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Marcos Napolitano
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
1.Brasil: Regime Militar; 2. Regime Militar: aspectos culturais; 3. Brasil: história cultural;
4. Brasil: arte e política; 5. Brasil: políticas culturais
3
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................5
Capítulo 1..........................................................................17
Capitulo 2..........................................................................41
Capítulo 3.........................................................................84
Capítulo 4.........................................................................139
Capitulo 5.........................................................................185
Capítulo 6........................................................................225
Capítulo 7........................................................................271
Capítulo 8........................................................................297
Capítulo 9........................................................................329
Considerações finais...........................................................353
Bibliografia..........................................................................359
Fontes..................................................................................370
4
Agradeço aos amigos Rodrigo, Miliandre e Clara, pela leitura crítica do trabalho e pelo
apoio à pesquisa das fontes.
Este trabalho é dedicado ao Mateus, meu filho, sentido vivo e encarnado da (minha)
história.
5
INTRODUÇÃO
alternativa de esquerda dos anos 1970, publicou no seu editorial: “A cultura como
insuficiente” para se compreender e atuar no Brasil faz pensar uma série de questões.
Em primeiro lugar, trata-se de pensar quais “transformações” eram aquelas, e por que
elas tiravam a premência da cultura2 como forma de ação política. Em segundo lugar,
ainda que pela negação, a proposição sugeria a importância da cultura como forma
1
Versus, 28, janeiro 1979, p.2. A partir de 1978, o jornal Versus foi hegemonizado pela corrente trotskista
“Convergência Socialista”.
2
Partiremos da noção de que “cultura” é uma categoria que se manifesta a partir de vetores: o “espírito
formador” de um modo de vida global, que se expressa nas “atividades culturais” como um todo
(linguagem, arte, trabalho intelectual), e as expressões de uma “ordem social” , no seio da qual emergem
culturas especificas (estilos de arte, tipo de trabalho intelectual), que podem ser consideradas produto
direto de outras atividades da vida material. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1992, p. 10-29
3
A perspectiva deste trabalho engloba na categoria “resistência” um leque de ações e posturas
oposicionistas no contexto do regime militar brasileiro, desde uma oposição moderada e institucional ao
conjunto de ações e críticas mais contundentes ao regime, como a luta armada. Portanto, o sentido
ecumênico e vago da palavra não implica na desconsideração dos matizes e conflitos internos deste
campo político. Em linhas gerais, o campo da oposição-resistência pode ser compreendido
normativamente a partir de tipologias ordenadas por formas de ação, organização e ideologia. Por formas
de ação: parlamentar, civilista ou militarista. Por formas de organização: partidário-institucional, partidário-
clandestina, associativista. Por ideologia: liberal, socialista e nacionalista-trabalhista. Cada vertente
ativista, organizativa ou ideológica, por sua vez, pode ser dividida em subcategorias, como por exemplo
no caso do associativismo sindical, popular (vizinhança) ou profissional-classista (OAB, ABI, etc). Outra
consideração importante é a interação e as dinâmicas dos vários atores organizados da oposição ao
longo dos 21 anos do regime, que acabam provocando a diluição das fronteiras rígidas de qualquer
tipologia. Por último, não podemos desconsiderar as atitudes individuais ou personalistas contra o regime
que, muitas vezes, desafiam e ultrapassam esta tipologia calcada nas ações coletivas. Sobre o sentido
histórico-conceitual da palavra, ver capítulo 1.
6
escancarando uma ditadura que, desde 1964, é bom que se diga, já era uma
em vista que o AI-5 acirrou a censura e a violência estatal contra os opositores (não
apenas do ponto de vista simbólico, mas também físico), sua expiração abria novas
expectativas para a ação política das oposições como um todo. Seria exagerado
afirmar, como quer Elio Gaspari5, que ao fim do governo Geisel o Brasil tinha um
ditador, mas não tinha mais uma ditadura. Mas é inegável que o fim do AI-5 demarcou
4
Para tal afirmação me apoio, sobretudo em MARTINS Filho, João Roberto. O palácio e a caserna: a
dinâmica militar das crises políticas da ditadura (1964-1969). São Carlos, Editora UFSCar, 1994.
5
GASPARI, Elio. Ditadura envergonhada. São Paulo, Cia das Letras, 2003, p.35
6
A agenda de “distensão” do governo militar passava por algumas ações institucionais bem definidas e
articuladas: o fim do AI-5 (dez/1978); a promulgação da Anistia parcial e restrita (agosto/1979), a reforma
partidária (visando, sobretudo, dividir a oposição parlamentar), tendo o seu limite nas eleições gerais de
1982. A ampla vitória do PMDB nos governos dos Estados, sem falar na vitória surpreendente de Leonel
Brizola no governo do RJ, inaugurou uma nova fase nas negociações para o fim do regime. Seus
protagonistas principais eram: a oposição liberal (fortalecida pelo voto e privilegiada como interlocutora
“confiável”, articulada em torno do PMDB), a oposição de esquerda (enfraquecida, mas com boa
capacidade de mobilização popular, articulada em torno do PT) e o governo (enfraquecido, mas ainda
dispondo dos recursos do exercício do poder político e das armas). Sobre a “abertura” e a transição
política nela iniciada, ver MATHIAS, Suzeley. Distensão no Brasil: o projeto militar (1973-1979).
Campinas, Papirus, 1995. Uma visão instigante é apresentada por Adriano Codato, para quem as
negociações pelo alto determinaram a “forma” da transição política, enquanto as pressões dos
movimentos sociais determinaram o seu ritmo. CODATO, Adriano. “Uma história política da transição
brasileira: da ditadura militar à democracia”. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 25, pp. 83-106, 2005.
7
iremos retomar, neste trabalho, o longo debate sobre a importância destes atores,
movimentos sociais das periferias das grandes cidades brasileiras, assumiram cada
e sindicais, que, aliás, não precisou esperar o AI-5 para acontecer. Portanto, a
o corpo político da nação, não mais limitado às elites sempre hegemônicas e aos
7
Para uma visão sintética sobre os novos movimentos sociais ver SADER, Eder. Quando novos
personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-
1980). São Paulo, Paz e Terra, 1988. Ver também capítulo 8 desta tese.
8
Após o ciclo grevista de 1978 a 1980, o movimento operário passou a ser visto como epicentro da luta
mais ampla, não apenas contra o regime em si, mas por mudanças sócio-políticas mais amplas. A
“questão democrática” ao encontrar a “questão operária” deu novo sentido à resistência contra o
autoritarismo. Ao mesmo tempo, as leituras em torno do que a questão operária significava para a
sociedade brasileira foi um fator de divisão da esquerda, impossibilitando a aliança entre petistas, neo-
trabalhistas e comunistas.
9
TELLES, Vera. A experiência do autoritarismo e práticas instituintes. Dissertação de Mestrado em
Sociologia, FFLCH/USP, 1984
8
mais ortodoxos. Ao menos, essa era a perspectiva do jornal citado no início do texto.
por contraste, a importância que a cultura ganhou, entre 1964 e 1979, como o grande
campo de expressão das críticas ao regime. Nestes anos, o debate e a ação cultural
em seus diversos matizes e intersecções, foram vistos não apenas como uma tática
de crítica ao regime, mas como um imperativo da boa consciência que deveria manter
artistas mais comprometidos com estes valores era alimentada por um público ávido
por consumir obras de arte que unissem o deleite estético com a mensagem política,
ainda que velada. Este encontro, cada vez mais mediado pelo mercado, foi o motor da
resistência política sob a forma de ação cultural e expressão artística, nos diversos (e
inserção das artes no debate político nacional (papel potencializado pelo Modernismo),
mesmo com o fechamento dos espaços políticos strictu sensu no período do AI-5,
regime.
10
Conforme Nicola Mateucci, o termo “resistência” se consagrou durante a Segunda Guerra Mundial,
caracterizando mais uma “reação do que uma ação, uma defesa do que uma ofensiva, uma oposição
mais do que uma revolução”, podendo assumir formas ativas ou passivas, coletivas ou individuais
(MATEUCCI, N. “Resistência” IN: BOBBIO, N. (org.). Dicionário de Política. Brasília, EDUNB, 1999,
p.1114-1115. Este último fenômeno – a resistência individual - vem sendo rediscutido por Wolfgang
Heuer, dentro da tradição arendtiana, por meio do conceito de “coragem civil”. Ver HEUER, W. “Coraje en
la política sobre un verdulero en praga, senadores norteamericanos, whistleblowers y una carreta
siciliana”. História, Questões & Debates, 41, 167-181, 2004. Sobre a relação entre a resistência à ditadura
e as várias esquerdas nos anos 1970 ver ARAUJO, Maria Paula N. A utopia fragmentada. Rio de Janeiro,
Ed. FGV, 2000. Ver capítulo 1.
9
Conhecendo a história ulterior a 1979, sabemos que não foi assim. Ainda que a
protesto) tenham voltado a ser um palco privilegiado dos atores da oposição, a cultura
engajada não saiu de cena da noite para o dia. Entretanto, é inegável que seu lugar e
importância foram diminuídos nos anos que se seguiram até o final do regime militar,
uma intervenção pública nas questões políticas, sobretudo em épocas marcadas pelo
11
As configurações teóricas acerca dos intelectuais aqui utilizadas não esgotam todas as possibilidades
de definição desta categoria, objeto de um amplo debate na história e na sociologia. Para melhor captar a
dinâmica histórica do intelectual em suas variáveis profissionais, circuitos sócio-profissionais e matizes
ideológicos durante a ditadura militar brasileira, não optei por metodologias e conceitos mais restritivos,
como “campo” ou “intelectual orgânico”. O que se ganharia, eventualmente, em rigor analítico sociológico,
perder-se-ia em configuração historiográfica. Por outro lado, este trabalho não é fiel ao programa de uma
“história intelectual”, tal como sugerida por Jean-François Sirinelli, embora tangencie certos aspectos
desta proposta. Esta opção não desconsidera o quão instigante seria fazer uma história intelectual mais
sistemática do período, ancorada em conceitos e métodos mais rigorosos. Ver SIRINELLI, Jean-François.
“Les intellectuels” IN: RÉMOND, René (dir). Pour une histoire politique. Paris, Editions de Seuil, 1996, p.
199-232
10
modernista) lhes deram um papel de forjadores da nação-povo que lhe fez flertar com
Isto não quer dizer que artistas e intelectuais da oposição deixaram de ser
atuantes até o fim do regime, e sim que tiveram que dividir o espaço com outros atores
nas regras de mercado. Este processo ocorreu não apenas porque as ações
consagraram nos “anos de chumbo” foram cada vez mais incorporadas pelo grande
esquerdas ditas “ortodoxas”, as duas correntes que mais se digladiaram nos anos de
12
MARLETTI, Carlo. “Intelectuais” IN: BOBBIO. Norberto et alli (orgs). Dicionário de Política. Brasilia, Ed.
UNB, 1999 (12ª), p. 640
13
O nacional-popular, em termos gramscianos, pode ser definido como uma configuração cultural
construída a partir da mediação entre o “dialetal-folclórico” e o “cosmopolita-universal”, tendo em vista a
formação de um idioma cultural comum, transregional e policlassista em diálogo com elementos estéticos
ou obras estrangeiras incorporadas pelas elites nacionalistas. Entre as duas, a nação seria o espaço de
síntese ideal do particular com o universal, na luta pelo progresso da sociedade e pela expressão legítima
das classes populares, conforme o ideário de esquerda. (GRAMSCI, A. A literatura e a vida nacional. Rio
de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1968). No caso brasileiro, devemos dizer que a perspectiva cultural
nacionalista, no que tange esta tese, tem sua origem nos modernismos dos anos 1920, sendo
incorporada à direita e à esquerda a partir dos anos 1930. A partir dos anos 1950, a cultura nacional-
popular, demarcada pela dialética entre o local e o universal, filiada a linguagens artísticas convencionais
e realistas, sob influência mais lukacsiana do que gramsciana, foi uma das marcas das correntes culturais
do PCB. A questão do “nacional-popular” no Brasil foi, antes de tudo, uma idéia força que fez o antigo
nacionalismo conservador mesclar-se a valores políticos de esquerda na busca de uma expressão
cultural e estética que se convertesse em arma na luta pela modernização e contra o “imperialismo”.. A
rigor, entretanto, a política cultural do Partido Comunista, após 1958, inclinou-se mais para a estratégia de
“frentismo cultural”, tributária de Georg Lukacs. Gramsci só seria incorporado pela esquerda brasileira, de
forma mais sistemática, a partir dos anos 1970. Ver FREDERICO, Celso. “A presença de Lukács na
política cultural do PCB e na Universidade” IN: João Quartim de Moraes. (Org.). História do marxismo no
Brasil. São Paulo, Ed.Unicamp, 1995, p. 183-221.
11
como premissa para discutir e analisar tais questões14. Por outro lado, a hipertrofia da
cultura como esfera de ação de resistência ao regime não deve ser tomada como um
a chave para analisar este processo não está na visão instrumental e substitutiva de
Dito de maneira sintética, poderíamos dizer que havia quatro grandes grupos
valores oriundos desta, como veremos no capítulo 5): (i) os liberais, (ii) os comunistas
(iii) os grupos contraculturais e (iv) a nova esquerda surgida nos anos 1970, com esta
14
Este trabalho está informado, teoricamente, pela articulação categorial entre política e cultura. Nesta
perspectiva, colocamos em contato as obras, instituições, movimentos, práticas culturais e discursos
ideológicos para pensar os dilemas e projetos da cultura brasileira recente. Não tomei “cultura brasileira”
como expressão de uma ideologia postiça, sistema simbólico coerente ou expressão ontológica de um
“ser nacional”, e sim como projeto ideológico e problema político que se manifesta no debate intelectual e
na produção artística. Portanto, entendemos a esfera cultural como o lugar onde “política, poder e
dominação” são mediados e contestados (ESCOSTEGUY, Ana Maria. Cartografia dos estudos culturais.
Uma versão latino-americana. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2001. p.13.)
12
manter-se isolado mas fiel aos princípios éticos e políticos no combate ao regime
para a produção de conteúdo destas empresas. Os militares no poder, por sua vez,
mas tendiam a dar peso diferenciado para o lugar da “cultura jovem” e da “cultura
esquerda com trânsito na classe média, mas não podia aceitar a radicalização de suas
afirmar qual o melhor caminho da crítica: pela palavra e pela razão ou pela crítica
cultural e pela aproximação com a cultura das classes populares. O saldo geral destas
que não faz jus aos intensos debates e muitas alternativas da época.
de aparamento.
herança dos valores (influência dos valores herdados em nome dos quais se resiste);
das instituições, bem como a relação entre um e outro, na afirmação das resistências
deste trabalho.
posições conjunturais que oscilaram entre a colaboração (ainda que em nome da paz
15
KEDWARD, Roderick. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”, IN :
GUILLON, Jean Marie et LABORIE. Pierre (Eds). Memoire et Histoire: La Résistance. Editions Privat,
Tolouse, 1995, p.109-120
14
melancólicas.
popular. Esta questão nos remete ao último ponto da tipologia proposta por Kedward –
a tática da “inversão” simbólica dos valores dominantes – que acabou por criticar não
de análise, diante das quais este ensaio se debruçará sobre algumas. Darei destaque
aos artistas e, em segundo plano, aos intelectuais que pensaram a arte de resistência
em todos os seus matizes, não para afirmar o voluntarismo e as intenções dos “heróis
Nesse trabalho, serão analisados muitos exemplos desse conflito, que não deve ser
visto como desmerecedor das ações dos homens e mulheres que lutaram contra o
regime, mas como uma forma de compreensão menos idealizada da feitura histórica e
autoritarismo no contexto brasileiro dos anos 1960 e 1970. Pautam-se pela premissa
de que as lutas culturais travadas pelos atores, os circuitos e instituições por eles
16
Aqui destaco a análise estrutural do processo de inserção dos quadros artísticos e intelectuais de
esquerda no mercado de bens simbólicos, bastante peculiar no caso brasileiro. Ver MICELI, S. “O papel
político dos meios de comunicação” IN: SOSNOWSKI, Saul e SCHWARZ, Jorge (orgs). O trânsito da
memória. São Paulo, EDUSP, 1994, p. 41-68
16
As feridas do corpo social não cicatrizam pelo recalque ou pelo anátema ecoado a
Ou seja, de história”.
