igualmente em reflexão sobre a violência das relações sociais e

políticas potencializadas pela experiência autoritária164. O conto, a poesia, o livro-

reportagem, a autobiografia, a novela, seriam os principais formatos literários dos anos

1970 na tentativa de manter a palavra literária como lugar de resistência cultural.

Ao contrário das artes plásticas, portanto, a literatura engajada feita na

segunda metade dos anos 1960, desconfiou das experimentações radicais de forma e

linguagem, optando pela novela e pelo romance – formas clássicas da consciência

mimética de mundo que se recusa a abrir mão do sentido da ação165. As posições

críticas de Roberto Schwarz em relação à vanguarda como princípio de avaliação

estética, são acompanhadas da defesa da grande literatura como exercício de

consciência diante da história. “Sintomaticamente deixada de lado”, a literatura viu

florescer as “artes de espetáculo”, mais adequadas ao mercado. Como hipótese

comparativa dentro do “baile das cinco artes” no imediato pós-golpe (1964-1968), a

literatura foi o campo que examinou o fluxo da consciência do intelectual de esquerda

de maneira detalhada, mantendo o elemento histórico-processual como eixo de

mudança e de revisões políticas e existenciais. Também é possível dizer que foi o

campo artístico que mais apostou em uma saída – a ação guerrilheira. No final do seu

artigo-manifesto, em que pese as posições ideológicas um tanto datadas, Schwarz faz

um exercício instigante de crítica cultural a partir do exame da literatura, apontando

para os limites da própria esfera cultural como epicentro da resistência166: “A cultura é

aliada natural da revolução, mas esta não será feita para ela e muito menos para os

intelectuais. É feita, primariamente, afim de expropriar os meios de produção e garantir

164
Para um balanço crítico mais amplo do papel da literatura durante o regime militar, ver GINZBURG,
Jaime. “A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse”. IN: SANTOS, Cecilia
Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaina de Almeida.. (Orgs.). Desarquivando a Ditadura. Memória e
Justiça no Brasil. Sao Paulo: Hucitec, 2009, v. 2, p. 557-568. Para uma análise da expressão literária
crítica ao regime em autores que se afirmaram no final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, ver
GINZBURG, Jaime. “Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo”.
Letterature d'America, v. 113, p. 95-110, 2008.
165
Neste ponto, deixamos de lado o campo da poesia, que parece não se enquadrar neste axioma de
criação. Movimentos como “Poesia Jovem” na primeira metade dos anos 1970, estão mais próximos de
uma poética de vanguarda contracultural, apontando para uma revisão da consciência de mundo pelo
mergulho disruptivo na linguagem como expressão ou representação do real e do sujeito.
166
SCHWARZ, Roberto. Op.cit., p.54/55
96

trabalho e sobrevivência digna aos milhões e milhões de homens que vivem na

miséria. Que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que eram muito

mais anticapitalistas de elite que propriamente socialistas? Deverão transformar-se,

reformular suas razões, que entretanto haviam feito deles aliado dela (...) Em Quarup,

o romance ideologicamente mais representativo para a intelectualidade de esquerda

recente, o itinerário é o oposto: um intelectual, no caso um padre, viaja geográfica e

socialmente o país, despe-se da sua profissão e posição social, à procura do povo, em

cuja luta irá se integrar – com sabedoria literária – num capítulo posterior ao último do

livro”.

Notemos o enigmático final do texto: o intelectual, despojado da sua condição,

integra-se na luta popular, depois de uma longa busca, “com sabedoria literária”, em

um capítulo “posterior ao último do livro”. Ou seja, fora do mundo diegético da obra

literária? A literatura saía de cena, preterida pelo mercado ocupado pelas artes de

espetáculo. Mas também saía de cena, para dar lugar à revolução. Uma aporia que,

simbolicamente, marcaria a crise da forma romance, ao menos em sua expressão

mais monumental, orgânica e complexa, cujo último exemplo talvez seja Quarup.

Restava, portanto, recolocar a cultura no seu devido lugar: exercício da busca dos

limites pela palavra, forjada pela “consciência possível” que se materializava no

grande romance da época, Quarup, segundo o crítico. A virtude do romance, e do

senso crítico que lhe dava suporte, não era narrar a luta armada e afirmar o intelectual

como herói da resistência (como em Pessach), mas examinar o processo de

adequação da consciência do intelectual revolucionário aos novos tempos. Neste

processo reflexivo, a própria figura do intelectual perdia sentido, pois só valia se

diluída na luta maior que se travava, para além da obra de arte: a guerrilha.

Neste ponto reside a diferença básica entre Quarup e Pessach. A interiorização

do ex-padre no sertão do Brasil difere da travessia do guerrilheiro-intelectual. Os dois

personagens aderem à luta armada, mas o ex-padre o faz movido pelo imperativo
97

ético e político que não é redutível a uma operação de consciência individual. Quem

lhe guia, nas páginas finais do romance, é o camponês, e não o contrário. A

“sabedoria literária” do ex-intelectual residia na percepção do lugar da resistência e

dos limites da cultura, para salvar a própria cultura do silêncio imposto pelo

autoritarismo. A travessia não era para fora, mas para dentro do mundo.

As três artes de espetáculo no baile da resistência e seus dilemas: fechamento,

ampliação e implosão do público

Levando-se em conta as três áreas artísticas com maior impacto público à

época – cinema, teatro e música popular – teremos três formas de atuação e

ocupação do circuito sócio-cultural das artes bem diferenciadas entre si, apesar das

conexões e influências recíprocas, sobretudo no plano das temáticas. Essas três artes

de espetáculo ocuparam a cena principal numa época de “relativa hegemonia cultural

da esquerda”, entre a segunda metade dos anos 1950 e o final da década de 1960. No

caso da música popular, os anos 60 consolidaram um verdadeiro “sistema” musical-

popular, articulando “autor-obra-público-crítica” e instaurando uma nova maneira de

pensar e viver a música popular em nosso país. Se a literatura - historicamente o

campo privilegiado de elaboração do pensamento crítico da esquerda - era substituída

pelo teatro, pela música e pelo cinema, veículos privilegiados nos anos 1960, por outro

lado, essas três artes, renovadas, tornavam-se mais “literárias”.

No teatro, a articulação com a tradição literária até poderia ser considerada

"natural", na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como material

básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama, para o ato

da encenação, e não para a leitura. Mas na música (popular) e no cinema, a relação

com a literatura (em seus diversos níveis), fora mais episódica e incomum, e parece

ter sido um dos pontos mais marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos

anos 1960. Podemos considerar que houve uma mudança estrutural na linguagem,

que operou não só a renovação do fazer musical e cinematográfico, mas também


98

acabou por constituir uma nova estrutura de recepção – um novo público – “jovem,

universitário, de esquerda”, como se dizia. Esse segmento de público, mais tarde

ampliado (no caso da música popular), constituiu uma primeira camada na renovação

da recepção das artes de espetáculo no Brasil, sob a vigência de uma cultura

nacional-popular de esquerda. Não apenas os novos dramaturgos, cancionistas e

cineastas migravam de classes e espaços sociais, nos quais as “Letras” (literatura,

meio acadêmico, crítica literária, jornalismo) tinham um papel central, altamente

valorizado, como definidoras do conceito de “cultura”, mas também um novo público

se formava, a partir de um espaço público onde o “espírito letrado” era predominante.

O conceito de engajamento artístico de esquerda, a partir do final dos anos

1950, deve ser pensado sob o viés dessas mudanças estruturais no campo artístico-

cultural como um todo, processo que diluiu a “república das letras” em outras áreas

artísticas e circuitos sócio-culturais, vocacionadas para o “efeito”, para a performance,

para o “lazer”. Mesmo reconhecendo que a literatura, como expressão artística strictu

sensu, perdeu espaço entre os artistas engajados para outras formas de expressão,

como o teatro, o cinema e a canção, estes, por sua vez, foram informados por

tradições e materiais artísticos de origem literária. Em suma, a literatura e a palavra

não saíram de cena, e sim, invadiram outras cenas.

Assim, o conceito de engajamento, tal como delimitado por Sartre167 – a

atuação do intelectual através da palavra (articulada em prosa e ensaio), colocada a

serviço das causas públicas e humanistas –, sofreu no Brasil (e em outros países,

sobretudo da América Latina) uma releitura, com todos os problemas e virtudes daí

decorrentes. Ao contrário do que defendia o filósofo francês, o espaço de atuação

privilegiado do artista/intelectual de esquerda brasileiro não foi a prosa ou o ensaio,

embora os anos 1950 e 1960 fossem pródigos também nesses gêneros, mas as artes

que apelavam aos sentidos corpóreos, através de imagens, sons e ritmos. Até porque,

a palavra e as performances não se anulavam. Dramas teatrais, letras de canções e

167
SARTRE, Jean Paul.O que é literatura. São Paulo, Ática, 1993, p.11.
99

diálogos fílmicos eram parte fundamental na expressão de uma consciência que

buscava compreender as razões da derrota de 1964 e reiterar o primado da

resistência como vocação central das artes engajadas.

Em um primeiro momento desse processo, a arte engajada possuía certa

integração sistêmica entre “artista-obra-público”, esboçando um sistema cultural

fechado em grupos sociais de elite. Na medida em que as obras (dramas, filmes,

canções) atingiam o público mais amplo, em alguns casos via o mercado, essa

homologia passou a ser tensionada por dois fatores: a entrada de novos segmentos

sociais na composição do público, sobretudo oriundos de outros circuitos culturais

(rádio, televisão, cultura oral), e a necessidade de construir uma popularidade –

questão que se colocava diante dos artistas de esquerda – uma vez que a

popularidade seria fundamental para atingir os objetivos políticos mais amplos do

“engajamento”.

O mercado acabaria sendo o caminho muitas vezes enviesado, trilhado em

algumas expressões da arte engajada para se chegar à “popularidade”, processo

potencializado pelo fechamento dos circuitos não-mercantilizados, como sindicatos e

movimentos sociais. O novo contexto político e econômico, pós-64, acirrou esse

movimento para o mercado, que acenava para os artistas com novas e inusitadas

possibilidades de divulgação, ainda que plenas de ambigüidades e paradoxos168.

A reação de cada área de expressão a essa nova conjuntura ideológica,

cultural e econômica será diferente. Após um movimento inicial de formação de um

público convergente e coeso para a arte engajada – processo que localizamos entre

1955 e 1965, aproximadamente – na segunda metade da década as áreas do teatro,

cinema e música popular desenvolverão relações diferenciadas com os seus públicos

específicos. Esta hipótese não implica afirmar que os públicos específicos dessas três

áreas eram estanques e homogêneos, ou que uma mesma pessoa não transitava

entre os vários públicos de cada área de expressão. Em suma, o que enfatizo é que a

168
RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira. p. 86
100

relação estrutural entre artista obra-público passará a ser diferenciada para cada uma

dessas três grandes frentes de expressão da arte engajada no Brasil: cinema, teatro e

música popular.

Os anos-chave desse processo de reestruturação dos públicos da arte

engajada vão de 1966 a 1968. Nesse triênio, três tendências sobressaíram: no teatro,

assistiu-se a um processo de implosão do público; no cinema (brasileiro), um processo

de fechamento do público; e na MPB, um formidável (e também problemático)

processo de abertura do público. Em outras palavras, a visão monolítica e orgânica de

público para as artes engajadas do final dos anos 1960, segundo a qual todos que

faziam e consumiam as artes engajadas formavam uma comunidade homogênea

formadas por “jovens, intelectuais e de esquerda” deve ser revista.

Examinemos melhor as três imagens: implosão, fechamento, abertura.

“Implosão” porque, a partir de 1967, o teatro se fará “contra” o público, tendo como

paradigmas estéticos as peças O Rei da vela e Roda Viva, do Grupo Oficina,

exemplos de “teatro de agressão”, conforme expressão da época. O resultado desta

implosão, projeto assumido de uma determinada corrente, o Grupo Oficina, não

apenas visava a destruição do público padrão de teatro, constituído a partir dos anos

1950, marcado pela fruição emotiva ou racional das peças, mas também a

constituição, a partir dos seus escombros, de uma nova platéia e de uma nova

sociabilidade teatral, interativa, corpórea e dinâmica. “Fechamento” porque, a partir de

1965, se fez um cinema para pequenos círculos, em parte por causa dos problemas

de distribuição e da força esmagadora do cinema norte-americano, em parte por

opção estética. Finalmente, falamos em “abertura” do público para qualificar o

processo da música popular pois, nessa área, também a partir de 1965 (com o

programa O fino da bossa, por exemplo), o público será potencializado pela inserção

das canções engajadas numa vigorosa dinâmica de mercado televisivo e fonográfico,

confirmando a vocação para a audiência massiva que a música popular brasileira já

possuía, antes mesmo da explosão da bossa nova. Para o teatro, o cinema e a canção
101

engajada, no início dos anos 1960, o problema do público se colocava em dois níveis:

no primeiro nível, colocava-se o desafio de consolidar um público próximo e imediato,

que partilhasse com o artista espaços sociais comuns (movimento estudantil, campi

universitários) e valores ideológicos e políticos. Enfim, um ethos comum que

reforçasse o sentido político das manifestações artísticas. Em um segundo nível, o

desafio era ampliar o circuito de público, abrir os novos espaços sociais pelos quais a

arte engajada circulava. Esse era o maior desafio na medida em que, fora dos circuitos

de mercado, o acesso às massas era bastante problemático.

A estrutura do CPC da UNE, extinto em 1964, era bastante eficaz para chegar

aos públicos estudantis, mas impotente para romper os limites deste meio

sociocultural. Os “espetáculos de rua” ou em “porta de fábrica” eram uma saída

precária e não consolidavam a “popularidade” tão almejada pelo artista engajado. O

desafio era construir um circuito de mercado, profissional e massivo, sem cair nas

fórmulas e armadilhas da indústria da cultura, considerada alienada e escapista. Era

preciso, portanto, atuar em duas dimensões do público: o meio social imediato ao

artista, futura liderança do processo político (grosso modo, o meio estudantil), e o meio

social mais amplo, massivo, alvo da “pedagogia política” que, de forma mais ou menos

explícita, se enunciava na obra (“o povo”). Na primeira dimensão da relação com o

público, a arte engajada visava constituir uma vanguarda, uma liderança, um grupo

social que deveria conduzir o processo reformista-revolucionário, em curso no governo

Goulart, conforme a leitura da esquerda. Na segunda dimensão, tratava-se de ampliar

o espaço da arte engajada e seu impacto na vida pública, entendida como veículo de

conscientização das massas. A educação política, estética e sentimental de uma elite

(o “jovem estudante de esquerda”) e das massas (o camponês, o operário, a classe

média) eram duas faces de uma mesma moeda, pensada sob perspectivas diferentes.

Vejamos alguns detalhes desse processo de formação e deformação dos circuitos e

seus públicos, entre 1955 e 1966, em cada área específica.


102

Teatro

O teatro era o lugar por excelência dos artistas mais organicamente vinculados

ao Partido Comunista, um dos epicentros do engajamento artístico contra o regime.

Por outro lado, o teatro sofria, bem antes do AI-5, os rigores da censura às artes169.

Mesmo possuindo um público restrito, que muitas vezes se confundia com a presença

física da platéia, a repressão sabia que o teatro tinha um grande potencial mobilizador,

não só pelo engajamento direto dos seus profissionais contra a censura e pela

liberdade de expressão, mas pela peculiar vitalidade da relação entre palco e platéia.

Por outra parte, o teatro experimentava um rico debate interno, com posições divididas

entre o teatro nacional-popular de base realista, o teatro de inspiração brechtiana e o

teatro de agressão, radical na critica aos valores comportamentais. Ao lado da música,

o teatro foi o centro propulsor das artes de espetáculo em busca de um público cada

vez mais amplo, mas, ao contrário da música, sofreu o impacto de um tipo de

encenação que se fazia contra o público e que o marcou até o início dos anos 1970.

De todas as áreas, o teatro manteve a discussão sobre o conceito de “povo” como o

centro do seu debate interno, seja para reafirmar o conceito consagrado pelo PCB

frentista e aliancista, seja para exercitar uma nova mensagem para um novo público,

seja para implodir os padrões de engajamento nacional-popular, implodindo ao mesmo

tempo a platéia teatral que lhe sustentava.

O teatro engajado, ou “empenhado” como se dizia, nasceu no seio do teatro

“burguês”. O primeiro Teatro de Arena, formado em 1953, surgiu como um grupo

experimental, dentro do TBC, o já consagrado Teatro Brasileiro de Comédia, criado

em 1948. O surgimento do Arena, a partir do TBC, não só capitalizava a grande

explosão da vida teatral em São Paulo como também flexibilizava o custo das

produções, além de servir como laboratório de formação de novos atores, diretores e

formar um público mais jovem e desvinculado das platéias do “teatrão” dramático

convencional. Em 1955, com a mudança para o lendário endereço da rua Teodoro

169
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam..
103

Bayma n. 94, no Centro de São Paulo, o Arena cede o espaço às segundas-feiras

para o recém-formado Teatro Paulista do Estudante, grupo de jovens autores-atores

surgido sob os auspícios do Partido Comunista. O TPE despontou em abril de 1955,

integrado por Oduvaldo Vianna Filho, G. Guarnieri, Raimundo Duprat, Pedro Paulo

Uzeda Moreira, Henrique Liebermann, Vera Gertel, Diorandy Vianna e Silvio Saraiva,

tendo como mentores Ruggero Jacobi e Carla Civelli170.

Para o PCB, o objetivo imediato era atuar no meio estudantil secundarista,

onde despontava forte oposição ao Partido, e a atividade artística era um dos

instrumentos de tal estratégia. Para os jovens militantes comunistas, com vocação

artística, o TPE foi a chance de conciliar a vida partidária com a atuação teatral. Em

1956, o TPE e o Arena se fundiram. Entre 1956 e 1957, a maioria das peças

encenadas eram clássicos estrangeiros, antigos ou modernos. Em 1956, a chegada

de Augusto Boal, dirigindo Ratos e homens, de Steinbeck, marcou o início da busca de

uma linguagem cênica despojada, que culminará nas famosas peças dos anos 1960,

produzidas pelo Arena renovado, como Arena conta Zumbi.

Um ano antes, no II Festival de Teatro Amador, em 1955, o TPE apresentava

uma tese que era a síntese “teórica” dessas preocupações: “O teatro amador em

defesa de nossas tradições culturais”171. A emoção deveria levar ao

“desentorpecimento”, primeiro momento de uma tomada de consciência sobre os

problemas da realidade. Portanto, o eixo do teatro era, sobretudo, o público, mais do

que a linguagem, a obra ou o ator em si. Ao lado da atuação dos homens de cinema

ligados ao PCB, como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, o TPE fundava as

bases da nova arte engajada de esquerda, sob o lema do nacional-popular. Por outro

lado, cinema e teatro recuperavam a perspectiva colocada pela literatura social dos

anos 30, sobretudo por Jorge Amado e Graciliano Ramos. Apesar da consolidação de

um público jovem e cúmplice das questões colocadas, dois problemas ainda se

170
MORAES, Denis. Vianinha, cúmplice da paixão. Rio de Janeiro, Editora Nórdica, 1991
171
Publicada, originalmente, na revista Teatro Amador (ano 1, n. 6, jan. 1956).
104

apresentavam: a necessidade de uma autoria brasileira mais consistente e a

consolidação das condições de produção e, consequentemente, de ampliação do

público. O grande sucesso da peça Eles não usam black-tie, que estreou em fevereiro

de 1958, parecia apontar para a solução dos dois problemas. Escrita pelo jovem

Gianfrancesco Guarnieri, autor da “casa” (pois era membro fundador do TPE), a peça

foi um grande sucesso de público. Na primeira temporada ficou um ano em cartaz ,

percorreu mais de quarenta cidades e foi encenada 512 vezes172. Tendo como eixo

dramático os dilemas e conflitos de uma família operária durante uma greve, a peça

buscava realizar a ponte “emoção-consciência”, já sistematizada nos manifestos e

artigos do TPE173. A linguagem dramática e realista, levada a cabo pelo diretor José

Renato e encenada com muita força pelos atores, além de agradar o público estudantil

mais jovem conseguiu trazer um público mais amplo, como o segmento que até então

frequentava o “teatro sério”, na linha do TBC.

No seio do TPE/Arena, surgia também um outro autor: Oduvaldo Vianna

Filho174. Em 1959, estreava a peça Chapetuba F.C., que também dramatizava os

conflitos sociais e políticos dentro de um time de futebol, e em três meses foi

encenada mais de cem vezes. Guarnieri e Vianinha iniciavam uma trajetória que

parecia resolver duas questões colocadas pelas discussões que ocupavam o meio

teatral da época: conciliar textos de qualidade dramática e crítica social e política, além

de encontrar uma linguagem que pudesse ser assimilada, de uma maneira ou de

outra, por vários “públicos” (ou platéias), de origem social e formação cultural

diferentes. Dos operários dos subúrbios aos burgueses do TBC, passando pelos

jovens e estudantes, todos estariam aptos a assimilar o conteúdo e a linguagem das

peças, de apelo realista, dramático e humanista, ainda que focando problemas

172
MORAES, D. Op.cit., p. 59
173
Essa relação será criticada por Iná Camargo Costa, sendo considerada “mistificadora” da consciência
social proposta. Ver COSTA, Iná C. “A crise do drama em Eles não usam black-tie: uma questão de
classe”, Discurso. São Paulo, Depto. de Filosofia da USP, n. 20, 1993. Ver, da mesma autora A hora do
teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1996
174
Para uma análise mais abrangente do papel aglutinador de Vianinha e do teatro como núcleo de uma
práxis política nos anos 1960 e 1970, ver BETTI, Maria Silvia. Oduvaldo Vianna Filho (série “Artistas
Brasileiros”). São Paulo, Edusp, 1997.
105

classistas e nacionais. Logo depois, por volta de 1961, surgia no Rio de Janeiro o

Centro Popular de Cultura da UNE. É bastante conhecida a importância de Vianinha

no surgimento do CPC, até porque o evento que deu início às articulações político-

culturais no meio estudantil para a criação do CPC foi a sua peça A mais valia vai

acabar..., encenada em 1960. A obra tentava “explicar” o mecanismo de exploração

capitalista, através de uma linguagem leve e bem humorada. Portanto, a estratégia era

diferente daquela que vigorava no TPE/Arena: o drama e a emoção dão lugar ao

humor e ao didatismo mais linear, típicos da tradição do agitprop de esquerda. As

duas linguagens, historicamente constitutivas de um público teatral massivo, se

reencontrarão no show Opinião, encenado em 1964, sob a perspectiva da catarse de

um público traumatizado pelos acontecimentos políticos daquele ano.

Por volta de 1961, Vianinha produziu um documento dos mais significativos

para entendermos os projetos e dilemas da arte de esquerda no Brasil. Num dos

trechos mais contundentes, Vianinha diz: “Um movimento de massas só pode ser feito

com eficácia se tem como perspectiva inicial sua massificação, sua industrialização

(...). Nenhum movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator etc. É

preciso massa, multidão”175. Nesse trecho, ficava clara não só a profissão de fé de

Vianinha, que seria sua marca até a morte prematura, em 1974, mas também uma

linha de atuação junto ao público que marcaria uma vertente importante da arte

engajada de esquerda no Brasil: a busca da audiência massiva, como estratégia e

princípio.

Entre 1962 e 1964, as quatro grandes vertentes do teatro brasileiro eram: (i) o

Arena, renovado, cada vez mais sob influência de Augusto Boal, aderindo às

montagens de autores clássicos; (ii) o Grupo Oficina, surgido em fins dos anos 50, na

sua primeira fase (pré-Rei da Vela), seguindo um caminho mais próximo ao “realismo

existencialista”; (iii) o TBC, já em crise, apesar do grande sucesso de O pagador de

promessas (Dias Gomes, 1960); (iv) e, finalmente, o teatro do CPC, assumindo uma

175
apud MOSTAÇO, E. Op.cit. p.58.
106

linha de “agitação-propaganda”, com peças ágeis que se serviam de tipos ideais,

quase caricaturas das classes sociais, para falar da sociedade e da política nacional.

Na medida em que a radicalização política tomava conta da vida nacional, o teatro

iniciava um debate que iria explodir no final da década de 1960, lastreado por novas

questões: para quem se deve encenar? Para o “povo” ou para a “pequena burguesia”,

público tradicional dos teatros desde o final dos anos 40? Como devem ser

trabalhados os dilemas nacionais? Pela emoção, catarse e identificação entre público

e palco? Ou pela busca do distanciamento e do choque com a platéia?

A conquista das faixas etárias mais jovens, nos anos 1950, não arrefeceu a

discussão sobre o perfil marcadamente classista das salas de espetáculo e sobre a

ausência de extratos mais amplos da própria classe média (público marcante nas

salas de cinema, por exemplo), para não falar das classes populares urbanas (público

das audiências radiofônicas dos anos 1940 e 1950). O limite de público do teatro,

mesmo vocacionado para uma audiência maior, acabava por garantir um sentido de

sociabilidade muito forte e estreita entre o público que freqüentava as peças, quase

sempre identificado com cultura política “nacional-popular”. As críticas da vanguarda

teatral, encarnada pelo Grupo Oficina a essa cultura, por volta de 1967/1968, fez

implodir o público, desagregado por dentro de suas próprias estruturas de fruição e

julgamento. Segundo Zuenir Ventura, o teatro brasileiro possuía, por volta de 1969, um

público constante de cerca de 200 mil pessoas no Brasil inteiro, quase todo

concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esse número permaneceu estável até

meados dos anos 1970, não acompanhando o crescimento do público em outras artes,

o que parecia indicar uma estagnação, agravada pela censura, cuja ação foi

particularmente grave no caso do teatro 176.

Com o golpe militar de 1964, a questão passava a ser outra. O pacto classista

revisava seu espectro social (expurgando simbolicamente a “burguesia traidora”), e a

176
VENTURA, Zuenir et alli, Anos 70/80: cultura em trânsito (da repressão à abertura). Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2000, p. 103.
107

crença na emoção como base de uma construção progressiva da consciência sofre

um abalo. Com Opinião, espetáculo realizado pelo grupo homônimo, basicamente

constituído por Vianninha, Paulo Pontes e Ferreira Gullar, há uma clivagem em

direção a linguagem das comédias de costumes e do teatro de revista, radicalizando a

busca de uma ”linguagem popular” a partir de gêneros consagrados. Ao mesmo

tempo, a relação com o público passa a incorporar a busca da “resistência-catarse”,

sem negar, num primeiro momento, o binômio “emoção-consciência”. Se nesse

espetáculo o público já era visto como cúmplice do que se passava no palco, a busca

da catarse aproximava ainda mais o palco e a platéia: “Opinião operava numa

comunicação de circuito fechado: palco e platéia irmanados na mesma fé. Aliás, raro

exemplo de espetáculo brasileiro contemporâneo inteiramente grego em seu espírito.

O povo do palco era o mesmo povo da platéia”177.

Os sucessos da época exemplificam esse processo: Arena conta Zumbi

(Arena, 1965), Se correr o bicho pega... (Opinião, 1966), Morte e vida Severina (Tuca,

1966), Arena conta Tiradentes (Arena, 1967), entre outros. Mesmo enfatizando a

“cultura popular” e criticando algumas ilusões políticas da aliança de classes defendida

pelo PCB (como a crença na “burguesia progressista”), o teatro de esquerda pós-golpe

(Arena e Opinião, sobretudo) ainda mantinha a perspectiva básica da “frente” política.

Até certo momento, por volta de 1966/1967, seu público fiel parecia homologar essa

opção. Mas o quadro mudaria em 1968, com a incorporação do tema da “luta armada”

como material dramático e político que serviria de base para um novo teatro e uma

nova relação com o público.

A nova radicalização política, aliada a uma mudança no campo intelectual de

esquerda e no meio estudantil, em fins de 1967, iniciou o processo final de implosão

do público. Na verdade, esse processo autofágico não foi uma opção estética nem o

resultado de uma prática cultural idiossincrática do meio teatral. Intimamente ligado à

construção de uma sociabilidade de esquerda e, notadamente, jovem, o teatro

177
MOSTAÇO, E. Op.cit., p.77
108

brasileiro será tragado pelas mudanças nesses dois campos. Como sabemos, a

esquerda, até então hegemonizada pelo PCB, fragmentou-se a partir de 1967.

Paralelamente, a juventude, sobretudo como conceito sociocultural, também sofria um

processo radical de mudanças, em direção à contracultura massificada.

Estes dois processos conjugados explicarão a implosão da platéia (e do próprio

fazer teatral, em certa medida, ao menos até a reação da dramaturgia comunista por

volta de 1972/1973), mesmo antes da edição do AI-5. As duas grandes expressões

dramatúrgicas desse processo não tardariam a aparecer em fins de 1967 e ao longo

de 1968: por um lado, o Teatro Oficina, a partir de O Rei da Vela radicalizava o

procedimento carnavalizante, libertário e crítico em relação aos “valores burgueses” e

aos pressupostos ideológicos e comportamentais chancelados pelo PCB, que

poderiam ser sintetizados na tática da “frente política”, no nacionalismo e na crença no

progresso da consciência histórica178. A agressão ao público, moral e física, era uma

tática para provocar o estranhamento a partir da experiência estética, muito

questionado mesmo por críticos de esquerda como Roberto Schwarz e Anatol

Rosenfeld179.

Por outro viés, o Arena pós-Zumbi e o Teatro da USP (TUSP) defendiam uma

proposta de dramaturgia que ia além da resistência e da busca da “catarse” e passava

a fazer a apologia da luta armada, dialogando com as perspectivas teóricas do teatro

épico brechtiano, exigindo choque e distanciamento em relação ao público.

178
Peça de Oswald de Andrade, escrita em 1937, que parodia a burguesia brasileira e sua falsa moral. A
leitura de José Celso carnavalizou os personagens e criou um clima de absurdo, contraface de uma
realidade social e política, em si, absurda. Para uma análise crítica da montagem desta peça em 1967 e
das contradições desta retomada osvaldiana ver COSTA, Iná C. A hora do teatro épico no Brasil. São
Paulo, Graal, 1996, p. 151-175. A autora analisa como uma peça escrita sob o impacto da conversão de
Osvald ao comunismo stalinista dos anos 1930, serviu como exame da falência da revolução brasileira
(defendida nos termos do PCB em 1964). A tese da autora é que “O Rei da Vela” critica menos a
dominação política da burguesia (ainda que lhe ataque no plano moral), do que as contradições de
comunistas e social-democratas, neste sentido analisa a derrota a partir da “insuficiência” dos vencidos de
1964, tripudiando sobre estes. Por outro lado, a defesa da proposta estético-política do Oficina pode ser
vista em MOSTAÇO, E. Op.cit.(cap. 8).
179
SCHWARZ, Roberto.Op.cit. p. 46-49; ROSENFELD, A. “O teatro agressivo” IN: Texto e Contexto. São
Paulo, Perspectiva, 1969, p.56; COSTA, Iná C. Op.cit. p. 169-187. Estes autores enfatizam a vacuidade
política da “agressão” proposta pelo Oficina, denunciando o fetichismo da violência como expressão da
impotência e do imobilismo político da pequena-burguesia radical. O ritual sadomasoquista ocupando a
cena principal do jogo palco-platéia acabaria provocando mais a “dessolidarização” diante da vergonha do
outro, do que a consciência (SCHWARZ, R. Op.cit. p. 48).
109

A questão da luta armada começa aparecer em Arena conta Tiradentes (1967),

tornando-se mais explícita em 1968 com a I Feira Paulista de Opinião, organizada por

Augusto Boal, e com Os Fuzis da Sra. Teresa (dirigida por Flávio Império, encenada

pelo TUSP, em 1968180. Nesta, os atores terminavam o espetáculo distribuindo fuzis

para o público (na verdade, carcaças de armas velhas emprestadas pela polícia). Além

disso, a direção de Flávio Império deslocava a ação dramática da protagonista, a Sra.

Carrar, para o coro grego, diluindo o viés dramático e didatizante da peça original de

Brecht, produzida no contexto da Guerra Civil Espanhola. Nessa operação, conforme

Marcelina Gorni: “Alterando o foco inicial da peça, da mãe para o coro, realiza assim

uma transferência do drama individual para o problema coletivo, centrado no coro”181.

Na Feira Paulista de Opinião, Boal tenta unir artistas de esquerda de várias

tendências, visando a superação de impasses estéticos e ideológicos, ao mesmo

tempo que rompia com o circuito mercadológico (portanto, institucional) que parecia

cada vez mais arregimentar os artistas. Prova disso foi o caráter de “desobediência

civil” que o evento teve, ao desrespeitar os 84 cortes indicados pela censura,

culminando com a intervenção policial e sua proibição. No programa, o diretor

escreveu em tom provocativo dirigido tanto aos comunistas quanto aos tropicalistas182:

“Os caminhos da esquerda revelaram-se becos diante do maniqueísmo

governamental. Já nada vale autoflagelar-se realisticamente, exortar platéias ausentes

ou vestir-se de arco-íris e cantar chiquita bacana e outras bananas. Necessário, agora,

é dizer a verdade como é. E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós,

como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social.

Conseguimos fotografar nossa realidade, conseguimos premonitoriamente vislumbrar

seu futuro, mas não conseguimos surpreendê-la no seu movimento. (...) É necessário

180
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro. Op.cit. p. 157
181
GORNI, Marcelina. Flávio Império: arquiteto e professor. Dissertação de Mestrado, Programa de
Arquitetura e Urbanismo, USP/São Carlos, 2004, p. 14. Para uma análise mais detalhada deste
espetáculo e suas implicações para o deslocamento das formas de resistência à época ver COSTA, Iná.
Sinta o drama. Editora Vozes, Petrópolis, 1998, p. 200-205.
182
BOAL, Augusto. “O que pensa você da arte de esquerda?” IN: PRIMEIRA Feira Paulista de Opinião.
(Programa). São Paulo, 1968 (Acervo AMM da Divisão de Pesquisas - Idart / CCSP).
110

pesquisar nossa realidade segundo ângulos e perspectivas diversas: aí estará seu

movimento. Nós, dramaturgos, compositores, poetas, caricaturistas, fotógrafos,

devemos ser simultaneamente testemunhas e parte integrante dessa realidade.

Seremos testemunhas na medida em que observamos a realidade e parte integrante

na medida em que formos observados”.

No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, estas duas vertentes teatrais,

radicais e libertárias cada qual à sua maneira, entraram em choque com outro tipo de

dramaturgia, defendida pelo PCB, ainda presa aos valores do nacional-popular e da

linha “emoção-consciência-catarse-resistência”, que passou a ser denominada de

“realismo crítico”183. A partir de 1973, o contra-ataque dessa vertente dramatúrgica

nacional-popular será sistemático. Em 1976, triunfa com a peça Gota d’água, de Chico

Buarque e Paulo Pontes, grande sucesso de público, que apontava para a superação

do irracionalismo e da agressão como meios de expressão teatral, tidos como

responsáveis pelo afastamento do público. Essa perspectiva já estava presente nos

debates propostos pela dramaturgia ligada ao PCB no imediato pós-golpe, que

considerava a “classe média progressista” como o único público teatral viável, o qual

deveria se “divertir” ao ver um espetáculo engajado184. Este público deveria ser

atingido pela ocupação seletiva do mercado, nos moldes empresariais, dada a

impossibilidade de um teatro popular realizado em outros circuitos. Tendo como

princípio estético o “realismo”, como alvo o “público” pagante de classe média, e como

princípio político a resistência “democrática” pautada pela soma de todos os

segmentos contra o regime, a dramaturgia ligada ao PCB acabou sendo questionada

pelas vertentes teatrais simpatizantes da luta armada e pela vaga experimental e

contracultural a partir de 1968. A peça Papa Highirte, escrita por Vianinha em 1968, é

uma resposta teatral às dissidências que apostavam na luta armada, reiterando a linha

de atuação política do PCB entre 1965 e 1967, ou seja, a resistência civil e frentista

183
VIANNA Filho, Oduvaldo. Entrevista a Luiz Werneck Vianna. Opinião, 29/7/1974, p. 161-173
184
VIANNA Filho, O. “Perspectiva do teatro em 1965” IN: PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: teatro, televisão,
política. São Paulo, Brasiliense, 1983, p.103/104
111

contra o regime185. Em Rasga Coração, de 1974, Vianinha além de reiterar a luta civil e

a consciência militante ainda que submetida às restrições do cotidiano, critica a

“contracultura”, encarnada no personagem Luca, filho hippie de um militante comunista

que sobrevivia como pequeno funcionário público.

O que importa demarcar é que a implosão ideológica do público teatral

almejado e idealizado pela dramaturgia comunista, entre 1968 e 1972, acabará por

afastar, momentaneamente, a presença de extratos mais amplos da classe média (ou

“pequena burguesia”) nas platéias. Obviamente, não podemos esquecer a violenta

censura e repressão que se abateu sobre o meio teatral a partir do AI-5, processo que

foge à nossa proposta de análise, mas que certamente dificultava a montagem de

qualquer peça mais crítica. A crise de público, tão discutida no início dos anos 1970,

revela não só uma mudança estrutural da platéia de teatro, mas também a própria

crise da função política do drama, exercitada desde os anos 1950 e vivida sob a égide

da “emoção-consciência-resistência-catarse”. Quando o Teatro Oficina se propunha a

fazer um teatro “contra o público”, teatro de “agressão”, ou quando o TUSP dizia que

era preciso “morrer o intelectual para nascer o revolucionário”, como afirmava a

chamada de capa da sua revista de maio de 1968, essas não eram meras expressões

figuradas.

O teatro mais impactante de 1968 representou, em cena, a implosão da base

social e ideológica de uma platéia até então mais ou menos coesa e com amplo

potencial de crescimento numérico. O programa-manifesto d’O Rei da Vela era como

um verdadeiro epitáfio de todas as tentativas de construir, no público, uma consciência

que fosse a base de uma ação coletiva transformadora: “Tudo procura transmitir essa

realidade de muito barulho por nada, onde todos oscaminhos tentados para superá- la

até agora se mostraram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver que tem

185
PATRIOTA, Rosângela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2007, p. 57.
Poderíamos vislumbrar nesta peça de Vianinha, que tematiza a crise do populismo e o golpe de estado
em Alhambra um imaginário país latino-americano, um diálogo direto com Terra em Transe de Glauber
Rocha. Entretanto, esta pista deve ser aprofundada, o que está fora das preocupações deste texto.
112

sido a não- história do Brasil destes últimos anos, à qual todos nós acendemos nossa

vela para trazer, através da nossa atividade cotidiana, alento”.186

A ousadia formal, tão marcante para a renovação do teatro brasileiro, deveria

romper os limites do “bom gosto” e capacidade de assimilação (estética e ideológica)

da platéia “média”. Nelson Rodrigues, em uma crônica de 1968, sem o compromisso

ideológico de analisar o teatro como um “homem de esquerda” (aliás, muito pelo

contrário), acabou sendo um dos primeiros a perceber o processo de implosão do

público teatral, potencializado pelo “teatro de agressão”187: “Mas nem tudo é vão no

novo teatro. Quem o diz é o José Celso. Segundo o jovem diretor, nem só os

compreensivos enchem a sua platéia. Há uma meia dúzia que,chocadíssima, “muda

de lugar”. Ótimo, ótimo. E, realmente isso jamais aconteceu com Sófocles,

Shakespeare ou, Ibsen. A platéia de tais autores nunca trocou de cadeira. Não há

dúvida. Aí está uma deslumbrante conseqüência ética, sociológica, ideológica ou que

outro nome tenha. (...) Chegará um dia em que ninguém irá ver Shakespeare, com

medo que o Hamlet [saia do palco e] lhe bata a carteira”.

Cinema

No cinema, a resposta ao golpe militar foi configurada como um mergulho

radical na busca de explicações para a derrota das esquerdas, encaminhando-se para

duas tendências: o exame da derrota pela avaliação crítica das contradições dos

projetos políticos anteriores, cujos arautos eram os intelectuais (O desafio, Paulo

Cesar Saraceni, 1965, Terra em Transe, 1967), e o reexame da atuação histórica das

classes sociais, seu conservadorismo (Opinião Pública, Arnaldo Jabor, 1967) ou

186
CORREA,José Celso (entrevista-manifesto). Arte em revista, 1, São Paulo, Kairos, 1979, p 63. Para
uma crítica estético-política ao projeto teatral do Oficina, ver COSTA, Iná C. A hora do teatro épico no
Brasil. (p. 167-187).
187
RODRIGUES, Nelson. O obvio ululante. São Paulo, Cia das Letras, 1993, p. 130
113

passividade (Viramundo, Geraldo Sarno, 1965)188. Os realizadores mergulharam de

maneira mais radical na crise do intelectual de esquerda e dos seus projetos, sem

abrir mão da experimentação fílmica, que caracaterizou o eixo mais dinâmico do último

Cinema Novo e do primeiro Cinema Marginal189. Sem o compromisso com o grande

público, sem um “sistema” estabelecido, como na música, o cinema pode revisar sua

posição diante da resistência, deixando de ser a simbolização catártica da resistência

civil, para se transformar no exame das causas perdidas, a partir da dissecação do

intelectual-herói derrotado historicamente. O exame da crise do intelectual e dos

projetos históricos da esquerda foi radicalizado como material para a própria

renovação da narrativa fílmica, ao menos até meados de 1970, direcionado para um

público restrito, beirando a agressividade e evitando a fácil comunicação com o grande

público, uma das tendências da época190.

A primeira tentativa de realizar um cinema engajado de esquerda, no Brasil, tal

como nota-se nas obras de Alex Viany (Agulha no palheiro, 1951) e Nelson Pereira

dos Santos (Rio, 40 graus, de 1954 e Rio, Zona Norte, de 1957), nasceu como

tentativa de politizar gêneros fílmicos mais populares, como os musicais e o

melodrama. As produções musicais da Atlântida, reelaboradas dentro dos princípios

do neorealismo italiano, serviram de base para os primeiros filmes engajados dos anos

1950. Nesse sentido, a cinematografia de esquerda, inicialmente, se colocava na

tradição do cinema popular carioca, ainda que criticando a alienação das chanchadas

e comédias populares191. Apesar de haver certa memória sobre o cinema brasileiro,

sistematizada sobretudo pela crítica especializada, que trata os primeiros filmes de

Nelson Pereira dos Santos como os precursores do Cinema Novo, há uma

188
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2001, p. 63
189
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1991
190
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno...Op.cit, p. p.66
191
NAPOLITANO, M. “A música em Rio, Zona Norte: os impasses de um projeto estético-ideológico de
esquerda nos anos 1950”. Paper apresentado no XXV Símpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009.
Neste trabalho sigo a pista de Alex Viany, em “Introdução ao cinema brasileiro” (Rio de Janeiro, INL,
1959)
114

descontinuidade clara entre essas obras e o movimento que explodiu em 1962.

Distanciamento não só estético, mas sobretudo na sua relação com o público. Os dois

filmes de Nelson Pereira dos Santos operam elementos musicais e dramáticos

ambientados em meios sociais populares, operados por uma linguagem fílmica

basicamente realista e narrativa, facilmente assimilável pelo público mais amplo. O

público de cinema brasileiro, incipiente e heterogêneo, se dividia em dois grandes

blocos: um segmento mais popular e suburbano, que garantia o sucesso das

chanchadas e comédias dramáticas da Atlântida, e um público mais seletivo, que

buscava um cinema próximo da estética hollywoodiana, alvo dos filmes da Vera Cruz

paulista192.

Nessa incipiente tentativa de produzir um cinema brasileiro, popular e engajado

não havia, até o final dos anos 1950, uma negação dos princípios fílmicos do cinema

comercial vigente na época (dramas e/ou chanchadas musicais). O que ocorre é uma

reapropriação de alguns estilemas e argumentos desse tipo de cinema, que os tornam

um pouco mais realistas e críticos. São precisamente esses os elementos que

desapareceram por ocasião da explosão do Cinema Novo, no início dos anos 1960. A

linguagem autoral e vanguardista, os argumentos herméticos, a narrativa intimista, os

personagens e situações alegorizados, e não dramatizados a partir de uma mimesis,

indicam claramente uma filiação muito maior com o cinema europeu contemporâneo

(principalmente o francês), temperado ainda pelo neo-realismo italiano, mais acessível

aos grandes públicos. No limite, até 1964, as duas vertentes (cinema de gênero e

cinema de autor) coexistiram na medida em que o Cinema Novo, apesar da vocação

experimentalista, ainda se pautava pelo projeto de engajamento artístico reformista e

nacional-popular, cujo mote era a “conscientização” da platéia.

Na trindade máxima dessa fase do Cinema Novo – Vidas secas (Nelson

Pereira dos Santos, 1963), Os fuzis (Rui Guerra, 1964) e Deus e o Diabo na terra do

192
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema.O caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Ed. Civilização
Brasileira/Embrafilme, 1981
115

Sol (Glauber Rocha, 1964) – nota-se que o experimentalismo, presente em vários

aspectos da linguagem fílmica (atuação, enquadramento dos planos, movimentos de

câmera, montagem, fotografia etc.) estava subordinado a um princípio de composição

em que a condução da narrativa e a sistematização das ideias e valores político-

ideológicos ainda predominam na estrutura geral da obra. Os elementos narrativos

emprestam certa dificuldade de assimilação, se tomamos como medida o padrão do

cinema comercial hollywoodiano, de ritmo ágil e narrativa mais linear, funcional em

relação à trama e mimética em relação ao mundo extradiegético. De qualquer forma,

aqueles elementos deixavam um amplo espaço de reelaboração por parte do

espectador, utilizando-se de recurso tipicamente literário, onde a palavra e a idéia não

eram totalmente diluídas e subordinadas à imagem realista, trabalhada num fluxo

narrativo linear e direto. Em outras palavras, este tipo de cinema, ainda mantendo elos

com a narrativa e os gêneros tradicionais, já apelava aos sentidos de um público mais

intelectualizado, alvo do estilo “autoral” dos diretores (sobretudo Glauber e Ruy

Guerra).

Nesse momento, temos o início de um processo de fechamento de público, um

cinema “para poucos”, pleno de referências e de desafios de decodificação e

reelaboração receptiva, negação de um cinema de massas, narrativo e segmentado

em gêneros. Se o teatro era o espaço primordial da “sociabilidade” de esquerda, o

cinema era o espaço de expressão dos grandes debates e dilemas desse segmento

ideológico, aspecto reforçado pela capacidade de síntese de idéias, situações e tipos

humanos, muitas vezes dialógicos e até contraditórios, através da imagem fílmica. Na

medida em que a primeira fase do Cinema Novo tentou fazer, ao mesmo tempo, um

cinema de autor e um cinema brasileiro (de gênero), esses dilemas específicos da

área cinematográfica se articularam às grandes questões nacionais – dependência,

contra-revolução, crise existencial e criativa – colocadas pela maioria dos filmes. Por

outro lado, o desafio do Cinema Novo era ser fiel a uma determinada idéia de “cultura

brasileira” e, ao mesmo tempo, situar o cinema brasileiro diante das mais valorizadas
116

escolas de cinema, sobretudo européias. O resultado desses dilemas, estéticos e

ideológicos a um só tempo, foi a dupla natureza do Cinema Novo: explorar as imagens

do atraso brasileiro através de um tratamento moderno, anti-convencional. Os

soldados de Os fuzis, a família de retirantes de Vidas secas, os camponeses e

cangaceiros de Deus e o diabo apresentavam imagens do arcaísmo, perpassado por

formas de representação extremamente modernas e ousadas, se afastando de

qualquer romantização ou estilização folclorizada, chaves de leitura consagradas pelo

grande público na filmografia anterior ao Cinema Novo.

No manifesto “Estética da fome”, Glauber Rocha assumia este afastamento

com as formas de representação convencionais do subdesenvolvimento, romantizadas

ou folclorizadas: “Enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o

interlocutor estrangeiro cultiva o sabor desta miséria, não como um sintoma trágico,

mas apenas como um dado formal. (...) Eis fundamentalmente a situação das artes no

Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os

exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em

termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos

limites da arte mas contaminam o terreno geral do político”193

O manifesto termina com outra alusão ao público: “[O Cinema Novo] não é um

filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a

consciência de sua própria miséria”194.

O que se viu, efetivamente, é que apenas um pequeno círculo de espectadores

quis (ou soube) mergulhar nesses dilemas, retratados nos filmes, sem prejuízo da

afirmação de uma esfera pública que prescindia da quantidade para aprofundar o

debate sobre seu principal protagonista, o próprio intelectual progressista de esquerda.

Se esse “fechamento” não foi totalmente em vão, sendo importante para a renovação

de um pensamento crítico sobre o cinema no Brasil, do ponto de vista comercial o

193
ROCHA, Glauber. “Estética da fome” IN: Arte em revista, 1, São Paulo, Kairos, 1979,p.16
194
Idem, p. 17
117

cinema brasileiro de ponta submergiu de vez na sua dependência crônica em relação

ao Estado, na medida em que optava por um cinema mais autoral, voltado para um

público pequeno e seleto. Mas havia outro lado. O choque entre a linguagem moderna

e a representação do arcaico, costuradas por uma cinematografia que demandava um

espectador atento e formado, tinha alguns vícios nascentes. As sutilezas e meandros

das narrativas e o caráter alegórico dos personagens nem sempre eram bem

resolvidos, em função de certo descuido, intencional na maioria dos casos, na

roteirização do argumento e na direção de atores, relegados em prol da “ideia” e da

“palavra”, substratos privilegiados da composição fílmica do Cinema Novo. Esses

vícios, em certa medida, ajudaram no processo de fechamento do público, pois

apostavam em um produto quase artesanal que ia à contramão da industrialização

crescente do cinema. Não é por acaso que nos anos 1970, num processo de

autocrítica feita por alguns diretores de esquerda em busca do público amplo, os

problemas do “acabamento” dramatúrgico e “qualidade técnica” dos filmes será um

dos fios da renovação do cinema brasileiro.

Após 1965, ao contrário do teatro que se consagrou como espaço da “catarse”,

o cinema optou pelo viés da autocrítica e da reflexão. De O desafio (Paulo César

Saraceni, 1965) até Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) há mergulho dos

cineastas (e seus filmes) no universo das contradições do intelectual de esquerda,

público privilegiado dessas obras. Nesse sentido, o cinema brasileiro foi um importante

foco de questionamentos. Como elemento de intervenção e crítica no próprio campo

intelectual, a segunda fase do Cinema Novo (1965-68) foi um vetor fundamental na

construção de uma consciência lúcida e, ao mesmo tempo, pessimista (ao contrário do

teatro e da música, por exemplo, mais exortativos e positivos) sobre o sentido histórico

do golpe militar, na medida em que se retratavam os dilemas políticos e existenciais

do intelectual de esquerda.

No ciclo fílmico que vai d’O Desafio (Paulo Cesar Sarraceni, 1965) ao Bravo

Guerreiro (Gustavo Dahl, 1968), passando pelo cataclisma de Terra em Transe


118

(Glauber Rocha, 1967), os fundamentos – temáticos, estéticos e políticos - do Cinema

Novo foram revistos, concentrando-se no exame das contradições do intelectual de

esquerda diante do fracasso histórico da Revolução Brasileira, tal como gestada na

aliança política com os nacional-reformistas no período pré-1964. Em certo sentido,

este exame crítico continua, sob outra configuração formal, em filmes que foram

sucesso de público, como Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Como era

gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), que expõe as contradições

da modernização brasileira, colocando em xeque a perspectiva antropofágico-

tropicalista. Em ambos, o processo de modernização é examinado fundamentalmente,

considerando-se a perda de referências ideológicas e diluição dos projetos nacionais.

O isolamento do intelectual, sua crise política e existencial, sua relação com as

classes populares e com o poder, passaram por um exame cuidadoso, cuja obra

máxima é o filme de Glauber. Neste, a crise da esquerda é ambientada em cenário

alegórico, ocupado por figuras grotescas, misto de carnaval, ópera bufa, farsa e

tragédia. Revisando suas próprias posições estético-ideológicas condensadas em

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Glauber mergulha na figuração barroca da

crise, mistura de transe político e abismo histórico. Como escreveu Ismail Xavier,

cotejando os dois filmes clássicos195: “Se antes viver no Brasil era estar apoiado no

sentido claro, inexorável, da história, agora viver no Brasil é entrecruzamento de

sentidos, agonia”.

Este “entrecruzamento de sentidos” agônico foi recuperado através de uma

chave irônica em O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), filme que

era, a um só tempo, ruptura e diálogo com o modernismo politizado do Cinema Novo.

Ruptura, pois recusava a visão dualista de Brasil, sendo o “Brasil Rural” a fonte das

identidades populares que fariam a revolução. Ao melhor estilo tropicalista, o moderno

e o arcaico, o popular e o massivo, o nacional e o estrangeiro eram embaralhados

195
Idem, p.70.
119

para contar a saga do marginal, “descendente de Chico Diabo” (algoz de Solano

Lopez na Guerra do Paraguai). A referência ganha ares de anti-herói civilizador,

soldado da Pátria e matador frio. O Bandido é a representação da farsa, encenada

numa metrópole do Terceiro Mundo, ao mesmo tempo, moderna e arruinada. Os

diálogos com as questões-chave do cinema pós-1964 também estão no filme: o povo

–herói se transmuta na massa informe que vaga pelas ruas do Centro de São Paulo, o

intelectual revolucionário se transmuta na figura do bandido-pop-hedonista, ponta de

lança da “explosão do Terceiro Mundo”, anúncio de uma revolução que não trará a

redenção, e sim o caos. “Quem tiver sapato, não sobra”, tal como profetiza o pregador

preso pela polícia no começo do filme. O Bandido inaugura, no cinema, uma outra

linha de “resistência cultural”, ancorada na crítica radical de valores, na dissecação do

nacionalismo de direita e de esquerda e na representação do Brasil como farsa

histórica, paralisada pelo choque do “arcaico-moderno”.

Ao contrário do campo literário, a segunda florada do Cinema Novo, não

propunha uma “deseducação” do intelectual nos moldes de Quarup, como condição de

afirmação do sujeito da resistência, mas mergulhava na sua crise específica, cuja

exumação expressava a crise maior do próprio campo ideológico. Em filmes clássicos

desta linha, como O Desafio e Terra em Transe, o intelectual era representado como

um ser trágico, indeciso e agonizante, cuja lucidez diante da derrota o encaminhava

para um impasse: suicídio ativo ou passividade melancólica. As obras em questão não

se propunham a resolvê-lo, e sim, quando muito, equacioná-lo. As cenas finais dos

dois filmes são paradigmáticas destas questões.

O personagem Marcelo (interpretado por Oduvaldo Vianna Filho) em O

Desafio, imerso em sua crise profissional, amorosa e política, catalisada pelo golpe

militar, oscila entre a busca de saídas individuais e a impotência coletiva. Na última

sequência do filme, cruza com uma criança pobre na escadaria da Lapa, ao som da

canção “Tempo de Guerra” (Edu Lobo) que abria a peça Arena conta Zumbi. A
120

canção, extradiegética, sugere a emanação da voz da (má) consciência do

personagem, e abre com uma frase direta: “como posso falar de amor, com tanta

gente sofrendo?”. Sabendo-se que vive em um “tempo de guerra, um tempo sem sol”,

Marcelo olha a menina, que, por sua vez, também o olha. A troca de olhares reitera a

“invasão da realidade” que perturba os conflitos interiores de Marcelo, acabando por

se afastar da menina, como se quisesse se afastar do mal estar que ela lhe provocara.

A alternância de planos em plongée e contra-plongée, acaba dando vez à câmera alta,

mostrando a descida do intelectual, escadaria abaixo, depois de alguma hesitação. A

troca de olhares entre os dois personagens - o intelectual-presente e o povo-futuro -

parece causar alguma perturbação nas duas partes, mas não o suficiente para que

alguma ação se efetive. Marcelo termina a descida da escada, em passos mais

rápidos e resolutos, para um destino que o filme não nos revela ou resolve196.

Terra em transe, neste sentido, também é modelar. A fragmentação da

consciência reformista e o esgotamento do ideário populista eram representados

através da própria fragmentação da linguagem fílmica e do dilaceramento da

expressão do artista/intelectual de esquerda. A este só restava um caminho: a

negação existencial e moral da sua classe e a ação direta (e até suicida) contra a

ditadura. A sequência que mostra o poeta-político Paulo (Jardel Filho), de Terra em

transe, avançando contra a barreira policial e agonizando solitário de metralhadora em

punho, é altamente reveladora dessa “opção”. Esse longo plano-sequência, afirma a

morte heróica e inútil como o “triunfo da beleza”, numa composição wagneriana

cacofônica e enigmática. Glauber estaria fazendo uma apologia à luta armada, como

196
O curioso é que Vianinha, que interpreta Marcelo, intelectual em crise, detestava este filme, tanto do
ponto de vista estético, quanto do ideológico. Aliás, o dramaturgo tinha uma postura crítica em relação ao
Cinema Novo como um todo, proferindo duras críticas ao aclamado Terra em Transe, por exemplo (“O
Brasil não é aqui. O Brasil não é esta merda que o Glauber vê”). Estas posições, quiçá representativas
daquilo que aqui chamamos de “núcleo duro” da política cultural mais afinada com o Partido Comunista
Brasileiro (Grupo Opinião e afins), revela a riqueza e complexidade das dinâmicas da “resistência
cultural”, para além das dicotomias simplistas do tipo “tropicália” versus “nacional popular”. Sobre o
debate de Vianinha com os cinemanovistas ver RAMOS, Alcides. “Oduvaldo Viana Filho e o Cinema
Novo: apontamentos de um debate estético-político”. Revista Fenix, 1/1, out-dez 2004. Disponível em
(http://revistafenix.pro.br/pdf/Artigo%20Alcides%20Freire%20Ramos.pdf., acessado em 19/8/2010).
121

saída necessária para uma trajetória errática e trágica do intelectual tragado pela

história, ou estaria afirmando a impotência e o esgotamento político daquele tipo

social? Ao contrário do padre Nando de Quarup, no qual o seu transe da consciência

se resolve na adesão lúcida à luta armada, como apenas mais um entre os

guerrilheiros, em Terra em Transe, Paulo arrasta sua amada, personagem metafórico

das posições cautelosas do Partido Comunista Brasileiro, para a morte heróica e

épica, tanto quanto inútil. Ou melhor, Glauber sugere que a “utilidade” histórica da sua

morte está na própria superação dialética daquele tipo de intelectual oscilante e

hesitante entre a direita e a esquerda, crente na modernização do Terceiro Mundo

como revolução passiva, sem massas. Mas não nos sugere o que viria depois, o que

para o debate de época não era uma questão menor.

Por volta de 1968, o chamado Cinema Marginal, desdobramento dos impasses

do Cinema Novo, nada mais faz do que radicalizar a crise existencial e ideológica do

artista/intelectual, diluindo sua representação na própria representação alegorizada da

marginalidade e no amoralismo, elementos tidos na época como antiburgueses por

excelência e distantes da teleologia da história defendida pela esquerda

nacionalista197. O grande público, ávido de dramas catárticos, narrativas lineares e

personagens modelares (para o bem ou para o mal) fugia dos filmes brasileiros mais

alegóricos. Mesmo relativos sucessos de bilheteria, como os já citados Macunaíma

(Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Como era gostoso o meu francês (Nelson

Pereira dos Santos, 1971), não chegaram a consolidar a ampliação do público de

filmes brasileiros de maneira sustentada e estrutural. Esse processo só ocorreria a

partir da segunda metade dos anos 1970, capitaneado por filmes que procuravam fugir

da linha do engajamento, como Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976) e

197
XAVIER, I. Alegorias....p. 13
122

Xica da Silva (Cacá Diegues, 1975), próximos da tradição das chanchadas e em

diálogo com a política cultural do regime de apoio ao “cinema brasileiro”198.

Paradoxalmente, o cinema engajado realizava, como expressão da resistência,

uma tarefa histórica que nem o teatro (momentaneamente “implodido” enquanto

sistema cultural fechado obra-público), nem a música popular (consagrada,

comercialmente, pelo grande público sem compromisso político, mas sensível às

mensagens ideológicas das canções) tinham condições de realizar. Foi através do

Cinema Novo, sobretudo em sua segunda fase, que se fez a dissecação mais

profunda do cadáver do intelectual de esquerda formado sob o populismo nacionalista.

Não por acaso, quando o Tropicalismo de Caetano e Gil quis colocar em

cheque a MPB nacionalista, ainda marcada pelo nacional-popular e consagrada pelo

gosto médio, amalgamou duas referências que, a princípio, atuavam em campos

distintos: a referência ao cinema de Glauber (no plano da representação, o uso da

alegoria e, no plano da relação com o público, o fechamento do círculo de ouvintes) e

ao teatro de José Celso (no plano da representação, o deboche e a carnavalização e,

no plano da relação com o público, a opção pela agressão ao gosto médio). Mas, na

música popular, a relação entre artista e público era menos direta e mais problemática,

mediada por um sólido sistema de comunicação e de produção / consumo de canções,

que tragavam o artista engajado, mesmo aqueles que se pretendiam outsiders e

críticos ao sistema.

Música popular

Na música popular, muito bem posicionada no mercado, as confluências entre

engajamento e formas mercantis de grande público massivo estão na base do

198
Rosane Kaminski, ao estudar a obra ficcional inicial de Sylvio Back – Lance Maior (1968), Guerra dos
Pelados (1971) e Aleluia, Gretchen! (1976) – aponta outras conexões possíveis entre cinema e política
nos anos 1960 e 1970, fora do mainstream consagrado pelo cinemanovismo, ou mesmo pelo cinema
marginal. Na ótica da autora, o entrecruzamento entre regionalismo (sulino), existencialismo difuso e
diálogos livres com as tendências dominantes no cinema brasileiro, marcaram os filmes em questão,
traduzindo outras perspectivas fílmicas sobre os dilemas da modernização brasileira. Ver KAMINSKI,
Rosane. Poética da Angústia: história e ficção no cinema de Sylvio Back. Tese de Doutorado em História,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007
123

conceito de Música Popular Brasileira (MPB). Nesta área artística, a cultura nacional-

popular e a afirmação da resistência simbólica, que apontava para o “dia-que-virá”

como o momento propício da ação histórica efetiva (ou seja, a queda do regime), eram

hegemônicos. Mas havia também uma pluralidade de posições estético-ideológicas,

desde a melancolia crítica de Chico Buarque, que duvidava do tempo como fator de

libertação, à tentativa de fazer uma “canção de barricadas” de Vandré, sem falar na

crítica radical do tropicalismo musical, que abalou a cena 68.

A música popular brasileira chegou na senda do engajamento por um caminho

bastante sui generis: o da bossa nova cosmopolita. A bossa nova explodiu em 1959,

no mesmo ano que o rock'n roll entrou com grande força no mercado brasileiro. Se os

dois gêneros tinham seus entusiastas em estratos sociais diferentes (a alta e a baixa

classe média, respectivamente), a faixa etária era quase a mesma: a juventude

urbana, entre 17 e 25 anos, aproximadamente. O relativo sucesso da bossa nova

entre o público jovem, comprovado pelo êxito dos shows inaugurais do movimento,

ocorridos em campi universitários, foi decisivo para a incorporação dessa estética

musical pelos intelectuais do movimento estudantil, como a base para uma canção

engajada nacionalista199.

O problema do público a ser atingido se colocava como a questão central para

a música popular engajada. Em um primeiro momento, a estética intimista, a

complexidade harmônica e as letras na linha “amor, sorriso e flor” foram bastante

criticadas pelos jovens engajados do movimento estudantil. Entretanto, a perspectiva

de que um movimento musical brasileiro que, bem ou mal, incorporava o samba

(apesar das influências jazzísticas) fosse a trilha sonora da juventude mais

intelectualizada não poderia ser desprezada pelos intelectuais e artistas de esquerda,

199
LINS E BARROS, Nelson. “Bossa Nova, colônia do Jazz”. Movimento/UNE, 11, maio 1963.
124

diante das duas opções “imperialistas” que ocupavam a cena musical: o jazz e o rock
200
.

Carlos Lyra, um dos “fundadores” da canção engajada no Brasil, desde 1961

estava atento ao samba tradicional e mesclava temas românticos com letras de cunho

nacionalista, mostrando o potencial crítico (nos termos da época) das canções da BN.

Sua ligação com o Centro Popular de Cultura da UNE, a partir de 1962, era uma ponte

do movimento bossanovista junto à cultura engajada de esquerda. Diga-se, o

manifesto do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins, pouco influenciou o campo

musical engajado, ao menos até 1964. Seus termos – estética simplória, conteudista,

comunicativa – não foram muito bem assimilados na música popular, já marcada pelas

novas exigências da bossa nova. Conforme Arnaldo Contier201 : “devido à inexistência

de um projeto específico para a área musical e em função da historicidade das

memórias sonoras desses compositores [Edu Lobo e Carlos Lyra,principalmente], o

projeto sobre a canção de protesto foi-se esboçando através de matizes poético-

políticos e musicais muito diversos”.

O show de dezembro de 1962, Noite da Música Popular Brasileira, que ocupou

o Teatro Municipal do Rio de Janeiro e foi produzido pelo CPC/UNE, foi a tentativa de

lançar a pedra fundamental da ponte com um público de novo tipo202. A criação do

restaurante Zicartola, em 1963, abriu outro espaço fundamental para a renovação do

gosto dos estratos mais jovens da classe média, proporcionando encontros sociais e

culturais com o “morro”. Essas pontes não uniram apenas duas tradições mas,

fundamentalmente, dois públicos: o jovem estudante de classe média e o “povo”, que

ao longo dos anos romperia os limites do público carioca e seria a base na expansão

do leque de ouvintes da música popular massiva. A “subida do morro”, já esboçada

alguns meses antes pelo encontro de Carlos Lyra e outros músicos da bossa nova
200
TRECE, David. “A flor e o canhão: A bossa nova e a música de protesto no Brasil. Questões e
Debates, 32, UFPR, Curitiba, 1997, p. 5
201
CONTIER, A. “O nacional e o popular..”. Op.cit., p. 27
202
GARCIA, Miliandre. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC (Centro Popular de
Cultura) da União Nacional dos Estudantes (UNE)”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 47, n. 47,
p. 127-162, 2004.
125

com os sambistas Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Keti, não havia conseguido

estabelecer uma estética musical integrada – entre o samba tradicional e o samba

moderno – mas havia trazido para o público de classe média a música dos grandes

sambistas líricos cariocas, legitimando-os perante os novos critérios de formação e

hierarquização de gosto musical que se anunciavam. O caminho foi esboçado por

músicos que buscavam uma bossa nova nacionalista ou uma canção engajada. Até

1964, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Lins e Barros, Vinícius de Moraes e outros

afirmavam a música popular como meio de problematizar a nação e “elevar” o nível

musical popular. Por meio dessas pontes que se construíam entre dois mundos,

cultural e socialmente divididos, a utopia defendida pela vanguarda artística estudantil

de “elevar” o gosto musical do “povo”, talvez não tenha se concretizado. Mas, sem

dúvida, ampliou-se o conhecimento de público de classe média, inserido no mercado

fonográfico, acerca da música popular brasileira de outras épocas e estilos

devidamente chanceladas pelos músicos “modernos e sofisticados”. Nascia o público

da MPB moderna, movimento que se afirmava e incorporava boa parte da tradição

musical.

Esse novo público de música popular brasileira (até 1965 se escrevia com

minúsculas) cresceu vertiginosamente depois do golpe militar. A música, aliada ao

teatro, tornou-se o grande espaço de sociabilidade e de educação sentimental do

“sujeito da resistência”, sobretudo a juventude de esquerda. Mas, diferentemente do

teatro, a música popular irá cada vez mais ocupar um espaço “midiático”, e será a

partir dele que seu público crescerá de maneira exponencial. Ironicamente, a chamada

“MPB” atingirá franjas de um público bastante popular, sobretudo ao longo dos anos

1970, mas não pela atuação das entidades civis, estudantis e sindicais, ligadas à

militância de esquerda (como se projetava nos tempos áureos do CPC), e sim pela

penetração crescente na televisão e na indústria fonográfica, atingindo amplas faixas

de consumo. Ao contrário do que ainda se afirma, sobretudo no plano da memória dos

protagonistas, não foram a música estrangeira ou os segmentos mais populares da


126

música brasileira (como a jovem guarda) que mais concorreram para consolidar o

mercado fonográfico em nosso país, criando um novo “sistema” de produção/consumo

de canções. Foi a chamada “Música Popular Brasileira” (MPB) que sintetizou a

tradição da grande música da “era do rádio”, nos anos 1930, com a renovação

proposta pela bossa nova, no início dos anos 1960. A “abertura” do público original de

música popular, de raiz nacionalista e engajada, se deu via mercado, com todas as

contradições que este processo acarretou na assimilação da experiência do ouvinte,

exacerbando a tensão entre “diversão” e “conscientização”. O momento inicial desse

processo de abertura de público que ganhou dinâmica de mercado própria foram os

programas musicais veiculados pela televisão, a partir de 1965, O Fino da Bossa e os

festivais da canção203. As trajetórias iniciais de Elis Regina e Chico Buarque de

Hollanda foram paradigmáticas, nesse sentido. A intérprete e o compositor-intérprete

que foram grandes fenômenos de vendagem na segunda metade dos anos 1960,

tinham uma característica comum: o estilo de interpretação de Elis e as canções de

Chico traziam em si a tradição do samba-canção e do samba carioca dos anos

1930/1940, ao mesmo tempo que incorporavam a ruptura da bossa nova204. Os dois

artistas foram os responsáveis pelo momento inicial de ampliação de um público de

MPB, que rompia os limites dos campi universitários e dos shows patrocinados por

entidades estudantis (ocorridos no Teatro Paramount, onde, por sinal, Elis e Chico

iniciaram suas carreiras em São Paulo). Os dados sobre vendas de discos desses dois

artistas são impressionantes. Elis, por exemplo, será a primeira cantora a atingir a

marca de 500 mil LPs vendidos (fato notável para 1965). Chico Buarque, entre 1966 e

1969, foi um dos três maiores vendedores de LPs e compactos, só perdendo para

Roberto Carlos e para os Beatles205.

203
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit. Para uma descrição detalhada dos festivais da canção
ver também HOMEM DE MELLO, Zuza. A Era dos Festivais. São Paulo, Editora 34, 2003.
204
Idem, p. 163
205
Pesquisa Semanal sobre vendas de Discos (São Paulo / Rio de Janeiro). IBOPE (1966-1968). Arquivo
Edgar Leuenroth, Unicamp, Campinas.
127

O público massivo do rádio, nos anos 1950, formado pelos extratos mais

baixos da classe média e pelos segmentos mais populares, foi em parte incorporado

pela “moderna” MPB. Esse segmento do público não teve o seu gosto marcado pelo

impacto da bossa nova, permanecendo ligado ao samba tradicional e às canções

românticas influenciadas pelo bolero. A partir de 1965, parte da MPB se abriu para

esse gosto musical mais tradicional, ampliando seu público. Uma audiência que,

inicialmente, teve contato com a MPB por meio da televisão para, no início dos anos

1970, ser incorporada pelo mercado fonográfico propriamente dito, tornando-se

consumidora de discos. Arrisco dizer que Elis Regina e Chico Buarque não “caíram”

no gosto popular e sim ajudaram a reinventá-lo, consolidando a tendência de abertura

do público de música popular no Brasil em direção a uma audiência massiva, processo

para o qual concorreu a música engajada e nacionalista (a “moderna” MPB). Grande

parte da experiência social da música popular (engajada inclusive) ocorrerá

“midiatizada” pela TV, pelo rádio e pelo disco. Isso não quer dizer que os shows, o

encontro físico do público nos espetáculos musicais – uma sociabilidade mais direta,

portanto – deixará de ser importante, mas que uma dinâmica nova articulava a

experiência social da música.

O Tropicalismo musical tentou, tal como o Tropicalismo teatral, “implodir” o

gosto médio e problematizar a vocação massiva da MPB da era dos festivais,

incorporando, provocativamente, a estética “cafona-kitsch”, contraponto das

convenções de “bom gosto” normativo da MPB, na chave dada pela tradição

experimental de vanguarda206. No caso do Tropicalismo, a incorporação de elementos

do “mau-gosto” buscava provocar o estranhamento do público diante das canções

engajadas de mercado, como foi dito várias vezes, sobretudo por Caetano Veloso.

Mas o tiro saiu pela culatra. Ao invés da “implosão” do público, tal como havia ocorrido

com o “tropicalismo” teatral, o que acabou ocorrendo foi uma nova ampliação da faixa

206
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Cotia, Ateliê Editorial, 1995, p. 107. Sobre o
tropicalismo musical ver também VILLAÇA, Mariana. Polifonia tropical: engajamento e experimentalismo
na música popular: Brasil e Cuba (1967-1972). São Paulo, Humanitas/ História Social-USP, 2004.
128

de consumidores da MPB, com o próprio movimento dos baianos passando a ser

classificado como uma das suas “tendências”. A força do mercado acabou por

incorporar o Tropicalismo, lembrado até hoje como um momento de renovação da

canção brasileira, por incorporar a linguagem pop e abrir caminho para uma audiência

de canções brasileiras “modernas” entre os adeptos da contracultura jovem e radical,

surgida a partir de 1968. Na festa de arromba da MPB sempre tinha espaço para mais

alguém, desde que ungido pelo gosto elástico das classes médias brasileiras, que

transformou a sigla em sinônimo de “bom gosto” e reconhecimento cultural207.