As páginas que se seguem não tem a pretensão de esgotar essa tarefa. Optei
potencializa nesta tese, à medida que ela abarca um largo período de tempo (para os
padrões historiográficos atuais), articula campos de reflexão que tem sido estudados
um vasto corpo documental, de naturezas muitas vezes distintas. Se ele for superado
por pesquisas que dialoguem com suas virtudes e defeitos, terá cumprido seu papel.
Por fim, gostaria que esta tese, independente do seu olhar criticista, fosse um
17
PROST, Antoine. “Résistance et sociéte: quels liens?” IN: La Resistance: une histoire sociale. Les
Éditions de l’atelier/Éditions Ouvrières, Paris 1997, p. 8
18
Tomo emprestado o jogo de palavras proposto por Daniel Aarão Reis Filho, sugerindo-lhe outro
sentido.
17
CAPITULO 1
O conceito de resistência
Ocidente, a categoria “resistência” deixa pouco espaço para uma reflexão crítica de
caráter mais desconstrutivo. Isto ocorre dada a carga semântica e o sentido político
positivados que o termo ganhou após se plasmar à luta heróica contra o “mal absoluto”
“tesouro” por Hannah Arendt, quando a política assumiu sua dimensão plena de
de resistência, quaisquer que sejam, uma dimensão justa e digna, diante da qual as
distanciada, dada sua dimensão ética e universalista, diante da qual a política e suas
diferenças parecem ficar em segundo plano. Maria Paula Araujo nos lembra que “toda
democracia, e dos direitos humanos. Ela é uma forma de luta típica dos momentos de
19
ARAUJO, Maria P. Op.cit. p.123
18
“Como indica, do ponto de vista lexical, o próprio termo, trata-se mais de uma reação
que de ação, de uma defesa que uma ofensiva, de uma oposição que de uma
adversa, marcada por um inimigo mais forte que se impõe em algum processo político-
cultural.
Conforme Maria Paula Araujo: “A resistência é sempre do mais fraco (...) quem
resiste faz frente à ação de algo mais forte. A resistência tem algo de heróico em
nosso imaginário, mas também traz implícita a noção de derrota: resistem aqueles que
resistência como uma tática que assume a derrota, mas, ao mesmo, tempo declara
esperança de vitória no futuro, pautada por valores humanistas como “humildade”, “fé”
autora estas três características tem dado dignidade humana e política aos chamados
mera defesa de valores políticos para tornar-se corolário de uma ação ético-existencial
direitos) tornando ainda mais complexa a análise crítica dos “tempos de resistência” a
20
MATEUCCI, Nicola in BOBBIO, Norberto (org). Dicionário de Política. Brasilia, Editora UNB, p. 1114
21
ARAUJO, Maria Paula. Op.cit., p. 124/125
22
Neste sentido, chamamos a atenção do leitor para o conceito de “coragem civil”, que valoriza os atos
aparentemente voluntaristas e individualistas de resistência à uma determinada situação de injustiça ou
violência, mas que pode catalizar futuras ações coletivas. Ver HEUER, Wolfgang. Op.cit.
19
qualquer opressão, pois cada ideologia que formou o campo da resistência tende a
questionáveis. Isto ocorre, tendo em vista que “(...) a resistência é uma categoria que
modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. E quero ver em
simbólica aos discursos dominantes. A resistência tem muitas faces. Ora propõe a
recuperação do sentido comunitário perdido (...), ora a melodia dos afetos em plena
conteúdo (contra)ideológico, Bosi nos aponta para a compreensão histórica das muitas
caso brasileiro, as muitas faces da resistência foram fundamentais para erigir novas
casos pela “sublimação lírica”, pela “paródia”, pela “nostalgia” como crítica do
ação direta e para o apelo à mobilização coletiva. Estas últimas perspectivas também
23
Idem, Ib. p. 252-253
24
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo, Cia das Letras, 2000 (6ªed.), p. 167
20
oposição ao regime.
Em seu livro mais recente, Bosi coloca a “arte e cultura de resistência” como
manifestação histórica no Brasil dos anos 1960 e 1970, teríamos a definição dos
brasileiro.
plano dos direitos, desvinculando-a da tradição das resistências típicas do século XX,
autor também procura matizar a opção pela resistência ao opressor como mera
25
BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia. Tema e variações. São Paulo, Cia das Letras, 2010.
26
Lembramos que conforme Aristóteles, ethos e pathos são dimensões da retórica, fundamentais para a
ocorrência da persuasão. Éthos relaciona-se à autoridade moral do orador, e pathos relaciona-se às
disposições e pré-disposições do ouvinte em aceitar a argumentação e amplificá-la, uma vez que
comovido por ela. Para o exame da cultura de resistência, esta pode ser uma chave teórica fundamental,
pois os vários discursos da resistência se ancoraram em postulados ético-morais que se sobrepuseram
aos estritos valores político-ideológicos, provocando no receptor destes discursos um conjunto de
reações, racionais e passionais. Obviamente, a “arte poética” não pode ser subsumida à retórica,
realizando-se por outras figuras e provocando outros tipos de fruição. Ver Aristóteles. Retórica. Livro I
(introdução e tradução de Manuel Alexandre Junior. Lisboa, Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1998.
21
ligada ao pensamento e à ação, à vida em comum. Diz o autor: “Para Arendt, a política
humana”27.
conviver com o seu contrário, um fantasma que sempre ronda o debate: a tendência à
aceitação da derrota, por parte da sociedade e dos grupos em nomes dos quais se
memória didática, reforçando seu papel cívico-ético, bem como a memória dos atores
27
AGUIAR, Odilio Alves. “A resistência em Hannah Arendt: da Política à Ética, da Ética à Política”. IN:
Duarte, André; Lopreato, Cristina e Magalhães, Marion B.. (Org.). A Banalização da violência: a atualidade
do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, v. 1, p. 254
28
BEDARIDA, François. “Sur Le concept de resistance” IN: GUILLON, Jean Marie et LABORIE. Pierre
(Eds). Memoire et Histoire: la resistance. p. 45-52
22
colaboração, que muitas vezes se imbricam. No caso que aqui examinamos, a tensão
processo que ensejou à época um duro debate sobre a melhor maneira de dizer não
ao regime e aos valores ideológicos por ele impostos. Portanto, não se pode falar que
corpo social, mediado por várias estruturas, circuitos sociais e instituições, apontando
historiadores engajados, motivo pelo qual tiveram que esperar muitas décadas para
também nos serve para pensar o papel da memorização da resistência nos pactos de
resistência aos regimes autoritários tende a ser homologada na memória a partir dos
recalcando as (muitas) diferenças internas até que o inimigo maior esteja derrotado.
29
PROST, Antoine. “Résistance et sociète: quels liens?” IN: PROST, A. (dir). Op.cit. p. 5.
30
LABORIE, Pierre & CABANEL, Patrick. Penser la défaite. Privat, 2002; LABORIE, Pierre. L´opinion
française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001
23
Muitas vezes, este padrão frentista tende a se impor na forma pela qual a resistência
política e cultural tem sido lembrada após o término das ditaduras31. No caso brasileiro,
ainda sob a ditadura militar, a tensão entre frentismo e sectarismo marcou o debate
salvo a análise de alguns casos da década de 1960 e 1970, como o debate que opôs
signo de uma unidade estética, ética e política. Aliás, mesmo este debate, já bem
conhecido pela historiografia e pela memória social, tem sido marcado pela reiteração
Nestes termos, parece que há pouco o que revisar e criticar sem correr o risco
31
No final dos anos 1950, o PCB definiu a “revolução brasileira” como “nacional, democrática, anti-feudal
e anti-imperialista”. Esta conceituação, aliada à lógica etapista para construir o socialismo permitiu ao
Partido fazer amplas alianças, em nome de uma “frente única” nacional-popular, tática que se manteve
como eixo da resistência comunista ao regime militar e permitiu a constituição de alianças com setores
liberais e outras correntes de esquerda entre os anos 1960 e 1970. Ver: SEGATTO, José L. Reforma e
revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954-1964). Rio de Janeiro, Record, 1995; BRANDÃO, Gil
Marçal. A esquerda positiva: as duas almas do Partido Comunista. São Paulo, Hucitec, 1997
32
; REIS Filho, Daniel A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000; REIS
FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo, Brasiliense, 1990; REIS FILHO, Daniel
Aarão (org.). Versões e ficções. O seqüestro da História. São Paulo, Perseu Abramo, 1999;
ROLLEMBERG, D. & QUADRAT, Samantha (orgs). A construção social dos regimes autoritários. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2010; ROLLEMBERG, Denise. “História, Memória e Verdade: em busca do
universo dos homens”. IN: Cecília MacDowell Santos; Edson Luís de Almeida Teles; Janaína de Almeida
Teles (orgs.). Desarquivando a Ditadura: Memória e Justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009;
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, pp. 81-91. Note-se que esta historiografia vai na
contramão das posições defendidas por Maria Paula Araujo, citadas anteriormente.
24
historiadoras que vem atuando nesta direção, sintetiza este projeto historiográfico33:
pesquisadores do período, para as esquerdas que atuaram nos anos 1960 e 1970
contra a ditadura e/ou por outra ordem, para os envolvidos com os movimentos de
alguma forma ligados ao ‘nunca mais’ (...) Estes movimentos [historiográficos] têm um
ainda permanece restrito a poucos na academia e quase ausente fora dela. Afastando-
ampla, polemizando com a sociedade, estendendo, por fim, o universo para muito
além dos limites nos quais se encontra, o das famílias dos atingidos (...). Em 1979 e na
década de 1980, inventamos nossa honra e nosso futuro, num amálgama do qual as
do campo das resistências políticas é a convivência no seio deste campo, entre “ética
seus valores e que não faz concessões ao inimigo. A segunda ética é mais
pragmática, busca eficácia da ação e é guiada por uma lógica racionalista. Via de
regra, a primeira está ligada à atitudes e posições mais sectárias, enquanto a segunda
está ligada às posições mais frentistas. Entretanto, em muitos casos, inclusive no caso
33
ROLLEMBERG, Denise. “História, Memória e Verdade: em busca do universo dos homens” IN: Cecília
MacDowell Santos; Edson Luís de Almeida Teles; Janaína de Almeida Teles (orgs.). Op.cit. (versão
digital, p. 7)
25
convicção para uma ética da responsabilidade34. Essa migração não se faz sem
deixa de ser mera reação opositora e passa a ter necessidade de uma “agenda
positiva” de poder e reconstrução dos elos sociais, sempre abalados pelos períodos de
resistência, em que pese a ética e o universalismo que lhes são subjacentes, pode ser
pensado como um campo conflituoso, plural e, muitas vezes, errático, uma vez que
Logo em 1964, depois de ser aplaudido pela imprensa liberal e por amplos
34
Idem, p. 45.
26
entendida até finais dos anos 1970 como a necessidade da volta da democracia
197535. Esse contexto foi marcado pela autocrítica da esquerda armada, assumindo a
derrota da luta política, ao mesmo tempo em que se esboçava uma nova fase na
desde os primeiros meses após o golpe, seja pela via dos liberais arrependidos e
Brasileiro que apostava nesta linha de ação desde o imediato pós-golpe. O PCB
1967, o que não quer dizer que esta estratégia geral tenha sido executada de maneira
líderes comunistas que aderiram à luta armada no final dos anos 1960, como Carlos
pelo Comitê Central em 1973 e 1977, reforçou ainda mais as posições que assumiam
ação, defendendo uma frente de esquerda mais restrita, sem abrir mão da identidade
35
ARAUJO, Maria P. Op.cit. p. 115-132
36
Os documentos em questão: “Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara” (1970); “Por uma
frente Patriótica contra o Fascismo” (1973); “Resolução Política do Comitê Central” (1977).
27
vivenciado entre 1980 e 1983 acabou por isolar as duas correntes favorecendo uma
nova camada dirigente que reiterou as alianças amplas em nome da democracia, mas
Giocondo Dias.
exigira a intervenção militar para derrubar João Goulart. A este respeito, o caso do
Maria Carpeaux, Hermano Alves, Marcio Moreira Alves, Paulo Francis, sem falar nas
Kubitschek, em junho de 1964, acendeu a luz amarela nas lideranças políticas que
37
PRESTES, Luis C. Carta aos Comunistas. São Paulo, Alfa-Õmega, 1980
38
A corrente “renovadora”, muitas vezes chamada de “Eurocomunista” era liderada por Armênio Guedes
e composta por Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Aloysio Nunes Ferreira,
entre outros. Sob influência de Gramsci, tentaram redimensionar o papel do Partido Comunista Brasileiro
na redemocratização, desvinculando a democracia política do capitalismo, aceitando-a como “valor
universal”. Além de defender alianças políticas amplas, defendia uma renovação teórica (criticando o
“etapismo” e o economicismo) e maior participação da militância dentro do Partido. Entre março de 1980 e
julho de 1981, essa corrente hegemonizou o semanário “Voz da Unidade”, dispersando-se a partir de
1983. Ver TAFARELLO, Paulo Moraes. Crise orgânica do Partido Comunista Brasileiro e o declínio do
socialismo real. Mestrado em Ciências Sociais, UNESP, Marília, 2009, p. 55-58
39
Sobre a redação destes editoriais e seu impacto à época ver AMADO, João. Os jornalistas e o golpe de
64. Disponível em Observatório da Imprensa, www.observatoriodaimprensa.com.br, acessado em
3/4/2007
40
Para um balanço crítico da obra de Cony, e de sua trajetória literária e biográfica, ver BUENO, Raquel
Illescas. Os invólucros da memória na ficção de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro, Academia Brasileira
de Letras, 2008 ( pp. 1-60).
28
de cena de JK foi aplaudida pelos setores civis mais à direita, não apenas por razões
ideológicas, mas por motivos eleitoreiros, tendo em vista que o ex-Presidente era o
candidato mais forte no pleito presidencial esperado para 1965. Mesmo Carlos
Lacerda, a face civil mais ligada ao golpe de 1964, entrara em conflito com o regime
alguns dias depois da queda de Goulart, percebendo que o núcleo conspirador que
assumiu o poder não lhe rendera uma posição de destaque no novo governo.
Entretanto, as ilusões dos oportunistas logo se perderiam com o Ato Institucional n.2,
“Não se disse que a Revolução (sic!) foi, mas que é, e continuará”. Ou seja, os
adiamento sine die das eleições presidenciais, a dissolução dos partidos políticos
criar, ao apoiar o golpe militar. Neste sentido, a resistência ao regime, desde os seus
conservadores aos mais radicais, marcado por três atores principais entre 1964 e
bandeiras – unidade e volta à democracia - fez com que eles acabassem reféns das
a pegar em armas para derrubar a ditadura e que, para tal, tinha que romper com as
A expressão dos liberais contra o regime, a partir de 1966, foi a Frente Ampla,
que reuniu Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, com apoio não muito entusiástico
FA, fechada por decreto em abril de 1968, acentuou o divórcio entre o regime e alguns
setores liberais, com ampla repercussão na imprensa, quase toda ela também ligada a
guerrilha de esquerda exigia também uma suspensão das críticas ao regime, pois a
e na denúncia ainda tímidas das “torturas”, demonstrava este recuo tático, paralelo ao
conseguiu ter uma posição oficial diante do golpe em 1965, com a “resolução de maio”
41
SAES, Décio. Classes médias e sistema político no Brasil. São Paulo, TA Queiroz, 1985
42
Sobre as relações da imprensa liberal com o governo militar, diante dos impasses colocados pela luta
armada de esquerda ver: ABREU, João Batista de. As manobras da informação: análise da cobertura
jornalística da luta armada no Brasil (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad, 2000; SEQUEIRA, Cleofe . A
Informação Comprometida – Um Estudo do noticiário da Folha da Tarde no Governo Médici. Dissertação
de mestrado, ECA-USP, São Paulo, 2000; LIBARDI, Ana Paula. “A guerrilha amordaçada: A ALN na
Imprensa (1969-1974)”. Revista Agora, Vitória, 6, 2007-p.1-27; GAZZOTTI, Juliana. “O Jornal da Tarde e
o pós AI-5: o discurso da imprensa desmistificado” IN: MARTINS Filho, J.R. (org). O Golpe de 64 e o
regime militar: novas perspectivas. São Carlos, EDUFSCar, 2004, 67-80. Nestes trabalhos, os autores
procuram traçar um painel plural dos órgãos de imprensa nos anos de chumbo, no qual ficam claras
algumas diferenças sutis entre eles, indo da adesão ativa à repressão (Folha da Tarde) ou do apoio
ideológico no combate aos guerrilheiros (O Globo), às posições mais distanciadas do discurso oficial,
ainda que não se endossasse a luta armada (Veja, Jornal do Brasil).
30
política (ou seja, não armada) contra o regime. A confirmação dos termos da “nova
política” civilista, frentista e democrática, já definida em 1958, acabou por causar uma
grande crise interna no Partido, com muitos expurgos e dissidências entre os mais
em linhas gerais, até o final do regime militar44. O resultado foi curioso e exacerbou
uma característica da história do partido, que ainda precisaria ser mais estudada: seu
significativa entre intelectuais e artistas, ao menos até fins dos anos 1970. A
comunistas e seus compagnons de route foram bem sucedidos na defesa dos valores
simpatizantes na Rede Globo, na burocracia cultural, nas redações dos jornais, entre
outros espaços, demonstra essa situação paradoxal vivida pelo Partido nos anos 1960
e 1970.
Se o campo cultural já era importante para a esquerda antes do golpe, como atestam
43
CARONE, E. O PCB. São Paulo, Difel, 1982, p.15-27
44
LIMA, Hamilton. O ocaso do comunismo democrático: O PCB na última ilegalidade. Dissertação de
Mestrado em Ciência Política, UNICAMP, 1995
31
Cultura Popular do Recife45, após o golpe o campo cultural continuou a ser um foco de
cultural” ou “vazio cultural” foram construídas neste processo e devem ser recolocadas
em seu contexto, entendidas como categorias inerentes à luta política não apenas das
ao PCB pelos seus próprios quadros dissidentes ou por outras correntes da esquerda
projeto foi questionado pelas correntes da esquerda armada e pela crítica cultural e
cultura nacional-popular e pelo apoio às reformas de base, após o golpe estes dois
pilares sofreram um profundo abalo. Apesar disso, entre 1964 e 1968 floresceu uma
cultura de esquerda que, passou a ser idealizada como um momento mágico na vida
45
Estes movimentos serão analisados mais detalhadamente no capítulo 8.
46
SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política – 1964-69” IN: Cultura e Politica. Ed. Paz e Terra, 2001, p. 7-
58 (original de 1969, publicado na Revista Les Temps Modernes.)
47
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Record, 2000.
48
SCHWARZ, Roberto. Op.cit.
32
campo não convergiram para um projeto homogêneo, ainda que puramente tático. Ao
49
No Brasil, parece haver a predominância de um liberalismo de corte oligárquico-conservador que rejeita
a política como privilégio de um estamento aristocrático, mas também sempre se pautou por controlar a
“força do número”. A complexa arquitetura institucional e legal da exclusão política brasileira, com sérias
conseqüências para a realização da cidadania, foi a consequência de uma hegemonia histórica do
liberalismo-conservador (Império e Primeira República), eventualmente cedendo espaço político aos
“nacionalistas-autoritários” (primeiro governo Vargas e regime militar) nos momentos de crise no controle
social e na realização de projetos político-econômicos que exigiam a mobilização de amplos setores e
recursos nacionais. Seu mecanismo inicial foi a “eleição censitária”, complementada no Brasil pelo “voto
de cabresto” e pela exclusão dos analfabetos do “corpo politico” nacional até 1988. Ainda assim, a
presença de um voto popular-operário relativamente autônomo das correntes liberais-conservadoras,
capaz de decidir eleições, foi um fator de crise constante na “República de 1946”. Para uma analise
histórica das doutrinas do liberalismo conservador no Brasil, ver BOSI, A. Ideologia e contraideologia. p.
276-393.
50
O PCB, desde meados dos anos 1950, não tinha, propriamente, uma política cultural organizada e
sistemática. Entretanto, defendo a tese de que, ainda que as instâncias oficiais do Partido não tivessem
uma doutrina ou uma organicidade muito impositiva, os artistas comunistas (e simpatizantes) constituíam
um núcleo pensante e criador que conseguiu traduzir, com relativo sucesso e coerência, a linha frentista e
aliancista do partido. A opção pelo nacionalismo, a visão de povo como proto-consciência revolucionária,
o papel mediador do artista-intelectual e o realismo como princípio da comunicação com o público
(implicando no figurativismo nas artes, na defesa da canção como convenção melódica suportando uma
mensagem poética e o realismo dramatúrgico no cinema e no teatro), foram as bases deste projeto.
Sobre a relação entre cultura e política no PCB ver RUBIM, Antonio Canelas. Partido Comunista, cultura e
política cultural. Tese de Doutorado em Sociologia, FFLCH/USP, 1987; MORAES, Denis. O imaginário
vigiado: a imprensa comunista e a recepção do realismo socialista no Brasil. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1994
33
meios de comunicação de massa e puderam, ainda que taticamente, dar voz aos
fonográficas.
possíveis dentro do sistema, negociando até certo ponto o próprio conteúdo de suas
realista, herdada, sobretudo, da cultura européia do século XIX. Por outro lado, não
norteador da ação cultural era a negação romântica e libertária, ora individualista ora
assimilados pela juventude universitária, marcando uma certa cultura libertária que
inundou os campi até boa parte dos anos 1980 e que procurava conciliar a resistência
política clássica com novas atitudes comportamentais ("políticas do corpo", luta das
pela própria indústria cultural, cada vez mais aberta aos elementos estéticos e
51
A expressão “projeto moderno brasileiro” é utilizada, normalmente, para designar o mainstream da
arquitetura brasileira do século XX, inspirada em Le Corbusier. Aqui, utilizo a expressão de maneira mais
livre para englobar o conjunto dialético, plural e dinâmico dos projetos estético-culturais voltados para a
construção (ou descontrução) identitária da modernidade brasileira, gestados entre 1922 e 1968.
52
COELHO, Frederico O. Eu brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil
dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2010. Neste trabalho, o autor reconstrói as
bases da vanguarda contracultural brasileira e sua atuação no contexto cultural da “resistência” ao
regime, dando ênfase a duas figuras basilares: Torquato Neto e Hélio Oiticica. O livro procura analisar
tradição da cultura marginal brasileira para além do Tropicalismo (musical) e para além das influências da
contracultura internacional. Para uma crítica de época a esta corrente ver MARTINS, Luciano. “A geração
AI-5: um ensaio sobre autoritarismo e alienação”. Ensaio de Opinião, v.2, p. 72-103, 1979
35
regime militar. Na sua gênese e concepção de cultura, nota-se a grande influência das
"cultura popular", na maioria das vezes idealizada e voltada para a valorização das
como um todo. A ação cultural destes grupos, atuantes nos bairros e nas comunidades
certa "pureza” das práticas culturais vividas no cotidiano dos bairros e da vizinhança. A
diferença central em relação às praticas culturais dos comunistas ortodoxos era que a
tornou-se objeto de suspeita para essas correntes pois implicava em uma visão
partir da sua cultura cotidiana, pragmática, local e comunitária, voltada para uma
53
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular. São Paulo, Brasiliense, 1985.
36
que intelectual. Por outro lado, as estratégias e táticas de ação cultural também eram
repressão do governo Médici, iniciaram uma tímida aproximação com alguns setores
adiante.
popular destroçada após 1968; por parte das correntes marginais da contracultura
indústria fonográfica) - completam este quadro. Muitas vezes serviram como fiéis da
balança nas alianças civis contra o regime. Quase sempre, e isto pode parecer até
paradoxal, os liberais estiveram mais ligados aos comunistas e não seria exagero
54
RAMOS, José M.. Cinema, Estado e lutas culturais. São Paulo: Brasiliense, 1988.
37
supor que junto com estes construíram e marcaram, no plano da memória social, o
próprio conceito de resistência à ditadura, tal como consagrado hoje em dia pela
tendo em vista que alguns elementos simbólicos oriundos de uma arte engajada55
mercado da cultura, no final dos anos 1960, processo que tem sido estudado por
diversos autores56.
regime, sobre a vida cultural de esquerda, até então tolerada? O que teria mudado,
exclusivamente ao campo cultural (...) mas, desta vez, diferentemente de 1964, o setor
55
O conceito de arte engajada aqui utilizado é mais amplo do que a definição estrita de arte de
propaganda ou arte de protesto em sentido estrito, procurando abarcar todo o tipo de manifestação
artístico-cultural de esquerda, empenhada em veicular críticas ao poder, críticas culturais, projetos
nacionais de reforma ou revolução, ou ainda, denunciar desigualdades socioeconômicas e políticas. Ver
NAPOLITANO, Marcos. “A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Revista
Temáticas, 37/38, Pós-Graduação em Sociologia, IFCH/Unicamp, 2011 (no prelo)
56
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959/69). São Paulo: Annablume / FAPESP, 2001; MICELI, Sergio. “O papel político dos meios de
comunicação de massa”. In: S. SOSNOWSKI, S. et all. Op.cit. e ORTIZ, Renato. A moderna tradição
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988
57
MENDES, Ricardo Antonio S. “Cultura e repressão nos tempos do AI-5” IN: MUNTEAL Fo., Oswaldo et
alli. (orgs). Tempo negro, temperatura sufocante. Rio de Janeiro, Editora PUC/Contraponto, 2008, p.259-
287
38
norteador das ações de Estado e, nesse sentido, caberia uma maior intervenção deste
nos diversos campos em que estava dividido o ‘poder nacional’, dentre estes o ‘poder
nacional, que viria, tanto através da difusão da cultura em âmbito nacional, quanto
pela via da eliminação dos sinais de conflito existentes dentro da sociedade brasileira
daquele momento”
cultural, a arte engajada, entre 1967 e 1968, ganhou novo sentido político com a
protestos de massa. A luta armada foi outro componente contextual que deu um novo
cujas bases simbólicas até então eram dadas pelas posições do PCB, avesso à
resistência política ao regime, dando um novo estatuto político aos seus mediadores,
artistas e intelectuais. Neste momento, não por acaso, a cultura de esquerda deixou
de ter o mesmo espaço que tivera antes de 1968. Neste sentido, ela não é uma
como faceta simbólica fundamental para uma nova etapa de resistência ao regime que
foi dissuadida prontamente pelas forças de segurança. Em menos de três anos a luta
expressão de setores médios da sociedade (ou, ao menos, dos seus filhos mais
rebeldes) que eram vistos como a principal base social do golpe militar e como
simbólicos que crescia a olhos vistos. Com este tipo de enraizamento social,
marcante de 1968, era sintoma deste papel da cultura não apenas como resistência
de arte? Como se relacionar com o mercado? Qual era o público ideal das
58
ORTIZ.R.Op.cit.
40
realista, ou chocar, através de uma ruptura formal com as convenções estéticas? Qual
CAPITULO 2
passagem, a perplexidade foi causada menos pela surpresa diante do golpe militar, há
muito esperado pelo governo Goulart e seus simpatizantes, e mais pela derrota sem
“dispositivo militar” não foi acionado de maneira contundente pelo Presidente acuado
ou se, na hora do combate, a lógica corporativa das Forças Armadas prevaleceu sobre
fatal para o governo Jango, permitindo uma articulação eficaz, ainda que errática, por
março em São Paulo, que saíram às ruas. O mundo ficou de cabeça para baixo,
59
Para uma visão geral do golpe militar de 1964, seus eventos e debates historiográficos em torno do
tema, ver FICO, C. Além do Golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de
Janeiro, Record, 2004. Desde já, assumo minha posição neste debate: 1) o golpe militar de 1964 foi
produto da articulação entre setores liberais, tecnoburocratas civis e militares autoritários contra a agenda
reformista proposta por João Goulart (independente dessa agenda ter consistência ideológica, programa
político e plano de ação efetivos); 2) A partir de 1965, com o AI-2, os setores liberais começam a se
afastar de maneira errática mas constante, do núcleo central do poder político. A partir daí, o que era um
“golpe civil-militar” começa a se transformar, efetivamente, em um “regime mlitar” 3) A construção do
autoritarismo não foi produto dos embates entre a “linha dura” e os “liberais” no interior das FFAA. Nestas,
todos eram, em princípio, adeptos da tutela autoritária sobre o corpo político e social da nação, e o que
dividia as correntes militares era o uso e o papel político da repressão legal e o grau de violência policial
direta neste processo; 4) O regime militar pautou-se pelo princípio da “ditadura republicana” de matriz
42
O impacto do golpe militar fez levantar uma questão crucial que abalava o eixo
ser deposto tão facilmente? Uma das respostas possíveis, do ponto de vista da
terem falhado na tarefa específica de formar uma consciência social que fortalecesse
estruturas partidárias fragilizadas60. O vigor do debate intelectual entre 1964 e 1968 foi
aberto, mesmo que ainda marcado por paradigmas teóricos bastante rígidos,
informados, em linhas gerais, pelo nacionalismo de esquerda. Se nos dois anos que
positivista, impessoal, tecnocrática, cívico-nacionalista, desmobilizadora das massas, que tentou conciliar,
modernização capitalista agressiva com uma moderada política social compensatória, sob uma gestão
tecnocrática apoiada em grupos de pressão da elite econômica nacional e transnacional.
60
PECAUT, Daniel. Intelectuais e política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo, Ática, 1990, p.202
43
criativo da arte de esquerda, o debate, entre 1967 e 1968, acabou por conduzir à sua
revisão crítica. Ainda assim, o nacional popular estaria presente ao longo dos anos
percepção não foi linear nem homogênea entre os artistas engajados. O que importa
música), passou a ser supervalorizada, inclusive porque era, bem ou mal, o único
situação paradoxal: por um lado, serviu para a afirmação de um frágil espaço público.
Por outro, serviu como matéria bruta para a elaboração de produtos culturais
segmento ideológico com a maioria da população - o “povo” tão almejado pela arte
vez mais pelo e para o mercado de bens simbólicos. Aliás, o processo de incorporação
do artista engajado pelo mercado liga-se a uma tese que tem pautado as análises
sobre a cultura dos primeiros quatro anos da ditadura, afirmando que o pós-golpe foi
61
Ver Anteprojeto do Manifesto do CPC. IN: HOLLANDA, Heloisa B. Impressões de Viagem: CPC,
vanguarda e desbunde. São Paulo, Brasiliense, 1981 (2ªed), p. 121-144
44
classe, a classe média consumidora de cultura. Se em linhas gerais, essa tese não é
oposição, visão que tem implicações diretas na história da cultura. A relativa liberdade
entre 1964 e 1968, até hoje causa certa perplexidade, fazendo crer que estávamos
deste trabalho, era resultado de um tipo de autoritarismo mais preocupado com duas
Estes movimentos, diga-se, não precisaram esperar o AI-5 para conhecer a face mais
62
Dois textos são particularmente importantes na disseminação desta tese: o já citado artigo de Roberto
Schwarz. (Cultura e política....) e o de H.B.Hollanda. Impressões de Viagem. Esta última incorpora
criticamente a tese básica lançada por Schwarz, mas mesmo assim se utiliza da imagem do “circuito
fechado” de comunicação para explicar o caminho histórico da literatura que vai do engajamento à
contracultura.