Tropicalismo

A confluência entre expressão teatral, cinematográfica e musical-popular,

naquilo que viria a ser mais tarde designado pelo nome de Tropicalismo, esboçada no

final de 1967, explodiria com toda força no início de 1968. As polêmicas em torno da

radicalização da proposta de agressividade do Grupo Oficina, potencializadas na peça

Roda Viva (que estreou em janeiro de 1968) tornaram público o debate em torno das

novidades surgidas, sobretudo na música e no teatro. Neste momento, as polêmicas

começam a apontar para a ideia de que aquilo tudo poderia se traduzir num

movimento.

Paralelamente ao sucesso da peça Roda Viva, em março de 1968 o debate em

torno de um novo movimento cultural e comportamental, já com o nome de

Tropicalismo, ganha as páginas da mídia cultural, com grande destaque. A seqüência

de manifestos e contra-manifestos, popularizou o termo, que foi adquirindo ora um

sentido de blague ora um sentido de crítica cultural arguta e radical. O primeiro

manifesto, intitulado Cruzada Tropicalista, teria sido escrito por Nelson Motta, a partir

207
A historiografia vem questionando, recentemente, estes padrões de gosto e sociabilidade musicais
impostos pela classe média intelectualizada e seu sentido histórico. Ver, por exemplo ARAUJO, Paulo
Cesar. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro, Record, 2001;
FERREIRA, Gustavo Alonso. Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e
os limites de um memória tropical. Dissertação de Mestrado em Historia. UFF. Niterói. 2007
129

de uma reunião de artistas e intelectuais que ironizavam a situação político-cultural do

Brasil naquele começo de 1968. Tratando-se de uma paródia do ufanismo

conservador, o manifesto Cruzada Tropicalista acabou provocando um conjunto de

reações na mídia e nas artes em geral. Logo em seguida, Torquato Neto assume o

movimento, escrevendo Tropicalismo para Principiantes208 , que esboça um súmula

programática para o movimento, ainda que incorporasse o tom de blague do primeiro

manifesto. Os dois primeiros manifestos provocaram uma sequência de réplicas e

artigos a favor ou contra a nova atitude. Ambos, porém, incorporavam a palavra

Tropicalismo ou Tropicália, ajudando, direta ou indiretamente, a consolidá-la como

moda cultural.

A peça do Grupo Oficina, ao incorporar a agressão, o mau-gosto e a linguagem

sensacionalista e apelativa dos meios de comunicação de massa, consagrava a idéia

de um movimento de vanguarda dessacralizadora que operava contra as bases

políticas e comportamentais da classe média brasileira. À frente única sexual, proposta

no 2º ato do Rei da Vela, paródica e carnavalizante, Roda Viva somava o elemento da

agressão, estética e comportamental, como procedimento básico da vanguarda

tropicalista. No primeiro semestre de 1968, na medida em que o movimento era

consagrado na mídia, as críticas ao tropicalismo, por outro lado, se concentravam na

aparente alienação daquela atitude de blague e paródia.

Nascido no interior das artes plásticas, o termo “tropicália” buscava ampliar as

possibilidades do público das exposições de arte, fazendo-o participante, literalmente,

da obra. Em 1969, Hélio Oiticica tentou definir a sua obra-ambiência, chamada

Tropicália, montada numa exposição no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro em

1967 e que, pouco tempo depois, emprestaria o nome para a composição de Caetano

Veloso. Vale a pena a longa citação209 : Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem

caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços

208
NETO, Torquato. Últimos dias de paupéria, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973, p.309-310
209
OITICICA, Hélio. Catálogo da Exposição na Whitechapel Gallery. Londres, 1969
130

que o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando,

os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como

tendo sua origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. É

extraordinário a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa

banqueta, as imagens de televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta.

Eu quis, neste penetrável, fazer um exercício de imagens em todas as suas formas: as

estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesa-mondrianesca), as

imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão ha três tipos de

coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa sucessão de

uma parte a outra) e a imagem televisiva.(...) Eu criei um tipo de cena tropical, com

plantas, areias, cascalhos. O problema da imagem é colocado aqui objetivamente,

mas desde que é um problema universal, eu também propus este problema num

contexto que é tipicamente nacional, tropical e brasileiro. Eu quis acentuar a nova

linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em

criar uma linguagem que poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos

nos colocar contra uma imagética internacional da pop e pop art, na qual uma boa

parte dos nossos artistas tem sucumbido.

Neste caso, a proposta sensorial não é mera atitude, mas torna-se homologia

de uma nova proposta de relação da vanguarda com o público das artes plásticas,

tema já discutido pelos historiadores da área210

Em fins de 1967 a poesia de Caetano Veloso, numa verdadeira afinidade

eletiva, remete ao espírito da obra-ambiência de Oiticica, ao propor um inventário das

imagens de brasilidade vigentes até então: “O monumento não tem porta/ a entrada é

uma rua antiga estreita e torta/ e no joelho uma criança sorridente feia e morta/

estende a mão (...) no pátio interno há uma piscina/ com água azul de amaralina/

coqueiro brisa e fala nordestina e faróis (...) emite acordes dissonantes/ pelos cinco mil

alto-falantes/ senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre mim (...)/ O

210
REIS, P. Op.cit; FREITAS, A. Op.cit.
131

monumento é bem moderno/ não disse nada do modelo do meu terno/ que tudo mais

vá pro inferno meu bem (....)”

Enquanto Oiticica esboça um roteiro para a sua obra-ambiência, Caetano

hiperdimensiona a amplitude deste roteiro, transformando o próprio conceito de Brasil-

nação em um imenso monumento-ruína, ambiência fantasmagórica e fragmentada,

onde o espectador-ouvinte tem diante de si um desfile das relíquias arcaicas e

modernas do Brasil. Não por acaso, a canção de Caetano começa citando a carta de

Pero Vaz de Caminha (relíquia fundadora), em tom de blague, tendo ao fundo o som

de uma floresta tropical e de percussão indígena. Ao contrário da proposta da

esquerda nacionalista, que atuava no sentido da superação histórica dos nossos

males de origem e dos elementos arcaicos da nação (como o subdesenvolvimento

sócio-econômico), o Tropicalismo nascia expondo estes elementos de forma

ritualizada, buscando provocar o público das artes para além do jogo catarse-emoção.

A ritualização paródica operada nas obras e discursos dos eventos e

personagens tropicalistas pôde assumir dois significados: por um lado, se afasta da

crença da superação histórica dos nossos arcaísmos, provocando no espectador a

estranheza diante de todos os discursos nacionalistas. Neste sentido, afirma o Brasil

como absurdo, como ente simbólico atemporal, estático e sem saída. Por outro, ao

justapor elementos diversos e fragmentados da cultura brasileira, o Tropicalismo

retoma a antropofagia, na qual as contradições são catalogadas e explicitadas, numa

operação desmistificadora, crítica e transformadora211.

Uma série de convergências de obras e eventos demarcou a nova crítica

cultural. A peça Rei da Vela estreou no mesmo mês das apresentações do III Festival

de Música Popular da TV Record. Neste, Caetano Veloso e Gilberto Gil concorriam

com músicas consideradas inovadoras, demonstrando uma busca de maior abertura

estética, em direção ao chamado "som universal" e ao universo da cultura pop212. Por

211
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. Op.cit.
212
O som universal (de Caetano e Gil). Folha de S.Paulo, vol.02, nº 3, 12/out/1967
132

outro lado, vale lembrar que o espetáculo O Rei da Vela foi dedicado à Glauber

Rocha, diretor de Terra em Transe, o filme de maior impacto artístico de 1967 entre a

intelectualidade brasileira. Como num jogo de espelhos, fechava-se a trindade que

mais tarde iria se transformar nos ícones máximos da ruptura tropicalista. Se há

alguma relação entre estas três obras (ou momentos) inaugurais é a busca da

experiência do choque em relação às expectativas de um público formado nos valores

do nacional-popular, essencialista, engajado e realista.

Tropicalismo musical

No campo musical o movimento tropicalista ganhou seu maior público e fama.

Inicialmente, não havia um questionamento direto das estruturas do festival, mas uma

tentativa de abertura em relação a novos temas e tratamentos. Ao contrário das lendas

que se fixaram no plano da memória social, as canções defendidas por Caetano e Gil

no festival da TV Record de 1967 – Alegria, Alegria e Domingo no Parque - não

“chocaram” o público, sendo relativamente bem recebidas, apesar do estranhamento

inicial. Já em fins de 1967, Gilberto Gil assumia a busca do som universal, próximo à

estética pop internacional. Em entrevista ao Jornal da Tarde, ainda cercado do

sucesso de Domingo no Parque, Gil declarou213: “Música pop é a música que

consegue se comunicar - dizer o que tem a dizer - de maneira tão simples como um

cartaz de rua, um outdoor, um sinal de trânsito, uma história em quadrinhos. É como

se o autor estivesse procurando vender um produto ou fazendo uma reportagem com

textos e fotos”.

O sucesso e a vitalidade criativa do Tropicalismo musical acabaram por fazer

com que o debate fosse centralizado neste campo artístico, principalmente em 1968,

quando as posições se acirraram. Se Caetano, Gil, Guilherme Araujo, Gal Costa, Tom

Zé se esquivavam em definir o movimento no momento de sua emergência, suas

213
apud PAIANO, E. O berimbau e o som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60.
Dissertação de Mestrado em Comunicação, ECA/USP, 1991, p.146
133

experiências poético-musicais e sua nova postura frente à tradição musical e ao

mercado fonográfico acabaram por acirrar a polêmica deflagrada em outros campos

da arte. Seria o Tropicalismo uma expressão musical alienada e de baixa qualidade?

Seria o Tropicalismo o demarcador de um novo momento musical no Brasil, como

tinha sido a Bossa Nova?

O lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circensis, em agosto de 1968, foi o

grande acontecimento musical do movimento. O LP trazia uma colagem de sons,

gêneros e ritmos populares, nacionais e internacionais, embaralhando as escutas e

hierarquias de gosto construídas pela MPB desde a bossa nova. Em meio às

composições do disco, assinadas por Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Tom

Zé, com arranjo de Rogério Duprat, pode-se ouvir diversos fragmentos sonoros e

citações poéticas, num mosaico cultural saturado de crítica ideológicas: Danúbio Azul,

Frank Sinatra, A Internacional, Quero que vá tudo pro inferno, Beatles, ponto de

umbanda, hino religioso, sons da cidade, sons caseiros, carta de Pero Vaz de

Caminha etc. As relíquias do Brasil explodiam sem muita preocupação de coerência

sistêmica e orgânica por parte dos autores. Entre as composições de outros autores,

destacam-se duas: As três caravelas, versão ufanista de João de Barro para uma

rumba cubana que, deslocada de seu contexto, soa ambígua: ora como uma paródia

ao nacionalismo ufanista, ora como alusão difusa a um latino-americanismo libertário;

Coração materno, opereta grotesca de Vicente Celestino que na voz de Caetano

oscila entre a blague dadaísta (ao se utilizar de uma música desvalorizada pelo gosto

vigente na MPB, justamente para problematizá-la) e a nostalgia da redundância (na

medida em que traz à tona o material musical cultural recalcado pela linha evolutiva,

mas parte formativa de uma sensibilidade musical arcaica). O disco-manifesto

Tropicália ou Panis et Circensis serviu como ponto de convergência para o grupo

baiano e selou as afinidades com a vanguarda paulista do grupo Música Nova 214.

214
O grupo Musica Nova, surgido por volta de 1963, era composto por jovens maestros e compositores
da vanguarda paulista da música erudita, que buscavam um novo código e um novo mateiral sonoro para
134

Nos festivais da canção realizados em 1968, o tropicalismo, além de servir

como rótulo comercial, possuía muitos entusiastas entre o público e os jurados. Ficava

claro, pouco a pouco, que havia uma tentativa da indústria cultural em transformar as

experiências poético-musicais do grupo baiano em uma fórmula reconhecível, no limite

de tornar-se mais que um estilo, um gênero, para um público jovem bem delimitado.

Ou seja, o tropicalismo questionava um tipo de audiência, mas era bem sucedido na

construção de outra, ligada à juventude influenciada pela contracultura. No vácuo das

polêmicas abertas por Caetano e Gil surgiam duas novas estrelas; Tom Zé (ganhador

do Festival da TV Record de 1968) e Gal Costa.

O surgimento e o impacto do Tropicalismo nos meios de comunicação e a

hegemonia que o campo musical acabou ganhando no conjunto do movimento, a partir

de meados de 1968, catalisaram os interesses dos representantes do concretismo.

Sentindo aproximação com sua teoria da informação, assim como da discussão

formalista da obra, os concretistas pioneiros do grupo Noigrandes realizaram, em

1968, uma definitiva aliança com os músicos tropicalistas. Na verdade desde 1966,

sobretudo após a declaração de Caetano sobre a "linha evolutiva" no já citado debate,

os representantes da vanguarda paulista na poesia, na crítica e na música já

vislumbravam algumas possibilidades de união com o grupo baiano. Com o

lançamento do livro-manifesto de Augusto de Campos, O Balanço da Bossa, essa

convergência se torna pública e assumida215. Ao lado do LP Panis et Circensis, o livro

organizado por Augusto de Campos tem importância fundamental para o processo que

estudamos, na medida em que se afirma não só como manifesto em favor do

Tropicalismo (ainda que seus artigos tenham intenções críticas), mas também como

programa de criação estética e projeto de memória histórica com base nos seguintes

marcos históricos das vanguardas: 1922, 1956, 1968. Modernismo Antropofágico

compor suas peças. Destacam-se Rogério Duprat, Gilberto Mendes, Julio Medaglia, entre outros. Ver
ZERON, Carlos Alberto. Fundamentos histórico-políticos da Música Nova e da música engajada no Brasil
a partir de 1962: O salto do tigre de papel. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP,
1991.
215
Para um aprofundamento das relações entre concretistas e tropicalistas ver: SANTAELLA, M.L.
Convergências: poesia concreta e tropicalismo. São Paulo, Nobel, 1984
135

(osvaldiano), Poesia Concreta e Tropicalismo. O momento sonhado por Osvald

parecia ter chegado para a tradição da vanguada moderna brasileira: a massa comia o

biscoito fino que aquele fabricava.

O Tropicalismo musical, mesmo com grande público, não estava isento de

críticas violentas por parte das correntes nacional-populares e de esquerda. Uma parte

do público reagiu às provocações tropicalistas, sobretudo a audiência musical. O

episódio que envolveu Caetano e a platéia de esquerda do TUCA, em 1968,

representou o momento culminante deste conflito. Ao apresentar a música É proibido

proibir , cujo título aludia ao espírito jovem e libertário do 68 parisiense, Caetano foi

duramente vaiado pela platéia. Em meio a uma performance que reunia Gil, Os

Mutantes e um hippie norte-americano se contorcendo no palco, Caetano proferiu seu

famoso discurso, atacando o público de esquerda no ponto nevrálgico da questão: “Se

vocês forem em política, como são em estética, estamos feitos”.

Os artistas engajados também reagiram contra o tropicalismo musical, mesmo

que o movimento não abrisse mão completamente da discussão sobre o papel social

da arte216.

O pretenso universalismo era um dos pontos questionados. Sidney Miller, por

exemplo, denunciava que o universalismo em música popular era apenas uma fórmula

mais eficaz para, "através da universalização do gosto popular, firmarem posição os

grupos que dominam o mercado de disco"217. Nesse sentido não seria a tradução nem

do progresso, nem de uma nova realidade sócio-econômica. Pura divisão de mercado

e rótulo para vender. Outra crítica freqüente era a supervalorização da liberação

comportamental-individual feita pelos adeptos do novo movimento. Alguns artistas e

intelectuais engajados não perdoaram. Augusto Boal, por exemplo, tendo como alvo o

teatro tropicalista (termo que ele aceitava, mas acrescentando os adjetivos

“chacriniano-dercinesco-neo-romântico") considerou esta opção um grande equívoco

216
Sobre as convergências entre engajamento e tropicalismo, ver VILLAÇA, Mariana. Op.cit.
217
MILLER, S. "O universalismo e a MPB". In Revista de Civilização Brasileira, vol. 04, nº 21/22, set/dez.
1968, pp. 207-221.
136

para a arte de esquerda. Para ele, o Tropicalismo retomava o teatro "burguês",

incitando uma platéia burguesa a tomar iniciativas individuais contra uma opressão

difusa e abstrata. Boal ainda enumera as características do Tropicalismo: era “neo-

romântico", pois só atingia a aparência da sociedade e não a sua essência; era

"homeopático", pois queria criticar a cafonice, endossando-a; era "inarticulado", pois

culminava numa crítica assistêmica; era "tímido e gentil" com os valores da burguesia;

e, finalmente, não passaria de uma estética "importada"218.

Apesar das críticas e polêmicas, 1968 é lembrado, até hoje, pelo triunfo desta

nova estética e pela gênese de uma nova crítica cultural, que mudava completamente

a perspectiva sobre a arte engajada, o nacionalismo e a idéia de resistência cultural. O

Tropicalismo, com o passar do tempo, seria transformado em monumento e lugar de

memória, verdadeira medida crítica para avaliar a cultura de esquerda.

****

Reflexão, diversão e agressão foram categorias que acabaram por

problematizar o projeto de educação sentimental, estética e ideológica, marcando a

crise da dimensão pública da arte engajada, entre 1964 e 1968. Novos códigos, novos

segmentos sociais, novos meios de divulgação concorreram para selar as mudanças

da arte engajada no Brasil. É claro, o acirramento da repressão provocado pelo AI-5,

como a censura e o exílio que pesaram sobre os criadores, não pode ser minimizado.

Por outro lado, ao longo dos anos 1970, a arte engajada ganhou um novo alento, na

medida em que a necessidade de uma “resistência” se impôs aos artistas como um

todo, e estes se tornaram verdadeiros arautos da sociedade civil oposicionista ao

regime militar. Entretanto, os conflitos e tensões internas ao campo da resistência,

gestados no final dos anos 1960 em torno do Tropicalismo, nunca foram

completamente superados, demarcando, inclusive, dois lugares de memória

diferenciados para pensar a história da cultura brasileira.

218
BOAL, A. O que você pensa da arte de esquerda? Manifesto da I Feira Paulista de Opinião, São
Paulo, 1968
137

O caldeirão onde essa cultura radical de oposição foi cozido, a partir dos anos

1970, foi a indústria cultural. Na música popular, a “resistência” se confundiu com a

própria canção comercial, para a qual a existência de um público massivo e fiel,

aglutinado em torno da idéia de MPB, garantia uma independência relativa do artista

(em relação à dependência do mecenato do Estado). No cinema e no teatro, restou a

busca do apoio estatal para reencontrar o grande público. O teatro, buscou “refazer” o

público (como atestam as “campanhas de barateamento” patrocinadas pelo MEC) e o

cinema ora tentou “prescindir” do público (mediante filmes “autorais” alternativos), ora

tentou ampliá-lo (produzindo filmes com mais apelo “comercial” feitos por diretores de

esquerda, como Cacá Diegues). O apoio oficial a essas áreas se revigorou a partir de

1975, com a nova orientação do Ministério da Educação e Cultura, sintetizada na

Política Nacional de Cultura219 .

O peculiar caminho da arte engajada brasileira nas suas áreas de expressão

vocacionadas para o espetáculo nos oferece um campo de reflexão altamente

instigante, que deve ser pensado para além do jogo “cooptação-resistência” do artista

engajado em relação ao “sistema”, ou do “sucesso- fracasso” de sua pedagogia

política220. Procurei demonstrar como a dita “hegemonia cultural” da esquerda pode ser

pensada dentro dos problemas mais amplos na área da cultura, revelando processos

estruturais que mudaram as formas de consumo cultural no Brasil. Rodrigo Czajka

lança uma proposta de reflexão instigante, apontando que “resistência” e “hegemonia”

constituem categorias centrais em processos culturais distintos, mas complementares,

no Brasil na virada dos anos 1960 e 1970221. Em suas palavras: “O mercado

transformou a resistência política desorganizada em símbolos culturais de toda uma

219
RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais. São Paulo, Paz e Terra, 1987, p. 117;
MICELI, Sergio. Estado e cultura no Brasil, São Paulo, Difel, 1984, p. 56
220
No caso da relação do PCB com a mídia “capitalista”, Sacramento, Roxo e Goulart chamam atenção
para a dialética entre “infiltração” (mídia como instrumento) e “cooptação” (mídia como
instrumentalização) que marcou a presença dos militantes culturais do PCB na TV brasileira, situada nos
quadros de uma modernização completa dentro da qual estes artistas foram elementos ativos.
SACRAMENTO, Igor et alli. “O PCB e a modernização midiática no Brasil”. Paper apresentado no V
ENECULT (Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), Salvador (BA), 2009, p.3.
221
CZAJKA, R. Praticando delitos...Op.cit. p.232-235.
138

geração de intelectuais e artistas”. Neste sentido, a hegemonia deve ser vista como o

resultado de um processo de integração, via imaginário objetivado em produtos

culturais, ao contrário da “resistência” que deve ser pensada sob o viés de “disputas

específicas dos setores de produção cultural de esquerda”.

A vontade de chocar e reformar o público de arte, comum a todas as

experiências tropicalistas, tampouco teve o mesmo efeito em todas as áreas

artísticas, num movimento de recepção que impactou o posterior desenvolvimento não

só da área em questão, mas o conjunto da resistência cultural em sua variável

contracultural. O início dos anos 1970 assistiu um debate acirrado entre os herdeiros

da vanguarda, os adeptos da contracultura e a “corrente da hegemonia”, espaço

ocupado pelo PCB e por seus compagnons de route filiados à tradição nacional-

popular. A necessidade eventual de alianças táticas entre as duas correntes nos anos

de chumbo, ambas ameaçadas pela repressão e pela censura, nem sempre pode

superar as tensões e conflitos, que serão examinados com mais detalhes no próximo

capítulo.
139

CAPÍTULO 4

A HEGEMONIA DO VAZIO: LUTAS CULTURAIS NOS ANOS DE CHUMBO

O vazio cultural colocado em questão

Em um famoso artigo, publicado na revista Visão em julho de 1971, o jornalista

Zuenir Ventura diagnosticava a situação da via cultural brasileira: “Alguns sintomas

graves estão indicando que, ao contrário da economia, nossa cultura vai mal e pode

piorar se não for socorrida a tempo. Quais os fatores que estariam criando no Brasil o

chamado ‘vazio cultural?’”222.

Tomando como ícones os movimentos culturais dos anos 1950 e 1960 –

arquitetura moderna, cinema novo, bossa nova, grupo Arena – Ventura caracterizava a

década que se iniciava como um período de decadência cultural, com o predomínio da

“quantidade sobre a qualidade”, o expurgo das universidades, o êxodo de cérebros e a

“emergência de falsos valores estéticos”, sob a hegemonia da indústria cultural. Na

busca das causas do “vazio cultural”, Ventura indicava não apenas motivações

intrínsecas à vida intelectual, mas sobretudo, rupturas históricas vividas fora do campo

estritamente cultural: as perplexidades e constrangimentos causadas pelo golpe militar

de 1964 e a repressão exacerbada pelo AI-5, criando um “inapelável mecanismo de

punição” aos opositores, cujo epicentro era a censura prévia223. Ao lado destas causas

externas, Ventura afirmava que a cultura vivia “uma fase de transição em que, como

222
VENTURA, Z. “O Vazio cultural” IN: 70/80: Cultura em Trânsito. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p.40
223
A rigor, a censura às diversões públicas durante do regime ainda estava ancorada, em linhas gerais,
no Decreto 20.493, de 24/1/1946, acrescido da Lei 5536 (21/11/1968) e do Decreto-Lei 1077 (26/1/1970).
O primeiro regulamentava a censura à peças teatrais e filmes, bem como criava o Conselho Superior de
Censura (só implementado em 1979). O segundo instaurava a censura prévia, com base na crença de
que a “subversão” na cultura se alimentava da “perversão moral” e diluição dos “bons costumes”. Além
destas reformas normativas e doutrinárias, a Censura Federal se reorganizou do ponto de vista
administrativo, tentando ampliar, coordenar e profissionalizar seus quadros, sobretudo após 1972. Do
ponto de vista do alcance, a censura oficial foi mais presente e sistemática no campo das “diversões
públicas” (cinema, teatro, música popular, televisão, rádio), do que na literatura e nas artes plásticas. A
censura à grande imprensa, a rigor, era feita de maneira informal, através de canais de comunicação (ou
de pressão, se quisermos) entre o Ministério da Justiça, os donos das empresas jornalísticas e os
editores-chefes. Ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam....; KUSHNIR, Beatriz. Cães de
Guarda. Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro, Boitempo Editorial, 2004.
Para uma visão geral sobre a censura ver FICO, Carlos.. (Org.). Censura no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2010.
140

superestrutura, tenta adaptar-se às alterações infraestruturais surgidas no país”224,

tendo como conseqüência um estímulo à massificação e à industrialização, corolárias

do processo de modernização capitalista que o Brasil conhecia, sob os auspícios do

regime militar. O artigo era finalizado com a constatação de um impasse no seio da

cultura, que se traduziria por uma série de dicotomias: racionalismo versus

irracionalismo; industrialismo versus marginalismo; vanguarda versus consumo.

Ventura sugere que estas dicotomias, ao se apresentarem como “veredas da

salvação” auto-excludentes, apontavam um falso caminho para a superação dos

impasses culturais.

Em outros artigos publicados na mesma revista, Ventura completa a noção de

“vazio cultural”. Em 1973, ele escreveu: “O vazio era mais uma metáfora para

descrever com certa exatidão o quadro cultural dos anos 1969/1971, em que as

correntes críticas, dominantes entre 1964 e 1968, se tornaram marginais, perdendo

em grande parte a possibilidade de influir diretamente sobre o seu público anterior”225 .

Ventura alertava, entretanto, que em 1973, o “vazio estava mais cheio”, ou seja,

constatava certas contradições na cena cultural, dada a existência de um público

relativamente amplo que consumia cultura com certa regularidade, afirmando a

existência de uma estrutura de produção cultural que não poderia ser desmontada

pela censura e pela repressão sem que houvesse graves prejuízos para a própria

economia, tão ciosamente estimulada pelos militares. Na superação do “dilema do

vazio”, Ventura identificava três caminhos, já trilhados à época: uma cultura de massa

“digestiva e comercial”; uma contracultura entre a negação do consumo massivo e sua

cooptação por este; uma cultura crítica, “tentando olhar para a realidade social e

política”.

Ao tratar da cultura “subterrânea” (underground), Ventura a situava como uma

opção cultural que fora produto da “dificuldade na elaboração de uma cultura

224
VENTURA, Z. et alli, Op.cit., p.47
225
Idem, p.59
141

manifestamente crítica, levando muitos artistas à tendências mais individualistas e

“menos envolvidas com a realidade imediata”, com a utilização de circuitos e técnicas

alternativas ao consumo massivo. Neste ponto, surgia a definição mais dura do artista

underground: “Vivendo entre o impulso de se homiziarem num marginalismo que

ameaça levar sua criação a um perigoso autismo e o risco de serem consumidos pelo

que rejeitam, esses artistas malditos, mais pelo que aparentam ser do que pelo que

produzem, talvez deixem para a cultura brasileira mais uma atitude do que uma

obra”226. Suas intenções críticas se perderiam em um “protesto geral” e mal

direcionado, confundindo recusa com revolução. Ao lado da cultura massiva, a

contracultura era qualificada, paradoxalmente, como uma das “tendências

neutralizadoras” que tentavam, em vão, preencher o “vazio cultural”. O artigo termina

com um elogio às “correntes essencialmente críticas, preocupadas com a discussão

concreta dos problemas do aqui e agora”227, sobretudo o novo impulso acadêmico

representado pelo CEBRAP, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, e pela MPB,

em suas diversas vertentes, incluindo até os tropicalistas Caetano e Gil que mesmo

sendo arautos da contracultura, foram devidamente redimidos pelo exílio.

Ventura encerrava a trilogia de “balanços culturais” publicados pela Visão num

artigo de 1974, intitulado “Da Ilusão de poder a uma nova esperança”228, fazendo

confluir as novas perspectivas de retomada de uma cultura critica com a posse do

general Ernesto Geisel como Presidente, em março daquele ano, e sua promessa de

“distensão política”. Neste último artigo, foi veiculado o famoso e polêmico depoimento

de Glauber Rocha sobre as virtudes nacionalistas e redentoras dos militares

brasileiros, “legítimos representantes do povo” em seu nacionalismo cultural e

econômico. Vale dizer que boa parte deste artigo era dedicada à revisão da cultura de

esquerda até 1968, constituindo-se numa verdadeira pauta de memorização e

monumentalização da cena cultural da década anterior, idealizando um processo

226
Idem, p.64
227
Idem, p.65
228
VENTURA et alli. Op.cit, p. 88-113.
142

cultural interrompido pela nova conjuntura política repressiva. Os três artigos de

Zuenir Ventura vão além de um mero balanço cultural do início dos anos 1970,

configurando-se como textos fundadores de uma forma de lembrar aquela época,

estabelecendo marcos de memorização e de crítica cultural a partir da afirmação de

uma “linha justa” para a cultura brasileira: a crítica social e política, exercitada de

maneira conseqüente e eqüidistante do conteúdo digestivo da cultura massiva e do

formalismo inócuo da cultura underground.

Ao lado do texto “Cultura e política: 1964-1969” de Roberto Schwarz, escrito no

final da década de 1960, os textos de Ventura demarcam posições muito claras nas

lutas culturais do período. O texto de Schwarz nos remete a outro conceito de “vazio

cultural”, caracterizado pela vacuidade da crítica cultural reformista deslocada no

tempo, e o desespero da contracultura tropicalista, ambos virtualmente cooptados pelo

mercado. O importante para nossa perspectiva é que ambos os autores indicam

pontos comuns de memória, sugerem critérios de crítica cultural e apontam caminhos

para superar o “vazio cultural”, valorizando o exercício de uma cultura crítica que fosse

eqüidistante da “alienação” comercial ou contracultural. Ambos também concorreram

para a consagração da expressão “vazio cultural” no vocabulário de época, assumido

muitas vezes por pesquisadores sem a devida contextualização, tanto em balanços

jornalísticos da época, como em textos acadêmicos. Neste sentido, é importante

recuperar o fato de que, no início dos anos 1970, a expressão “vazio cultural” era

sintoma de uma das mais acirradas lutas culturais do período: a crítica da cultura de

esquerda mais ortodoxa (vale dizer, de tradição realista e filiada ao nacional-popular) à

contracultura e a um tipo de vanguarda formalista. Neste sentido, o “vazio” significaria

o “passo para trás” dado por estas últimas correntes em relação a um tipo de produção

cultural que ficou convencionalmente chamada de “corrente da hegemonia”229.

229
Edelcio Mostaço, inspirado no texto de Roberto Schwarz, utiliza esta expressão “hegemonia cultural da
esquerda”, referindo-se ao Partido Comunista e seus simpatizantes. Ver MOSTAÇO, E. Op.cit.
143

A valorização da contracultura jovem, que se apresentava como herdeira da

tradição de vanguarda, na linha já reclamada pelo Tropicalismo e pelo Teatro Oficina

de 1967, seria recuperada por Celso Favaretto e Heloisa Buarque de Hollanda230. Os

dois autores procuraram articular a afirmação histórica desta corrente ao debate

político-cultural dos anos 1960, sendo o Tropicalismo tomado como momento crucial

da virada histórica em direção a um novo conceito de engajamento e de ação cultural,

tão ou mais críticos do que o engajamento ortodoxo e em nada semelhantes a

qualquer vazio cultural. Antes de operarem uma negação radical da cultura engajada

ou vislumbrarem na contracultura e na vanguarda jovem um recuo do senso crítico,

como quer o texto de Ventura, o Tropicalismo e seus desdobramentos posteriores

foram vistos por ambos os autores como uma espécie de up-grade estético e político,

na direção de uma crítica cultural e comportamental ampla e atualizada, mais afinada

à nova conjuntura pós-AI-5.

Celso Favaretto nomeava as experiências tropicalistas como sendo a

proposição de uma “estética da abertura” em relação ao nacional-popular, superando

os limites de uma linguagem simbólico-realista pela utilização da alegoria e ampliando

a noção de crítica cultural e política na direção de uma autocrítica do nacionalismo e

da idealização do povo como agente histórico231. Heloisa Buarque de Hollanda

procurava mostrar a contracultura como uma resposta histórica, uma busca de saída

para o chamado “vazio” e não uma mera impostura crítica sem lastro cultural. Para tal,

tecia um fio de continuidade dialética, movida pela contradição e síntese das

experiências cepecistas, do engajamento nacional-popula (inviabilizados pelas novas

condições históricas pós-1964), e o “desbunde” da vanguarda contracultural.

230
FAVARETTO, C. Tropicalismo: alegoria, alegria. Op.cit. e HOLLANDA, H.B.Impressões de Viagem.
Op.cit. A valorização da contracultura como nova crítica social e política ambém aparecia, de maneira
menos acurada, em VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal,
1977. Estes três trabalhos, surgidos entre 1977 e 1980 constituem um corpus bibliográfico básico sobre a
valorização do experimentalismo, à medida em que rechaçavam a idéia de vazio cultural, recolocando a
contracultura e a vanguarda na tradição de crítica cultural conseqüente, politizada e inovadora.
231
FAVARETTO, C. Op.cit.
144

Este conjunto de textos sintetiza os impasses e contradições da cultura

brasileira dos anos 1970, que vivia à sombra dos ícones estéticos e dos criadores

consagrados na década anterior, submetidos a um novo contexto histórico. Por outro

lado, o contexto do início dos anos 1970 fazia co-existir resistência, massificação e

experimentalismo numa conjuntura de forte censura e repressão, exigindo

reposicionamentos e revisões na crítica político-cultural e sua expressão estética.

Outra herança destes textos identificados à contracultura e à Tropicália é a idéia de

que havia uma dicotomia radical entre a estética filiada ao nacional-popular e a

vanguarda experimental, sugerindo que a primeira era marcada pelo apego ao

conteúdo e à forma realista - consideradas por muitos como ultrapassada e

conservadora - e a segunda, uma saída mais criativa e inovadora, ao rejeitar a forma e

os circuitos da arte nacional-popular que, por sua vez, era absorvida paulatinamente

pelo mercado e pela própria política cultural do regime militar232.

O nacional-popular também foi criticado sob outra perspectiva, a partir dos

analistas mais identificados com a vanguarda. Por exemplo, Edelço Mostaço

valorizava o experimentalismo como a prova de que o “vazio cultural” não passava de

uma categoria inventada pela “corrente da hegemonia” refém, por sua vez, de uma

equivocada estratégia de negociação com o regime e da inserção paulatina no

mercado233. Na mesma linha argumentativa, José Mario Ortiz Ramos analisava as

lutas culturais no cinema brasileiro. Conforme o autor, nos anos 1970, “O nacionalismo

perdia seu élan contestador dos anos 60, selava aliança com os produtores e Estado e

abria canal de comunicação com os cinemanovistas”234. A série de livros publicados

sob a rubrica “O nacional popular na cultura brasileira” pela Editora Brasiliense, no

começo dos anos 1980, também desenvolveu uma revisão crítica do nacionalismo, à

232
ORTIZ, R. Moderna Tradição Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988
233
MOSTAÇO, E. Op.cit.
234
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.
145

direita e à esquerda, tentando demonstrar seus limites estéticos e ideológicos, seu

caráter autoritário e a necessidade de revisão de sua herança235.

O debate bibliográfico ocorrido ao longo dos anos 1970 e início dos anos 1980,

também deve ser visto como desdobramento das lutas culturais do final dos anos

1960, que demarcaram a revisão das políticas culturais das oposições ao regime em

torno de algumas questões: quais foram as armadilhas colocadas pelo nacionalismo

na cultura de esquerda? Qual era o lugar da vanguarda e da contracultura jovem na

resistência ao regime militar? Como explicar a aproximação entre o nacionalismo da

esquerda (sintetizado pelas posições do Partido Comunista Brasileiro) e o

nacionalismo de direita, defendido pelas políticas culturais do regime militar? O tom

crítico e dessacralizador em relação ao nacional-popular de esquerda acabou por

predominar, seja para afirmar o vigor e a politização da contracultura, defendendo-a da

acusação de ser alienada e dissolvente, seja para afirmar a cultura popular

comunitária como um novo campo de atuação do artista e do intelectual de esquerda,

defendendo-a da ideologia desmobilizadora do nacionalismo.

Assim, em menos de dez anos, entre o final dos anos 1960 e o final dos anos

1970, a “corrente da hegemonia” perdia espaço não apenas na vida artística e cultural,

como também na crítica acadêmica. Na operação crítica ao nacional popular de

esquerda, a contracultura jovem, a vanguarda experimental e a cultura popular

comunitária eram revalorizadas como opções válidas (e até preferíveis) no campo da

resistência cultural, à medida que o nacionalismo e o realismo crítico eram absorvidos

e neutralizados, politicamente, pelo mercado e pela política cultural geiselista. A saída

do “vazio cultural” deixava de ser uma questão de retomada dos elos culturais

perdidos em 1968, demandando a invenção de uma nova cultura de resistência. O

próprio conceito de “vazio cultural”, tal como exposto nos textos de Ventura, deixava

de ter sentido amplo, sendo visto como um conceito que apenas mascarava um

embate dentro do campo da resistência e desqualificava a cultura jovem e

235
Ver capítulo 8.
146

underground, que pareciam ganhar, cada vez mais, amplos segmentos da juventude.

Afinal, em última instância, este era o grupo sócio-etário para o qual se voltavam as

produções culturais da resistência ao regime.

O quadro atual do debate historiográfico já não permite a mera reiteração das

posições dos protagonistas, muitas vezes tomadas como evidências e não como

fontes, ainda que tenham sido exercitadas na forma de sofisticada linguagem

acadêmica. Não basta recuperar o nacional-popular ou a vanguarda contracultural

como pólos positivados de ação cultural e discernir qual delas seria a “linha justa” da

resistência ao regime. Trata-se de compreendê-las como alternativas, coerentes e

contraditórias a um só tempo, que revelam o rico quadro histórico da década de 1970.

Nesse sentido, a dicotomia simplista e auto-excludente entre nacional popular e

contracultura/vanguarda deve ser revista. É preciso, portanto, sugerir outras diretrizes

para uma nova história da resistência cultural dos anos 1970. Em primeiro lugar, é

necessário levar em conta as mediações complexas entre a vanguarda, a

contracultura e o nacional-popular para além da exclusão estético-ideológica

recíproca, ainda que as tensões e diferenças existissem de fato. Em segundo lugar, é

preciso rever a inserção do nacional-popular no mercado e na política cultural do

regime para além do voluntarismo dos artistas engajados ou de uma atitude

meramente individual, responsável pela dissolução do viés crítico deste campo. E, por

último, mas não menos importante, assumir a premissa que entre o nacionalismo, o

folclorismo e o populismo - tomados como heranças de uma tradição autoritária de

direita na política e na cultura brasileiras forjadas nos anos 1920 e 1930 – e o

nacional-popular de esquerda dos anos 1960, não há uma linhagem direta e reta,

embora possa haver matrizes culturais e estéticas reconhecíveis entre as duas

épocas236.

236
Na tentativa de superar este paradigma explicativo – o nacionalismo da direita migrando para a
esquerda ao longo do tempo – Marcelo Ridenti propôs a existência de uma “estrutura de sentimento da
brasilidade revolucionária” forjada pela esquerda (sobretudo comunista, mas que transbordou os limites
do PCB) ainda nos anos 1930. Ver RIDENTI, M. Brasilidade revolucionária. São Paulo, Editora UNESP,
2010.
147

Em relação ao primeiro ponto de revisão, que exige novas mediações e cotejos

entre a contracultura/vanguarda e o nacional-popular, esta perspectiva pode se apoiar

nas falas dos próprios protagonistas que sugeriram complexas relações entre os dois

campos, e entre cada campo e o “sistema” estabelecido de consumo cultural. Por

exemplo, Leon Hirszman, um dos artistas mais identificados com o Partido Comunista

Brasileiro, tinha clareza das contradições em aceitar o mecenato cultural do regime.

Em 1975, em plena afirmação da Política Nacional de Cultura do governo, o artista

afirma: “No que se refere ao cinema é fazer com que o cinema possa contribuir para

uma política cultural que tenha relações com o nacional e o popular, isto é, que seja

relativo a uma cultura popular, que sua respostas seja o povo e que ele esteja como

raiz, como água nascendo de uma contradição interna existente” 237. Esta posição não

deve ser tomada como cinismo oportunista ou ingênuo. Três anos antes, no filme São

Bernardo, o diretor realizara uma obra esteticamente irretocável e politicamente crítica,

ainda que dialogando com as demandas de uma política cultural que então se

esboçava por parte da Embrafilme e do INC238.

No campo das vanguardas experimentais, também havia tensões e

reposicionamentos, como demonstra a fala de um dos intelectuais mais ligados a esta

corrente. Frederico Morais apontava a existência de duas vanguardas naquele

contexto: a nova vanguarda pós-1967, em seu élan questionador e negativo, era

diferente do “movimento construtivo” que lhe precedera, pois este estava deslocado

em relação às novas demandas estéticas e ideológicas. Diz ele: “a realidade é, para

ele [o artista construtivo], o tudo por fazer, construir, trabalhar. Sua tarefa é preencher
239
os vazios, ocupar o espaço de forma organizada e econômica” . Para o crítico e

237
HIRZMAN, Leon IN: Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro, Ed. Inúbia, 1976, p. 20
238
Sobre a inserção deste filme na política cultural e nas lutas culturais do período, ver RAMOS, José M.
Op.cit. p. 106. Para uma análise formal e histórica mais acurada, ver XAVIER, Ismail. “O olhar e a voz: a
narração multifocal do cinema e as cifras da história em São Bernardo”. Literatura e Sociedade, 2, 1997.
239
MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 79
148

ideólogo da arte conceitual, era necessária uma nova vanguarda, anti-institucional e

guerrilheira, mais destrutiva que construtiva240.

A mediação entre a tradição realista (marca do nacional-popular) e a

contracultura também aparecia na fala de um dos gurus desta última. Torquato Neto,

na coluna Geléia Geral, também não hesitava em elogiar artistas reconhecidamente

ligados ao nacional-popular e à tradição narrativa-realista. Ao elogiar dois ícones do

campo nacional-popular, Chico Buarque (“está vivo, lutando como todo mundo”) e

Leon Hirzman (que teria a clareza sobre os limites da industrialização do cinema sob o

autoritarismo), Torquato questionava a idéia de “vazio cultural”: “esse tempo até que

pode ser chamado ‘de espera’ – mas que só os trouxas e os mais burrinhos (além dos

cegos) não conseguem encontrar no escuro alguma coisa luminosa como uma boa

canção que não sirva apenas pra fazer média com o que já está feito, comido e

prensado” 241.

Em algumas áreas o embate entre contracultura/vanguarda e nacional-popular

era particularmente virulento. As áreas onde os embates foram mais fortes entre as

duas correntes foram o teatro e o cinema. Nestas, os artistas engajados e articulados

em torno de uma política cultura nacionalista, de influência comunista, cerraram fileiras

contra o “teatro de agressão” e contra o “cinema marginal”, expressões da

contracultura e do experimentalismo. Havia uma diferença importante, em termos

estéticos, que demonstra a necessidade de mais sutileza na análise, levando em conta

os aspectos propriamente formais que marcaram cada área artística. Se, no teatro, a

tradição realista e dramática era defendida com unhas e dentes pelo núcleo de

dramaturgos do Partidão, no cinema a relação entre engajamento e experimentalismo

era mais complexa, pois o Cinema Novo já apontara para a quebra de linguagem em

relação ao cinema narrativo clássico (naturalista), aproximando-se da alegoria como

240
Sobre as relações entre arte conceitual e resistência cultural ver FREITAS, A. Op.cit.
241
Torquato Neto IN Torquatália (Geléia Geral). Obra reunida de Torquato Neto. Rio de Janeiro, Rocco,
2004, p.224 (texto originalmente publicado em sua coluna, em 10/09/1971)
149

estratégia básica de expressão242. Por conta desta ruptura, Glauber Rocha aparece no

plano da memória social, de maneira equivocada, como parte da trindade tropicalista,

ao lado de Caetano e José Celso Martinez Correa, ainda que o diretor baiano fosse

um crítico do underground e do Tropicalismo. Seu experimentalismo nada tinha em

comum, em termos políticos, com a tropicália musical ou com o Grupo Oficina, embora

a fatura também pudesse ser dessacralizadora em relação às ilusões da esquerda

nacionalista. Suas obras, a começar por Terra em Transe, tentavam conciliar o

engajamento terceiro-mundista com a “estética da abertura” formal.

Na música popular, apesar do susto tropicalista e da tentativa deste movimento

em se opor aos “emepebistas” no final da década de 1960, os exílios dos

compositores tropicalistas e a dinâmica de uma MPB institucionalizada, agregadora e

transformada em uma sigla com significado amplo e plural, acabou por incorporar as

“conquistas” estéticas do Tropicalismo sem maiores traumas ou polêmicas, ao longo

dos anos 1970, ainda que se mantivessem alguns embates secundários e pontuais,

sobretudo em torno de Caetano Veloso243. Momento crucial da crítica ao nacional-

popular, o discurso de Caetano contra a “juventude que quer tomar o poder”, no TUCA

,em 1968, foi monumentalizado pela historiografia da cultura identificada com o

Tropicalismo, como se Caetano fosse um profeta-herói civilizador anunciando os

novos rumos da crítica cultural, contra o folclorismo, o nacionalismo e o populismo

limitadores da criatividade e do avanço estético. Obviamente, não é possível negar a

lucidez de Caetano naquele momento, mas sua intervenção não se tratava do anúncio

dos novos termos da crítica cultural, como se esta fosse, em si mesma, uma

“evolução” na direção a uma modernidade bloqueada pelo nacional-popular

“retrógrado”. As mediações, particularmente na MPB, eram mais complexas e

contraditórias. Nem o Tropicalismo “entrou e saiu de todas as estruturas”, como queria

Caetano, nem todo o leque do nacional-popular “folclorizava o subdesenvolvimento

242
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento.Op.cit.
243
NAPOLITANO, Marcos. “A MPB nos anos de chumbo” IN: ILLIANO, R. & SALA, M. Music and
dictatorship in Europe and Latin America. Lucca, Brepols Publ., 2010, 641-668
150

para compensar as desvantagens técnicas. Afinal, a dita canção engajada e

nacionalista era filha dileta da Bossa Nova. Veja-se Sérgio Ricardo, Carlos Lyra e Edu

Lobo, em cujas obras, em princípio filiadas ao nacional-popular, não é possível

encontrar estilizações folclóricas ou reducionismos de ordem estética em favor do

“conteúdo”. Em suma, este me parece um falso debate, hiperdimensionado pelas lutas

culturais de época e suas formas de fixação na memória.

Nas artes plásticas, desde os anos 1950, a “tradição da vanguarda”244 era de tal

modo dominante, que a tradição acadêmica, figurativa e realista, supostamente

identificada com o nacional-popular, ou era reprocessada pelo olhar da vanguarda

(como no caso do figurativismo pop dos anos 1960) ou perdia expressão como valor

estético. A proposta de arte pública e participativa, em todos os sentidos, seja a da

Nova Objetividade, seja a do Conceitualismo, superava a dicotomia entre

experimentalismo e engajamento. No primeiro caso, Hélio Oiticica incorporava

materiais comuns às correntes nacional-populares – como o morro e o samba – para

expressar uma atitude radical e inovadora, com invenções e proposições estéticas que

constituíram, talvez, uma das mais instigantes vanguardas dos anos 1960245.

Estabelecido o mapa do debate historiográfico e seus impasses, voltemos aos

anos 1970 e seus embates culturais, no momento em que o “vazio cultural” era

afirmado como categoria cognitiva para sintetizar um tempo histórico determinado.

244
Em princípio, a busca do novo como imperativo da modernidade instaura uma tradição, a “tradição da
ruptura” como notada por Octavio Paz em seu famoso artigo, imagem reiterada por Caetano Veloso em
entrevista nos anos 1970. Sobre a “tradição da ruptura” ver PAZ, Octavio. "Los Hijos del Limo. In La Casa
a
de la Presencia (poesia e historia). Obras Completas (I). 2 ed. México, Fondo de Cultura Económica,
1994, p.333-334 . No caso brasileiro, os movimentos artísticos do século XX que podem ser alinhados,
de alguma maneira, aos modernismos, desenvolveram uma relação complexa com a tradição e com o
material “arcaico” da cultura herdada sob o signo da brasilidade que não pode ser resumida na simples
negação da tradição para afirmação descontínua do novo. O que parece ser uma das marcas comuns dos
“projetos modernos brasileiros” é a negação do passado como “modelo formal”, e sua incorporação
seletiva como material (estado bruto das formas tidas como originárias) e poiesis (procedimento e fatura
na realização da obra). Esta questão está presente em muitas vanguardas históricas, como o Cubismo,
mas no caso brasileiro ganhou particular importância à medida que as vanguardas modernas quiseram
inventar uma nova brasilidade, na qual o “povo-nação” foi tomado como origem e destino da estética
moderna. Neste sentido é que recusamos a dicotomia analítica entre “nacional-popular” e “vanguarda
cosmopolita”. Ver capítulo 9.
245
Sobre a importância de Hélio Oiticica no contexto artístico dos anos 1960 e 1970, ver FAVARETTO, C.
A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo, Edusp, 1992; REIS, Paulo. Exposições de arte. Op.cit.;
FREITAS, A. Op.cit.; JUSTINO, Maria José. Seja marginal, seja herói. Modernidade e pós-modernidade
em Hélio Oiticica. Curitiba, Ed. UFPR, 1998.
151

Para traçar a configuração da época, é preciso verificar como a contracultura se

apresentou no contexto brasileiro e como a “corrente da hegemonia” identificada com

o nacional-popular comunista procurou contra-atacar a cultura jovem e a vanguarda

experimental, tida como alienada pelos críticos mais ortodoxos de esquerda. Neste

caminho analítico, algumas questões se colocam: como se deu a absorção da

contracultura no Brasil? Quais eram os argumentos utilizados para desqualificar o

campo oposto, em nome de uma “linha justa” da resistência? Como a questão da

resistência e da crítica se materializava em obras e atitudes estéticas em ambas

correntes? Como os protagonistas se posicionaram nas contradições específicas de

cada campo? São estes temas que abordarei à seguir.

O udigrudi

Nos EUA, a contracultura foi analisada como reação ao complexo industrial

militar e à destruição ecológica, confundindo-se, por vezes, com o protesto – individual

e coletivo – anti-autoritário e anti-disciplinar, ao questionar a normatização da vida

social conforme valores morais tradicionais246. No Brasil, também assumiu um caráter

anti-autoritário, frequentemente gestado em comunidades libertárias que eram críticas

dos valores morais que sustentavam e eram sustentados pelo regime militar.

A disseminação da contracultura no Brasil, além do seu vínculo com o

“modismo hippie”, por volta de 1969, deve muito ao movimento da Tropicália. Esta

perspectiva aparece em vários autores. Conforme Christopher Dunn247: “No começo

dos anos 1970, a experiência tropicalista foi também o ponto de referência primária

para a juventude de classe média urbana identificada com a incipiente contracultura

246
O termo “contracultura” pode ser definido a partir da experiência norte-americana, de vida comunitária
e estilo anti-conformista. O termo foi visto na época como produto de uma “unidade geracional” – a
“juventude” – que se rebelava contra os padrões comportamentais e os valores políticos do Ocidente. Ver
ROSZAK, Theodore. A contracultura. Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.
Petrópolis: Vozes, 1972. Para uma visão mais atualizada, ampla e crítica ver BRAUSTEIN, P. & DOYLE,
Michael. Imagine Nation: the american counterculture of the 60’ and 70’. London, Routledge, 2001.
247
DUNN, C. Brutality Garden: tropicália and the emergence of Brazilian counterculture. Chaper Hill and
London, The University of North Carolina Press, 2001, p. 161
152

brasileira. Embora criticados por não articular uma oposição coletiva ao governo

militar, artistas contraculturais e simpatizantes propuseram novos discursos e práticas

que tentavam resistir ao controle social autoritário. Mais adiante, práticas

contraculturais no Brasil levaram a outras práticas, convergindo em alguns momentos

com novos movimentos sociais e culturais”.

Frederico Morais248 afirma o caráter político do Tropicalismo para além da sua

contribuição à crítica meramente comportamental: “Mais do que um movimento, o

tropicalismo foi verdadeiramente uma explosão criativa, um momento de liberdade, foi

uma festa que durou enquanto o regime pode se mostrar um pouco mais liberal (...) as

forças liberadas pelo tropicalismo tinham um conteúdo revolucionário evidente.

Tropicalismo é mais do que araras e bananeiras. O tropicalismo foi estado de espírito,

como o dada. Um sentimento de asco”.

Conforme Ismail Xavier, a recusa tropicalista ia de encontro a dois epicentros

da cultura de esquerda, o proletariado como herói da história e a nação como entidade

a ser defendida de forma compacta e inequívoca contra o imperialismo: “A colagem

tropicalista apresentaria um inventário de descontinuidades da história dos vencidos,

cujo termo final seria a crise do sujeito no mundo contemporâneo, em especial a morte

de dois sujeitos históricos: a do proletariado no seio da cultura de massas e das

nações no seio da globalização”249

Os aspectos ressaltados por estes autores reforçam os elos entre a Tropicália

e a contracultura jovem: base social na juventude de classe média, atitude anti-

autoritária, liberdade criativa, recusa da sociedade tecnocrática, deslocamento do

sujeito revolucionário (do “proletariado” para a “juventude”) e internacionalismo

jovem250. Em linhas gerais, são esses os pontos em comum entre a “incipiente”

248
MORAIS, Frederico. Op.cit.,p., 98
249
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. p. 33.
250
Para uma revisão crítica em torno da categoria “juventude” ver PAIS, José Machado. “A construção
sociológica da juventude”. Análise Social, XXI (105-106), 1990, 139-165.
153

contracultura brasileira do início dos anos 1970 e a contracultura internacional (ou

seja, norte-americana e européia).

A contracultura, conforme Antonio Risério, expandiu-se no Brasil não por

causa, mas apesar da ditadura251. Vai mais longe: “É tolice afirmar, como muitos

fizeram na época, que a contracultura foi um subproduto alucinado do fechamento do

horizonte político da ditadura militar”252. A despeito do seu caráter universalista, Risério

afirma que a contracultura ajudou a obstruir o “rolo compressor da ditadura”,

preservando e nutrindo um espírito contestador num momento de fechamento político.

Para Claudio Pinto Coelho, a contracultura, ao lado da luta armada, foi uma forma

radical de combater a “sociedade vigente”, contra o principal fundamento do

autoritarismo: a racionalização da vida social253. O sociólogo adverte, porém, que não

se deve ter uma visão heróica desta recusa, pois ela acarretava, no limite, um caminho

para a autofagia e autodestruição das comunidades contraculturais, pois confundia

toda e qualquer racionalidade com a “razão autoritária”254 que, efetivamente,

sustentava o sistema e o regime. Por conseqüência, o culto à loucura e à

marginalidade acabou seduzindo alguns adeptos da contracultura, fazendo com que a

contestação ao sistema chegasse a um beco sem saída.

As duas posições expressam a questão básica do debate: a contracultura foi

um movimento universal que adquiriu “cores locais”, ou, fundamentalmente, um

fenômeno social cujo epicentro esta no processo histórico de modernização

desencadeado pela ditadura militar? Vistas de maneira mais distanciada, as duas

posições se complementam e devem ser levadas em conta. O que importa aqui é

matizar certa visão heróica da contracultura, como a variável mais acurada,

251
RISÉRIO, Antonio. “Duas ou Três coisas sobre contracultura no Brasil”. IN: Anos 70: Trajetórias. São
Paulo, Iluminuras, 2006, p.26
252
Idem, Ib.
253
COELHO, Claudio Novaes P. “A contracultura: o outro lado da modernização autoritária” IN:Anos 70:
Trajetórias. Op.cit. p.. 39
254
A crítica ao racionalismo tecnocrático da sociedade capitalista que inspirou a contracultura foi
desenvolvida, basicamente, em dois livros por MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio
de Janeiro, Zahar, 1979 (5ªed.); MARCUSE, H. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
Neste, sobretudo, Marcuse faz uma leitura marxista de Freud, historicizando a dinâmica libidinal básica
(Eros versus Tanatos) e apontando saídas para a repressão constitutiva da sociedade capitalista.
154

progressista e radical no combate ao autoritarismo, eximindo-a das contradições e

deixando de apontar seus limites255. A Tropicália preparou a cultura jovem brasileira

para temas e atitudes contraculturais, mas foi a partir de 1969 que consolidou a

percepção social e midiática sobre a contracultura, jovem, comunitária e alternativa ao

mercado cultural mais estruturado, com seus mediadores e circuitos específicos256.

O jornal O Pasquim foi um abrigo para as idéias contraculturais, ao menos até

1972. A histórica entrevista de Leila Diniz257, a coluna de Caetano Veloso escrita desde

o seu exílio em Londres e o artigo-manifesto de Luis Carlos Maciel258 podem ser vistos

como textos fundadores da contracultura brasileira, abordando vários temas caros

àquela corrente de comportamento: psicanálise, linguagem alternativa, liberação

sexual, cultura do prazer, busca de novas saídas individuais e coletivas. Caetano

manteria sua coluna de assuntos diversos sob o olhar contracultural, até 1971. Outro

texto importante é o não menos famoso “Recuso + Aceito = Receito” de Gilberto Gil259,

no qual este reafirma sua busca de liberdade estética e individual, mesmo em situação

de exílio.

Em que pese a importância destes textos fundadores, o corpus principal de

textos programáticos da contracultura brasileira foi a coluna Underground, escrita

basicamente por Luiz Carlos Maciel e, eventualmente, por outros autores, como

Antonio Calmon, Antonio Bivar e Jorge Mautner260. A coluna foi publicada no mesmo

Pasquim, entre maio de 1970 e inicio de 1972. Nela, Maciel elaborou e difundiu o

imaginário contracultural brasileiro, em diálogo com o movimento internacional, além

255
Esta visão heróica e isenta de contradições pode ser percebida nos protagonistas e suas memórias,
que ajudaram a fixar o tema na cultura brasileira. Ver, por exemplo, MACIEL, Luiz Carlos. Geração em
transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.
256
Revista VEJA, 12/11/1969 (apud, COELHO, Claudio. Op.cit. , p.41).
257
Pasquim, 22, 20 a 26/Nov/1969.
258
“Cultura de Verão”, Pasquim, 21, 13 a 19/11/1969.
259
Pasquim 39, 19 a 25/3/1970, p.6.
260
CAPELLARI, Marcos Alexandre. O discurso da contracultura no Brasil : o underground através de Luiz
Carlos Maciel. Tese de Doutorado, História Social/USP, 2008. Nesta tese o autor aponta Maciel como o
mediador entre a contracultura internacional e o público jovem brasileiro, tendo em vista que as condições
de emergência do movimento (modernização capitalista) estavam também presentes aqui, ainda que as
condições políticas fossem diferentes dos EUA e da Europa.
155

de publicar notícias sobre os temas e heróis da “nova era”: misticismo, cultura psi,

linguagem artística, Hélio Oiticica, Living Theatre, Jimi Hendrix, Caetano Veloso261.

Um dos temas mais importantes, sobretudo ao longo do ano de 1970, foi o

comunitarismo hippie, tema central de um manifesto, o qual Maciel inicia em tom

panfletário262: “Seguinte: o futuro já começou. Não se pode julgá-lo com as leis do

passado. A nova cultura é o começo da nova civilização. E a nova sensibilidade é o

começo da nova cultura (...) Não se deixe perder no demônio da velha razão (...) Não

se deixe perder. Fique na sua”. Na sequência, Maciel enumerava um conjunto de

palavras que sintetizariam a nova sensibilidade, em contraposição à própria cultura

jovem engajada dos anos 1960. Citamos na ordem que se apresenta na fonte: Paz,

maconha, amor tribal, tranquilo, som e cor, místico, alegre, Ipanema e Bahia, flor, na

sua, subjetividade, ligado, praia, Reich, prazer, Rock, filho natural, sexo, curtição,

marginalização, tribo, aventura. Estas palavras formavam pares de oposição com

outras, típicas da cultura jovem e engajada dos anos 1960, tais como: angústia, amor

livre, agressivo, ateu, Brasil, Panfleto, comunicação, bossa nova, ego, discurso, em

meio a signos burgueses, tais como “Uisque”, “Família”, “Segurança”, “Neurose”. Em

outras palavras, neste “manifesto”, Maciel recusava, num só golpe, a cultura burguesa

e a cultura jovem engajada, afirmando os valores do hippismo como uma recusa

radical das duas vertentes. Signos e valores típicos da esquerda, como o ateísmo,

nacionalismo, discurso, comunicação, panfleto, eram relacionados às “leis do

passado”. Até Herbert Marcuse, um dos papas da contracultura européia e norte-

americana, era substituído por Reich, mais apropriado para a realização do “amor

tribal”, em contraponto ao “amor livre” ainda vivido no âmbito do casal (sic!). Portanto,

com a revisão dos signos e valores da esquerda, os códigos e circuitos da resistência

cultural também mudavam.

261
Os textos foram reunidos posteriormente. Ver MACIEL, Luiz Carlos. Nova Consciência: Jornalismo
contracultural (1970-1972). Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. Sobre a imprensa contracultural ver
BARROS, Patrícia. “A imprensa alternativa da contracultura no Brasil (1968-1974): alcance e desafios”.
Patrimônio e Memória. UNESP/Assis, 1/1, 2005, p.86-93
262
Pasquim, 8/1/70, p.11
156

O mesmo clima de misticismo comunitário como vereda da salvação diante do

Apocalipse que parecia varrer o “mundo burguês”, aparecia em outro manifesto da

época. O “Teatro Ipanema”, grupo que protagonizava um dos maiores sucessos

teatrais de 1971, Hoje é dia de Rock263, apresentava uma carta aberta, em tom de

manifesto contracultural264: “No nosso ritual de ressurreição, HOJE É DIA DE ROCK,

pra falar das coisas d’Ele, nossa, a gente recorre aos gritos, à comunicação de

massas que não pintava em Israel, IV a.c. O horror está em volta...A gente acredita

que do maior horror nasce a maior maravilha. Não mais ser classe para si, mas ser

para si, que é ser pro todo. Responder à altura já era – responda nas alturas. Daqui do

fim, o começo do mundo, a gente começa a falar na única linguagem do presente: o

Evangelho do Rock, a boa nova de que o sonho está só começando, que é preciso

estar desperto porque está próximo o Reino da Paz (...) a bandeira está hasteada, a

porta do sol está aberta, e você não tira os olhos do chão. Não seja só. Get togheter!

Depois de séculos de sofrimento humano, HOJE É DIA DE ROCK. Viaje conosco ao

novo tempo, Baby, num cântico de Aleluia em ritmo de rock!”.

Além de Luiz Carlos Maciel, outra figura importante na afirmação da

contracultura brasileira foi Torquato Neto, poeta e jornalista com passagem pelo

movimento tropicalista265. Em sua coluna Geléia Geral no jornal “Última Hora”,

Torquato Neto exercitou uma linguagem ousada, mistura de crítica de arte e crítica

cultural, difundindo os novos valores da contracultura, mas também expressando os

seus impasses. Sua trajetória pessoal, marcada pela luta contra a desagregação

mental e a recusa da razão autoritária, culminando no seu suicídio em 1972, é

263
“Hoje é dia de Rock” é considerado o espetáculo teatral mais importante de 1971, ficando em cartaz
até 1973. A peça, escrita por José Vicente e dirigida/interpretada por Rubens Correa, tematiza o conflito
entre tradição e modernidade a partir de uma família do interior de Minas Gerais, a migração dos jovens
para os centros urbanos e a busca da paz e comunhão estéticas e espirituais. O espetáculo ganhou ares
ritualísticos, no qual os espectadores eram recebidos com pães, flores e sorrisos, e a encenação invadia
a platéia, sem agredi-la. Uma busca de comunhão em tempos sombrios. Foi definida por Yan Michalski
como um “inigualável monumento teatral à mentalidade ‘paz e amor’”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob
pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50
264
“Carta aberta do Teatro Ipanema”, de 2/9/1971 (apud NETO, T. Torquatália. Op.cit.p. 213)
265
BRANCO, Edwar. Todos os dias de Paupéria. Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo,
Annablume, 2002. Sobre a faceta de crítico musical de Torquato Neto ver COELHO, Frederico. “A
formação de um tropicalista: um breve estudo da coluna ‘musica popular’ de T.Neto”. Estudos Históricos,
CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 30, 2002, 129-146
157

altamente sintomática deste impasse. Torquato deixou poemas, crônicas e textos de

crítica, nos quais é possível acompanhar os caminhos da contracultura na cena

brasileira dos anos de chumbo. Por exemplo, na coluna intitulada “baixo astral” (24

/11/1971), Torquato Neto propõe uma espécie de panteão underground no Brasil:

“Afastar o baixo astral com uma única palvra: SIM.”. E seguem os vários “sins”, signos

verbais de afirmação dos novos tempos: Novos Baianos e sua comunidade em

Botafogo; Waly Sailormoon, Flor do Mal266, Ivan Cardoso, Caetano Veloso, Luiz Carlos

Maciel, Helio Oiticica, Maria Bethania, terminando com a máxima “A palavra é sim.

Deus é amor...”267. Em outra coluna, “literato cantábile”, Torquato elaborava, ao seu

modo, uma espécie de manifesto underground abusando da linguagem fragmentada.

Nele podemos ler268: “Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço à beça e

só você sabe o que pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois, se vire (...) Cada um na

sua. Silêncio (...) Não se esqueça de que você está cercado, olhe em volta e dê um

rolê (...) Principalmente, amor, não se descuide. Bater papos com paredes é o fim da

picada (...) transe e não se tranque”. Torquato parecia querer afirmar um receituário

para a sobrevivência, para o rompimento da solidão e, ao mesmo tempo, de ativismo

cultural individual, para além de qualquer coletivo, dado que o tempo dos movimentos

culturais e artísticos parecia ultrapassado e inviável no novo contexto repressivo. O

clima de paranóia e de esperança, a um só tempo, dava o tom do texto, numa clara

tradução do clima da época. Mergulhado na contradição e no paradoxo, Torquato

exercitava, no âmbito da linguagem, a possibilidade e a crença numa resistência

desesperada e agônica, “segurando a primavera nos dentes”, como dizia a canção dos

Secos & Molhados, outra referência contracultural dos anos 1970.

Em outro texto, Torquato faz novamente o apelo pela manutenção da criação

cultural como atividade vital para a resistência individual e coletiva269: “Invente. Uma

266
Jornal fundado por Luiz Carlos Maciel e Tito Lemos, que durou 6 números, entre 1971 e 1972
267
NETO, T. Torquatália. Op.cit. p. 310-311
268
Idem, p. 304-305 (original 16/11/1971)
269
Idem, p 278
158

câmera na mão e o Brasil no olho: documente isso, amizade. Não estamos do lado de

fora e do lado de fora é a mesma transa: underground, subterrânea etc. A realidade

tem suas brechas, olhe por elas, fotografe, filme, curta dizendo isso”. A hipertrofia da

cultura como elemento não apenas de resistência política, mas também de

sobrevivência individual e experiência coletiva era uma das marcas da vertente

contracultural. O ativismo cultural era sinal de vida, reinventando a linguagem e

diluindo as fronteiras entre arte e vida, em operação estética nem sempre bem

sucedida.

Torquato Neto ainda criticava o lugar que a cultura - entendida como

experiência de consumo (nos moldes liberais) ou como formação de consciência (nos

moldes da esquerda) – ocupava na sociedade vitimada pelo autoritarismo: “Divirta-se:

teu programa é esse, bicho: vá ao cinema, vá ao teatro, vá ao concerto, disco é

cultura, vá para o inferno: o paraíso na tela, no palco na boca do som e nas palavras

todas na ferrugem dos gestos e das trancas da porta da rua”270. Depois de elogiar o

experimentalismo, ou melhor a “invenção”, termina sua crítica igualando o cantador-

herói da esquerda com a dupla sertaneja ufanista de direita, reiterando uma estratégia

de igualar ambas pelo viés de um conservadorismo estético com implicações

políticas271: “O resto é Geraldo Vandré. E Don & Ravel”.

No belo poema em que se retrata em sua radicalidade existencial, Torquato

sintetiza o sujeito da contracultura, agônico e vitalista: Eu sou como eu sou / pronome /

pessoal intransferível / do homem que iniciei na medida do impossível / eu sou como

eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes / nesta

hora / eu sou como eu sou / presente / desferrolhado indecente / feito um pedaço de

mim / eu sou como eu sou / vidente / e vivo tranquilamente / todas as horas do fim.

O seu fim pessoal veio com o suicídio, em 1972, evento marcante para toda

uma geração que tentou pintar o arco-íris no céu de chumbo da ditadura. Outro poeta

270
Idem, p. 269-270
271
Idem, p.375
159

símbolo da geração, Cacaso, gravou o clima pesado da época no poema cujo título

era precisamente aquele ano fatídico272: “Meu coração De mil e novecentos e setenta e

dois / Já não palpita fagueiro / Sabe que há morcegos de pesadas olheiras / Que há

cabras malignas que há Cardumes de hienas infiltradas / No vão da unha na alma /

Um porco belicoso de radar / E que sangra e ri / E que sangra e ri / A vida anoitece

provisória / Centuriões e sentinelas / Do Oiapoque ao Chuí”.

O artista, o marginal e o guerrilheiro

Nem todos no campo da contracultura eram partidários de “ficar na sua”, ou

arautos da nova era mística. Havia também uma vertente explicitamente polítizada,

voltada, sobretudo, para o ativismo estético radical para a implosão do sistema cultural

e para a dissolução das fronteiras entre arte e vida, na melhor tradição das

vanguardas históricas. O artista-guerrilheiro, testando os limites da arte como

expressão simbólica e o sistema cultural e político como um todo, era o novo

personagem que entrava em cena273. Em verdade, o artista-guerrilheiro era pouco

ligado, organicamente, à guerrilha de fato. As organizações armadas de esquerda,

seja por falta de energia estética, tempo ou mesmo vontade política, pouco

desenvolveram o seu setor cultural. Muitos artistas participaram da luta armada, no

entanto, mais enquanto cidadãos ou quadros simpatizantes, do que como ativistas

culturais da frente armada contra o regime. Nomes como Antonio Callado, Augusto

Boal, Sérgio Ferro, Geraldo Vandré ou Carlos Zílio tiveram relações mais ou menos

orgânicas com grupos armados de esquerda274. Suas obras, de alguma maneira,

refletem os impasses da esquerda que conduziram à luta armada, após o golpe militar.

Entretanto, boa parte deles não comungava com a contracultura ou com a vanguarda

272
Cacaso IN: Poesia Jovem. Coleção Literatura Comentada, São Paulo, Abril Cultural, p.15
273
Uma das primeiras formulações deste conceito foi feita pelo artista argentino Julio Le Parc. Ver LE
PARC, Julio. “Guerrilha cultural?” IN: IN: FERREIRA, Gloria & COTRIM, C. (orgs). Escritos de Artistas.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, p. 198-202 (original de 1968).
274
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro.
160

experimental. O caso de Carlos Zílio é bem paradigmático. Depois de surgir como um

artista promissor na exposição Nova Objetividade (1967), Zílio se envolveu com a luta

armada, deixando de lado sua atividade propriamente artística, somente retomada

depois da sua prisão. Na exposição, apresentou uma instigante proposição de obra-

panfleto: uma marmita – signo operário por excelência – em cujo fundo via-se um rosto

em relevo. No lugar da boca, havia uma única palavra, em tom imperativo: “lute”.

Nesta obra, indicativa de um caminho não traçado pelo próprio artista enquanto

guerrilheiro de fato, havia a proposta de utilizar uma linguagem de vanguarda

extremamente sofisticada, já defendida por Hélio Oiticica em seus manifestos

estéticos275, como arma de agitprop, tradições que, em princípio, se auto-excluíam.

Lembremos que a obra-marmita Lute deveria, no projeto inicial do artista, funcionar

como um modelo de panfleto a ser distribuído para os operários nas portas das

fábricas.