63
Sobre a ditadura em sua fase inicial nos apoiamos nas análises de MARTINS Filho, João R. O palácio
e a caserna. São Carlos, Editora UFSCAR, 1994.
64
Do ponto de vista sociológico, é sempre arriscado definir as “classes médias”, mas alguma definição é
fundamental para ir além da fantasmagoria sociológica que sempre assalta os textos sobre a história do
período. Em linhas gerais, podemos defini-la como o “conjunto dos trabalhadores não-manuais”,
composto de vários estratos de acordo com os ingressos financeiros, lugar na estrutura de produção e
formação escolar. Historicamente, no caso brasileiro, o núcleo identitário da classe média foi composto
pela “pequena burguesia” composta por profissionais liberais, sendo acrescida ao longo do tempo por
quadros gerenciais do setor industrial e funcionários públicos de todos os tipos. Nos anos 1970, os
assalariados do setor gerencial e de serviços privados e públicos (white collar) ganharam importância
neste segmento, fazendo com que boa parte da classe média fosse composta por pequenos assalariados,
frequentemente recrutados entre jovens estudantes servindo de base social para os sindicatos que
45
e generalizantes. Mesmo com esta relativa liberdade, é um mito dizer que não houve
censura até o AI-5. No teatro e no cinema, sobretudo, a censura entre 1964 e 1968 foi
dezembro de 1968.
promotor das reformas e da redenção nacional. Ao mesmo tempo ainda não tinham
sido tragados pelo mercado, ainda que este ganhasse importância crescente no
representavam estas categorias. Boa parte das classes médias no Brasil, nos anos 1970, afastou-se da
velha tradição liberal (muito próxima dos valores oligárquicos), na direção de um esquerdismo difuso e
anti-governamental. Neste sentido é que podemos compreender porque a classe média, como um todo,
foi uma protagonista importante da oposição e da resistência ao regime, seja na perspectiva liberal, seja
na perspectiva da esquerda. Sem falar que a maior parte dos intelectuais militantes do Partido Comunista,
por exemplo, estavam ligados a este setor. Ver SAES, Décio. Classe Média e sistema político no Brasil.
São Paulo, TA Queiroz Editor, 1985 (ver, sobretudo, o “posfácio” de 1979). Sobre a relação das classes
médias com o regime militar, ver também: FICO, Carlos. “La classe média bresilliène face au régime
militaire. Du soutien à la désaffection”. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire. 105, janvier-mars, 2010, p.155-
168.
65
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985).
Tese de Doutorado em História, UFRJ, 2008; SIMÕES, Inimá F. Roteiro da Intolerância: a censura
cinematográfica no Brasil. São Paulo, Ed. Senac, 1999; MARTINS, William de Souza Nunes. Produzindo
no escuro: políticas para a indústria cinematográfica brasileira e o papel da censura (1964-1988). Tese
Doutorado em História Social, UFRJ, 2009.
66
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção.; CZAJKA, Rodrigo. Praticando delitos, formando opinião:
Intelectuais, comunismo e repressão (1958-1968). Tese de Doutorado em Sociologia, Unicamp, 2009 ;
MAUES, Flamarion. Editoras de oposição no período de Abertura (1974-1985): Negócio e política.
Dissertação de Mestrado em História Econômica, FFLCH/USP, 2006
46
Mercado (Mecenas)67.
interno das esquerdas e uma forma de afirmação ideológica diante das estratégias
derrotadas pela direita. Ao mesmo tempo, foi o locus de uma resistência sublimada, no
esquerda após o golpe. O personagem central, Padre Nando, detido pelos golpistas,
ouve as batidas em código de Januário, líder camponês preso em outra cela contígua.
preso: “Era sem dúvida, Januário criando um código de batidas na parede da cela.
amargo - “nas coxas” - completa-se pela imagem da Pátria, mulher amada pelo
nacionalista, que a partir de então viveria uma crise incontornável. Cabe perguntar,
67
Lembremos que a dimensão do mercado é constitutiva do “espaço público” tal como proposto por
Habermas. É o mercado (ainda que restrito, et pour cause) que permite a formação de uma comunidade
de autores-leitores livres do Estado e da Igreja. O problema se dá quando este mercado adquire uma
escala tal, massiva e industrial, que a subjetividade que nele se expressava fica sob risco de diluição.
Assim, em sociedades com alta industrialização da cultura, o princípio de liberdade que demarca o
espaço público entra em choque com a racionalidade industrializada da cultura. O problema teórico que
agora se coloca é avaliar o quanto há de espaço público, nos termos aqui colocados, sob a cultura
industrializada. Ver HABERMAS, J. L´Espace public.. Paris, Payot, 1978.
47
dialogando com a cena: em que pensava a Mãe Pátria abandonada, durante seus
expressão desta fantasia substitutiva da luta política perdida? O gozo estético assumia
regime, como catarse e expressão tardia e inócua de valores derrotados em 1964, até
que o ano de 1968 acirrasse os termos do debate e apontasse outros caminhos para a
“resistência cultural”68. Entretanto, ainda não houve um exame mais detalhado dos
cultural como sinônimo de resistência tout court ao regime militar. Em outras palavras,
conta o momento fundacional deste campo de ação não significa buscar suas origens
para entender sua trajetória ulterior. Assim, o conceito historiográfico de gênese, aqui
tempo, demarcando os valores, dilemas e debates que lhe deram lastro histórico.
foram além da mera catarse ou expressão fora de tempo e lugar. Temas como
período, antes da radicalização proposta por Glauber Rocha, pelo Oficina e pelos
avaliações propriamente políticas sobre o que significara 1964 ainda não estavam
muito bem delimitadas e estabelecidas, tanto por parte dos liberais, quanto por parte
68
Ver, por exemplo, os artigos produzidos à época, escritos por SCHWARZ, R. Op.cit e GALVÃO,
Walnice. “MMPB: uma análise ideológica” IN: Sacos de Gatos e outros ensaios. Duas Cidades, 1988
48
das esquerdas. Em outras palavras, a questão cultural foi o mote para que a crítica
pudessem se recompor.
mais adiante) tenha sido a primeira resposta cultural da esquerda ao golpe, outras
como eixo da oposição ao novo contexto autoritário. Neste sentido, destaco dois
autores: Alceu Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony. Tentarei demonstrar como, em
autonomia”70. O marco inicial desta nova relação do PCB com os intelectuais foi a
revista Estudos Sociais, dirigida por Astrogildo Pereira71. Obviamente, em que pese
este novo contexto partidário, a atuação dos militantes culturais comunistas não era
animados por elas. Entretanto, isso estava muito longe de um “dirigismo” cultural, o
69
Sobre o realismo socialista no Brasil ver MORAES, Denis. O imaginário vigiado. A imprensa comunista
e a recepção do realismo socialista no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. , 1994. Sobre os debates
que instituíram o conceito, ver ROBIN, Règine. Realisme Socialiste: une estètique impossible. Paris,
Payot, 1986
70
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro. Op.cit, p. 68
71
ARIAS, Santiane. A revista Estudos Sociais e a experiência de um marxismo criador. Dissertação de
Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2003; Sobre o papel de Astrojildo Pereira na política cultural do PCB
ver FEIJÓ, Martim C. O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e a formulação de uma política cultural.
São Paulo, Boitempo, 2001
49
Czajka destaca a ausência de uma instância organizativa. Diz o autor72: “não era uma
‘projeto de resistência. Era de certo modo uma preleção ou, como denominou Walnice
Castro dos seus postos públicos - quem forjou a senha para a resistência intelectual,
Alceu Amoroso Lima, ex-Tristão de Athayde, no começo dos anos 1960 já não era
política em curso nos anos 196073. Conforme Rodrigo Czajka: “A crônica ‘terrorismo
cultural’ serviu de elo de ligação entre diversas camadas intelectuais com o meio
militares”74.
insuspeita, pois seu anticomunismo era notório. Em tom tipicamente liberal e afeito à
assumindo entre nós ainda assume os aspectos mais suaves e indiretos, como por
exemplo o terrorismo cultural, a guerra às idéias (...) Agora, quando pretendemos ter
primária de todas as revoluções que julgam domar pela força o poder das convicções
intelectuais, filósofos, ainda presos entre nós, estão sendo vítimas deste terrorismo
antibrasileiro!”.
governo de direita e demonstrar que seus atos arbitrários eram “antibrasileiros”, pois
àqueles que tinham idéias contrárias ao regime, fazendo com que atores que deveriam
“liberal” da caserna. Lembremos que em seu discurso de posse disse que o antídoto
para um governo totalitário não seria uma ditadura fascista e de direita. Portanto, as
tergiversações ideológicas dos primeiros meses do regime davam margem a este tipo
75
Idem, Ib.p. 231-232
51
ser insuspeito, à medida que não nutria a mínima simpatia pela esquerda marxista e
de críticas ao regime, foi Carlos Heitor Cony. Diga-se, o liberalismo de Cony mesclava-
mais complexo, contraditório e, por suposto, mais progressista do que a média dos
liberais brasileiros. A balbúrdia festiva dos quartéis e o aplauso geral da classe média
referenciava tal temática [a resistência ] não porque seu autor fosse necessariamente
posicionamento do escritor”.
jornal carioca Correio da Manhã, servindo não apenas para fixar o seu autor nos anais
na memória social, em que pese o apoio geral da imprensa ao golpe. Lembremos que
agonizante Governo João Goulart, os famosos “Basta!” e Fora!”, escritos pela equipe
de editores da qual fazia parte o mesmo Carlos Heitor Cony, e que serviram de senha
e legitimação para o levante militar. Em certo sentido, eles foram o ponto culminante
76
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003 (publicado originalmente em 1964)
77
CZAJKA, R. Op.cit. p. 214.
52
de uma conspiração da qual a imprensa não foi apenas a expressão, mas uma das
peças-chave78.
Cony não escondia sua antipatia política pelo governo deposto. Aliado a este
fato, sua independência partidária e seu individualismo crítico, exercitado com uma
novo regime. Em uma de suas primeiras crônicas, dizia: “Não pedirei licença na praça
pública ou na Rua da Relação para pensar. Nem muito menos me orientarei pelos
o povo lhe confiara (...) Mas não poderia votar a favor do Sr. João Goulart, homem
“Manifesto dos Trabalhadores Intelectuais” no ano anterior81: “Apelo aos meus colegas
e os que aprendem. Não é hora para o medo, marquemos cada qual nossa posição”82.
1964, Cony denunciava que o regime preparava outro “ato punitivo dos delitos de
78
CARVALHO, Aloysio Castelo de. Imprensa e Opinião Pública: os Jornais Cariocas da Rede da
Democracia na Queda do Governo Goulart (1961-1964). Relatório de Pós-doutorado, Universidade de
São Paulo, 2010
79
CONY, C. H.“O sangue e a palhaçada”, 7/4/64 IN: O ato e o fato. Op.cit. p. 22
80
CONY, C.H. “O Medo e a reponsabilidade”, 9/4/64 IN: Op.cit. p.23
81
CZAJKA, R. “Redesenhando ideologias: cultura e política em tempos de golpe”. História. Questões e
Debates, Curitiba, v. 40, p. 37-58, 2004.
82
CONY, C.H. Op.cit. p.25
53
pronunciando-a clara e corajosamente, sem medo, que podemos unir contra todos os
animais que para sobreviverem exalam mau cheiro, mudam de feitio e cor, usam
“Acredito que é chegada a hora dos intelectuais tomarem posição em face do regime
sociedade”, Cony escreveu: “Se diante de crimes contra a pessoa humana e a cultura,
dezembro de 1964, lhe renderam uma posição destacada no espaço público que se
novo regime. Mais do que isso, cristalizaram a imagem que resistir ao regime militar e
individuais de Cony, muito menos suas estratégias como ator social para se afirmar no
campo literário em mutação, abordagens que poderiam até ser instigantes. Mas sim,
de entender suas crônicas, até pelo impacto que tiveram à época, como a
83
Idem,.p.41
84
Idem, p.43
85
CONY, C.H. “A hora dos intelectuais” (23/5/1964)”. IN: CONY, C.H. Op.cit. p.89-90
54
Tanto Alceu Amoroso Lima, com seu liberalismo baseado numa ética de
resistência cultural contra o regime: a) a ditadura era contra a cultura; b) a ditadura era
“terror cultural”, erodia sua base de sustentação na classe média que, grosso modo,
Correio da Manhã, que pode ser visto como uma verdadeira plataforma da oposição
que se rearticulava, tendo como eixo a questão das “liberdades democráticas”88, o que
não deixa de ser supreendente para um dos jornais mais combativos a favor do golpe
86
O apelo aos “intelectuais” e sua defesa como agentes privilegiados da oposição, deve ser objeto de
reflexão historiográfica, pois corre-se o risco de reforçar a idéia de que o “intelectual” (e o artista)
constituía um grupo homogêneo e fundamentalmente opositor. Os dissensos internos dos vários extratos
de trabalhadores intelectuais ainda precisa ser mapeado e analisado com mais profundidade. Ver, por
exemplo, SANFELICE, José Luis. “O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais”. Caderno CEDES,
Campinas, 28/76, p.357-378. Set/dez/ 2008
87
Sobre a relação dos intelectuais com o Estado ver PECAUT, Daniel. Op.cit.; MOTA, Carlos Guilherme.
Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo, Ática, 1990.
88
“Manifesto nacional pela democracia e o desenvolvimento” (Manifesto à nação defende a liberdade)
Correio da Manhã, 14/3/1965
55
diversas correntes ideológicas, reunindo liberais como Carlos H.Cony Alceu A.Lima,
Barbosa Lima Sobrinho, Otto Maria Carpeaux, Hermano Alves; trotskistas como Paulo
comunistas como Dias Gomes, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos
disseminação ampla e ecumênica, foi dado pelo próprio Marechal Castelo Branco. Ao
saber da prisão de Enio Silveira, editor da Revista de Civilização Brasileira, para uma
nos primeiros tempos do regime foi o artigo de Márcio Moreira Alves, que logo depois
seria eleito deputado federal e ficaria notabilizado em 1968 como pivô da crise política
que culminaria no AI-5. O artigo era intitulado “Delito de opinião” e foi publicado no
Golbery do Couto e Silva, ideólogo do regime militar, que afirmara “a revolução não
89
Correio da Manhã, 24/10/64, p.14 apud CZAJKA, R. Praticando delitos..... p. 222
90
apud GASPARI, Elio. Ditadura envergonhada. São Paulo, Cia das Letras, 2002, p.231
56
terror ideológico em todas as universidades do país (...) ninguém sofre de bom grado a
prepotência policialesca. Enquanto houver penas para delito de opinião, os que tem
outros grupos ideológicos, sobretudo pelos comunistas, em sua busca da “unidade das
oposições democráticas”. A cultura parecia o terreno menos perigoso para afirmar tal
estratégia de unidade.
assinado por 1500 intelectuais e artistas. O manifesto sintetizava a defesa pela cultura
e pela liberdade de expressão tout court, sem referendar esta ou aquela ideologia: “Os
editor Ênio Silveira, prêso por delito de opinião. Não entramos no mérito das opiniões
direito garantido pela artigo n. 141, parágrafo oitavo da Constituição do País: “por
de seus direitos”.
57
listando as violências contra a cultura, desde o golpe militar. Não por acaso, o artigo
como eixo da resistência, fazendo convergir liberais e comunistas. Neste texto, Sodré
como uma defesa dos princípios gerais da liberdade de pensamento que ia além de
privilegiado de ação poderia ser a trilha para a unidade das oposições e para a
reconquista dos liberais desgarrados da via democrática, uma vez que foram
1964.
Sodré inicia o texto com rigor digno de historiador positivista: “não vamos aqui,
apresentar impressões pessoais, nem alinhar nossas idéias, mas descrever fatos,
posições defendidas por liberais, como Lima e Cony, ao redimensionar o papel dos
acabar com a agitação, a solução parecia clara: amordaçar os agitadores. Essa foi a
cultura em nosso País, desde os idos de abril de 1964. Como a agitação continuou,
muitos dos simplistas a esta altura, terão verificado que a agitação não deriva de atos
91
SODRE, Nelson W. “O terrorismo cultural”. Revista Civilização Brasileira, 1, maio 1965, 239-297
92
A Revista Civilização Brasileira foi o principal periódico de debates intelectuais entre 1965 e 1968,
sendo uma das expressões mais vigorosas da esfera pública que se formara após o golpe. Sobre a
revista ver CZAJKA, R. Páginas de resistência: Intelectuais e cultura na Revista Civilização Brasileira
(1965-1968). Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 2005 e NEVES, Ozias Paes. "Revista
Civilização Brasileira": uma cultura de esquerda (1965-1968). Dissertação de Mestrado em História,
Universidade Federal do Paraná, 2006
93
SODRE, N.W. Op.cit., p. 239
58
refletem”94.
populares, não só simbólica, mas física, Sodré procura manter as portas abertas aos
arrependidos que apoiaram a queda de Jango: “De nossa parte, o diálogo fica aberto,
sem nenhum preconceito, desde que racional, sem restrições, sem sectarismos, sem
A expressão “de nossa parte” não deve ser vista apenas como uma posição
individual de Sodré, que parece falar em nome do Partido. Com efeito, só depois de 15
era lesiva à “burguesia nacional”. Portanto, na verdade, o PCB reiterava sua política
econômico do país”96.
papel da imprensa liberal, a começar pelo Correio da Manhã, o mesmo que pedira a
jornal “ainda sob a noite de terror desvairado (...)abriu uma clareira nas trevas
para Cony e Alceu Amoroso Lima, demarcando um lugar privilegiado na memória (de
verdade, felizmente, é que os intelectuais portaram-se muito bem: os que tinham uma
coluna, tomaram posição contra os atentados à cultura; a maioria, porém, não tinha
das “respostas culturais” ao golpe militar, como Opinião e Zumbi (espetáculos que
protesto ocorridos entre 1965 e 1968 davam visibilidade aos intelectuais em uma
97
“Resolução política do Comitê Central do PCB (maio de 1965) IN: CARONE, E. Op.cit, p.16
98
SODRÉ, Nelson W. Op.cit., p. 247
60
esfera pública que ainda resistia à marcha repressiva e autoritária. Por meio dessas
1965 e 1967, essa resistência se fez em nome do frentismo cultural, sob o qual as
artísticas.
ativismo intelectual, dando voz tanto aos manifestos, quanto ao debate cultural que
envolvia o meio99. Neste sentido, delimiitando o espaço público, ao lado das revistas
regime são vários e foram crescendo para além dos intelectuais militantes da
declarado101.
temem pelo destino da arte e da cultura em nossa pátria, neste instante ameaçada no
99
Dois artigos de época são sintomáticos deste debate, reveladores das tensões do meio intelectual de
oposição: ALVES, M. “A esquerda festiva”. Correio da Manhã, 1/7/1965; FRANCIS, Paulo. “A crise das
esquerdas”. Reunião, 20/10/1965.
100
Exemplar desta perspectiva heróica é o livro: ANDRADE, Jefferson. Um jornal assassinado: a última
batalha do Correio da Manhã. José Olimpio, 1991. Ver também DINES, Alberto et alli. Os idos de março
e a queda em abril (Rio de Janeiro, J.Alvaro, 1964). Nesta precoce crônica do golpe militar, já se aponta
para um revisionismo da atuação golpista da imprensa, mudando o foco para a crítica ao arbítrio do
regime. Ao que parece, os jornais liberais e os jornalistas mais identificados com esta variável,
esperavam, sinceramente, uma “intervenção rápida e saneadora” contra o Governo Jango. Quando os
militares no poder deixaram claro a que vieram, os liberais iniciaram seu afastamento crítico, ainda que
sempre moderado, aproximando-se em muitos momentos da crítica da esquerda derrotada.
101
CZAJKA, R. Praticando delitos: formando opinião.
61
que tem de fundamental: a liberdade. Estamos conscientes do papel que nos cabe na
sentimentos mais autênticos do nosso povo. Como desempenhar este papel e exercer
artífice da nação, mesmo que as condições políticas fossem diferentes após 1964.
principal. A Comissão reunia alguns liberais (Alceu Amoroso Lima), muitos comunistas
(Oscar Niemeyer, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Alex Viany) e outras correntes
Estados Americanos sediada naquele hotel, vista como braço de intervenção dos
presidente reformista Juan Bosch eleito em 1963, e derrubado no mesmo ano por um
golpe militar. A intervençã composta por 1.100 militares brasileiros (ao lado dos 21 mil
102
Ver o depoimento de Antonio Callado sobre o episódio em RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo
brasileiro. p. 123-124.
62
oito intelectuais por uma semana, que ficaram conhecidos como “Os oito do Glória”,
intelectual da época, foram todos presos, após certa perplexidade das autoridades que
não sabiam muito como agir contra aquele estranho grupo de senhores engravatados.
Eram eles: Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro (fotógrafo
suas simpatias a Cuba), o diretor teatral Flavio Rangel e os jornalistas Antônio Callado
estava pensando que fosse aparecer pelos menos uns cem [intelectuais e artistas].
Apareceram oito. Tinha um pouco mais, que desapareceram antes da gente ser
preso”103. De toda forma, o que tinha tudo para ser um ato brancaleônico de protesto,
mais duros do regime queriam aplicar aos presos. Em certo sentido, ficava provada a
público, neste caso materializado pela ocupação da rua, ainda que por um pequeno
A área teatral foi uma das mais aguerridas na fase da primeira resistência
103
Apud RIDENTI, M. Em busca do povo....Op.cit., p.122
104
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam. Op.cit.
63
considerar no impacto das lutas nessa área era a importância que o teatro tinha nos
anos 1960 como aglutinador da opinião pública, ainda que seu público fosse
relativamente reduzido. Aliás, talvez esta fosse a razão do seu pathos mobilizante.
As lutas na área teatral podem ser acompanhadas por meio de diversas ações
cronologia regular entre 1965 e 1968, e tiveram grande impacto na área artística e
Em junho de 1965, no Teatro Santa Rosa (Rio de Janeiro), foi organizada uma
Teatro Ruth Escobar, no dia 9 de julho organizou-se outra assembléia para construir
estréia, também foi um evento que mobilizou ainda mais a categoria na luta contra a
censura108. A atividade censória provocou nova onde de protestos entre 1965 e 1966109
105
Para uma descrição detalhada destes eventos ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam.
p.145-178
106
“Teatro reage à censura”. Jornal do Brasil, 20/6/65
107
Atenção, assembléia amanhã. Ultima Hora, São Paulo, 8/7/1965
108
Sobre este episódio ver GOMES, Dias. “Intelectuais não abdicam da liberdade” (Folha da Semana,
apud GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro. Ed. Bertrand Brasil, 1998, p.220)
109
Ato na sede da ABI, com leitura de manifesto por Paulo Autran. Ver “Teatro grita pela cultura”. Ultima
Hora, RJ, 26/10/65; Correio da Manhã, 24/6/1966 (ato contra “terrorismo cultural”). Panorama do Teatro.
JB, 27/12/67
64
proferidas por militares responsáveis pela censura, logo voltaram a mobilizar a área110.
crítico com o governo, até para ganhar mais visibilidade e legitimidade nas suas
ações. Nessa linha, foi montada uma “comissão de contato” com o governo, em
O ponto máximo da mobilização foi a greve nos teatros em Rio e SP, com ato
vigília durante três dias (11 a 13 de fevereiro de 1968) na escadaria dos Teatros
censura pela cultura”. O protesto resultou em uma audiência com o Ministro da Justiça
reivindicações114:
110
“Ofensas do General Juvenal Façanha une os artistas contra a censura”. Correio da Manhã, 25/1/68
111
Panorama do Teatro. JB, 27/12/67
112
Protesto e manifesto (lido por Paulo Autran) contra a censura na sede da ABI. (“Protesto contra a
censura reúne 300 a lotar o auditório da ABI”. JB, RJ, 9/1/68)
113
Ver os nomes dos participantes GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam.... p. 162. Via de
regra, reuniam a nata da classe teatral brasileira, como Tonia Carrero e Paulo Autran, entre outros.
114
Idem, p.163
65
divergências, opondo a atriz Nidia Licia, mais moderada, e Maria Della Costa, mais
Oliveira, Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri que deram o tom das reivindicações:
redigir um manifesto para ser lido nos teatros; convidar o ministro Gama e Silva a vir
(20/2/68), na qual se elegeu uma nova comissão contra a censura, com o envio
artística”116.
dividiam o meio, as lutas contra a censura na área teatral começaram a ser marcadas
de 1968, Renato Borghi, ator do Teatro Oficina, leu um manifesto que chamava o
categoria se uniu no ato contra a censura à peça Rei da Vela , realizada na sede da
115
Idem, p. 165
116
Idem, p. 172-174 (apud “Artistas voltam às ruas em movimento contra a censura”. Jornal do Brasil,
19/3/68). Naquele contexto, Augusto Boal tentou elaborar uma proposta para “qualificar” a censura,
transformando-a em “classificatória” e indicativa, com representantes do meio artístico-teatral. O impasse
nos debates o levou a um ato de “desobediência civil”, encenando a proibida “Feira Paulista de Opinião”
em junho de 1968, ato que terminou com violenta intervenção policial. Ver Correio da Manhã, 15/6/1968
66
com o apoio de estudantes. Desta vez, a polícia reprimiu com violência, dispersando
os manifestantes. Era a primeira vez que isto ocorria em atos da “classe teatral”,
sendo um prenúncio da violência policial direta que se abateria sobre as artes nos
protesto mais radical do meio teatral, realizado em 24/9/68, que além da censura,
imperialismo norte-americano aos povos oprimidos da América Latina para evitar suas
lutas de libertação”119
área teatral, para além das diferenças estéticas que já se anunciavam entre a
117
Idem, p. 178
118
Ver o depoimento do líder da ação da direita sobre os detalhes da “operação”, em entrevista a Luiz
Antonio Giron, em http://www.chicobuarque.com.br/critica/rep_fsp_170793.htm (acessado em 24/8/2010)
119
apud GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam. p. 177
67
setores mais comprometidos com o mercado para uma negociação crítica com o
o setor teatral foi um dos primeiros que conheceu o impasse entre radicalizar a luta ou
atuar como resistência negociada e moderada, prenúncio das grandes lutas culturais
que dividiram a área nos anos 1970. Seus diversos grupos, companhias, profissionais
e artistas foram perpassados por estes dilemas. A luta armada, lançada em 1968,
aderiram ao chamado da luta armada, com ou sem sabedoria literária, como queria o
famoso texto de Roberto Schwarz121. Até porque, muitos deles afinados com o PCB,
120
Lembremos que uma parte da classe teatral, sobretudo o “teatro universitário”, estava cada vez mais
radicalizada na direção da “revolução”. Ver, por exemplo, os dois números da Revista Aparte de 1968,
publicada pelo Teatro da USP (TUSP). No campo intelectual como um todo, as revistas Teoria e Prática e
Aparte abrigaram os debates intelectuais pró-luta armada. Ambas tiveram vida editorial efêmera. Ver
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro, p. 133.
121
Segundo Marcelo Ridenti, trabalhando com dados do projeto “Basil Nunca Mais”, entre os 3.698
denunciados como “subversivos” existiam 24 artistas (profissão declarada), perfazendo menos de 1% do
total, quase todos envolvidos com a ALN e a VAR-Palmares. No geral, as organizações de esquerda dos
anos 1970 tinham cerca de 24% de estudantes entre os seus quados, e 10% de professores. As
organizações que não aderiram à luta armada, como a POLOP e a AP, tinham, respectivamente, 26% e
30% de estudantes. Já a média percentual da esquerda armada era maior: MR-8 (49%), POC (40%) e
PCBR (40%). A esquerda armada nacionalista, como o Movimento Nacional Revolucionário (MNR), quase
não tinha estudantes. Estes dados são sugestivos do envolvimento das “classes médias intelectualizadas”
na luta armada e explicam, em parte, porque o regime militar cerceou a arte de esquerda direcionada
para estes grupos, no mesmo momento em que a luta armada se acirrava. Ver RIDENTI, M. “A canção do
homem enquanto seu lobo não vem” IN: O Fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo, Editora Unesp,
2010(2ªed.), p. 71-161.
68
indiretas, dos grupos da esquerda armada. Neste sentido, explica-se o tom geral de
exortativas à ação direta contra o regime. Este tom, vale destacar, também era
estranha à arte engajada, mesmo antes de 1964. Por outro lado, até 1967, a ideia que
o artista engajado possuía do mercado era bem diferente da que aflorou a partir
daquela data. Em linhas gerais, podemos dizer que, naquele primeiro momento do
regime, o artista engajado se pautava por uma visão mais instrumental e neutra do
mercado, como canal de distribuição das suas ideias colocadas na forma de bens
primeiros anos após o golpe, a “ida ao mercado” (como se dizia na época) não era
122
A definição adorniana de indústria cultural, como sistema integrado, dotado de razão técnica
desenvolvida para subordinar à sua lógica todas as fases de realização do produto, não podia ser
aplicada para o caso em questão (ADORNO, T. & HORKEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2006). Aliás, na segunda metade dos anos 1960, o Brasil assistiu ao
aprofundamento da capitalização e da racionalização do mercado dos bens culturais e artísticos. Na
música, os festivais da canção foram o grande laboratório comercial, onde não só surgiram novas
canções de sucesso, mas novas estratégias de promoção e distribuição desses produtos, como veremos
a seguir.
69
Mas a postura do historiador não pode ser a do analista que julga os fatos a posteriori
operavam com um número limitado de opções. Entre elas, o mercado se abria para a
arte nacionalista e engajada num momento em que outros espaços se fechavam, por
questões para a canção engajada: O que cantar? Onde cantar? Para quem cantar?
debate foi acompanhado pela reestruturação da indústria cultural brasileira. Sutil até
mercado por onde circulavam os bens culturais (sobretudo as canções), foram cruciais
não surgiu como mera reação ao novo contexto autoritário e capitalista, criado no pós-
64, embora tenha sido potencializado e redimensionado por ele124. O debate em torno
123
NAPOLITANO Marcos. Seguindo a canção..
124
Oduvaldo Vianna Filho, já no começo da década de 1960, apontava para a necessidade de
profissionalizar a atividade teatral “engajada”. Este era um dos debates internos do CPC, conforme
depoimento de Carlos Estevam Martins (Arte em Revista, 6, out/1981). Ver PATRIOTA. Rosangela.
Vianinha-um dramaturgo lançado no coração de seu tempo. São Paulo, Hucitec, 1999
70
Ainda em 1964, quando a Bossa Nova perdia espaço no Rio de Janeiro para os
pode ser considerada o “elo perdido” entre o círculo restrito da primeira Bossa Nova e
do público. Músicos e platéia faziam parte do mesmo show: palmas, gritos, vaias,
125
O Teatro Paramount, situado na Av. Brigadeiro Luis Antonio, perto do Centro da cidade, em 1967 se
transformou no Teatro Record-Centro, abrigando os Festivais de MPB. Recentemente, foi rebatizado
como “Teatro Abril” e abriga os musicais à Broadway em São Paulo.
126
Walter Silva era um disc-jockey da Rádio Bandeirantes e através do seu programa “O Pick-Up do
Picapau” foi o primeiro a tocar o disco Chega de Saudade de João Gilberto, em fevereiro de 1959,
tornando-se um dos principais divulgadores da Bossa Nova. (Conforme depoimento concedido ao autor
em 14/05/1996).