O caso de Glauber Rocha também deve ser analisado com cuidado, pois seu

envolvimento com ideais de revolução e guerrilha, base do seu “cinema tricontinental”,

ao que parece nunca chegou a significar uma ligação orgânica com grupos

guerrilheiros, em que pese sua vontade de filmar – literalmente falando - a revolução,

seja em meio às ações reais, seja em forma encenada. De qualquer forma, sua obra é

sintomática das tensões entre a militância propriamente cultural e a guerrilha de fato

que se espalhava na forma da resistência ao regime ou na forma de revoluções de

libertação nacional pelo mundo afora276.

275
OITICICA, Hélio. “Esquema geral da Nova Objetividade” IN: FERREIRA, Gloria & COTRIM, C. (orgs).
Op.cit, p. 154-168. Neste manifesto, Oiticica define a nova postura tendo como bases: 1) a vontade
construtiva geral (ou seja, a afirmação de uma determinada tradição de vanguarda, para além da figura e
da mera abstração); 2) a negação do objeto artístico em si mesmo, ou seja, a obra (escultura, quadro,
etc); a participação sensorial do espectador se apropriando das proposições do artista, como caminho
para a fruição crítica; 4) a tomada de posição diante dos problemas “políticos, sociais e éticos” (neste
ponto, o artista afirma o empenho na transformação do real); 5) tendência ao coletivo, superando os
movimentos sectários e o culto ao artista-gênio; 6) revisão do conceito de antiarte. Outro aspecto
importante é que Oiticica afirma-se dentro de uma tradição brasileira e internacional, a um só tempo. O
manifesto foi originalmente publicado no Programa da mostra “Nova Objetividade brasileira”, no MAM-RJ,
1967.
276
Sobre o “cinema tricontinental” de Glauber, ver CARDOSO, M. O cinema tricontinental de Glauber
Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP,
2007; sobre as relações de Glauber com Cuba na perspectiva de uma ação revolucionária
161

Dentro do campo da “resistência cultural”, a contracultura radicalizada na forma

da guerrilha cultural trazia algumas diferenças importantes em relação à cultura de

esquerda, e este aspecto acabava a afastando da guerrilha de fato que, ao fim e ao

cabo, era tributária dessa mesma cultura. No lugar do operário surgia o marginal como

“herói da história”. O artista deixava de ser o arauto da consciência social, para se

transformar no catalisador do combate à fruição passiva da arte, tida como a suprema

alienação estética e política. Neste sentido, o conceito de resistência cultural para a

contracultura passava necessariamente pela recusa do circuito estabelecido, da

linguagem, da divisão entre arte e vida e seus corolários: palco e platéia, obra e

público. Em suma, o artista deveria se portar como um guerrilheiro cultural,

exercitando uma poética da agressão não apenas contra o “sistema” em abstrato, mas

contra o seu elo social mais palpável e direto: o público.

Neste ponto reside uma diferença interna no campo da vanguarda histórica e

da contracultura dos anos 1970. A busca por um novo público nas artes plásticas não

necessariamente passava pela “implosão”, mas pelo deslocamento no plano da

recepção pública que afirmaria a arte como fenômeno coletivo e acessível. Hélio

Oiticica é quem se perguntava277: “Para quem faz o artista sua obra? Vê-se depois,

que sente uma necessidade maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar

algo que para ele é fundamental, mas essa comunicação teria que se dar em grande

escala, não numa elite reduzida a experts mas até contra essa elite, com a proposição

de obras não acabadas, abertas”.

Para o teatro de vanguarda, a relação com o público era mais problemática. Já

em 1968, José Celso Martinez, anunciando a radicalização que viria, declarou278: “A

eficácia do teatro político hoje é o que Godard colocou a respeito do cinema: a

abertura de uma série de Vietnames no campo da cultura – uma guerra contra a

internacionalista (e seus impasses) ver VILLAÇA, M. “America Nuestra: Glauber Rocha e o cinema
cubano”. Revista Brasileira de História, 22/44, 489-510, 2002
277
OITICICA, Helio. “Esquema geral da Nova Objetividade” IN: COTRIM, Cecilia e FERREIRA, Glória.
Escritos de artistas: anos 60 e 70. Rio de Janeiro Ed. Jorge Zahar, 2006, p.167
278
Entrevista-manifesto de José Celso M.Correa a Tite de Lemos, publicada na Revista de Civilização
Brasileira, número especial, julho 68 (republicada in ARTE em Revista, 2, Kairos, 1979, p. 47-49)
162

cultural oficial, a cultura do consumo fácil (...) o sentido da eficácia do teatro hoje é o

sentido da guerrilha teatral. Da anticultura, do rompimento com todas as grandes

linhas do pensamento humanista (...) Enfim, é uma relação de luta. Luta entre atores e

público (...) a peça agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente.

Isto é chama muitas vezes o espectador de burro, recalcado e reacionário. E a nós

mesmos, também. Ora ela não pode ter a adesão do público que não está disposto a

se transformar, ser agredido”.

Em 1972, depois de passar por Brecht, o Grupo Oficina radicalizaria sua

poética de agressão, o que, em parte, seria responsável pela sua dissolução como

grupo e provocaria ainda mais a perseguição da máquina de repressão. Por ocasião

da experiência polêmica de Gracias, Señor, qualificada como “te-ato em re-volição”,

tentativa de rompimento radical entre palco e platéia, ator e espectador, um

documento coletivo do grupo declarava279: “Teatro canhoto. Teatro sem regra / Teatro

sem padrão. Teatro energia pura / o único papel do teatro é levar as pessoas pra fora

dos teatros. / destruir teatro onde houver teatro / construir teatro onde não houver

teatro / chegar na frente da televisão / quebrar o vídeo e dizer, qual é? – Eu tô vivo! /

Eu estou vivo, bandeira é estar vivo! BANDEIRA É ESTAR VIVO! “.

A teoria da guerrilha cultural foi igualmente sintetizada por Frederico Morais

entre 1969 e 1970, em textos fundamentais que anunciam o limite do

experimentalismo e da vanguarda herdados das décadas anteriores280: “O caminho

seguido pela arte – da fase moderna à atual – foi o de reduzir a arte à vida, negando

gradativamente tudo o que se relacionava ao concreto da obra (permanente, durável).

Quanto mais a arte confunde-se com a vida e com o cotidiano, mais precários são os

materiais e suportes, ruindo toda idéia de obra. Da apropriação de objetos partiu-se

para a apropriação de áreas geográficas ou poéticas simplesmente de situações. A

obra acabou.....”Não sendo mais ele [o artista] autor de obras, mas propositor de

279
Manifesto Grupo Oficina, publicado por Torquato em 4 / 3/ 1972 (apud NETO, T. Torquatália.
Op.cit.p.374)
280
MORAIS, Frederico. Op.cit. p. 24/26
163

situações ou apropriador de objetos e eventos não pode exercer continuamente seu

controle. O artista é o quem dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa” .

Em outro texto, Morais afirmava281: “O artista hoje é uma espécie de

guerrilheiro. A arte é uma forma de emboscada. Atuando imprevisivelmente onde e

quando é menos esperado, de maneira inusitada, o artista cria um estado de

permanente tensão, uma expectativa constante (...) Vitima constante da guerrilha

artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos, necessita tomar

iniciativas. A tarefa do artista-guerrilheiro é criar para o espectador (que pode ser

qualquer um e não apenas aquele que freqüenta exposições_ situações nebulosas,

incomuns, indefinidas, provocando nele, mais do que estranhamento ou repulsa, o

medo. E só diante do medo há iniciativa (...).Na guerrilha artística todos são

guerrilheiros e tomam iniciativas”.

Frederico Morais esteve por trás de um dos eventos mais radicais da época, a

exposição “Do Corpo à Terra”282, evento que pode ser visto como o fechamento de um

ciclo histórico de exposições de arte que renovaram não apenas a arte brasileira, mas

sua relação com a política e com a vida pública283. No auge repressivo da ditadura,

abril de 1970, vários artistas ligados ao conceitualismo realizaram um verdadeiro rito

de guerrilha cultural, em plena praça, dentro de um evento que, na verdade, era parte

das “comemorações” da Semana de Tiradentes, herói nacional brasileiro, parte de

nossa história oficial, ainda que também reclamado à esquerda.

Dois artistas, durante este evento, marcaram os debates em torno dos limites

da arte como sublimação e representação simbólica do real: Cildo Meirelles e Artur

Barrio. O primeiro, na obra-performance intitulada “Totem ao prisioneiro político”,

queimou galinhas vivas amarradas a uma madeira num ritual que rompeu as fronteiras

da arte como representação (no caso, da violência), chegando no limite do ato estético

281
MORAIS, Frederico. Op.cit, p.26
282
Idem, p.104. Ver também coletânea organizada por SEFFRIN, Silvana. Frederico Morais. Rio de
Janeiro, FUNARTE, 2004,
283
REIS, P. Exposições de arte. Op.cit.
164

como ritual de violência real. Sua performance transmutava o herói oficializado –

Tiradentes – em “prisioneiro político”, imolado em praça pública, encenando um

martírio real de um ser vivo, em referência aos presos políticos da época, que

padeciam nos porões da ditadura. O ritual de horror, levado às últimas conseqüências,

agredia o decoro e a ideia de arte como sublimação, mas ao mesmo tempo, conduzia

a um impasse: o que restaria ao artista – enquanto artista - depois disso?284

Artur Barrio, com suas “trouxas ensangüentadas”, protagonizou um dos

momentos mais instigantes da resistência cultural, mais pela radicalidade da

proposição, do que pelos seus efeitos imediatos na consciência social. No Ribeirão

das Neves, em Belo Horizonte, Barrio arremessou suas “trouxas”, na verdade sacos

de estopa preenchidos com materiais orgânicos e lixo em geral. Os sacos eram

amarrados e perfurados, deixando vazar sua matéria, fluidos e odores. Vistas ao

longe, as trouxas pareciam corpos boiando, numa alusão direta aos corpos das vitimas

dos vários esquadrões da morte, grupos de extermínio que frequentemente eram

utilizados para matar opositores políticos, além de marginais comuns. Em

complemento, o artista documentava a reação do público e a intervenção policial para

“averiguar” o estranho objeto285.

A guerrilha cultural foi uma atitude de vanguarda com impacto na cena cultural,

causando polêmicas com os próprios artistas engajados mais ortodoxos, filiados ao

realismo e à arte mimética, que queriam se manter nos limites da arte como

representação, apelo à consciência e ao sentimento a um só tempo. Por outro lado, a

guerrilha cultural, em sua atitude de negação do circuito, do público e, no limite, da

própria obra enquanto caminho para a resistência cultural, também experimentou

contradições e impasses dentro de suas próprias fileiras. Ao radicalizar o gesto

artístico, na busca de um ato político, o artista acabou por ficar preso ao rito,

284
FREITAS, Artur. Op.cit. p.253-261.
285
Para uma análise detalhada desta intervenção artística, ver FREITAS, A. Op.cit. p. 104-160. Uma
outra faceta desta arte de intervenção, numa mirada mais construtiva, com amplos significados políticos
pode ser vista nas obras de Carmela Gross de 1968, Presunto e Escada. A primeira é uma lona
costurada, preenchida com palha de madeira, mimetizando um corpo que jaz. A segunda, é uma
intervenção pública na periferia de São Paulo, a partir de um desenho com esmalte sobre a terra.
165

celebrando uma tradição estética na qual a obra canônica desaparece, mas não

desaparece o sistema institucional de museus e galerias, os rituais de consagração

social e o culto ao gênio artístico que, afinal, também eram objeto de contestação da

guerrilha cultural286.

O próprio Frederico Morais reconhece em meados dos anos 1970, em tom

melancólico, que o mercado havia sobrevivido ao radicalismo da vanguarda, acabando

por reincorporá-la287: “O papel do artista [de Vanguarda] é organizar a compreensão.

Ou seja, ‘a arte não é para a massa desde o seu nascimento. Ela chega a isso no fim

de uma soma de esforços....Com a atividade de vanguarda colocada à margem e com

o afastamento (ou demissão) da crítica, de suas funções específicas, a única

renovação havida neste início de década foi, de fato, o mercado de arte”. Na mesma

linha, Carlos Zilio, artista que vivenciou a dupla face de artista ligado ao

experimentalismo e guerrilheiro de fato, também apontava para um diálogo crítico com

o circuito estabelecido288: “Se o objetivo é atingir um determinado circuito, a exposição

não se situa fora dele, a não ser criticamente. Ainda que esteja genericamente

localizada dentro das formulações internacionais, o que em última análise é inerente à

própria cultura e, consequentemente, ao próprio circuito nacional, é neste último que

ela encontra sua origem e a sua meta. Sendo crítica, reconhece suas limitações e não

pretende oferecer uma opção radical, mas procura intervir abrindo alternativas

contrárias aos aspectos mais retrógrados do circuito”.

De fato, por volta de 1973, estava demarcado o limite do experimentalismo

radical em diversas áreas artísticas, dissolvendo a confluência entre contracultura e

vanguarda radical. Obviamente, aquelas experiências estéticas radicais deixariam

rastros e motivos no teatro, na música, nas artes como um todo, reverberando até os

final dos anos 1980 na cultura jovem alternativa. Neste sentido, ao contrário do que

286
CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo,
Edusp, 1997, p. 45. Canclini define “ato” estético como “intervenções eficazes em processos sociais”.
287
MORAIS, Frederico. Op.cit, p.114
288
O artista estava refletindo acerca de sua primeira exposição individual em 1974. ZILIO, Carlos. (texto
sem título). IN: COTRIM. G et al. Op.cit., p. 349 (originalmente publicado em 1975)
166

previra Ventura, esta corrente também constituiu um legado de obras perenes, e não

apenas de comportamento datado. Uma série de eventos podem ser tomados como

sintomas deste refluxo da guerrilha cultural, em situação homóloga à própria guerrilha

de fato, isolada e derrotada militarmente pelas Forças Armadas no mesmo período: a

volta do artista de vanguarda para as galerias, a dissolução do Oficina e o exílio de

José Celso, o álbum Araçá Azul de Caetano Veloso e seu impacto negativo no

mercado fonográfico. A este refluxo endógeno da contracultura, somava-se a contra-

ofensiva dos artistas da “hegemonia”, ligados ao PCB.

Hegemonia ou contracultura: as lutas culturais no teatro

De todas as artes, a teatro vivenciou os embates mais diretos na definição de

qual seria a “linha justa” da resistência cultural. Neste campo, os dramaturgos

constituíam uma espécie de núcleo duro da política cultural que mais se aproximava

das posições do PCB: defendiam a unidade e o frentismo (artístico e classista);

pautavam-se pela busca do “homem brasileiro” e suas contradições específicas;

filiavam-se ao drama realista. Em certa medida, herdeiros do engajamento nacional-

popular dos anos 1960, os dramaturgos retomariam a ofensiva contra o underground e

contra a vanguarda radical em duas frentes: seja voltando a reclamar seu lugar no

mercado, seja se aproveitando dos acenos do governo Médici, através do Ministro da

Educação Jarbas Passarinho, na direção de uma “política” cultural mais direcionada

para uma arte de corte nacional-popular, devidamente depurada da luta de classes.

Lançado em agosto de 1973, o Plano de Ação Cultural (PAC) não apenas sinalizava

mais recursos para a área, com um amplo calendário oficial de eventos culturais e

artísticos, mas também era uma tentativa de “degêlo em relação aos meios artísticos e

culturais”289. Ocorreu uma aproximação tensa e enviesada, como não poderia deixar

289
MICELI, Sérgio. “O processo de construção institucional na área cultural federal (anos 70)”. IN:
MICELI,Sérgio(org.). Estado e cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984. p. 55.
167

de ser, entre governo e artistas progressistas que acabaram preparando o terreno

para o agressivo mecenato cultural e reorganização burocrática do setor durante o

governo Geisel, na gestão do ministro Ney Braga e seu Plano Nacional de Cultura

(PNC), de 1975.

No caso do teatro, o embate foi particularmente violento, em meio ao qual os

artistas ligados à tradição pautaram-se por uma palavra-de-ordem - “pela volta da

palavra aos palcos” - vista como a ponte que traria o público de volta aos teatros,

pretensamente cansado da agressão e do choque propostos pela vanguarda

contracultural. O jornal oficial do PCB, em uma das poucas matérias extensas

dedicadas à questão cultural, citou o teatro como exemplo de “grandes êxitos” na

superação do “vazio cultural” imposto pela ditadura, listando os sucessos Gota d´’Água

(Chico Buarque / Paulo Pontes), O último carro (João das Neves) e Longa Noite de

Cristal (Vianinha)290. Paulo Pontes, um dos autores de Gota D’Água, definia esta

dramaturgia como o verdadeiro “teatro popular”, a partir de três atributos: afirmação de

uma temática popular (com uma “visão de mundo próxima do povo”); a construção de

uma forma e de uma narrativa que valorizem a comunicação, sem abrir mão da

qualidade; a priorização do “povo como destinatário”, ponto que ele mesmo reconhecia

ser o mais difícil e problemático, haja vista a estrutura comercial do circuito teatral e a

exclusão sócio-econômica das classes populares291. Na verdade, este não era o único

impasse deste projeto, pois a construção de uma “temática popular” pela

“aproximação” da perspectiva do artista-intelectual na direção do “povo”, já não

experimentava o mesmo consenso de antes do golpe militar. O próprio debate cultural,

como veremos adiante, colocava sob suspeita o intelectual que se dispusesse a falar

“em nome” do povo, ainda que fosse politicamente engajado e bem intencionado.

290
“Contra a ditadura obscurantista, a criação cultural é uma forma de luta”. Voz Operária, 129, dez/1976,
p. 2
291
PEIXOTO, F. “Subúrbio e poesia”. Debate com Chico Buarque e Paulo Pontes sobre Gota d’Água.
Movimento, 31, 2/2/1976, p. 8.
168

A historiadora Rosangela Patriota bem resumiu as posições em conflito292: “Os

artistas próximos à tese da ‘resistência democrática’ esmeraram-se em espetáculos

em favor da liberdade de expressão e de igualdade de direitos, ao passo que os

‘radicais’ promoveram encenações nas quais as críticas ao ‘estado de exceção’, à

própria esquerda e à ‘civilização ocidental foram os focos privilegiados, como

atestavam as experiências do grupo Oficina a partir da experiência do Te-ato”.

José Arrabal destacou três posições básicas do teatro engajado brasileiro293:

Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal e José Celso Martinez Correa. Para Jose Arrabal,

as posições de Vianinha seriam marcadas pela busca da unidade, pelo realismo

dramático, pela ênfase na organização dos empresários e pela ocupação do circuito

comercial. Boal, por sua vez, não falava em unidade, mas em “teatro popular”,

enfatizando a produção barata (materializada pelo “sistema coringa”), debatendo-se

por um teatro de agit-prop que expressasse dilemas políticos e morais causados pela

experiência das ditaduras. Finalmente, José Celso defenderia uma recusa radical das

ideologias do teatro progressista; a agressão ao público; a busca do coletivo; o elogio

ao corpo-ato. Tal como se observava por volta de 1972, com o colapso momentâneo

do Oficina enquanto grupo organizado e proposta estética, agravado pela prisão de

Boal, o exílio e o cerceamento à realização das suas propostas na cena teatral

brasileira, a resistência cultural no teatro passava a ser hegemonizada pela corrente

ligada a Vianinha e ao PCB.

Na breve apresentação daquela que é considerada sua obra-prima, Vianinha,

sugeria uma linha de ação e reflexão que deveria informar o teatro brasileiro

engajado294: “Em primeiro lugar, Rasga Coração é uma homenagem ao lutador

anônimo político, aos campeões das lutas populares: pleito de gratidão à Velha

292
PATRIOTA, R. “O fenômeno teatral como objeto de pesquisa histórica: O Brasil da década de 1970 e
as encenações de Fernando Peixoto” IN: MACHADO, M. H. e PATRIOTA, R. (orgs). História /
Historiografia: perspectivas contemporâneas de investigação. EDUFU, Uberlandia, 2006.
293
ARRABAL, José. “Anos 70: movimentos decisivos da arrancada” IN: Anos 70: ainda sob a tempestade.
Rio de Janeiro, Aeroplano, 2004, p. 208
294
Oduvaldo Vianna Filho falando sobre Rasga Coração, 28/02/1972, publicado em MICHALSKY, Y.
(org). O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo, Global, 1984, p. 57
169

Guarda que foi a que politizou em profundidade a consciência do País (...) Em

segundo lugar, quis fazer uma peça que estudasse as diferenças que existem entre o

novo e o revolucionário. O revolucionário nem sempre é novo absolutamente e o novo

nem sempre é revolucionário”. Vianinha ecoava a resposta de Chico Buarque - à

época gravitando em torno das posições mais ligadas ao PCB, embora não fosse

organicamente ligado ao Partido – aos tropicalistas que os fustigavam em 1968: “Nem

toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”. Na peça, ambientada em 1972,

Vianinha coloca o conflito entre gerações encarnado pelo estranhamento entre

Manguari Pistolão, militante comunista e funcionário público e Luca, seu filho, ligado à

contracultura. A estrutura é narrada a partir do pai, sem que isto signifique passar por

cima dos seus impasses e dilemas pessoais, em meio a um contexto de repressão e

desarticulação de projetos revolucionários. Outro personagem importante é Camargo

Moço, jovem militante que, mesmo crítico em relação ao passado da militância

comunista, se coloca como seu herdeiro, portanto, crítico da contracultura, do

esquerdismo radical e agônico e da “recusa irracional” do sistema295.

Mesmo os dramaturgos que não eram pautados pelo decoro e pelo diálogo

com o “gosto médio” que pareciam informar os dramaturgos comunistas, tinham

críticas à contracultura e à vanguarda teatral simbolizada pelo “teatro de agressão” do

Oficina. O insuspeito Plínio Marcos também questionava tais princípios296: “Eu acho

que a platéia não tem que se mexer. Se mexer para que? Tem que ficar sentadinha,

quietinha, ouvindo o que a gente tem a dizer. No final, se não gostar, vaia, se gostar,

aplaude. O que eu acho que devia ter é debate com o público no final, para se discutir

o que foi posto no palco, porque não é justo você só ouvir a opinião do outro e não

poder debater. No debate final, a platéia participa. Agora, esses espetáculos com todo

mundo nu, essas coisas, na minha terra tem o nome de suruba”.

295
PATRIOTA, R. A crítica do teatro crítico. p. 58-61. Lembramos que a peça foi vetada em 1975, mesmo
sendo premiada pelo SNT em concurso oficial. Sua estréia, em 1979, acabou por se enquadrar em outro
contexto de debates entre a “velha esquerda” representada pelo partidão, e a “nova esquerda” que iria
confluir para o nascente PT. Portanto, a questão da tradição da militância ainda era um tema, mantendo a
acuidade histórica da peça.
296
MARCOS, Plinio. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Op.cit. p. 65
170

A partir de 1972, nota-se uma contra-ofensiva mais orgânica dos dramaturgos

ligados ou simpatizantes do PCB para re-ocupar a cena teatral. Este fenômeno da

história cultural brasileira ainda é pouco estudado como tema monográfico, o que torna

mais difícil sua análise. Ao que parece, a peça Um grito parado no ar, de

Gianfrancesco Guarnieri (1973), configura uma das primeiras tentativas de retomar um

tipo de teatro e aprofundar uma crítica (ou autocrítica) da área teatral seduzida pelo

vanguardismo. A peça representava as dificuldades para se encenar uma peça que

nunca se sabe ao certo do que se trata. Na ótica comunista, os credores, a censura e

os modismos da contracultura eram os fatores que estavam decretando a “morte do

teatro”, justamente em um momento histórico no qual a sociedade brasileira mais

precisava dele. A peça encena esta crise externa e interna ao teatro, fazendo com que

os personagens mais “conseqüentes” acabem por sucumbir. A peça era encerrada

com um grito agônico no palco escurecido. Uma explosão de energia que sinalizava a

necessidade de teatro como expressão fundamental da consciência social, ao mesmo

tempo em que apontava para as conseqüências da impossibilidade de encenação. O

grito, por si, era um manifesto, anunciando a necessidade da volta da palavra.

A contra-ofensiva da dramaturgia comunista estava ancorada na revisão

histórica que passou a fundamentar a sua crítica ao teatro de vanguarda, cuja linha de

argumentação reafirma a existência de um vazio cultural. Quase todos os dramaturgos

comunistas ou simpatizantes apontavam o início da crise do teatro brasileiro em 1968,

antes mesmo do acirramento da censura. Conforme João das Neves, que em 1976

lotava os teatros com a peça O Último Carro, vista pela crítica como um dos exemplos

da nova dramaturgia nacional-popular, declarou297: “A partir de 68, o teatro brasileiro

estava impedido de ter acesso à realidade brasileira. As palavras começam a perder

força e sentido (...) De repente, há uma visão colonialista e colonizadora de nossa

cultura. E, nesse momento, para aqueles que trabalhavam num teatro de palavras, em

que o pensamento era fundamental, em que a discussão dos problemas era

297
NEVES, João IN:“Paulo Pontes: a arte da resistência. Rio de Janeiro, Versus, 1977, p. 19
171

fundamental, nesse momento [1968, com o teatro de vanguarda] essas pessoas

[Grupo Opinião] tinham que ficar em segundo plano”. Paulo Pontes, co-autor de Gota

D’Água, endossava a mesma linha de análise298: “De 1968 para cá, o teatro brasileiro

passou a cada vez menos identificar-se com a sociedade e negar os valores do

homem brasileiro para fechar-se em torno de si mesmo. Hoje, estamos voltando

novamente a recuperar a hegemonia do nosso teatro e a palavra vai sendo cada vez

mais valorizada”. Ao fim da entrevista, Pontes cita a própria peça, Gota D’Água

(estréia em dezembro de 1975), além de Ponto de Partida (set/1976) e O Último Carro

(estréia março de 1976), como exemplos de uma bem sucedida retomada da

dramaturgia nacional-popular intimamente conectada com as expectivas do público

que voltava a lotar as salas do “circuitão”299.

Entre 1972 e 1979, vários textos e encenações de grande sucesso no circuito

comercial marcaram a retomada de um “teatro político” da resistência, tal como

chancelado pelo PCB, no qual as metáforas eram construídas a partir de situações

dramáticas realistas300 e paradigmáticas de um contexto de repressão e de

modernização capitalista impostas pelo autoritarismo. O teatro nacional-popular,

chancelado pela cultura engajada de matriz comunista e pelo seu conceito de

resistência, voltou a ocupar espaços importantes no circuito comercial, sendo saudado

por críticos identificados com esta corrente e dividindo as atenções com os chamados

“grupos jovens” que mantinham o viés contracultural da “agressão” e do choque,

eventualmente matizado pelo humor ou pelo lirismo301. Inaugurada por espetáculos

como O Botequim (estréia em abril de 1972) e Um Grito Parado no Ar (julho de 1973),

ambos de Gianfrancesco Guarnieri, o movimento ganhou força a partir de 1975,

298
PONTES, Paulo (entrevista) IN: Paulo Pontes: Arte da Resistência. Op.cit., p. 39
299
Michalski recupera a importância das experiências formais, radicais e de derrubada de todos os tabus,
entre 1967 e 1973. Pontes contestava este tipo de teatro, sem considerar suas contribuições.
MICHALSKI, Y. Arte da Resistência, Op.cit.p. 5
300
O realismo, para esta corrente, poderia aparecer matizado pela forma do drama, da tragédia, da
comédia de costumes. Ou seja, funcionava mais como uma perspectiva do que como um gênero em si
mesmo.
301
Para uma visão crítica geral sobre estes grupos e suas contribuições, ver FERNANDES, Silvia. Grupos
teatrais dos anos 1970. Campinas, Editora Unicamp, 2000
172

encorpado por um conjunto de espetáculos hoje clássicos da dramaturgia brasileira:

Gota D´Água (Chico Buarque e Paulo Pontes), Ponto de Partida (G.Guarnieri), O

Santo Inquérito (Dias Gomes), O Último Carro (João das Neves), Muro de Arrimo

(Carlos Queiroz Telles), Rasga Coração (Oduvaldo Vianna Filho, escrita em 1974 e

montada em 1979), Patética (João Ribeiro Chaves Neto, estréia em 1978), entre

outras302, formam um corpus coerente, além de terem sido eventos teatrais

sintomáticos do processo de rearticulação ideológica em nome da resistência

hegemonizada pelo PCB, depois da vaga contracultural.

Carlos Nelson Coutinho, intelectual ligado ao PCB, saudava a bem sucedida

retomada desta linha dramatúrgica303. Depois de frisar que o teatro brasileiro foi a área

que mais teria sofrido o impacto do “vazio cultural”, o autor saúda a cena teatral que

parecia se firmar em 1976. Os exemplos seriam exatamente as peças Gota D’Água e

O Último Carro que “apesar da diversidade das suas soluções formais, têm em comum

uma temática básica: a discussão concreta de problemas concretos do povo

brasileiro”. Coutinho elogia, particularmente, a peça de João das Neves, tratando-a

como uma homologia sobre os impasses do “povo brasileiro” naquela altura dos anos

1970: “Vários pequenos dramas que permeiam a peça perdem sua autonomia e

ganham organicidade dramática ao serem subitamente confrontados com um evento

302
TELLES, Carlos Queiroz. Muro de Arrimo - A realidade e a ficção (programa do espetáculo). São
Paulo, Acervo BIBLIOTECA Jenny Klabin Segall,1975. Monólogo sobre o pedreiro Lucas, que oscila entre
reflexõoes pessoais sobre sua condições e a a emoção coletiva diante de um jogo da seleção brasileira,
enquanto constrói um muro (estréia Nov/1975, dir: Antonio Abujamra); Ponto de Partida alude de maneira
alegórica à morte do jornalista Wladimir Herzog, transportando a ação para uma aldeia medieval na qual o
poeta local aparece misteriosamente enforcado no meio da praça (estréia set/1976, dir: Fernando
Peixoto); NEVES, João das. O Último Carro: anti-tragédia brasileira. Rio de Janeiro: Grupo Opinião, 1976.
Nesta peça, ambientada em um vagão de trem de subúrbio, que parece estar em uma louca corrida sem
motorneiro, vários operários e lumpens tentam tomar o controle da situação. A partir deste mote, surgem
individualidades em choque na formação de uma coletividade capaz de controlar o trem e evitar a
tragédia que se anuncia (direção João das Neves, estr: mar/1976, RJ); GOMES, Dias. “O santo inquérito”.
O teatro de Dias Gomes. Nesta, a ação se ambienta na Paraíba em 1750, durante a visitação do Santo
Ofício e perseguição à uma cristã nova que salva um padre do afogamento e acaba denunciada por este
como vítima do Demônio; BOAL, Augusto. Murro em ponta de faca. São Paulo, Hucitec, 1978 (Dir: Paulo
José, estréia em 1978), sobre a vida e as agruras do exílio. Outra autora de sucesso no final dos anos
1970, que flertou com esta corrente teatral foi Maria Adelaide Amaral, mais voltada para o perfil da classe
média brasileira e suas complexas relações com o regime militar. Ver textos da autora como “A
resistência” (1975) e “Bodas de Papel” (1978).
303
COUTINHO, Carlos N. “No caminho de uma dramaturgia nacional-popular”. Movimento 76,
13/12/1976, p. 16
173

excepcional [o trem desgovernado] que obriga todos os personagens a uma definição

radical de suas personalidades”. A partir deste mote, a peça encenava as “várias

alternativas diante das quais se encontra o povo brasileiro”: irracionalismo,

conformismo, marginalismo. O grupo de operários comandado pelo personagem

Deolino, o típico herói operário comunista – “racional, solidário, conseqüente” -

apresenta a melhor solução: a união do povo para retomar o controle da locomotiva

desgovernada.

Gota D’Água, por outro lado, foi um dos maiores sucessos do teatro brasileiro,

além de ser um contundente manifesto pela retomada do teatro calcado na palavra e

na dialética local-universal. Mais do que uma peça de teatro, Gota D’Água tornou-se

um evento aglutinador de um conjunto de atores, perspectivas e reflexões estéticas e

políticas304. Miriam Hermeto sustenta que a peça foi o resultado da ação político-

cultural de um grupo de intelectuais por ela nomeada como “Grupo Casa Grande”,

nome tirado do local de reunião de vários intelectuais de oposição ao regime, o Teatro

Casa Grande no Rio de Janeiro. Lugar de sociabilidade e de articulação de projetos

intelectuais e estéticos, o “Grupo Casa Grande” organizou o “I Ciclo de Debate sobre

Cultura Contemporânea”, além dos três ciclos de debates sobre economia, eventos

bastante concorridos e que apontavam para uma rearticulação do pensamento

oposicionista na perspectiva frentista e civilista, após a derrota dos projetos de luta

armada. O núcleo do grupo eram Paulo Pontes, Antonio Callado, Bete Mendes, Chico

Buarque, Max Haus, Zuenir Ventura. Luiz Werneck Vianna (que à época estava

clandestino e vivia na casa de Paulo Pontes) e Ferreira Gullar também circularam pelo

grupo305. Aliás, a trajetória de Luiz Werneck Vianna é muito elucidativa em relação ao

circuito intelectual e cultural da oposição à ditadura. Carioca ligado ao PCB, Vianna

passou uma temporada importante em São Paulo, entre 1971 e 1975, cursando o

304
A historiadora Miriam Hermeto realizou um trabalho minucioso de análise de Gota D´Água e sua
historicidade, tomada como evento cultural e político multifacetado e lugar de memória para a cultura
brasileira sob o regime militar. Ver HERMETO, Miriam. ‘Olha a Gota que falta’: um evento no campo
artístico-intelectual brasileiro (1975-1980). Tese de Doutorado em História, UFMG, Belo Horizonte, 2010
305
HERMETO, Miriam. Op.cit. p. 89.
174

doutorado na USP, sob orientação de Francisco Weffort. Também circulou pelo Centro

Brasileiro de Análise e Planejamento - CEBRAP e pela Unicamp, onde lecionava

quando foi preso, em 1975. Depois de um interrogatório policial, fugiu para o Rio de

Janeiro, onde se abrigou, “meio clandestino”, na casa de Paulo Pontes e Bibi Ferreira,

para concluir sua tese de doutorado, defendida na USP em 1976. Conforme Vianna,

enquanto Paulo Pontes escrevia Gota D’Água, ele escrevia Liberalismo e Sindicato no

Brasil306, possibilitando uma ampla troca de idéias sobre o tema da modernização

conservadora brasileira, o papel dos intelectuais divididos entre a cooptação e a

resistência, bem como o contexto autoritário que se vivia, e suas contradições307. Por

outro lado, Vianna foi também uma espécie de articulador das oposições intelectuais

de São Paulo – mais centrada no profissionalismo acadêmico-institucional – e do Rio

de Janeiro – cuja tradição remete à sociabilidade cultural mais difusa, oscilando entre

a boemia literária, o jornalismo, a burocracia oficial, as artes e as Universidades. Entre

1975 e 1980, esboçou-se um frentismo intelectual de oposição que flertava com o

MDB, mas que não resistiria à criação do Partido dos Trabalhadores em São Paulo e à

ascensão do Brizolismo no Rio de Janeiro308. Por outro lado, este frentismo parece ter

influenciado a produção cultural e artística, reiterando um sentido amplo e ecumênico

à resistência neste setor, depois dos traumas e dissensos de 1968.

O prefácio de Gota D’Água pode ser visto como a expressão ideológica mais

acabada destas conexões e, particularmente do “grupo Casa Grande”, desenvolvido a

partir das conexões entre um projeto estético e uma crítica política à modernização

306
VIANNA, Luiz W. Liberalismo e sindicato no Brasil. Editora Belo Horizonte, 1999 (4ªed.). A primeira
edição é de 1976.
307
Entrevista de Luiz Werneck Vianna IN: RUGAI, Elide e FERNANDES, F. (orgs). Conversas com
sociólogos brasileiros. São Paulo, Editora 34, 2006, p. 169
308
Um dos documentos mais bem acabados desta tentativa de articular um frentismo intelectual e político
de oposição foi o programa do MDB para as eleições de 1974, elaborado por uma comissão de
intelectuais cebrapianos (Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Paul Singer, Luiz Werneck
Vianna e Francisco Oliveira), a convite de Ulisses Guimarães. Ver entrevista de Vianna IN: RUGAI, E. e
FERNANDES, f. (Orgs.). Op.cit. p. 168. Este frentismo reunia liberais de oposição, social-democratas e
comunistas na releitura do papel do Estado e das classes sociais na modernização brasileira e seria
objeto de crítica das forças que viam na transição política para a democracia um momento de refundação
do Brasil, de “baixo para cima”, prescindindo e criticando o papel histórico das elites e do Estado. Os
circuitos e implicações desta rede ainda estão por ser investigados em profundidade.
175

conservadora da sociedade brasileira309. O texto, cujo relator principal foi Paulo Pontes,

bastante influenciado pelas conversas com Vianna, começa com uma crítica direta à

vanguarda contracultural, tratada como “radicalismo vazio da pequena burguesia”310:

“A ironia, o deboche, a boemia, a indagação desesperada, a anarquia, o fascínio pela

utopia, um certo orgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novo são algumas

marcas desta nova tradição de rebeldia pequeno-burguesa. Hoje é possível perceber

que esta rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos projetos colonizadores

sempre tiveram que assimilar, amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma

função dinâmica no processo social”. E conclui: “No auge da crise expressiva que o

teatro brasileiro tem atravessado, a palavra deixou de ser o centro do acontecimento

dramático. O corpo do ator, a cenografia, adereços, luz, ganharam proeminência, e o

diretor assumiu o primeiríssimo plano na hierarquia da criação teatral (...) uma fobia

pela razão ia tomando conta da nossa criação teatral (...) A linguagem, instrumento do

pensamento organizado tem que ser enriquecida, desdobrada, aprofundada (...) A

palavra, portanto, tem que ser trazida de volta, tem que voltar a ser nossa aliada”311.

Na defesa do teatro nacional-popular, de matriz verbal e dramática, a apresentação de

Gota D’ Água constatava: “O povo sumiu da cultura brasileira (...) o povo brasileiro

deixou de ser o centro da cultura brasileira. Ficou reduzido às estatísticas e às

manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal”312. Ao

final do texto, demonstrando o tributo e concordância com a noção de “vazio cultural”

como ponto de apoio para esta ofensiva contra o underground, não por acaso, os

autores agradeciam a Zuenir Ventura, confirmando a presença de um grupo com uma

perspectiva clara sobre cultura, política e resistência ao autoritarismo.

Para esta linha de resistência cultural, nem corpo era “motor da obra”, como

afirmava Frederico Morais, nem o ato era a superação da representação, como queria

309
HERMETO, Miriam. Op.cit. p. 95-99.
310
BUARQUE, C. & PONTES, P. Apresentação. Gota D´Água: uma tragédia brasileira. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2008, p. XIV
311
BUARQUE, C & PONTES, P. Op.cit, p. xvii
312
Idem, p. xvi
176

José Celso. A palavra, articuladora da emoção e da razão, deveria ser o epicentro da

experiência teatral, de atores e do público313. Se o “povo”, cada vez mais difícil de ser

definido política e culturalmente, expressão da nação violentada pela ditadura, voltava

a ser o centro da experiência teatral, o público também era convidado a participar

novamente desta experiência, como espectador-fruidor devidamente situado fora do

palco e isento do choque proposto pelo teatro contracultural. A linha de ação cultural e

estética mais afinada com a tradição nacional-popular, em diálogo com as proposições

mais amplas do Partidão, recusava esta guerrilha cultural, numa atitude homóloga ao

campo da política, no qual o PCB recusava a guerrilha “de fato” como caminho válido

de combate ao regime.

A crítica teatral abrigada pela imprensa liberal-conservadora também não

perdia a chance de ironizar a vanguarda, elogiando o teatro de esquerda, mais

próximo, sem dúvida, do realismo dramático, dito “burguês”. Aliás, muitos críticos,

mesmo trabalhando em jornais conservadores, eram homens progressistas de

esquerda, filiados ou identificados com o PCB. Sobre a peça de Paulo Pontes, a

comédia Um edifício chamado 200, de 1972, o critico do jornal O Estado de S.Paulo,


314
Luis Febrot, que se enquadra na descrição acima, escreveu : “É um teatro onde o

público se reconhece imediatamente e participa do espetáculo sem precisar subir no

palco ou se fazer de goleiro de frutas e verduras jogadas pelos atores”. No mesmo

ano, o crítico anunciava, endossando a critica dos dramaturgos comunistas315: “Quanto

ao teatro de agressão, se esvaziou por si. Persistir na sua linha hoje é infantilidade,

pois agride os seus próprios aliados e tentáculos. Na verdade, mesmo na sua primeira

313
Para o crítico José Arrabal, o debate em torno da palavra era uma falsa questão: “o teatro comercial
continuou com muita palavra como sempre”. ARRABAL, J. Op.cit, p.233
314
FEBROT, Luis. Crítica publicada no jornal O Estado de S.Paulo, em 24/12/1972, sobre a peça “Um
edifício chamado 200”. Republicado IN: Teatro de Paulo Pontes. Ed. Civilização Brasileira, p.73. Na
verdade, Luis Febrot era ligado ao Partido Comunista, tendo sido um dos responsáveis por convidar
Nelson Pereira dos Santos para ingressar no Partido, ainda nos tempos do Colégio Estadual Presidente
Roosevelt (anos 1940). Febrot ainda dirigiu o jornal O Reflexo (1947-1956), da comunidade judaica
progressista radicada no Brasil. Sua crítica militante abrigada em um grande jornal liberal e conservador,
é um exemplo da convivência de linhas ideológicas distintas, mas convergentes em determinados
momentos, no mesmo espaço ou instituição sócio-cultural. No caso específico, o Suplemento Literário
d”OESP foi um espaço importante e plural de crítica cultural, em contraponto ao conservadorismo político
da linha editorial do mesmo jornal.
315
Idem, ib.
177

fase, com a introdução do teatro comprometido do Arena, Opinião e Oficina, já o

público burguês digestivo fora literalmente expulso de suas salas”.

A imprensa partidária comunista também ajudava a referendar essa visão

histórica, ao nomear o período que vai do final dos anos 1960 e início dos anos 1970,

como sendo marcado pelo “vazio” e pelo “confusionismo ideológico” (sic!)316: “Essa

situação de confusionismo ideológico começou a se alterar por volta de 1972, 1973.

Em todos os campos culturais, embora no interior dos estreitos e sempre flutuantes

limites ‘legais’ tolerados pelo regime, começaram a reaparecer fenômenos positivos,

voltados para uma discussão concreta dos problemas vividos pelo povo brasileiro”.

Para a fala oficial do PCB, um dos melhores exemplos deste processo no campo

artístico, era a “retomada da tendência realista orientada para a figuração crítica da

realidade nacional”. Ao que parece, a contra-ofensiva dos militantes culturais do

Partidão no teatro não era fruto de ações e iniciativas individuais coincidentes, e sim

pareciam ecoar posições amplas do Partido.

Cinemanovistas ou cinema marginal: lutas culturais no cinema

No campo do cinema, os embates entre a esquerda e os adeptos da

contracultura também ocorreram, mas adquiriam dinâmicas próprias. A esquerda,

reunida na frente cinemanovista rearticulada no início dos anos 1970317, lutava pela

retomada de um cinema politizado e de um cinema popular, sem recusar, a priori, a

política cultural do Estado318. Obviamente, as questões no cinema eram complexas,

pois nem a tradição de esquerda cinemanovista era filiada às narrativas clássicas,

dramáticas e naturalistas-realistas, nem o mercado era ocupado, majoritariamente,

316
“Nova etapa na luta cultural contra o fascismo”. Voz da Unidade, 125, junho 1976,p. 2
317
Deste grupo, podemos destacar: Cacá Diégues, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirzsman, Gustavo Dahl.
318
Sobre a relação entre Estado e cinema no Brasil dos anos 1970, ver: AMANCIO, Tunico. Artes e
Manhas da Embrafilme. O cinema estatal brasileiro em sua época de ouro. Niterói, EDUFF, 2000;
MALAFAIA, Wolney. “O Cinema e o Estado na Terra do Sol: A Construção de uma Política Cultural de
Cinema em Tempos de Autoritarismo”.IN: MORETTIN, Eduardo et alli. Historia e Cinema. São Paulo,
Editora Alameda, 2007, 327-350
178

pelo produto nacional, à medida que era dominado pelo produto estrangeiro, vale

dizer, norte-americano. Neste ponto, havia uma porta aberta para a convergência de

interesses comuns entre o desenvolvimentismo estatal, os produtores nacionais e os

realizadores nacionalistas. O papel do Estado como protetor do cinema brasileiro será

reforçado por ocasião do lançamento da Política Nacional de Cultura (PNC), pelo

MEC, em 1975319, causando grandes dissensos na área320.

Condicionadas por estas características, as linhagens da resistência cultural no

cinema também se entrecruzavam de maneira tensa e contraditória, com divisões não

apenas entre cinemanovistas e “cinema marginal”, mas entre os próprios

cinemanovistas, que apresentavam nuances internas que se acirraram na medida em

que a década de 1970 avançava. De uma posição mais compacta, em defesa do

nacionalismo crítico ao novo contexto pós-64, este grupo acabou por ficar

perigosamente dependente das políticas culturais do Estado, apresentando posições

oscilantes e proposições artísticas diversas dentro das possibilidades de diálogo com

o mecenato oficial, particularmente decisivo na área do cinema. Se por um lado temos

exemplos de diálogos críticos com as demandas do Estado e do mercado, como em

São Bernardo (Leon Hirzsman, 1973), outros perseguem a efetivação do “cinema

popular” (Xica da Silva, Cacá Diégues, 1975, Amuleto de Ogum, Nelson Pereira dos

Santos, 1974), sem falar na posição de Glauber que, próximo ao produtor Luis Carlos

Barreto, sonha com a grande indústria do audiovisual brasileiro, sem abrir mão do seu

experimentalismo321. Neste sentido, não se pode falar em contraponto simplista entre

“nacionalistas” e “marginais” ou “contraculturais” no campo do cinema, ainda que

existissem tensões básicas entre estas correntes.

A contracultura saudava o cinema experimental, dito “marginal”, que apesar

dos diálogos com os momentos mais inventivos do Cinema Novo, apresentava-se no

começo da década de 1970, como sua oposição estético-ideológica. Torquato Neto,

319
A PNC será analisada no capítulo 5.
320
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.p. p.117-158
321
Idem, p.105 e p. 132
179

ator e realizador ligado à contracultura, era direto na crítica ao Cinema Novo322: “Ao

lado destes [filmes de circuito] e já devidamente saudados, estudados e badalados

pela revista oficial do INC um número impreciso de filmes marginais também veio à

tona em exibições mais ou menos regulares na Cinemateca do MAM (Rio). (...) Entre

os restos de uns e a glória de outros o cinema brasileiro segue o curso normal do

cinema: cresce, brilha, aparecerá. E o cinema novo (alguma novidade) caiu do galho e

foi ao chão. Como se diz, já era...Glauber foi o cineasta máximo da consciência

brasileira em transe e isso já passou, bonecos...quando tudo começou ..havia uma

perspectiva de conjunto e a batalha de todos era mais ou menos a mesma. Agora é

impossível porque a nova ordem gerou uma dispersão geral. E tem mais: a partir de

certo momento o cinema novo passou a se ocupar de coisas mortas” (segue elogio a

Antonio Calmon, diretor de O capitão Bandeira, um dos ícones do cinema marginal).

Em outra coluna de sua autoria, Torquato aponta o comercialismo dos diretores de

esquerda323: “E que eles mesmos, os cineastas que voltaram aflitos para construir a

indústria do cinema brasileiro, se é que eu sei quem são, preferem ignorar (...) e

posando de progressistas inocentes, como se isso fosse possível. Estão pensando no

‘público’, também chamado ‘povo’. E no fundo, quando a gente vê os filmes, descobre

fácil que em cinema mesmo é que eles não estão pensando”.

Glauber, por outro lado, críticava ao underground , em manifestação que

parece destoar da imagem consagrada de diretor como fundador e inspirador das

vanguardas e da busca de novas linguagens324: “Os fatos são graves: os filmes dos

novos cineastas que se opuseram com grande publicidade aos filmes do ‘cinema novo’

não passavam de minifilmes colonizados, burgueses, que anunciavam uma nova

forma copiada do velho underground americano etc. Joaquim Pedro discretamente

declarou que só compreendia cinema underground se fosse subversão política direta.

322
NETO, Torquato. Torquatália (Geléia Geral). Op.cit. p. 189
323
Idem, p. 226 (coluna de 11/09/1971)
324
. ROCHA, G. “Carta a Alfredo Guevara” IN: BENTES, I. (org). Glauber:Cartas ao mundo. São Paulo,
Cia das Letras, 1997, p. 408
180

Cinema underground confessional, de superfície psicanalítica, não passava de uma

’vanguarda’ ideal para países fascistas. Sobretudo quando se aliava indiretamente à

ditadura para combater o cinema novo... triunfou uma contracultura decadente,

americanizada, instrumento de autocolonização”.

Como expressão da rearticulação de cinemanovistas contra os excessos do

cinema marginal e contra o domínio do mercado pela “pornochanchada” (filme erótico

de baixo custo e padrão estético), em 1973, foi divulgado o Manifesto “Luz e Ação”. O

documento foi assinado por Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon

Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr. Carlos Diegues e Miguel Faria

Jr. Diz o manifesto325: “Nossos filmes mais recentes são a evidência de que queremos

uma vasta e justa redistribuição da renda cultural da nação, contra a concentração do

experimentalismo asséptico, da vanguarda que se guarda, dos clowns de grã-fino. O

cinema para nós só tem sentido enquanto invenção permanente em todos os níveis de

criação (...) o prazer da forma, as grandes utopias, o sentimento do mundo são direitos

e deveres do artista (...) Em nome dessa invenção permanente o nosso cinema

formulou as teses mais radicais da cultura brasileira durantes os anos 1960 (...)

queremos provocar o nascimento de novas idéias para situações novas e, assim,

evitar que o cinema brasileiro se transforme, a curto prazo, na mais recente indústria

velha ou, na mais jovem cultura decadente do mundo”.

Sem abrir mão da “invenção” que nas lutas culturais do teatro poderiam ter

outra conotação, os cinemanovistas afirmavam um tipo de cinema engajado,

“conseqüente”, ou seja voltado para o equacionamento dos dilemas políticos e

culturais brasileiros e assumindo as tarefas do artista-intelectual militante. Claramente,

há a busca de uma eqüidistância crítica em relação ao cinema marginal e à linguagem

de sucesso fácil do mercado, sem negar a importância deste circuito e sem

condicionar a ocupação dos circuitos comerciais à linguagem realista ou naturalista

325
Disponível em “Em memória: projeto de base de dados sobre 15 cineastas brasileiros”. Cinemateca
Brasileira, 1996.
181

mais convencional. Os “filmes recentes” aludidos pelos signatários indicavam o

paradigma estético-ideológico: Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), Como

era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), São Bernardo (Leon

Hirzsman, 1973), Joana, a francesa (Cacá Diégues, 1973) e Os Inconfidentes

(Joaquim Pedro de Andrade, 1972). Nestas obras, a diversidade de abordagens e

linguagens narrativas dá o tom, mas não impede a tentativa de abordar os dilemas

político-culturais brasileiros potencializados pela experiência do autoritarismo e da

modernização capitalista imposta pelo regime.

Conforme Ismail Xavier, o manifesto “Luz & Ação”326: “é um documento de

época e não por acaso, bate na tecla da continuidade. Sua tônica é de convite, dirigido

a cineastas de todas as tendências (nem tanto), aos críticos e ao próprio esquema de

poder, para uma mobilização que suscite novas idéias, compatíveis com o ideário do

grupo, que faça o cinema brasileiro sair da crise. (...) apesar das habituais estocadas

claramente dirigidas ao cinema marginal, o manifesto se define como abertura para o

diálogo, lembrando que a continuidade depende do contato com o público – forma de

sugerir o que em pouco tempo estaria traduzido nas gestões da Embrafilme”.

A aproximação dos cineastas de esquerda com o regime, via mecenato oficial,

acirrou ainda mais o debate e acabou por suscitar, mais para o final da década de

1970, dissensos internos ao outrora compacto grupo de cinemanovistas. Leon

Hirszman, por exemplo, aceitava o diálogo com a política cultural do regime, mas tinha

claro que era necessário superar os dissensos internos dos cineastas para não

sucumbir à cooptação, numa posição muito próxima à Vianinha, na área teatral. A

aceitação do mecenato oficial era o preço a pagar, perpassado por contradições, para

continuar em atividade, dentro do conceito de resistência do PCB: construir unidades,

alianças, ocupar todos os espaços possíveis327: “Parece-me que se no momento se

puder somar, para ampliar a frente que luta pela independência nacional e pela

326
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Op.cit. p.50
327
HIRZMAN, Leon. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. p. .31
182

democratização, isto é que é o importante. São etapas da luta. Para nós, o cotidiano

de fazer cinema, a prática desta luta, envolve questões para as quais as repostas

teóricas são muitas vezes, insuficientes...minha posição é de unidade, ganhar as

pessoas para o diálogo e evitar de colocar questões secundárias, que dividem, como

sendo prioritárias”. Cacá Diegues, ao optar por uma estética mais próxima da

chanchada, opção que ficava clara após seu filme de grande sucesso Xica da Silva

(1975), também seria questionado pela esquerda, acusado de desviar os rumos da

resistência cultural e flertar com o populismo e com a vulgaridade. Sua reação daria

início a uma das maiores polêmicas culturais dos anos 1970, a questão das “patrulhas

ideológicas”, analisada mais adiante. O “frentismo” no campo do cinema entrava em

crise328.

O paroxismo desta situação chegou ao seu ponto máximo quando Glauber

Rocha desenvolveu uma linha de reflexão política toda própria, mas que ganhou ares

de polêmica pela sua importância como cineasta de esquerda e personalidade da

cultura. Produto das suas revisões e releituras sobre a afirmação nacionalista no

Terceiro Mundo, cada vez mais distantes da vaga guerrilheira de inspiração guevarista

dos anos 1960329, Glauber passava a ver no nacionalismo militar um élan progressista

que afirmaria o progresso social, cultural e econômico dos países subdesenvolvidos e

periféricos. Ancorado nos exemplos do militarismo reformista peruano e na Revolução

dos Cravos em Portugal330, Glauber passou a vislumbrar um germe nacionalista e

reformista nos militares brasileiros. Nesta linha de raciocínio político, o cineasta

328
RAMOS, José Mario. Op.cit. p.150.
329
A derrota político-militar das guerrilhas de inspiração guevarista (a morte do próprio Guevara na Bolivia,
ALN no Brasil, JCR na Argentina, Tupamaros no Uruguai), os golpes militares triunfantes, o alinhamento
de Cuba à União Soviética e a acomodação das tensões da Guerra Fria com a política de distensão entre
EUA e URSS e entre EUA e China levadas a cabo por Richard Nixon e Henry Kissinger constituem
exemplos deste refluxo da esquerda revolucionária nos anos 1970.
330
A “Revolução dos Cravos” em Portugal (25 de abril de 1974), quando os militares assumiram a postura
anti-colonialista e democratizante, e o governo do General Velasco Alvarado no Peru (1975-1978),
quando o Exército peruano governou com uma plataforma nacionalista e reformista, parecem ter
impactado Glauber Rocha e sugerido uma revisão do papel das Forças Armadas na realização da utopia
nacionalista e anti-colonial. O governo Geisel e seu tom “nacional-desenvolvimentista” e não-alinhado, foi
lido por esta chave interpretativa, um tanto equivocada, mas coerente com o nacionalismo terceiro-
mundista de Glauber, mais forte, ao que parece, do que outras vertentes formadoras de sua opinião
política.
183

manifestou certa simpatia pelo governo Geisel331. De maneira mais simples e direta,

Gustavo Dahl, cinemanovista de primeira hora, resumiu a perspectiva que aproximaria

os cineastas de esquerda do mecenato geiselista: “Mercado é cultura”.

***

A breve exposição analítica dos embates e diferenças entre várias correntes da

resistênica cultural nos campos do teatro e do cinema demonstram a complexidade e

a riqueza de posições estéticas e ideológicas no exercício da resistência cultural na

primeira metade dos anos 1970. Estas áreas foram cindidas por embates internos

altamente radicalizados, no qual a contracultura e o experimentalismo

desempenharam papel central no debate. Assim, a retomada de um cinema ou de um

teatro politizado apresentava um conjunto de dilemas e impasses diferentes da década

anterior. Ambas se tornavam cada vez mais dependentes do mercado que impunha

condições de produção e circulação, cuja dinâmica aproximava criadores de esquerda

e empresários liberais. Tanto o cinema como o teatro se aproximaram das políticas

culturais do regime, no afã de constituir um mercado para os artistas e para o produto

brasileiro. O tema do “vazio cultural” e a ação da “corrente da hegemonia”

expressaram escolhas difíceis, com contradições próprias em cada área: qual o limite

entre a pesquisa de linguagem estética e a eficácia da comunicação com o público,

sem a qual não haveria efetiva resistência cultural? Como se relacionar com o circuito

sócio-cultural, cada vez mais mercantilizado, pelo qual a arte se realizava? Como

manter o frentismo cultural e político, sem diluir as diferenças e a diversidade

necessária aos criadores artísticos?

Nos anos 1970, o circuito massivo, o circuito alternativo-contracultural e o

circuito comunitário-popular (do qual tratarei adiante) ofereciam possibilidades e

problemas para o exercício da resistência cultural. De qualquer forma, no plano da

memória cultural, a resistência vivenciada no circuito massivo-comercial (independente

331
ROCHA, G. (carta de Glauber a João Carlos Rodrigues) IN: BENTES, I (org). Cartas ao Mundo. São
Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 460-463. Nesta carta, Glauber defende explicitamente as pretensas
virtudes do nacionalismo militar terceiromundista.
184

da quantidade de espectadores, diga-se) parece ter gerado um maior número de obras

canônicas filiadas a um projeto cultural herdeiro do modernismo (em sua vertente mais

comedida, no plano do experimentalismo formal) e dos grandes debates em torno da

nação, iniciados nos anos 1930, mas em vias de exaurir-se, historicamente falando.

Neste sentido, a década de 1970, neste sentido, marcaria o fim deste amplo ciclo

cultural e ideológico.
185

CAPÍTULO 5

POLÍTICAS CULTURAIS, ESTADO E SOCIEDADE NOS ANOS 1970 332

Modernização capitalista e resistência cultural

O campo da cultura não foi importante apenas no campo da oposição ao

regime militar. Também acabou sendo o código e o canal utilizado pelo Estado para

estabelecer algum tipo de comunicação com a sociedade civil, sobretudo a partir de

meados dos anos 1970. Entre os pólos da colaboração e da resistência havia um

gradiente de projetos ideológicos e diversos graus de combatividade e crítica. A

compreensão crítica das lutas culturais do período não deve ficar refém da dicotomia

entre “resistência” e “cooptação”, pois revelam um processo mais complexo e

contraditório, no qual uma parte significativa da cultura de oposição foi assimilada pelo

mercado e apoiada pela política cultural do regime. Mesmo reconhecendo que havia

uma sofisticada e vigorosa cultura de esquerda, responsável pela disseminação de

símbolos e valores democráticos e anti-autoritários, o uso indiscriminado e idealizado

da expressão “resistência cultural” pode ocultar as tensões e diferentes projetos que

separavam os próprios agentes históricos que protagonizaram o amplo leque de

oposição ao regime militar, dificultando a compreensão histórica das suas matrizes

ideológicas diferenciadas e do jogo de aproximação e afastamento que marcou o arco

de alianças oposicionistas, bem como a relação entre os vários grupos ideológicos

entre si e destes com o Estado. De outra parte, a aproximação tática entre liberais e

setores da esquerda não-armada, oriundos, principalmente, dos quadros e

simpatizantes do Partido Comunista, foi fundamental para que a cultura engajada de

332
Este capítulo é uma versão ampliada do texto “Vencer Satã só com orações? Políticas culturais e
cultura de oposição no Brasil dos anos 1970” IN: ROLLEMBERG, D. et all. A construção social dos
regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira, 2010.
186

esquerda se consagrasse e ampliasse seus circuitos de trânsito na sociedade civil,

chegando a fornecer as diretrizes criativas e os quadros profissionais de amplos

setores da mídia e do mercado da cultura.

O palco destas ações culturais tinha como elemento dinamizador um mercado

de bens simbólicos em processo de crescimento vertiginoso, particularmente

significativo nos setores fonográfico, televisual e editorial, que incorporava quadros

intelectuais, artísticos e gerenciais recrutados da base social da esquerda – a classe

média jovem e intelectualizada. Sérgio Miceli apontou esta tendência que se inicia no

final dos anos 1960 e se estende ao longo dos anos 1980333: “O êxito nacional e

internacional alcançado por inúmeras iniciativas sob a chancela de conglomerados

Globo, Abril, Folha de S.Paulo, Manchete, parece indissociável dessa política de

recrutamento de toda uma geração de técnicos, escritores e artistas comprometidos

com a ética e a estética de esquerda e, por essa razão, habilitados artesanal e

ideologicamente à fabricação de bens culturais condizentes com as expectativas

axiológicas e com os padrões estéticos de gosto dos públicos consumidores nos

países metropoliotanos (...) toda uma geração de jornalistas, editores, diretores de

tevê, atores, cantores, letristas, escritores e outras tantas especializações artísticas,

logrou incorporar a televisão, a música popular, a imprensa, como veículos de um

trabalho inovador de criação e divulgação cultural”.

Após o golpe militar de 1964, muitos artistas e obras, identificados com os

valores da esquerda, foram incorporados pelo mercado e pelos circuitos culturais de

massa, naquele momento em franca expansão. Os casos da música popular e da

televisão são exemplares neste processo. Portanto, a política cultural do regime, em

certo sentido, reconhecia a importância da cultura de esquerda já consagrada no

mercado e em amplos setores da opinião pública, ao mesmo tempo que tentava

333
MICELI, Sérgio. “O papel político dos meios de comunicação” IN SOSNOWSKI, S e SCHWARZ,
Jorge. (orgs). Op.cit.p. 60-61
187

reconstruir pontes com setores sociais visando contrapor o isolamento crescente do

regime em relação aos chamados “formadores de opinião”.

Naquele momento, e nas condições que a indústria da cultura se firmava no

Brasil, a demanda ainda era um fator importante na organização da produção cultural,

pois a indústria ainda não constituía um sistema plenamente integrado que pudesse

dirigir e prever essa produção cultural. Além disso, apostava-se no alto valor agregado

de produtos culturais mais sofisticados (do ponto de vista tecnológico e técnico-

estético) que, mesmo vendendo menos que os produtos de consumo popular,

garantiam lucros maiores a médio e longo prazos. No caso da música popular, esse

modelo de organização da produção e do consumo cultural teve sua expressão melhor

caracterizada ao longo dos anos 1970, quando abarcou, paradoxalmente, o campo

musical marcado pelas canções engajadas de esquerda, agrupado em torno do

“gênero” MPB.

Outro caso de incorporação da arte (e de artistas) de esquerda pela indústria

da cultura foi o recrutamento de dramaturgos assumidamente comunistas pela

teledramaturgia e pelas empresas jornalísticas e editoriais como um todo. A própria

Rede Globo, à época acusada de ser aliada do regime, deu espaço para atores e

dramaturgos comunistas, como Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Dias Gomes,

Francisco Milani, Carlos Verezza, Armando Costa, entre outros. É interessante notar

neste caso, como a política de “ocupação dos espaços” que marcou a atuação cultural

dos comunistas valorizou a indústria da cultura, tradicionalmente um alvo de

desconfiança à esquerda, pela sua tendência à massificação e nivelamento estético.

Em relação aos casos específicos de Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho é preciso

destacar que bem antes do golpe militar estes profissionais já produziam para os

meios de comunicação de massa, como o rádio e a TV. Entretanto, no caso de

Vianinha é inegável que sua relação com a televisão fica mais intensa a partir de 1968,

quando ele assumiu o meio como um espaço válido para disseminar a dramaturgia do
188

realismo crítico defendida pelo núcleo de criadores ligados ao PCB334 . Diante do

recrudescimento da repressão a televisão passou a ser vista como alternativa

profissional e um novo caminho para a popularização da arte engajada, desde que o

conteúdo fosse mantido dentro dos princípios de qualidade da dramaturgia clássica,

como o realismo, o decoro e o humanismo.

O processo de inserção do artista de esquerda no mercado foi estimulado não

apenas pelo rompimento sistemático e contínuo, após o golpe militar, dos circuitos

culturais não-mercantilizados que, precariamente, uniam os artistas de esquerda às

classes populares (CPC, UNE volante, espaços culturais em sindicatos, campanhas

de alfabetização, etc), mas também por uma nova estrutura de oportunidades

profissionais potencializada pela expansão do mercado e da indústria da cultura.

Aliada a estes dois processos estruturais, havia a perspectiva, ou a ilusão, se

preferirmos, por parte de certos artistas e intelectuais, de ocupar espaços em circuitos

massivos de cultura, acreditando na possibilidade de transmitir um conteúdo

minimamente politizado e crítico para os seus consumidores. A “ida ao mercado”,

aliada ao processo de aproximação com a política cultural oficial, defendida pelos

artistas comunistas ou simpatizantes, incrementou um processo de luta cultural

intestino nos agentes sociais que formavam o amplo leque de oposições ao regime.

Se a “ida ao mercado” reforçou a aliança tática entre os liberais e os comunistas, o seu

contraponto foi marcado por duas posições de recusa, cujos valores e produtos

apontam para uma idéia de “resistência cultural” bem mais radical, distante da

estratégia de “ocupar espaços”, e crítica aos valores frentistas e nacionalistas, por

princípio, rejeitando qualquer negociação com o sistema político vigente.

Os liberais, donos das empresas de cultura e comunicação, percebiam que a

partir do final dos anos 1960, a estrutura do mercado cultural tinha sofrido uma

334
PELLEGRINI, Sandra. “Televisão, política e história: dimensões da problemática social na
teledramaturgia de Vianinha”. Revista de História Regional, UEPG, Ponta Grossa, 6/2, 2001
189

mudança significativa, surgindo uma nova classe média, cada vez mais escolarizada,

muito aberta à cultura de esquerda, notadamente aquela corrente herdeira do

nacional-popular. Portanto, em que pese o clima repressivo e a censura, os produtos

artístico-culturais gerados à esquerda tinham uma boa demanda, na música popular,

na dramaturgia e no cinema. A demanda por livros e impressos em geral (fascículos,

revistas, jornais), estimulada pelo crescimento da população universitária, ajudou a

configurar o fenômeno das “editoras de oposição”335.

Alguns dados demonstram o vigoroso crescimento do mercado de bens

simbólicos e culturais entre os anos 1960 e 1970, fornecendo as bases estruturais de

novas oportunidades profissionais para artistas e intelectuais de esquerda tragados

pela indústria da cultura:

QUADRO 1 – Produção de Livros em milhões de unidades


1966 – 43,6
1974 – 191,7
1976 – 112, 5
1978 - 170,8
1980 – 245,4

QUADRO 2 - Produção de revistas (em milhões de unidades)


1960 – 104
1965 – 139
1970 – 193
1975 – 202
1985 – 500

QUADRO 3 - Produção de filmes longa-metragens (média anual)


1957 / 1966 – 30 filmes/ano
1967-1969 – 50 filmes/ano
1975 – 84 filmes
1980 – 103 filmes

QUADRO 4 – Produção de long plays e fitas cassete (em milhares de unidades)


1972 – 11.700 / 1.000
1973 – 15.000 / 1.900
1974 – 16.000 / 2.210
1975 – 16.900 / 3.900
1976 – 24.000 / 6.800
1979 – 39.252 / 8.484

QUADRO 5 – Domicílios com aparelhos de TV

335
Expressão criada por SILVA, Flamarion Maués Pelúcio. Op.cit.
190

1970 – 4.259.000
1971 – 5.750.000
1972 – 6.750.000
1973 – 7.780.000
1974 – 9.000.000
1975 – 10.140.000
1976 – 11.150.000
1978 – 12.000.000
1979 – 13.000.000
1980 – 14.518.000

QUADRO 6 – Empregados em emissoras de radiotelevisão


Ano Total Adminstração / Redação / Artistas / Subalternos
1967 4546 726 340 819 1086
1969 5514 1131 360 821 2568
1971 5559 1304 491 633 2302
1973 7798 2113 493 544 3172
1974 9529 2394 815 517 4135

Note-se que, em linhas gerais, a produção foi crescente em todos os setores,

apresentando variações conforme o setor336. Destaque-se o notável crescimento da

indústria televisual e fonográfica, bem como o salto da indústria cinematográfica

nacional após o incremento dado pela Política Nacional de Cultura, via Embrafilme, a

partir de 1975.

A perspectiva de militarização do Estado, o fim das liberdades civis mínimas e

a concentração de poder no Executivo levaram a um distanciamento estratégico

crescente entre civis liberais e militares autoritários, ainda que esta relação tenha

sofrido inúmeras vicissitudes, como, por exemplo, o apoio da imprensa liberal à

política econômica do “milagre” e à política repressiva de combate à guerrilha de

esquerda, vista como ameaça maior do que a ditadura de direita. Em 1973, a

guerrilha estava derrotada, política e militarmente, mas o rolo compressor da censura

e da repressão se mantinha, fortalecendo ainda mais a aliança tática entre

empresários liberais (geralmente os donos dos meios de comunicação e corporações

336
Para uma análise qualitativa mais detalhada destes dados, ver ORTIZ, Renato. “O mercado de bens
simbólicos” IN: Op.cit. p. 113-148. Os quadros 1 a 4 foram extraídos de ORTIZ, p. 122, 123, 125, 127
(respec.). O quadro 5 foi extraído de MICELI, S. “O papel político dos meios de comunicação de massa”
IN: SOSNOWSKI, S. e SCHWARZ, J. (orgs). Op.cit. p.61. O quadro 6 foi montado pelo autor a partir das
“Séries Históricas” – IBGE, disponíveis em www.ibge.gov.br
191

ligadas à indústria da cultura) e alguns segmentos de intelectuais e artistas

esquerdistas. À esquerda, os comunistas afiançaram esta aliança tática. No plano

partidário, sua expressão era o apoio do PCB ao Movimento Democrático Brasileiro

(MDB), construído ainda nos anos 1960 e consolidado após a expressiva votação que

esta frente oposicionista teve nas eleições de 1974337. Aliás, a tese de que o PCB

estava por trás desta surpreendente vitória eleitoral da oposição parlamentar, custou-

lhe caro, pois estimulou a vaga repressiva de 1975 contra o Partido que matou 11

membros do Comitê Central e fez centenas de presos.

A aliança político-cultural entre setores liberais e setores de esquerda explica,

em parte, a presença marcante de uma cultura de esquerda nos meios de

comunicação e na indústria da cultura, quase sempre de propriedade de capitalistas

liberais, muitas vezes de matiz conservador. O ponto em comum entre esses setores

era a defesa da liberdade de expressão e a volta da democracia nas instituições de

governo, criando duas figuras políticas contrapostas: a “sociedade civil” e o “Estado”,

como se ambas não fossem perpassadas por contradições, divisões e conflitos entre

os diversos agentes sociais que as constituíam338. Além disso, havia um grande

público consumidor da cultura de esquerda, a “classe média escolarizada” que,

paradoxalmente, crescia sob os influxos de modernização econômica patrocinada pelo

regime e que ocupava postos burocráticos, gerenciais e intelectuais na indústria da

cultura e das artes.

337
Sobre a atuação do MDB (1966-1979) ver MOTTA, Rodrigo Patto S. Partido e Sociedade: a trajetória
do MDB. Ouro Preto, Editora UFOP, 1997. Sobre as relações entre o PCB e o MDB durante a ditadura ver
a entrevista de Roberto Freire disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/303766.pdf
(acessada em 31/8/2010) . Sobre a onda repressiva contra o PCB, ver MARKUM, Paulo. Vlado – retrato
de um homem e de uma época. São Paulo, Brasiliense, 1985. Lembremos, mais uma vez, que o Partido
Comunista Brasileiro, à época, apoiava oficialmente e usava a legenda do MDB, grande frente liberal-
democrática de oposição. Em que pese a existência de um vigoroso movimento social e de uma nova
esquerda crítica e cheia de potencialidades, o processo de transição negociada para o regime civil terá
nos liberais agrupados no (P)MDB o seu ator mais decisivo, sobretudo a partir de 1982. Ver
FIGUEIREDO, Cesar A.S. A relação dos PC's com o MDB-PMDB no cenário da transição e as eleições
de 1982 no RS. Mestrado em Ciência Política, UFRGS, 2009
338
CODATO, Adriano. “O golpe de 64 e o regime de 68”. História, Questões e Debates, 40, 11-36, Editora
UFPR, 2004
192

Como vimos no capítulo anterior, um dos primeiros exemplos de recusa a esta

“ida ao mercado” foi protagonizada pelos artistas e produtores culturais ligados à

Contracultura, muito significativa entre a juventude de classe média baixa dos grandes

centros urbanos, mais sensível às modas internacionais veiculadas pela mídia339. As

correntes da contracultura defendiam a luta contra o “sistema”, não apenas do ponto

de vista político, mas nos seus aspectos mais amplos (comportamentais, culturais e

econômicos), buscando a criação de circuitos culturais “alternativos” ao mercado

hegemonizado por grandes empresas. Além disso, enfatizavam a necessidade de

ruptura com a linguagem “realista” e com os valores “nacionalistas”, tão cara aos

comunistas. A “poesia jovem”, o “cinema marginal”, o teatro jovem podem ser tomados

como exemplos desta variável radical de crítica cultural ao regime.