127
CONTIER, Arnaldo. “Edu Lobo e Carlos Lyra: o Nacional e o Popular na canção de protesto”. Revista
Brasileira de História, 35, 1998,,p.45
71
Audição, realizado no Colégio Rio Branco, foi o piloto da fórmula televisiva que
produzido por Horácio Berlinck e Walter Silva. O sucesso deste show junto ao público
estudantil, logo percebido como uma afirmação da cultura nacional frente à “ditadura
consumo musical para São Paulo. Esse circuito aprofundou a busca da síntese entre a
grande público nomes como Elis Regina, Chico Buarque, Toquinho, Rosinha de
Valença, Paulinho Nogueira, Zimbo Trio, Gilberto Gil entre outros. Por outro lado,
figuras já conhecidas no Rio de Janeiro, como Nara Leão, Tom Jobim, Oscar Castro
artistas a uma performance que rompia os pequenos públicos das casas noturnas e
espetáculo (cinema, teatro, música) esboçava aquilo que a televisão, pouco mais
oriunda de espaços culturais pouco impactados pela Bossa Nova, pelo teatro engajado
buscando a ampliação do público para além das boates e dos circuitos estudantis mais
carga política que o termo possuía. Entre estas peças, “Opinião” e “Arena conta
grande sucesso popular de Eles não usam Black-Tie, em 1959, cristalizava a marca
cujo eixo dramático girava em torno dos conflitos oriundos de uma greve operária, o
político. O Grupo Opinião, fundado sobre as cinzas do CPC (extinto junto com a UNE
em abril de 1964) foi pioneiro na resistência cultural. Fundado por Oduvaldo Vianna
Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar, entre outros, a proposta do
recorrência à música popular, portanto, era mais do que tática, na medida em que era
uma arte de público massivo por excelência. Seu manifesto, assinado por Paulo
Pontes, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, foi traduzido em forma de programa
tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na
pode ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte e razão de
música”.
mercantilizado, como se vê, traduzem as táticas que, em linhas gerais, serão mantidas
128
GARCIA, Miliandre. Do Teatro militante à música engajada. A experiência do CPC da UNE. Editora
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2007
129
As intenções do Opinião (dezembro de 1964) IN: Arte em Revista, 1, jan-mar 1979, p.58
74
pelos comunistas e simpatizantes, até o ocaso da arte engajada, já nos anos 1980.
ensejo de massificação das artes de conteúdo político (no sentido de ampliar a sua
voga dos espetáculos musicais de protesto em que vão se inserir, de certa forma
do qual a música popular brasileira deveria ser revestida. Da Bossa Nova este
performances de Nara Leão. Por outro lado, o público estudantil e jovem, formado a
partir da Bossa Nova nacionalista também estava lá. Opinião incorporou a forma do
130
E. MOSTAÇO, E. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo, Proposta, 1982, p. 77
131
A direção musical do show foi de Dorival Caymmi Filho, sucedido por Geni Marcondes. A estrela Nara
Leão, foi substituída por Maria Bethania (após breve período protagonizado por Suzana Moraes).
132
CAMPOS, Claudia. , Zumbi, Tiradentes. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1988, p. 8
75
político. Boa parte do material poético e musical apresentado foi resultado do método
“folclórico”, como o próprio programa faz questão de frisar. Heitor dos Prazeres e
americano, criador do protest song) e José Marti (poeta cubano) são citados, dando
bossanovista, como Sergio Ricardo e Carlos Lyra (“Esse Mundo é meu” e “Marcha de
Caymmi Filho), Flauta (Alberto Hackel Tavares e Carlos Guimarães), bateria (João
indicadora de certa influência jazzística, embora restrita a algumas peças. Luis Giani
entre artistas de elite e das classes populares, ao lado de Telecotecto Opus nº1
133
Para um maior detalhamento da estrutura e do enredo destas peças ver GIANI, Luis A. A música de
protesto: d’O subdesenvolvido à canção do bicho e proezas de santanás (1962-1966). Dissertação de
Mestrado, USP, São Paulo, p.237-309
76
elite”, de acordo com os termos da época. Também é preciso destacar que o CPC foi
frentismo classista após o golpe militar fazia com que a esquerda, derrotada em 1964,
triunfasse “sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito” 136.
perspectiva mais “popular” que “nacional”, e esse talvez seja o seu sentido histórico
o papel simbólico dos grupos sociais específicos que a formavam, dando mais ênfase
134
GARCIA, Miliandre. Do Teatro militante à canção engajada. Op.cit. Ver particularmente os capítulos 1
e 2, p. 13-56, nos quais a autora mapeia detalhadamente os debates internos e os grupos formativos do
CPC da UNE.
135
Edelcio Mostaço, em seu trabalho sobre o teatro de esquerda, reforça esta idéia. Seu substrato reside
numa tese de fundo para pensar a cultura engajada entre 1964-1968, a do “circuito fechado” intelectual-
intelectual na circulação de mensagens simbólicas, complementada por outra tese de fundo, a da
“cooptação” desta cultura de esquerda pela indústria cultural capitalista, consagrando sua esterilidade
política junto às massas. O texto de Schwarz tem um papel seminal em ambas. MOSTAÇO, E.Op.cit.
136
SCHWARZ, R. Op.cit., p.41
77
Liberdade (escrito por Millor Fernandes e dirigido por Flávio Rangel). O espetáculo
Autran, Tereza Rachel, Vianinha e Nara Leão. Textos de diversas autorias e origens
como Jesus Cristo, Abraham Lincoln, Castro Alves, Shakespeare, Cecília Meirelles,
crítica do contexto político brasileiro pós-Golpe. Tal estratégia permitia uma leitura
críticas das autoridades e ataques da direita, a peça excursionou por várias cidades
circunstancial. O ato cultural muito submetido ao ato político. Para nós, essa é a sua
principal qualidade”.
outro espetáculo marcante da época: Arena conta Zumbi. A peça estreou em São
até 1967. Teve alguns problemas com a censura, mas este fato acabou se revertendo
137
Apud PINHEIRO, Gabriela Maria L. “Liberdade, Liberdade e o moderno teatro brasileiro”. Paper
apresentado no VI Congresso de pesquisa e pós-graduação em artes cênicas. São Paulo, novembro de
2010, p.3 (disponível em www.portalabrace.org/vicongresso/teatrobrasileiro, acessado em 31/1/2011).
78
nome importante no panorama musical dos anos 1960, cujo trabalho se direcionava a
“A música de Edu Lobo tem quase a mesma importância do texto, sendo na verdade o
basicamente, por hinos patrióticos e pelo Iêiêiê ( a versão nacional do Rock dançante).
podem ser incluídas as faixas: Fuga dos Escravos, Samba dos Negros e das Negras,
A mão livre do negro, Venha ser feliz, Upa Neguinho, e Tempo de Guerra. Podemos
qualificar como batuque: Zambi no açoite, Zambi no Navio Negreiro, o Açoite Bateu e
nos leva a uma conclusão curiosa: o batuque é utilizado para mostrar a condição do
negro como cativo. A partir da fuga e durante toda a “utopia” em torno de Palmares, o
gênero preferido é o Samba. Essa sutil separação, reforça o paralelo entre a “utopia”
A tese de fundo, e neste sentido Zumbi procura ser mais crítico que Opinião,
era que os negros revoltosos foram derrotados pela repressão porque acreditaram em
uma possível aliança com os brancos pobres, com os quais comercializavam seus
“frente única” que garantiria as Reformas de Base. Neste sentido, Arena... também
1964, e seu amplo leque de alianças. Conforme a idéia central da peça, o “povo”,
138
CAMPOS, C.Op.cit. p. 72
79
perspectiva mais “popular” e menos “nacionalista”, mais radical que Opinião, para
revelavam à distância: é ele, não sou eu. Opinião era show-verdade. Não poderíamos
tinham que ser separados dos atores. Para isso servia a interpretação coletiva, o
rodízio.
Zumbi era a declaração voluntarista do “tempo de guerra”, palavra de ordem que abre
139
Guardadas as devidas diferenças históricas, reedita-se no Brasil a diferença entre as táticas da “frente
única operária” e da “frente popular”, que dividiu a esquerda nos anos 1930. A primeira seria formada por
operários e por partidos de esquerda, uma frente classista de autodefesa e conquista de poder, enquanto
a segunda tendia a ser “policlassista”, mais voltada para a luta eleitoral, ainda que ancorada em
mobilizações de massa. No Brasil, desde 1958, o segundo conceito de “frente” foi o que predominou,
chancelado pelo PCB. O tema da “frente única classista” foi reeditado em 1979, sob a égide do PT, mas
nunca se afirmou como opção política efetiva. Entretanto, as oscilações entre os pólos “popular” e
“nacional” no imediato pós-golpe recolocam este debate histórico da esquerda.
140
BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro, Record, 2000,p.231
141
O “Dia que virá” como figura poética da MPB. Ver GALVÃO, W. Op.cit.
142
CAMPOS, C. Op.cit, p.91. Aliás, este aspecto identitário parece estar presente na música e nos
espetáculos engajados de outros países, como os EUA, onde a música folk, sobretudo, teve um papel
importante na configuração de uma identidade política nos grupos que lutavam pelos direitos civis no
começo dos anos 60. Ver também: EYERMAN, R et alli. “Social Movements and cultural transformation:
popular music in the 60’s”. Media, Culture and Society, vol.17/3, p.449-498
80
absoluta e declarar o “tempo de guerra”, anúncio da luta armada que viria e que
de que este processo não deve ser visto como uma simples cooptação ideológica,
musicais como mero exercício de catarse escapista, praticada por uma juventude
da cultura deve ser entendida mais em seu contexto de formulação, por ocasião do
volta de 1964144.
143
BOAL, A. Op.cit, p.270
144
Lembramos que o texto, já citado, de Roberto Schwarz, que lançou esta tese seminal, foi escrito em
1969 e pode ser visto como um artigo escrito “no calor da hora”, que reflete sobre as causas profundas da
“dupla” derrota da esquerda nacionalista (1964 e 1968). Aliás, até 1968, a derrota não era “dupla” e esse
fato nos obriga a tomar cuidado com os termos do julgamento político e ideológico dos protagonistas.
81
procuravam equacionar uma nova perspectiva popular para os dilemas nacionais. Seja
nacional”. Nos quatro primeiros anos da ditadura, a tensão entre duas categorias
derrotados. Também não era mais visto como cimento para a estratégia reformista dos
tempos de Goulart, e sim como núcleo ético e político para a construção de uma
pré-golpe era caracterizada por uma tentativa de adequação entre sofisticação estética
intelectual nacionalista. Essa postura, por mais que se tentasse, não conseguia
resolver o velho dilema da aliança entre intelectuais e povo: o primeiro ao falar pelo
que tendia a desconsiderar as contradições do povo “real”. Não quero afirmar que
a forma assumida pela arte engajada para resolver o impasse entre ser popular e
145
KEDWARD, Roderick. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”.IN :
Op.cit.
82
impunha cada vez mais a mídia e a indústria fonográfica, processo que ganharia
densidade maior na década de 1970, e que estaria na base da crise da própria arte
classe média, passava longe das preocupações do regime militar, mais preocupado
da cidade. Se esta afirmação pode ser válida para os três anos iniciais do regime, a
aproximação da luta armada, que tinha como base social a juventude de classe média
esquerda. Portanto, este campo artístico não era uma “floração tardia” de valores
dialogava com uma consciência em formação. Ainda que restrita a setores médios da
Este aspecto não passou despercebido para os militares. Numa clara sugestão
para apertar o cerco aos intelectuais, percebendo que o espaço da cultura e das artes
se articulava contra o regime, o texto do IPM 709, conhecido como “IPM do PCB”,
seus agentes e suas formas. Existe um certo número de elementos que pertencem
lhes atuar em várias frentes, legais e semilegais sem se exporem às sanções judiciais,
83
mesmo havia começado. Mas que ninguém duvidasse: a “hora dos intelectuais” (e
146
Exército Brasileiro. IPM 709. Biblioteca do Exército, 1967, p. 233
84
CAPÍTULO 3
resistência cultural no período, a partir do “baile das cinco artes”: cinema, música
aprofundado não apenas sobre os debates mais gerais, mas também sobre as suas
faturas estéticas.
liberdade relativa para criticar o regime. Ao menos, até que os militares no poder
política de massa e à luta armada, o que ocorreu por volta de 1968. Neste momento,
resistência ao regime, a “voz dos que não tinham voz”. Esse hiperdimensionamento do
intelectual e da ação cultural como locus da resistência, também ganha força com as
simbólicos, confirmado pela explosão da MPB nos festivais da canção. Por outro lado,
tardar. No “baile das cinco artes” que marcou a resistência, começaram a surgir, entre
1967 e 1968, dissensos e rupturas radicais em torno dos temas, formas e circuitos
mais adequados para se combater a ditadura, o que acabava por colocar em xeque a
relação da arte engajada com seus públicos. Em cada área artística específica, este
Artes plásticas
eventos e obras que hoje fazem parte da história “oficial” das artes plásticas no Brasil
No entanto, para Aracy Amaral “o que ocorre nas artes plásticas em todo o
correr da década de 60 não seria senão um pálido reflexo, por parte de uns poucos,
dessas aspirações dos artistas de preocupação social que emergem com força, em
Essa palidez da contribuição dos artistas plásticos é explicável, como sabemos, pelo
auditórios dos teatros e festivais, bem como pelo isolacionismo que caracteriza o
artística em equipe”147
Autores como Paulo Reis ou Artur Freitas destacam que nas artes plásticas a
de 1960148 e culminando com a explosão da arte conceitual que propunha uma nova
147
AMARAL, Aracy. Arte para que?. A preocupação social na arte brasileira. 1930-1970. Itau
Cultural/Studio Nobel. 2003, p..328 (3ª Ed.)
148
REIS, Paulo. Exposições de arte - vanguarda e política entre os anos 1965 e 1970. Tese de Doutorado
em História, UFPR, Curitiba, 2005
87
arte de guerrilha, contra o regime e contra o sistema de artes, em si149. Apesar do seu
iniciados nas questões e debates estéticos, as artes plásticas brasileiras dos anos
1960, ganharam uma dimensão pública notável. A começar pelo sentido político, para
apogeu do impacto político das artes plásticas, na busca de uma poética que
Gullar e Hélio Oiticica pode ser visto como a síntese dos debates e interações entre as
duas tendências. Para Gullar, compagnon de route num primeiro momento e depois
pela figura. Para Gullar, a operação antropofágica do pop brasileiro, incorporando uma
tendência que se queria “universal” pelo viés das tensões políticas e demandas
figuração deveria ser substituída por uma operação mais radical, mergulhando na
era a base para uma vanguarda brasileira, permitindo, ao mesmo tempo um outro
149
FREITAS, Artur. Contraarte: vanguarda, conceitualismo e arte de guerrilha - 1969/1973. Tese de
Doutorado em História, UFPR, Curitiba, 2007.