Um caso de recusa e crítica radical, menos estudada, foi a dos militantes

culturais da esquerda não-comunista e, em certo sentido, obreirista, particularmente

presentes na área teatral. Os principais pontos de discórdia eram a centralidade do

nacionalismo e a incorporação da “herança cultural”340, vistas com desconfiança por

fazer tabula rasa da pluralidade das culturas populares e da vivência cultural

comunitária341. Para aqueles setores aglutinados em torno das dissidências

comunistas, da esquerda católica e dos movimentos sociais urbanos, havia também a

recusa ao mercado e ao nacionalismo, mas sob uma ótica diferente da contracultura.

O que os informava era a busca de uma nova ligação com a cultura popular,

principalmente aquela praticada nas periferias dos grandes centros urbanos, e a

criação de circuitos culturais populares, livres das fórmulas estéticas e temáticas da

339
Para o caso da música popular esta afirmação não vale, pois a contracultura musical (Caetano, Gil e
mesmo os “malditos” Jards Macalé e Luis Melodia, ocupavam faixas importantes, ainda que menores, do
mercado fonográfico.
340
A questão da “herança cultural” para a esquerda comunista é fundamental e pressupõe, na linha de
Georg Lukacs a incorporação dos autores e obras considerados progressistas, dentro da tradição realista
do cânone ocidental. Ver RUBIM, Antonio C. “Partido comunista e herança cultural no Brasil”. Ciência e
Cultura. 41/6. jun 89, p. 552-565
341
Para um aprofundamento desta critica ao nacionalismo e ao elitismo cultural de esquerda, ver: CHAUÍ,
Marilena. Conformismo e a resistência: aspectos da cultura popular. São Paulo, Brasiliense, 1985 e
BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo, Cia das Letras, 1989.
193

“cultura burguesa” de mercado342. Os chamados grupos “independentes” e/ou

amadores de Teatro que proliferaram nos anos 1970 são exemplos desta tendência de

recusa do circuito cultural mercantilizado ou apoiado pelo Estado, pautando o conceito

de resistência a partir de quatro características básicas: (i) a afirmação de um

processo de produção artesanal, (ii) uma estética marcada pela linguagem direta,

realista-naturalista, e pelas referências à folguedos folclóricos e à literatura popular

(como o cordel), (iii) a busca de um tipo alternativo de público, constituído por

trabalhadores das periferias urbanas e, (iv) um novo tipo de gestão das empreitadas

artísticas, coletiva e amadora, negando o circuito mercantil da arte. Ou seja, em tudo

estes grupos eram diferentes da vertente teatral ligada ao Partidão, que se pautava

pela ocupação seletiva do mercado, e dos grupos de vanguarda, ligados à linguagem

e ao comunitarismo contracultural alternativo. Entretanto, não podemos dizer que

estes grupos independentes fossem iguais entre si, pois tinham muitas variáveis

diferenciadas, tais como a base social (trabalhadores de periferia ou militantes do

movimento estudantil) e o repertório, com alguns grupos encenando criações

coletivas, enquanto outros encenavam textos de autores consagrados como Plínio

Marcos ou Carlos Queiroz Telles. Havia ainda grupos que encenavam os dois tipos de

texto, como foi o caso do Forja de São Bernardo. O que parecia ser comum a estes

grupos era a busca de platéias populares, fora do circuito comercial, inclusive

deslocando suas sedes para regiões mais periféricas da cidade, como aconteceu com

o Núcleo Independente que se fixou na Penha, mas originalmente estava ligado ao

Arena343.

O espetáculo Bumba, meu queixada, montado pelo TUOV em 24 de novembro

de 1979, em Osasco (SP), e Pensão Liberdade (1980), escrita e montada pelo Grupo

342
RIDENTI, Marcelo. “Todo o artista tem que ir aonde o povo está”. IN: Em busca do povo brasileiro.
p.317-364.
343
O texto Em busca de um teatro popular (Santos, Confenata, 1981), lançado em 1977 pelo grupo
Teatro União e Olho Vivo, pode ser visto como uma tentativa de afirmar uma proposta geral para o teatro
popular, enfatizando: amadorismo militante, incorporação da cultura popular, busca de uma ‘estética
popular’, prioridade para apresentações em bairros periféricos a preços reduzidos, interação com a
comunidade e com outros grupos de “teatro popular” na troca de experiências políticas e estéticas.
194

Forja, de São Bernardo, foram marcos neste tipo de teatro. Na primeira, a encenação

de um conflito trabalhista que culminava em uma greve foi construída a partir da

linguagem emprestada do folguedo popular “Bumba, meu boi”, assumidamente

maniqueísta e didatizante. Na segunda, o cotidiano dos trabalhadores em uma pensão

é o mote para retratar as agruras e as possibilidades de luta contra as injustiças, a

partir da representação do “ser popular”, na dramaturgia, na linguagem, nas

motivações políticas344Havia ênfase no trabalho coletivo, no circuito proletário e

periférico “Os grupos que sobreviveram produzindo bem durante um período de tempo

maior foram aqueles que conseguiram armar um projeto, ainda que de dimensões

reduzidas, fora do circuito normal de veiculação da arte” – Núcleo e TUOV – “Para

estes grupos o público é o trabalhador ou o marginal que mora na periferia dos

grandes centros urbanos” 345.

Os intelectuais e artistas comunistas, bem como seus simpatizantes, reagiam a

estas duas correntes alternativas, disputando não apenas a direção política dos

movimentos sociais, mas também sua direção cultural. A contracultura jovem era logo

taxada de “escapista, subjetivista, hermética” e o conceito de cultura defendido pela

nova esquerda era qualificado como “esquerdista, sectário e basista”. Estes adjetivos

não apenas pautavam a crítica ideológica, mas informavam as posições de cada

segmento nas lutas culturais. Entretanto, se a crítica ao teatro de vanguarda era quase

unânime entre os defensores da estética realista e nacional-popular, o mesmo não

acontecia em relação ao teatro amador ou independente praticado nos bairros. Para

Fernando Peixoto, por exemplo, crítico ligado à corrente nacional-popular, as duas

vertentes dramatúrgicas não eram incompatíveis, antes, eram necessárias para a

344
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004 (2ª), p. 146. Neste livro,
Silvana Garcia lista vários grupos “independentes” surgidos no contexto da militância em bairros e em
movimentos sociais: Núcleo Expressão de Osasco (1972-1979), Teatro Circo Alegria dos Pobres (1974-
1982), Núcleo Independente (1969-1979), Cordão (1974-1977), Galos de Briga (1976-1985), Truques,
Traquejos e Teatro (1977-1982), Grupo Ferramenta (1978), Ferramenta (1979-1985). Ver p. 128-146.
345
ALVES, Mariangela. “Quem faz o teatro” IN Anos 70: ainda sob a tempestade. Op.cit.,.p; 257. Sobre a
história do TUOV ver: TORRES, Adamilton Andreucci. Teatro União e Olho Vivo: uma pista para outra
cena brasileira em São Paulo. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas, ECA/USP, 1989
195

recuperação da cena brasileira, afastando-se de “inúteis idealismos e inócuos

radicalismos”346. O mesmo crítico definia os “grupos independentes” que atuavam nos

bairros periféricos da grande São Paulo, citando o exemplo do Teatro do Núcleo, como

um “terceiro termo” entre o teatro de “temática popular” (exemplificado pela

dramaturgia ligada ao PCB) e o teatro de “produção popular” (cujo grande exemplo era

o amadorismo engajado e proletcultista do Teatro União e Olho Vivo)347.

Estas variáveis da resistência cultural tentavam afirmar-se em meio a

condições de produção cultural comunitárias, artesanais e independentes, operando

dessa maneira uma dupla recusa, ao mercado e ao Estado. Este último, por outras

razões, também abria as portas, ainda que desconfiado, ao artista de esquerda.

O Estado e o artista de esquerda

A cultura não fez aproximar, apenas, alguns atores da oposição civil. O regime

militar, por sua vez, assumindo a carência de intelectuais orgânicos de direita que

pudessem ajudar a veicular seus projetos ideológicos, fez uma leitura pragmática da

“hegemonia cultural da esquerda”, iniciando um diálogo com alguns intelectuais e

produtores culturais da oposição, ainda sob o governo do General Emílio Médici. O

código comum deste improvável diálogo era o nacionalismo cultural, que estabeleceu

um fio de comunicação tênue entre a direita militar e a esquerda nacionalista,

sobretudo a esquerda comunista. Se o nacionalismo afastava a esquerda comunista e

os liberais, tradicionalmente cosmopolitas no campo cultural e econômico, a defesa da

liberdade de expressão e a tradição humanista dos intelectuais e artistas comunistas

no Brasil, os unia. Esta dança errática - de aproximações e afastamentos, alianças e

rupturas - constituiu a dinâmica da cena cultural brasileira dos anos 1970, que se

montava sob uma estrutura social cada vez mais mediada pelo mercado.

346
PEIXOTO, Fernando. “Teatro 76: em busca da realidade perdida”. Movimento 81, 17/1/1977
347
“O prazer da reflexão”. Movimento 36, 8/3/1976, p.15
196

O diálogo entre militares no poder e setores culturais e artísticos da esquerda

consolidou-se ao longo do processo de distensão política, iniciado em 1975. A partir

de então, o regime militar passou a investir em novos canais de comunicação com

setores da sociedade civil, dispensáveis no momento de maior repressão e controle

policial. A cultura, bem como as artes, serviria como um código comum para estes

canais. Este diálogo poderia incluir até os artistas de esquerda, normalmente mais

valorizados pelos grupos formadores de opinião, identificados com uma cultura crítica

e contestatória. Para o bem da exatidão historiográfica, é preciso reconhecer que a

questão cultural sempre ocupou, ainda que de maneira pouco orgânica, a agenda do

governo militar. Seja pela importância estratégica do controle e da repressão sobre o

meio cultural politizado, seja no esforço em normatizar e estimular a produção cultural

como um todo dentro de uma lógica de mercado. Afinal, na lógica da modernização

capitalista assumida pelo regime, “mercado era cultura”. E, sobretudo, cultura era

mercado. A repressão sobre a cultura tinha efeitos problemáticos sobre o mercado, até

porque o setor mais dinâmico do consumo cultural se voltava para a classe média

escolarizada, mais sequiosa por consumir artistas de esquerda. Na música, no

cinema, no teatro, nas artes plásticas e na literatura, os produtores culturais mais

valorizados pelos consumidores, quase sempre eram esquerdistas ou, no mínimo,

liberais progressistas e críticos ao regime.

No contexto da abertura política, após 1975, o regime militar e a oposição civil

valorizavam a cultura, mas por motivos diferentes. Para a oposição, a esfera cultural

era vista como espaço de rearticulação de forças sociais de contestação ao regime

militar e disseminação dos valores democráticos. Para o governo militar, a cultura era,

a um só tempo, parte do campo de batalha na “guerra psicológica da subversão”348 e

parte da estratégia de “reversão das expectativas” da classe média, dado o

348
“MEC diz que há subversão até no Mobral”. O Estado de S.Paulo, 31/jan/1974, p. 5.
197

esgotamento do ciclo de crescimento econômico que a beneficiava, visando garantir

seu apoio à ditadura ou, pelo menos, neutralizá-la como massa de oposição ativa.

Exemplo da primeira perspectiva é o folheto Como eles agem, distribuido pelo

governo militar em 1974. No caso, “eles” são os comunistas e simpatizantes que,

derrotados nas armas, continuariam ativos e “infiltrados” na vida cultural do país.

Abusando das citações extraídas de vários líderes revolucionários como Lenin, Mao,

Bukharin, o folheto começa alertando para a presença comunista na cultura: “As

organizações esquerdistas vêm tentando conquistar o apoio popular através da

identificação de seus fins com as necessidades e aspirações do povo, utilizando da

propaganda sub-reptícia, através das letras e artes, e muitas vezes, de meios ilegais

como o terrorismo e sabotagem. Simultaneamente, procuram enfraquecer o governo

pela propaganda de descrédito em seus objetivos, seus líderes e seus seguidores (...)

temos verificado que certos elementos se vêm infiltrando nas áreas de educação e

cultura, tentando atingir, principalmente, a juventude secundarista e universitária,

visando o aliciamento e possível arregimentação de novos adeptos para a sua causa”.

Depois de analisar as “novas técnicas de infiltração comunista” no movimento

estudantil e nas universidades, grande parte do folheto se dedica a analisar a cultura,

destacando três áreas em particular: o cinema, o teatro e a música popular. No

cinema, os “cineastas simpatizantes dos ideais do comunismo internacional vem

utilizando novas técnicas para difundir suas mensagens, baseadas em temas políticos,

onde a violência, a corrupção, a pornografia são amplamente exploradas (..)Sob o

rótulo de “cinema novo brasileiro” alguns produtores valem-se de temas regionais para

insuflar a luta armada contra o ‘poder opressor’, sugerindo soluções em problemas

existentes nas áreas subdesenvolvidas, mostrando a violência policial de uma forma

exagerada ou inverídica, gerando assim a animosidade do povo ao poder constituído” .


198

Na visão do regime, o comunismo utilizava o teatro como uma “poderosa arma

ideológica e de dissolução dos bons costumes. Nos últimos anos tem havido uma

grande proliferação de peças teatrais onde se faz presente a exploração do sexo, em

grande escala, para a decadência moral da sociedade (...) A técnica por eles

empregada chega a levar até pessoas com um certo grau de maturidade a ficarem

completamente hipnotizadas e embevecidas diante das cenas desenvolvidas no

palco. No Brasil há muitos grupos qu, acobertados sob o rótulo de ‘arte’, movimentam-

se no sentido de disseminar a ideologia comunista através das suas peças”. Cita o

“Grupo Teatro Oficina Sociedade Civil Ltda” como exemplo desta nova “técnica

comunista”.

O documento também destaca o campo da música popular, no qual “a

conspiração internacional para a implantação do chamado ‘socialismo’ foi buscar a

canção como seu principal instrumento, dando-lhe característica de violência e

atingindo as magníficas reservas de criatividade da juventude, levando, sem que ela

perceba, à canção de protesto”. E aponta o foco de atuação destes “infiltrados”:

“Atualmente, no Brasil, este aspecto da subversão vem se manifesto através da

maioria de adeptos da chamada ‘Música Popular Brasileira’, que divulgam mensagens

subversivas de uma maneira subliminar, dando duplo sentido às letras de suas

composições. Outra linha de ação são os shows em universidades do Brasil

patrocinados, pelos diretórios acadêmicos. Essas apresentações são amplamente

concorridas e prestigiadas pelos estudantes, motivados pelo rótulo a Nova Música

Popular Brasileira só é entendida por pessoas inteligentes e de alto nível intelectual”.

O folheto termina resumindo os “objetivos e planos da nova técnicas de

infiltração comunista”: 1) “Degradar” (sic!) todas as formas de expressão artística; 2)

Eliminar dos parques e edifícios toda boa escultura, substitui-la por “configurações

informes, sem graça e sem significação” (sic!); 3) Fazer desaparecer as leis que

rejeitam a “obscenidade” (sic!) nos livros, jornais, cinema, teatro e TV; 4) Infiltrar-se
199

nas igrejas e substituir a “religião revelada pela religião social” (sic!); 5) “Desacreditar”

a família como instituição, favocerendo o amor livre e o “divórcio fácil”. E advertia que,

isoladamente, estes fatos não representam ameaça à Segurança Nacional, “mas

articulados e vistos globalmente revelam como se dá a infiltração nos meios culturais e

educacionais”.

O folheto Como eles agem, produzido no final do governo Médici, demonstra a

ambigüidade que tomava conta do regime na sua relação com o meio artístico e

cultural, ora visto como objeto de controle, ora como meio de cooptação e diálogo com

setores oposicionistas. Obviamente, boa parte das afirmações do documento não tem

a mínima plausibilidade, misturando de maneira inconsistente o velho moralismo

católico e o anti-comunismo delirante. Ambos, já não tinham, nos anos 1970, a mesma

sustentação ideológica e social que apresentavam, por exemplo, nos anos 1930,

quando a censura aos meios de comunicação (não confundir com a censura à

imprensa) era vista como nobre atividade intelectual por boa parte da sociedade. O

tom moralista e a paranóia anticomunista colocavam lado a lado variáveis diferentes e

até auto-excludentes da resistência cultural, qualificando, por exemplo, o Grupo

Oficina como um grupo a serviço do “comunismo internacional”, tal como a MPB, o

Cinema Novo e a Teologia da Libertação. Contraditoriamente, a liberalização dos

costumes e a inserção de novas camadas intelectualizadas e críticas no mercado de

bens simbólicos, demandando por obras “subversivas”, era produzida e estimulada

pela modernização capitalista patrocinada pelos próprios militares no poder, e não

pelo “comunismo internacional”.

No final do governo Médici, esta atitude puramente repressiva diante do novo

cenário cultural já se mostrava insustentável, dada a natureza ideológica e as bases

de legitimidade social do próprio regime, centrada, sobretudo, na classe média. O

campo da cultura foi valorizado como canal de comunicação do Estado para com a

sociedade civil e da sociedade consigo mesma, alimentado por uma conjuntura de


200

fechamento do espaço político tradicional. E a cultura engajada de esquerda teve um

papel central, ainda que contraditório, neste jogo, no qual práticas de “cooptação” e

“resistência” não se excluíram, ao contrário, muitas vezes conviveram nos mesmos

agentes e instituições socioculturais.

A nova política cultural do regime militar não passou despercebida no PCB, até

porque os artistas que gravitavam em torno do Partido eram os que mais tinham

aderido ao chamado do mecenato oficial do regime. Entretanto, o tom de denúncia e a

ênfase na resistência que não se deixava cooptar, limitavam o debate efetivo em torno

da questão. Além disso, havia uma dificuldade real de analisar as contradições do

regime, que por um lado matava comunistas nas câmaras de tortura e, por outro,

financiava filmes e peças dos artistas ligados ao Partido.

Em 1976, o jornal oficial Voz da Unidade analisou, em dois artigos, o

movimento de aproximação da ditadura para com os artistas de esquerda, explicando-

o pela “falta de quadros intelectuais” que a impossibilitavam ter a hegemonia no

campo cultural. No primeiro artigo349, o jornal afirma que a “única maneira do regime

lidar com a cultura de oposição, era a repressão aberta contra intelectuais (...).

Inclusive a recente tentativa de atrair os intelectuais através de um tipo de mecenato

cultural (..) ainda que possa ter encontrado um relativo êxito junto a algumas figuras

pouco representativas, deparou-se com a maciça oposição da camada intelectual em

seu conjunto. O que une esta camada intelectual, qualquer que seja a orientação

ideológica de seus representantes singulares, é a exigência da mais ampla liberdade

de criação: isso, o ‘mecenato’ de Passarinho e Nei Braga não pode nem de longe

tolerar”.

No segundo artigo, publicado poucos meses depois, ao que parece houve

certa relativização da condenação daqueles artistas de esquerda que aderiram ao

‘mecenato’. A ênfase era contra a cooptação e a tática do “divisionismo”, semeando


349
“Nova etapa na luta cultura contra o fascismo”. Voz Operária, 125, junho, 1976, p.2
201

falsos debates entre os artistas de esquerda350. A tônica do posicionamento oficial do

Partido, a se julgar pelas poucas matérias que discutiram a questão cultural nos anos

1970 na imprensa partidária, era “manter a unidade” dos artistas e intelectuais,

deixando claro que o importante era manter uma produção cultural crítica, ainda que

sob as benesses do mecenato oficial. Entretanto, o debate na imprensa e a ausência

de documentos oficiais voltados para as artes e a cultura não permitem avaliar o grau

orgânico de uma eventual política cultural do PCB.

Ao que parece, o jornalismo partidário, tentando fazer a ponte entre a direção e

a militância (inclusive a militância cultural), precisava escamotear a adesão dos

artistas comunistas às políticas culturais do regime, ainda que ela não significasse

capitulação do espírito crítico das obras. Enfatizava que a ditadura era destruidora da

cultura brasileira e que os intelectuais tinham que manter a unidade, afirmando a tática

que estava na origem da “resistência”, sob a égide do “terrorismo cultural”. O fato é

que, em meados dos anos 1970, a ditadura estava mais sofisticada no manejo da

cultura, articulando censura, vigilância policial e mecenato. Este último, não sendo

fechado aos artistas mais críticos ao regime, complicava ainda mais o debate sobre

“como resistir”.

Para a voz oficial do PCB, a “cultura” entendida como manifestação de

conteúdo crítico, em si mesma, era vista como antídoto contra a ditadura, desde que

se compactasse numa “frente” contra o regime351: “Multiplos são os caminhos fecundos

em que pode e deve ser buscada a criação cultural (e por isso, ela não comporta

nenhum dirigismo): mas nenhuma opção criadora dispensa o intelectual ou o artista

...de assumir suas responsabilidades políticas. A oposição em seu esforço para

desenvolver e consolidar uma ampla frente antiditatorial, precisa dos artistas, dos

homens de cultura. Mas nós, comunistas, não podemos deixar de lembrar aos artistas

350
“Contra a ditadura obscurantista, a criação cultural é uma forma de luta”. Voz Operária, 129, dez/1976,
p. 2
351
“Questão em debate: as relações do artista com a atividade política”. Voz Operária, 139, out/1977, p.8
202

e aos homens de cultura em geral que eles também precisam de uma oposição

política organizada que deve lhe servir de bússola”.

Entretanto, esta linha de ação, baseada na unidade e no consenso estético-

ideológico, eficaz na origem da resistência cultural, entre 1964 e 1967, já não se

sustentaria na segunda metade dos anos 1970. Os paradoxos, artimanhas e

ambigüidades da política cultural do regime e do novo contexto que se esboçava

pareciam escapar do simplismo do jornalismo partidário. Mas não escapavam,

necessariamente, dos artistas engajados, muitos deles conscientes deste jogo

perigoso.

Política cultural e repressão

É impossível analisar a relação entre cultura, sociedade e Estado nos anos

1970 sem levar em conta a política cultural352 do Regime Militar. As ações que partiam

do Estado dinamizaram esta complexa relação, e atuaram nem sempre de maneira

reativa e cerceadora, utilizando apenas o “cutelo vil” da censura. Embora a censura

não tenha sido invenção do regime militar, o fato é que seu mecanismo e legislação

foram incrementados e ganharam novos poderes353. Claramente, havia uma expertise

352
Conforme Teixeira COELHO, política cultural pode ser definida como “ciência da organização das
estruturas culturais” COELHO, T. (org.). Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo, Iluminuras,
2001, p. 293), Ainda conforme o autor, as políticas culturais “freqüentemente apresentam-se
ideologizadas, atuando na legitimação da ordem político-social”. As políticas culturais encontram-se
motivadas por dois tipos de exigência: a) pela idéia de difusão cultural, baseado num “núcleo positivo” da
cultura que deve ser compartilhado pelo maior número de pessoas possível e; b) pelas demandas sociais,
reagindo conforme as reinvindicações são apresentadas pelos atores sócio-culturais (p. 294). Como
veremos, estas duas demandas foram levadas em conta na definição da política cultural do regime militar,
sobretudo após 1975.
353
A rigor, a censura às diversões públicas durante do regime ainda estava ancorada, em linhas gerais,
no Decreto 20.493, de 24/1/1946, acrescido da Lei 5536 (21/11/1968) e do Decreto-Lei 1077 (26/1/1970).
O primeiro regulamentava a censura à peças teatrais e filmes, bem como criava o Conselho Superior de
Censura (só implementado em 1979). O segundo instaurava a censura prévia, com base na crença de
que a “subversão” na cultura se alimentava da “perversão moral” e diluição dos “bons costumes”. Além
destas reformas normativas e doutrinárias, a Censura Federal se reorganizou do ponto de vista
administrativo, tentando ampliar, coordenar e profissionalizar seus quadros, sobretudo após 1972. Do
ponto de vista do alcance, a censura oficial foi mais presente e sistemática no campo das “diversões
públicas” (cinema, teatro, música popular, televisão, rádio), do que na literatura e nas artes plásticas. A
censura à grande imprensa, a rigor, era feita de maneira informal, através de canais de comunicação (ou
de pressão, se quisermos) entre o Ministério da Justiça, os donos das empresas jornalísticas e os
editores-chefes. Ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam. Op.cit; KUSHNIR, Beatriz. Cães
de Guarda. Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro, Boitempo Editorial,
2004. Para uma visão geral sobre a censura ver FICO, Carlos.. (Org.). Censura no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2010.
203

burocrático-legal na censura aos meios de comunicação (rádio e TV) e às artes de

espetáculo (teatro, cinema e música popular)354. A censura à imprensa era mais

complicada, pois havia alto custo político em censurar jornais ligados a grandes

corporações capitalistas, comandadas por liberais que, em última instância, apoiavam

o regime militar no combate ao comunismo e na luta pela modernização capitalista.

Mesmo a censura ao cinema também não era simples, visto que a indústria

cinematográfica era vista como o elo mais frágil da indústria da cultura no Brasil,

necessitando algum protecionismo, subsídios e volume de produção para,

minimamente, fazer frente ao produto estrangeiro. Esta foi a chave de “colaboração”

entre realizadores de esquerda e regime militar. A censura a livros e exposições de

artes plásticas também ocorreram com freqüência355, mas não era tão sistemática e de

fácil operacionalização como no teatro e na música, conforme a lógica burocrático-

repressiva do regime militar.

Em linhas gerais, podemos falar em duas formas de política cultural, numa

concepção ampla do termo, durante o regime militar brasileiro356: uma repressiva e

outra proativa. Além dessas duas lógicas de políticas culturais diretamente

coordenadas a partir dos aparelhos de Estado, havia uma forma indireta de política

cultural, calcada no apoio oficial (financeiro, institucional e normativo) à modernização

da indústria da cultura e da comunicação, como parte do projeto estratégico de

354
Sobre a censura ao teatro brasileiro ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam. Op.cit.;
sobre a censura ao cinema ver SIMOES, Inimá. Op.cit.; sobre a censura à música popular ver CAROCHA,
Maika L. Pelos Versos das canções: um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a
ditadura militar brasileira (1964-1985). Dissertação de Mestrado em História Social, UFRJ, 2007. Sobre a
censura a telenovelas ver RIBKE, Nahuel. “Telenovelas writers under the military regime in Brazil: Beyond
the cooptation and Resistance dichotomy”(digit, 2009).
355
Sobre o controle censório e repressivo nestas áreas, ver FREITAS, A. Op.cit. e MAUES, Eloisa A.
Op.cit ; MARCELINO, Douglas Attila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de
livros e diversões públicas nos anos 1970. Dissertação de Mestrado em História Social, UFRJ, 2006
356
José Brunner considera a política cultural do regime militar brasileiro uma variável do “modelo
mercantil”, marcado pelo clientelismo voltado para o mercado, aliado à prática de mecenato público,
visando proteger a alta cultura e conservar o patrimônio nacional. . Apesar de bastante presente, o
mecenato do Estado é complementar e subordinado ao mercado. Outro dado particularmente importante
para entender a aparente contradição na atuação do regime militar na área cultural, é a inexistência,
nesse modelo, de uma ideologia central, sendo que as pequenas ações de fomento se inscrevem nas
redes clientelistas, fenômeno que Brunner chama de “clientelismo pluralista”. BRUNNER, José Joaquin.
América Latina: cultura y modernidad. México, Grijalbo/CONACULTA, 1992, p. 221
204

357
“integração nacional” . Nas palavras de Marcelos Ridenti358: “Concomitante à

censura e à repressão política, ficaria evidente na década de 1970 a existência de um

projeto modernizador em comunicação e cultura, atuando diretamente por meio do

Estado ou incentivando o desenvolvimento capitalista privado. A partir do governo

Geisel (1975-1979), com a abertura política, especialmente por intermédio do

Ministério da Educação e Cultura, que tinha à frente Ney Braga, o regime buscaria

incorporar à ordem artistas de oposição”.

No plano repressivo, o Regime se apoiava em três sistemas359: Informações

(Serviço Nacional de Informações-SNI, Divisão de Segurança e Informações do

Ministério da Justiça - DSI); Vigilância e repressão policial (delegacias de ordem

política e social, as DOPS e os Centros de Operações de Defesa Interna /

Destacamentos de Operações de Informações - CODI-DOI); Censura, a cargo do

Ministério da Justiça através da Divisão de Censura e Diversões Públicas do

Departamento de Política Federal (complementada pelas Seções de Censura

regionais) e o Setor de Imprensa do Gabinete (SIGAB), responsável por parte da

censura à imprensa360. Esses três sistemas repressivos atuaram sobre a vida cultural,

através da “produção da suspeita”361 e do silêncio sobre certos temas, linguagens e

produtos culturais.

A repressão que se abateu na área cultural não foi linear e homogênea ao

longo de todo o regime. Seus objetivos e intensidade variaram entre 1964 e 1985.

Houve, em linhas gerais, três momentos repressivos sobre a área cultural que diferem

entre si nos objetivos táticos e na escala de controle policial e censório.

357
ORTIZ, R.Op.cit.
358
RIDENTI, M. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP,
17/01, junho 2005, p. 97
359
Para uma radiografia ampla do sistema repressivo ver FICO, Carlos. Como eles agiam: os
subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e policia politica. Rio de Janeiro, Record, 2001
360
KUSHNIR, Beatriz. Op.cit, p. 187
361
BREPOHL. M. “A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no
Brasil. Revista Brasileira de História, 17/34, 203-220, 1997
205

O primeiro momento repressivo sobre a vida cultural vai de 1964 a 1967, e foi

marcado por um objetivo básico: Dissolver as conexões entre a “cultura de esquerda”

com os movimentos sociais e as organizações políticas, exemplificado pelos

fechamentos do CPC, do ISEB e pelo controle dos movimentos de alfabetização de

base. Entre as características básicas deste momento, destacamos o controle da

atividade intelectual escrita (imprensa), mediante Inquéritos Policial-Militares e

processos judiciais, procedimento denominado com a expressão “terror cultural”,

consagrada na imprensa, logo após o golpe militar. Outra característica desse primeiro

momento é a existência de uma censura relativamente desarticulada e irregular

(propiciando uma falsa sensação de tolerância) sobre as atividades artísticas, com

ciclos de maior ou menor rigor entre 1964 e 1967, uma vez que a base legal da

censura às “diversões públicas” ainda era a Lei de 1946.

O segundo e mais longo momento repressivo, situado entre o final de 1968 e o

início de 1979, foi marcado por uma prática repressiva orgânica e sistêmica, não

apenas por meio da violência policial direta sobre a área cultural, mas também pela

reorganização burocrática e legal da censura às “diversões públicas” como política

estratégica do Estado. O objetivo central, nesse segundo momento, era reprimir o

movimento da cultura como mobilizador do radicalismo da classe média,

principalmente os estudantes. Em outras palavras, a partir de 1968, a tensão entre

movimentos sociais e regime autoritário chegou a tal ponto que a cultura efetivamente

desempenhou um papel mobilizador sobre alguns setores da classe média,

principalmente entre os estudantes organizados e cada vez mais radicalizados no

caminho da luta armada. Portanto, o controle da cultura, neste período, fez parte da

luta contra a guerrilha de esquerda e contra o crescimento da oposição civil na própria

classe média consumidora de produtos culturais. As lutas culturais internas ao campo

da oposição não eram levadas a sério pela repressão e pela censura, pois perspectiva

do regime, todas estas correntes eram vistas como subversivas.


206

A partir do final de 1968 o Estado se aparelhou, burocrática e juridicamente,

para atuar como censor implacável das manifestações culturais. Alguns fatos jurídicos

e burocráticos traduzem este processo. Em primeiro lugar, foi promulgada uma nova

lei de censura (Lei 5536, novembro de 1968), voltada para obras teatrais e

cinematográficas, que também criou o Conselho Superior de Censura (implementado

somente em 1979). Logo depois, surgiu o famigerado Decreto Lei 1077, de janeiro de

1970, que estabeleceu a censura prévia sobre materiais impressos. Em 1972, no

âmbito da Polícia Federal, surgiu a Divisão de Censura de Diversões Públicas

(DCDP). Com a criação do SIGAB, em 1971, desenvolveu-se a prática da autocensura

nas redações de periódicos da grande imprensam, guiada pelos “bilhetinhos” emitidos

de Brasília, contendo a lista dos assuntos proibidos. Se a censura de temas políticos

seria abrandada a partir de 1977, a censura a temas morais no campo das diversões

públicas continuaria vigorosa até o final do regime militar, uma vez que era anterior e

contava com a simpatia dos setores conservadores da sociedade362.

O terceiro momento repressivo (1979 a 1985) tentava, basicamente, controlar o

processo de desagregação da ordem política vigente, estabelecendo limites de

conteúdo e linguagem para a expressão artística. Havia uma nova ênfase no controle

da “moral” e na promoção dos “bons costumes”, com relativa diminuição da censura

sobre conteúdos estritamente políticos. Em que pese o abrandamento da censura e a

“abertura” política a pleno andamento, somente no ano de 1980 foram parcial ou

totalmente vetadas mais de 400 músicas. Este período também foi marcado pela

implementação efetiva do Conselho Superior de Censura, numa tentativa de estimular

a “intelectualização” da censura e contar com a presença de representantes da

sociedade civil nesta ingrata tarefa363.

362
Sobre as diferenças, interações e tensões entre censura moral e censura política ver FICO, Carlos.
"Prezada Censura": cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, p.251-286,
2002
363
ALBIN, Ricardo Cravo. Driblando a censura. De como o cutelo vil incidiu na cultura. Rio de Janeiro,
Gryphus, 2002
207

No campo da política cultural proativa, o regime militar tentou retomar uma

tendência histórica do Estado nacional brasileiro que, desde meados do século XIX,

arvorou-se como o artífice da cultura nacional e promotor da “brasilidade”, vista como

elo principal de “integração nacional” num país marcado por fortes regionalismos e

diferenças sócio-econômicas e sócio-culturais. Esta tradição foi retomada sem, no

entanto, configurar uma “política cultural de conteúdo” agressiva e impositiva, tal como

havia sido aquela empreendida pelo Estado Novo getulista (1937-1945)364. A questão

da “integração nacional” era um dos pilares da Doutrina de Segurança Nacional e o

mercado tinha um papel fundamental neste “objetivo permanente” do Estado, pois a

cultura nacional era vista como circuito de consumo de produtos de conteúdo

“brasileiro”, complementado pelo estímulo ao acesso a produtos de conteúdo

universal, consagrados como cânones da cultura ocidental. Para a esquerda, a

questão da cultura nacional era vista como tática de defesa contra o imperialismo

norte-americano e meio de conscientização das camadas populares, projeto

acalentado desde antes do golpe militar. Assim, o Estado de direita e os intelectuais

de esquerda puderam compartilhar certos valores simbólicos que convergiam para a

defesa da nação, ainda que sob signos ideológicos trocados. Além disso, o Estado

procurou normatizar diversas iniciativas na área cultural, tentando construir uma alta

burocracia cultural aliada das políticas autoritárias, materializado na constituição do

Conselho Federal de Cultura365. Este conselho era formado por 24 membros e tinha

um caráter normativo, consultivo e fiscalizador, atuando como órgão assessor do MEC

364
Sobre a política cultural no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), ver: WILLIAMS, D. Cultural
Wars in Brazil. The first regime Vargas. Durham, Duke Univ. Press, 2001.; VELLOSO, Monica P."Os
intelectuais e a política cultural do Estado Novo". Revista de Sociologia e Política. UFPR, Curitiba, n. 9.,
1997, p. 57-74.CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no Varguismo e no
Peronismo. São Paulo, Ed. Unesp. 2009 (2ªed.).
365
MAIA, Tatyana de Amaral. A construção da memória em tempos autóritários: a experiência do
Conselho Federal de Cultura (1966-1975). Tese (Doutorado em História), Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, 2006. O exame de alguns nomes que passaram pelo Conselho pode servir de base para uma
análise de perfil da intelectualidade conservadora pró-regime, ainda relativamente pouco estudada.
Citamos alguns: Gustavo Corção, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Raquel de
Queiroz, Helio Vianna, Ariano Suassuna, Josué Montello (primeiro presidente). Tatyana Maia aponta de
maneira arguta que o núcleo do CFC era formado pelos setores modernistas conservadores, atuantes
junto ao Estado desde os anos 1930. Por outro lado, a progressiva marginalização destes intelectuais na
própria burocracia federal da cultura em meados dos anos 1970, é sintomática de uma configuração
histórica completamente diferente do setor cultural.
208

para a área cultural, informados por valores cívicos, patrimonialistas e nacionalistas,

com objetivos de reiterar a cultura como integradora da nação e formadora do cidadão

patriota.

A tentativa de estabelecer um núcleo intelectual conservador como “senado

cultural” do país demonstrava limites políticos claros, sobretudo no estabelecimento de

pontes entre o regime e os setores mais dinâmicos e reconhecidos nas várias áreas

artísticas. Assim, já na montagem de seu plano de governo, ainda em 1973, o General

Ernesto Geisel estabeleceu contatos com setores da intelectualidade de oposição,

inclusive alguns dramaturgos e cineastas de esquerda que já constituíam grupos de

pressão organizados, para discutir uma futura política cultural. Esta aproximação ainda

não foi suficientemente discutida e estudada, prevalecendo análises estritamente

valorativas e pouco analíticas. Tendo em vista a tradição histórica do Estado como

promotor da “brasilidade”, quando o general-presidente retomou uma política cultural

de cunho nacionalista e protecionista, não era de se estranhar que ela funcionasse

como canal de comunicação com os setores culturais de oposição, herdeiros, em parte

do conceito de brasilidade abrigado pelo Estado desde os anos 1930. O principal

momento da vertente proativa da política cultural do regime militar, que, diga-se,

conviveu muito bem com as políticas repressivas, foi sintetizado pelo documento

intitulado “Plano Nacional de Cultura” (PNC), às vezes conhecido como Política

Nacional de Cultura, elaborado pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1975 e

lançado em janeiro de 1976366. O governo Geisel estabeleceu um novo estilo de

política cultural, mais centralizador e burocratizado, esvaziando os grupos assessores

formados no interior do MEC logo após o golpe militar367.

366
Ver CALABARE, Lia. “Política cultural no Brasil: um histórico”. Paper apresentado no I ENECULT,
Salvador (BA), 2005, disponível em http://www.cult.ufba.br/enecul2005/LiaCalabare.pdf , acessado em
01/09/2010. Sobre a experiência piloto deste tipo de mecenato, ainda em escala municipal, que inspiraria
a PNC, ver DALMÁS, Carine. “Política cultural e MPB em Curitiba na década de 70”. Comunicação
apresentada no VIII Encontro Regional de História, ANPUH, Curitiba, 2002.
367
COHN, Gabriel. “A concepção oficial da política cultural nos anos 70”. In: MICELI, Sérgio. Estado e
Cultura no Brasil. São Paulo, DIFEL, 1984, p. 87-96.
209

Além de seus aspectos doutrinários na direção de um nacionalismo integrador

e isento de conflitos de classe, houve uma grande reorganização burocrática no setor

cultural do governo, com aporte generoso de verbas. Ainda foram criados órgãos

normativos e executivos, tais como o Conselho Nacional de Direitos Autorais (CNDA),

a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE), o Conselho Nacional de Cinema (CNC).

Sem falar na reorganização da Embrafilme, criada em 1969, que se transformava em

empresa mista, atuante na produção e na distribuição de filmes.

É possível caracterizar a PNC como a tentativa de estimular uma cultura

brasileira “nacional-popular” sem luta de classes. O teor do texto procurava delimitar

um “núcleo irredutível” da cultura nacional autônoma, produzido ao largo dos meios de

comunicação de massa368. O ministro Ney Braga, na apresentação do Plano, reiterava

que seu objetivo era “zelar pelo patrimônio cultural da nação, sem intervenção do

Estado, para dirigir a cultura”369. O recado era claramente destinado aos produtores

culturais críticos ao regime, buscando o “reconhecimento do processo de abertura

estendido à área cultural”370. Portanto, em que pese sua visão conservadora e

funcionalista de cultura, o documento tinha muitos pontos em comum com uma

determinada visão de cultura da esquerda nacionalista, consolidando um canal de

diálogo tenso entre oposição e governo, cujo fiador, ao fim e ao cabo, era o generoso

mecenato oficial que se anunciava.

A ênfase nacionalista, a defesa do patrimônio e a promessa de apoio ao

produto nacional de “qualidade”371, ameaçado pela cultura estrangeira e sem espaço

na indústria da cultura, sinalizavam a incorporação de certas demandas dos

368
MICELI, Sérgio. “Teoria e prática da política cultural oficial no Brasil” IN: Estado e Cultura no Brasil. p..
108
369
MEC. Política Nacional de Cultura, p.5
370
SILVA, Varderli Maria. A construção da política cultural no Regime Militar: concepções, diretrizes e
programas. Mestrado em Sociologia, FFLCH/USP, 2001
371
A questão da “qualidade” do produto cultural, que em última instancia nos remete às hierarquias sócio-
culturais de apreciação estética e afirmação do gosto, era outro ponto de aproximação entre setores da
oposição de esquerda e a burocracia da cultura. Ambos criticavam o “mau gosto” na linguagem, a
vulgaridade e o erotismo, coincidindo na busca de um certo decoro estético.
210

produtores culturais de esquerda. O texto assumia que seu “objetivo maior era a

realização do homem brasileiro como pessoa”372 e, para tal, era preciso defender a

cultura brasileira em dois níveis: o regional e o nacional. A “cultura brasileira”,

assumida em sua positividade ontológica (ponto que unificava a direita e parte da

esquerda), deveria corrigir eventuais desvios de rota nos valores fundantes da

brasilidade, causados pelo rápido desenvolvimento capitalista. Ao articular a política

cultural à realização dos “objetivos nacionais”, a PNC substituía o ideário do conflito

pela visão funcionalista da Escola Superior de Guerra e sua Doutrina de Segurança

Nacional373. Entre suas diretrizes básicas estavam a “generalização do acesso à

cultura” e a “defesa da qualidade” (leia-se, decoro no tratamento e na escolha dos

temas e fidelidade aos cânones consagrados pelo academicismo). Estes dois

parâmetros permitiriam a construção de uma política de subsídios na produção e no

consumo e o apoio às variáveis mais conservadoras, esteticamente falando, da cultura

de oposição. O documento explicitamente recusava o “culto à novidade” e o produto

cultural massificado e, neste sentido, também coincidia com parte das críticas de

esquerda às vanguardas alienadas e aos produtos massificados de “baixo nível”,

notadamente os importados.

O conjunto de políticas culturais, sintetizado na PNC, foi marcado pela

articulação bem sucedida entre mercado e mecenato oficial na produção e distribuição

de produtos artísticos, bem como pela ausência de uma política de conteúdo

positivo374, evitando apenas os temas e abordagens vetados pela censura oficial, tais

como a exortação revolucionária, a pornografia, a crítica direta às autoridades

políticas, entre outros. A PNC tinha como eixo de atuação central o estímulo às áreas

de teatro e cinema, que, não por acaso, junto com a música popular, formavam o

“tripé” da cultura engajada de esquerda. O Estado, portanto, tentava neutralizar os


372
MEC/PNC, p.8
373
SILVA, Vanderli Maria. Op.cit.
374
Reconhecemos que houve uma tentativa de canalizar o ufanismo nacionalista como conteúdo
artístico-cultural, sobretudo no começo dos anos 1970, mas não se pode dizer que a Política Nacional de
Cultura, pós-1975, tenha sido marcada por este tipo de perspectiva.
211

efeitos eventualmente politizadores desse tripé artístico menos pelo controle do

conteúdo em si e mais pelo controle dos circuitos socioculturais pelos quais as obras

deveriam circular, aprofundando a dependência financeira dos criadores e produtores

em relação ao Estado e matizando o radicalismo no tratamento dos temas. Neste

sentido, a política cultural proativa baseada no mecenato, complementava a obra

repressiva iniciada ainda em 1964, qual seja: cortar os elos da cultura nacional-popular

de esquerda com as organizações de trabalhadores e de massa. Esta aparente

esquizofrenia na vida cultural era facilitada pela exclusão escolar e pela progressiva

incorporação da cultura popular urbana pelos meios de comunicação de massa,

transformados em clichês preconceituosos, grosseiros e sensacionalistas que se

plasmaram nas representações sobre o popular nestes meios de comunicação. Seja

porque a militância cultural de esquerda mais sofisticada e criativa estava sendo

canalizada pelo mercado, seja porque o sistema escolar, excludente, não ajudava a

disseminar e massificar as obras de qualidade que se fazia no país. Apesar disso, é

notável como a cultura e as artes de esquerda (sobretudo de corte vanguardista ou

nacional-popular) produzidas entre os anos 1960 e 1970, sob a égide da resistência

cultural ao regime, constituíram um cânone que sobreviveu ao período, apesar dos

obstáculos acima citados, o que demonstra a complexidade dos circuitos culturais.

O curto-circuito entre obras de esquerda canônicas, de linguagem sofisticada

(ainda que chanceladas pelo mercado) e gosto popular massificado, tem estimulado

revisões historiográficas sobre o real alcance social e as virtudes críticas da cultura de

esquerda dos anos 1970375. O problema é que este revisionismo deixa escapar um

ponto importante, e que não é incompatível com a relativa elitização do consumo deste

tipo de cultura (aliás, foi por ele alimentado): o papel da esquerda na re-estruturação

do mercado de bens simbólicos no Brasil. Além disso, o revisionismo corrobora uma

375
Ver, por exemplo, ARAUJO, Paulo Cesar. Op.cit; ALONSO, Gustavo Ferreira. “Quando a versão é
mais interessante que o fato: a construção do mito Chico Buarque”. IN: REIS, Daniel e ROLLAND, Denis
(orgs). Intelectuais e modernidades. Rio de Janeiro, Editora FGV, p. 161-194
212

tese questionável, que imputa ao pretenso elitismo e sofisticação das obras, a causa

principal do seu consumo restrito às classes médias. Em verdade, a contradição entre

herança cultural de esquerda dos anos 1960 e 1970, base do cânone, e o consumo

amplo e massificado das classes populares é mais complexa. Não passa,

necessariamente, pelo choque entre o “elitismo cultural” da esquerda (entendido

quase sempre como adesão a uma linguagem sofisticada e inacessível, por princípio,

às massas) e “gosto popular”, enquanto realidade ontológica, falsamente definido

como conjunto de valores estéticos subjetivos e guiados pela liberdade de escolha do

consumidor de cultura. Nem um, nem outro explicam o processo cultural consolidado

nos anos 1970. Em primeiro lugar, porque os produtos artísticos criados pelos artistas

mais engajados, sobretudo na música popular, no teatro ou na televisão, não eram

herméticos ou inacessíveis pela sua natureza estética, até porque se filiavam à

tradições melódico-ritmicas consagradas no “gosto popular” (no caso da música, os

chamados gêneros musicais de mercado), ou à tradição realista e dramática (no caso

do teatro e da televisão), constituinte das platéias de massa no Brasil e em outros

países. Em segundo lugar, porque a “cultura popular” em seus vários matizes e

dimensões, em alguma medida, estava incorporada por esta arte de esquerda (samba,

carnaval, revistas teatrais, comédias de costume, cordel, linguagem coloquial e

cotidiana, etc). E, por último, é preciso levar em conta que a construção do gosto não

é um processo apenas subjetivo e meramente intelectual: passa pela afirmação social

de valores estéticos, ideológicos e culturais, consagrados em circuitos estruturados de

consumo e padrões de fruição artístico-cultural.

Em outras palavras, se a “arte da resistência” chancelada pela esquerda ainda

nos anos 1960 não se massificou nos termos em que foi pensada por seus artífices e

ideólogos, é porque dois fatores se combinaram: a formatação destas obras como

produto cultural de alto valor econômico agregado (culminando no preço proibitivo do

produto final às massas trabalhadoras), e a desestruturação e pauperização cultural


213

do sistema público escolar, que em última instância, é o responsável por disseminar a

herança cultural de uma sociedade. Aliás, o próprio conceito de “herança cultural”

como patrimônio comum perdeu sentido nas últimas décadas não apenas pelas justas

críticas intelectuais que a apontam como uma porta para a imposição de valores

hegemônicos e dissolventes da pluralidade de experiências culturais e estéticas de

uma sociedade. O baixo padrão de escolarização, aliado à indústria da cultura

altamente integrada faz com que se dissolva a herança cultural, subordinada ao

esquecimento e ao culto da novidade e do modismo.

O que importa para este trabalho é o fato paradoxal de que o artista de

esquerda, “herói da resistência”, foi um agente fundamental na reestruturação e

modernização da indústria da cultura brasileira nos anos 1970, ainda que

involuntariamente, dado que este foi um movimento mais estrutural do que

voluntarista376. Ao mesmo tempo, o intelectual e o artista de esquerda foram artífices

da própria idéia de “brasilidade”, eixo da nossa moderna “herança cultural” e

identidade nacional377. A singularidade do processo histórico reside, justamente, na

tentativa de dotar os produtos formatados pela indústria da cultura nos anos 1970, da

herança cultural construída desde, ao menos, os anos 1920 e 1930. As telenovelas de

Dias Gomes, as canções da MPB, os filmes de Nelson Pereira dos Santos, para citar

alguns exemplos, dialogam diretamente com esta herança, ou seja com a literatura

engajada dos anos 1930 (de Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos) e a

tradição musical-popular gestada a partir dos anos 1920.

Em certo sentido, os encontros (e desencontros) do artista de esquerda com a

política cultural do regime partia do princípio que havia uma “boa” herança cultural

“brasileira” a ser disseminada na sociedade, ameaçada tanto pela massificação da

376
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit; ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. Op.cit.; o caso
da música e da televisão são exemplares deste processo histórico.
377
RIDENTI, Marcelo. A brasilidade revolucionária. Op.cit.
214

cultura sob a égide da indústria de entretenimento, quanto pela internacionalização

sem critérios e sem controle do consumo cultural.

Mecenato oficial e arte de resistência

Na área de cinema, mais sensível ao mecenato oficial, o governo atuou através

de duas instituições. Primeiramente, criou o Instituto Nacional do Cinema (INC), em

18/11/1966, estabelecendo a censura a filmes como competência da União, e

definindo a produção, distribuição e exibição de filmes brasileiros como política de

Estado. O INC foi extinto em 09/12/1975, pela mesma lei que ampliou a Embrafilme

(Empresa Brasileira de Filmes) e criou o Concine (Conselho de Cinema), órgão

normatizador e regulador da atividade cinematográfica. A Embrafilme foi outra

instituição fundamental para esta área. Criada em 12/12/1969 era inicialmente um

apêndice do INC. Caracterizava-se como uma empresa de economia mista, sendo que

70% pertencia à União. A partir de setembro de 1973, a Embrafilme passou a atuar

também na distribuição. Curiosamente, o primeiro filme distribuído foi São Bernardo,

de Leon Hirszman, cineasta ligado ao Partido Comunista, que se aproveitou do

estímulo à filmagem de obras literárias para fazer seu filme, de grande impacto na

época, sobre o autoritarismo e as relações de poder. A esquizofrenia da política

cultural era tal, que o mesmo filme ficou retido na censura por muitos meses,

causando graves problemas financeiros ao diretor e levando a produtora Saga à

falência.

Entre 1970 e 1973, a Embrafilme apoiou a produção de 83 longas e, em agosto

de 1974, Roberto Farias foi nomeado como presidente, tendo Gustavo Dahl, oriundo

do grupo cinemanovista, como seu superintendente comercial378. Vários filmes de

sucesso, muitos deles dirigidos por cineastas identificados com a esquerda, foram

produzidos, co-produzidos e/ou distribuídos pela “nova Embrafilme”, até o final do

378
Em 1979, Celso Amorim foi nomeado presidente, substituindo Roberto Farias. Em 1982, foi nomeado
Roberto Parreira. Ver AMÂNCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: o cinema estatal brasileiro em
sua época de ouro (1977-1981). Niterói, EDUFF, 2000.
215

regime militar, tais como: Sagarana, o duelo (Paulo Thiago), Dona Flor e seus dois

maridos (Bruno Barreto), Dama do Lotação (Neville de Almeida), A idade da Terra

(Glauber Rocha), Pixote (Hector Babenco), Eu te amo (Arnaldo Jabor), O homem que

virou suco (João Batista de Andrade), Pra frente Brasil (Farias), Eles não usam black-

tie (Leon Hirszman), Memórias do Cárcere (Nelson Pereira dos Santos).

A empresa adotou um modelo mercadológico de “risco”, financiando até 30%

do filme e participando dos lucros. É preciso destacar o caráter complexo desse viés

da política cultural, se pensarmos num Estado militarizado e de direita apoiando a

realização de filmes com conteúdo de esquerda críticos ao capitalismo e à própria

ditadura, como foi o caso notório de Pra Frente Brasil, que encenava a tortura contra

cidadãos indefesos no contexto da luta armada. Obviamente, a negociação entre os

diversos aparelhos e instâncias do Estado não era unívoca e muitos destes filmes

causaram mal-estar dentro do Governo e nas Forças Armadas, como ocorreu com o

próprio Pra Frente Brasil, pivô de uma grande crise interna na Embrafilme.

Apesar dos conflitos e mediações com outras instâncias do governo, nomes

ligados ao Cinema Novo, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo

Jabor, foram amplamente apoiados pelo mecenato oficial. Conforme Wolney

Malafaia379: “Se levarmos em consideração que, justamente nesses anos setenta, são

construídas as bases do Brasil contemporâneo, devemos atentar para a importância

da experiência cinemanovista no período, um tanto quanto exótica, um pouco

folclórica, porém profundamente ideológica, no sentido amplo do conceito. Recusando

as simplificações, não resumindo a relação Estado autoritário / cinemanovistas como

uma cooptação destes por aquele, poderemos compreender a engenharia política de

construção de um discurso ideológico extremamente complexo e voltado à maior parte

da sociedade brasileira, pois trabalha diretamente seus símbolos e valores de forma

379
MALAFAIA, Wolney. “O cinema e o Estado na terra do sol:a construção de uma política cultural de
cinema em tempos de autoritarismo”. IN:; MORETTIN Eduardo et alli. Op.cit.
216

plástica refinada, politicamente vinculada à consolidação do processo de distensão,

acabando por legitimá-lo”.

A aproximação com o Estado não ficou isenta de traumas e dissensos no meio

cinematográfico, motivando uma dupla recusa de muitos realizadores, sobretudo os

mais jovens e transgressores: a recusa dos termos desta política de mecenato oficial e

a recusa da estética cinematográfica “séria” e “culta” a ela associada, endossada pelo

governo. Muitos destes cineastas preferiram aderir à estética marginal agressiva e

dessacralizadora e aos padrões de produção da “boca do lixo”, conhecida pelos seus

filmes eróticos de baixa qualidade técnica e estética, do que aderir aos padrões

impostos pela Embrafilme380.

Em relação ao teatro o regime herdou, de outra ditadura, o Serviço Nacional de

Teatro, criado em 1937 e extinto em 1981, quando foi fundado o INACEN (Instituto

Nacional de Artes Cênicas). A gestão de Orlando Miranda (1974-1979), nomeado

depois de uma articulação com dramaturgos importantes da “corrente da hegemonia”

é um exemplo de aliança bem sucedida entre artistas de esquerda, empresários

liberais e mecenato oficial, que não estava isenta de conflitos com outros setores do

governo militar, entre outras contradições381. Este processo, que conectou os

interesses dos empresários liberais da área, dramaturgos de esquerda e as políticas

culturais para o setor, começou com a criação da ACET (Associação Carioca dos

Empresários Teatrais), em 1969, pelo próprio Orlando Miranda e por Paulo Pontes.

Em 1973, a ACET elaborou um diagnóstico para a área e iniciou gestões junto ao

governo para desenvolver uma política para a área que, ao fim e ao cabo, envolvia

380
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.
381
GARCIA, Miliandre. Políticas culturais no Regime Militar: a gestão de Orlando Miranda no SNT (1974-
1979). Relatório Técnico-Científico de Pesquisa. Pós-Doutorado, USP/FAPESP, São Paulo, 2010
217

não apenas a questão do apoio à produção de peças, mas também a rediscussão dos

critérios de censura (embora esta fosse apenas tangenciada pelo documento)382.

O teatro, como em nenhuma outra área, foi o espaço de exercício da

confluência entre a política cultural defendida pelos liberais e a defendida pelos

comunistas. Ambos se aliavam na ocupação do mercado, na defesa da liberdade de

expressão, devidamente orientada para o drama realista. No bojo das políticas

culturais para o setor, foram criados novos concursos de dramaturgia (universitária),

foram revitalizados os prêmios anuais criados em 1964, sem falar na bem sucedida

campanha de popularização do teatro (com preços de ingressos subsidiados, vendidos

em postos ambulantes). Com a reorganização do Serviço Nacional de Teatro, o

empresário Orlando Miranda consolidou a proposta de reerguer o teatro brasileiro

reconquistando, sobretudo, o público de classe média, engajado e “sério”, via

mercado. Essa colaboração foi criticada pela esquerda não vinculada ao PCB e pelo

teatro ligado à contracultura383 e aos movimentos sociais, num processo similar, ainda

que não idêntico, ao campo do cinema, sobretudo porque se baseava num paradigma

de teatro ancorado na tradição do drama realista e na forma de gestão empresarial.

Entretanto, é inegável que a tentativa de isolar a política repressiva da política de

mecenato tinha limites, e não resistiu ao processo de reconquista de autonomia em

várias áreas da cultura que marcou o regime no final da década de 1970, momento em

que também se acirrava a crítica ao nacional-popular de esquerda, como veremos

adiante.

Uma das hipóteses que explica a busca de apoio na dramaturgia de esquerda

é que o governo percebeu que poderia usar a televisão para consolidar seu projeto

político e, para tanto, o teatro brasileiro era um importante fornecedor de mão-de-obra

382
“TEATRO: onde a limitação dá prejuízo”. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 22 dez. 1973 (apud
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam.... , p. 30
383
MOSTAÇO, Edélcio. Op.cit.; ESCOBAR, Carlos Henrique. “Um intelectual sob suspeita”. IN: KHÉDE
Censores de pincenê e gravata: dois movimentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri,
1981
218

para uma teledramaturgia de “qualidade”, sendo uma espécie de laboratório

preparador para o meio eletrônico de massa. Aliás, alguns dramaturgos de esquerda,

como Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho, já atuavam na Rede Globo desde o inicio

da década de 1970 (Vianinha faleceu em 1974), constituindo um núcleo criativo

estável e determinante para o novo padrão televisual da emissora384. Também não

podemos esquecer que o teatro era um dos eixos centrais da cultura de esquerda,

dotando-se de uma capacidade aglutinadora e interativa que preocupava o regime

desde o final dos anos 1960, em função da presença de público jovem e estudantil.

Outra instituição que desempenhou um papel importante na sistematização da

política cultural do regime militar e do diálogo com a esquerda foi a Funarte (Fundação

Nacional de Arte), criada em dezembro de 1975. A Funarte desempenhou um

importante papel em três áreas: artes plásticas, folclore e música popular385. Assim,

complementava o trabalho já realizado no teatro e no cinema pelos outros órgãos do

governo. Seu primeiro diretor, Roberto Parreira, foi um dos redatores do Plano

Nacional de Cultura.

No campo específico da música popular a FUNARTE tinha quatro objetivos: 1)

estimular novas produções artísticas; 2) apoiar o trabalho de pesquisadores; 3)

financiar a gravação de músicas culturalmente significantes, sem interesse de

mercado; 4) revisar a legislação protecionista para a defesa da música brasileira nos

meios de comunicação. Estes objetivos refletem, em parte, os debates da Associação

de Pesquisadores em MPB, fundada em 1973, em Curitiba, que reunia diversos

jornalistas, acadêmicos e críticos, quase todos de matiz nacionalista, demonstrando a

tentativa do governo de incorporar a demanda de certos setores da sociedade civil386.

384
PIQUEIRA, Maurício Tintori. Entre o entretenimento e a crítica social: a Telenovela Moderna da Rede
Globo de Televisão e a formação de uma nova identidade nacional (1969-1975). Dissertação de
Mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010
385
O SNT era, inicialmente, um departamento da FUNARTE, mas possuía grande autonomia e iniciativa
própria. Com a existência da FUNDACEN (Fundação Nacional de Artes Cênicas) a área passou a ter
autonomia, mas foi reabsorvida pela FUNARTE em 1981, sob o nome de INACEN.
386
STROUD, Sean. The defence of tradition in Brazilian popular music. Hampshire: Ashgate, 2008
219

O Projeto Pixinguinha foi a iniciativa mais bem sucedida da Funarte para a área da

música popular. Idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, em 1977, promoveu

inúmeros espetáculos musicais a baixo custo, realizando mais de 1400 apresentações

e agregando um público de cerca de 1 milhão de pessoas, entre 1978 e 1979. O que

é notável é que mesmo numa área altamente capitalizada como a música popular, a

política cultural oficial também se fez presente. Hermínio Bello de Carvalho, um

produtor intelectual identificado com o campo da esquerda nacional-popular, rejeitava

a idéia de que houvesse um processo de cooptação, afirmando que ele e sua equipe

formavam um núcleo de resistência anti-autoritária no interior do próprio Estado387. A

Funarte, de forma mais ampla, atuou na formação de um pensamento crítico em

consonância com o meio acadêmico, promovendo uma série de seminários que

catalisou o debate da área de artes e ciências humanas na direção de uma revisão da

história da cultura brasileira, abrigando inclusive pesquisadores de oposição388.

Dentre os órgãos da política cultural oficial, sem dúvida, foi um dos que teve atuação

mais complexa e pluralista.

Sociedade, ação cultural e oposição política

O quadro exposto indica o quanto o processo cultural brasileiro de meados dos

anos 1970 foi marcado por uma conjuntura rica em dinâmicas, alternativas e

contradições, produto não apenas de estratégias e táticas político-ideológicas dos

grupos de oposição, mas também fruto das mudanças estruturais na vida sócio-

cultural. Uma vigorosa cultura de oposição plenamente inserida no mercado, veiculada

por grandes corporações capitalistas nacionais e multinacionais, encontrou apoio em

uma tutela ambígua por parte do Estado. Este, por sua vez, controlava a produção

cultural, via censura, mas estimulava o crescimento do consumo cultural, mediante a

criação subsídios voltados para um mercado nacional de cultura. Em meio a esta

387
apud Idem, p. 166
388
A série “Anos 70” e a coleção “O nacional e o popular na cultura brasileira”, editada em seis volumes,
entre 1980 e 1983, são os exemplos mais sistemáticos deste balanço crítico.
220

complexa conjuntura, consolidou-se a noção de resistência cultural, expressão que

tornou-se polissêmica e vaga com o tempo, na medida que as diferenças estéticas e

ideológicas entre os atores da oposição foram se aplainando. Entretanto, examinada

em sua historicidade, a crítica cultural às bases ideológicas do regime e ao

autoritarismo englobam um conjunto de projetos e práticas - políticas e culturais -

muitas vezes auto-excludentes, sintetizada em dilemas nada fáceis de resolver: ir ou

não ir ao mercado; ser ou não nacionalista; falar ou não falar em nome do povo;

quebrar ou não com as tradições estéticas e culturais já incorporadas pelos padrões

vigentes.

A classe média era um grande público consumidor para os produtos de

esquerda que os empresários liberais não hesitavam em fornecer, diferenças

ideológicas à parte. Durante o governo Geisel cresceu a crítica liberal à política

econômica do regime, dada a percepção de que o Estado era uma estrutura pesada

demais na vida econômica. Derrotada a guerrilha de esquerda, a estratégia liberal, em

seus diversos matizes, convergia para uma transição negociada para um governo civil,

precedido de uma desmontagem da repressão policial, da legislação autoritária e de

censura. Assim, o caminho para a aliança tática entre setores comunistas e liberais

estava bem pavimentado, em nome das liberdades democráticas. Essa palavra-de-

ordem foi muito além da pauta político-institucional, adensando uma determinada

estratégia de crítica cultural e política ao regime militar. A dinâmica cultural no Brasil,

no período do regime militar, dialogou com as vicissitudes políticas que marcaram o

jogo entre governo e oposições (parlamentar, civil, armada). Ao longo dos anos 1970,

confirmada a derrota da esquerda armada, construiu-se um campo político-cultural que

podemos chamar de “oposição civil”, articulando conteúdos de esquerda,

principalmente da esquerda nacionalista, a circuitos dominados pelo mercado,

gerenciado por capitalistas liberais. A partir desta premissa, proponho algumas

inferências a serem aprofundadas em futuras pesquisas.


221

Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a adesão a um nacionalismo mitigado,

mesclado com a valorização da “herança cultural” legada pela brasilidade modernista

e pelo realismo critico, possibilitou a convergência de instituições, circuitos e agentes

culturais situados em campos ideológicos opostos. Estado, mercado e produtores

culturais de esquerda, num processo pleno de tensões e negociações, acabaram por

convergir num ponto: a necessidade da defesa da “cultura nacional” e da “valorização

do produto brasileiro”. O Estado participou deste processo de convergência por razões

de segurança nacional. O mercado, por adequação a certa demanda que, inclusive,

não chegou a ser incompatível com o crescente interesse por produtos culturais

importados. A esquerda, por razões táticas e estratégicas, além da fidelidade à

tradição nacional-popular construída nos anos 1950.

A tradição que informava esses três “atores”, naquela conjuntura, não permitia

um nacionalismo agressivo e exclusivista dado que facilitou o diálogo. O Estado

autoritário, que se via como guardião, a um só tempo, dos valores ocidentais,

“democráticos” e cristãos, desconfiava de qualquer nacionalismo autóctone e fascista.

O mercado, pautado em valores liberais, se via como parte do capitalismo mundial,

associado às multinacionais e à “livre-iniciativa”, não podendo cercear, por motivos

financeiros e ideológicos, a entrada de produtos estrangeiros. E a esquerda,

propagava um nacionalismo que, por razões também ideológicas, era tributário de um

conceito de cultura “universal” de tradição burguesa e iluminista, mesclada a

conteúdos nacional-populares devidamente filtrados pelos artistas e intelectuais389.

Mesmo com leituras e objetivos diversos, a burocracia oficial, os empresários

liberais e os artistas engajados e críticos ao regime, viam possíveis vantagens nesta

389
A discussão articulada dos conceitos de “realismo crítico”, de origem lukacsiana, e de “nacional-
popular”, de origem gramsciana, como base da estética e da cultura defendidas pelos comunistas pode
ser vista em COUTINHO, Carlos Nelson. “Notas sobre a questão cultural no Brasil”. Escrita Ensaio, nº1,
São Paulo, Escrita, 1977. Para a recepção de Lukacs no Brasil ver FREDERICO, Celso. Op.cit.. Sobre
estas e outras categorias que informaram as políticas culturais de esquerda ver NAPOLITANO, Marcos.
“A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Revista Temáticas, 37/38, Pós-
Graduação em Sociologia, IFCH/Unicamp, 2011 (prelo)
222

improvável associação tática, num contexto de luta por hegemonia, perpassado por

desconfianças recíprocas. O Estado percebia no intelectual de esquerda um caminho

para reconciliar-se com a classe média, base social do golpe militar, perdida desde

1968, e apagar a memória do “terrorismo cultural”, ponto de fricção não apenas com

setores de esquerda, mas, sobretudo, com os intelectuais liberais desde o começo do

regime. O mercado vislumbrava no Estado um facilitador de acesso ao capital e

subsídios de toda a ordem. O artista de esquerda via, em ambos, a oportunidade de

produzir sua obra, ampliar seu público e afirmar-se artística e profissionalmente,

aproveitando-se das contradições do sistema.

Não é possível entender as lutas culturais entre “Estado” e “sociedade” nos

anos 1970, supervalorizando os dois paradigmas explicativos que marcam a memória

do período: o controle e a cooptação do sistema político e econômico, por um lado, ou

a resistência cultural, por outro. Há uma gradação ampla entre estes dois pólos. O

problema a ser investigado é outro: por que a pretensa “hegemonia” da cultura de

oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesia e da classe

média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a

ditadura”? É plausível supor que a limitação da eficácia política da ação cultural da

esquerda pode ter sido, paradoxalmente, o resultado da sua inserção bem sucedida

nas estruturas de mercado, sobretudo nas áreas mais capitalizadas e monopolizadas

pelas grandes corporações (industria fonográfica, televisual e editorial). Nestes

setores, os artistas tinham que negociar formas e conteúdos com os interesses e os

limites impostos pelos donos, geralmente liberais, destas empresas, nunca

interessados em romper radicalmente com o governo, mesmo permitindo a veiculação

de discursos críticos ao autoritarismo como projeto estratégico. Nas áreas de forte

demanda – o cinema e o teatro – mas sem produtores e circuitos nacionais integrados,

o Estado passou a acenar com formas de apoio financeiro e institucional, tendência

plenamente estabelecida a partir de 1975, o que também pressupunha a aceitação


223

das formas empresariais de produção cultural. Por outro lado, admitindo-se o princípio

de que o consumo cultural via mercado criava e reforçava identidades políticas e

sociais390, cabe a seguinte indagação: em que momento estas identidades simbólicas

se transformariam em práticas políticas efetivas de afirmação de cidadania e

construção de projetos alternativos à ordem vigente, questão fundamental na luta

contra regimes autoritários?

Uma segunda problemática parte de questões ainda mais perturbadoras e

frequentemente se encaminham para análises de ordem moral: como foi possível um

Estado dominado pela direita militar apoiar financeiramente artistas de esquerda

ligados historicamente ao campo da resistência ao regime? Como foi possível um

mercado cada vez mais dominado pelo grande capital, veicular uma produção muitas

vezes crítica não apenas ao autoritarismo, mas também ao capitalismo? Para

encaminhar as respostas seria necessário aprofundar a análise crítica da relação entre

a cultura de esquerda com o mercado, por um lado, e com o Estado, por outro. O

mercado permitia a veiculação da crítica social e comportamental através da cultura,

de forma genérica e diluída, pois havia uma demanda de produtos “críticos”, até como

efeito compensatório para a derrota política dos projetos de esquerda. O Estado, por

sua vez, se dispunha a apoiar artistas que produzissem “obras de reconhecida

qualidade estética” e “defendessem a cultura brasileira”, na tradição nacional-popular,

desde que expurgada da luta de classes, da defesa explícita do socialismo ou da

crítica direta ao governo militar e suas autoridades.

De todas as áreas artísticas até aqui citadas, a música popular391 era a que

apresentava uma dimensão maior de contradições e paradoxos, que só se aprofundou

390
CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, Editora EFRJ, 1997
391
O destaque que esta pesquisa deu à música popular não deve sugerir que a música erudita não teve
papel importante na resistência cultural ao regime militar. Indica apenas os limites do autor. Neste sentido,
ver SOARES, Teresinha Rodrigues Prada .A Utopia no Horizonte da Música Nova. Tese de Doutorado em
História Social, USP, 2006. Nesta tese, a autora analisa o Festival de Música Nova e o Curso
Latinoamericano de Música Contemporânea como eventos de afirmação de uma cultura crítica contra o
224

nos anos 1970. Lugar privilegiado da educação sentimental que configurou a

consciência da resistência, espaço social de consagração de artistas heróicos e

cultuados pelo seu talento e coerência política, a música popular, ao mesmo tempo, foi

o circuito de consumo cultural mais perpassado pela lógica da indústria da cultura, ao

lado da televisão. Portanto, o exame detalhado deste circuito e seus produtos mais

identificados com a crítica política, é um estudo de caso interessante para reavaliar as

mediações entre Estado, mercado e resistência sob o contexto do autoritarismo.