150
REIS, Paulo. A arte de Vanguarda no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008, p. 15
151
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1968
88
criativos do próprio campo artístico. Esta posição era validada por importantes críticos,
várias tradições do modernismo entre os anos 1920 e 1950, foi gestada neste ciclo. Se
final da década de 1960 e até o início da década de 1970, a arte conceitual buscou
conceito de artista – impondo-se como uma guerrilha não apenas em termos políticos,
65, Propostas 65, Nova Objetividade Brasileira e ‘Do Corpo à Terra’ formalizaram a
como estratégias para efetivar o compromisso social da arte, deram o tom das duas
coletiva155, foi o manifesto estético e político desta corrente. Ele apontava para a
152
REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil, Op.cit. Sobre as posições divergentes de Gullar e Oiticica,
ver também ZILIO,Carlos. “Da antropofagia à tropicália” IN: Artes Plásticas e Literatura. O nacional e
popular na cultura brasileira. São Paulo, Ed. Brasiliense1982, p. 11-56
153
BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Porto, Vega, 1990
154
REIS, P. Op. Cit. p; 29
155
Idem, p. 27
89
pode ser tomada como a sua síntese. Tropicália trabalhava com materiais e objetos
televisão ligada em estática, como objeto de culto no meio de uma sala de estar.
modernos”, dava o tom à sua obra. O estandarte “Seja marginal, seja herói”, diatribe
morte, poderia ser pensado como um diálogo com as fotos de outro morto célebre dos
anos 1960, Che Guevara. Obviamente, um diálogo estritamente estético, mas que
inusitada.
culminando num rito estético que testava os limites entre vida e arte. Por gesto
verdade, este tipo de guerrilha cultural será analisado mais adiante, mas desde já fica
90
resistência cultural no campo específico das artes plásticas. Eventos como Opinião 65
(MAM, Rio de Janeiro 1965), Propostas 65 (FAAP, São Paulo, 1965), Bienal de São
Paulo de 1967, Nova Objetividade Brasileira (MAM, Rio de Janeiro, 1967) e, sobretudo
Do Corpo à Terra (Belo Horizonte, 1970), podem ser vistos como expressões de um
função pública e política da arte brasileira156. Nas primeiras duas exposições – Opinião
pesquisa formal e crítica política ao regime militar, ainda que os caminhos do primeiro
termo fossem diversos. Até a Bienal de 1967, os debates propostos pela vanguarda
Opinião 65, a performance de Hélio Oiticica com seus parangolés vestidos pelos
vigentes, cujos melhores exemplos foram as imolações de galinhas vivas por Cildo
156
REIS, Paulo. Op.cit.
157
Voltarei a estes eventos no capítulo 4, quando serão analisados de forma mais detalhada pela chave
da “guerrilha cultural”.
91
brasileiras durante o regime militar e que, ao mesmo tempo, exigem uma reflexão
Literatura
matéria ficcional o exercício de liberdade crítica das crônicas, temperado pelo clima de
inicialmente crítico da luta armada, acaba por se engajar na guerrilha como um ato de
falar na sua coragem diante do perigo, o intelectual se mantém íntegro, realizando sua
‘herói’ se contempla e vê o próximo com precisão e lucidez, mas não passa disto
158
Antes mesmo das dissidências do Partido Comunista Brasileiro irem às armas, os ex-militares
nacionalistas inspirados pelo trabalhismo brizolista, lançaram a chamada à luta armada, em 1965/66. A
guerrilha do Caparaó foi seu “balão de ensaio”, estourado pela repressão antes de alçar qualquer vôo.
159
FRANCIS, Paulo. “A travessia de Cony”. Revista Civilização Brasileira., 13, 1967. p.179-183
92
(...)Diante da solução revolucionária que lhe é proposta por dois tipos a quem
Lascada, eles são muitas vezes forçados a deixar seus gabinetes e agir como
pensamento especulativo para aderir à luta armada, guiado pelo herói camponês.
Mesmo Ferreira Gullar, ligado ao PCB e, portanto, pouco simpático a esta opção
política, reconhece que a dimensão política do livro vai além da questão estrita da luta
lutar contra a opressão é essa a qual ele adere. Mas este é o aspecto episódico da
deságua no coletivo. Não se trata de apagar-se na massa, mas entender que o seu
160
Idem, p. 183
161
GULLAR, Ferreira. “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”. Revista de
Civilização Brasileira, 15, 1967, p.251-258
93
Quarup162.
mesmo, reiterando sua luta como opção individual, o personagem central de Callado
individualidade na terra e no povo pelo qual lutaria, menos como opção, e mais como
“torre de marfim”, eqüidistante das lutas políticas terrenas. A própria sobrevivência das
atividades de espírito impunha a resistência, que mais do que política, era vivida como
uma afirmação ética. Entretanto, como apontam as resenhas, as duas saídas para a
dissensos e dilemas internos a este grupo social, como apontam as duas resenhas
escrita por Francis e Gullar. O então trotskista Francis e o comunista Gullar não
empenho como imperativo ético e existencial do intelectual que queira fazer jus ao
162
Pessach – A travessia, desde sua primeira edição em 1967, esteve no centro de uma polêmica
envolvendo Cony e alguns intelectuais que formavam o “Comitê Cultural” do Partido Comunista Brasileiro
no Rio de Janeiro, como Ferreira Gullar e Leandro Konder (autor da orelha da primeira edição). Cony
acusou os membros do Comitê de terem tentado boicotar o livro e o autor, tendo em vista que ambos não
seguiam a cartilha do PCB. Konder negou tal “censura”, dizendo apenas que Cony digerira mal as críticas
e polêmicas em torno de suas posições políticas e literárias. Cony reiterou sua crítica aos comunistas
anos depois no jornal O Globo (27/3/1997), por ocasião da 3ªedição de Pessach. Para maiores detalhes
sobre este episódio ver KUSHNIR, Beatriz. “Depor as armas – a travessia de Cony e a censura no
Partidão” IN: REIS Filho, Daniel A. (org.). Intelectuais, história e política. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000, p.
219-246
94
moral da nação será duramente questionada pela própria literatura ao longo dos anos
tiveram um efeito particularmente intenso na literatura, uma arte que sempre foi vista
Callado dos anos 1970 – Bar Don Juan (1971) e Reflexos do Baile (1976), ou na
Loyola Brandão (lançado em 1974 na Itália, em 1975 no Brasil, mas proibido no ano
seguinte até 1979). As grandes respostas literárias dos anos 1970, à ditadura militar,
contundentes foram Em Câmara Lenta (de Renato Tapajós) e A Festa (de Ivan
163
MAUES, Eloisa. Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência histórica da
repressão e narrativa literária. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP, 2008; FRANCO,
Renato. Itinerário político do romance pós-64: a Festa. São Paulo, Editora UNESP, 1998.
95
segunda metade dos anos 1960, desconfiou das experimentações radicais de forma e
campo artístico que mais apostou em uma saída – a ação guerrilheira. No final do seu
aliada natural da revolução, mas esta não será feita para ela e muito menos para os
164
Para um balanço crítico mais amplo do papel da literatura durante o regime militar, ver GINZBURG,
Jaime. “A ditadura militar e a literatura brasileira: tragicidade, sinistro e impasse”. IN: SANTOS, Cecilia
Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaina de Almeida.. (Orgs.). Desarquivando a Ditadura. Memória e
Justiça no Brasil. Sao Paulo: Hucitec, 2009, v. 2, p. 557-568. Para uma análise da expressão literária
crítica ao regime em autores que se afirmaram no final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, ver
GINZBURG, Jaime. “Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo”.
Letterature d'America, v. 113, p. 95-110, 2008.
165
Neste ponto, deixamos de lado o campo da poesia, que parece não se enquadrar neste axioma de
criação. Movimentos como “Poesia Jovem” na primeira metade dos anos 1970, estão mais próximos de
uma poética de vanguarda contracultural, apontando para uma revisão da consciência de mundo pelo
mergulho disruptivo na linguagem como expressão ou representação do real e do sujeito.
166
SCHWARZ, Roberto. Op.cit., p.54/55
96
miséria. Que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que eram muito
reformular suas razões, que entretanto haviam feito deles aliado dela (...) Em Quarup,
cuja luta irá se integrar – com sabedoria literária – num capítulo posterior ao último do
livro”.
integra-se na luta popular, depois de uma longa busca, “com sabedoria literária”, em
literária? A literatura saía de cena, preterida pelo mercado ocupado pelas artes de
espetáculo. Mas também saía de cena, para dar lugar à revolução. Uma aporia que,
mais monumental, orgânica e complexa, cujo último exemplo talvez seja Quarup.
Restava, portanto, recolocar a cultura no seu devido lugar: exercício da busca dos
senso crítico que lhe dava suporte, não era narrar a luta armada e afirmar o intelectual
diluída na luta maior que se travava, para além da obra de arte: a guerrilha.
personagens aderem à luta armada, mas o ex-padre o faz movido pelo imperativo
97
ético e político que não é redutível a uma operação de consciência individual. Quem
dos limites da cultura, para salvar a própria cultura do silêncio imposto pelo
autoritarismo. A travessia não era para fora, mas para dentro do mundo.
ocupação do circuito sócio-cultural das artes bem diferenciadas entre si, apesar das
conexões e influências recíprocas, sobretudo no plano das temáticas. Essas três artes
da esquerda”, entre a segunda metade dos anos 1950 e o final da década de 1960. No
pelo teatro, pela música e pelo cinema, veículos privilegiados nos anos 1960, por outro
"natural", na medida em que a sua linguagem opera com a palavra como material
básico de expressão ao lado do gesto, palavra esta voltada para o drama, para o ato
com a literatura (em seus diversos níveis), fora mais episódica e incomum, e parece
ter sido um dos pontos mais marcantes da renovação dessas duas artes no Brasil dos
anos 1960. Podemos considerar que houve uma mudança estrutural na linguagem,
acabou por constituir uma nova estrutura de recepção – um novo público – “jovem,
ampliado (no caso da música popular), constituiu uma primeira camada na renovação
1950, deve ser pensado sob o viés dessas mudanças estruturais no campo artístico-
cultural como um todo, processo que diluiu a “república das letras” em outras áreas
para o “lazer”. Mesmo reconhecendo que a literatura, como expressão artística strictu
sensu, perdeu espaço entre os artistas engajados para outras formas de expressão,
como o teatro, o cinema e a canção, estes, por sua vez, foram informados por
sobretudo da América Latina) uma releitura, com todos os problemas e virtudes daí
embora os anos 1950 e 1960 fossem pródigos também nesses gêneros, mas as artes
que apelavam aos sentidos corpóreos, através de imagens, sons e ritmos. Até porque,
167
SARTRE, Jean Paul.O que é literatura. São Paulo, Ática, 1993, p.11.
99
canções) atingiam o público mais amplo, em alguns casos via o mercado, essa
homologia passou a ser tensionada por dois fatores: a entrada de novos segmentos
questão que se colocava diante dos artistas de esquerda – uma vez que a
“engajamento”.
movimento para o mercado, que acenava para os artistas com novas e inusitadas
público convergente e coeso para a arte engajada – processo que localizamos entre
específicos. Esta hipótese não implica afirmar que os públicos específicos dessas três
áreas eram estanques e homogêneos, ou que uma mesma pessoa não transitava
entre os vários públicos de cada área de expressão. Em suma, o que enfatizo é que a
168
RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira. p. 86
100
relação estrutural entre artista obra-público passará a ser diferenciada para cada uma
dessas três grandes frentes de expressão da arte engajada no Brasil: cinema, teatro e
música popular.
engajada vão de 1966 a 1968. Nesse triênio, três tendências sobressaíram: no teatro,
público para as artes engajadas do final dos anos 1960, segundo a qual todos que
“Implosão” porque, a partir de 1967, o teatro se fará “contra” o público, tendo como
apenas visava a destruição do público padrão de teatro, constituído a partir dos anos
1950, marcado pela fruição emotiva ou racional das peças, mas também a
constituição, a partir dos seus escombros, de uma nova platéia e de uma nova
1965, se fez um cinema para pequenos círculos, em parte por causa dos problemas
processo da música popular pois, nessa área, também a partir de 1965 (com o
programa O fino da bossa, por exemplo), o público será potencializado pela inserção
possuía, antes mesmo da explosão da bossa nova. Para o teatro, o cinema e a canção
101
engajada, no início dos anos 1960, o problema do público se colocava em dois níveis:
que partilhasse com o artista espaços sociais comuns (movimento estudantil, campi
desafio era ampliar o circuito de público, abrir os novos espaços sociais pelos quais a
arte engajada circulava. Esse era o maior desafio na medida em que, fora dos circuitos
A estrutura do CPC da UNE, extinto em 1964, era bastante eficaz para chegar
aos públicos estudantis, mas impotente para romper os limites deste meio
desafio era construir um circuito de mercado, profissional e massivo, sem cair nas
artista, futura liderança do processo político (grosso modo, o meio estudantil), e o meio
social mais amplo, massivo, alvo da “pedagogia política” que, de forma mais ou menos
público, a arte engajada visava constituir uma vanguarda, uma liderança, um grupo
o espaço da arte engajada e seu impacto na vida pública, entendida como veículo de
média) eram duas faces de uma mesma moeda, pensada sob perspectivas diferentes.
Teatro
O teatro era o lugar por excelência dos artistas mais organicamente vinculados
Por outro lado, o teatro sofria, bem antes do AI-5, os rigores da censura às artes169.
Mesmo possuindo um público restrito, que muitas vezes se confundia com a presença
física da platéia, a repressão sabia que o teatro tinha um grande potencial mobilizador,
não só pelo engajamento direto dos seus profissionais contra a censura e pela
liberdade de expressão, mas pela peculiar vitalidade da relação entre palco e platéia.
Por outra parte, o teatro experimentava um rico debate interno, com posições divididas
o teatro foi o centro propulsor das artes de espetáculo em busca de um público cada
encenação que se fazia contra o público e que o marcou até o início dos anos 1970.
centro do seu debate interno, seja para reafirmar o conceito consagrado pelo PCB
frentista e aliancista, seja para exercitar uma nova mensagem para um novo público,
explosão da vida teatral em São Paulo como também flexibilizava o custo das
169
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam..
103
integrado por Oduvaldo Vianna Filho, G. Guarnieri, Raimundo Duprat, Pedro Paulo
Uzeda Moreira, Henrique Liebermann, Vera Gertel, Diorandy Vianna e Silvio Saraiva,
artística, o TPE foi a chance de conciliar a vida partidária com a atuação teatral. Em
1956, o TPE e o Arena se fundiram. Entre 1956 e 1957, a maioria das peças
uma linguagem cênica despojada, que culminará nas famosas peças dos anos 1960,
uma tese que era a síntese “teórica” dessas preocupações: “O teatro amador em
que a linguagem, a obra ou o ator em si. Ao lado da atuação dos homens de cinema
ligados ao PCB, como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, o TPE fundava as
bases da nova arte engajada de esquerda, sob o lema do nacional-popular. Por outro
lado, cinema e teatro recuperavam a perspectiva colocada pela literatura social dos
anos 30, sobretudo por Jorge Amado e Graciliano Ramos. Apesar da consolidação de
170
MORAES, Denis. Vianinha, cúmplice da paixão. Rio de Janeiro, Editora Nórdica, 1991
171
Publicada, originalmente, na revista Teatro Amador (ano 1, n. 6, jan. 1956).
104
público. O grande sucesso da peça Eles não usam black-tie, que estreou em fevereiro
de 1958, parecia apontar para a solução dos dois problemas. Escrita pelo jovem
Gianfrancesco Guarnieri, autor da “casa” (pois era membro fundador do TPE), a peça
percorreu mais de quarenta cidades e foi encenada 512 vezes172. Tendo como eixo
dramático os dilemas e conflitos de uma família operária durante uma greve, a peça
artigos do TPE173. A linguagem dramática e realista, levada a cabo pelo diretor José
Renato e encenada com muita força pelos atores, além de agradar o público estudantil
mais jovem conseguiu trazer um público mais amplo, como o segmento que até então
encenada mais de cem vezes. Guarnieri e Vianinha iniciavam uma trajetória que
parecia resolver duas questões colocadas pelas discussões que ocupavam o meio
teatral da época: conciliar textos de qualidade dramática e crítica social e política, além
outra, por vários “públicos” (ou platéias), de origem social e formação cultural
diferentes. Dos operários dos subúrbios aos burgueses do TBC, passando pelos
172
MORAES, D. Op.cit., p. 59
173
Essa relação será criticada por Iná Camargo Costa, sendo considerada “mistificadora” da consciência
social proposta. Ver COSTA, Iná C. “A crise do drama em Eles não usam black-tie: uma questão de
classe”, Discurso. São Paulo, Depto. de Filosofia da USP, n. 20, 1993. Ver, da mesma autora A hora do
teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1996
174
Para uma análise mais abrangente do papel aglutinador de Vianinha e do teatro como núcleo de uma
práxis política nos anos 1960 e 1970, ver BETTI, Maria Silvia. Oduvaldo Vianna Filho (série “Artistas
Brasileiros”). São Paulo, Edusp, 1997.