No plano da memória social, as lutas culturais dos anos 1970 desembocaram

numa situação, em princípio, muito paradoxal, perceptível já no final da década:

vitoriosos politicamente, mesmo cada vez mais isolados, os militares no poder

começaram a perder a batalha da memória, acabando por construir uma memória

ressentida sobre o período392. Já a esquerda nacionalista, destroçada politicamente,

conseguiu afirmar-se nos produtos culturais cujos conteúdos críticos, adotados em

parte pelos liberais e tendo a imprensa liberal como um dos focos disseminadores,

conseguiu plasmar-se na memória social dominante, consagrando uma visão heróica

e ecumênica da “resistência cultural”. A afirmação da paradoxal “hegemonia cultural

de esquerda”393, fez parte deste processo.

regime. Ver também a coletânea de entrevistas e textos de COELHO, João Marcos. No calor da hora:
música e músicos nos anos de chumbo. São Paulo, Editora Algol, 2008
392
Exemplos dessa afirmação, são os depoimentos tomados pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e
publicados em três volumes sob o título “A memória militar sobre...”. Ver também. FERREIRA Jr., Amarílio
& BITTAR, Marisa. “O coronel Passarinho e o regime militar: o último intelectual orgânico” IN: MARTINS
Fo.. João Roberto. O golpe e o regime militar de 1964: novas perspectivas. São Carlos, Editora UFSCAR,
2006, p.201-219.
393
SCHWARZ, R.Op.cit.
225

CAPITULO 6

O CASO DA MPB NOS ANOS 1970: RESISTÊNCIA E MERCADO394

A cena musical brasileira nos anos de chumbo

O papel da música popular na resistência à ditadura, seja no seu período

inicial, nos “anos de chumbo” ou no período de abertura, teve a peculiaridade de aliar

consumo cultural de massa à expressão de valores políticos, principalmente por meio

de letras que tentavam conciliar a tradição lírica das emoções subjetivas com a

expressão épica dos desejos coletivos395. Esta parece ter sido a tendência dominante

na cultura poético-musical da resistência no Brasil, sobrepujando, por exemplo, as

canções de teor exortativo, direto e movidas pelo ethos da mobilização, como nos

tradicionais hinos revolucionários396.

O período de efervescência criativa e debate estéticos e ideológicos que

marcaram a “era dos festivais da canção” sofreu um corte abrupto depois do fatídico

13 de dezembro de 1968, com a promulgação do AI-5. A performance de Jards

Macalé no Festival Internacional da Canção de 1969, sintetizou o clima da época,

alertando a platéia aos gritos: “Cuidado! Há um morcego na porta principal. Cuidado!”.

Se em outubro de 1968, a vida cultural brasileira se agitava com o debate entre

“tropicalistas” e “emepebistas”, em janeiro de 1969, o quadro já era outro. Os

principais ídolos musicais dos festivais eram forçados a sair de cena. Caetano Veloso

394
Este capítulo é resultado da fusão, sob outra estrutura, de dois artigos já publicados: ”A MPB nos anos
de chumbo de regime militar brasileiro” IN: Illiano, R e Sala, M.(Eds). Music and Dictatorship in Europe
and Latin America; “MPB: a trilha sonora da abertura”. Estudos Avançados,69, IEA/USP, mai-ago 2010
395
Em outro texto, desenvolvi uma análise mais extensiva dos exemplos musicais a partir desta
tendência, nomeada por mim como “sublimação lírica da experiência do autoritarismo”, presente em
várias canções de sucesso do início dos anos 1970, na obra de Milton Nascimento, Secos & Molhados,
Chico Buarque de Hollanda, Elis Regina, Raul Seixas, Gonzaguinha e outros compositores/intérpretes da
MPB. Ver NAPOLITANO, Marcos. “A MPB nos anos de chumbo” IN: ILLIANO, R. & SALA, M. Op.cit
396
Sobre a gênese, características e variáveis ideológicas dos hinos revolucionários da esquerda ver
HAGEMEYER, Rafael. A identidade antifascista do cancioneiro da Guerra Civil Espanhola. Tese de
Doutorado, História, UFRGS, 2004
226

e Gilberto Gil foram presos, ainda no Natal de 1968. Geraldo Vandré, o autor de

Caminhando, desaparecia clandestinamente no Brasil para reaparecer no Chile, já na

condição de exilado. Chico Buarque, o mais popular de todos, preparava-se para

deixar o Brasil, depois de ser “aconselhado” a fazê-lo pelos militares no poder. Edu

Lobo partiu para os EUA em 1971, a título de aperfeiçoar-se musicalmente. Para os

artistas consagrados que ficaram no Brasil (Elis Regina, Vinícius de Moraes, e outros),

o regime tratava de estabelecer uma vigilância constante397.

Apesar destes efeitos negativos imediatos, a cena musical brasileira durante os

anos de chumbo, do ponto de vista comercial e criativo, apresentava um quadro

bastante paradoxal. Logo após o AI-5, configurou-se uma crise criativa, entre 1969 e

1970, com relativa retração de público e falta de renovação artística. Em meados de

1971, o quadro começou a mudar. A música brasileira retomava a tendência de

crescimento dentro do mercado fonográfico e do show business. Alguns fatos

ocorridos naquele ano expressam esta tendência398: a televisão voltava a investir em

shows musicais, capitaneados pelo sucesso do programa “Som Livre Exportação”,

com a Rede Globo tentando capitalizar o sucesso dos programas musicais da década

anterior, sem o mesmo êxito399; as casas noturnas voltaram a se abrir para artistas

brasileiros, sobretudo nomes consagrados da MPB, como Elis Regina e Vinícius de

Moraes; as gravadoras, principalmente através da venda de compactos simples e

duplos, voltavam a obter altos lucros com o sucesso de artistas nacionais, como o

novato Ivan Lins, grande revelação do ano. Surgia, também em 1971, a idéia de

montar um “circuito universitário” de música brasileira, mercado de shows que seguiria

vigoroso até 1975, aproximadamente, e que levaria a MPB para várias cidades de

médio porte, sobretudo do interior de São Paulo, de Minas Gerais e dos estados do

Sul. Ainda carecendo da falta de renovação artística propriamente dita, a música


397
NAPOLITANO, M. “MPB sob vigilância: A cena musical vista sob a ótica da polícia política”. Revista
Brasileira de História, 24/47, 2004, p. 103-126
398
Recomeça a corrida para o ouro. Veja, 14/07/1971, p. 40-45
399
SCOVILLE, Eduardo. Na barriga da baleia: a Rede Globo de Televisão e a música popular brasileira
na primeira metade da década de 1970. Tese de Doutorado em História, UFPR, Curitiba, 2008.
227

brasileira retomava um lugar central no mercado, em bases empresariais e industriais

mais sofisticadas, crescendo por volta de 34% em 1972.

Os anos entre 1972 e 1974, confirmariam a tendência de sucesso e

crescimento, com o incremento de uma grande renovação artística. Nestes três anos,

nomes consagrados ressurgiram com álbuns fonográficos antológicos. Entre eles, os

LPs Construção, de Chico Buarque de Hollanda e Transa, de Caetano Veloso, foram

aclamados pela crítica como marcos nas carreiras de ambos. Aliás, o encontro

histórico dos dois compositores mais reconhecidos da MPB, no teatro Castro Alves em

Salvador (novembro de 1972), gerou um LP igualmente antológico que ficou várias

semanas entre os cinco mais vendidos, conforme dados do IBOPE400. A estrela Elis

Regina reencontrava a sua vocação para o sucesso com o LP de 1973, no qual ela

lançava 4 músicas de uma dupla de compositores que entrariam para a história

musical brasileira: João Bosco e Aldir Blanc. Milton Nascimento e o Clube da Esquina,

já reconhecidos pela crítica, finalmente encontravam o caminho do sucesso popular,

com o antológico Clube da Esquina nº 1. Na vertente pop-rock, duas novidades

arrebatadoras de público e crítica: Secos e Molhados e Raul Seixas. No âmbito do

samba tradicional, Martinho da Vila e Paulinho da Viola consolidavam-se no mercado

como exemplos de samba popular e, ao mesmo tempo, refinado. O primeiro, por sinal,

foi um dos grandes vendedores de LPs da década de 1970401. Entre as cantoras, três

carreiras iniciaram sua escalada para o topo do sucesso: Gal Costa (LP Fatal, de

1972), Maria Bethania (Drama 3º Ato de 1973) e Clara Nunes (LP de 1974).

Em resumo, nesses três anos “de chumbo” – 1972 a 1974 - a canção brasileira

como um todo, mas, sobretudo as tendências ligadas ao “gênero” MPB, parecia

superar as barreiras impostas do regime militar, conciliando sucesso de público

principalmente entre as camadas mais cultas e de maior poder aquisitivo e

400
Vendas mensais de discos. Coleção IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.
Arquivo Edgar Leuenroth, UNICAMP, Campinas (SP).
401
Idem.
228

reconhecimento da crítica especializada. No entanto, havia um entrave neste processo

de crescimento: a censura402. Entre 1971 e 1977, a censura esteve muito ativa e

tornou-se um fator estrutural na criação musical e na produção de canções, enquanto

commodities. Conforme Rita Morelli: “o contexto de repressão política vivido pelo país

a partir da edição do AI-5 (...) impediu que a expansão do mercado de discos

ocorresse em benefício imediato da chamada Música Popular Brasileira”403.

No plano da criação, a censura era incorporada como uma espécie de

superego pelo compositor, ensejando um autobloqueio que, em alguns casos,

abortava a canção antes dela nascer. Foi o caso de Chico Buarque, que em 1974

declarou-se um “ex-compositor”, pois tinha chegado à autocensura. Os anos de 1973

e 1974 foram particularmente problemáticos, pois a censura perseguia

sistematicamente compositores que eram consumidos pelo público jovem, como o

próprio Chico, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Raul Seixas, entre outros. Por outro

lado, a censura também prejudicava a produção industrial das canções, e isto ocorria

em um momento promissor da indústria fonográfica, que vislumbrava ótimas

perspectivas de crescimento404. A necessidade de enviar as canções para o crivo dos

censores, a demora de alguns pareceres, a falta de critérios claros para o exercício do

veto, a mudança exigida nas letras (que acabava prejudicando toda a estrutura da

composição), tudo concorria para o atraso e a indefinição de cronogramas de

produção. Muitos álbuns eram planejados de um modo e acabavam sendo gravados

402
Embora a censura existisse há muito, a partir de 1969, o Serviço foi reorganizado para ajudar no
controle da opinião política dentro da lógica de combate à subversão do regime militar. A partir de então
as canções foram alvos preferenciais dos censores e, ao contrário do que a memória social propagou,
não arrefeceu com a abertura a partir de 1975, ocorrendo, entretanto, o incremento da justificativa moral
(que também não deixava de ser controle ideológico) por parte dos censores. O levantamento da
pesquisadora Cecília Heredia demonstra o seguinte nº vetos/ano: 1970 (14 vetos); 1971 (91); 1972 (41);
1973 (120); 1974 (104); 1975 (14); 1976 (138); 1977 (289); 1978 (10); 1979 (32). Notemos que os picos
numéricos se localizam ou nos anos de maior repressão ou nos anos de abertura, indicando,
provavelmente, uma preocupação dos órgãos de censura com a perspectiva de maior liberdade de
expressão, a qual deveria ser controlada. Ver HEREDIA, Cecilia. A censura musical no Brasil dos anos
1970. Relatório de Iniciação Científica, FAPESP, 2010
403
MORELLI, Rita. A indústria fonográfica. Uma abordagem antropológica. Campinas, Ed. Unicamp,
1991, p. 48
404
Entre 1970 e 1976, a indústria fonográfica brasileira viu seu faturamento aumentar 1.375%, conforme
citado em ORTIZ, R. Op.cit.p. 127
229

de outro, prejudicando o planejamento empresarial e financeiro das gravadoras. Os

casos mais notórios foram os LPs Chico Canta (ex-Calabar), em 1973 e o LP Milagre

dos Peixes, de Milton Nascimento em 1974. Nestes casos, a ação da censura

simplesmente destruiu o álbum, vetando a letra da maior parte das canções, o que

obrigou os cantores a improvisar arranjos instrumentais e vocais de última hora.

Nomes em ascensão no mercado, como Raul Seixas e Gonzaguinha tiveram vetada a

maior parte do material projetado para os LPs de 1974. O Festival Internacional da

Canção de 1972, que prometia ser um grande acontecimento musical, após o fracasso

do evento no ano anterior, foi cerceado não apenas pela vigilância policial do regime

militar, mas também pela própria Rede Globo, que tentava interferir nos resultados

finais. O resultado foi um festival tumultuado, com muitos conflitos nos bastidores e no

próprio palco, encerrando um ciclo histórico405.

Além do mais, não era apenas pela censura que o Estado autoritário exercia

sua violência contra a cena musical brasileira. Eram freqüentes os casos de coerção

moral e física dos artistas. Dois casos exemplares, com resultados opostos: Geraldo

Vandré e Caetano Veloso.

Geraldo Vandré era uma das maiores estrelas da canção engajada brasileira,

cuja carreira explodiu entre 1966 e 1968. Cada vez mais ligado a uma espécie de

poética da agressão, na linha das canções épico-revolucionárias latino-americanas,

Vandré viu sua carreira subitamente interrompida com a edição do AI-5. Na música

Caminhando, uma das estrofes foi considerada uma afronta às Forças Armadas: “Há

soldados armados / amados ou não / quase todos perdidos de armas na mão / nos

quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão” . A

música apresentada no FIC de 1968, cerca de um mês antes da edição do AI-5, era

equivalente a uma sentença de prisão. Aliás, ela apenas não foi efetuada porque

405
SCOVILLE, E. Op.cit. p. 53-64; HOMEM DE MELLO, Zuza. Op.cit.
230

Vandré fugiu do país a tempo, numa seqüência de episódios ainda muito obscura406. A

princípio Vandré teria se refugiado no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de

São Paulo, pois era amigo de Abreu Sodré, governador na época. Em fevereiro de

1969, Vandré teria conseguido cruzar a fronteira do Uruguai e, em julho de 1969, o

jornal O Globo o localizou no Chile. Expulso do país por causa da falta de visto,

Vandré iniciou um périplo pela Argélia e Europa, até fixar-se na França por cerca de

um ano e meio. Lá, gravou seu último LP Das terras de Benvirá (lançado no Brasil, em

1973). Em seguida Vandré voltou ao Chile, de onde teria saído em retorno ao Brasil

em julho de 1973, depois do tancazo de junho em Santiago. Esta é uma das partes

mais obscuras da biografia do compositor. Uma nota do Jornal do Brasil407 afirmava

que Vandré teria desembarcado no Brasil, mas teria sido preso, ainda no aeroporto,

ficando incomunicável numa unidade do I Exército e, em seguida, na carceragem da

Polícia Federal em Brasília, durante 33 dias. Em agosto de 1973, os militares teriam

simulado um novo desembarque, com amplo aparato de imprensa, no qual Vandré,

em tom autômato, proferia palavras de concórdia, auto-arrependimento e elogios ao

novo “clima de paz e tranquilidade” trazidos pelo regime militar. Episódios como este,

reforçaram os rumores que Vandré teria sido torturado ou “sofrido lavagem cerebral”,

versões que o próprio artista, em suas poucas entrevistas posteriores tratou de

desmentir. O que fica patente, independente da veracidade destes rumores, é o

resultado da coerção física e mental contra aquele que era uma espécie de lenda viva

da canção engajada brasileira, levando-o a uma espécie de crise política, existencial e

criativa tão profunda que acabou por interromper a sua carreira artística. Depois disso,

Vandré tornou-se um obscuro advogado, voltando a usar o seu nome de batismo

(Geraldo Pedrosa de Araújo Dias), como se matasse simbolicamente o artista lendário

dos anos 1960.

406
ARAUJO, Paulo C. Op.cit, p. 108
407
“Vandré volta e é preso”, Jornal do Brasil, 18-07-1973, p. 5 (apud ARAUJO, P. Op.cit.p.109).
231

No caso de Caetano Veloso ocorreu o contrário. Em que pese o sofrimento

físico e mental do compositor baiano durante a sua prisão e exílio londrino,

amplamente relatados em depoimentos e reportagens biográficas, a perseguição que

a ditadura lhe impôs, acabou, paradoxalmente, resgatando o polêmico Caetano, herói

tropicalista, contracultural e crítico da esquerda ortodoxa em 1968, para o público

estudantil de oposição. Veloso nunca abandonaria o tom polemista em relação aos

valores estabelecidos pelo “gosto médio” (ainda que fossem valores críticos ao

regime). Mas a prisão e o exílio acabaram por diluir a pecha de artista “alienado” que o

perseguia desde os festivais da canção da TV Record, ainda que novas polêmicas o

envolvessem ao longo dos anos 1970. Depois de três meses de prisão, Caetano saiu

do país em julho de 1969, exilando-se em Londres, tentando se lançar no mercado

internacional. Em janeiro de 1971, ele recebeu permissão para ficar um mês no Brasil,

para assistir as cerimônias dos quarenta anos de casamento dos seus pais, com a

condição de não falar em política.

Logo que desembarcou no Rio, ainda na pista de aterrissagem, Caetano foi

separado da esposa e levado para um apartamento no centro da cidade. “Ali me

interrogaram e me ameaçaram por seis horas. Tive muito medo, muita angústia.

Diante de um gravador de rolo ligado (...), os homens que me levaram – mais os que

estavam à minha espera (todos se identificavam como oficiais, mas usavam roupas

civis) – exigiram que eu compusesse uma canção de propaganda da Transamazônica,

a estrada que o governo militar começava a construir e que era um dos símbolos do

Brasil Grande (...) Quando eu já tinha conseguido me desobrigar de compor sobre a

Transamazônica, impuseram as condições de minha estada de um mês: eu teria que

seguir logo para Salvador (...) estava proibido de cortar o cabelo e fazer a barba

enquanto estivesse em território nacional (temiam que parecesse obra deles); não

podia recusar entrevistas com a imprensa, mas teria que dá-las por escrito e submetê-

las à leitura prévia por parte dos agentes federais que me vigiariam durante toda a
232

estadia; finalmente, era obrigado a fazer duas apresentações na TV, uma no programa

do Chacrinha e outra no Som Livre Exportação, o novo musical da TV Globo, para que

‘tudo parecesse normal’ ”408.

A imprensa registrou, sem maiores detalhes de bastidores, a tensa passagem

de Caetano no Brasil, quando ele parecia “entediado” durante a apresentação no Som

Livre e lacônico durante a entrevista coletiva no Rio de Janeiro, pouco antes de

embarcar de volta para Londres, na qual proferiu apenas 11 palavras, retirando-se

abruptamente quando indagado sobre a situação política do País. “Amigos chegaram

a comentar que ele estava com medo de falar inclusive com eles e que o corte da

ausência tinha sido fundo demais”409 .

Portanto, dois mitos musicais, construídos no ano marcante de 1968, exilados

e coagidos pelo regime, viviam (e viveriam) destinos completamente diferentes.

Caetano, ao voltar para o Brasil, em janeiro de 1972, com o LP Transa e com o

sucesso da canção de carnaval “Chuva, suor e cerveja” reencontrou-se com o grande

público. A tumultuada volta de Vandré, no ano seguinte, não significou seu retorno à

cena musical. Neste caso, morreu o artista e ficou o mito. No caso de Caetano, o mito

potencializou a carreira do artista, a qual se consolidaria ainda mais nas décadas

seguintes. É preciso considerar, entretanto que, mais do que duas trajetórias

individuais explicadas pelo imponderável da vida, temos duas sínteses diferenciadas

da função da música num contexto autoritário. A derrocada artística de Vandré e de

sua persona traduzia o colapso de um projeto estético-ideológico calcado na tradição

da música exortativa de protesto político, sem espaço no cenário fonográfico (e

político) brasileiro daquele contexto410.

408
VELOSO, C. Verdade Tropical. São Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 452
409
O Rastro de um mito. Veja, 07/02/1971, p. 52
410
Na entrevista a Geneton Moraes Neto, na Globonews, um dos momentos mais interessantes (e
lúdicos) do artista foi quando ele explicou o porquê do abandono da carreira nos anos 1970, afirmando
que aquele público que o ovacionara no Maracanazinho em 1968, já não existia mais. Talvez seja
233

Para evitar os possíveis problemas e armadilhas preparadas pelas forças da

repressão na chegada ao Brasil, como os que atingiriam mais tarde com Caetano e

Vandré, o retorno de outro ídolo da MPB, Chico Buarque de Hollanda, foi cercado de

muito “barulho”. Esta tinha sido a sugestão de Vinícius de Moraes e assim se fez. Em

março de 1970, seu desembarque no Rio de Janeiro foi marcado por grande presença

da imprensa, de amigos e empresários, dificultando qualquer ação mais contundente

da repressão. Chico Buarque se aproveitava da sua condição de ídolo popular máximo

da MPB, para escapar do cerco da ditadura. Apesar disso, depois de conseguir

ludibriar a censura com a música Apesar de você, lançada em 1970, cujo compacto

vendeu 100 mil cópias antes de ser retirado das lojas411.

No caso de Elis Regina, a relação com o regime militar, no início dos anos

1970, foi mais problemática412. A cantora, que mais tarde seria uma das vozes mais

atuantes da oposição civil na cena musical da “abertura política” (1976-1982),

envolveu-se num episódio polêmico da propaganda ufanista do governo Médici413. No

dia 21 de abril de 1972, dia de Tiradentes, o governo programou um grande evento

televisivo, o Encontro Cívico Nacional. Elis Regina teria ajudado na convocatória para

a festa cívica. O impacto no público de esquerda foi muito negativo, segmento que a

tinha como uma das suas cantoras preferidas. Muitos jornalistas e críticos passaram a

hostilizar a cantora, já famosa pelo seu temperamento explosivo. Percebendo o erro,

Elis Regina passou a explicar sua participação no evento porque tinha sido ameaçada

de prisão, caso não aderisse à proposta do governo. Este também é um ponto obscuro

da história da MPB, pois Marcos Lázaro, seu empresário na época, afirmou em

exagero, mas indica uma percepção das mudanças de sentido e função da canção engajada. Ver a
entrevista na íntegra em http://g1.globo.com/platb/geneton/2010/09/21
411
Para maiores detalhes da trajetória do compositor no exílio e sua volta ao Brasil, ver FERREIRA,
Gustavo A. Op.cit.
412
LUNARDI, Rafaela. Em busca do falso brilhante: performance e projeto autoral em Elis Regina.
Relatório Técnico-Científico de Mestrado - FAPESP, novembro de 2010. Nesta pesquisa de mestrado, a
historiadora Rafaela Lunardi examina a imagem pública e o repertório de Elis entre 1965 e 1976,
analisando a construção de sua persona pública que se confunde com as vicissitudes e impasses da
própria MPB.
413
Para uma análise mais aprofundada da propaganda no Governo Médici ver FICO, C. Reinventanto o
otimismo. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1997.
234

entrevista que Elis participara do Encontro Cívico Nacional porque tinha sido muito

bem paga e não via problemas em participar do evento414.

A relação do regime militar com os músicos, durante os anos de chumbo,

passava, pois, por diversas estratégias: censura, coerção policial, cooptação financeira

e até mesmo adesão espontânea à ideologia propagada pelo regime. No caso da

MPB, porém, o paradoxo era de outra ordem: criada por muitos artistas simpatizantes

da esquerda e consumida por um público crítico ao regime, esta corrente específica da

canção brasileira vivia o paradoxo de ser o carro-chefe da indústria fonográfica em

expansão e a expressão privilegiada de uma resistência civil na área da cultura. No

plano comercial, a indústria fonográfica era beneficiada pelo amplo desenvolvimento

econômico produzido pela política do regime militar, sobretudo após 1968. Apoiado em

amplos segmentos da classe média, e inspirado num discurso modernizante, o regime

militar não podia radicalizar a repressão e a censura aos padrões de consumo desta

mesma classe, seus segmentos intelectualizados e de formação superior que

consumiam uma cultura considerada “subversiva”, em última instância faziam parte da

mesma base social que fornecia os quadros profissionais recrutados pela economia

em expansão415. A MPB foi, em certo sentido, beneficiada por este paradoxo, apesar

dos dilemas e conflitos vividos pelos artistas mais conscientes e autocríticos. Assim, a

cena musical brasileira dos anos de chumbo, sobretudo após 1972, ocupava tanto o

circuito mais alternativo dos espetáculos realizados nos campi universitários, quanto o

circuito massivo da indústria do disco e dos meios de comunicação.

Apesar das perseguições da censura e da vigilância, et pour cause, a canção

engajada brasileira não radicalizou uma poética da agressão, mantendo-se mais

próxima de uma tradição de sublimação lírica do que da tendência exortativa e

panfletária próxima às linhagens mais conhecidas da canção de protesto. Obviamente,

414
Apud. Elis Regina por ela mesma. São Paulo, Martin Claret, 2004 (2ªed.). p.156
415
MICELI, S. “O papel político dos meios de comunicação” IN SOSNOWSKI, S. et al. Op.cit.
235

havia canções mais próximas a esta tradição (caso de Apesar de Você e

Caminhando), bem como canções mais próximas de uma poética experimental e

agressiva aos padrões de gosto estabelecidos, no plano da letra e da música. Ao

contrario portanto de outras áreas artísticas importantes para a esquerda opositora ao

regime – como o teatro e o cinema – nas quais radicalizou-se a chamada “poética da

agressão”. Esta poética não foi resultado direto do novo clima de repressão e

intolerância que reinava no país após 1968, mas foi estimulada por ele. Em parte, a

poética da agressão era uma resposta ao chamado “terrorismo cultural”. Neste novo

contexto repressivo, a poética da agressão, a linguagem alegórica, a expressão de

elementos irracionais e inconscientes do ser humano, a sexualidade agônica e sem

regras passou a dar o tom de inúmeras produções para o teatro e para o cinema,

seduzindo parte dos artistas de esquerda, mesmo sem a aprovação do Partido

Comunista Brasileiro que via nesta poética a manifestação de uma “decadência moral

da burguesia”, travestida de linguagem vanguardista e radical. Por outro lado, os

segmentos jovens ligados à contracultura viam o PCB como reserva de moralismo e

de nacionalismo estético que estaria superado pelos novos padrões de gosto e

comportamento da “era de Aquários”.

MPB, mercado fonográfico e espaço público

Como todo regime autoritário, o governo militar brasileiro sonhava com uma

arte de integração e propaganda. Esse projeto não vingou, e em que pese algumas

tentativas feitas no início dos anos 1970 pela Agência de Relações Públicas do

governo Médici, não houve nenhuma política sistemática e coerente de cooptação de

artistas, para servir à propaganda oficial. Apesar de algumas músicas nacionalistas e

anti-esquerdistas de muito sucesso na época, tais como Eu te amo meu Brasil, Brasil,

Eu fico, Das duzentas pra lá, Protesto ao protesto, entre outras, a cena musical

brasileira dos anos 1970 não foi dominada por nenhum tipo de movimento ufanista, ao

contrário da ditadura getulista do Estado Novo (1937-1945), quando muitos


236

compositores consagrados e talentosos aderiram à ideologia oficial, produzindo

canções que se integraram ao cancioneiro popular canônico, como Aquarela do Brasil

(Ari Barroso) e Brasil Pandeiro (Assis Valente). O que predominou nos anos 1970 foi a

canção engajada que não se limitava, necessariamente, à canção de protesto strictu

sensu, podendo incluir a crônica social, o lirismo subjetivo, a ironia ao sistema e outras

variantes com o objetivo de estimular a consciência social da resistência ao

autoritarismo416

No embate entre o ufanismo cívico estimulado pela cultura oficializada (sem

reconhecimento sociocultural) e a canção engajada adotada pelos segmentos da

sociedade civil críticos ao regime, esta última acabou se impondo. Isto ocorreu não

apenas pela inegável qualidade poético-musical, mas também porque desempenhava

um papel importante na renovação do mercado de canções.

Os catálogos das principais gravadoras que atuavam na cena musical brasileira

passaram a abrir cada vez mais espaço para os artistas que estavam identificados

com a MPB. Ao contrário do que muitas vezes é afirmado em entrevistas de músicos,

produtores e empresários, não se tratava de uma generosa concessão das

gravadoras ao “bom gosto” musical. A MPB, conforme palavras de André Midani417

vinha em trajetória de consolidação desde os anos 1960 e possibilitava para as

gravadoras a criação de um cast estável de compositores e intérpretes altamente

valorizados pelas novas camadas médias, responsáveis pela dinâmica do mercado de

416
Do ponto de vista de Theodor Adorno, toda canção inserida numa estrutura de consumo cultural
realiza a “paz social” e reproduz os “valores” ideológicos dominantes, independente do sentido explícito
da letra e das eventuais intenções críticas dos compositores. A neutralização do valor de uso da obra de
arte, em função do seu valor de troca no mercado, base da teoria adorniana, está por trás desta
argumentação. Mas, ainda que admitamos a validade desta tendência conceitual da obra mercantilizada,
ela não pode ser tomada como regra absoluta para entender todas as situações concretas de objetivação
histórica da canção em contextos determinados. Ver ADORNO, T. “A indústria cultural” IN: Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002. Como contraponto, sem prejuízo da acuidade
normativa do conceito, defendo que sob certas circunstâncias históricas a cultura e arte inseridas no
mercado podem participar diretamente dos processos de construção de hegemonias e contra-
hegemonias, na medida em que formam e conformam estados de consciência social e identidades
políticas. Isto não significa desconhecer as contradições e limites de tais processos. A canção brasileira,
particularmente o campo da MPB, é um exemplo histórico desta tese.
417
“Música Popular em debate (II)”. Jornal do Brasil, 24/09/1969, p.B-1. Ver também a sua autobiografia:
MIDANI, A. Música, ídolos e poder. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008
237

bens culturais como um todo. Em outras palavras, no âmbito do mercado brasileiro, a

MPB possibilitou às gravadoras escaparem à dependência de sucessos musicais

pontuais e isolados. Uma rápida análise do mercado fonográfico brasileiro nos permite

situar melhor a MPB como gênero musical específico dentro desta estrutura e

entender a aparente ambigüidade da inserção social de um tipo de canção de

herança nacionalista e crítica, ao mesmo tempo, produto fundamental para a

consolidação e para o crescimento do mercado comandado por multinacionais, num

processo cultural semelhante a outros países418.

Com a expansão do mercado de long plays no Brasil, acompanhando uma

tendência de consumo mundial, a MPB mais uma vez foi valorizada. A consolidação

da era do long playing de 33 rotações por minuto (LP), aliada à estabilização do cast

de compositores foi paralela, do ponto de vista sociocultural, à consolidação da música

popular como sistema e da MPB como instituição419. O “produto LP” tinha alto valor

econômico agregado e era direcionado para uma faixa de consumo sofisticada e com

significativo poder aquisitivo, permitindo à indústria maior lucro e maior movimentação

de capital e tecnologia. Portanto, a MPB (e alguns outros gêneros, como parte dos

cantores de samba tradicional e de pop-rock), além de ter sido a expressão cultural

dos grupos sociais de oposição ao regime militar, era fundamental para a estratégia da

indústria fonográfica brasileira, situação que perdurou até o início dos anos 1980420.

A importância da MPB para o mercado fonográfico brasileiro, que em 1979 era


421
o sexto maior mercado do mundo , apoiava-se na relação estrutural, embora tensa

do ponto de vista do imaginário, entre “artistas de marketing” e “artistas de catálogo”,

sendo que a MPB fornecia quadros para este último tipo, e estes absorviam a maior

fatia de investimento em produção. Desta lógica deriva o fato dos LPs de MPB serem

418
FLICHY, P. Les industries de l’imaginaire. PUG, Grenoble, 1991
419
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção.
420
DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São
Paulo, Boitempo Editorial, 2000
421
Em 1977 – 47 milhões de unidades vendidas; em 1979 - 64.104 mil unidades vendidas (40.624 de
música nacional). Esta proporção, de 65% à 80% de música nacional para 20 a 35% de música
estrangeira, era uma constante desde o final dos anos 60.
238

mais luxuosos e bem produzidos, em todos os níveis, e dos “artistas de marketing”

receberem maior investimento em promoção422. Além disso, os produtos dos “artistas

de catálogo” tinham maior valor agregado. Os gêneros mais populares, como o samba

e a chamada música cafona, poderiam até vender mais que a MPB, em termos

absolutos. Mas o valor agregado presente nos produtos (long plays e compactos)

situados nesta faixa era muito maior, movimentando mais capitais para o sistema

industrial e comercial em torno da música popular. Até os sambistas mais valorizados

pelo gosto da classe média, base sociológica do consumo de MPB, eventualmente

consumidos por faixas deste segmento beneficiaram-se deste processo, como

Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Clara Nunes, entre outros.

Uma prova da importância da MPB para os sistema comercial-fonográfico da

música no Brasil foi a presença de um elenco estável de compositores ligados ao

gênero em todas as principais gravadoras que atuavam no Brasil. A MPB, a partir da

segunda metade dos anos 1960 até o início 1970, poderia ser considerada um

monopólio da Polygram/Philips, multinacional holandesa, graças à acuidade comercial

e sociocultural de André Midani, um dos mais importantes empresários da época423.

Em 1973, a Phonogram/ Philips tinha cerca de 80% do cast da MPB. Com a crise do

petróleo que explodiu no mesmo ano, cujos efeitos foram imediatos na área

fonográfica na medida em que o produto era uma das matérias primas para fabricação

do disco de vinil, houve uma reorganização do mercado. Enquanto a Philips demitia

uma série de artistas de MPB com menor vendagem (Jards Macalé, Luiz Melodia,

Fagner), outras gravadoras iniciavam um processo de contratação de compositores

ligados ao gênero, processo este que se consolida por volta de 1975, ano-chave para

a “abertura” política.

422
DIAS, Marcia T. Op.cit.
423
Fundada como Sinter 1945; CBD (1955, comprada pela Philips em 1958); Phonogram (1971 – com
selo Philips aparece em 1972) e Polygram (1978) – braço fonográfico da Philips
239

As relação das maiores empresas fonográficas da época e seus principais

contratados também expressam a importância estratégica da MPB para a indústria

fonográfica424:

• Phonogram (MPB) – Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria

Bethânia

• Odeon/EMI - Clube da Esquina, Clara Nunes

• CBS - Roberto Carlos e Fagner, entre outros do segmento regional nordestino.

• RCA – João Bosco, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Ney Matogrosso

(primeira fase solo).

• Continental -Secos e Molhados, Belchior e Walter Franco.

• Sigla / Som Livre - trilhas sonoras de novelas que incluíam inúmeros sucessos

da MPB, fundamental para a conquista do segmento com menor poder

aquisitivo.

• WEA – Gilberto Gil, Elis Regina,

A entrada da WEA (1975) e da Ariola (1979) agitaram o mercado em torno da

disputa de contratos de “monstros sagrados” da MPB, como eram chamados os

artistas que surgiram e se consagraram no contexto dos festivais da canção. A WEA,

quando abriu seu escritório no Brasil em julho de 1976, pretendia ganhar cerca de 8%

do mercado com lançamentos de LPs de artistas brasileiros: “sucesso de vendas de

um artista nacional, quando ocorria, era sempre muito maior do que o sucesso de

qualquer lançamento internacional dado que o artista brasileiro contava com uma faixa

mais profunda de público”425. Entre 1978 e 1980, a gravadora conseguiu contratar Elis

Regina, Gilberto Gil e Ney Matogrosso. A alemã Ariola, por sua vez, tirou Chico

Buarque da Phonogram, causando muito rumor na imprensa da época.

Outro dado que revela a importância da MPB para o mercado fonográfico dos

anos 1970 são os números relativos à audiência das rádios. Uma pesquisa de 1978,

424
Conforme censo de 1977, extraído da Folha de S.Paulo, 25/12/77, apud MORELLI, R. Op.cit., p. 52
425
Idem, p. 52
240

feita em 22 rádios do Rio e de São Paulo, além de indicar a predominância da música

brasileira, revelava quais eram as gravadoras que tinham as músicas mais ouvidas426:

Phonogram (20%), EMI-Odeon (17%), RCA (12%), CBS (11%) e WEA (8%).

O resultado premiava, obviamente, as grandes gravadoras, mas é notável que

as duas primeiras tinham sua marca corporativa associada à MPB e a terceira (RCA)

associada ao samba. Em 1979, auge da popularidade do gênero MPB, as maiores

empresas em montante de faturamento eram as seguintes: Som Livre (25%), CBS

(16%), Polygram (13%), RCA427 (12%), WEA (5%), Copacabana e Continental (4,5%),

Fermata (3%), Odeon/EMI (2%). Esses dados também demonstram a importância da

vendagem em números absolutos de discos. A gravadora Som Livre, emissora sem

elenco próprio, lucrava com vendas de trilhas sonoras de telenovelas, apoiada na

máquina publicitária da Rede Globo. A CBS tinha Roberto Carlos, de longe, o maior

vendedor de discos da história fonográfica brasileira, além de ter conseguido contratar

Raimundo Fagner, que estourou como sucesso popular em 1976 e vivia, então, seu

auge.

O arrefecimento da censura acabou por estimular a demanda por música

popular politizada, principalmente nos segmentos médios da sociedade. A MPB

beneficiou-se desta demanda, pois era sinônimo de música engajada e sofisticada, a

um só tempo. Com a explosão das vendagens de artistas ligados ao campo da MPB, a

partir de 1975, os long-playings mais bem sucedidos deste gênero, em termos de

vendagem, foram os seguintes LPs:

1. Álibi, de Maria Bethânia (1 milhão de cópias)

2. Falso Brilhante, de Elis Regina, alavancado pelo enorme sucesso do show


homônimo.
3. Caça à raposa, de João Bosco.

426
Pesquisa InformaSom/IstoÉ , 84, 2/8/78
427
A RCA foi adquirida em 1977 pela BMG/Ariola
241

4. Meus caros amigos (em junho de 1977, 9 meses depois do lançamento, já


tinha vendido 300 mil LPs)

5. Minas (primeiro grande sucesso de público de Milton Nascimento), seguido de


Geraes e Clube da Esquina 2.

6. Refazenda (1977) e Realce (1978), ambos de Gilberto Gil.

7. Muito , até então o maior sucesso de vendas de Caetano, com tiragem de


cerca de 90 mil cópias.

Os álbuns agraciados com “Disco de Ouro” outorgado pela indústria, entre

1977 e 1979, para aqueles que vendiam, ao menos, 150 mil discos em 1 ano, também

comprovam a consolidação da MPB no grande público. Foram os seguintes428:

Pássaro Proibido (1976), Pássaro da Manhã (1977) e Álibi (1978), todos de Maria

Bethânia; Meus Caros Amigos (1976) e Chico Buarque, (1978), ambos de Chico

Buarque; Pé no Chão (Beth Carvalho, 1978); Canto das Três Raças (Clara Nunes,

1979); Rosa do Povo (Martinho da Vila, 1976); Geraes (Milton Nascimento, 1977).

Chico Buarque, um dos grandes vendedores de discos do cenário fonográfico

brasileiro, relacionava diretamente a nova conjuntura política à alta demanda por

discos e espetáculos de MPB. Em entrevista para um jornal de esquerda, em 1977429,

o compositor disse: “Reconheço que o momento atual talvez seja um pouco mais

quente do que alguns anos, atrás, mais otimista no sentido de que as coisas podem

melhorar. Está havendo uma mobilização muito maior, inclusive você vê isso em

termos de espetáculos públicos. O Milton Nascimento lotando o Maracanãzinho,

lotando três noites o Ibirapuera em São Paulo, em Porto Alegre também. E não é só

isso: espetáculos com artistas menos conhecidos também estão levando muita gente.

Acho que está havendo uma necessidade de reunião muito grande. Claro que o disco

não tem muito a ver com isso que estou falando. Mas acho que é paralelo”.

428
Revista Somtrês, 5, 1979, p. 105
429
Coojornal, Porto Alegre, nº 17, 1977, p.18/19
242

Ao observar as tabelas abaixo, construídas a partir dos dados do IBOPE430,

podemos vislumbrar algumas tendências tendências gerais do mercado fonográfico

brasileiro ao longo da década de 1970, no qual a tendência de popularidade crescente

da MPB fica ainda mais clara. Uma primeira constatação é a de que a cidade do Rio

de Janeiro consumia mais samba do que São Paulo, enquanto esta consumia mais a

chamada “música popular cafona”, ao menos até meados de 1973. À exceção do ano

de 1972, o Rio de Janeiro consumiu mais MPB do que São Paulo. Em 1970 e 1978, o

consumo de MPB no RJ foi o dobro de São Paulo. O consumo de Música estrangeira,

a partir de 1973 (aprox.) concentrou-se mais em trilhas sonoras de novelas e

coletâneas.

430
Boletins de vendas semanais de discos (SP/RJ). Acervo IBOPE, Arquivo Edgar Leuenroth/ Unicamp.
243

TABELA 1: VENDAGEM DE LPs – São Paulo (Número de citações entre os 10


primeiros lugares / ano):

60

50

40

30 Música Brasileira

20 Música Estrangeira

10

0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978

TABELA 2: VENDAGEM DE LPs – Rio de Janeiro (Número de citações entre os 10


primeiros lugares / ano):

70
60
50
40
Música Brasileira
30 Música Estrangeira
20
10
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978
244

TABELA 3: VENDAGEM DE SAMBAS (número de citações entre os 10 primeiros

lugares/ano):

50

40

30
Rio de Janeiro
20
São Paulo
10

0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978

TABELA 4: VENDAGEM DE MPB (número de citações entre os 10 primeiros


lugares/ano):

35
30
25
20
Rio de Janeiro
15 São Paulo
10
5
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978

Na década de 1970, a segmentação do mercado de discos já era uma

estratégia efetivamente operada pelas gravadoras, mas a MPB ainda desempenhava

um papel agregador em termos econômicos e culturais. Conforme Márcia Dias, na

década seguinte, este quadro mudaria431: “Consolidado o poder da grande

transnacional do disco no país, a MPB passou a dividir espaço tanto com segmentos

já constituídos, tais como o regional e o sertanejo e outros emergentes (pop-rock

nacional)”.

431
DIAS, Marcia Tosta. Op.cit., p.75
245

A importância estratégica da MPB na cena cultural, sobretudo no contexto da

abertura política influenciou até a política cultural do regime militar, mais voltadas para

setores onde o mercado era irregular ou pouco integrado, como o teatro e o cinema.

Apesar do tom de protesto e oposição, os nomes menos vendáveis do gênero foram

privilegiados pelo Projeto Pixinguinha, criado sob inspiração de Hermínio Belo de

Carvalho, entre outros produtores, e apoiado pelo Ministério da Cultura/FUNARTE.

Criado em 1977, com duração até 1997, o Projeto Pixinguinha ajudou a promover e a

divulgar a música brasileira em 225 shows, com aproximadamente 3.670

apresentações realizadas a preços populares em todo o país, o que garantiu o acesso

do grande público - cerca de 2.321.000 espectadores, contando com a apresentação

de 540 artistas, 695 intérpretes, 1.770 músicos, 3.300 compositores e 190 diretores

artísticos.

O início da retirada da MPB do foco central da indústria fonográfica,

coincidentemente, deu-se a partir de 1982/83, justamente quando o processo de

abertura política experimentava os seus limites. Não havia, obviamente, relação causal

entre os dois processos – político e fonográfico – mas havia uma sinergia de ordem

sociocultural, com parte dos valores da juventude migrando para outro tipo de

expressão canalizada e articulada pela indústria fonográfica: o pop-rock. Após o

chamado verão do rock, em 1982 e o estouro da banda Blitz em faixas de consumo

antes ocupadas pela MPB, a indústria percebeu o potencial do novo gênero: o pop-

rock brasileiro, cujo processo se consolidaria em 1985. Dois fatores explicam essa

guinada na cena musical brasileira.

Em primeiro lugar, havia uma adequação da faixa etária dos consumidores de

discos no Brasil às tendências internacionais, à medida que a indústria fonográfica era

gerenciada em termos globais. Apesar da preferência estudantil pela MPB, o

comprador de discos brasileiro, nos anos 1970, ainda tinha mais de 30 anos, sendo
246

que a média no mercado mundial era de 13 a 25 anos432. Em segundo lugar, o rock

adequava-se melhor à conjuntura de crise econômica que afetava a indústria

fonográfica, no início dos anos 1980. O rock como commoditie musical e produto

fonográfico final tinha um baixo custo de produção – dez vezes menos, em média, em

relação à MPB433.

Apesar disso, a MPB, mesmo passado o período de sua popularidade e

hegemonia na cena musical brasileira, alavancada pela demanda de arte politizada

após a censura, manteve não apenas o seu prestigio cultural, como também a relativa

importância comercial. No final de 1988, em pleno auge do rock brasileiro, as classes

B e C ainda representavam 60 e 65% do mercado, com forte penetração do gênero

MPB nestes segmentos. Além disso, muitos artistas ligados ao pop-rock assumiam a

MPB como uma das suas fontes criativas, como era o caso de Cazuza e Arnaldo

Antunes, selando uma “aliança” informal de gêneros nos anos 1990, na afirmação de

uma nova hierarquia sociocultural.

Privilegiada pela indústria fonográfica, consagrada pelo público e pela crítica, a

MPB pode resistir às tentativas de controle censório do regime militar, consagrando-se

definitivamente como uma espécie de instituição sociocultural brasileira, tão elástica

que, com o tempo, tornou-se difícil defini-la a partir de um ponto de vista unicamente

estético-musical434. As tentativas de definição estrita da sigla MPB tem acompanhado

as vicissitudes de gosto da classe média brasileira e as tendências estimuladas pelo

mercado fonográfico. Não é por acaso que, no início dos anos 1970, a crítica

especializada cunhou o termo “tendências” para dar conta da pluralidade de estilos e

influências musicais do campo da MPB. Num amplo leque que ia da tradição do

samba à vanguarda pop, a cena musical brasileira tornou-se um pólo de convergência

432
conforme declaração de André Midani apud DIAS, Marcia T. Op.cit., p. 82
433
Idem, p.85
434
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. .
247

de uma esfera pública435 progressista que vivia uma situação paradoxal: cerceada

pelo conservadorismo do regime militar, mas, ao mesmo tempo, formadora de opinião

em outros grupos sociais, além de ter o poder de definir a hierarquia sociocultural do

país, definindo o limite entre o “bom” e o “mau” gosto. A MPB sob o autoritarismo era

uma forma de articular as esferas pública e privada, tornando-se um pólo privilegiado

na “rede de recados”436 que fazia circular as mensagens da resistência democrática em

circuitos sociais diversos. Além de ser o centro de uma cumplicidade política

construída na negação da ditadura militar, a MPB acabou por servir a uma espécie de

educação sentimental voltada para a reconstrução de uma cultura política

democrática, que irá ocupar a cena pública brasileira, sobretudo à esquerda, no final

da década de 1970.

No plano estético-ideológico, a canção engajada dos anos 1970, situada dentro

das correntes identificadas pela critica como sendo parte do guarda-chuva da MPB,

dividiu-se em dois períodos bem demarcados de expressão: (i) entre 1969 e 1974, a

“canção dos anos de chumbo”; (ii), a “canção da abertura”, entre 1975 e 1982. Dentro

de cada grande conjunto, por outro lado, abrigava-se uma pluralidade de expressões

poéticas e musicais.

As poéticas de resistência na cena musical brasileira: a canção dos anos de

chumbo

No Brasil, antes mesmo da MPB surgir nos anos 1960, a canção já tinha

consolidado seu lugar no mercado de bens culturais e na vida cultural cotidiana dos

brasileiros. As questões sociais e políticas sempre estiveram presentes na pauta de

temas abordados pela canção437. Foi dentro desta tradição, e não apenas limitada à

435
Para um aprofundamento da relação entre a música, os compositores canônicos e a esfera pública ver
CHANAN, Michael. From Haendel to Hendrix. The composer and the public sphere. London, Verso, 1999
436
WISNIK, José Miguel. “O Minuto e o Milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez” IN:
Anos 70 / Música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1980
437
NAPOLITANO, M. Síncope das idéias: a questão da tradição na MPB. São Paulo, Ed. Fundação
Perseu Abramo, 2007
248

uma tradição de exortação política strictu sensu que a MPB dos anos 1970 realizou a

chamada “rede de recados” contra a ditadura, recado este que não apenas

expressava a consciência politizada da oposição civil, mas também os desejos

reprimidos das coletividades que, ao tornarem-se canção, tornam-se linguagem e

consciência. Para José Miguel Wisnik438, o “recado” da música popular em tempos de

ditadura não é nem ordem, nem palavra, nem “palavra de ordem”, “mas uma pulsação

que inclui um jogo de cintura, uma cultura de resistência que sucumbiria se vivesse só

de significados e que, por isso mesmo, trabalha simultaneamente com os ritmos do

corpo, da música, da linguagem (...) a música popular é uma rede de recados, onde o

conceitual é apenas um dos seus movimentos: o da subida à superfície. A base é uma

só e está arraigada à cultura popular: a simpatia anímica, a adesão profunda às

pulsações telúricas, corporais, sociais que vão se tornando linguagem”.

Na canção dos anos de chumbo a expressão que predominou foi a de uma

espécie de contraviolência da sociedade civil frente ao terror de Estado, operação que

se traduzia na sublimação do medo e na manutenção da palavra em circulação numa

sociedade ameaçada pelo silêncio da censura e pela voz hegemônica do poder.

Naqueles anos, ouvir uma canção, ainda que nos limites de um espaço privado, era

um ato de consciência cívica e crítica, através do qual realizava-se uma espécie de

ritual de pertencimento à parte crítica da sociedade civil e negação dos valores

inculcados pelo regime.

No campo hegemônico da MPB, a poética de agressão, e seus corolários, não

chegaram a dominar a cena. Havia inúmeros compositores, consagrados e

emergentes, que se aproximavam da linguagem das vanguardas, comportamentais e

estéticas, incorporando temas polêmicos e procedimentos de criação e performance

visando chocar o gosto médio estabelecido. Entretanto, a maioria dos compositores e

cantores identificados com aquilo que a MPB significava, herdeiros da cultura política

438
WISNIK,, J. Miguel. “O Minuto e o Milenio ou, por favor, professor, uma década de cada vez” IN:
Op.cit, p.8
249

nacional popular dos anos 1960, ainda filiava-se aos gêneros e poéticas mais

tradicionais da canção popular. Estas duas tendências que foram chamadas pela

imprensa da época de “tendência Caetano” e “tendência Chico”, não eram, afinal, tão

dicotômicas. O espetáculo, realizado em 1972, que reuniu os dois compositores em

Salvador (BA), e gravado em LP, é um dos eventos que sinalizam esta convergência

de opostos que o guarda-chuva da sigla MPB, devidamente institucionalizada,

propiciava.

Ainda que presente na cena musical, em alguns casos de forma contundente, a

poética da agressão como contraviolência simbólica à violência política do Estado não

predominou no campo da MPB. O principal movimento que a defendia, o Tropicalismo,

experimentou um refluxo no início dos anos 1970, ainda que seu legado experimental

e sua estética da abertura fossem incorporados definitivamente pela MPB. Nesta, o

discurso poético-musical lírico quase sempre predominava, neutralizando imagens

violentas e agressivas, induzindo a audiência mais à emoção e à catarse do que ao

choque e ao estranhamento. Além desses aspectos, a MPB desde 1965, fazia parte

da construção do pathos (e do ethos) da resistência civil ao regime militar implantado

no ano anterior, consolidando através de códigos musicais, imagens poéticas, atitudes

públicas e performances artísticas dos seus astros, mas que promoviam um

sentimento de pertença (belongingness) à “comunidade da resistência”, a MPB

amplificava suas mensagens para segmentos sociais mais amplos que a audiência

“jovem-universitária-de-esquerda”439.

Ainda que houvesse uma postura de choque e ruptura com as convenções do

“bom gosto” por parte de alguns compositores tropicalistas e pós-tropicalistas, típicas

da tradição das vanguardas históricas e da contracultura, tal postura estava mesclada

à releitura e incorporação da tradição da música popularizada pelo rádio, como o

439
Esta capacidade de síntese e amplificação das mensagens políticas, pela via musical, quando a
canção e o movimento político-social se encontram historicamente, já havia sido notada por Ron
Eyerman, no seu estudo sobre a canção norte-americana (EYERMAN, R & JAMISON, A. Music and social
movements. Mobilizing Traditions in 20th. Century. New York, Cambridge Univ. Press, 1998, p 119).
250

samba e o baião. Este, me parece, foi o caso de Gilberto Gil, de Jards Macalé, dos

Novos Baianos e de Luiz Melodia440. Já as obras de Tom Zé e Walter Franco, por

exemplo, eram marcadas por uma opção nítida pela linha da ruptura e pela busca do

choque estético, dialogando com as tendências mais radicais da experimentação

musical e poética. Caetano Veloso, por sua vez, movimentava-se nas duas linhas de

criação – a da tradição e a da ruptura – ora sintetizando-as (como nos LPs Transa, de

1972 e Jóia, de 1975), ora realizando trabalhos completamente experimentais ( LP

Araçá Azul, 1973) ou situados na tradição lírico-melódica consagrada pelo gosto

médio (LPs Chico e Caetano Juntos e ao Vivo, 1972; Qualquer Coisa, 1976).

No grupo mais convencional de compositores identificados com o mainstream

da MPB, a música dos anos de chumbo foi marcada pela reafirmação dos gêneros e

linguagens musicais tradicionais (principalmente o samba, a toada e a canção

romântica) e pela poesia de tradição lírica, de cunho narrativo, descritivo ou intimista,

altamente elaborada dentro de cânones literários. No plano da visão de mundo,

reafirmava-se, em linhas gerais, o humanismo universalista temperado por valores

democráticos, lastro histórico da arte engajada de esquerda. Estas seriam as

características básicas, guardadas as diferenças de temas, estilos e adensamento

poético-musical, de Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Luiz

Gonzaga Júnior, Paulo César Pinheiro, Taiguara, Milton Nascimento (e parceiros),

Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, entre outros.

Entretanto, a cena musical brasileira dos anos de chumbo não era ocupada

apenas pelo pós-tropicalismo musical e pela MPB mainstream. O início dos anos 70

assistiu a consolidação da black music brasileira (Tim Maia, Jorge Ben) e do pop-rock

(Raul Seixas, Secos e Molhados, Mutantes). A vertente pós-tropicalista tinha mais

afinidade com a black music e o pop-rock. Já os nomes do samba mais tradicional, tal

440
Destacamos também, nesta corrente, os poetas-letristas: José Carlos Capinam, Torquato Neto,
Galvão e Wally Salomão.
251

como praticado pelas classes populares e pelas escolas de samba do Rio de Janeiro,

tinham mais afinidade com o mainstream da MPB e, freqüentemente, se confundiam

com ela (Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Beth Carvalho).

Na segunda metade dos anos 1970, quando se evidenciou um novo momento

na agenda política do regime, estas quatro vertentes amplamente valorizadas pelo

gosto da classe média jovem e intelectualizada (MPB mainstream, vanguarda pós-

tropicalista, setores da black music e do pop-rock e samba tradicional) convergiram

para uma espécie de “frente ampla musical”, expressando o leque de valores estéticos

e ideológicos da audiência crítica ao regime militar. Apesar das diferenças de gosto e

apreciação musicais, a audiência de classe média que representava o segmento de

consumo mais valorizado do mercado fonográfico brasileiro, acabou por exigir que o

mercado incorporasse todos aqueles estilos e gêneros como variantes da MPB,

consagrando definitivamente a expressão como uma tendência musical plural e

eclética, mais indicativa das hierarquias socioculturais do que um gênero musical

específico. Ao mesmo tempo, as audiências massivas e populares viam-se alijadas

deste processo, com os gêneros de suas respectivas preferências musicais tornando-

se a negação do sentido ideológico e da valoração estética que a MPB pretensamente

veiculava. Este foi o caso do “sambão jóia”441, das baladas e boleros românticos

tradicionais, das músicas ditas “regionais” e da “canção cafona”, subproduto do iê-iê-iê

dos anos 1960442.

Aqui nos importa analisar quais as variáveis que a canção dos anos de chumbo

(sobretudo aquelas identificadas com a MPB mainstream e a vertente pós-tropicalista)

441
O nome de “sambão-jóia” foi dado pela crítica musical para qualificar o samba simplório, pleno de
lugares-comuns (poéticos e musicais) e timbragem homogeneizada em estúdio, produzindo canções de
fácil assimilação, nos planos poético, rítmico e melódico.
442
A “canção cafona” era considerada pela crítica o nível mais baixo da cena musical brasileira, produzida
e consumida pelos extratos mais pobres das classes populares das grandes e médias cidades brasileiras.
Sua estrutura melódico-harmônica era a mais simples possível (geralmente composta em tons maiores e
cadências pré-estabelecidas no cancioneiro popular), seus arranjos eram padronizados, com muitas
cordas, metais e, eventualmente, algum toque pop (guitarra e bateria). As performances vocais dividiam-
se em dois tipos básicos: Ora predominavam as vozes anasaladas de pequena tessitura, nítida imitação
de Roberto Carlos, ora predominavam as vozes operísticas, da muita potência mas sem recursos
sofisticados de interpretação vocal. Ver ARAUJO, P. C. Op.cit.
252

desenvolveu ao expressar as sensibilidades coletivas e os imaginários sociais

produzidos pela experiência do autoritarismo e da violência política do regime. A

poética da agressão não predominou nestas variáveis da MPB, embora tenha sido um

recurso constante na vertente pós-tropicalista. A explicação para esta característica

específica da canção engajada brasileira, em contraste com outras áreas artísticas,

pode ser encontrada em três fatores. Em primeiro lugar, a força agregadora e

atenuante do mercado fonográfico no Brasil e sua relação com a MPB. Em segundo

lugar, a predominância de uma tradição cancionista muito consolidada e já consagrada

pela audiência popular massiva. E, last but not least, a função específica da música

engajada no sistema de artes brasileiro. Cada característica, acima mencionada,

exigiria um exame detalhado e acurado. O que importa fixar, é que a combinação

destes três vetores contribuiu para matizar a poética da agressão na canção dos anos

de chumbo.

O mercado fonográfico, ao mesmo tempo em que abria um vasto campo de

possibilidades profissionais e de expressão para os cancionistas, impunha certos

limites às experimentações chocantes e agressivas que, no teatro e no cinema,

colocavam em cheque os valores do público (inclusive o de esquerda). A força da

tradição da música popular brasileira, cuja linguagem e gêneros vinham desde os anos

1930, não foi colocada radicalmente em cheque no grande processo de renovação

musical dos anos 1960. Ao contrário certas vertentes da canção tradicional (samba,

marcha, choro) e certos compositores e cantores do passado (Noel Rosa, Dorival

Caymmi, Ari Barroso, Orlando Silva, Carmem Miranda, Lupiscínio Rodrigues, Wilson

Batista, Geraldo Pereira e outros) foram resgatados, atualizados e valorizados pela

Bossa Nova, MPB e Tropicalismo. Assim, a canção engajada desempenhou, na

conjuntura do autoritarismo político, uma função catalisadora no sistema443 de artes do

443
Quando uso a expressão “sistema” tenho em mente a definição básica de Antonio Cândido que
pressupõe a integração de artistas, empresários, técnicos e público, num conjunto conflitante e permeado
por debates e tensões, ligadas às estruturas sociais mais amplas. Esta categoria permite maior
flexibilidade na análise da articulação entre obras, autores e sociedade, analisando o adensamento de
253

Brasil, na medida em que representava a linguagem artística mais consolidada junto

ao grande público consumidor de cultura e, ao mesmo tempo, construía um termo

médio de expressão e gosto musicais que a permitia transitar entre tradição e ruptura,

sem sucumbir a um possível impasse, fruto desta dicotomia. É bom lembrar que o

primeiro momento tropicalista (1968) tentou, justamente questionar este “termo médio

da canção”444, através do esboço de uma poética e performance agressivas e irônicas,

mas que acabaram assimiladas por um mercado fonográfico em expansão, aberto a

um certo grau de experimentalismo

Parece haver uma particularidade na canção engajada brasileira, identificada

com a sigla MPB, em sua relação com o tipo de canção historicamente dominante na

história da música popular de natureza “sentimental/romântica”445. A tradição da

canção romântica, em si mesma, não era valorizada pela juventude universitária e pela

classe media intelectualizada, pelo contrário, era vista como uma expressão de

“alienação” do artista, pecha que nos anos 1970 implicava em uma determinada forma

de inserção no mercado. Entretanto, paradoxalmente, a canção romântica poderia ter

boa aceitação neste segmento de consumo quando composta ou interpretada por

artistas valorizados pela sua politização, sofisticação poético-musical ou compromisso

com o espírito de oposição ao regime. Chico Buarque, Gonzaguinha, Elis Regina,

Maria Bethânia, Paulo César Pinheiro, Ivan Lins, entre outros, gravaram inúmeras

canções que poderiam ser classificadas como românticas e nem por isso eram

tachados de alienados, anátema comum a artistas de repertório unicamente

romântico, como o próprio Roberto Carlos, os cantores populares da música cafona ou

os remanescentes da “velha guarda”. Em muitos casos, certas canções românticas

uma tradição e o dialogo entre as obras/autores. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira:


momentos decisivos. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1981 (6ªed.).
444
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria.
445
Na verdade, o paradigma estético e temático do formato “canção”, tal como consagrado nos mercados
fonográficos do século XX, parecem derivar de duas matrizes: as canções do teatro musicado anglo-
americano e as cançonetas européias extraídas de árias de óperas e operetas. O entrecruzamento com
novos ritmos nas Américas, produzidos no contato com a “diáspora africana”, deu origem aos grandes
gêneros-matrizes do século XX: jazz, blues, samba, rumba e tango. Sobre a gênese histórica da forma
canção Ver MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Open University Press, 1990, p. 11-16
254

dos anos 1970, como Gota D´água (Chico Buarque), Valsinha (Chico Buarque), Não

dá mais pra segurar (Gonzaguinha), entre outras, acabavam tendo conotação política

ao terem o sentido reprocessado no plano da recepção musical. Por outro lado,

muitas canções engajadas que veiculavam a crítica política, a crônica social, a

denúncia social e os novos valores comportamentais o faziam sob um clima de lirismo

e de afirmação da subjetividade446.

As poéticas alegóricas (baseadas na fragmentação do fluxo de consciência

expressado por um sujeito cindido), ou as poéticas desconstrutivas e agressivas (que

buscavam problematizar o próprio fluxo da linguagem), quando presentes, eram

muitas vezes contrabalançadas por um discurso musical mais convencional, no plano

melódico-harmônico, rítmico ou timbrístico. Este aspecto da canção, mesclando

poéticas verbais de choque e agressão com elementos musicais estabilizados no

gosto médio da audiência, parece ser uma peculiaridade do campo musical brasileiro.

No teatro e no cinema havia uma tendência mais orgânica de expressão e, neste

sentido, mais coerente, pois as convenções estéticas formadoras da obra, em suas

várias dimensões (encenação, narrativa, temática) e linguagens (visuais, verbais,

musicais), eram colocadas em xeque pelas vanguardas.

Ao manter-se dentro de um gosto médio, o mainstream da MPB acabou por

ganhar uma flexibilidade expressiva perfeitamente articulada ao mercado. O

experimentalismo poético e musical que marcou determinadas carreiras, como Tom

Zé, Caetano Veloso, Walter Franco, Jards Macalé, Luiz Melodia, entre outros, tinha um

nicho significativo no mercado, sobretudo no início da década de 1970. O pacto com o

público só ameaçava romper-se quando o artista radicalizava o experimentalismo

musical, como nos LPs Revolver e Ou não (Walter Franco) ou Araçá Azul (Caetano

446
Sobre o papel da poesia em contextos de resistência sob a égide da afirmação de uma subjetividade,
ver BOSI, Alfredo. “Poesia-resistência”. O ser e o tempo na poesia. São Paulo, Cia das letras, 2008, p.
163-227. Bosi analisa a poesia literária, mas suas inferências podem servir para entender o papel das
letras de MPB, dado o componente literário de muitas letras das canções engajadas. Ou seja, as letras,
independente de serem “poesia” ou não, desempenhavam uma função poética.
255

Veloso), para citar os casos mais famosos e radicais no campo da experimentação

pós-tropicalista. Nestes dois casos, letra, estrutura musical, arranjos, performance

instrumental e vocal convergiam para uma estratégia de choque e estranhamento

totais. Já os primeiros LPs de Jards Macalé (1972) e Luiz Melodia (Pérola Negra,

1973), articulavam experimentalismo poético, performances ousadas e provocativas

com tradições musicais estabelecidas dentro da linguagem do pop e do samba.

Nestes casos, mantinha-se o predomínio do centro tonal da melodia e os padrões

timbrísticos consagrados, ainda que levados aos limites da dissonância e da

estridência. A pecha de “malditos” que acompanhou estes dois compositores, deve-se

muito mais às suas atitudes diante das fórmulas fáceis de sucesso da MPB do que a

algum tipo de experimentalismo radical ou ruptura com a forma-canção. Talvez a única

exceção a esta tendência tenho sido Tom Zé, que apesar de amplo espaço na

imprensa, logo após a sua vitória no Festival da TV Record de 1968, não conseguiu

impor-se na cena fonográfica, sendo redescoberto apenas no final da década de 1990.

No seu caso, houve maior articulação entre a expressão poética agressiva e um

peculiar experimentalismo musical.

Uma das características centrais das canções dos anos de chumbo, era a

gama de expressões poéticas que procurava dar conta de uma experiência traumática,

tendo em vista a agitação político-cultural da década anterior. O controle,

esvaziamento e repressão da esfera pública acabavam por gerar a falta de perspectiva

na esfera privada. Este foi um dos resultados do corte abrupto com o “espírito 68,

provocado pelo AI-5 e pelo novo patamar de violência policial e repressão política do

regime militar brasileiro. Não se tratava mais de cantar a revolução (política ou

comportamental), ou de aprimorar o nível de conscientização popular baseada na

velha aliança de classes sociais preconizada pela esquerda nacionalista. As canções

do início dos anos 1970 caracterizavam-se pela denúncia do “vazio” cultural e

existencial e pela manutenção de um espírito lírico de contestação, por onde se


256

afirmavam os valores democráticos da resistência civil ao regime. São canções de

resistência e não canções de exortação que traduzem a sensação de imobilidade e

derrota, ainda que recoloquem a esperança em dias melhores. Daí, talvez, a

predominância da poética da sublimação lírica.

As letras das canções da primeira metade da década são plenas de metáforas

que procuram expressar o sentido da experiência traumática da repressão e a

necessidade da sobrevivência de certos valores coletivos. Numa breve análise, a partir

de um corpus restrito, mas significativo, de canções da época, nota-se a

predominância de metáforas carregadas de negatividade e amargor que tentavam

expressar os efeitos da violência política na vida social e política. Por outro lado, elas

evocavam, por oposição, imagens positivas, plenas de sentido político afirmativo:

• vazio (plenitude, polaridade amor/dor) – Copo Vazio (Gilberto Gil);

• silêncio (música/voz) – Me deixe mudo (Walter Franco); Cálice (Chico Buarque

/ Gilberto Gil); Bárbara (Chico Buarque/Ruy Guerra)

• noite (dia) – Nada Será como antes (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos);

Pesadelo (Paulo Cesar Pinheiro/Maurício Tapajos)

• medo (coragem) – Eu quero é botar meu bloco na rua (Sérgio Sampaio);

Pesadelo ; Primavera nos dentes (João Ricardo / João Apolinário); Acorda

Amor (Chico Buarque)

• controle (liberdade) – Apesar de você (Chico Buarque); Comportamento Geral

(Gonzaguinha)

• solidão (encontro) – Vapor Barato (Wally Salomão / Jards Macalé);

• imobilização (ação, viagem) – Nada será como antes; Manoel o Audaz

(Toninho Horta/ Fernando Brandt); Bala com Bala (João Bosco / Aldir Blanc)

• fantasia / realidade: Bala com bala; Cálice ; Ouro de Tolo (Raul Seixas)
257

• tristeza / alegria de Carnaval – Eu quero é botar meu bloco na rua; Apesar de

você; Quando o carnaval chegar (Chico Buarque); Comportamento Geral

(neste caso, o “carnaval” significa alienação, e não festa libertária)

A “canção dos anos de chumbo”, além de ser veiculo para a circulação de

imagens que configuravam a experiência do medo e da repressão política, foi

importante para a disseminação de valores da oposição civil ao regime militar,

afirmando a “coragem civil” da resistência447. Estes valores disseminaram os ideais de

“contraviolência” simbólica, contraponto ao terrorismo de Estado. Para o fechamento

do “círculo do medo” imposto pelo autoritarismo era fundamental a cumplicidade do

silêncio, e este, por sua vez, era desafiado pela voz coletiva que emanava da canção.

Resistência, crítica e exortação eram motes poéticos que se combinavam como

estratégias da oposição civil que esta se mantivesse no espaço público, ou melhor,

para manter vivo o próprio espaço público, vigiado sistematicamente pela repressão e

pela censura. A resistência pode ser vista como a operação de ligação com uma

determinada memória de valores e lutas, herdados do passado recente. A crítica,

ainda que sutil e indireta, mantinha a consciência em guarda contra o conformismo e o

derrotismo. A exortação, função tradicional da canção engajada, apontava para

possibilidades e formas de ação política efetiva.

Nos termos da canção dos anos de chumbo, estas três categorias de

posicionamento frente ao regime militar assumiam várias formas e imagens poético-

musicais: resistência como recusa do establishment, como afirmação dos valores

negados pela repressão política, como pequenos atos de revolta individual contra o

sistema; critica como negação dos valores ideológicos e políticos oficiais, seja como

desconstrução das palavras-de-ordem e slogans do regime militar, seja como

negação do modo de vida endossado pela elite conservadora no poder. A exortação,

por sua vez, quase sempre aparecia nas letras de forma sutil ou metaforizada pois, se

447
KEDWARD, E. Op.cit.
258

o regime militar tolerava certa dose de afirmação da resistência simbólica, era

implacável com atitudes ou expressões exortativas, que estimulassem ações coletivas

de luta contra a ordem política e social448.

As poéticas de resistência na cena musical brasileira: a canção da

abertura

Por volta de 1976, o período de maior violência política parecia superado, mas

a aguardada era de liberdade ainda não havia começado. A tensão entre a canção

como veiculo das atitudes críticas e militantes e a canção como veiculo de lirismo ou

puro entretenimento marcou cena musical da “abertura política”. A ansiedade da

cidadania por uma nova era de liberdade, que todavia ainda não havia chegado

plenamente, transformava-se em sensação de iminência, logo captada pela canção. A

canção engajada do período da abertura política anunciava o futuro próximo (a

perspectiva do encerramento do regime autoritário) e expurgava os traumas do

passado recente (a violência direta dos anos de chumbo).

Quando a iminência de um novo tempo se anunciou, apesar do regime militar

ainda continuar forte, a canção popular foi uma das primeiras expressões a

representar simbolicamente a nova era, onde o prazer poderia voltar a ter vez e a

sublimação poética da violência e da opressão politica poderia ceder espaço à

expressão poética da paz, justiça social e liberdade. Neste sentido, a canção aponta

para uma “promessa de felicidade”, enfatizando o limiar de uma nova utopia. Este

entre-lugar marcará a “canção da abertura”. No período que vai de 1976 a 1982, ou

seja, a fase de consolidação da agenda oficial da abertura ou distensão política

prometida pelo governo do general Ernesto Geisel, os artistas ligados à MPB

448
Neste ponto, vale lembrar que em 1968, antes mesmo do acirramento da censura do regime, a crítica
de esquerda apontou o “dia-que-virá” como a figura poética predominante da canção engajada brasileira
(ou Moderna MPB), com implicações políticas imobilizadoras, tendo em vista que não conseguia exortar
uma ação efetiva no ouvinte no seu presente imediato. Ver GALVÃO, Walnice. “MMPB: uma análise
ideológica”. Saco de Gatos. São Paulo, Duas Cidades, 1976, 93-119.
259

confirmaram-se como arautos de um sentimento de oposição, como as batidas de um

“coração civil” que teimava em pulsar.

Gilberto Gil foi um dos primeiros a perceber e expressar a possibilidade desse

novo tempo: Falei do tempo / Falei do fogo / Falei da dor / Agora calo / Calço o chinelo

/ Reparo a flor. Andei Correndo / Andei sofrendo / Andei demais / Agora deito / Olho

pro teto / Penso na paz (Deixei recado, Gilberto Gil, 1974). Outra das canções-

emblema deste tempo foi O que será (à flor da terra), de Chico Buarque e Milton

Nascimento, canção gravada no primeiro no LP Meus Caros Amigos, de 1976.

Diferente das canções mais paradigmáticas dos anos de chumbo, O que será demarca

a ansiedade por uma nova era de liberdade que, por não haver chegado ainda,

transformava-se em iminência, em imperativo não apenas ético e político, mas

também em expressão de uma paixão coletiva reprimida que, nos termos da canção,

assumia uma configuração erótica.

O paradoxo causado pelo fato de ser uma canção de intenções politizantes,

críticas, e um produto fundamental na renovação da indústria da música no Brasil, não

passou despercebido na publicidade da época, um termômetro de valores presentes

nos circuitos de consumo, cuja ironia se apresenta como sintoma dos valores e

contradições do momento histórico. Em uma propaganda de aparelho de som da alta

tecnologia, publicada na revista IstoÉ, em 1977 (23/6/77) lia-se a seguinte chamada:

“Para ouvir canções de protesto contra a sociedade de consumo, nada melhor do que

um Gradiente financiado em 24 vezes”

A provocação publicitária captava a condição paradoxal da música popular

brasileira na década de 1970 marcada pelo autoritarismo e pela modernização

capitalista: foco da resistência e eixo da identidade cultural de uma oposição civil ao

regime militar, as canções também eram commodities valorizadas pela indústria da

cultura no Brasil.
260

Os artistas percebiam a força do mercado, não sem alguma dose de má

consciência, fruto do conflito de fazer uma canção que, apesar de se querer “popular”,

era consumida pelos extratos sociais com maior poder aquisitivo. Em entrevista dada

ao suplemento dominical da Folha de São Paulo, em 1978, Chico Buarque comentou:

O consumo está cada vez mais concentrado. No mercado da música, a mesma coisa:

meus discos hoje vendem muito mais que antes. Para os produtos mais sofisticados,

realmente existe um mercado cada vez maior, isso é verdade. Basta ver os cigarros

que são lançados todos os dias com filtro de ouro, filtro platinado, para essa mesma

parcela da população.

A perspectiva da abertura política sugeria novas possibilidades de expressão

para as artes engajadas no circuito massivo. Se a concentração do mercado era um

problema estrutural, na medida em que a MPB tinha seu espaço privilegiado de

circulação no mercado fonográfico e de espetáculos, cada vez mais capitalizados, a

possibilidade de expressar idéias e críticas ao sistema sem ser sistematicamente

perseguido pela censura também animava os artistas. Em outra entrevista dada à

época449, Chico Buarque comentou as conquistas e ansiedades da sociedade civil:

“Qualquer música minha não vale uma fila do feijão. Eu não sou a pessoa mais

credenciada para analisar a situação toda, mas acho que a coisa está preta mesmo e

do jeito que está não tem muita saída. Eu vejo na minha área o pessoal muito

animado, com muita disposição para fazer coisas, acreditando que as coisas vão

melhorar. Acontece que essa minha geração já viveu outra época de euforia muito

grande também em 68 e vai sempre com o pé atrás(...)E de uma certa forma é preciso

reconhecer que em termos de censura, principalmente a censura à imprensa, nós

estamos melhor do que há três ou quatro anos atrás”.

Alguns estilos pessoais, de autoria e performance, podem ser nitidamente

reconhecidos na cena musical da abertura. Entre os compositores, temos a presença

449
Coojornal nº 17, , Porto Alegre, 1977, p.18/19
261

de algumas idéias-força sintetizando as preocupações poéticas e políticas de suas

obras. Em Chico Buarque a política surge como uma condição existencial e perpassa

todas as esferas da vida privada e publica. Em Milton Nascimento e em seus principais

parceiros poéticos (Fernando Brandt, Ronaldo Bastos, Márcio Borges) o lirismo e a

subjetividade se articulam ao engajamento, manifestando-se na forma do encontro

interpessoal e numa afirmação humanista e afetiva. Em Gonzaguinha, a “boa palavra”,

imperativo ético que deve marcar a consciência política explode numa poesia agônica,

beirando o melodrama. Ivan Lins e Vitor Martins consagraram-se principalmente pela

capacidade de criar figuras poéticas, alegóricas ou metafóricas, que sintetizaram a

experiência, individual e coletiva, sob o autoritarismo (Nos dias de hoje, Começar de

Novo). Moraes Moreira, ex-membro dos Novos Baianos, nome freqüentemente

esquecido quando se fala em canção engajada, criou verdadeiras elegias à alegria

popular, como base de uma sabedoria e de uma legitimidade que não poderiam ser

barradas pela repressão. Aldir Blanc e João Bosco, donos de uma das obras mais

contundentes (e consistentes) dos anos 1970, fundiram crônica social e poesia, para

retratar o cotidiano das classes populares sob o autoritarismo, afirmando ora a

dignidade, ora a capacidade de ironia crítica do cidadão comum (Siri recheado e o

cacete, Samba plataforma, Tiro de Misericódia). Por outro lado, souberam recriar o

tom épico para retratar as grandes lutas populares contra o poder opressivo. Paulo

César Pinheiro e Maurício Tapajós ora utilizaram o sussurro como arma poética, ora

também foram para o estilo épico e contundente, embora mais alegórico que a dupla

Bosco/Blanc (como em Nação e Canto das Três Raças).

Outro grupo de compositores pautou-se pela reflexão musical e poética sobre

os dilemas da modernidade brasileira e as tensões entre o arcaico e o moderno,

potencializadas entre os anos 1960 e 1970. Caetano Veloso e Gilberto Gil refletiram

sobre a alteridade, a modernidade, os novos comportamentos e a nova cultura

corporal que emergiram na juventude da época. Gil agregou à canção brasileira a

questão da diáspora negra vivida sob o impacto do cosmopolitismo e da modernidade.


262

Os compositores nordestinos, como Belchior, Ednardo, Alceu Valença, Zé Ramalho,

entre outros, operaram releituras da cultura jovem e fundiram elementos regionais com

o pop, numa operação crítica e criativa acerca do impacto do moderno sobre o

tradicional. Por outro lado, nomes ligados ao samba, como Martinho da Vila e Paulinho

da Viola, reelaboraram a tradição urbana carioca, colocando o samba na sala de estar

da classe média, sem abandonar a cozinha e o terreiro da tradição.

O grupo dos e, principalmente, das intérpretes, dada a absoluta predominância

das vozes femininas na MPB, foi fundamental para a efetiva disseminação social da

canção. A performance dava vida e materialidade à obra e, em alguns casos, como o

de Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia e Clara Nunes, o poder de comunicação e

dotes vocais destas intérpretes marcava a tal ponto o sentido da canção que

poderíamos falar numa segunda autoria. As cantoras mais populares dos anos 1970,

ao contrário do que ocorria no inicio dos anos 1960, não se pautaram pelos estilos

intimistas da Bossa Nova. Em certo sentido estavam mais próximas das performances

tradicionais da era do rádio, marcadas por vozes com amplo volume e tessitura, em

interpretações que valorizavam a assimilação da melodia, com certa dose de

ornamentação. Elis, Bethânia e Clara Nunes estavam entre as cantoras mais

populares da época e a maior parte do seu repertório se identificava com o gênero

MPB.

Sem prejuízo da grande pluralidade de estilos de composição e interpretação,

destacam-se três tendências básicas nos temas poéticos abordados pela canção da

abertura. Uma, que anunciava novas perspectivas de liberdade e de reconquista da

liberdade plena de expressão e outra, que refletia sobre a experiência dos “anos de

chumbo” recentes.

Na primeira tendência, a linguagem da festa substituía, paulatinamente, a

cifrada “linguagem da fresta”, os temas do encontro e da esperança superavam os


263

temas da solidão e da depressão450. Eram recorrentes as letras que expressavam a

iminência de um movimento incontrolável, individual e coletivo, político e erótico, como

uma irrupção violenta de uma energia reprimida durante muito tempo. Essas canções

tinham em comum a busca de expressões melódico-harmônicas e timbrísticas que

traduzissem, de forma festiva ou plangente, as imagens de esperança e dignidade

popular. O samba de partido, de enredo, o samba-choro, o frevo, enfim gêneros de

andamento rápido e marcado voltavam a serem utilizados para expressar a linguagem

da festa. O samba-canção e a toada eram predominantes quando se expressava o

amor individual, tema que muitas vezes serviu de metáfora do reencontro do indivíduo

com a liberdade. Nesta linhagem poderíamos citar algumas canções. De João

Bosco/Aldir Blanc: Samba Plataforma, O Mestre Sala dos Mares, O Bêbado e a

Equilibrista; de Chico Buarque: O que será, Meu caro Amigo, O Cio da Terra

(composta em parceria com Milton Nascimento); de Gonzaguinha: Não da mais pra

segurar; de Paulo César Pinheiro e Mário Duarte: O Canto das Três Raças; de Milton

Nascimento e seus parceiros: Maria Maria, Coração Civil; de Vitor Martins e Ivan Lins:

Abre Alas, A Bandeira do Divino. O ano de 1979, em especial, viu surgir alguns

clássicos da canção da abertura, obras que procuravam demarcar um novo tempo

histórico, limiar entre o trauma e a esperança: Começar de Novo (Ivan Lins e Vitor

Martins) e Sol de Primavera (Beto Guedes). Além delas, os “hinos” do movimento pela

Anistia marcaram aquele ano: O Bêbado e a Equilibrista (Bosco/Blanc) e Tô Voltando

(Pinheiro / Tapajós).

A outra vertente expressiva da canção da abertura procurava dar um sentido

heróico à experiência dos anos de chumbo, sublimando a experiência da violência e

da repressão através de uma operação poética que as revestia de dignidade humana.

O clima poético-musical destas canções era mais sombrio, predominando a

melancolia, ainda que houvesse um movimento de superação dos traumas coletivos

gerados pelo “círculo do medo” imposto à sociedade na era do AI-5. Algumas canções

450
VASCONCELLOS, G.Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal, 1977
264

são paradigmáticas desta linhagem: Nos dias de hoje (Ivans Lins e Vitor Martins), Aos

Nossos Filhos (Lins/Martins), Velha Roupa Colorida (Belchior), Angélica e Pedaço de

Mim (Chico Buarque), Gênesis e Tiro de Misericórdia (Bosco/Blanc), Cruzada (Tavinho

Moura / Márcio Borges), Não chore mais (Gil, a partir da canção original de Bob

Marley).

Poderíamos ainda demarcar uma terceira vertente, ocupada pelas obras de Gil

e Caetano. Nelas, os compositores sintetizavam os dilemas, contradições e, por que

não, as novas possibilidades geradas pela modernização brasileira. Predominava, nos

baianos, a mirada subjetivante na qual a nova cultura corporal e comportamental pós-

68 davam o tom, o que os diferenciava das canções de Milton Nascimento, por

exemplo, nas quais a nova cultura jovem fundida ao intimismo e ao lirismo. Os

exemplos deste tipo de abordagem da modernidade brasileira são inúmeros e

constituem clássicos da canção brasileira: Pipoca Moderna (Caetano Veloso), Tigresa

(Caetano Veloso), Qualquer coisa (Caetano Veloso), Refavela (Gilberto Gil), Jeca

Total (Gilberto Gil), Maracatu Atômico (Jorge Mautner), Super Homem (Gilberto Gil),

Realce (Gilberto Gil), Sampa (Caetano Veloso), Terra (Caetano Veloso), O Índio

(Caetano Veloso), entre outras.

Em todas as tendências musicais e poéticas assinaladas o compositor

participava da educação poética e sentimental do cidadão, consumidor cultural crítico

ao regime militar. É importante notar que mais do que desempenhar uma função

política tradicional da canção de protesto, qual seja, manter a vitalidade da crítica

direta, a crença no futuro inexorável e exortar a ação direta contra uma situação de

opressão, a canção da abertura, ainda que seja tomada como uma variante da canção

engajada, realizava-se numa outra direção: a sublimação poética da liberdade e do

trauma da repressão recente, situando-se numa espécie de entre-lugar histórico:

cantava a liberdade que ainda não era plena e o medo que já não era mais

predominante.
265

A canção Aos Nossos Filhos (Ivan Lins/ Vitor Martins) tem uma singularidade

marcante, escapando aos paradigmas até aqui citados. A voz que pede perdão “aos

nossos filhos” pela “cara amarrada / pela falta de ar / pela falta de abraço / pela falta

de abrigo....” tenta encontrar um álibi: “os dias eram assim”. Na segunda parte, a voz

que pede perdão pelo passado, como se a repressão fosse introjetada como culpa do

reprimido por não combater o regime opressivo de forma eficaz, se volta para o futuro:

“e quanto passarem a limpo / e quando lavarem a alma / (....) e quando lavarem a

água /(...) e quando colherem o fruto (....) digam o gosto pra mim”. A derrota no

passado se torna a impossibilidade de construir e viver o futuro. A consciência parece

ficar imobilizada numa situação peculiar provocada pelo trauma do autoritarismo e da

repressão: a má-consciência do passado e a impossibilidade de agir no presente e

aproveitar o futuro. Assim, a canção nem sublima o medo e a violência, nem consegue

superar a experiência da repressão. O sujeito poético se dissolve, pois não consegue

afirmar-se como herói da resistência no passado, nem anuncia um futuro promissor.

Aos nossos filhos pode ser configurada como uma “canção do trauma”, modelo raro na

MPB.

A sensação de hiato no tempo histórico foi muito recorrente nas referências aos

vinte e um anos do regime militar e seu impacto na história brasileira. A novidade, é

que esta canção coloca uma dúvida sombria, não muito comum na canção da

abertura: seria possível recuperar a capacidade da experiência histórica voltada para a

utopia e para a liberdade coletiva? Ou o choque da repressão havia provocado uma

mistura de má-consciência com embotamento? Neste sentido, nada restaria “aos

filhos” da repressão, pois o hiato de tempo histórico também era um hiato geracional.

Quem fala na música parece ser um fantasma de si mesmo, penando nos tempos

difíceis, impossibilitado de voltar à normalidade da vida civil. Entretanto, a esperança

no futuro está presente na certeza de que os filhos “passarão a limpo/ lavarão a alma /

colherão os frutos” e, ao contrário do curso normal da tradição, o sujeito embotado que

canta espera que eles ensinem aos pais a nova utopia democrática.
266

O efeito geral desta peculiar situação sociopolítica, deste entre-lugar histórico,

era muito mais a sublimação e a catarse do que propriamente a mobilização e a

exortação à ação política de contestação direta. E nisto, a “canção da abertura” se

encontra com a “canção dos anos de chumbo”.

Podemos encontrar um exemplo deste efeito de sublimação que a MPB

produziu no programa do espetáculo Elis, Essa Mulher, de 1979. Nele, Elis escreveu

um texto que resumia a trajetória da sua carreira e da própria MPB desde os anos

1960, bem como a tensão entre a esperança da liberdade e a presença do

autoritarismo político ainda hegemônico: “Nessa hora e meia, a gente vai falando do

jeito da gente. Os tempos da ingenuidade. Da desatenção. Do não saber de nada (...).

Do amadurecimento. Da raiva. Essas coisas todas que foram transformando a gente.

Que hoje tem o mesmo riso, faz a mesma algazarra, gosta da cachaça, etc...Mas que

melhorou o jogo de cintura, aprimorou o físico, desenvolveu o faro. Além de ter

aprendido a prender a respiração quando o cheiro não é dos melhores. O concerto é

isso aí. Devagarinho vai se levando. Pra, no final, a esperança ser posta na berlinda

de novo. Esperança que pinta, mas já com a certeza de que a gente tem que cavar.

Tem que tomar. Na marra. Rindo. Se possível".

Os circuitos e experiências sócio-musicais nos anos de chumbo: algumas

hipóteses

A tendência à sublimação poética do autoritarismo não deve ser vista como

uma diminuição do papel político da canção, embora possa ter diluído seus efeitos

propriamente mobilizadores, sob a ingerência do mercado massivo. Os eventuais

sentidos e função política de uma canção devem ser inseridos na análise das

situações socioculturais concretas nas quais a canção se realizava socialmente na

segunda metade dos anos 1970. Neste campo, as pesquisas historiográficas e

sociológicas no Brasil são muito incipientes, embora tenhamos um manancial de

questões estético-ideológicas neste campo, altamente complexas e singulares.


267

Lembramos que a maior parte das análises acadêmicas se concentra nas obras em si

e não nas formas de circulação e recepção das canções na sociedade.

Algumas formas e espaços de recepção são bastante conhecidos e

consagrados pela própria memória social sobre o período. Faz-se necessária uma

sociologia retrospectiva da música popular dos anos 1970 para compreender melhor

os efeitos de cada paradigma de audição, como os que seguem:

a) A audição individual dos fonogramas no espaço doméstico e privado: a situação do

consumidor isolado e da audiência musical solitária e privada é uma das mais difíceis

de ser mapeada sociologicamente, pois depende, em grande parte, de testemunhos

orais. Não é exagero afirmar que este tipo de audiência foi importante, sobretudo no

período mais duro da repressão e da censura, pois além de facilitar a assimilação mais

profunda da canção (o ouvinte ideal configurado por Adorno), mantinha a mística da

consciência crítica superando a vigilância do poder opressivo.

b) A audição coletiva dos fonogramas no espaço doméstico e privado: outro tipo de

audiência que pode ter sido importante, do ponto de vista da afirmação de valores e de

consciência crítica, durante os anos de chumbo. Neste tipo de audição, a cumplicidade

e o encontro, fundamentais para a realização da rede de recados contra a ditadura,

poderiam atingir um grau máximo de realização.

c) A recepção das performances mediadas pelos meios de comunicação (sonoros e

audiovisuais): diferente do consumidor ativo, que comprava o fonograma e o escutava

individual ou coletivamente, as formas midiatizadas de audiência tendem a ser mais

relaxadas e descompromissadas451. Mas isso não deve ser tomado como regra,

principalmente no caso da Música Popular Brasileira. A mídia audiovisual, sobretudo

(no caso, a televisão) permitia o contato com a imagem do artista, ídolo e referência

451
EYERMAN, R.& JAMISON, A. Op.cit.
268

intelectual a um só tempo. O gestual, as expressões faciais, o “jeito de corpo”, a

indumentária, as inflexões, enfim, as performances propriamente ditas, eram tão

importantes quanto o conteúdo das obras, fazendo circular um conjunto de referências

sonoras e visuais entre a audiência. No caso da MPB não se deve menosprezar o

importante e pouco estudado ciclo de programas musicais surgidos nos anos 1970.

Destacamos dois: a longa série MPB Especial / Ensaio, da TV Educativa (RJ)/Cultura

(SP), surgida em 1970 e no ar até hoje (2003), produzida por Fernando Faro; o ciclo

de programas musicais da TV Bandeirantes, entre 1974 e 1980, com auge entre 1976

e 1978, que agregava uma audiência de classe média intelectualizada e era uma

opção à programação da Rede Globo, vista como pasteurizada e massificada. Os

festivais televisionados a partir de grandes auditórios entraram em crise, não apenas

pela ação da censura, mas também pelo esgotamento da fórmula televisiva destes

programas.

d) A recepção das performances ao vivo, em espaços fechados (teatros) de pequeno e

médio porte, que facilitavam a cumplicidade e o encontro de um grupo social

específico: este tipo de situação/espaço de audiência musical também foi muito

importante nos anos de chumbo quando a ocupação dos espaços massivos e

monumentais que marcaram a era dos festivais viram-se prejudicados pela nova

conjuntura política. A partir de 1972, aproximadamente, firmou-se um circuito de

teatros de pequeno e médio porte, que mantiveram a MPB próxima do seu ouvinte

paradigmático: o estudante e a classe média jovem e de esquerda452. Alguns teatros

consagraram-se como verdadeiros “templos da MPB”: o TUCA (São Paulo), o João

Caetano (Rio de Janeiro), o Teatro do Paiol (Curitiba), entre outros. Outros espaços

de maior dimensão marcaram os anos 1970: Canecão (Rio de Janeiro), Palácio das

Convenções do Anhembi (São Paulo), assim como vários ginásios públicos e privados

452
O universitário era considerado a síntese da “classe média em seu extrato superior”. Conforme Ana
Maria Bahiana: “Música sai da classe média, é orientada pela classe média e por ela consumida” Ver
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1979, p.25
269

que comportavam mais de 1000 pessoas, foram espaços importantes para absorver a

ampliação do público da MPB. Nos anos 1980 os teatros de médio porte (entre 300 e

600 lugares, aproximadamente), continuaram tendo importância no circuito de shows

do gênero, passando a ser ocupados cada vez mais por artistas do circuito musical

alternativo, com nichos de público menores e mais concentrados.

e) A recepção de performances ao vivo, em espaços abertos (logradouros públicos) de

grandes dimensões (estádios, parques monumentais, campi universitário, etc): este

tipo de circuito foi um dos mais importantes da MPB da abertura. Na maioria dos

casos, os grandes shows em espaços monumentais estavam ligados à campanhas

cívicas, sindicais ou políticas (comícios), mais freqüentes a partir de 1978. A MPB foi

parte da trilha sonora da Campanha da Anistia (abril a agosto de 1979), do movimento

sindical (não apenas durante os eventos ligados às greves do período, mas

principalmente nos shows de 1º de Maio), do Movimento Estudantil453, dos comícios do

MDB (Chico Buarque e Milton Nascimento eram fieis ao partido e continuaram sendo

quando ele se transformou em PMDB, em 1979) e do PT (a partir de 1980). Os

inúmeros eventos musicais que marcaram a atividade pública da oposição organizada

ao regime militar ainda não foram devidamente estudados e constituem-se num tipo de

audiência muito específico, cuja recepção estética e política se dá num plano

completamente diferente das outras audiências citadas. Neste caso, é de se supor que

as canções desempenhassem um papel muito mais mobilizador e exortativo,

consagrando os valores ideológicos que informavam tais entidades, campanhas e

eventos.

Cabe esclarecer que não se trata de estabelecer tipologias rígidas de

recepção, hierarquias de audiência, pensadas de forma estanque e delimitada. A

453
Sobre o papel da música e da cultura na resistência protagonizada pelo Movimento Estudantil ver
MULLER, Angélica. A Resistência do movimento estudantil brasileiro contra a ditadura e o retorno da
UNE à cena pública (1969-1979). Tese de Doutorado em História, USP/ Universidade Paris I, São
Paulo/Paris, 2010 (p.71-88); COSTA, Caio T. Cale-se. São Paulo, A Giraffa, 2003
270

tendência à ampliação das audiências públicas, massivas e monumentais, perceptível

no final da década de 70, não anulava a importância das audiências isoladas e

privadas. Em todas estas experiências sócio-musicais poderia ocorrer a educação

sentimental e política do “coração civil” da oposição ao regime. Em que pese o fato

delas serem mediadas pelo mercado.

Em 1970, sob o impacto do exílio e da censura, Caetano Veloso, em tom

premonitório, fez a seguinte declaração ao Pasquim: “O som dos anos 70 talvez não

seja um som musical. De qualquer forma o único medo é que esta talvez venha a ser a

década do silêncio”. Neste capítulo, questionou-se exatamente a concepção dos anos

1970 como “a década do silêncio”, depois dos memoráveis sons musicais dos anos

1960.

Ao fim e ao cabo, a música popular pode ter tido alguma responsabilidade pela

amplitude do alcance e do sentido das idéias e valores da resistência civil, rompendo

os limites dos grupos sociais previamente identificados com ela, bem como os limites

conceituais e racionais da própria política, ao transformar-se em imperativo ético e

estético. Isto não quer dizer que a música ocupou o lugar da política: ambas

continuavam (e continuam) sendo esferas diferenciadas da vida social. Mas a

politização da música popular – ainda que em suas formas líricas e sublimadas -

permitiu que a política ficasse abrigada no coração, quebrando o controle da palavra

na vida pública, fazendo acordar os homens e adormecer as crianças. Ou, quem sabe,

fazendo exatamente o contrário.


271

CAPÍTULO 7

O CASO DAS “PATRULHAS IDEOLÓGICAS” E OS LIMITES DA RESISTÊNCIA


CULTURAL

No âmbito da sociedade civil, paralelamente à abertura oficial promovida pelo

governo militar, a década de 1970 assistiu a um progressivo esvaziamento da “cultura

de esquerda” nacional-popular, herdada dos anos 1950/1960, processo corroborado

pela sua inserção na cultura de massa. Essa crise foi marcada por um grande debate

intelectual sobre o nacionalismo cultural, apontando para a revalorização da cultura

popular comunitária (leia-se, fora do mercado) e pelo questionamento das hierarquias

socioculturais que separavam a “boa cultura” da “cultura alienada”454. Nesse sentido,

no segundo semestre de 1978 o debate cultural foi dominado pelo tema das “patrulhas

ideológicas”, termo cunhado pelo cineasta Carlos Diegues que estava lançando seu

novo filme – Chuvas de Verão. O filme, tal como o anterior – Xica da Silva, de 1975,

também não seguia a fórmula clássica dos filmes engajados e cinemanovistas

militantes, ao contar uma história de amor de um casal de velhos, ambientado num

subúrbio carioca. Antecipando-se a qualquer cobrança por parte da esquerda militante,

que já o havia criticado pelo filme anterior, Diegues veiculou sua indignação diante da

“censura” de esquerda em dois grandes jornais da imprensa liberal (O Estado de

S.Paulo, de tendência conservadora e o Jornal do Brasil, mais liberal-progressista).

Com a consagração do termo, muitos artistas que se sentiam “patrulhados” vieram a

público, com ampla cobertura da imprensa, sempre interessada numa boa polêmica.

Durante os meses seguintes à entrevista, a existência ou não das patrulhas e “quem

454
NAPOLITANO, Marcos. “O caso das patrulhas ideológicas na cena cultural brasileira do final dos anos
1970” IN: MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São
Carlos, EDUFSCar, p. 39-46.
272

patrulhava quem” foram questões discutidas nos meios intelectuais e no jornalismo

cultural, redundando em um debate que duraria mais de dois anos455.

O debate em torno das "patrulhas ideológicas" deve ser pensado como sintoma

de uma crise mais ampla da relação entre arte e política no Brasil após 1964. Este foi

um dos últimos debates internos das esquerdas, envolvendo a redefinição do papel

social de artistas e intelectuais engajados diante do quadro de transição institucional

para a democracia, que se anunciava na segunda metade dos anos 1970, sob o

governo do general Ernesto Geisel. Este dado conjuntural – o processo de “abertura”

política do regime - aliado à modernização sócio-econômica que também envolveu a

área da cultura, aprofundou a crise na cultura de esquerda e no próprio estatuto do

artista-intelectual herdado das décadas anteriores. Portanto, nossa hipótese é que o

caso das “patrulhas ideológicas” foi um sintoma desta crise maior que marcou o fim de

um ciclo de engajamento artístico que se iniciou no final dos anos 1950, atravessou a

década de 1960 e entrou numa longa crise a partir de 1968, embora represada devido

ao contexto de repressão política da era AI-5.

A relação entre arte e política no Brasil, tal como experimentada à esquerda, foi

produto de um longo processo histórico. Algumas características são bem

demarcadas.

A primeira característica é a tentativa de articular a expressão estética

nacional-popular e as premissas do modernismo, buscando conciliar vários elementos

expressivos oriundos de três tradições culturais distintas: a chamada “cultura popular”

praticada por negros, índios e mestiços; a tradição culta e letrada preservada no

campo da literatura e da música erudita, principalmente, e as vanguardas históricas do

modernismo ocidental, surgidas no início do século XX e incorporadas pelo movimento

modernista brasileiro que se formalizou em 1922, durante a Semana de Arte Moderna

455
HOLLANDA, Heloisa B. & MESSEDER, Carlos. (Orgs.). Patrulhas ideológicas. São Paulo: Brasiliense,
1980
273

de São Paulo. Portanto, no seio da arte engajada brasileira, o projeto de uma estética

nacionalista e antiimperialista conviveu com a busca de uma estética cosmopolita e

contemporânea, matizando a tendência à xenofobia e à folclorização da arte

politizada.

Outra característica foi a dimensão adquirida pelas “artes de espetáculo”

(teatro, cinema e música popular) no exercício do engajamento artístico. Esse

fenômeno ocorrreu dentro de um mercado cultural cada vez mais forte e alargado a

partir do final dos anos 1950, ampliando o diálogo entre estes diversos campos

artísticos, estimulado pelo surgimento de novos circuitos de arte engajada. Uma das

marcas centrais deste ciclo de engajamento artístico foi a migração de jovens artistas,

formados dentro de um sistema educacional sofisticado e herdeiros de certas

tradições literárias e eruditas, para o campo das “artes de espetáculo”.

Entre o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970, observa-se a

ascensão e a crise do dirigismo cultural e do pedagogismo ideológico, tal como

sugeridos no Manifesto do Centro Popular de Cultura da UNE, influenciado pelos

valores do Partido Comunista e sua política de “alianças de classe” na construção da

“revolução brasileira”. Como já demonstrado anteriormente, o Manifesto do CPC foi

publicado em 1962, por ocasião do lançamento oficial da entidade, e propunha que o

artista deixasse de lado seus interesses puramente estéticos, para elabora um tipo de

“arte popular revolucionária”, baseada na pesquisa e na imitação simplista da

linguagem da cultura popular, como forma de “elevar o grau de consciência” das

massas na direção das Reformas sociais propostas pelo presidente João Goulart,

apoiado formalmente pela UNE. Reiteramos, no entanto, que os artistas engajados

não aceitaram os termos do manifesto, tidos como reducionistas do ponto de vista

estético, e desde o seu lançamento iniciaram um grande debate sobre dois aspectos
274

principais: o caráter da arte engajada brasileira, e o tipo de relacionamento entre o

artista de esquerda e a cultura popular456.

Depois do golpe militar, o modelo de artista e de intelectual engajado,

progressista e humanista, que se auto-representava como porta-voz das “classes

populares” e dos “interesses nacionais”, foi colocado em xeque, mesmo dentro do

campo da resistência cultural. Antes mesmo de explodir o caso das “patrulhas

ideológicas”, a imprensa de esquerda já veiculava este impasse. Por exemplo, o jornal

Versus, o mesmo que proclamara os limites da cultura como resistência ao regime,

patrocinou um grande debate sobre a relação entre “arte e política”457. Um pequeno

texto de José Miguel Wisnik abria o debate: “Em 1968, a cultura estava refletindo ou

consumando a crise do populismo. Esta crise teria se manifestado nas radicalizações

políticas, por um lado, estéticas, por outro” [Boal, Vandré, Oficina, Sganzerla]. Agora,

em 78, parece que certas questões ressurgem nas manifestações culturais, às vezes

parecendo retomar aquele momento ou aquele processo: populismo, crise do

populismo, propostas marcadamente políticas, propostas marcadamente estéticas.

Esse novo impasse só pode ser superado se pensarmos em o que aconteceu de fato

nesses anos todos, de 68 para cá (...) Ao nível evidente: agigantamento da indústria

cultural, censura, esvaziamento da cultura crítica. Ao nível oculto: (...)parece que a

discussão sobre os empecilhos da cultura passam a dar lugar à discussão sobre a

cultura que de fato existe sob o vazio”.

Propondo um balanço da década marcada pelo AI-5, Wisnik tentava

compreender o radicalismo cultural como produto de uma crise política, sob as ruínas

do populismo. Ao mesmo tempo, tentava superar a agenda de discussão proposta

pelos setores ortodoxos da esquerda, ainda preocupada em retomar o lugar do artista

como arauto do “povo-nação”, cuja grande ameaça era o “vazio” da censura e o

456
SOUZA, Miliandre Garcia. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC”. Op.cit.
457
“Arte, ideologia e poder”. Versus, 20, abril/maio, 1978, p. 36-39
275

formalismo das vanguardas. Claramente, o debate proposto pelo jornal sinalizava

alguns elementos que marcariam uma parte da nova crítica intelectual de esquerda

que valorizava a experiência estética e o pluralismo cultural, afastando-se das

mediações exigidas pelo nacional-popular e das premissas de uma determinada

relação forma-conteúdo que era imposta por esta corrente. Ao mesmo tempo, a

presença estruturante dos meios de comunicação, dirigidos por uma lógica própria e

incontornável, era uma realidade concreta e exigia novos termos para organizar o

debate. O mesmo Wisnik tentou sintetizar o debate proposto, pautado na recusa geral

do populismo e pelo assombro diante do vigor e contradições da indústria cultural458:

“Parece que se tornou difícil sustentar projetos culturais não só por estas questões de

radicalização, mas também pela violenta presença dos meios de comunicação de

massa (...) que dá à produção cultural um caráter dirigido, isto é, ela é dirigida por

alguém. Só que este alguém não é propriamente ninguém, é um sistema. Em suma,

essa situação tornou difícil a sustentação de projetos culturais que sejam

suficientemente englobantes (...) ao nos colocarmos na posição de pacientes

querendo se tornar agentes, somos remetidos à questão da resistência”.

Nessa fala estavam postos os dilemas que se aprofundariam ainda mais nos

anos finais do regime militar: a virtual impossibilidade histórica de projetos culturais

globais; a percepção de um sistema cultural industrializado e onipresente; os

dissensos incontornáveis que marcavam a cultura crítica diante da crise longa do

“populismo” (se quisermos, do nacional-popular); o imperativo da resistência que não

deveria sucumbir a modelos ultrapassados de ação cultura e estética engajada. Como

questão central, colocava-se em questão o lugar do intelectual que não era, a priori,

um agente condutor do processo político-cultural, pelo mero fato de ser um intelectual.

Na mesma época desta revisão, as correntes ligadas ao Partido Comunista,

entretanto, ainda apostavam na afirmação da unidade no campo artístico-intelectual

458
Idem, p. 38
276

(entre outros campos de atuação da oposição), a partir de alguns pressupostos que já

não eram consensuais. A atuação do Centro Brasileiro Democrático (CEBRADE), na

área cultural, talvez represente a última tentativa de afirmar um frentismo cultural com

base no conceito de intelectual como “consciência pública” e defensor dos interesses

nacional-populares.

O CEBRADE foi fundado em 29/7/1978, tendo como diretores Oscar Niemeyer

(Presidente), Ênio Silveira (vice-presidente), Sérgio Buarque de Holanda (vice-

presidente) e Antonio Houaiss (secretário-Geral). No seu Programa de Trabalho a

entidade propunha várias atividades: 1) Organizar um Congresso de Intelectuais que

chegasse a um “programa unitário de reivindicações democráticas específicas da

intelectualidade”, entendendo-a como um vasto campo que incluía ciência,

universidade, arte e meios de comunicação”; 2) Promover, em São Paulo, um

“Seminário” sobre os “direitos do trabalhador”, a fim de levantar um “programa unitário

de reivindicações específicas dos trabalhadores; 3) Promover, em Brasília, um

seminário sobre “direitos civis” na Constituição, visando a elaboração de um

“programa unitário de reivindicações democráticas da sociedade civil”; 4) Organizar

um serviço de assistência jurídica e material às vítimas de restrições dos Direitos

Humanos fundamentais; 5) Organizar uma “comissão de contato parlamentar”; 6) Lutar

pela Anistia, junto com as organizações já existentes; 7) Criar um “órgão de

comunicação” impresso.

No seu regimento, o CEBRADE sistematizava a vocação política de entidade

voltada para a questão dos direitos humanos e para a volta da institucionalidade

democrática, a partir da organização de vários atores e movimentos sociais de

oposição ao regime. O CEBRADE também atuou como organizador dos “Shows de

Primeiro de Maio” que reuniram a elite musical da MPB em espetáculos voltados para

o apoio aos movimentos sindicais que voltavam a ocupar a cena político-social

brasileira. O primeiro deles foi realizado em 1979, no Rio Centro, o mesmo lugar do
277

frustrado atentado à bomba de 1981, quando dois agentes do DOI-CODI morreram por

conta de um “acidente de trabalho” quando armavam o artefato que deveria explodir

dentro do pavilhão. O caso, apesar da farsa oficial que se montou para encobri-lo,

expôs movimentações clandestinas da direita militar em operações terroristas,

corriqueiras desde, ao menos, 1979, e consideradas reações da “linha dura” contra a

abertura do regime. Em 1982, 1983 e 1984, os espetáculos ocorreram em Porto

Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, reunindo milhares de espectadores, sobretudo

estudantes, solidários com a causa sindical e operária459.

A entidade conseguiu organizar o “Encontro Nacional de Dirigentes Sindicais”

proposto não em São Paulo, mas em Niterói, entre 2 e 6 de agosto de 1979, do qual

saiu um documento intitulado “Carta de Gragoatá”, endereçada ao Congresso

Nacional, a qual tentava articular a luta pela democracia (anistia, constituinte, fim da

repressão) ao reconhecimento da pauta colocada pelas lutas sindicais (liberdade

sindical, direito de greve, controle de preços, aumento de salários), ligando duas

questões caras à oposição da época, a “questão democrática” e a “questão operária”.

A idéia de “unidade sindical” defendida pela entidade chegou ao seu ponto máximo na

Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, a CONCLAT, realizada em 1981, na

Praia Grande (SP), quando os embates entre o recém fundado PT e as correntes

sindicais comunistas abrigadas no MDB expuseram suas diferentes concepções sobre

organização sindical e sobre o papel dos movimentos sociais na transição para a

democracia que então era vivenciada. Sintomaticamente, como a própria entidade

reconheceu, o “congresso dos trabalhadores intelectuais”460 teve sua realização

inviabilizada, pela dificuldade de estabelecer consensos na área cultural461. Embora

não aprofunde ou assuma o dissenso estrutural no meio intelectual, é lógico supor que

a questão das “patrulhas ideológicas”, em pleno debate acalorado, bem como as

459
Brasil Democrático, 3, 1979, p.8.
460
Para uma análise do primeiro CTI, lançado em 1963, ver CZAJKA, Rodrigo. “Redesenhando
ideologias: cultura e política em tempos de Golpe”. História, Questões e Debates, 40/40, 2004, 37-57
461
Brasil Democrático, 3, 1979, p. 7
278

mudanças do papel social e político dos artistas e intelectuais junto à sociedade,

inviabilizaram a nova versão de um “comando de trabalhadores intelectuais” nos

moldes dos anos 1960, ou mesmo em formato diferenciado e mais plural, pois mesmo

um consenso mínimo em torno das tarefas culturais na luta democrática parecia cada

vez mais improvável no final dos anos 1970. Neste sentido, as tensões estéticas e

ideológicas contidas na questão das “patrulhas” anunciavam a ruptura da frente

oposicionista que pouco tempo depois ficaria expressa também na organização

partidária e nos movimentos sindicais. Se a luta pela democracia como fim era

consensual entre os vários grupos de oposição, seus meios, métodos e princípios

organizativos não facilitavam o consenso. Em certo aspecto, o ano de 1978 parecia

reeditar as lutas culturais de 1968, depois de uma breve pausa de convergência na

luta contra a censura e contra a violência política mais extremada.

Claramente, o interlocutor do CEBRADE, entidade plural mas hegemonizada

pelo PCB dentro da lógica frentista, era o sistema político (sobretudo o parlamento) e a

sociedade civil organizada. As correntes culturais, políticas e sindicais da “nova

esquerda” projetavam outros interlocutores, os trabalhadores e os movimentos sociais,

cujas lutas não deveriam ser canalizadas pelo frentismo oposicionista que tentava

atuar dentro do sistema político.

Do outro lado do campo político, o núcleo de poder do regime militar também

prescindiu da interlocução do intelectual humanista e nacionalista no equacionamento

dos problemas nacionais, legando maior poder aos técnicos e burocratas de carreira.

Apesar do golpe militar, o intelectual engajado, sob o signo da oposição ao regime,

pode exercitar sua crítica de forma mais ou menos livre num precário exercício de

vida pública que se diluiu ainda mais após o Ato Institucional nº 5 (1968).

Ainda é importante notar que a agenda política da esquerda brasileira, com a

qual dialogavam os diversos segmentos da arte engajada, migrou do tema da

revolução para o tema da resistência democrática, cujo ponto de inflexão foi a derrota
279

definitiva de um projeto revolucionário radical, baseado na luta armada contra o

regime, por volta de 1972. A partir de então, consolidou-se a visão de uma dupla

derrota revolucionária – seja a revolução burguesa, a via pacífica defendida pelo PCB

na primeira metade dos anos 1960, seja a da esquerda armada dissidente do

“Partidão”.

A revolução armada derrotada, estimulou a revisão do conceito de resistência

democrática, apontando para a necessidade da democratização da sociedade e do

Estado, conquista que deveria se dar através das lutas civis, dos movimentos sociais e

da aliança tática com setores liberais, cada vez mais afastados do regime militar a

partir do final dos anos 1960. Este processo de “resistência democrática” vivido pela

sociedade brasileira, em especial seus segmentos de esquerda, encontrou sua

contraface oficial na política de “abertura” iniciada em 1974, sob o governo do general

Ernesto Geisel.

Visando a reaproximação dos setores formadores de opinião da sociedade civil

– segmentos da burguesia crítica ao regime e das classes médias de formação

superior – o governo acenou com uma dupla possibilidade: a democratização

institucional e uma política cultural menos repressiva. Esta última tentou incorporar

certas demandas dos segmentos artísticos mais críticos ao regime, como o

nacionalismo cultural, a defesa do patrimônio histórico, da cultura popular e o apoio a

uma arte de “boa qualidade”, contrapeso da indústria cultural crescente. Além, é claro,

de uma política de mecenato oficial que pudesse compensar as dificuldades do artista

brasileiro perante o mercado. Nas áreas de teatro e cinema, a política cultural oficial

será particularmente decisiva para dar novo vigor da produção artística, inclusive feita

por criadores de esquerda, entre 1975 e 1981. Esta conjuntura é fundamental para o

pleno entendimento do caso das “patrulhas ideológicas” desencadeada, não por

acaso, no setor de cinema que buscava reencontrar-se com o grande público e

associar-se às políticas de mecenato do governo militar. Este segmento artístico


280

encontrava-se dividido internamente ao menos em duas grandes correntes462: “uma

mais colada ao Estado – mesmo que só utilizando a máquina estatal por vias indiretas

– e à política de grandes produções; outra, que envereda por uma organização dos

cineastas de forma autônoma, que não deixaria de constituir um foco de pressão sobre

o próprio Estado, procurando outras formas de produção, diante da diminuição do

espaço de produção no interior do aparato estatal” .

Portanto, em que pese certas idiossincrasias pessoais e curtos-circuitos de

comunicação que este debate suscitou na época, ele está inserido numa problemática

maior, cuja análise deve ir além do campo cinematográfico, embora este fosse seu

epicentro mais sensível e complexo. No plano conjuntural, o debate foi instigado pelos

efeitos da “abertura política” na cultura de esquerda. Visto sob o prisma da longa

duração, o debate sinalizava o esgotamento de um longo e singular período da história

da cultura brasileira, que viu nascer e morrer o intelectual engajado e a arte

empenhada sob a égide do nacional-popular. A questão das “patrulhas ideológicas”

também revelava a existência de uma perspectiva ideológica "radical" no contexto da

abertura do Regime, cuja expressão política será o "esquerdismo" de alguns

segmentos médios que florescerá nos anos 1980, mais ligado às heranças da crítica

comportamental da contracultura pop e dos movimentos de “minorias”, e pouco

articulado como projeto global de transformação social, como foi a arte engajada dos

anos 1960, expressando a chamada “política da diferença”463. A partir das tensões

entre a “nova” e a “velha” esquerda que este debate deve ser situado.

O caso das “patrulhas ideológicas” explicitou muitas tensões internas do campo

da “resistência” democrática contra o regime militar, contrapondo-se a uma memória

social que, ainda hoje, costuma ser pensada a partir de uma convergência e unidade

462
RAMOS, José M. O. Op.cit. p. 148
463
DUNN, C. Op.cit
281

idealizadas pela memória social – a luta político-cultural de fundo ético contra a

ditadura.

O caso das “patrulhas ideológicas”: um breve histórico

A expressão “patrulhas ideológicas” ganhou a grande mídia brasileira a partir

de agosto de 1978, quando o diretor Carlos (Cacá) Diegues concedeu uma entrevista

ao jornal O Estado de S.Paulo464, por ocasião do lançamento do seu novo filme,

Chuvas de Verão, conforme já exposto no início deste capítulo. Instigado pela

jornalista Pola Vartuck, Diegues desabafou465: “tem uma certa esquerda no Brasil que

coloca o prazer à direita do sofrimento, que prefere sofrimento ao prazer, razão à

emoção, a derrota à vitória (...) um negócio que eu acho muito grave é essa espécie

de patrulha que existe no Brasil. Uma espécie de polícia ideológica que fica te vigiando

nas estradas da criação, pra ver se você passou da velocidade permitida” . Ao longo

da entrevista, o cineasta fez a defesa de um cinema “nacional popular” que segundo

ele era a retomada do “verdadeiro projeto original do Cinema Novo”. Além disso,

reiterou a existência de um momento político democratizante no Brasil e defendeu a

inserção da obra de arte no mercado, à medida que a “obra de arte era feita para o

Outro” e o “público era o Outro”. Alguns dias depois, em 03 de setembro de 1978, a

mesma entrevista foi publicada no Jornal do Brasil, já com o título provocativo de “uma

denúncia das patrulhas ideológicas”.

O filme-pivô de toda a polêmica foi Xica da Silva, uma superprodução para os

padrões brasileiros, co-produzido e distribuído pela Embrafilme (Empresa Brasileira de

Filmes), a empresa estatal que era um dos eixos da nova política cultural do governo

militar. O filme encenava a vida da famosa escrava que viveu no Distrito Diamantino

464
”Por um cinema popular e sem ideologias”. O Estado de São Paulo, agosto, 31, 1978. A mesma
entrevista foi republicada sob o título, mais bombástico, de “Uma denúncia das patrulhas ideológicas”,
Jornal do Brasil setembro 3, 1978, Caderno B, p.2. No mesmo dia, Diegues ainda publicou um texto-
manifesto e concedeu uma entrevista à Folha de São Paulo, onde reiterava suas críticas às “patrulhas”.
Estes textos foram republicados na íntegra em Diegues, Carlos. Cinema Brasileiro: idéias e
imagens.(Porto Alegre: Editora UFRGS, 1999).
465
DIEGUES, C. Op.cit. p.32-33
282

no século XVIII, amante do contratador de diamantes João Fernandes, o homem mais

rico da Colônia. Ao optar pelo humor e erotismo, amarrados pelo tom de farsa histórica

da narrativa, ao mesmo tempo em que tocava em questões caras ao pensamento

progressista, tais como escravidão, racismo, colonialismo, rebeldia, entre outros, o

filme dividiu a crítica de esquerda, especializada ou não.

Pelo tom indignado de Carlos Diegues, poderíamos ficar com a impressão de

que o seu filme foi um fracasso de crítica e vítima de algum boicote da opinião pública

intelectualizada. Na verdade, o filme Xica da Silva foi um grande sucesso de público e,

em certa medida, também de crítica. Ganhou importantes prêmios, ao longo de 1976,

no Festival de Brasília, além de três prêmios “Air France”, na época relativamente

valorizado. Foi considerado um filme que aliava qualidade e diversão, por quase todos

os órgãos de imprensa da época, como a Revista Veja (Sergio Augusto), o Jornal do

Brasil (José Carlos Avellar) e O Globo. Na estréia, foi elogiado por artistas como

Caetano Veloso, Gustavo Dahl e Chico Buarque e Glauber Rocha. Este último apesar

de ter o seu prestígio abalado junto às esquerdas, depois de elogiar os generais

nacionalistas do governo Geisel, ainda era o grande guru do cinema brasileiro e foi um

dos defensores mais incisivos do filme do amigo Carlos Diegues e da aliança do

cinema brasileiro com a política cultural oficial.

Enfim, se o filme Xica da Silva teve tanta repercussão positiva, qual a causa da

indignação de Carlos Diegues, motivando um desabafo tão vigoroso e amplamente

ecoado pelos maiores órgãos da imprensa liberal da época? A rigor, o filme foi alvo de

críticas mais pesadas somente em dois jornais, da chamada “imprensa alternativa” – o

jornal Opinião e o jornal Movimento466 - que gozavam de grande prestígio junto à

intelectualidade acadêmica, estudantil e militante de esquerda, além de possuírem

uma aura de resistência heróica ao regime militar, em um momento em que todos os

grupos de esquerda estavam ilegais. Este ponto é importante, pois a rigor, as

466
Sobre a imprensa alternativa, destacamos o trabalho de KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
Revolucionários Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta. 1991
283

restrições ao filme de Carlos Diegues, bem como as críticas posteriores às posturas

heterodoxas de outros artistas, não partiram de jornalistas consagrados nos grandes

veículos de expressão, e sim de jovens articulistas ligados organicamente aos

movimentos sociais ou a esquerda intelectual universitária. Portanto, havia um grande

descompasso entre a notoriedade dos patrulhados, artistas nacionalmente famosos,

em contraponto com o relativo anonimato dos patrulheiros. As reações indignadas e

debates acalorados que se seguiram podem ser sinais de que os “patrulheiros”

expressavam uma importante parcela da opinião pública de esquerda, oriunda,

sobretudo, dos segmentos universitários, grande consumidora dos produtos culturais

críticos ao regime.

O jornal Movimento publicou em 27 de setembro de 1976, uma pesada crítica

ao filme, sobretudo às suas implicações ideológicas. Luis Roncari e Wolfgang Leo

Maar, dois nomes ligados à Universidade, acusaram Cacá Diegues de “voltar a matar”

Xica da Silva, transformando-a numa “dama de corte”, cultuando uma “inteligência fora

de lugar” na medida em que o filme elogiava a “malandragem” e o poder de sedução

da escrava Xica para sobreviver no sistema escravista. Para os críticos, o filme

operava uma “ideologização pretensamente tropicalista”, com os “negros ocupando a

fortuna e a liberdade dos brancos”. Além disso, o filme era acusado de privilegiar o

conflito português-colono, e não o conflito “senhor-escravo”. Os autores, ao apontar tal

perspectiva ideológica embutida no filme, diziam que Carlos Diegues era produto do

ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e, como tal, reiterava o projeto

nacionalista derrotado em 1964, conciliando elitismo político e nacionalismo caricato.

Terminavam o artigo de maneira provocativa, dizendo que Xica da Silva era “o melhor

exemplo de como adequar o Brasil Colonial e escravocrata às perspectivas de

1976”467.

467
RONCARI, Luis. e MAAR, Wolfgang. “O novo samba enredo de Xica da Silva”, Movimento, nº 65,
setembro, 09,1976, 17
284

Ao criticar o filme, os autores na verdade adensavam o debate maior entre a

chamada “sociologia paulista”, crítica aos “resquícios” do nacionalismo e do

populismo, e os nacionalistas de esquerda, agrupados principalmente em torno do

PCB. A expressão “perspectivas de 1976” era uma alusão ao projeto de Abertura do

regime militar, que procurava retomar o contato com setores intelectuais de oposição,

visando construir uma ponte com a sociedade civil. O artigo sugeria que Cacá Diegues

era um instrumento, ativo ou passivo, deste projeto que fazia convergir nacionalismos

de esquerda e de direita.

O jornal Opinião, através de cinco artigos, veiculou uma avaliação mais ampla

e plural do filme Xica da Silva468. Duramente criticado por Carlos Frederico, Carlos

Hasenbalg e Beatriz Nascimento, o filme foi defendido pelo antropólogo Roberto da

Matta e pelo escritor Antonio Callado. Portanto, nem se pode dizer que o jornal foi

institucionalmente tendencioso, pois o conjunto de artigos caracteriza mais um debate

que uma condenação pública do filme. A rigor, Celso Frederico, Carlos Hasenbalg e

Beatriz Nascimento foram os que criticaram duramente o filme469. Para o primeiro, Xica

da Silva é o casamento do “cinema novo” com a “pornochanchada”, surgindo daí uma

“pornochanchada cultural”, elogiando os dotes sexuais de um personagem histórico

que era uma “prostituta assumida, alienada, traidora, inconseqüente”470. Para o

sociólogo Hasenbalg, o filme reforçava os preconceitos contra a mulher negra,

elogiando um projeto “apolítico” de ascensão individual471. Beatriz Nascimento via no

filme um “deboche” da verdadeira cultura popular, sendo “acrítico”, faltando com rigor

à “fidelidade histórica”, sugerindo-se sua inclusão no “index” das obras proibidas, à

esquerda472.

468
Opinião, nº 206, outubro, 10,1976, 18-21.
469
Celso Frederico e Carlos Hasenbalg eram doutorandos em sociologia na época. O primeiro tornou-se
especialista em questões de estética marxista e o segundo, especialista em relações raciais no Brasil.
Ambos estavam ligados ao campo do marxismo universitário.
470
FREDERICO, C.”Genial?Racista?Digno do Oscar? Abacaxi?”. Opinião, out 10, 1976, p.18-19
471
HASENBALG, Carlos. “Copiando o senso comum”. Opinião, out 10, 1976, p. 19
472
NASCIMENTO, Beatriz. “A senzala vista da Casa Grande”. Opinião, out 10, 1976, p.20-21
285

Por outro lado, o antropólogo Roberto da Matta e o escritor Antonio Callado

elogiaram o filme e destacaram as ambigüidades e inversões embutidas no tom

farsesco de Xica da Silva, vendo na personagem a astúcia dos fracos que usa o corpo

para inverter a ordem no mundo do poder e dos poderosos473.

Apesar dessas críticas terem sido feitas no final de 1976, somente no segundo

semestre de 1978 é que o tema das “patrulhas ideológicas” realmente se disseminou

na opinião pública. Carlos Diegues estava lançando seu novo filme – Chuvas de Verão

– que também não seguia a fórmula dos filmes engajados e militantes, ao contar a

história de amor de dois idosos num subúrbio carioca. Ao veicular sua indignação em

dois grandes jornais da imprensa liberal (um, O Estado de S.Paulo, conservador e o

outro, Jornal do Brasil, progressista), Cacá criou o slogan que foi a senha para muitos

artistas “patrulhados” virem a público. Heloísa Buarque de Holanda organizadora de

um livro sobre as “patrulhas ideológicas”, publicado em 1980, tentou contextualizar o

debate e sistematizar as posições474: “Antes - observa Heloisa - o termo era utilizado

pela direita para apontar as "patrulhas" como uma espécie de bode expiatório

responsável por todas as dificuldades existentes na vida intelectual. Por que o nome e

a coisa não apareceram antes? Porque durante os anos mais difíceis a oposição

fechava-se taticamente, ninguém rompia essa barreira. Com o início da abertura

identifica-se o monstro: a ortodoxia do Partido Comunista Brasileiro”475. Heloísa

Buarque de Hollanda observa que este monstro foi gestado na manipulação e

simplificação que a “imprensa conservadora” fez do debate em torno das “patrulhas”476.

Em um primeiro momento, o já cambaleante PCB foi apontado, mais ou menos

explicitamente, como o foco dos patrulheiros de plantão, cobrando dos artistas que se

pretendiam de oposição ao regime militar, atitude críticas como cidadãos e criadores

culturais, voltadas para o projeto de estimular a consciência crítica das massas. Mas, a
473
MATTA, R. “A hierarquia e o poder dos fracos”. Opinião, out 10, 1976,p. 19-20; CALLADO, Antonio.
“Bem nascido e bem dotado”. Opinião, out 10, 1976, p.21
474
HOLLANDA, H.B. e MESSEDER, C. Op.cit.
475
Jornal do Brasil, 30/08/1980, arquivo on-line acessado em 28/5/2004
476
HOLLANDA, H.B. e MESSEDER,C. Op.cit., p.8
286

rigor, o epicentro das patrulhas ideológicas era mais disperso, pois envolvia vários

pólos em conflito.

No caso de Xica da Silva, as cobranças foram potencializadas à medida que o

filme foi um grande sucesso, com cerca de 10 milhões de espectadores. Em pouco

tempo, muitos outros artistas e intelectuais adotaram a expressão e em pouco tempo,

tinha-se a impressão que todo mundo patrulhava todo mundo na cena cultural

brasileira. Entretanto, Hollanda e Messeder apontam uma chave de leitura

interessante, ao focar a situação específica do cinema e dos cineastas brasileiros que,

naquele momento, se aproximavam do Estado, via Embrafilme, para compensar as

fragilidades de sua inserção no mercado dominado pela produção norte-americana e

pela distribuição das multinacionais. Assim, os cineastas, mesmo aqueles ícones do

Cinema Novo, ao assumirem a relação entre Estado e mercado, acendiam um debate

em torno de dois anátemas para a esquerda mais purista, ao mesmo tempo em que

suas críticas às “patrulhas” serviam ao discurso liberal da grande imprensa. O clima de

“abertura política” permitia a explicitação de uma tensão no campo da oposição que

havia muito tempo “estava no ar”, em meio à qual os atores políticos e culturais

adotavam estratégias de distinção ideológica entre si, reposicionando-se em relação

ao novo contexto477. O resultado só poderia ser um curto-circuito de comunicação,

causando o enviesamento do sentido das críticas, réplicas e tréplicas que

extrapolaram o campo cinematográfico, atingindo todo o campo cultural da esquerda

brasileira.

Tendo em vista a linha cruzada de comunicação que se seguiu à entrevista de

Cacá Diegues, podemos arriscar uma tipologia de atores deste debate:

- Os cineastas e produtores oriundos do Cinema Novo, reagrupados em torno de um

projeto de cinema brasileiro apoiado pelo Estado. Os melhores exemplos desta

postura foram as polêmicas entrevistas de Glauber Rocha na revista Visão (ainda no

477
Idem, ib.
287

exílio, em 1974), em outros jornais, entre 1977 e 1978, já em pleno fogo cruzado do

debate, além das declarações e textos já citados de Cacá Diegues.

- A imprensa liberal que, seja através da cessão do espaço dos jornais, seja através

da fala de articulistas mais identificados com a linha editorial liberal, tentava direcionar

as críticas ao projeto de arte engajada e nacionalista, de tradição comunista.

- Os artistas e intelectuais críticos da arte engajada e nacionalista que buscavam uma

linha mais ampla de crítica cultural e comportamental, ancorados de uma forma ou de

outra no vigoroso mercado fonográfico, para os quais a ação da política cultural do

Estado não era relevantes em termos de oportunidades profissionais e criação artística

(Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Mautner, Antonio Calmon).

- Os intelectuais e militantes da esquerda, que se dividiam entre nacionalistas de

matriz comunista, e críticos do nacional-populismo, correntes que na época travavam

um debate próprio478. A imprensa alternativa era o espaço onde suas posições e

críticas eram mais explicitadas. A princípio, estes seriam os “patrulheiros” que

desencadearam o debate. No entanto, é necessário destacar que a imprensa

alternativa, majoritariamente de esquerda, acabou revelando-se mais plural ao longo

do debate do que a própria imprensa liberal, constituindo-se em espaço de polêmica.

O jornal O Pasquim, por exemplo, foi um dos espaços que os “patrulhados” - Glauber

e Cacá, entre outros - puderam exercer a liberdade de manifestação. Ao mesmo

tempo, é bom lembrar, alguns membros do jornal, como os cartunistas Ziraldo e Henfil,

ficaram famosos pelas suas críticas a qualquer tipo de adesão ideológica ao regime

militar colocadas nas páginas do Pasquim.

Exemplo do curto-circuito de comunicação que se seguiu foi o caso de

Caetano Veloso, um dos patrulhados por defender as virtudes culturais de uma música

dançante, em meio à expansão da moda dançante capitaneada pela discoteque.

Caetano, apesar disso, fez questão de marcar posição diferenciada em relação à Caca

Diegues: “Eu acho os filmes dele [Cacá Diegues] mais parecidos com o outro lado do

478
MOTA, Carlos G. Op.cit.
288

que com o lado patrulhado”479. Em outra entrevista, para a Revista Istoé, em dezembro

de 1978, bem ao seu estilo polemista, o compositor baiano atacava: “No Brasil ser de

esquerda é questão de status”. Além das declarações polêmicas e das posturas

comportamentais que não se enquadravam na linha da esquerda ortodoxa, Caetano

provocava verdadeira ojeriza da opinião pública de esquerda mais sisuda quando

cantava, em plena ditadura “deixa eu cantar / pro meu corpo ficar Odara”. Nos anos

1980, surgiu até uma certa “patrulha Odara”, apelido irônico da corrente de opinião

voltada para a defesa de uma contracultura pop e libertária, que invertia os sinais da

cobrança, considerando qualquer atitude politizada como fora-de-moda e maçante.

Mesmo Aldir Blanc, letrista consagrado pela audiência politizada, também se sentiu

patrulhado e atacou: “Eu tive experiências com muitas pessoas de esquerda, mas eu

procuro fugir da visão da esquerda, de parte da esquerda brasileira, que não evoluiu

historicamente, como se tivesse sido fechada para balanço, e quando há uma chance

de voltar, volta toda stalinista”480 .

Tentando esclarecer, mas na verdade jogando mais combustível no incêndio,

Glauber Rocha deu uma explicação completa para o caso, apontando o dedo para

outros endereços ideológicos. Vale a pena a longa citação481: “Por exemplo, quem

divulgou esta história de Patrulha Ideológica, baseado em declarações de Cacá

Diegues, foi o jornal O Estado de São Paulo que é um jornal da extrema direita

paulista, que foi combatido até pelo Cláudio Abramo na Folha, que lamentou que as

declarações de Cacá tivessem se prestado a uma provocação anti-comunista no seio

da intelectualidade (...) Diga-se de passagem, que a denúncia de Cacá não tinha como

objetivo o Partido Comunista, na verdade, essa história de Patrulha Ideológica tem

uma raiz interna que a imprensa nem sabe e o público também fica sem saber. Mas o

problema é o seguinte: quando subiu o general Geisel em 1974, nesse período,

formou-se o jornal Opinião, dirigido pelo senhor Fernando Gasparian, que era ligado

479
apud VENTURA et alli. Op.cit. p.154
480
HOLLANDA, H.B e MESSEDER, C. Op.cit., p.119
481
apud VENTURA, Z. et alli. Op.cit. p. 156
289

ao MDB. A maioria dos colaboradores desse jornal era composta de universitários, dos

quais uma parte – professores, sociólogos, cientistas sociais e tal – estava ligada ao

CEBRAP, que é co-financiado ou patrocinado pela Fundação Rockfeller ou pela

Fundação Ford, não sei qual. Acontece que a política cultural desse grupo – que tem

inclusive ligações com o liberalismo americano, ou seja com o kennedismo – havia

uma ordem de combater o Cinema Novo, por que o cinema novo estava ligado ao

Estado, via Embrafilme (....) a patrulha era coisa da social democracia e do liberalismo

(MDB) e não do PC, parte do aparato ideológico para combater o nacionalismo”.

Glauber, portanto, tenta relacionar a esquerda intelectual, oriunda

principalmente da chamada “sociologia paulista” (representada no CEBRAP), às

patrulhas ideológicas. Na segunda metade dos anos 1970, o mais famoso cineasta

brasileiro, assumia ainda mais suas posturas nacionalistas, vislumbrando o

nacionalismo militar que pretensamente seria representado pelos generais Ernesto

Geisel e Golbery do Couto e Silva, como um novo projeto nacional-popular, alternativo

ao imperialismo norte-americano. É bom lembrar que a sociologia paulista sempre fora

crítica do nacionalismo de esquerda, representado principalmente pelos comunistas482.

Ferreira Gullar, historicamente mais afinado ao PCB, e reafirmando a tese da

unidade das oposições ao regime, cada vez mais esgarçada àquela altura, alertou483:

“a questão das patrulhas só produz, da parte dos intelectuais, um certo horror a este

tipo de cobrança e uma hostilidade com relação às pessoas que fazem esta cobrança,

o que tem como conseqüência a divisão do setor intelectual, e isto é uma coisa

perniciosa, principalmente neste momento”.

A implosão da unidade da “resistência democrática” e o fim da arte engajada de

esquerda

482
MOTA, Carlos G. Op.cit.
483
apud VENTURA, Z. et alli. Op.cit. p. 181
290

Os exemplos tirados das fontes de época poderiam ser inúmeros. O que

importa ressaltar é que, tomando por base os trechos citados, parecia haver uma

grande sensação de falta de rumo e de projeto cultural, expressiva de uma crise da

cultura política nacional-popular, bem como pelo avanço da indústria da cultura. A

abertura mínima do espaço público, com o fim anunciado do AI-5 (extinto em

dezembro de 1978), acabava por expor as tensões internas da esquerda que a

estratégia da resistência em bloco ao inimigo comum tentava ocultar. A crítica cultural

ao regime militar oscilava, desde o início dos anos 1970, entre diversas estratégias e

valores estéticos-ideológicos analisados ao longo dos capítulos anteriores, cujas

divergências estavam relativamente abafadas nos anos de chumbo484.

Assim, a conjuntura na qual emergiu o debate sobre as patrulhas ideológicas

reiterava os sinais de esgotamento de certa identidade intelectual de esquerda, porta-

voz dos interesses populares na política e na cultura, já anunciada desde 1968, mas

congelada no momento de maior repressão do regime. Esta crise era marcada por três

percepções cada vez mais disseminadas na opinião pública de esquerda485: 1) não

havia mais a crença em um "evolucionismo" da afirmação da identidade nacional como

resultado do progresso necessário da história; 2) não havia mais uma visão

homogênea de “povo” para emanar a identidade nacional; 3) não havia mais uma

expressão ideológica segura para aglutinar o interesse geral, nem uma estratégia

política hegemônica vista como ponte para a transição democrática na superação do

regime militar.

A reflexão em torno do papel do “povo” (ou das “classes populares”) apartava-

se da reflexão sobre a nação, à medida que criticava as velhas políticas aliancistas

que haviam sustentado as estratégias da esquerda nacionalista. Esta revisão teve

consequências desiguais, na cultura e na política. Neste último campo, causou um

484
Outra tipologia, de caráter mais político-ideológico, da oposição ao regime militar pode ser vista em
SAES, Décio.Op.cit. O autor destaca três vertentes: a oposição liberal, a oposição sindical e oposição
democrático-popular.
485
PECAULT, D. Op.cit.
291

terremoto, esgarçando de vez a influência da esquerda comunista e abrindo espaço

tanto para o velho populismo esquerdista, quanto para a nova esquerda que iria

desembocar na criação do PT. Já na vida cultural a busca da autonomia das

expressões populares não conseguiu ir além da crítica do nacional-popular e da

valorização da cultura popular em si e por si mesma, sem criar novos circuitos e

paradigmas de arte engajada486. Inegavelmente, havia um debate político-partidário

por trás deste processo, ancorado na emergência de um movimento popular e sindical

vigoroso nas periferias das grandes cidades, que colocava em xeque um dos

princípios da cultura nacional-popular, que era a política de alianças de classe com

base no discurso nacionalista. A nova esquerda da década de 1980 promovia uma

reavaliação crítica do nacional-popular e uma ampla valorização, quase “obreirista”,

das potencialidades críticas da “cultura popular” local e proletária, pretensamente livre

da tutela dos artistas e intelectuais de esquerda487.

Ainda assim, na conjuntura do caso das “patrulhas ideológicas”, a corrente de

opinião que se considerava herdeira da velha esquerda nacionalista detinha alguma

hegemonia nos meios intelectuais e jornalísticos, e procurava imprimir uma “linha

justa” às reflexões e obras de arte produzidas por artistas e intelectuais que deveriam

ocupar uma posição crítica em relação ao contexto político. Na verdade, a contra-

ofensiva artística e cultural da linha nacional-popular (em outras palavras, a chamada

“corrente da hegemonia cultural” comunista), já vinha desde meados da década de

1970. No teatro, na teledramaturgia, na música popular e em boa parte da indústria do

cinema, os criadores identificados com o “partidão” ainda tinham uma considerável

influência sobre os artistas mais engajados e conseguiram emplacar, sobretudo no

486
Esta afirmação não nega a existência de uma arte de crítica social, que até hoje existe no Brasil, muito
ligada às novas identidades subjetivas que surgiram após os anos 1980, como aquelas representadas
pelos movimentos jovens, negros, de mulheres, etc. Apenas queremos destacar o esgotamento de um
tipo de arte engajada, ancorada em projetos universalistas de revolução política e social em direção ao
socialismo.
487
CHAUI, M. Seminários. Coleção “O nacional e popular na cultura brasileira”, São Paulo, Brasiliense,
1983.
292

campo da dramaturgia, obras importantes e bem-sucedidas, como vimos

anteriormente.

Para a variável liberal da oposição, o debate sobre as “patrulhas” era uma

oportunidade para isolar e neutralizar a influência da esquerda como um todo, mas,

sobretudo, a hegemonia cultural da esquerda comunista, muito significativa em setores

ligados a industria da cultura. Não foi por acaso que os grandes jornais liberais deram

ampla cobertura ao caso, dentro de uma posição editorial assumida. Um editorial da

Folha de S.Paulo chegou a afirmar que a “esquerda também tem seus patrulheiros,

verdadeiros corifeus de um terrorismo cultural que muitas vezes tem feito mais mal à

imprensa do que a censura”488.

Ancoradas na lógica de liberdade de criação e opinião, voltadas para o

mercado, as correntes liberais posicionavam-se contra o dirigismo e a exigência de

uma arte politizada como imperativo para a criação cultural. Na época, estes valores

liberais não eram consensuais entre os produtores culturais e ainda reinava uma certa

desconfiança em relação à imprensa liberal, uma das apoiadoras do golpe militar de

1964. Um dos poucos artistas a lembrar do caráter coercitivo da visão liberal de cultura

de mercado, que pegava carona na fala libertária de muitos “antipatrulheiros”, foi José

Celso Martinez Correa que se preocupava menos com os críticos de esquerda, e mais

com a “irresponsável concepção liberal de arte que termina por limitar a arte ao

universo do consumo”489.

Entretanto, não devemos supor que os liberais defendessem um ideal de

cultura completamente fútil, voltado para o lazer e para o consumo

descompromissado. A questão principal era permitir que produtos culturais tivessem a

marca dos seus indivíduos criadores, livremente inseridos no mercado, sem

imperativos políticos dados a priori por uma instância partidária ou ideológica. Além

disso, a imprensa liberal, ao amplificar o debate, direcionava uma crítica sutil à

488
Folha de S.Paulo , 22/1/80, p. 2
489
apud DUNN, C. Op.cit. p. 8
293

pequena imprensa de esquerda, pois foram os tablóides de esquerda que veicularam

as primeiras críticas ideológicas mais pesadas sobre o filme Xica da Silva, e

desencadearam a polêmica das “patrulhas”. A imprensa liberal tinha como dogma,

nem sempre praticado dentro das próprias redações dos grandes jornais, a questão da

liberdade absoluta de criação e expressão, além do fetiche do mercado como espaço

de “livre” circulação de idéias e mercadorias, como se os grandes interesses

econômicos fossem uma abstração neutra. Portanto, neste sentido, veiculavam

valores diferentes da imprensa alternativa de esquerda, de posições ideológicas

assumidamente parciais e sempre desconfiadas das leis de mercado.

Para além das polêmicas personalistas e idiossincráticas, podemos notar que o

epicentro do debate em torno das “patrulhas ideológicas” situa-se em outro lugar,

marcado pelo embate entre as diversas políticas culturais de resistência ao longo dos

anos 1970. A querela central no começo da década era entre as táticas de “guerrilha

cultural” (contracultura e nova esquerda) e as táticas de “ocupação de espaços” no

Estado ou no mercado (tradição comunista). Nestes termos é que a questão da

inserção ou não da arte e do artista de esquerda na indústria da cultura, voltava à

cena. Já no final dos anos 1970, o artista de esquerda não poderia mais supor que a

“ida ao mercado” era uma estratégia sem conseqüência políticas, veículo neutro para

expor suas idéias a um público mais amplo, tal como preconizado até meados dos

anos 1960. Cada vez mais, a indústria da cultura exigia fórmulas estéticas voltadas

para o consumo cultural, o que nem sempre se harmonizava com as exigências

políticas em torno da arte engajada. Esta tensão não era novidade, mas se acirrava no

contexto da abertura política, com a afirmação do mercado como mediação cultural

hegemônica e a presença de uma política cultural agressiva e cooptadora. Se o

estatuto de uma arte engajada, dentro da tradição de autonomia estética da arte

ocidental, já consistia um problema em si, outra pergunta se fazia cada vez mais ouvir

em meio ao debate: como seria possível uma arte engajada mediada pela lógica do

consumo cultural industrializado?


294

Por trás da trama no caso das patrulhas ideológicas, havia um cenário invisível,

bem mais complexo. A linha cruzada de acusações recíprocas fazia com que os

mesmos personagens fossem acusados ora de patrulheiros, ora de patrulhados,

revelando o clima de confusão ideológica e divisionismo que a política de abertura

suscitou no campo da resistência cultural ao regime. Qualquer avaliação crítica era

logo rejeitada e estigmatizada como sendo parte de uma patrulha ideológica ilegítima,

revelando a fragilidade do debate e os dilemas da vida cultural, que eram veículos, por

sua vez, dos dilemas da vida política em tempos de “abertura”. Com as universidades

cerceadas e burocratizadas, com as organizações e movimentos populares sem uma

política cultural definida, com os partidos e organizações de esquerda ilegais e

semiclandestinas, o debate em torno das “patrulhas ideológicas” acabou por ser

extremamente personalizado e preso à dinâmica da grande imprensa, cujo interesse

se voltava ao escândalo e ao personalismo dos protagonistas.

Os efeitos do golpe militar e da modernização capitalista sobre a cultura foram

de tal modo impactantes que quando o regime militar anunciou sua agenda de

“abertura política”, imbricando-se com um movimento democrático que partia da

sociedade civil490, assistiu-se a um debate cultural enviesado, no qual já não se sabia

para quem estavam direcionadas as obras engajadas (“povo” ou “público”?), quem era

o inimigo principal a ser combatido, como retomar o elo perdido com a política cultural

do passado centrada no nacional-popular. Neste sentido, o novo contexto era em

quase tudo diferente da esfera pública convergente que se esboçou no imediato pós-

golpe, quando o regime era visto, por quase todos os intelectuais de maior prestígio,

como “inimigo da cultura”.

Em meio a esta luta cultural complexa, uma instância afirmava-se cada vez

mais sobre as outras, como mediação social e medida de valor da vida cultural

490
LAHUERTA, Milton. “Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo e política no
Brasil”. Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP), v. 8, p. 53-95, 2001
295

brasileira: o mercado, em processo de mutação estrutural desde os anos 1960491. A

questão, portanto, vai além do julgamento moral perante o tribunal da história deste

processo de inserção da cultura de esquerda no mercado, muito comum à esquerda492

e à direita493. Trata-se de entender a sua dinâmica histórica, sintetizada em novos

dilemas colocados para o campo da cultura engajada: o que fazer com o legado da

“missão” conscientizadora da arte, tão cultuada pela tradição de esquerda? Como

conciliar uma política de conteúdo “engajado” com as demandas de lazer e diversão

do mercado? Como assimilar as políticas de mecenato oficial, oriundas de um Estado

autoritário, produto de um golpe militar combatido por todos os artistas progressistas,

sem caracterizar um “pacto faústico” com o poder? Como expressar novos valores e

demandas sociais, oriundas de uma sociedade modernizada a fórceps, com antigos

valores revolucionários, questionados pelas sucessivas derrotas políticas, acumuladas

desde 1964? Como entender um país marcado por uma relativa “hegemonia cultural”

da esquerda e por uma compacta hegemonia política da direita?

Estes foram os enigmas lançados pela esfinge-mercado, situados nas

entrelinhas do caso das “patrulhas ideológicas” e que não se resolvem no julgamento

fácil dos indivíduos ou grupos que aderiram e dos que resistiram ao “sistema”. A

questão é outra. Trata-se de entender, se e como a esfinge devorou mesmo aqueles

que decifraram seus enigmas e quais as implicações da hegemonia cultural da

491
ORTIZ, R. Op.cit.
492
A opinião pública de esquerda (não-comunista) tende a perceber este processo como uma
“cooptação” de seus quadros pela indústria da cultura e pela burocracia estatal, visão em parte
endossada por analistas da cultura de esquerda brasileira, como Edelço Mostaço (MOSTAÇO, E. Op.cit).
493
O campo intelectual da direita conservadora ou liberal também se posicionou em relação às
contradições da “hegemonia cultural” da esquerda no Brasil, desde os anos 1960. Exemplos deste tipo de
crítica podem ser notados nas crônicas de Nelson Rodrigues, nas colunas de Paulo Francis dos anos
1980 e seus seguidores contemporâneos que atualmente hegemonizaram o colunismo político-cultural
nos jornais brasileiros. Ocorre, no entanto, que as críticas da cultura de esquerda, quando proferidas por
estes polemistas de direita, acabam limitando-se a um olhar anticomunista (ou antiesquerdista) e a uma
linha de argumentação excessivamente valorativa e adjetivante. Neste sentido, a análise destes autores é
marcada, quase sempre, pelo tom saudoso de uma erudição perdida, pela defesa de uma espiritualidade
idealizada ou pela denúncia do conjunto dos artistas e intelectuais engajados como meros “impostores”
incultos. Paradoxalmente, estes textos têm um estilo mais próximo dos autores panfletários da esquerda
militante, o que dificulta um diálogo acadêmico mais sistemático com suas críticas culturais, mesmo
considerando a eventual pertinência de alguns dos seus argumentos. A única exceção entre estes críticos
culturais situados no espectro da direita, surgidos a partir dos anos 1960, talvez seja José Guilherme
Merquior. Este, um liberal assumido, elaborou uma obra respeitada em torno da crítica literária e
filosófica, indo além das suas famosas polêmicas com intelectuais de esquerda ao longo dos anos 1980,
como Marilena Chauí, Francisco de Oliveira e Helio Pellegrino, entre outros.
296

esquerda para a batalha da memória sobre o sentido histórico da ditadura militar no

Brasil.
297

CAPÍTULO 8

A NOVA ESQUERDA DOS ANOS 1970 E IMPLOSÃO DO FRENTISMO CULTURAL

Tensões no campo da esquerda sob o regime militar

A nova esquerda é o segmento menos estudado, do ponto de vista da história

cultural do regime militar. Objeto de ampla reflexão, quase sempre feita por

acadêmicos simpáticos às suas críticas à “velha” esquerda nacionalista, comunista ou

trabalhista, que se debruçaram sobre as práticas basistas e democratizantes dos

movimentos sociais surgidos nos anos 1970494. Esses movimentos compartilhavam

entre si a crítica ao nacionalismo, ao vanguardismo e à aliança de classes, e tiveram

importância fundamental no desenvolvimento de uma revisão da cultura política

nacional-popular. A criação do Partido dos Trabalhadores em 1980495 foi saudada

como a expressão organizada desta corrente, aprofundando a crise do frentismo que,

até então, era acalentado pela oposição ao regime, sobretudo pelo PCB.

Uma das matrizes mais importantes da nova esquerda foi a esquerda

católica496. As relações entre Igreja católica e política foram pautadas,

tradicionalmente, por um viés conservador e mantenedor do status quo social e das

494
SINGER, Paul et alli. São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis, Vozes, 1980; SADER, Eder.
Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988;; MACEDO, Carmem
C. Tempo de gênesis: o povo das CEBs. São Paulo, Brasiliense, 1986; DUARTE, Laura. Isto não se
aprende na escola. Petropolis, Vozes, 1984. Para uma visão crítica desta corrente ver COHN, Maria
Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo, Edições
Loyola, 2007 (6ªed), p. 273-294. Sobre as teorias e o contexto de atuação dos “Novos Movimentos
Sociais” nos anos 1970 e 1980, ver EVERS, Tillman. "Identidade: a face oculta dos movimentos sociais".
Novos Estudos Cebrap, 10, 1984; BOSCHI, Renato Raul. A arte da associação. Vértice e IUPERJ. São
Paulo/Rio de Janeiro, 1987; MOISÉS, José Álvaro et alii Cidade, povo e poder Paz e Terra, Rio de
Janeiro, 1985 (2ªed.); SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no
cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. Brasiliense, São Paulo, 1987.
495
Sobre a trajetória do PT e sua relação com os movimentos sociais e sindicais ver KECK, Margareth.
PT: a lógica da diferença. O partido dos Trabalhadores na construção da democracia brasileira. São
Paulo, Brasiliense, 1991
496
Sobre a esquerda católica no Brasil ver RIDENTI, Marcelo. “A ação popular” IN: .REIS FILHO, D. e
RIDENTI, M (orgs). História do Marxismo no Brasil (vol.5). Campinas, Ed. Unicamp, 2002;
MAINWARING, S. Igreja e política no Brasil. Brasiliense, 1989 (p.81-98); LIMA, H. & ARANTES, Aldo.
História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo, Alfa-Omega, 1984. Um dos primeiros livros
sobre esta corrente foi escrito por Candido Mendes (Memento dos Vivos, 1966). Para uma análise mais
ampla da gênese político-filosófica da “esquerda cristã” ver BOSI, A. “Lugares de encontro.
Contraideologia e utopia na história da esquerda cristã” IN: Ideologia e Contraideologia.Op.cit. p. 257-
275. Neste artigo, Bosi destaca a atuação do movimento “Economia e Humanismo”, coordenado pelo
padre Louis-Joseph Lebret na França entre os anos 1940 e 1950. Para ele, este movimento ao lado da
atuação do Padre Lebret no Brasil está na base do “terceiro-mundismo católico”, até hoje vigoroso.
298

hierarquias econômicas. A Igreja, como instituição transnacional, renovou seu ativismo

político informada pelo antimodernismo do catolicismo Romano de Leão XIII e Pio IX,

ainda no século XIX, pelo novo papel atribuído ao laicato na afirmação doutrinária na

sociedade e pela luta contra o comunismo ateu, sobretudo a partir de 1917, ano do

triunfo dos bolcheviques na Rússia. No Brasil, a Igreja Católica potencializou-se como

ator político a partir da atuação de Dom Sebastião Leme497, dos intelectuais laicos dos

anos 1920 e 1930, e dos movimentos leigos como as Juventudes Universitárias

Católicas (1930), os Círculos Operários (1930), a Ação Católica Brasileira (1935) e a

Congregação Mariana (1924). A Liga Eleitoral Católica de 1932 procurou transformar a

ação cultural e social da Igreja Católica em uma plataforma política de atuação em

meio à rica conjuntura política criada pela Revolução de 1930, que colocou Getúlio

Vargas, um agnóstico positivista, no poder.

Apesar do viés conservador, para não dizer reacionário, que a Igreja

desempenhou como ator político em boa parte do século XX brasileiro, a sua

aproximação com os fiéis, através dos movimentos laicos, acabou por contaminar a

instituição dos novos valores políticos surgidos na luta por justiça social e defesa dos

interesses populares, acabando por consolidar na hierarquia católica o conceito de

Igreja como “povo de Deus”, sobretudo a parir do Concílio Vaticano II (1961-1965)498.

Entretanto, a partir daí, o “povo de Deus” deixava de ser uma categoria genérica, e

passava a ser visto como “povo enquanto categoria específica que se refere ao

conjunto dos subordinados e, logo, aos dominados e pobres, os ‘de baixo’”499

A esquerda católica brasileira surgiu, não por acaso, em meio a um desses

movimentos laicos, a Juventude Universitária Católica, mais precisamente na


497
Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942) foi cardeal de Olinda e Recife (1916-1921) e do Rio de
Janeiro (1930-1943).
498
O documento em que as mudanças na perspectiva pastoral da Igreja Católica são perceptíveis intitula-
se Gaudium et Spes (1965). Nele, ficou sistematizada a virada da Igreja em relação ao mundo
contemporâneo e seus problemas (explosão demográfica, guerras, conflito de classes), bem como maior
abertura aos “progressos científicos” que marcaram o século XX. Enfim, tratava-se da atualização da
Doutrina Social da Igreja, ao mesmo tempo em que se reafirmava sua premência como expressão do
“Povo de Deus” que se manifesta na História.
499
MACEDO, Carmem C. Op.cit.p. 47
299

Conferência Nacional do movimento em 1959. No ano seguinte o Comitê Regional

mineiro publicou a tese “Algumas diretrizes de um ideal histórico cristão para o povo

brasileiro”, consolidando as bases da esquerda católica500. A Ação Popular, criada em

1962, foi o principal grupo organizado da esquerda católica no Brasil, assumindo-se

como vanguarda da revolução libertadora501. Em um primeiro momento, a esquerda

católica e a AP não tiveram a chancela da alta hierarquia eclesiástica católica, que, no

geral, esteve ao lado dos golpistas de 1964, saudando a “vitória sobre o comunismo” e

o triunfo da “paz social”502. As crescentes violações dos direitos humanos, a opção

preferencial pelos ricos e, não menos importante, a influência de jovens padres e

membros do clero que atuavam no trabalho pastoral junto às bases populares,

acabaram por levar a Igreja, como instituição, para o campo da oposição ao regime

militar, posição que seria radicalizada por uma parte significativa da sua alta

hierarquia. A confirmação da necessidade de um trabalho pastoral junto às massas

trabalhadoras, não apenas para conformá-las à ordem do mundo, mas para preparar

um caminho de atuação política visando a “justiça social” e a defesa dos Direitos

Humanos foi confirmada em 1968503. Este ano marca a virada política da Igreja e seu

afastamento em relação ao regime militar brasileiro, ainda que mantivesse alguns

canais de pressão e diálogo crítico na área de Direitos Humanos504. Entre 1970 e 1973,

500
MAINWARING, S. Op.cit. p. 82...
501
“Declaração de Princípios” da AP, 1962.
502
“Nota da CNBB” apud MAINWARING, S.Op.cit. p.102
503
A Teologia da Libertação de viés católico foi proposta por Gustavo Gutierrez no livro Teologia da
libertação (Petrópolis, Ed. Vozes, 1975,original de 1971) e por Leonardo Boff ( no livro Jesus Cristo,
libertador. Petrópolis, Vozes, 1972). Propunha uma releitura dos evangelhos na direção de uma
humanização da ação e da figura de Jesus Cristo, identificada aos oprimidos de todas as épocas. A
realização espiritual de origem divina passa a ser um desafio terreno e humano, na construção da
comunidade dos justos e iguais em luta contra as forças que a impedem. Nesta perspectiva, o “povo de
Deus” não se realiza em uma dimensão metafísica ou pós-apocalíptica, mas como ideal de sociedade a
ser construída cotidianamente em um processo de libertação social que começa com a libertação pessoal
entendida como jornada de conscientização ativa da pessoa humana. Daí a importância que a educação
de base politizada adquiriu para a esquerda católica. Outra vertente da “Teologia da Libertação”, de
matriz protestante-presbiteriana, podemos encontrar em Rubem Alves. Ver ALVES, R. Da esperança.
Campinas, Papirus, 1987.
504
SERBIN, Keneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na Ditadura. São
Paulo, Cia das Letras, 2001. Neste livro, o historiador norte-americano analisa a Comissão Bipartite que
entre 1970 e 1974 manteve um canal de diálogo entre Igreja e governo militar, sobretudo em torno da
questão dos direitos humanos. A existência de um canal institucional entre bispos e generais, conforme o
autor, deve matizar a dimensão que a ruptura entre Igreja e Estado ganhou na historiografia sobre o
regime.
300

sobretudo a partir da atuação dos bispos do Norte e Nordeste, a alta hierarquia

católica passou a criticar abertamente o regime, indicando uma virtual “ruptura

institucional” entre a Igreja e o regime militar505. A arquidiocese de São Paulo seria

uma das mais aguerridas na luta pelos Direitos Humanos, organizando cerimônias

ecumênicas que se transformaram em marcos da luta contra o regime militar, como as

missas para o estudante Alexandre Vannuchi Leme (1973) e para o jornalista

comunista Wladimir Herzog (1975), ambos assassinados pelas forças de segurança

do regime. Esses eventos foram os primeiros protestos públicos de multidão contra o

regime, após o AI-5.

Em São Paulo, foram criadas as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em

1970. Sua criação significou um importante momento de confirmação do viés

progressista da Igreja Católica, dentro do qual atuava a esquerda, composta por

militantes laicos, agentes pastorais e baixo clero. As CEBs foram o laboratório das

concepções de democracia comunitária e basista que informaram a utopia política

católica à esquerda e os novos movimentos sociais por ela influenciados, cuja

emergência histórica, no Brasil, coincidiu com a construção da resistência política e

cultural ao regime militar. Nas CEBs, o ideal de ‘comunidade’ cristã-católica deixava de

ser abstrata, para se tornar experiência de sociabilidade política e cultural realizada a

partir dos bairros periféricos das grandes cidades, locus idealizado da ação da Igreja,

como mediadora crítica entre o Estado e o Povo, a “voz dos que não tem voz”, como

ela mesma se auto-definia506. Ao fim e ao cabo, a Igreja e seus agentes institucionais

se viam como uma vanguarda tanto quando as outras esquerdas, mas uma vanguarda

inserida geográfica e afetivamente dentro das massas populares. Aquilo que era

nomeado pelo PCB como “obreirismo” passava a ser visto como virtude ética do

militante, que fazia do bairro, da comunidade, do cotidiano operário e camponês, seu

505
MAINWARING, S. Op.cit. p. 123. Destaque-se, neste processo, os documentos “Marginalização de um
povo” (24/12/1970) e “Eu ouvi os clamores do povo” (6/9/1973).
506
MACEDO, Carmem C. Op.cit. p.249
301

lugar de ação transformadora. A construção da “voz” popular deveria ser feita, no

interior das CEBs, mediante um dirigismo na forma de debate, Ainda que se

procurasse chegar a um determinado conteúdo, valorizando a ação coletiva orientada

pela e para a comunidade (cristã). Estes procedimentos eram sintetizados no slogan

máximo das CEBs e da Teologia da Libertação: “Ver, julgar e agir”.

Portanto, ao longo dos anos 1970, a Igreja e suas organizações institucionais e

laicas desenvolveram uma forma peculiar de militância política que tinha algumas

bases doutrinárias e práticas bem definidas: direitos humanos, justiça social,

premência da “pessoa humana”, democracia comunitária, voluntarismo ativista e

participativo, conscientização a partir de lutas cotidianas. A violência do regime nos

“anos de chumbo” fez com que esta forma de resistência, por vezes, se imbricasse

com outras, defendidas por outras correntes políticas, e ocupasse os mesmos espaços

de atuação, como os sindicatos de trabalhadores, antes mesmo que o PT demarcasse

a institucionalização da nova esquerda na forma de um partido político que, ao mesmo

tempo, se arvorava como a expressão do movimento social. Antes desse momento,

houve até alguma tentativa de aproximação do PCB e a esquerda católica, processo

que nos remete ao início dos anos 1960, quando surgiu a primeira grande organização

da esquerda católica: a Ação Popular.

Católicos e comunistas: diferenças sobre a “cultura popular”

A Ação Popular elaborou um folheto, em 1963, no qual define o conceito de

“Cultura Popular”, e que pode ser tomada como uma das bases para a futura definição

da política cultural da esquerda católica507. Diz o documento508: “Embora a cultura

moderna tenha uma destinação universal, uma vez que as obras culturais se criam

numa perspectiva antropológica, ela, enquanto polarizada ideologicamente, serve, de

fato, aos interesses de uma classe, de uma determinada posição social. A esse tipo de

507
FÁVERO, Osmar et alli. Cultura popular e educação popular: a memória dos anos 60. Rio de Janeiro,
Graal, 1983, p. 16-30
508
Idem, p. 22-23
302

cultura, imediatamente se opõe uma reivindicação, a de cultura popular (...) a

significação da cultura popular é precisamente entrar em tensão ideológica contra uma

outra dimensão da cultura de uma classe (polarização ideológica na afirmação de uma

cultura contra a outra). Mas é como, intencionalmente universal que a cultura deve ser

dita popular, isto é, uma cultura que permita a abertura das consciências num grau de

universalidade crescente. É popular a cultura quando é comunicável ao povo (...) é

popular a cultura que leva o homem a assumir a sua posição de sujeito da própria

criação cultural e de operário consciente do processo histórico em que se acha

inserido”.

O folheto aposta numa cultura que, tomada como categoria humanista é

“universal”, mas que, historicamente, se polariza entre grupos sociais opostos. No

entanto, sua vocação como arma de consciência é voltar a ser universal, desde que

assumida como parte do processo de conscientização para a “libertação do povo”.

Portanto, há um elo possível entre o universal e o local (comunidade popular), desde

que a cultura seja apropriada pelas classes populares num processo paulatino que

incremente tanto a subjetividade da pessoa, quanto sua conexão com o mundo.

Outra matriz importante para compreender a política cultural da esquerda

católica, que no final dos anos 1970, informaria a crítica da nova esquerda basista ao

nacional-popular, foi o Movimento de Cultura Popular do Recife, amplamente baseado

nas idéias do filósofo-educador Paulo Freire509. Apesar de, na conjuntura do início dos

anos 1960, engrossarem os valores do reformismo nacionalista do governo João

Goulart, partiam de concepções filosóficas diferentes dos comunistas e dos

trabalhistas. Desde seu surgimento em Recife, ainda no final dos anos 1950, apontava

para um “aprendizado existencial da democracia”510, um tanto diferenciado da vocação

509
FÁVERO, Osmar et alli. Op.cit.; FAVERO, O. Uma pedagogia da participação popular: análise da
prática educativa do MEB - Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas: Autores
Associados, 2006; SCHELLING, Vivian. Op.cit. p.240-260.
510
BEISIEGEL, 1982, p. 103
303

da “revolução brasileira” isebiana, referendada pelo CPC e pelo PCB511. Para Daniel

Pecaut, a perspectiva do MEB e do MCP de Recife512: “é o esboço do que seria em

grande parte retomado, no início dos anos 1970, pelos setores católicos das

comunidades de base e pelo próprio Paulo Freire em sua ‘Pedagogia da libertação’:

uma democracia igualitária e comunitária, vinda de baixo, produzida a partir das

relações e dos problemas cotidianos. O fato de que seja concebida sob o signo da

‘sociedade orgânica’, e que dela possa surgir uma dúvida sobre seus elos com as

instituições democráticas, deve-se muito mais à impregnação católica do que aos

mitos da fusão povo-nação. Mas em 1961, a disjunção entre democracia comunitária e

democracia política era muito menos sensível do que se tornaria depois”

Os dois movimentos que mais avançaram no esboço da política cultural do

catolicismo de esquerda foram o Movimento de Cultura Popular e o Movimento de

Educação de Base. Em ambos, nota-se a presença das perspectivas de Paulo Freire,

educador humanista católico, que mesclou vários pensadores católicos como Jacques

Maritain513 e Emmanuel Mounier, com as problemáticas lançadas pelo ISEB em torno

da “revolução brasileira”. Apesar de surgirem como frutos de um contexto local muito

específico – a efervescência político-cultural da cidade do Recife no começo dos anos

1960514 - ambos os movimentos tiveram impacto nacional, sobretudo como laboratórios

originais de ações práticas e reflexões teóricas, tal impacto na vida cultural brasileira

ainda está por ser avaliado. Um dos efeitos desses movimentos, sem dúvida, foi a

afirmação de uma cultura popular “de resistência” ao longo dos anos 1970, que

511
Sobre o nacionalismo isebiano e o conceito de “revolução brasileira”, ver ORTIZ, R. Cultura brasileira e
identidade nacional. São Paulo, Brasliense, 1992. Para uma crítica do ISEB ver TOLEDO, Caio N. ISEB:
Fábrica de Ideologias. São Paulo, Ática, 1982 (2ªed.).
512
PECAUT, D. Op.cit. p. 168
513
Sobre as apropriações de Maritain no Brasil ver COMPAGNON, Olivier. Jacques Maritain et l’Amérique
du sud: le modèle malgré lui. Villeneuve D’Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 2003
514
Recife era a capital do Nordeste com maior influência da esquerda, tanto do ponto de vista político,
quanto cultural. Formava, com os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, o “Nordeste vermelho”,
marcado por experiências políticas, culturais e educacionais de grande impacto nacional. Uma das
primeiras manifestações desta efervescência política foi a Frente do Recife, formada em 1955 pelos
partidos PTB, PTN e PSB, com apoio do PCB, que elegeu Pelópidas da Silveira. Miguel Arraes foi o seu
sucessor, em 1959, dando continuidade ao governo municipal reformista, depois alçado ao governo do
Estado, em 1962. O MCP e o MEB fazem parte deste contexto.
304

exacerbou as diferenças, antes latentes, acerca dos conceitos de povo e cultura em

relação aos militantes comunistas.

O Movimento de Cultura Popular (MCP) surgiu em 1960 e foi extinto em 1964.

Era uma “sociedade civil” ligada à Secretaria de Educação do Recife, estruturada em

três “departamentos”: Formação da Cultura; Documentação e Informação; Difusão da

Cultura. No MCP participaram Paulo Freire, Germano Coelho, Abelardo da Hora,

Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Hermilo Borba Filho. Era um movimento plural,

incluindo socialistas e comunistas, expressando a aliança de esquerda que sustentou

a Frente do Recife coordenada por Miguel Arraes e que transformou Pernambuco,

principalmente sua capital, em um dos principais laboratórios da imaginada “revolução

brasileira”. No final de 1964, O MCP articulava 30.000 alunos, distribuídos em 414

escolas, 246 “Círculos de cultura” de alfabetização de 7.388 adultos. 49 “Clubes de

Mães”, um centro de artes plásticas e artesanato, cinco praças de cultura (que

incluíam biblioteca, cinema, teatro), uma galeria de arte (“Galeria de Arte do Recife”) e

um grupo teatral, o Teatro de Cultura Popular515. Tinha uma conexão quase orgânica

com o poder político local, naquele momento comandado pela esquerda.

No seu “plano de ação” para 1963, o MCP assume seu caráter político e

aponta a necessidade de estimular a autonomia das comunidades na produção

cultural516: “O movimento popular gera o movimento de cultura popular. O movimento

popular, ao atingir determinada etapa de seu processo de desenvolvimento,

experimenta a necessidade de liquidar certos entraves de ordem cultural que se

apresentam como barreiras características daquela etapa, obstaculizando a passagem

para a etapa seguinte”. Entre suas ‘diretrizes gerais” observa-se a ênfase no

incremento da vida cultural comunitária, enfatizando que: “Desenvolvimento da vida

cultural das organizações populares no sentido de incrementar suas atividades

515
“O que é o MCP?”. Folheto do Governo de Pernambuco, 1964 (republicado em Arte em Revista, 6,
out/1981, p.67-71
516
FAVERO, Osmar. Op.cit. p. 91
305

culturais internas e suas manifestações culturais voltadas para a comunidade”. Outra

diretriz reveladora do germe da noção de “cultura popular” dos anos 1970 era a

necessidade de “elevação do sentido social das manifestações culturais comunitárias

de caráter tradicional”517. Nestas duas passagens, nota-se a diferença essencial em

relação ao “Manifesto do CPC”, cujo discurso se volta para o artista-intelectual que

“opta por ser povo”, sem deixar de ser vanguarda dirigente e externa às comunidades,

cuja cultura (nomeada como “arte popular”) é intrinsecamente tosca e limitada, se

deixada à própria sorte. A valorização da “cultura popular tradicional” e do ativismo

comunitário deveria se dar devidamente articulada ao “movimento”. A vanguarda

cultural era assumida, vista como necessária como animadora e impulsionadora das

atividades do MCP, mas suas “conquistas” deveriam ser estendidas “ao nível das

massas populares" ao mesmo tempo que estas deveriam “elevar as manifestações

culturais populares ao nível da vanguarda cultural”518. O plano de ação ainda exigia a

criação de “condições necessárias ao fluxo e refluxo horizontal que impeçam a

formação de quistos verticalmente organizados”519. Portanto, o MCP se pensava como

um “movimento” dinâmico e horizontalizado, ainda que tivesse laços com o poder

público e fosse estruturado a partir de intelectuais. Obviamente, faltam pesquisas para

avaliar o funcionamento prático e as tensões internas do movimento, mas o que

importa assinalar é que sua auto-imagem, conceitualmente falando, difere da

militância cultural nacionalista e vanguardista dos comunistas.

O Movimento de Educação de Base (MEB), lançado em 1961, também

inspirado em Paulo Freire, tinha ligações orgânicas mais diretas com a Igreja Católica.

Neste sentido, apesar de matizar o seu discurso mobilizante em torno das “reformas

de base”, assumia ainda mais o conceito de “cultura popular” da esquerda católica. O

517
Idem, p. 93
518
Idem, p. 96.
519
Idem, p. 95
306

MEB se autodefinia a partir de algumas diretrizes político-ideológicas básicas520: a) o

povo deve ser o agente da sua história (sem a direção de uma ‘vanguarda’ como força

externa); b) a educação deveria se desenvolver a partir de problemas concretos

vividos pela comunidade; c) respeito pela cultura e pelos valores populares, sem tomá-

los como meros instrumentos de comunicação; d) realização da pessoa humana, a

partir da afirmação de sua dignidade e auto-descoberta. Estas diretrizes podem ser

tomadas como pistas de uma possível política cultural da esquerda católica, que

culminará na crítica às hierarquias culturais definidoras do “bom gosto” ou da boa

consciência sobre o mundo, na crítica ao intelectualismo dirigista, à medida que via o

educador como um provocador de processos de auto-descoberta e, finalmente, na

defesa do “basismo cultural”, privilegiando neste ativismo o espaço local (a

comunidade trabalhadora) e o tempo cotidiano521.

Esta perspectiva sobre a cultura popular, ainda que não estivesse imune ao

dirigismo e à manipulação das massas, apontava para outras bases, diferentes do

nacionalismo, do intelectualismo e do vanguardismo da militância cultural do Partido

Comunista. Por exemplo, a democracia deveria ser construída na experiência

comunitária cotidiana; o igualitarismo deveria pautar a relação entre militantes da

“vanguarda” e as pessoas da comunidade; as massas tinham “personalidade”,

portanto, não eram passivas no processo histórico522. Se o ISEB e o CPC, mesmo

realçando o povo como “ser da nação”, ainda se viam como seus intérpretes e

formadores, a esquerda católica tentava desenvolver outra ética da militância cultural,

valorizando o povo como “sujeito” e personalizando o ser popular.

Em Paulo Freire, a “pessoa humana” e a comunidade tem lugar central no

processo educacional e cultural, como sujeitos idealizados de sua própria libertação. O

conceito de “democracia da pessoa” era central nesta nova ética. A “pessoa humana”,

520
MAINWARING, S. Op.cit., p. 88-89
521
Idem, p. 90
522
PECAUT, D. Op.cit. p.169
307

figura comum nos discursos católicos, era um ente dotado de espiritualidade e

qualidades intrínsecas, com potencial de auto-desenvolvimento523. Neste sentido, era o

oposto, tanto do conceito liberal de individuo, jurídico vazio, quanto do “ser social”

materialista dos comunistas. Era a base filosófica desta nova crítica cultural de

esquerda524. Conforme Vivian Schelling a “pessoa” é o “homem em seu potencial

espiritual realizado”, que só pode florescer na comunidade autêntica, entendida como

uma “democracia da pessoa”525. A militância político-cultural, entendida pelos católicos

de esquerda como uma forma de ação pastoral, não deveria apenas dar “conforto,

consolo e caridade”, tal como defendiam os tradicionalistas, mas “testemunhar a

participação popular e denunciar as condições que impedem a pessoa humana de

realizar-se”526.

Os comunistas, por outro lado, herdeiros de uma política cultural mais antiga e

sistematizada, desenvolveram outras bases para o seu engajamento artístico-cultural

no início dos anos 1960. O famoso e muito citado “Manifesto” do CPC tipifica a cultura

em três níveis – nomeados como arte do povo, arte popular e arte popular

revolucionária527 - e dá importância ao trabalho do intelectual, tomado aqui como

elemento externo à classe trabalhadora. Carlos Estevam Martins, seu autor, deixa bem

claro que a “arte do povo”, sendo produto de comunidades “economicamente

atrasadas” rurais ou suburbanas, “é tão desprovida de qualidade artística e de

pretensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de

exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada”, satisfazendo apenas

523
Aqui a esquerda católica reencontra os filósofos católicos que tematizaram a pessoa e a “democracia
da pessoa”. Ver MOUNIER, Emmanuel. “Le personalisme”. PUF, Coleção “Que sais-je?”, 395, 1950 e
MARITAIN, Jacques. Humanisme Intégral. Paris, F.Aubier, 1936.
524
SCHELLING, Vivian. A presença do povo na cultura brasileira. Ensaio sobre o pensamento de Mario
de Andrade e Paulo Freire. Campinas, Editora Unicamp, 1990; RIBEIRO, Jorge. Festa do povo:
pedagogia da resistência. Petropolis, Vozes, 1982, p. 273
525
SCHELLING, V. Op.cit..p..262
526
Idem, p. 263.
527
MARTINS, C.E. “Anteprojeto do Manifesto do CPC/UNE” IN: HOLLANDA, H.B. Impressões de
viagem.Op.cit.p.121-144
308

“necessidades lúdicas e de ornamento”528. Já a arte popular era vista como sinônimo

de arte massificada e industrializada, igualmente mistificadora e alienadora. Portanto,

a única saída era a formação de uma “arte popular revolucionária”. Diz o manifesto:

“Como nos momentos em que o povo luta não nos comportamos como artistas e sim

como membros ativos das forças populares, podemos bem avaliar, enquanto atuamos

como artistas, a importância que têm as armas culturais nas vitórias do povo e o valor

que adquirem as idéias quando penetram na consciência das massas e se

transformam em potência material”529. Portanto, além de manter a hierarquia artístico-

cultural, o sentido da arte e da cultura popular só se manifesta quando trazido de fora,

pelo intelectual revolucionário que “optou ser povo” e por falar a linguagem do povo,

priorizando a comunicação com as massas.

Estevam Martins reiteraria esta posição em outro texto, também escrito em

1963: “Colocamos assim os termos que formam o problema central da cultura popular.

De um lado, precisamos infundir no povo uma cultura que ele não tem e que lhe faz

falta, mas à qual ele não consegue chegar sozinho, pois ela é produzida e cultivada

fora do povo: ele encontra-se à margem do processo que produz e cultiva esta cultura.

De outro lado, não podemos entregar ao povo essa nova cultura sem que primeiro nós

próprios nos apossemos da velha cultura do povo. Temos que infundir algo novo e

para isso precisamos nos fundir com o que existe e no nível em que existe”530. Ferreira

Gullar, também falando em nome do CPC, dá lugar destacado ao artista e intelectual,

sobretudo “às gerações novas”, livres de posições idealistas sobre o fazer artístico

cultural531. Diz ele: “Seria errado pensar-se que somente a produção de obras dirigidas

às classes proletárias dariam à cultura popular condições de se ampliar e aprofundar.

De fato é também necessário desenvolver a crítica dos valores culturais vigentes,

desmistificá-los, assentando paralelamente a perspectiva nova do trabalho cultural (...)

528
MARTINS, C.E. “CPC da UNE/Manifesto” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p. 65
529
Idem, p. 68
530
MARTINS, C.E.”A questão da cultura popular” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p.47
531
GULLAR, Ferreira. “Cultura popular posta em questão” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p.53
309

e o que nos importa é, sobretudo, ganhar os jovens que serão no futuro os produtores

de cultura”. Esta reflexão de Gullar estava assentada sobre a ação cultural direta em

associações populares e estudantis, realizadas por movimentos político-culturais

organizados (como o MCP e o CPC) condições inviabilizadas após o golpe militar de

1964532.

Como, antes do golpe militar, comunistas e católicos de esquerda

experimentavam uma aliança no movimento estudantil em nome das Reformas de

Base propostas por João Goulart, essas diferenças entre o documento da AP, as

posições do MCP e o “Manifesto” do Centro Popular de Cultura da UNE passaram

relativamente despercebidas. Carlos Estevam Martins, autor do “anteprojeto de

manifesto” do CPC, aponta as diferenças entre o MCP e o CPC533: “Em primeiro lugar,

não tínhamos [O CPC] nenhuma ligação com o Estado, em segundo lugar, o grosso

do pessoal estava ligado às artes, coisa que não acontecia no MCP (...) O MCP fez

um trabalho excelente com relação a alfabetização de adultos (...) mas fracassaram

incrivelmente com as praças de cultura (...) seus melhores resultados foram obtidos

junto aos clubes de bairro, clubes de damas, montagem de cursos de corte e costura,

enfim coisas bastante atomizadas (...)embora ricas em termos de comunicação real

com a vida cotidiana da população” . O trecho revela diferenças de organização,

conceitos e princípios estéticos, além de fornecer pistas para as diferenças de

visibilidade histórica entre o CPC e o MCP. Diferenças que voltariam a ocupar o

debate no final dos anos 1970, na forma de legados de ativismo cultural. Além destes

aspectos, existem, ao menos, duas diferenças importantes entre as duas correntes.

532
As diferenças entre as concepções de Gullar, um artista refletindo sobre o sentido ético-político da
criação, e Estevam, um teórico agarrado ao conceito de alienação como medida universal para normatizar
a ação cultural, foram bem exploradas por Sebastião Uchoa Leite, em artigo de revisão sobre a cultura
popular publicado em 1965. Ver LEITE, Sebastião U. “Cultura popular: esboço de uma resenha crítica”.
Revista de Civilização Brasileira, nº4, set-1965, 269-89.
533
MARTINS, C.E. Entrevista ao CEAC, 23/10/1978, publicada em Arte em Revista, 6, out./1981, p.77-82
( trecho p.78)
310

Para o CPC, hegemonizado por militantes culturais comunistas, o artista-

intelectual tem um papel central, como mediador privilegiado no jogo entre

“conscietização – alienação” das massas. Ele é que elabora, a partir de uma

linguagem acessível às massas trabalhadoras, a cultura (ou arte) popular

revolucionária. Ao privilegiar este protagonista – artista-intelectual militante - a

experiência cultural que transforma a consciência das massas torna-se uma

experiência extrínseca ao seu meio social. Na prática cultural efetiva que a arte de

esquerda assumiu no Brasil dos anos 1960 isto não ocorreu, até porque as bases

organizativas e os circuitos sócioculturais que levariam o artista engajado ao povo

foram solapados pela seletiva repressão pós-golpe534.

Como vimos, a arte de esquerda, sobretudo aquela produzida por militantes

culturais mais afinados com o PCB, foi uma arte sofisticada em diálogo com a

“herança cultural” realista e acadêmica, até certo ponto, ou com as “vanguardas

históricas” que se encaminhavam para o experimentalismo. O mercado em seus

diversos segmentos artísticos, ao fim e ao cabo, deu abrigo às duas. Seja como for –

enquanto proposição doutrinária irrealizada, ou prática artístico-cultural efetiva – a arte

de esquerda afastou-se (e foi afastada) das massas trabalhadoras, operárias e

camponesas. A “corrente da hegemonia” acabou se afirmando nos circuitos mediados

pelo mercado e nas instituições ligadas à política cultural estabelecida. Sua linguagem

foi o nacional-popular, definido como mediação elaborada entre o local (“dialetal-

folclórico”) e o universal (“cosmopolita-burguês”). Afirmou-se dentro da herança

canônico-acadêmica ou experimental-vanguardista, adensando a “moderna tradição

brasileira”.

Por outro lado, as concepções de cultura popular da esquerda católica,

exemplificadas no documento da AP e nas concepções pedagógicas de Paulo Freire,

diluíam o papel do artista-intelectual como mensageiro e arauto da consciência

534
MARTINS, C.E. Entrevista ao CEAC.Op.cit, p.77-82
311

popular. Este era visto como um mediador inserido nas comunidades populares, um

gerador de ativismo cultural das bases operárias e camponesas, visando desencadear

um processo – igualmente idealizado, diga-se – de libertação social e política.

O documento da AP explicita o basismo latente, que seria ampliado na crítica

ao nacional-popular no final dos anos 1970535: “O nosso trabalho, no entanto, deve ser

no sentido de que os próprios meios (operário, popular, camponês) venham a

oferecer, gradativamente, o material humano necessário para atender ao trabalho de

cultura popular. Os diversos instrumentos de que se serviria o trabalho de cultura

popular trariam a motivação concreta para a organização destas classes, já que

implicam, necessariamente, em conscientização e politização”.

Quanto ao “setor estudantil”, privilegiado na ótica comunista como protagonista

e portador da nova consciência ao “optar em ser povo”, deveria ser utilizado como

mero instrumento para evitar que os Centros Populares de Cultura (CPCs) do

Movimento Estudantil hegemonizassem o trabalho de cultura popular, e adquirissem

uma “característica nitidamente estudantil”. Aqui surge uma preocupação com a

hipertrofia do “aparelho burocrático”, contraponto das “organizações populares” auto-

geridas (embora supervisionada pelos militantes). A rigor, os excessos normativos do

“Manifesto” do CPC nem sequer guiaram efetivamente a produção cultural dos artistas

comunistas, mas foram tomados como exemplos de dirigismo cultural, demagogia

populista e nacionalismo desmobilizador. Estas acusações aparecem no debate

cultural que se exacerbou a partir do final dos anos 1970, com a emergência da nova

esquerda galvanizada pela emergência dos novos movimentos sociais e pela proposta

e criação do Partido dos Trabalhadores, como veremos a seguir. A tensão entre a

militância cultural comunista e a militância cultural católica, apoiada pela

intelectualidade radical, não foi uma novidade dos anos 1970 e 1980. Mas acirrou-se a

partir daí, depois de um período de relativa convergência, seja em nome das

535
“AP/Cultura Popular” IN FÁVERO, O et alli. Op.cit. p. 29
312

“reformas” (pré-1964), seja em nome da “resistência” nos anos mais violentos do

regime (1968-1976).

Antes disso, houve um esforço dos militantes do PCB, endossados pela

direção partidária, informada pela lógica de “composição frentista” contra a ditadura,

em se aproximar oficialmente dos “cristãos”. Um dos militantes que mais se destacou

neste sentido, foi Luiz Ignácio Maranhão Filho, ex-deputado estadual e dirigente do

PCB que desapareceu na onda repressiva de 1974/1975536. O Partido chegou a formar

uma comissão - “Comissão de Entendimentos Políticos” – para aprofundar o diálogo,

sobretudo quando o tema da “democracia” tornou-se mais importante que o tema do

“nacionalismo”, mudança ocorrida por volta de 1973537, mesmo ano em que boa parte

da alta hierarquia católica assume seu distanciamento com o regime. Ao que parece,

até o final da década esta aproximação em nome de uma “frente de resistência

democrática” foi possível.

O jornal oficial do Partido, Voz Operária, dedicou espaço considerável ao

movimento de aproximação entre católicos e comunistas na luta contra o regime

militar, sobretudo entre 1970 e 1978. Na página 2 da edição de julho de 1970,

publicou-se um amplo resumo da palestra de Dom Helder Câmara, referência da

chamada “Igreja progressista” no Congresso Mundial da Pax Romana, realizado em

Dakar (Senegal). Depois de fazer um balanço das lutas e misérias da América Latina,

Dom Helder critica a “violência armada” como resposta ao colonialismo e à

exploração, defendendo uma “pressão moral libertadora”. Naquele contexto, essa era

uma chave importante na aproximação com o Partido. No final do texto, destaca-se a

luta cristã no meio estudantil, “onde existe em princípio um confronto com nossos

irmãos marxistas”, Dom Helder destaca que estes “começam a compreender” que os

536
Para uma análise detalhada da atuação política de Luiz Maranhão na aproximação com os cristãos,
ver GOES, Maria Conceição P. A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho: cristãos e comunistas na
construção da utopia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Revan, 1999; STUDART, Heloneida. Luiz, o santo
ateu. Natal, Editora UFRN, 2006
537
LIMA, Hamilton. Op.cit. p.209
313

católicos estão se “esforçando” para que a religião não seja o “ópio do povo”, mas o

começo da salvação, que também é libertação no “mundo dos homens”. A edição de

agosto de 1971 destacava o caráter institucional do combate da Igreja contra a

ditadura, para além deste ou daquele bispo ou padre538.

O mesmo jornal publicou um longo artigo em 1977, momento em que as

tensões entre as duas correntes da oposição ao regime começavam a aparecer com

mais evidência, sobretudo nos sindicatos operários e no próprio Movimento Estudantil.

Diz o artigo539: “Para os marxistas, o cristianismo não é por sua natureza uma ideologia

revolucionária (...) no entanto, como movimentos de massas o cristianismo sempre

acolheu impulsos tendencialmente ‘democráticos’ (...) servindo-nos de uma fórmula de

Marx podemos dizer que o cristianismo foi o ‘ópio do povo’, mas igualmente ‘o suspiro

da criatura oprimida’ (...) Os comunistas sabem disso. Por isso em suas relações com

os cristãos, eles não se deixam impressionar pela ideologia cristã, e preferem levar em

conta o comportamento prático, político, de cada grupo cristão, em cada momento (...)

as relações do PCB com os cristãos (e católicos em especial)...pertencem à história

sócio-cultural do nosso povo”. Em outubro de 1978540, no contexto da eleição do Papa

João Paulo II, o PCB faz nova elegia da aliança tática entre cristãos (católicos,

sobretudo) e comunistas na luta comum contra a ditadura, na qual “estão todos no

mesmo campo (...)não há uma linha de demarcação entre os brasileiros definida pela

crença ou não em Deus, quando se trata de combater as injustiças e defender os

interesses da imensa maioria”

Apesar das tentativas de aproximações e convergências em torno de temas

gerais, como Direitos Humanos e democracia, a conjuntura do final dos anos 1970 só

538
Voz Operária, ago/1971, p.4
539
Voz Operária, 136, Jul/1977, p 2. Percebe-se que o artigo era um aceno ao diálogo com a Igreja na
tentativa de reforçar uma nova aliança contra o regime, tendo em vista o documento “Exigências cristãs
de uma ordem política”, lançado em fevereiro de 1977 e assinado por 217 bispos, causando grande
impacto à época, pela contundência que a Igreja, como instituição, se posicionava frente à necessidade
de transição política.
540
Voz Operária, 151, out/1978, p.4
314

fez afastar os católicos e comunistas, seja no campo da política ou da cultura. Se no

final dos anos 1960, o frentismo comunista ainda falava em “luta de classes”,

“hegemonia proletária” e “organização popular”, estas palavras de ordem foram

perdendo força no Partido, em prol da ação político-institucional e parlamentar541. Por

volta de 1977, comunistas apostavam cada vez mais no frentismo democrático cujo

foco de luta era mais voltado para o triunfo eleitoral - estratégia alimentada pela

surpreendente “vitória” eleitoral do MDB em 1974 - do que propriamente a

radicalização da “luta de massas”542. Esta opção custou politicamente caro ao Partido,

à medida que a conjuntura assistia o crescimento das “lutas de massas” no meio

popular, sindical e estudantil, culminando com a reconquista simbólica das ruas pelo

protesto da oposição543. Ao contrário, os militantes da esquerda católica, engrossados

pela militância de correntes de esquerda não ligadas ao PCB (trotskistas, socialistas,

luxemburguistas), apostavam mais nesta frente. Mesmo o Partido Comunista do Brasil

(PC do B), em meio ao balanço da derrota militar e política da Guerrilha do Araguaia,

tentava se equilibrar entre a “luta política” e a “luta de massas”, permanecendo

abrigado no PMDB por razões táticas. O fato é que o PCB, quase no mesmo momento

em que se via acuado, denunciado no campo cultural como cerceador da liberdade

criativa – como atesta o episódio das “patrulhas ideológicas” – perdia espaço nos

movimentos sociais de massa. No campo sindical, via crescer o “Novo Sindicalismo”544

e as oposições sindicais que questionavam o “peleguismo” dos dirigentes sindicais

comunistas. No movimento estudantil, as grandes passeatas de 1977 foram

capitalizadas pelos trotskistas, inimigos históricos dos pecebistas, e pelos católicos de

esquerda, reunidos, respectivamente, nas tendências estudantis “Liberdade e Luta” e

541
LIMA, Hamilton. Op.cit. p. 160
542
Idem. p.154
543
Sobre os protestos públicos de rua contra o regime entre 1977 e 1984, ver NAPOLITANO, Marcos.
Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo. Curitiba, Juruá, 2002.
544
ANTUNES, Ricardo. O novo sindicalismo. São Paulo, Brasil Urgente, 1991. BOITO JR., Armando. O
sindicalismo brasileiro nos anos 90. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991. Para uma visão mais crítica ver
RODRIGUES, Leôncio M. CUT : militantes e a ideologia. Rio de Janeiro : Paz e Terra. 1990.
315

“Refazendo”545. A desconfiança do partido em relação à juventude radicalizada

(resquícios dos dissensos de 1968) e ao sindicalismo autonomista foi crucial para o

esvaziamento político do Partidão nos movimentos sociais de massa546.

O Partido não deu grande destaque à greve metalúrgica de 1978, tida como

“anti-patronal” e espontaneísta, portanto, limitadas politicamente. A radicalização do

movimento operário em 1979 chamou a atenção do “Partidão”, que tentou rever suas

posições e organizar a ação dos seus militantes sindicais para garantir a “unidade” do

movimento, ou seja, afirmar a hegemonia comunista. O PCB chegou a saudar “as

entidades e movimentos de massa” da sociedade civil, cuja luta ajudava a recolocar as

classes populares como ator da política, mas deixava claro que elas deveriam ser o

“centro aglutinador” de uma “frente antifascista...conjugando sua luta com a da

oposição parlamentar”, aliando-se a “amplos setores da sociedade”, criando condições

para a “formação de um amplo bloco democrático no Congresso, com amplo respaldo

das massas”547.

O consenso das oposições de esquerda, já questionado em 1977, ficava

completamente inviável a partir de 1980. A criação do Partido dos Trabalhadores ia na

contramão do frentismo comunista com ênfase na “luta parlamentar”. Animado pela

esquerda não-comunista, o PT era publicamente defendido pelos novos dirigentes

sindicais e se propunha a ser um “partido-movimento” crítico do aliancismo e da

política institucional. Paradoxalmente, a Anistia oficial de agosto de 1979, ao invés de

engrossar as fileiras da sonhada frente democrática dos comunistas, com a volta das

lideranças exiladas, só exacerbou sua crise. No ano seguinte, o PCB “rompia” com a

Igreja, ainda que seus militantes de base atuassem lado a lado nas lutas sindicais e

políticas contra o regime militar. No plano cultural, a cisão da frente e do consenso

nas palavras de ordem e nas táticas de luta contra o regime também se explicitaram.

545
MULLER, Angélica. Op.cit....p.110-129. A “Refazendo” incluía militantes de outras tendências “não-
comunistas”.
546
LIMA, Hamilton. Op.cit. 241.
547
Voz Operária, 160, julho/1979, p. 4
316

O frentismo cultural que guiava a militância cultural comunista e os valores do

nacional-popular passaram a ser duramente criticados pela esquerda católica e pela

nova esquerda como um todo. O nacional-popular cepecista passou a ser visto como

símbolo de uma ação cultural autoritária, mistificadora e, no fundo, afeita às regras do

mercado e facilmente enquadrável no nacionalismo oficial do regime. Para a nova

esquerda, o manifesto do CPC era a prova deste desvio “nacional-populista” que ao

tentar enquadrar a “cultura popular”, a enfraqueceram.

A crítica cultural da nova esquerda intelectual

Nesta operação crítica, a militância cultural católica ganhou o reforço de

intelectuais avessos ao nacionalismo e ao dirigismo cultural dos comunistas548,

procurando outras bases e atores na resistência cultural, bem como outros materiais

estéticos que fundamentassem a oposição cultural ao regime. Ao mesmo tempo,

esses intelectuais criticavam a mediação do mercado, o elitismo, a massificação

industrializada da cultura e o individualismo como valores ligados ao liberalismo. O

debate sobre a cultura popular, marcado por bases diferenciadas em relação aos anos

1960, foi tema de concorridos eventos no meio acadêmico de 1977, como o seminário

na PUC e a reunião anual da SBPC549. Nesta última, duas problemáticas marcaram os

debates: (i) as relações entre indústria cultural e cultura popular, e a valorização da

cultura popular urbana; (ii) a interação entre urbano e rural no plano da cultura popular

e apropriação de elementos massivos. Estas questões não pautavam a agenda de

debates da década anterior, que enfatizava o homem rural como o herói por

548
Carlos Guilherme Mota destaca a emergência de um nacionalismo crítico no meio universitário
paulista, a partir dos anos 1950, “pouco afeito ao reformismo desenvolvimentista, às explicações dualistas
[arcaico versus moderno] e aos nacionalismos culturais – ora difusa, ora pesadamente endossados pelas
esquerdas” (p. 38). Sugere que esta linhagem se inicia em Caio Prado, com a História Econômica do
Brasil, se encorpa nas obras de Florestan Fernandes e Antonio Candido (e pelo Grupo Clima),
constituindo-se numa escola de pensamento crítico. Contrapõe esta linhagem aos “parâmetros pedestres
da vertente populista, representada pela obra de Nelson Werneck Sodré”. Temos neste mapa intelectual,
uma boa pista para entender as origens do debate protagonizado pela esquerda petista – cuja base
intelectual em boa parte, estava sediada no meio universitário paulista - dos anos 1970 e 1980 que
colocará em xeque o nacional-popular pensado a partir do Partido Comunista Brasileiro.
549
Sobre o debate na SBPC, ver GALVÃO, Gilberto. “Quem tem medo da cultura popular?”. Movimento,
107, 18/7/1977, p.13; Sobre o simpósio na PUC-SP, ver “A cultura do povo”. Movimento, 101, 6/6/1977,
18
317

excelência da “cultura popular” comunitária e ainda não vislumbrava a comunicação de

massa como um problema mais sério. Outro dado interessante é a percepção da

cultura popular como uma produção dinâmica, afastando-se do folclorismo descritivo e

imobilizador na definição do “autenticamente popular”. Ao que parece, estes três

elementos pautariam, pelos próximos anos, a perspectiva da nova esquerda: o popular

urbano, a interação entre popular e massivo, e o caráter dinâmico e transformador da

cultura popular. Para a nova esquerda, estas deveriam ser as chaves para uma nova

visão política sobre as classes populares. Esta perspectiva seria reforçada pela

emergência dos operários e dos movimentos sociais de periferia como atores políticos

importantes, a partir de 1978. Esta nova perspectiva também serviria para criticar o

campo nacional-popular, entendido como mistificação da cultura popular e sua diluição

no pacto populista que havia conduzido à derrota de 1964.

Entre as vozes intelectuais mais influentes e críticas ao nacional-popular,

destacava-se a filósofa Marilena Chauí. Suas posições, partindo da crítica ao

“totalitarismo de esquerda” desenvolvida por Claude Lefort ainda nos anos 1950550,

apontam para uma intersecção entre a crítica cultural da esquerda católica e da

esquerda universitária laica, na defesa de uma nova concepção de “cultura popular”551,

como eixo de uma nova crítica política ao autoritarismo e suas diversas faces, à

esquerda e à direita.

Em um texto publicado em 1980, altamente significativo e sintético desta nova

crítica de esquerda, Chauí escreveu552: “A democracia populista do período de João

Goulart, tentando conciliar os interesses do capital e os direitos dos trabalhadores,

ampliados pelo discurso da chamada ‘vanguarda aguerrida do povo’, não satisfazia

550
Ver, por exemplo LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1987
551
CHAUÍ, Marilena. “Cultura do povo e autoritarismo das elites” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979, 119-134. Não por acaso, neste texto, Chauí
aponta três autores como basilares para esta nova, e mais avançada na sua perspectiva, concepção:
Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido); Eclea Bosi (Leituras de operárias) e José de Souza Martins (Viola
quebrada). Destes, dois são assumidamente ligados à esquerda católica (Freire e Bosi). Em todo o caso,
esta é apenas uma pista de uma articulação que merece mais pesquisas e reflexão.
552
CHAUÍ, Marilena. Seminários. p.83
318

nem a gregos, nem a troianos. À direita, clamava-se contra a guinada comunista do

regime; à esquerda, contra o reformismo continuista do janguismo e do PCB, que o

apoiava. Hoje [1980] ...o radicalismo das críticas de direita e de esquerda parece

improcedente: o governo JG não tinha nem poderia ter pretensões revolucionárias,

não só porque a lógica do nacionalismo populista não as comporta, como também,

porque não se faz revolução a partir do Estado”. Examinando as duas bases

documentais mais famosas da “esquerda nacionalista” do início dos anos 1960 – a

coleção “Cadernos do Povo Brasileiro” e o “Anteprojeto do Manifesto do CPC”, Chauí

conclui, acerca do primeiro: “Considerando-se que sua intenção é pedagógica,

percebe-se que sua pedagogia é antes persuasão do que discussão e esclarecimento.

Esse aspecto talvez seja inevitável porque os autores não dizem explicitamente de

onde e a partir do que estão falando, apresentando-se como se fossem portadores de

uma fala universal, cujas premissas são evidentes (...) o povo é ao mesmo tempo,

objeto e destinatário dos discursos. Enquanto objeto, é apresentado pelos textos como

inconsciente, alienado, passivo, desorganizado, em suma, figura acabada da falsa

consciência carecendo por isso de uma vanguarda que o oriente e conduza. Essa

imagem faz com que os autores se dirijam ao povo como dirigentes dele, uma vez que

na definição de vanguarda todos são unânimes em incluir os intelectuais e, portanto, a

si mesmos (...) desejos, ideias, modos de ser, práticas, ações, aspirações, tudo é

imputado ao povo e à nação, sem que nenhum deles apareça de viva voz. Os

‘Cadernos’ constroem o popular e o nacional, embora tenham a pretensão de estarem

a expô-los”.

A crítica ao “Anteprojeto do Manifesto do CPC” vai na mesma linha553: “O

manifesto é exemplar como construção de um imaginário político. Entidades saídas da

fantasia dos ‘artistas populares revolucionários do CPC’ desfilam pelo palco da

imaginação histórica à moda de fantasmas: o artista alienado, o artista popular

553
Idem, p. 91-92
319

revolucionário, o povo (...) Porém, talvez o mais interessante seja o esforço do

intelectual e do artista para converter-se em revolucionário, sem consegui-lo: para

poder respeitar o povo o artista do CPC não pode tomá-lo nem como parceiro político

e cultural, nem como interlocutor igual: oscila, assim, entre o desprezo pelo povo

‘fenomênico’ (que, no entanto, é descrito como o povo realmente existente) e a

invenção do povo ‘essencial’, heróis do exército de libertação nacional e popular (que

existe apenas na sua imaginação)...Assim, através da representação triplamente

fantástica – do artista alienado, do artista do povo e do artista popular revolucionário

em missão – é construída a única imagem que interessa, pois é ela que se manifesta

no Manifesto: o jovem herói do CPC”.

As duas longas citações, escritas e publicadas em meio a uma intensa luta

cultural e política no interior das esquerdas que se opunham ao regime, mas tinham

concepções diferentes de como superá-lo, são exemplares das críticas da nova

esquerda intelectual que legitimou o PT nascente. Talvez, sejam o seu exemplo mais

brilhante e sofisticado. Partindo de uma dura e perspicaz crítica aos discursos da

esquerda nacionalista dos anos 1960, Chauí exumava o nacionalismo, o

vanguardismo e o frentismo cultural ainda defendidos pelo PCB, àquela altura

mergulhado em meio a uma grande crise política, com a ruptura do lendário Luis

Carlos Prestes, desgastado no front cultural. Além de enfrentar o autoritarismo e o

elitismo da direita, a nova esquerda assumia a tarefa de denunciar e desconstruir o

elitismo cultural e político da esquerda nacionalista e trabalhista (i.e.”populista”),

galvanizadas naquele contexto pelo fragilizado PCB e pelo extemporâneo trabalhismo

brizolista554. Nesta desconstrução, manifestava-se o novo intelectual identificado com o

petismo nascente - iconoclasta, hipercrítico, erudito - mas que se supunha estar ao

554
Considerado o líder mais radical da ala esquerda do PTB antes de 1964, Brizola tentou reerguer a
legenda partidária na ocasião da sua volta do exílio. Por uma manobra do governo, perdeu a legenda do
PTB para Ivette Vargas, mais conservadora. Assim, fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e
tentou consolidar a vaga doutrina do “socialismo moreno”, misturando políticas sociais mais agressivas
com discurso nacional-reformista. Isolado pelas críticas ao populismo à esquerda e pelas críticas
conservadoras e anti-reformistas à direita, conseguiu angariar um bom eleitorado apenas no Rio de
Janeiro e no Rio Grande do Sul.
320

lado das massas trabalhadoras, caminhando na linha tênue que separa o propositor

de debates livres do arauto da assembléia popular. Sua principal missão seria expor

as tensões, nomeá-las, apontar caminhos políticos sem propriamente indicar o único

caminho possível necessário, como fazia a vanguarda nacional-popular. Não se

arvorava como consciência do futuro, mas como crítico do passado, na tentativa de

abrir as possibilidades de ação coletiva no presente. A aposta no criticismo, no

basismo e no ativismo dos trabalhadores como antídotos do “nacional-populismo”

deveria evitar os erros dos intelectuais nacionalistas de esquerda, derrotados em

1964: a doutrinação ideológica, o vanguardismo partidário e o monopólio da

consciência histórica. Marilena Chauí, em outro texto, explicita a tentativa de separar o

“popular” do “nacional”555: “Assim, quando o “do povo” desliza para o “popular”, o

adjetivo tende a deslizar para um outro que encobre efetivamente a contradição: o

adjetivo “nacional”556

Carlos Estevam Martins, em longa entrevista concedida em 1978, revisou a

história do CPC e questionou esse revisionismo de esquerda557: “Esse tipo de crítica

revela uma incapacidade muito grande pra entender de fato o que foi o CPC. Não é

uma análise é uma manifestação ideológica de uma vontade que deseja cortar os

laços com o passado (...) querem fazer de conta que as correntes políticas a que

pertencem não existiam antes e não fizeram coisas que representam uma herança,

uma tradição que elas tem que receber com respeito e continuar com criatividade,

transformando-a de acordo com as novas condições –objetivas e subjetivas (...) nós

estávamos atuando no limite do nosso tempo histórico” .

Ao novo intelectual de esquerda restava a missão de explicitar o conflito e a

luta de classes, verdadeiro combustível da resistência político-cultural, já em um

contexto no qual se discutia a transição para o futuro governo civil. Portanto, deveriam

555
CHAUÍ, Marilena. “Cultura do povo e autoritarismo das elites” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979, p.119-134
556
Idem, p. 121
557
MARTINS, Carlos E. Entrevista ao CEAC. Op.cit, p. 81
321

exercer mais o papel de críticos, do que o de arautos e missionários, rompendo com

uma tradição iniciada com o modernismo, que reafirmou o artista e o intelectual como

artífices da nação e do povo. Seu principal embasamento histórico era a emergência

das lutas de massa exemplificadas pelo novo sindicalismo e pelos novos movimentos

sociais. Estes causaram grande impacto à época, ganhando ares de uma nova épica

que, no entanto, não teve os desdobramentos sonhados. O projeto do PT nascente se

confundia com estes valores, sendo, portanto, endossado pelos intelectuais críticos ao

nacionalismo e ao dirigismo pecebista558. O tempo e a realpolitik os consumiriam,

culminando no “silêncio dos intelectuais” em meio às crises éticas e às alianças

pragmáticas do governo Lula.

Na tentativa de ficar equidistante dos comunistas, trabalhistas e liberais, a

crítica cultural da nova esquerda petista (em cujo epicentro estava a esquerda

católica), enfatizava os circuitos comunitários, o ativismo sócio-cultural “de base” 559, a

cultura artesanal, ao mesmo tempo, a necessidade de democratização dos bens e

acesso aos equipamentos culturais. Entretanto, suas posições não devem ser

confundidas com qualquer tipo de “proletcultismo”, pois não mascarava o papel, o

558
O opúsculo intitulado “Politica cultural” (1985), escrito por vários intelectuais ligados ao PT, pode ser
visto como a síntese deste projeto. Nele, se desenha mais as diretrizes de uma crítica cultural ao Estado
e à indústria cultural, do que as bases de uma nova doutrina estética ou cultural. Com a experiência no
poder municipal de São Paulo, sob a gestão de Luíza Erundina (1989-1992), Marilena Chauí foi nomeada
secretária da cultura, colocando em prática uma série de iniciativas ancoradas no projeto de 1985. Nesta
gestão, Chauí tentou implantar a chamada “cidadania cultural” baseada em quatro pilares: a recusa das
políticas de mecenato clientelista; a desburocratização voluntarista da política cultural; o estímulo à
“participação popular” ativa na esfera cultural a partir das comunidades e bairros; a democratização do
acesso aos equipamentos públicos de cultura. A idéia central era ancorar a política cultural aos
movimentos sociais e evitar o dirigismo, através de uma fusão entre a ação cultural, a ação pedagógica e
a ação política. Ver CHAUÍ, Marilena; ABRAMO, Lélia; CANDIDO, Antonio; MOSTAÇO, E. Política
cultural. Mercado Aberto, Porto Alegre, 1985 (2ªed.). Note o leitor que os autores são conhecidos críticos
da política cultural tanto da direita oligárquica e elitista, quanto da “corrente da hegemonia”, ou seja, do
Partido Comunista Brasileiro. Para um balanço crítico deste projeto, ver DURAND, José Carlos. Política e
gestão cultural. EAESP/FGV/NPP - Núcleo de pesquisas e publicações, 2000,
http://www.eaesp.fgvsp.br/AppData/GVPesquisa/Rel13-2000.pdf, acessado em 25 de agosto de 2010.
559
Os resultados de uma pesquisa de fôlego que dá pistas importantes deste tipo de ativismo cultural de
base, ocorridos em uma cidade que era paradigmática para as lutas sociais no final dos anos 1970 e
primeira metade dos anos 1980, pode ser vista em PARANHOS, Katia. Mentes que brilham: sindicalismo
e práticas culturais dos metalúrgicos de São Bernardo. Tese de Doutorado em História, Unicamp,
Campinas, 2002. Conforme a autora, entre 1971 e 1988, foram criadas “tradições culturais” no âmbito da
luta sindical (mas que iam muito além dos limites institucionais do sindicato), enfatizando a interação entre
trabalhadores e intelectuais (de esquerda) na construção de um “trabalho de base”, entendido como “ação
libertadora” de intervenção a partir de experiências cotidianas de luta. A autora analisa as tensões
provocadas por esta interação de novo tipo entre o artista-intelectual e os operários, em meio a
acontecimentos épicos, como as greves de 1979 e 1980.
322

lugar social e a formação do intelectual travestido de “povo”, apenas procurava

reposicioná-lo. Neste sentido, sua tarefa não era ser o arauto da nacionalidade e o

porta-voz dos interesses populares, mas, fundamentalmente, o crítico da ideologia e

dos discursos que desconsideravam o papel político ativo das massas trabalhadoras e

as mantinham subordinadas. Igualmente, o intelectual erudito não precisava abrir mão

da sua formação para gostar das coisas populares, pois o grande inimigo da cultura

(“inferior” ou “superior”) enquanto “captura da experiência” e elo de comunicação

efetiva entre o criador e os consumidores, era a indústria cultural. Contra ela, e seus

efeitos deletérios, mesmo quando ocupada por artistas bem intencionados de

esquerda, erguiam-se essas mesmas vozes560.

Alfredo Bosi, outra referência intelectual da nova esquerda, ao fazer o balanço

crítico da “cultura brasileira” na defesa de uma pluralidade ameaçada pelo capitalismo

“autoritário e desenvolvimentista” e pela visão canônica de cultura, aponta561: “A cultura

de massa entra na casa do caboclo e do trabalhador da periferia, ocupando-lhe as

horas de lazer em que poderia desenvolver alguma forma criativa de auto-expressão:

eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura de massa aproveita-se dos

aspectos diferenciados da vida popular e os explora sob a categoria de reportagem

popularesca e de turismo. O vampirismo é assim duplo e crescente: destrói-se por

dentro o tempo próprio da cultura popular e exibe-se para o consumo do

telespectador, o que restou desse tempo (...) No entanto (...) a exploração, o uso

abusivo que a cultura de massa faz das manifestações populares, não foi ainda capaz

de interromper para todo o sempre o dinamismo lento, mas seguro e poderoso da vida

arcaico-popular, que se reproduz quase organicamente em microescalas, no interior

da rede familiar e comunitária, apoiada pela socialização do parentesco, do vicinato e

dos grupos religiosos”.

560
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Cia das Letras, 1987
561
Idem, p. 329. Em tempo: O ensaio em questão, “cultura brasileira e culturas brasileiras”, do qual foi
retirada a citação, foi escrito entre 1979 e 1980.
323

Portanto, entre as premissas de Alfredo Bosi que nos ajudam a sintetizar as

bases deste novo projeto cultural, a “cultura popular” se coloca como um núcleo duro e

resistente, até certo ponto, à tecnoburocracia cultural e à indústria cultural, ambas

deletérias do vigor da vida cultural e da sua tarefa primordialmente libertária. De outra

parte, para o autor, a posição da cultura erudita diante da cultura popular é ambígua,

podendo gerar o “mais cego e demagógico populismo”, que ao fim e ao cabo sanciona

o preconceito e o elitismo classista, ou servir de base criadora para a “mais bela obra

de arte elaborada em torno de motivos populares”, sendo necessário para que tal

ocorra “um enraizamento profundo”, uma “empatia sincera e prolongada”, uma

“relação amorosa” com o popular562. Bosi não se fecha à possibilidade desta relação

ocorrer nas fricções entre a cultura erudita, a cultura popular e a cultura letrada, na

direção de uma “cultura criadora individualizada” que se realize no interior das classes

populares a partir de sua própria autoconsciência libertadora, apesar dos exemplos

dados em seu texto serem, quase todos, de artistas oriundos das classes médias

letradas: Mario de Andrade, Chico Buarque, Augusto Boal, Graciliano Ramos, Caetano

Veloso, Gilberto Gil, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Gianfrancesco

Guarnieri, Edu Lobo, entre outros. A rigor, os únicos nomes oriundos das classes

populares são Adoniran Barbosa e Clementina de Jesus563. O panteão citado nos

remete à dificuldade desta nova crítica cultural em deslocar os cânones culturais

construídos pela “moderna tradição brasileira”, mais próxima do nacional-popular e da

vanguarda modernista. A rigor, talvez não seja isto que está em jogo, ao menos no

balanço crítico proposto por Alfredo Bosi. Trata-se de apontar caminhos para uma

562
Idem, p. 331. Na expressão utilizada por Bosi - “relação amorosa” - poderíamos vislumbrar uma
tradução da caritas cristã entendida como “amor fraterno e sublimado de origem divina” entre as pessoas,
para além das diferenças econômicas e sócio-culturais. Este “amor”, criaria pontes morais, políticas e
culturais entre indivíduos assimétricos, mas irmanados na busca da realização da comunidade libertada e
justa. Para tal, a dialética entre “afeto” e de “intelecto” seria fundamental, a partir de uma nova vivência
junto aos “pobres”. As implicações desta ética cristã (de matiz católico-progressista) para a resistência
cultural, mesmo em correntes atéias e laicas, ainda estão por serem examinadas a fundo. Para uma
definição de caritas dentro da filosofia cristã ver NOGUEIRA, Maria Simone M. Amor, caritas, dilectio.
Elementos para uma hermenêutica do amor no pensamento de Nicolau de Cusa. Tese de Doutorado em
Filosofia Medieval, Faculdade de Letras de Coimbra, 2008 (notadamente, o capítulo 1),
563
Idem, p. 343-344
324

relação criativa, criadora e libertadora, em termos políticos amplos, entre a cultura

letrada e a cultura popular.

Ao mesmo tempo em que a crítica cultural da nova esquerda denunciava a

indústria cultural, não eximia suas obras das possibilidades de apropriações críticas

por parte dos trabalhadores, que poderiam ressignificar o sentido inicialmente

alienante e conformista de uma obra criada e distribuída por meios industriais e

massivos564. Neste ponto também se posicionava a tarefa do intelectual: ao invés de

propor conteúdos simbólicos e estéticos, e referendar as hierarquias culturais a partir

de um conceito até certo ponto elitista de “bom-gosto” – como faziam, até certo ponto,

os artistas e intelectuais mais afinados com o PCB ou mesmo com os valores liberais

– os críticos da nova esquerda deveriam escrutinar a experiência empírica de

consumo cultural dos trabalhadores na busca de apropriações críticas e novos usos

“comunitários” de bens culturais565. Ecléa Bosi, por exemplo, defendia a articulação

necessária entre a cultura letrada erudita e a cultura oral dos “pobres”, superando o

folclorismo e a massificação, o que deveria se realizar a partir do “mergulho” do

intelectual na condição operária, ou seja, o contato direto na comunidade pobre da

periferia566.

Em um dos primeiros textos reflexivos sobre esta nova visão, Carlos Rodrigues

Brandão567 apontava, já em 1977, que a cultura popular (no caso os rituais religiosos

populares) não deveria ser vista como estática, puro objeto de preservação folclorista

ou de rituais vazios e apropriados pelas elites, civis ou religiosas. O autor destacava

564
BOSI, Eclea. Leituras de operárias. Petrópolis, Vozes, 1972.
565
Neste contexto, final dos anos 1970 e início dos anos 1980, ocorreu uma nova leitura de Antonio
Gramsci no Brasil, menos como teórico do eurocomunismo (como fizeram intelectuais do PCB) e mais
como teórico da cultura (e educação) popular, como o fez Moacir Gadotti. Para o aprofundamento deste
debate, a partir de suas fontes ver COUTINHO, Carlos N. "A democracia como valor universal", in
Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, nº 9, março de 1979, p. 33-48; BRANDÃO, Carlos
Rodrigues (org.). A questão política da educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1980; GADOTTI,
Moacir. Educação e compromisso. Campinas, Papirus, 1986; MANFREDI, Sílvia M. “A educação popular
no Brasil: Uma releitura a partir de Antonio Gramsci”. IN: BRANDÃO, Carlos R. (org). Op.cit.
566
BOSI, Ecléa. “Problemas ligados à cultura das classes pobres” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. Cortez e Moraes. São Paulo, 1979, p. 25-34
567
BRANDÃO , Carlos Rodrigues. “Um pouco de ordem neste debate”. Movimento, 119, 10/10/1977, 16
325

que a cultura popular era um espaço de “conflito e concorrência”, nem sempre

explicitados nas manifestações e produtos, que, portanto, deveriam ser objeto de

reflexão da crítica erudita engajada, voltada para a denúncia dos “controladores do

popular”, ou seja, as elites intelectuais, civis ou religiosas, interessadas mais na

descrição amena do exótico, do que na emergência conflitual do político.

Estas posições, explicitadas a partir de 1977, sobretudo nos jornais alternativos

de esquerda, eram sintomáticas das mudanças em curso e apontavam para as novas

tendências intelectuais da nova esquerda, crente que a culpa pelo silêncio dos

vencidos também era compartilhada, ainda que involuntariamente, pelo intelectual de

esquerda que se arvorava em ser o seu arauto.

A democracia comunitária e basista dos católicos era endossada como

elemento crítico ao nacionalismo e ao frentismo cultural vistos pela nova esquerda dos

anos 1970 como diluidores da luta de classes. Na crítica cultural ao nacional-popular

que, como vimos, fez convergir a militância católica de esquerda com a

intelectualidade laica radical críticas ao PCB e ao nacionalismo das esquerdas,

sugeria-se uma outra política cultural da resistência ao regime militar cujas

características seriam diametralmente opostas ao cepecismo comunista568: anti-

autoritária, anti-vanguardista, valorizadora da cultura popular comunitária, anti-

intelectualista (no sentido de valorizar o intelectual como o intérprete universal das

classes populares). O resultado deste processo cultural acabou sendo próximo a um

“proletcultismo”569, ainda que os intelectuais laicos e ativistas culturais católicos que o

endossavam não devam ser confundidos com esta linha.

A questão é saber se as críticas operadas por este novo segmento da

esquerda foram particularmente eficazes em redimensionar o lugar da cultura

568
SCHELING, V. Op.cit. p.273.
569
O “proletcultismo” pode ser definido como a emulação da cultura e da fala popular-operária pelo
militante cultural revolucionário de esquerda. Parte da negação da “herança cultural burguesa” e da
rejeição do hermetismo e experimentalismo formal da vanguarda. Ver NAPOLITANO, M.” A relação entre
arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Op.cit.
326

nacionalista de esquerda na resistência cultural. Além disso, a auto-imagem da nova

esquerda e da sua militância católica não deve ser endossada sem crítica, como

muitas vezes se fez na literatura acadêmica dos anos 1980. Se as derrotas de 1964 e

1968 estimularam o debate oportuno e necessário dentro da esquerda e tornaram

patente as limitações e contradições da ideologia nacional-popular e suas facetas

culturais - homologadas por trabalhistas e comunistas - as contradições específicas da

nova esquerda ainda não foram analisadas de maneira distanciada e detalhada570.

Falta, portanto, uma reflexão mais arguta e documentada sobre o funcionamento e as

contradições específicas deste projeto de política cultural, à semelhança do que foi

feito em relação ao nacional-popular.

Se é plausível afirmar que o questionamento do nacional-popular e suas

formas de resistência ao regime militar foram bem sucedidos, a nova esquerda não

logrou forjar uma política cultural orgânica, duradoura e plenamente coerente para os

próprios quadros militantes. Em outras palavras, a política de resistência cultural

projetada pela nova esquerda – católica, basista, anti-nacionalista, anti-frentista –

parece não ter formado cânones estéticos e ocupado circuitos cultuais amplos nas

instituições, no mercado e, por conseguinte, na própria memória sobre o período, ao

contrário da militância cultural comunista ou da própria vanguarda experimental.

Entretanto, paradoxalmente, forjou um estoque de criticas ao nacionalismo cultural e

ajudou a desgastar a arte engajada tal como gestada pela esquerda comunista e

570
Uma das críticas mais duras às bases da esquerda católica foi feita, ainda nos anos 1970, por Roberto
Romano. Na verdade Romano se volta mais contra a Igreja progressista do que contra a “esquerda
católica”, mas sua crítica pode servir também para esta. O autor aponta várias contradições, como a
“vitimização do povo”, a “ênfase” no carisma oficializado (dom da hierarquia), posturas anti-modernas
(caráter nostálgico e utopia retrógrada). Ao fim a ao cabo, para Romano, a Igreja progressista não rompia
com a ideia de “povo-uno” e idealizado, nem com o dirigismo autoritário, à medida em que a sua
hierarquia era privilegiada no processo de ação pastoral. Ver ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o
Estado. São Paulo, Kairós, 1979. Ver também IANNI, O. “Crítica a Chauí” IN: QUEIROZ, José & VALLE,
Edenio (orgs.). Op.cit. p.135-139. Neste texto, o sociólogo critica a filósofa pela oposição simplista entre
“elite” e “povo”, ao definir este como o “conjunto dos pobres” – visão chancelada também pela esquerda
católica. Neste sentido, Chauí estaria diluindo o sentido político do conceito de povo (o conjunto dos
cidadãos divididos em classes), reiterando, involuntariamente, sua alteridade em relação ao intelectual
engajado que não se via como parte do “povo”, em seu sentido político.
327

nacionalista desde os anos 1950571. A nova perspectiva crítico-cultural, aliada aos

valores políticos strictu sensu, pode ser vista como um projeto de resistência que, a

rigor, não vingou e não se institucionalizou enquanto conjunto de obras de arte

paradigmáticas do período. Por outro lado, informou desde então o pensamento e o

debate pedagógico brasileiro, estruturando políticas educacionais desde meados dos

anos 1980, a partir da releitura das concepções de Paulo Freire.

Na verdade, as realizações da nova esquerda no campo artístico-cultural ainda

precisam ser mais bem avaliadas e analisadas. A tentativa de uma resistência cultural

feita a partir dos bairros e dos movimentos populares de base gerou, por exemplo, um

conjunto de grupos de teatro longevos e atuantes, mas suas obras permanecem

desconhecidas do grande público e, em certa medida, ausentes da historiografia da

cultura572. O “contato direto” do artista da resistência com a comunidade, em muitos

casos, não foi além da apresentação de artistas comunitários em feiras e festas

comunitárias, espaços valorizados na resistência cultural da nova esquerda e da

esquerda católica, volatizando-se nos caminhos da memória573. Por outro lado, a

crença que o bairro-comunidade era um espaço se não imune, ao menos alternativo

aos circuitos da indústria cultural é bastante questionável, embora ainda seja uma

noção vigente em muitos militantes culturais que atuam em movimentos artísticos das

periferias urbanas. Por outro lado, os desdobramentos culturais da crítica virulenta ao

nacionalismo e às hierarquias do “bom gosto” de mercado, feita pela nova esquerda,

podem estar por trás da revalorização da cultura regional, do folclore comunitário, das

culturas de “raiz”, fenômeno cultural que conheceu grande expansão entre os jovens

universitários a partir dos anos 1990.


571
Sobre o processo histórico que afirmou a arte engajada no Brasil, ver NAPOLITANO, M. “Forjando a
revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil (1956-1968)”. IN: FERREIRA, Jorge; REIS,
Daniel Aarão. (Orgs.). Nacionalismo e reformismo radical (coleção "As esquerdas no Brasil"). Rio de
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2007, v. 2, p. 585-617
572
Por exemplo, o Teatro União e Olho Vivo e o Grupo Forja, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo, entre outros. Sobre o Grupo Forja de São Bernardo Ver PARANHOS, Kátia R. “Militância,
arte e política: o teatro engajado no Brasil pós-1964”. IN: IX Congresso Internacional da Brazilian Studies
Association (Brasa), 2008, New Orleans. Proceedings of the Brazilian Studies Association (Brasa), 9ª
Conference. New Orleans, LA/EUA : Brasa, 2008, p. 1-34; e TORRES, Adamilton A. Op.cit.
573
MACEDO, Carmem C. Op.cit. p.190-192.
328

Enfim, se o projeto e a crítica cultural da nova esquerda não geraram novos

cânones estéticos que se tornassem “lugares de memória” da cultura brasileira, sem

dúvida, desgastaram aqueles que pareciam consagrados, postulando uma dúvida

crucial sobre sua eficácia enquanto “resistência cultural” unívoca e consensual contra

o regime militar. Acima de tudo, ajudaram a formatar a própria memória sobre o

período, tema do próximo capítulo.


329

CAPITULO 9

HISTÓRIA E MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA CULTURAL CONTRA O REGIME


MILITAR.

Teses sobre a resistência contra o regime militar: apontamentos para uma


revisão histórica

A vida cultural durante o regime militar brasileiro costuma ser lembrada de

maneira paradoxal. Por um lado, é demarcada como um período de repressão,

censura e exílio de artistas e intelectuais, processos que provocaram uma verdadeira

crise cultural, nomeada na época como “vazio” ou “terrorismo cultural”. Por outro lado,

essa visão negativa convive com uma memória positivada sobre a vida cultural,

concentrada principalmente entre os anos 1964 e 1968, quando a efervescência

criativa de artistas canônicos e consagrados pelo público deu o tom da vida cultural,

na música, nas artes plásticas, no cinema, no teatro.

Os quatro anos iniciais do regime teriam marcado o auge de uma arte

politizada no Brasil, exemplificados pelos memoráveis festivais da canção, pelas peças

de teatro (Opinião, Zumbi, Rei da Vela, Roda Viva), pelas exposições de arte (Opinião

65, Propostas, Nova Objetividade, entre outras) e por movimentos artísticos

fundamentais na história da cultura brasileira, como o Tropicalismo. Portanto, na

memória social (e histórica)574 sobre o período, a vida cultural parece ter sido cheia e

vazia ao mesmo tempo, fazendo conviver a sensação de plenitude e crise, ao mesmo

tempo, cujos sentidos foram mobilizados conforme o posicionamento dos discursos

em meio às lutas culturais do período. Outro paradoxo, é que a repressão e censura

oficiais conviveram com momentos memoráveis de expressão de crítica cultural,

574
Embora sejam dimensões diferenciadas entre si, a memória (operação cultural identitária) e história
(operação intelectual crítica) estão imbricadas, tal como sugeriu Ulpiano Meneses (MENESES, Ulpiano T
Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das ciências
sociais”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros/USP, São Paulo, p. 9-24, 1992). Tanto a memória
social pode estar impregnada de historiografia, quanto esta pode ser perpassada por perspectivas e
tensões oriundas da memória social. A preocupação da historiografia em historicizar a memória parece
expressar esta questão, potencializada quando os historiadores se debruçam sobre o passado recente,
cuja memorização ainda está em processo, adensada pelo testemunho ou pelas disputas ideológicas
coetâneas à pesquisa.
330

engrandecida pelo alto nível estético da arte de oposição, amplamente estudados pela

literatura acadêmica.

As pesquisas históricas mais recentes têm procurado ir além dos parâmetros

da memória consolidada sobre a vida cultural durante o regime militar, que em muitos

casos informou a análise acadêmica575. Aprofundando aspectos pouco conhecidos,

revisando teses clássicas e esmiuçando processos polêmicos e contraditórios, ela

começa a apontar novos objetos, abordagens e problemas para repensar o período576.

Obviamente, não se trata de uma “evolução” da historiografia em relação à literatura

consagrada, mas do reposicionamento mais distanciado de questões clássicas e da

incorporação de novas fontes primárias, ampliando e detalhando a análise sobre o

período.

A revisão das dinâmicas da resistência cultural contra o regime militar, também

está inserida no debate geral sobre a memória em torno da ditadura brasileira que

parece estar passando por um momento muito rico, marcado por um duplo

distanciamento, à esquerda e à direita, em relação à maneira como a ditadura foi

lembrada entre os anos 1980 e 1990577. Obviamente, a eleição de Luis Inácio Lula da

Silva, em nome de uma nova esquerda surgida no período, parece ser o lastro

histórico e político desse revisionismo.

Mais à esquerda, historiadores de ofício tem problematizado a idealização e a

dimensão que o tema da resistência ganhou no plano da memória social, processo

575
Neste sentido, destacamos o corpus bibliográfico já citado nos capítulos anteriores, cujo grau de
sofisticação e pertinência nas análises não deve obscurecer seu tributo à visão dos protagonistas (muitas
vezes na pessoa dos próprios autores). Ver, por exemplo: SCHWARZ, Roberto. Política e Cultura;
MOSTAÇO, E. Op.cit; FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. Op.cit.; HOLLANDA, Heloisa B.
Impressões de Viagem. Op.cit.
576
Nesta linha, ver: NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit.; FREITAS, A. Contrarte. Op.cit;
GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à canção engajada.
577
Por outro lado, o debate sobre a memória em torno da ditadura brasileira é coetâneo ao debate sobre
as tensões entre memória e história das ditaduras do Cone Sul latinoamericano. Obviamente, cada país
envolvido (Chile, Argentina, Uruguai) tem uma dinâmica e uma agenda próprias para o debate, mas
também apresentam, em menor ou maior grau, dilemas semelhantes sobre como “historicizar criticamente
a memória” sem reiterar verdades cristalizadas pelos sujeitos em disputa e grupos de pressão
institucionais à esquerda e à direita. Para um balanço destas questões ver CAPELATO, Maria Helena R.
“Memória da Ditadura Militar Argentina: Um Desafio para a História”. Revista CLIO, (UFPE), v. 1, p. 61-81,
2006.
331

pautado na idéia de que a “sociedade civil”, como um todo, foi vítima passiva do

Estado autoritário. Conforme Denise Rollemberg578: “As esquerdas, na política, na

academia, na vida pública, construíram a memória baseada na idéia de que os

militares só se impuseram naqueles anos pela força, pela manipulação dos meios de

comunicação, da censura etc. Pouca atenção, em meio a uma bibliografia extensa e,

no caso das autobiografias e biografias, ao tema da colaboração, palavra maldita,

esconjurada. Em suma, acredito que não foram exclusivamente os militares que

quiseram -querem - esquecer. Mas a sociedade. E o mais curioso: as esquerdas

revolucionárias, ao narrarem a experiência da luta armada sem olhos de ver,

mantendo a interpretação da época, reafirmando-a, hoje, contribuem com o

esquecimento ou com um lembrar que esquece”.

Nessa perspectiva, são sugeridos processos de colaboração, cooptação,

negociação, e outras formas de aproximação de vários grupos sociais com o regime

militar, dando nova luz e compreensão ao vigor político que a ditadura teve ao longo

de vinte anos, que se tornaria um tanto incompreensível se a resistência tivesse sido

hegemônica na sociedade, como quer a memória da resistência, heróica, una e

compacta. Fazendo da memória o objeto da história, esta corrente historiográfica tem

revisado as lacunas, desvios e silêncios que marcaram os discursos construídos pelas

oposições ao regime, sobretudo a partir de 1979, ano-chave na reconstrução das

memórias políticas da sociedade brasileira. Ainda Denise Rollemberg: “O

esquecimento era essencial no processo de ‘abertura’. Mas não somente para os

militares. A sociedade queria esquecer. A negação da história, do conhecimento do

passado no presente. A cumplicidade, a omissão, os compromissos, a colaboração, o

apoio. E as esquerdas não tinham olhos para ver isto. Nos anos pós-1979, lembrar

para esquecer, olhar sem ver”579

578
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O
golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, p. 90
579
Idem, p.89
332

O ano de 1979, na perspectiva da autora, demarcou um reposicionamento de

atores políticos, culturais e sociais, dado o alargamento do espaço político, com

impactos diretos na idéia de resistência cultural. Efetivamente, o ano foi rico em

novidades: reforma partidária, fim da censura prévia, Anistia e volta dos exilados,

afirmação dos novos movimentos sociais e da nova esquerda, crise do Partido

Comunista e afirmação dos liberais580, via imprensa e novos partidos políticos como o

PMDB e o Partido Popular-PP de Tancredo Neves (logo dissolvido e absorvido pelo

primeiro). No bojo destes acontecimentos, aliados ao isolamento crescente da ditadura

e à crise econômica que se aprofundaria nos anos seguintes, uma nova memória

sobre 1964 e seus desdobramentos começou a se desenhar. Nessa revisão, os

liberais se afirmaram como parte da resistência, reforçando no plano da memória uma

aliança com os comunistas que se reafirmava de maneira assimétrica e invertida.

Justiça lhes seja feita, os liberais no Brasil se mantiveram críticos ao regime em temas

como os Direitos Humanos, censura, centralização política e forte presença do Estado

na economia, mesmo apoiando o governo em certos momentos.

Na política, os liberais do PMDB ganhariam cada vez mais espaço para

conduzir a transição para o governo civil e privilegiar os espaços institucionais e os

poderes constituídos como espaços fundamentais nesse processo, alijando a

esquerda. Na cultura, a esquerda comunista viu seu espaço crescer, dentro da mídia

inclusive, disseminando valores críticos à ditadura e ao seu modelo econômico,

afirmando o caráter frentista da resistência, isolando a direita. Daí, a sensação de

paradoxo que a memória sobre a ditadura é portadora, fazendo conviver triunfo político

580
Não é simples definir historicamente o “campo liberal” no Brasil do final dos anos 1970 e 1980, que
envolve uma gama de atores, instituições e partidos nem sempre coesos e coerentes entre si. Para uma
definição precária e inicial, mas minimamente operativa no caso deste ensaio, proponho que o campo
liberal durante o regime militar era formado por amplos segmentos do MDB (posteriormente, PMDB), da
imprensa e das empresas de mídia e de algumas entidades profissionais e empresariais, como a OAB, a
ABI e a FIESP. Entre as lideranças políticas mais influentes no período da abertura e da transição,
destaco Ulysses Guimarães, Severo Gomes e Tancredo Neves. Sua expressão intelectual mais
sofisticada era o filósofo e diplomata José Guilherme Merquior. Sobre o liberalismo econômico
empresarial durante a ditadura ver CODATO, Adriano N.. Sistema estatal e política econômica no Brasil
pós-64. Sao Paulo: Hucitec/ANPOCS/Ed. da UFPR, 1997; sobre a construção da agenda liberal pela
imprensa na transição ver FONSECA, Francisco. O consenso forjado: a grande imprensa e a formação da
agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2005
333

dos conservadores (incluindo aí os setores liberais) e elegias aos progressistas

(inclusive de esquerda) que resistiram ao regime. A hegemonia política conservadora

fica patente em três eventos-chave para a história do regime militar: em 1964 (Golpe),

1979 (Anistia parcial sem julgamentos das violações aos Direitos Humanos) e 1985

(fim negociado do Regime no Colégio Eleitoral).

A nova esquerda surgida entre 1979 e 1980, não chegou a abalar este

processo, pois tinha muita presença nas ruas, mas pouca presença institucional. Além

disso, faltava-lhe um projeto nacional viável, tendo em vista que procurava conciliar

democracia de base e organização partidária institucional, na forma de um partido-

movimento (PT). O acesso ao poder nacional desta nova esquerda só foi possível em

meados de 1990, quando a lógica do partido se impôs à lógica do movimento social,

com significativo custo ético-político581. Ao mesmo tempo, no ano-chave de 1979,

quando se anunciou as bases de uma nova conciliação conservadora que preparasse

o fim do regime, o próprio tema da guerrilha foi redimensionado, passando a ser objeto

de uma operação de autocrítica por parte de alguns ex-guerrilheiros, como Fernando

Gabeira e Alfredo Sirkis, para citar dois grandes sucessos editoriais582. A autocrítica

acabou por apontar um novo caminho na incorporação da luta armada na memória da

resistência ao regime, como um capítulo exótico, protagonizado por heróis tanto

idealistas, quanto equivocados, cuja opção nasceu fadada ao fracasso. Obviamente,

os fatos fundamentam esta versão, mas aqui nos importa sublinhar o seu lugar no jogo

de memórias que se afirmou no final dos anos 1970.

581
Neste sentido, explica-se porque as prefeituras petistas dos anos 1980 e 1990, conseguiram realizar
governos progressistas e inclusivos, mantendo-se fiéis aos princípios políticos e éticos que deram origem
ao Partido, conciliando a democracia de base com poderes políticos a serviço da comunidade. A natureza
do Poder Municipal no Brasil, voltado para a gestão de problemas cotidianos e de serviços básicos pode
se manter próxima e até se alimentar das demandas dos movimentos sociais, relação que ficou inviável,
ao menos nos termos que se propunha, em escala nacional. Nesta outra escala, predominou uma lógica
política tradicional, de alianças ideologicamente vazias, negociação fisiológica, políticas sociais
compensatórias e política econômica conservadora. Em que pese o sucesso e o progressismo do
governo Lula em várias áreas, a sensação de crise de um projeto político original perseguiu os petistas,
sobretudo no aspecto ético, deixando de lado uma reflexão propriamente política sobre esta crise.
582
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro, Codecri, 1979; SIRKIS, Alfredo. Os
carbonários. Rio de Janeiro, Global Editora, 1980
334

Se esta revisão historiográfica é arguta no apontamento das dinâmicas

contraditórias de uma memória descontínua e plena de armadilhas ideológicas,

mesmo quando se afirma progressista e democrática, há o risco de dar ênfase

excessiva ao colaboracionismo, dissolvendo neste campo o efetivo sentimento

oposicionista que se alastrou em vários grupos sociais ao longo do regime. A título de

redimensionar a resistência e reposicionar o seu lugar na história brasileira corre-se o

risco de esquecer a dialética entre uma e outra, particularmente complexa no caso

brasileiro dado o precoce distanciamento entre setores liberais e governo militar.

Defendo a tese que há um amplo leque de colaboracionismos e oposicionismos no

contexto autoritário de 1964-1985, que nem sempre foi ocupado pelos mesmos atores,

da mesma maneira, o tempo todo que durou o regime. Estas são as questões

fundamentais para uma nova história – política e cultural – do regime militar: quem

colaborou? Como colaborou? Quem resistiu? Como resistiu? As respostas devem

conduzir menos a um veredicto rigoroso no Tribunal da História, e sim à melhor

compreensão de um tempo histórico marcado por um regime político complexo e por

uma sociedade contraditória e plural, ainda que inclinada ao conservadorismo. Afirmar

esta pluralidade, não deve conduzir nem à “desculpação”583, nem à “vitimização

heróica”, mas ao conhecimento crítico das culturas políticas em conflito e das práticas

culturais e políticas em mutação. E também nos ajudaria a entender a paradoxal

situação que levou os “vencidos” no plano da luta política (a “esquerda”) à condição de

“vencedores” na batalha da memória584.

No campo historiográfico liberal, também há em curso um processo de

revisionismo historiográfico em relação ao período do regime militar585. O sentido desta

583
RICOEUR, Paul. A Memória, a história eo esquecimento. Campinas, Ed. Unicamp, 2007
584
Para uma crítica acurada a este aparente triunfo da esquerda na batalha da memória, ver
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, pp. 81-91. A autora argumenta que a memória que
foi chancelada, à esquerda, foi aquela que correspondia ao ideal de “pacificação” e “conciliação” nacional
defendido por liberais e setores das Forças Armadas.
585
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada; VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil. Rio de Janeiro.
Globo, 2004
335

revisão, estimulada pelas desconfianças liberais em relação ao governo Lula (2002-

2010), parece indicar que este campo ideológico quer se livrar (ou relativizar) das

heranças de esquerda na “memória hegemônica” sobre o regime, chancelada pelos

próprios liberais no passado. Esta chancela ocorreu, como vimos, por conta da

aproximação tática entre liberais críticos do regime e setores da esquerda, sobretudo

os comunistas, ocorrida de maneira errática ainda nos anos 1960. Foi

operacionalizada pela imprensa, pelos meios de comunicação, pelas próprias

corporações que transformaram a arte de esquerda em expressões de um consumo

cultural massivo e crítico. Esta improvável aliança construiu um discurso complexo

sobre a resistência política e cultural, que ajudou a forjar um álibi histórico para a

tradição liberal-conservadora que, nunca é demais lembrar, ajudou a construir o golpe

civil-militar de 1964. Ao se aproximarem do campo da resistência e endossar,

sobretudo, a resistência cultural, corolário da liberdade de expressão, esses atores

ajudaram a construir a aparente “hegemonia cultural” da esquerda e a efetiva

hegemonia política liberal, confirmada a partir de 1979. Ao mesmo tempo, pegaram

carona no bonde da memória, configurando-se como parte desta resistência, ao

mesmo tempo em que apostaram na negociação, quase sempre desvantajosa para a

democratização efetiva das relações sociais e estabelecimento de uma justiça efetiva

contra os perpetradores de violências contra os Direitos Humanos. Veja-se a Lei da

Anistia (1979) ou o movimento Diretas-Já (1984), cuja mobilização popular não foi

levada em conta na negociação política conduzida pela oposição política liberal, na

busca de consensos tão amplos, quanto conservadores. Obviamente, as esquerdas

não foram vítimas de um assalto moral à sua memória, pois alguns dos seus

segmentos, como os comunistas e simpatizantes, foram agentes ativos na construção

deste discurso.

Com a chegada dos herdeiros da nova esquerda ao poder, sob a presidência

de Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que tenha sido o resultado de uma coalizão
336

heterogênea e nada reformista, parece ter surgido a necessidade de revisar a

chancela liberal à memória da esquerda sobre o regime, caminhando para um

rebaixamento do papel histórico da esquerda na luta democrática. Nesta operação, o

governo João Goulart, o Golpe de 1964 e a luta armada tem sido objeto de acirrado

debate, com as vozes liberais apontando para a farsa histórica do primeiro, o caráter

reativo e pouco ideológico do segundo e a inconsistência democrática da terceira586.

Cultura e memória, memória da cultura: revisando algumas teses.

Em meio a esse revisionismo historiográfico, à direita e à esquerda, a reflexão

sobre a cultura da resistência é crucial, tendo em vista que o campo cultural forjou e

ajudou a consolidar a memória de uma pretensa “hegemonia de esquerda” como

forma privilegiada de lembrança do período. Ao mesmo tempo, a cultura do período

costuma ser pensada a partir de polarizações que tendem a desconsiderar as

dinâmicas mais complexas das lutas culturais, sejam aquelas internas ao campo

oposicionista, sejam as travadas entre estes e os militares no poder.

Entre as afirmações mais cristalizadas na memória sobre o período,

destacamos quatro assertivas que se tornaram clichês, e que merecem ser revisadas:

a) A arte engajada de esquerda tinha uma hegemonia limitada a pequenos grupos de

consumo, intelectuais autocentrados e concentrados no mundinho restrito e, em

última instância, conservador, da classe média.

b) A massificação da cultura via mercado destruiu a arte politizada e tirou espaço dos

artistas de esquerda, veiculando produtos de entretenimento alienado e de baixo nível

estético, que interessava mais aos militares no poder.

586
Para um balanço historiográfico recente sobre o golpe e o regime militar ver: MARTINS Fo., João
Roberto. O golpe de 64 e o regime militar: novas perspectivas. Op.cit.; FICO, Carlos. Além do golpe:
versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2004; FICO, Carlos
(Org.) ; ARAUJO, Maria Paula (Org.). 40 Anos do Golpe de 1964: ditadura militar e resistência no Brasil.
Rio de Janeiro, 7Letras/Faperj, 2004; MOTTA, Rodrigo P. S. (Org.) ; REIS FILHO, Daniel. A. (Org.) ;
RIDENTI, Marcelo. (Org.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru, EDUSC, 2004
337

c) O regime militar destruiu a vida cultural brasileira como um todo, pautando-se por

uma política repressiva e dissuasiva que vitimou, particularmente, os artistas de

esquerda.

d) O campo da arte crítica ao regime era dicotômico, cindido em duas correntes

inconciliáveis: a variável “nacional-popular” defendida pelo Partido Comunista (e

simpatizantes) que defendia uma arte nacionalista, didática, folclorista e conteudista,

e as correntes de vanguarda, galvanizadas pelo Tropicalismo, que defendiam uma

arte cosmopolita, hermética, moderna e formal.

A primeira afirmação tenta explicar porque a cultura não conseguiu

conscientizar os setores populares e “fazer a revolução” tão sonhada pela esquerda,

que derrubaria o regime. A cultura de esquerda, base da cultura de oposição, estaria

limitada a um consumo pequeno, “umas 50 mil pessoas num universo de 90 milhões”,

como apontou Roberto Schwarz. Em linhas gerais, essa afirmação é correta, até pela

exclusão social da maioria dos brasileiros. O processo histórico efetivo, no entanto, é

mais complexo e ainda demanda pesquisas de caráter quantitativo. Entretanto, reitero

que a importância da dimensão pública da cultura não deve ser medida, unicamente,

pela sua dimensão quantitativa. No caso da música popular, foi a MPB, movimento

musical protagonizado por jovens universitários de esquerda, que reorganizou a cena

musical e a indústria fonográfica brasileira, a partir de 1965, atingindo milhões de

consumidores no período. Chico Buarque de Hollanda e Elis Regina eram grandes

sucessos de público e de crítica, conforme atestam os dados do Ibope, e os festivais

da canção constituíram-se no principal gênero televisivo antes da hegemonia das

telenovelas. Mesmo em áreas de público mais restrito, em termos quantitativos, como

as artes plásticas e o teatro, os eventos atraiam um número considerável de pessoas

e, mais importante, marcavam o debate publico, através da imprensa e constituíram

novas pautas para a historiografia e a crítica de artes.

A dimensão política da esfera pública não pode ser avaliada quantitativamente,

embora a tendência à expansão quantitativa seja um componente importante neste


338

processo, causando, em certo sentido, certas distorções políticas em relação ao seu

momento formativo587. A tensão entre circulo fechado e circulo massivo em processos

de resistência cultural a determinados contextos políticos não aponta para a mera

ineficácia do primeiro e diluição do segundo. Trata-se, antes de proferir qualquer

sentença histórica, analisar as conexões entre um e outro e compreender o impacto da

arte e cultura de resistência da construção de agendas, hierarquias, critérios de

avaliação de gosto e de consumo, bem como analisar sua presença institucional

efetiva, e não e idealizada. Em todos estes pontos, a arte e a cultura de oposição,

construída notadamente pela esquerda intelectual e artística no Brasil dos anos 1960 e

1970, parece ter um papel protagonista, que não está isento de contradições e logros

nas suas intenções políticas e conscientizantes.

A segunda afirmação contrapõe a arte politizada de esquerda à arte

massificada, cujo grande exemplo seria a televisão brasileira dos anos 1970,

paradigma do lixo cultural a serviço da alienação das massas e do autoritarismo

político Essa imagem apocalíptica, no entanto, precisa ser pensada com mais

cuidado. A indústria da cultura, favorecida pelo processo de modernização capitalista

patrocinado pelos militares, precisava não apenas arregimentar profissionais ligados à

produção cultural, mas também fornecer produtos para uma classe média em

expansão, cujos estratos com maior poder aquisitivo e escolaridade eram,

contraditoriamente, os mais críticos ao regime, ainda que as evidências históricas não

permitam vê-los como massivamente “revolucionários” dispostos a pegar em armas.

Entretanto, esta constatação impressionista, não deve esfumaçar o fato que os

segmentos jovens da classe média também forneceram boa parte dos quadros para a

luta armada, destroçada pelas forças de segurança do regime militar. Procurei

demonstrar como a complexa interação entre produção cultural de esquerda, mercado

e militância política deve ser vista em sua dinâmica e historicidades próprias, cuja

análise resiste a axiomas vagos e generalizantes.

587
HABERMAS, Jurgen. Op.cit.
339

A indústria da cultura no Brasil dos anos 1960 e 1970 – fonográfica, editorial,

audiovisual – precisava incorporar a arte de oposição no segmento mais valorizado

dos seus produtos, devidamente depurada de seus excessos ideológicos e apelos à

luta direta contra o regime. Além disso, muitos profissionais da cultura – dramaturgos,

jornalistas, diretores de cinema – tinham seu talento reconhecido e afinado com o

gosto da classe média consumidora de cultura, público-alvo dos empresários do setor.

Eram, portanto, profissionais com boa receptividade no mercado. Esta

mercantilização não deve ser vista como a negação pura e simples de um processo

de construção de consciência crítica, educação sentimental e política de amplos

segmentos da sociedade. Em outras palavras, valor de troca e valor de uso não são

completamente inconciliáveis em processos de consumo cultural588, e suas

articulações obedecem a vários influxos tais como o repertório cultural pré-existente

de criadores e consumidores, o grau de maturação da indústria da cultura, a grau de

inserção política do consumidor de cultura e outras questões. Via de regra, a indústria

cultural tende a impor padronização, despolitização e estandardização nos seus

produtos, mas este processo não é abstrato e linear, e sim, objetivado historicamente,

e como tal, perpassado por paradoxos e contradições próprias de cada época e de

cada sociedade. Isso explica, em parte, porque a Rede Globo de Televisão, sobretudo

o núcleo de telenovelas, será o abrigo de muitos “comunistas de carteirinha” nos anos

1970 (Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa, entre outros). A indústria

fonográfica, por sua vez, precisava dos jovens músicos de oposição ao regime, astros

dos festivais da canção, pois eles constituiriam o que se chamava artista de catálogo,

responsáveis por vendas de longo prazo, fundamentais para a consolidação daquela

mesma indústria, tanto quanto os sucessos rápidos e descartáveis dos “artistas

populares”. Portanto, a relação entre a arte de esquerda e o mercado da cultura ainda

esconde muitas sutilezas e processos históricos ainda não completamente

elucidados, ainda que amplamente mapeados pela literatura acadêmica.

588
IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1992, p. 48
340

Quanto ao papel dissolvente que a ditadura teve no campo cultural,

obviamente, é preciso partir da premissa que nenhuma ditadura faz bem à vida cultural

ou a qualquer outro aspecto da vida social. Entretanto, é preciso notar que o regime

militar brasileiro relacionou-se com a vida cultural e artística mediante duas formas

básicas: (i) pelo uso e abuso de um tripé repressivo, formado pelo sistema de

informação-vigilância-censura, e (ii) por uma política cultural proativa. Especialmente a

partir de 1975, ano da famosa Política Nacional de Cultura do MEC que, dito de

maneira irônica, era uma espécie de política nacional-popular devidamente depurada

da luta de classes. Em áreas fundamentais para a cultura de oposição, inclusive como

tentativa de cooptar seus artistas, o Estado desenvolveu uma política cultural

agressiva e milionária, ao mesmo tempo em que outras instâncias oficiais faziam o

trabalho sujo da censura. Nas áreas de cinema e teatro, principalmente, a Política

Nacional de Cultura premiará e patrocinará muitas obras realizadas por dramaturgos e

cineastas de esquerda. Além disso, a política cultural dos militares subsidiou circuitos

de exibição de peças e espetáculos (Campanha de Popularização do Teatro e Projeto

Pixinguinha). Portanto, repressão e mecenato oficial conviveram de maneira

contraditória e tensa, fazendo convergir interesses pontuais de empresários liberais,

artistas de esquerda e burocratas autoritários. Mas esta convergência pontual não

deve ser vista como expressão de uma aliança político-cultural sólida. Por outro lado,

revelam o lugar da cultura na Doutrina de Segurança Nacional que informava os

militares, para além da mera destruição do campo cultural em si mesmo. Aliás, no

campo cultural, entre outros, a ditadura brasileira foi diferenciada dos outros regimes

militares do Cone-Sul, apesar do anticomunismo visceral que os unia589.

589
Uma reflexão histórica comparada sobre a repressão e as políticas culturais das ditaduras do cone sul
seria muito oportuna. A série de livros organizados por Saul Sosnowski a partir dos seminários realizados
na Universidade de Maryland (EUA) entre 1984 e 1991, constitui uma as poucas iniciativas neste sentido.
Ver SOSNOWSKI et alli. Cultura em trânsito. Op.cit.; SOSNOWSKI, S. et alli. Represion y Reconstrucion
de una cultura: el caso argentino. Buenos Ayres, Eudeba, 1988; SOSNOWSKI, S. et alli. Repression, exile
and democracy: the Uruguayan culture. Duke Univ. Press, 1992; SOSNOWSKI, S. et alli. Cultura,
autoritarismo y redemocratización em Chile. México, Fondo de Cultura Economica, 1993. Note-se que os
livros são organizados por país, mas permitem algumas comparações. No entanto, não fazem,
propriamente, uma “história comparada”.
341

Finalmente, a dicotomia que opõe o “nacional-popular” à “vanguarda

cosmopolita” deve ser vista como herança das lutas culturais de época, entre a

esquerda ortodoxa e os tropicalistas, que foram incorporadas por uma parte da

historiografia acadêmica. A esquerda acusava a vanguarda tropicalista de ser alienada

e irracional e as correntes de vanguarda acusavam a esquerda de ser conservadora

em termos de comportamento e de fazer uma arte pobre e populista. Examinando as

obras que marcaram um e outro campo de forma mais detalhada, percebe-se que nem

o campo do nacional-popular se resumia a obras de conteúdo fácil e didático,

formalmente rasos, nem a vanguarda tropicalista era alienada e inconseqüente

politicamente. Ambas correntes tinham visões opostas sobre o estatuto de brasilidade

e o papel social da arte, mas os dilemas de forma-conteúdo, bem como a questão

política, estavam presentes em ambas.

Além do mais, não se pode dizer, por exemplo, que a obra de Edu Lobo nos

anos 1960, identificada com o nacional-popular, fosse “simplista e populista”, muito

pelo contrário. O diretor Glauber Rocha, muitas vezes considerado erroneamente

como um tropicalista, fazia um cinema alegórico e vanguardista, mesmo sendo oriundo

do campo nacional-popular. Outro exemplo seria o do artista plástico Hélio Oiticica,

herói da vanguarda brasileira, cuja obra instigante e ousada fundiu materiais

inspirados na cultura popular (barracos de favela, adereços e fantasias de passistas

das Escolas de Samba), retrabalhados dentro de uma poética construtiva, radical e

moderna. Enfim, há mais mistérios entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira

do que supõe a nossa memória histórica.

A revisão destes quatro clichês históricos sobre a cultura no período do regime

militar é apenas um exemplo da necessidade de uma nova pauta historiográfica mais

ampla, que precisa debruçar-se sobre as fontes primárias – escritas, audiovisuais,

musicais – e ampliar a discussão sobre a cultura do período. Até para torná-la ainda

mais fascinante.
342

As variáveis da resistência e as tensões da memória

Ao longo deste ensaio tentei demonstrar a pluralidade de atores e visões,

muitas vezes conflitantes, no processo de resistência cultural contra o regime militar.

Neste processo, os artistas comunistas e simpatizantes (ou seja, aqueles que

gravitavam em torno dos valores da arte engajada chancelada pelos militantes

culturais do PCB), se destacaram pela capacidade de ocupação de espaços, no

mercado, nas instituições culturais, na imprensa cultural, na própria burocracia oficial.

A longa tradição de militância cultural dotou os artistas comunistas, muitas vezes

atuando ao largo das instâncias propriamente partidárias, de uma herança cultural

própria, exercitada ao menos desde os anos 1930590. Esta herança, que ajudara a

configurar certa “brasilidade vermelha”591, foi mobilizada nos anos 1960 e 1970,

reiterando o lugar central que os militantes artístico e culturais do PCB tinham na

sociedade brasileira. Aliás, não deixa de ser surpreendente a assimetria entre o lugar

que os militantes comunistas ocuparam na vida cultural (e sindical) e o seu lugar nos

espaços propriamente políticos Salvo melhor juízo, a balança pende para os primeiros

tipos de atuação, cultural e sindical. Os artistas comunistas ajudaram a formar

cânones estéticos e valores culturais que transbordaram para além dos segmentos

diretamente influenciados ou identificados com o partido, pautando o consumo cultural

de amplos segmentos sociais. A MPB592 e a telenovela593 são exemplos deste processo

de reiteração da herança cultural comunista sob a égide da resistência cultural em

circuito massivo.

590
RUBIM, A. Op.cit..
591
RIDENTI, M. Brasilidade revolucionária..
592
NAPOLITANO, M. “O Fantasma de um clássico : recepção e reminiscências de Favela dos Meus
Amores (Humberto Mauro, 1935)”. Significação, ECA/USP, v. 32, p. 157-170, 2009; NAPOLITANO, M.
Sincope das idéias: a questão da tradição na MPB. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007;
GUIMARAES, Valéria. PCB cai no samba: os comunistas e a cultura popular. Rio de Janeiro, APERJ,
2009.
593
PIQUEIRA, Maurício T.. Op.cit. ; SACRAMENTO, Igor et alli. “O PCB e a modernização midiática no
Brasil”. Paper apresentado no V ENECULT (Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), Salvador
(BA), 2009
343

A contracultura e os militantes de uma arte “jovem, critica e de vanguarda”,

também constituíram um espaço marcante, que tem lugar destacado na memória da

resistência cultural contra o regime militar, abrigados sob o estatuto valorativo da

contemporaneidade, ou seja, estarem historicamente “à frente” das outras correntes.

Ancorados na leitura perspicaz das mudanças comportamentais e culturais que, a

despeito do conservadorismo moralista dos militares, acabaram sendo estimuladas

pela modernização capitalista do período, os jovens identificados com a contracultura

e a vanguarda, marcaram a história da cultura dos anos 1960 e 1970. Na música

popular, o Tropicalismo ganhou destaque como movimento modernizador da estética

da canção. Nas artes plásticas e no teatro, a vanguarda contracultural plasmou-se à

crítica e à historiografia destes respectivos campos. No cinema, a tensão entre

cinemanovismo e cinema marginal foi determinante para a trajetória histórica do

cinema brasileiro moderno. Na literatura, a poesia jovem foi um acontecimento cultural

dos anos 1970, até chegar à consagração no mercado literário no final da década594.

Em todos estes campos, a contracultura e a vanguarda, estimulada pelo lugar que os

movimentos jovens tiveram na mídia e na imprensa brasileiras da época595, colocou

uma pitada de irreverência e humor, mesclados à melancolia crítica, à tragicidade e ao

amargor que pautaram a “geração AI-5” crescida à sombra das derrotas de 1964 e

1968, e sob o vulto, não menos ofuscante, dos heróis da grande arte de esquerda

daquela década.

As ações e posições estético-ideológicas envolvendo os outros dois segmentos

ideológicos que protagonizaram a arte de resistência – liberais e católicos de esquerda

- demandam mais pesquisas monográficas e empíricas. Em linhas gerais, é possível

afirmar que os liberais tiveram um papel fundamental como mediadores e

594
A editora Brasiliense, por exemplo, capitalizou o boom da poesia jovem, consagrando no mercado
editorial nomes como Paulo Leminski e Ana Cristina Cesar, entre outros, publicados nos anos 1980, na
bem sucedida coleção “Cantadas Literárias”.
595
LANGLAND, Victoria. “Il est Interdit d’Interdire: The Transnational Experience of 1968 in Brazil”.
Estudios Interdisciplinarios de America Latina y el Caribe. Universidade de Tel Aviv, 17/1, jan-jun 2006
(www1.tau.ac.il/eial )
344

amplificadores da arte de esquerda, enquanto empresários do ramo artístico-cultural,

donos de empresas de mídia, críticos e editores da grande imprensa. Este processo

tinha sua sustentação na aliança tática entre comunistas e liberais em nome de uma

frente democrática de resistência que convergia em alguns valores comportamentais e

estéticos e concordava que o mercado era um espaço importante a ser ocupado pela

cultura crítica ao regime. O distanciamento do PCB em relação às diatribes da

vanguarda contracultural e sua sanha de épater le bourgeois, bem como seu

distanciamento em relação à luta armada, cujo radicalismo não era bem visto pelas

elites políticas e econômicas liberais, sem dúvida facilitaram esta aproximação. Ao

mesmo tempo, o PCB via na cultura a possibilidade de construção de um idioma

comum da frente de oposição, ao chancelar uma arte canônica, realista, até

convencional em alguns casos.

Já a esquerda católica e a nova esquerda como um todo são os segmentos

menos estudados, do ponto de vista da história cultural do regime militar. Essa

corrente teve uma importância fundamental na revisão da cultura nacional-popular

que, até os anos 1970, marcava a resistência. Nesta operação crítica, os católicos de

esquerda ganharam o reforço de intelectuais críticos ao nacionalismo comunista, que

procuravam outras bases e atores de militância cultural e outros materiais estéticos

que fundamentassem a crítica cultural ao regime. Ao mesmo tempo em que elogiavam

a cultura popular, desconfiavam da mediação do mercado, do elitismo, da

massificação industrializada da cultura e do individualismo que eram bases do

liberalismo cultural. No seu lugar, enfatizavam o comunitarismo proletário ou

camponês, o basismo político, o artesanato e o conceito de “democracia da pessoa”,

ente dotado de espiritualidade e qualidades intrínsecas (oposto, portanto, ao conceito

jurídico vazio e abstrato de individuo)596. Estes valores estavam na base de uma nova

política cultural de resistência que, a rigor, não vingou e não se institucionalizou,

596
SCHELLING, Vivian. Op.cit.;RIBEIRO, Jorge. Festa do povo: pedagogia da resistência. Petropolis,
Vozes, 1982, p. 273
345

embora tenha informado alguns grupos políticos e produções artísticas. A política

cultural projetada pela nova esquerda – basista, anti-nacionalista, anti-frentista – não

formou cânones e não ocupou espaços tão amplos nas instituições, no mercado e, por

conseguinte, na própria memória, ainda que tenha servido de lastro para o

pensamento pedagógico brasileiro desde então. Entretanto, paradoxalmente, forjou

um estoque de criticas ao nacionalismo cultural e ajudou a desgastar a arte engajada

tal como gestada pela esquerda comunista e nacionalista-trabalhista desde os anos

1950597.

A maior ironia da história é o fato da nova e da velha esquerda serem

derrotadas pelo processo de transação que pautou o fim do regime militar. O frentismo

comunista se diluiu na hegemonia liberal, processo agravado pela própria crise dos

Partidos Comunistas em escala mundial ao longo dos anos 1980. Mas o anti-frentismo

da nova esquerda acabou por isolá-la politicamente e fechar ainda mais possíveis

espaços de pressão institucional, criando uma assimetria entre sua importância no

movimento social e sua representatividade política efetiva no contexto da transição.

Essa dupla derrota da esquerda, da “velha” e da “nova”, explica, em parte, o caráter

particularmente conservador da transição brasileira e seus descaminhos até meados

da década de 1990.

Resistência cultural como memória

Hannah Arendt, no livro Entre o passado e o futuro apropria-se da imagem

poética do “tesouro perdido”, cunhada pelo poeta francês René Char, para qualificar a

experiência da resistência francesa contra a ocupação nazista. A imagem do "tesouro

perdido" tentava traduzir e sintetizar a experiência do pequeno (mas denso) "espaço

597
Sobre o processo histórico que afirmou a arte engajada no Brasil, ver NAPOLITANO, M. “Forjando a
revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil (1956-1968)”. IN: Jorge Ferreira; Danião
Aarão Reis. (Orgs.). Nacionalismo e reformismo radical (coleção "As esquerdas no Brasil"). Rio de
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2007, v. 2, p. 585-617
346

público" que os resistentes construíram, mas que havia se diluído após a derrota do

inimigo comum. Neste espaço, o individual e o coletivo convergiram na plena acepção

da palavra "liberdade", compreendida não só como imperativo ético de luta contra a

tirania, mas como espaço político no qual os indivíduos assumiram, plena e

tragicamente, a tarefa de construir um mundo compartilhado onde a própria "liberdade

poderia aparecer".

Em todo processo histórico marcado pelo imperativo ético da “resistência”,

contra o autoritarismo, há uma sensação de “tesouro perdido” para os que dele

participaram ou com ele simpatizam. A memória social construída sobre o período nos

sugere, à primeira vista, certa semelhança com o “tesouro perdido” arendtiano, aqui

pensado no contexto da resistência cultural contra o regime militar. Num contexto de

fechamento de espaços públicos institucionais e de violência política sistemática,

muitos atores sociais e políticos tentaram encontrar nos espaços e experiências

culturais o "tesouro" de uma experiência comum de oposição ao regime militar,

funcionando o campo da cultura e das artes como elementos de recomposição do

espaço público esgarçado da política, sem que essa busca conseguisse apagar as

tensões específicas do campo. Mesmo limitado do ponto de vista da política

institucional, o espaço informal proporcionado pela resistência artístico-cultural598 foi

fundamental para garantir uma espécie de "rede de recados", na qual o principal

conteúdo era o próprio exercício da liberdade, da expressão e da opinião, tecendo

uma cumplicidade entre cidadãos de diversas origens sociais, ideologias, crenças e

etnias na afirmação de valores democráticos e de ações diversas que, somadas,

deveriam desgastar o regime, visto àquela altura como ilegítimo e usurpador.

O que está em questão é a perspectiva de um “mundo comum” que se diluiu

após o fim do regime militar. Os impasses e contradições da resistência cultural contra

o regime em meio a um processo dramático de modernização sócio-econômica que

598
Sobre o conceito de “esfera pública informal” ver PROKOP, Dieter. “Ensaio sobre cultura de massa e
espontaneidade”. IN: MARCONDES Fº, Ciro (org.) Prokop: sociologia. SP: Ática, 1986, p. 114-148
347

tragava os melhores quadros de formação superior da classe média progressista para

dentro da indústria cultural e da burocracia da cultura na mesma medida em que eram

rompidos os seus laços políticos com o conjunto das classes populares, já indicavam a

dificuldade de afirmação de um mundo comum, compactado e isolado da opressão

que se construía em outras esferas. Portanto, as aparentes “esquizofrenias”

ideológicas que a cultura traduzia (e tentava equacionar na forma de arte), apontam

para um processo de diluição das frágeis certezas políticas, estratégias e táticas

contra um inimigo comum ainda durante a vigência do regime militar (tampouco ele,

completamente monolítico e coeso). Esse processo teria sido compensado no plano

de uma memória, recalcando as diferenças profundas e os conflitos entre os atores da

resistência e marcando este conceito como tal sob o signo da experiência da partilha

perdida. Cabe à historiografia problematizar e alargar este conceito, incorporando

outras práticas, circuitos e espaços, talvez não completamente esquecidos, mas

negligenciados.

O tema da "liberdade" – que, como dizia a famosa poetisa, “ninguém consegue

definir, mas que não há ninguém que não entenda” - tornou-se matéria e categoria

centrais da criação cultural engajada. Mais do que um mero "reflexo" da vida política e

social, como tem sido muitas vezes analisada, a experiência partilhada da cultura em

esferas públicas informais (ou espaços privados que se publicizaram, na medida em

que se transformaram em pontos de encontros socioculturais), com toda a carga de

subjetividade e afeto que lhe é intrínseca, re-significou valores, pautou eventos e

recriou identidades sócio-políticas. Assim, a dimensão pública da cultura e das artes

constitui-se no verdadeiro "tesouro perdido" de uma época que ajudou a redefinir o

lugar da própria democracia na cultura política brasileira. Em certo sentido a cultura

tentou ser a antítese da violência de Estado, disseminando mensagens de esperança

em “dias melhores”, ética de paz e justiça, direitos humanos e democracia, valores


348

estes que se tornaram mais centrais na cultura política de esquerda após a derrota da

luta armada, no início dos anos 1970.

Analisando de maneira um pouco mais detalhada a historicidade das lutas

culturais contra o regime militar, particularmente os chamados “anos de chumbo",

vimos que as oposições eram perpassadas por inúmeras tensões internas, por vezes

exploradas pelo próprio regime militar, norteado pela máxima "dividir e imperar". Ao

mesmo tempo, a categoria da “resistência” foi fundamental na construção da memória

comum destes grupos (com suas conseqüentes implicações historiográficas)

ocultando uma série de tensões, posicionamentos e projetos de transição política,

unificados sob o signo comum, mas polissêmico, da "liberdade". A cultura foi

fundamental para dotar a esquerda, derrotada e dividida, de um ponto de

convergência e de uma memória comum e, para tal, o aplanar as arestas das lutas

culturais do período foram fundamentais. Mais do que isso, a cultura foi o espaço de

construção de uma convergência entre a esquerda (sobretudo, a esquerda comunista)

com setores liberais que homologaram as lutas culturais contra o regime, sobretudo

após o AI-5, e ajudaram a transformar a memória da resistência em uma memória

hegemônica sobre o período da ditadura como um todo, salvando-se e desculpando-

se a si próprios pelo apoio ao golpe de 1964. Não foi por acaso que partiu dos liberais

a denúncia do “terrorismo cultural”. O que parecia um campo compacto de luta contra

o regime, foi se esgarçando ao longo dos anos 1970, com a presença estrutural do

mercado, o mecenato e a entrada de novos atores no campo da oposição, cujas

críticas iam além da denúncia do imperialismo ou da censura. Os diversos projetos e

práticas de resistência cultural entraram em conflito na medida em que o espaço

público mais amplo foi sendo reocupado pela política de massas, retirando do artista-

intelectual, engajado e progressista, o papel de único arauto da oposição civil.

A experiência da "repressão, exílio, censura" foi determinante para a

construção dos diversos sentidos da ação cultural de resistência ao regime militar nos
349

anos 1970. Dos pequenos espaços públicos do início da década, "por onde se fazia a

liberdade", às grandes manifestações de rua e em espaços abertos, ocorridos a partir

de 1977, a cultura desempenhou um papel central na construção da identidade do

"sujeito da resistência". Minha hipótese é que foram várias e nem sempre

convergentes as identidades e práticas culturais da oposição, mas, na medida em que

aquelas experiências foram sendo sedimentadas no solo da memória, ocorreu a

diluição destas diferenças e construiu-se uma visão idealizada do "tesouro perdido".

Criou-se, na memória, uma noção de espaço público de convergência de interesses e

vontade de liberdade, que parece ter ficado perdida no tempo, reforçando a sensação

de falta de projeto político comum às correntes progressistas após o processo de

abertura, transição política e redemocratização. Novamente, estamos diante do ano-

chave de 1979. Talvez seja este, no fundo, o “ano que não acabou”.

A construção de uma memória da resistência, re-significando e valorizando

eventos e ações culturais das oposições ao regime, esteve intimamente ligada à

ocupação de certos espaços sociais, locus privilegiados das “ações no mundo”,

pequenas esferas públicas informais: campi universitários, bares, repúblicas

estudantis, platéias dos espetáculos politizados. Na primeira metade da década de

1970, estes espaços foram marcados por um intenso processo de politização,

obrigando a revisão das fronteiras entre o público e o privado, entre política e lazer,

entre os laços de solidariedade política e elos afetivos, entre mercado e cultura. A

“rede de recados” contra a ditadura passava por estes diversos espaços e por diversas

formas de ação. O importante, na perspectiva da resistência civil e cultural, era manter

a chama da opinião política da resistência devidamente acesa, compartilhada por

atores momentaneamente alijados do espaço público mais amplo e formal da política.

Se, no plano da memória da resistência, os seus atores parecem confluir, apontando


350

para um “sujeito comum”599 e para uma identidade coletiva compartilhada – a “classe

média jovem, progressista e de esquerda”; no plano da história a perspectiva de um

mundo compartilhado e de uma ação comum deve passar por uma análise mais

acurada.

Com a incorporação, por parte do Estado, do discurso nacional-popular,

sedimentado no documento intitulado “Política Nacional de Cultura”, publicado pelo

Ministério da Educação e Cultura, em 1975, o quadro cultural ficou ainda mais

complexo. Como atuar numa perspectiva de resistência cultural ao regime quando o

próprio Estado, em larga medida, se dispunha a financiar obras produzidas por artistas

de esquerda, assumindo em parte o discurso nacional-popular, ainda que isolado dos

seus aspectos mais críticos e transformadores? Se o “mundo comum” da esquerda já

era frágil e conflituoso no período mais duro da repressão, durante o processo de

“abertura” (1976-1982) a imagem de um pequeno, clandestino e obstinado grupo de

artistas e intelectuais resistentes, imbuídos de certezas estéticas e ideológicas na luta

contra o monstro da ditadura deve ser repensada, até para se valorizar sua rica e

contraditória dinâmica histórica e dimensionar suas faturas na construção de uma

consciência de luta democrática. Assim, não se trata de revisar sua história para

diminuir a importância da resistência ao regime, mas para compreendê-la para além

da memória heróica da esquerda ou da memória desculpada dos liberais, que

parecem ter dado o tom do debate. Nesta crítica historiográfica, o importante é pautar

os vários caminhos da resistência, as alternativas, os logros e faturas, as contradições,

599
A utilização de categorias como “sujeito”, “agente”, “ator” não é fortuita. Obedece a critérios da teoria
sociológica para definir o papel dos indivíduos e grupos nos processos sociais (e históricos). Se o “sujeito”
é portador de uma consciência que se autoconstrói e se autoenuncia em narrativas sobre si e sobre os
outros, o “agente” não domina o sentido das suas ações, que pertence à lógica do sistema e às relações
de poder que estabelece com outros agentes. Por outro lado, o ator, ainda que aja a partir de um script
pré-definido, tem alguma margem de invenção no jogo social. Na historiografia brasileira tem
predominado o uso de uma vaga noção de subjetividade, reforçada pelo turning point culturalista dos
anos 1980. Neste trabalho, estamos mais próximos de uma apropriação historiográfica que tensiona os
conceitos de sujeito (aquele que enuncia seus projetos culturais) e agente (aquele que é constrangido
pelo sistema cultural). A ação cultura da resistência parece ser melhor compreendida nesta dialética,
ainda que corramos o risco do ecletismo teórico. Para uma discussão mais ampla sobre estas categorias
ver DUBAR, Claude. “Agente, ator, sujeito, autor: do semelhante ao mesmo”. Desigualdade &
Diversidade. Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, 3, Rio de Janeiro, jul-dez 2008, p. 56-69.
351

as conexões com o mercado e com os grupos ideológicos que ocupavam o campo da

oposição. São estas questões que não ficam bem compreendidas quando predomina

a memória idealizada, ou seu oposto, ou seja, a completa dessacralização política e

moral da resistência. Esta última posição, ao enfatizar o seu lugar quantitativamente

diminuto na sociedade (“os 50 mil entre 90 milhóes”), ao apontar seu elitismo

politicamente inócuo (“fenômeno limitado à classe média”), ou ainda denunciar sua

cooptação pelo mercado ou pelo Estado, pode deixar escapar algumas faturas

importantes da cultura de oposição. Por exemplo, seu papel na construção da

ilegitimidade da ditadura em amplos setores da opinião pública e no desgaste político

efetivo que o regime militar e seus ideólogos sofreram ao ter contra si uma ampla

gama de artistas e intelectuais prestigiados pela sociedade organizada e pelas elites

sócio-culturais. Por outro lado, a cultura operou efetivamente na construção de

identidades políticas atuantes por longo tempo na sociedade brasileira, marcadas por

uma “consciência da resistência”, um tanto difusa, diga-se, que sobreviveu ao próprio

regime militar600

De qualquer forma, no plano da memória, o conceito de resistência tem sido

suficientemente largo para abarcar as várias formas de “ação no mundo”, os vários

“mundos em comum” que marcaram a rede informal da oposição civil ao regime

militar. A busca ativa da “liberdade” em tempos sombrios pede que esta ação seja

constantemente comentada e recordada para que se torne experiência humana

600
Aqui me refiro a um subgrupo identitário da sociedade brasileira que se forjou nas lutas cívicas pela
democratização e na resistência cultural contra o regime militar, na segunda metade dos anos 1970,
aglutinado em torno das manifestações públicas contra a ditadura, pela campanha das Diretas-Já, pelas
mobilizações sindicais na Nova República, pela campanha eleitoral do PT em 1989, culminando na
mobilização popular pelo Impeachment do presidente Collor de Melo (1992). Se havia um protagonismo
histórico inegável nestes eventos, o mapeamento das suas expressões ideológicas, formas organizativas
e composição social deste subgrupo não é tão simples. Como primeira hipótese, sugiro que ele se
pautava por certa “utopia democratizante de base”, pela “ética na política”, por uma vaga noção de
“justiça social” que tangenciava o socialismo democrático (e por que não, uma forma radical da “social-
democracia”). Sua organização (flexível e pouco orgânica) se baseava no ativismo de movimentos
sociais, associações de bairro, sindicatos e ONGs, em parte galvanizados pelo PT, e sua composição
social aglutinava trabalhadores não-manuais urbanos (classe média assalariada) e trabalhadores manuais
qualificados (operários). Os impasses e vicissitudes da democracia política brasileira após 1994 parecem
ter diluído e fragmentado este protagonista coletivo da história recente do Brasil. Como segunda hipótese,
acredito que a resistência cultural aqui estudada, cuja fatura identitária é mais próxima de um radicalismo
cívico-democrático do que de uma “cultura revolucionária”, forjou sua educação sentimental e cívica nos
termos clássicos do movimento operário e socialista.
352

partilhada. As várias práticas culturais, vividas sob o signo da resistência ao

autoritarismo, desempenharam um papel igualmente ativo neste processo. O mais

interessante é perceber que a memória, quando cotejada com a história, ajuda a

recuperar não o sentido unívoco e “verdadeiro” dos processos sociais do passado,

mas a riqueza de experiências de uma determinada conjuntura, partes fundamentais

do próprio processo de construção da memória.


353

Considerações Finais

A história da cultura sob regime militar costuma ser vista por dois ângulos: do

heroísmo ou do ceticismo. O primeiro, mais fortemente ancorado na memória

generalizada e institucionalizada sobre o período, vê a cultura e seus agentes –

intelectuais e artistas – como o lugar privilegiado da resistência, que ajudou a

desgastar o regime e forçar a transição para a democracia. O segundo ângulo duvida

desta capacidade de mobilização e politização da cultura de resistência, preferindo

apontar seus dois limites óbvios: mesmo depois de seus momentos heróicos nos anos

1960, a cultura não fez a revolução e ficou restrita a poucos, sendo incorporada

paulatinamente pela indústria cultural.

Os dois lados do debate podem ser ancorados em fatos e processos

verificáveis historicamente. Inegavelmente, a cultura mais crítica foi perseguida pelo

regime, seja pela censura ou pela truculência policial. Por outro lado, desempenhou

um papel destacado na “rede de recados” pela volta da democracia, formando

consciências e ajudando amplos setores sociais a construir representações da

consciência de oposição ao autoritarismo. De outra parte, também é inegável que o

consumo da cultura politizada e crítica era restrito – como aludiu Roberto Schwarz na

famosa imagem dos “50 mil em 90 milhões” – e boa parte das suas intenções críticas

e mobilizantes foram neutralizadas pela incorporação da cultura de esquerda na

indústria cultural brasileira, em franca expansão à época.

Tanto a visão heróica quanto a visão cética deixam escapar questões e

processos fundamentais para compreendermos as contradições e dinâmicas da vida

cultural brasileira. A perspectiva heróica tende a isolar o artista da resistência do seu

contexto social e das demandas de consumo cultural, superdimensionando o “artista-

intelectual” como herói da resistência. Além disso, entende que a arte de resistência,

sobretudo a arte produzida por artistas de esquerda, foi uma concessão compulsória

do mercado cultural ao bom gosto e à cultura crítica e sofisticada, a um só tempo.


354

Neste conjunto de ensaios, tentei demonstrar que as lutas culturais em torno da

resistência ao regime militar construíram um leque complexo e dinâmico de autores,

movimentos e obras, perpassado por contradições internas e por dilemas estéticos e

políticos, cuja incorporação pelo mercado, em seus diversos níveis e dimensões, foi

um movimento estrutural, portanto, para além das intenções e decisões puramente

individuais. Esse movimento gerou um amplo debate sobre os limites da convergência

entre arte engajada e consumo cultural, bem como levou inúmeros artistas a exercitar

algum tipo de recusa e busca de outros circuitos.

A perspectiva cética também deve ser objeto de revisão e crítica. Se ela nos

alerta para a crítica necessária à visão heróica e sem nuances da resistência, não

podemos cair na desconsideração completa do peculiar papel da cultura sob o regime

militar, a título de uma crítica generalizante que responde mais às angústias dos

céticos diante dos descaminhos da democratização do que à historicidade peculiar

aqui examinada. Nem seu caráter restrito, nem sua incorporação pela indústria cultural

devem ser vistos como explicação, a priori, para o fracasso de uma cultura de

resistência no tribunal da história. O critério quantitativo – consumo restrito a poucos -

não explica o maior ou menor dinamismo e importância da vida cultural de uma

sociedade, embora, como diria Gramsci, a questão da popularidade não seja um

problema menor para o papel transformador da cultura. Há uma tendência no Brasil,

explicável em função do ressentimento dos segmentos intelectualizados, cada vez

mais alijados da vida pública mesmo em tempos democráticos, em afirmar a

vacuidade da vida cultural num país de miseráveis e analfabetos. Afinal, como já

apontou Raymond Williams, a “massa é sempre o outro”. Por outro lado, a longa

permanência do regime e o tipo de transição que ocorreu deixaram um grande

sentimento de impotência e frustração em relação ás lutas políticas e culturais contra o

autoritarismo, galvanizando um sentimento contraditório que conjugou a sensação de

derrota política com a idealização da resistência contra o regime. Hannah Arendt, na já


355

citada imagem do “tesouro perdido”, traduz bem este sentimento de perda de um

espaço público.

Assim, parti de outras premissas para analisar o período: nem o consumo

restrito torna a vida cultural algo menor, nem é possível esperar da cultura algo que

ela não poderia fazer, por si mesma.

Em relação à primeira premissa, não podemos esquecer que a cultura é

formadora do espaço público, dentro da qual se constroem processos formativos,

tradições, cânones artísticos, sistema de ideias e circuitos de trocas culturais inscritos

na experiência histórica. O consumo restrito, mesmo que seja um problema ético-

político a ser enfrentado em nome da democracia, não é, necessariamente, um

sintoma de fraqueza cultural de uma sociedade. Se assim fosse, a massificação

cultural resolveria o problema. O consumo cultural é apenas revelador de como esta

sociedade se estrutura e qual o lugar da cultura nas relações sociais, traduzindo certas

tensões entre os sistemas artístico-culturais, o sistema educacional e o acesso ao

mercado de bens simbólicos. A peculiaridade histórica da cultura de esquerda no

Brasil, elemento fundamental para se entender a resistência cultural sob o regime

militar, é que ela era tributária do nacionalismo modernista e de uma cultura humanista

(e conservadora, para os padrões atuais) exercitada, sobretudo, na escola pública dos

anos 1940 a 1960, altamente restrita, mas de boa qualidade. A consciência social

cultuada pelos artistas de esquerda, desde os anos 1930, e a diversificada cultura

oral-popular foram os temperos fundamentais da formação do artista engajado dos

anos 1960 e 1970. Em outras palavras, vale dizer que os quadros criativos da cultura,

no cinema, no teatro, na música popular, nas artes plásticas, conciliavam uma boa

formação escolar (escrita, literária, erudita) com a experiência dos circuitos populares,

cujo melhor exemplo é o bem sucedido projeto de Música Popular Brasileira (MPB),

surgido nos anos 1960. Quando a indústria cultural arregimentou parte destes

quadros, que tinham no movimento estudantil sua base social mais ampla, eles já

possuíam uma experiência formativa que ia muito além dos limites e fórmulas do
356

mercado, os quais, por sinal, ainda não estavam consolidados, ao menos no Brasil.

Aliás, sobretudo na área artística, justamente esse processo formativo, exógeno à

indústria da cultura, ainda que a tangenciasse em alguns momentos, se perderia

paulatinamente ao longo dos anos 1970. A partir dos anos 1980, o quadro mudou

completamente. Uma indústria cultural ampla e madura, do ponto de vista gerencial,

mercadológico e técnico, gerando seus próprios quadros e fórmulas de consumo, ao

lado de um sistema educacional pauperizado em todos os sentidos, explicam, em

parte, a sensação de decadência da chamada “cultura brasileira”, tese que deve ser

incorporada com muita cautela para que mera nostalgia intelectual essencialista não

se transmute em análise crítica da história.

O consumo restrito gerou impasses e dilemas para o artista engajado, mas não

deve ser tomado como um caminho para explicar o fracasso das intenções críticas da

cultura sob o regime militar, exigindo uma análise criteriosa do seu papel formativo na

consciência da oposição. No Brasil, a dramática concentração de renda e a exclusão

social e política criaram uma má consciência nos produtores culturais mais

conseqüentes, muitos deles oriundos da classe média e das elites. Na busca de

saídas para o elitismo cultural, ora se idealizou o “povo” como receptor massivo e sem

mediações, ora se idealizou o mercado como circuito neutro, ora se idealizou a cultura

popular pré-capitalista e artesanal. A cultura da resistência está marcada por estas

idealizações, que não resistiram aos anos 1970, e foram substituídas por um

sentimento de mal-estar generalizado entre a intelectualidade, quando a indústria

cultural passou a mediar as três dimensões.

Quanto à segunda premissa - o sentimento de fracasso das intenções políticas

da cultura engajada contra o autoritarismo - também deve ser vista com muito cuidado.

Julgar a vida cultural de um período histórico a partir do seu devir é recair em um

anacronismo que já não se sustenta na historiografia atual. Nestes ensaios, procurei

entender a cultura dentro dos seus limites, mesmo quando ela quis ocupar o lugar da

política strictu sensu. Arrisco dizer que, talvez, o grande fracasso tenha sido o da
357

política da resistência que, atravessada por contradições ideológicas e dissensos

internos, não foi capaz de construir alianças suficientemente fortes para impor uma

nova hegemonia e dar outra dinâmica à transição democrática. Os futuros trabalhos

sobre o tema deverão explorar melhor as assimetrias e convergências entre política e

cultura, cujas linhas gerais foram traçadas neste trabalho.

As conexões entre cultura e política no período explicam porque a cultura era

um campo de debates, projetando tensões da esfera política e suas contradições. E

tanto em uma, quanto em outra, paulatinamente construiu-se uma hegemonia liberal,

flexível o bastante para incorporar (e incorporar-se) à lógica da resistência quando, na

verdade, apostava na negociação e no consenso com os militares no poder. É bom

lembrar que o mercado, incluindo o mercado cultural, foi sustentado (e gerenciado)

pela ideologia liberal, mesmo quando seus produtos e conteúdos estavam ligados, de

uma fora ou de outra, à esquerda. A frase atribuída a Roberto Marinho, dono da Rede

Globo é reveladora neste sentido: “não toquem nos meus comunistas!”. Tomados aqui

como exemplo, podemos dizer que eles foram quadros fundamentais para a

reorganização da indústria cultural brasileira. E não o fizeram porque houve cooptação

política e concordata moral, mas, sobretudo, porque houve uma arregimentação

estrutural das classes médias intelectualizadas pelo capitalismo modernizado,

resultado de contradições históricas e não apenas de opções individuais. Aliou-se a

este processo estrutural a estratégia comunista, na cultura e na política, de “ocupar

todos os espaços” possíveis, dentro da lógica frentista que informava o PCB desde o

final dos anos 1950.

Há outra dimensão da cultura de resistência que ainda guarda pontos

obscuros: seu impacto para a construção de uma memória sobre o regime militar

brasileiro. A idealização da resistência ou a sua dessacralização fazem parte deste

jogo de memória. Se for certo dizer que a cultura não ajudou a derrubar o regime,

como os setores mais autênticos e radicais da oposição sonhavam, ela gerou um

conjunto de representações e discursos que ajudaram a esquerda a vencer na batalha


358

da memória e explicam, em parte, porque os militares, vitoriosos politicamente e com

ampla base na chamada “sociedade civil”, foram aos poucos sendo isolados no

processo político e vilanizados no processo histórico, mesmo por aqueles que os

apoiaram inicialmente, ou seja, o conjunto dos liberais dos quais a grande imprensa

sempre foi o melhor arauto. Obviamente, a violência do regime é o fator explicativo

central deste processo, mas esta violência também sofreu um processo de

deslegitimação simbólica para o qual concorreram as lutas culturais do período.

No jogo tenso entre história e memória é que esta tese deve ser situada e

compreendida. A resistência, uma vez lembrada de maneira ecumênica, edulcora

“nossa honra e nosso passado” como coletividade que se quer democrática, mas

explica pouco porque certos impasses herdados dos tempos da ditadura ainda

continuam a nos desafiar, passados mais de vinte e cinco anos do seu fim. Assim, na

perspectiva deste trabalho, importa menos a existência efetiva ou não do grande

tesouro perdido da cultura heróica da resistência, tal como definido por Hannah

Arendt, mas a elaboração dos diversos mapas que acalentam (e acalentaram) o

desejo de encontrá-lo.
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a sua autobiografia
• Folha de S.Paulo , 22/1/80
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3) Entrevistas e depoimentos

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• HOLLANDA, Chico Buarque. Entrevista, Coojornal nº 17, , Porto Alegre, 1977,
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• HIRZMAN, Leon IN:Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro,
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• MARCOS, Plinio IN: Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro,
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• NEVES, João das. IN:“Paulo Pontes: a arte da resistência. Rio de Janeiro,
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4) Fontes diversas

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• Ministério do Exército. Inquérito Policial-Militar 709, Biblioteca do Exército, 1967


• Pesquisa InformaSom/IstoÉ , 84, 2/8/78
• Revista Somtrês, 5. Editora Três, 1979
• Séries históricas. IBGE (acessado em 13/10/2010)

5) Impressos – Folhetos, opúsculos e manifestos coletivos

• MEC/Brasil. Como eles agem. Brasília, 1974.


• MEC/Brasil. Política Nacional de Cultura. Brasília, 1975
• AÇÃO Popular. Declaração de Princípios da AP. 1962.
• CNBB. Marginalização de um povo (24/12/1970)
• CNBB. Eu ouvi os clamores do povo (6/9/1973).
• As intenções do Opinião (dezembro de 1964) IN: Arte em Revista, 1, jan-mar
1979, p.58
• CHAUI, Marilena; ABRAMO, Lélia; CANDIDO, Antonio; MOSTAÇO, E. Política
cultural. Mercado Aberto, Porto Alegre, 1985 (2ªed.).
• FÁVERO, Osmar et alli (org). Cultura popular e educação popular: a memória
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• GRUPO Oficina. Manifesto, publicado por Torquato em 4 / 3/ 1972

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