105
classistas e nacionais. Logo depois, por volta de 1961, surgia no Rio de Janeiro o
no surgimento do CPC, até porque o evento que deu início às articulações político-
culturais no meio estudantil para a criação do CPC foi a sua peça A mais valia vai
capitalista, através de uma linguagem leve e bem humorada. Portanto, a estratégia era
trechos mais contundentes, Vianinha diz: “Um movimento de massas só pode ser feito
com eficácia se tem como perspectiva inicial sua massificação, sua industrialização
(...). Nenhum movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator etc. É
Vianinha, que seria sua marca até a morte prematura, em 1974, mas também uma
linha de atuação junto ao público que marcaria uma vertente importante da arte
princípio.
Entre 1962 e 1964, as quatro grandes vertentes do teatro brasileiro eram: (i) o
Arena, renovado, cada vez mais sob influência de Augusto Boal, aderindo às
montagens de autores clássicos; (ii) o Grupo Oficina, surgido em fins dos anos 50, na
sua primeira fase (pré-Rei da Vela), seguindo um caminho mais próximo ao “realismo
promessas (Dias Gomes, 1960); (iv) e, finalmente, o teatro do CPC, assumindo uma
175
apud MOSTAÇO, E. Op.cit. p.58.
106
quase caricaturas das classes sociais, para falar da sociedade e da política nacional.
iniciava um debate que iria explodir no final da década de 1960, lastreado por novas
questões: para quem se deve encenar? Para o “povo” ou para a “pequena burguesia”,
público tradicional dos teatros desde o final dos anos 40? Como devem ser
A conquista das faixas etárias mais jovens, nos anos 1950, não arrefeceu a
ausência de extratos mais amplos da própria classe média (público marcante nas
salas de cinema, por exemplo), para não falar das classes populares urbanas (público
das audiências radiofônicas dos anos 1940 e 1950). O limite de público do teatro,
mesmo vocacionado para uma audiência maior, acabava por garantir um sentido de
sociabilidade muito forte e estreita entre o público que freqüentava as peças, quase
teatral, encarnada pelo Grupo Oficina a essa cultura, por volta de 1967/1968, fez
julgamento. Segundo Zuenir Ventura, o teatro brasileiro possuía, por volta de 1969, um
público constante de cerca de 200 mil pessoas no Brasil inteiro, quase todo
concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esse número permaneceu estável até
meados dos anos 1970, não acompanhando o crescimento do público em outras artes,
o que parecia indicar uma estagnação, agravada pela censura, cuja ação foi
Com o golpe militar de 1964, a questão passava a ser outra. O pacto classista
176
VENTURA, Zuenir et alli, Anos 70/80: cultura em trânsito (da repressão à abertura). Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2000, p. 103.
107
espetáculo o público já era visto como cúmplice do que se passava no palco, a busca
comunicação de circuito fechado: palco e platéia irmanados na mesma fé. Aliás, raro
(Arena, 1965), Se correr o bicho pega... (Opinião, 1966), Morte e vida Severina (Tuca,
1966), Arena conta Tiradentes (Arena, 1967), entre outros. Mesmo enfatizando a
Até certo momento, por volta de 1966/1967, seu público fiel parecia homologar essa
opção. Mas o quadro mudaria em 1968, com a incorporação do tema da “luta armada”
como material dramático e político que serviria de base para um novo teatro e uma
do público. Na verdade, esse processo autofágico não foi uma opção estética nem o
177
MOSTAÇO, E. Op.cit., p.77
108
brasileiro será tragado pelas mudanças nesses dois campos. Como sabemos, a
fazer teatral, em certa medida, ao menos até a reação da dramaturgia comunista por
Rosenfeld179.
Por outro viés, o Arena pós-Zumbi e o Teatro da USP (TUSP) defendiam uma
178
Peça de Oswald de Andrade, escrita em 1937, que parodia a burguesia brasileira e sua falsa moral. A
leitura de José Celso carnavalizou os personagens e criou um clima de absurdo, contraface de uma
realidade social e política, em si, absurda. Para uma análise crítica da montagem desta peça em 1967 e
das contradições desta retomada osvaldiana ver COSTA, Iná C. A hora do teatro épico no Brasil. São
Paulo, Graal, 1996, p. 151-175. A autora analisa como uma peça escrita sob o impacto da conversão de
Osvald ao comunismo stalinista dos anos 1930, serviu como exame da falência da revolução brasileira
(defendida nos termos do PCB em 1964). A tese da autora é que “O Rei da Vela” critica menos a
dominação política da burguesia (ainda que lhe ataque no plano moral), do que as contradições de
comunistas e social-democratas, neste sentido analisa a derrota a partir da “insuficiência” dos vencidos de
1964, tripudiando sobre estes. Por outro lado, a defesa da proposta estético-política do Oficina pode ser
vista em MOSTAÇO, E. Op.cit.(cap. 8).
179
SCHWARZ, Roberto.Op.cit. p. 46-49; ROSENFELD, A. “O teatro agressivo” IN: Texto e Contexto. São
Paulo, Perspectiva, 1969, p.56; COSTA, Iná C. Op.cit. p. 169-187. Estes autores enfatizam a vacuidade
política da “agressão” proposta pelo Oficina, denunciando o fetichismo da violência como expressão da
impotência e do imobilismo político da pequena-burguesia radical. O ritual sadomasoquista ocupando a
cena principal do jogo palco-platéia acabaria provocando mais a “dessolidarização” diante da vergonha do
outro, do que a consciência (SCHWARZ, R. Op.cit. p. 48).
109
tornando-se mais explícita em 1968 com a I Feira Paulista de Opinião, organizada por
Augusto Boal, e com Os Fuzis da Sra. Teresa (dirigida por Flávio Império, encenada
para o público (na verdade, carcaças de armas velhas emprestadas pela polícia). Além
Carrar, para o coro grego, diluindo o viés dramático e didatizante da peça original de
Marcelina Gorni: “Alterando o foco inicial da peça, da mãe para o coro, realiza assim
tempo que rompia com o circuito mercadológico (portanto, institucional) que parecia
cada vez mais arregimentar os artistas. Prova disso foi o caráter de “desobediência
escreveu em tom provocativo dirigido tanto aos comunistas quanto aos tropicalistas182:
é dizer a verdade como é. E como dizê-la? E mais: como sabê-la? Nenhum de nós,
como artista, reúne condições de, sozinho, interpretar nosso movimento social.
seu futuro, mas não conseguimos surpreendê-la no seu movimento. (...) É necessário
180
RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro. Op.cit. p. 157
181
GORNI, Marcelina. Flávio Império: arquiteto e professor. Dissertação de Mestrado, Programa de
Arquitetura e Urbanismo, USP/São Carlos, 2004, p. 14. Para uma análise mais detalhada deste
espetáculo e suas implicações para o deslocamento das formas de resistência à época ver COSTA, Iná.
Sinta o drama. Editora Vozes, Petrópolis, 1998, p. 200-205.
182
BOAL, Augusto. “O que pensa você da arte de esquerda?” IN: PRIMEIRA Feira Paulista de Opinião.
(Programa). São Paulo, 1968 (Acervo AMM da Divisão de Pesquisas - Idart / CCSP).
110
No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, estas duas vertentes teatrais,
radicais e libertárias cada qual à sua maneira, entraram em choque com outro tipo de
nacional-popular será sistemático. Em 1976, triunfa com a peça Gota d’água, de Chico
Buarque e Paulo Pontes, grande sucesso de público, que apontava para a superação
considerava a “classe média progressista” como o único público teatral viável, o qual
princípio estético o “realismo”, como alvo o “público” pagante de classe média, e como
contracultural a partir de 1968. A peça Papa Highirte, escrita por Vianinha em 1968, é
uma resposta teatral às dissidências que apostavam na luta armada, reiterando a linha
de atuação política do PCB entre 1965 e 1967, ou seja, a resistência civil e frentista
183
VIANNA Filho, Oduvaldo. Entrevista a Luiz Werneck Vianna. Opinião, 29/7/1974, p. 161-173
184
VIANNA Filho, O. “Perspectiva do teatro em 1965” IN: PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: teatro, televisão,
política. São Paulo, Brasiliense, 1983, p.103/104
111
contra o regime185. Em Rasga Coração, de 1974, Vianinha além de reiterar a luta civil e
almejado e idealizado pela dramaturgia comunista, entre 1968 e 1972, acabará por
censura e repressão que se abateu sobre o meio teatral a partir do AI-5, processo que
qualquer peça mais crítica. A crise de público, tão discutida no início dos anos 1970,
revela não só uma mudança estrutural da platéia de teatro, mas também a própria
crise da função política do drama, exercitada desde os anos 1950 e vivida sob a égide
fazer um teatro “contra o público”, teatro de “agressão”, ou quando o TUSP dizia que
chamada de capa da sua revista de maio de 1968, essas não eram meras expressões
figuradas.
social e ideológica de uma platéia até então mais ou menos coesa e com amplo
que fosse a base de uma ação coletiva transformadora: “Tudo procura transmitir essa
realidade de muito barulho por nada, onde todos oscaminhos tentados para superá- la
até agora se mostraram inviáveis. Tudo procura mostrar o imenso cadáver que tem
185
PATRIOTA, Rosângela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2007, p. 57.
Poderíamos vislumbrar nesta peça de Vianinha, que tematiza a crise do populismo e o golpe de estado
em Alhambra um imaginário país latino-americano, um diálogo direto com Terra em Transe de Glauber
Rocha. Entretanto, esta pista deve ser aprofundada, o que está fora das preocupações deste texto.
112
sido a não- história do Brasil destes últimos anos, à qual todos nós acendemos nossa
público teatral, potencializado pelo “teatro de agressão”187: “Mas nem tudo é vão no
novo teatro. Quem o diz é o José Celso. Segundo o jovem diretor, nem só os
Shakespeare ou, Ibsen. A platéia de tais autores nunca trocou de cadeira. Não há
outro nome tenha. (...) Chegará um dia em que ninguém irá ver Shakespeare, com
Cinema
duas tendências: o exame da derrota pela avaliação crítica das contradições dos
Cesar Saraceni, 1965, Terra em Transe, 1967), e o reexame da atuação histórica das
186
CORREA,José Celso (entrevista-manifesto). Arte em revista, 1, São Paulo, Kairos, 1979, p 63. Para
uma crítica estético-política ao projeto teatral do Oficina, ver COSTA, Iná C. A hora do teatro épico no
Brasil. (p. 167-187).
187
RODRIGUES, Nelson. O obvio ululante. São Paulo, Cia das Letras, 1993, p. 130
113
maneira mais radical na crise do intelectual de esquerda e dos seus projetos, sem
abrir mão da experimentação fílmica, que caracaterizou o eixo mais dinâmico do último
público, sem um “sistema” estabelecido, como na música, o cinema pode revisar sua
como nota-se nas obras de Alex Viany (Agulha no palheiro, 1951) e Nelson Pereira
dos Santos (Rio, 40 graus, de 1954 e Rio, Zona Norte, de 1957), nasceu como
do neorealismo italiano, serviram de base para os primeiros filmes engajados dos anos
tradição do cinema popular carioca, ainda que criticando a alienação das chanchadas
188
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2001, p. 63
189
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1991
190
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno...Op.cit, p. p.66
191
NAPOLITANO, M. “A música em Rio, Zona Norte: os impasses de um projeto estético-ideológico de
esquerda nos anos 1950”. Paper apresentado no XXV Símpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009.
Neste trabalho sigo a pista de Alex Viany, em “Introdução ao cinema brasileiro” (Rio de Janeiro, INL,
1959)
114
Distanciamento não só estético, mas sobretudo na sua relação com o público. Os dois
buscava um cinema próximo da estética hollywoodiana, alvo dos filmes da Vera Cruz
paulista192.
não havia, até o final dos anos 1950, uma negação dos princípios fílmicos do cinema
comercial vigente na época (dramas e/ou chanchadas musicais). O que ocorre é uma
desapareceram por ocasião da explosão do Cinema Novo, no início dos anos 1960. A
indicam claramente uma filiação muito maior com o cinema europeu contemporâneo
aos grandes públicos. No limite, até 1964, as duas vertentes (cinema de gênero e
Pereira dos Santos, 1963), Os fuzis (Rui Guerra, 1964) e Deus e o Diabo na terra do
192
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema.O caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Ed. Civilização
Brasileira/Embrafilme, 1981
115
narrativo linear e direto. Em outras palavras, este tipo de cinema, ainda mantendo elos
Guerra).
cinema era o espaço de expressão dos grandes debates e dilemas desse segmento
medida em que a primeira fase do Cinema Novo tentou fazer, ao mesmo tempo, um
contra-revolução, crise existencial e criativa – colocadas pela maioria dos filmes. Por
outro lado, o desafio do Cinema Novo era ser fiel a uma determinada idéia de “cultura
brasileira” e, ao mesmo tempo, situar o cinema brasileiro diante das mais valorizadas
116
interlocutor estrangeiro cultiva o sabor desta miséria, não como um sintoma trágico,
mas apenas como um dado formal. (...) Eis fundamentalmente a situação das artes no
Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os
termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos
O manifesto termina com outra alusão ao público: “[O Cinema Novo] não é um
filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a
quis (ou soube) mergulhar nesses dilemas, retratados nos filmes, sem prejuízo da
Se esse “fechamento” não foi totalmente em vão, sendo importante para a renovação
193
ROCHA, Glauber. “Estética da fome” IN: Arte em revista, 1, São Paulo, Kairos, 1979,p.16
194
Idem, p. 17
117
ao Estado, na medida em que optava por um cinema mais autoral, voltado para um
público pequeno e seleto. Mas havia outro lado. O choque entre a linguagem moderna
das narrativas e o caráter alegórico dos personagens nem sempre eram bem
crescente do cinema. Não é por acaso que nos anos 1970, num processo de
Saraceni, 1965) até Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) há mergulho dos
público privilegiado dessas obras. Nesse sentido, o cinema brasileiro foi um importante
teatro e da música, por exemplo, mais exortativos e positivos) sobre o sentido histórico
do intelectual de esquerda.
No ciclo fílmico que vai d’O Desafio (Paulo Cesar Sarraceni, 1965) ao Bravo
este exame crítico continua, sob outra configuração formal, em filmes que foram
sucesso de público, como Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Como era
gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), que expõe as contradições
classes populares e com o poder, passaram por um exame cuidadoso, cuja obra
alegórico, ocupado por figuras grotescas, misto de carnaval, ópera bufa, farsa e
crise, mistura de transe político e abismo histórico. Como escreveu Ismail Xavier,
cotejando os dois filmes clássicos195: “Se antes viver no Brasil era estar apoiado no
sentidos, agonia”.
chave irônica em O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), filme que
Ruptura, pois recusava a visão dualista de Brasil, sendo o “Brasil Rural” a fonte das
195
Idem, p.70.
119
–herói se transmuta na massa informe que vaga pelas ruas do Centro de São Paulo, o
lança da “explosão do Terceiro Mundo”, anúncio de uma revolução que não trará a
redenção, e sim o caos. “Quem tiver sapato, não sobra”, tal como profetiza o pregador
preso pela polícia no começo do filme. O Bandido inaugura, no cinema, uma outra
desta linha, como O Desafio e Terra em Transe, o intelectual era representado como
Desafio, imerso em sua crise profissional, amorosa e política, catalisada pelo golpe
sequência do filme, cruza com uma criança pobre na escadaria da Lapa, ao som da
canção “Tempo de Guerra” (Edu Lobo) que abria a peça Arena conta Zumbi. A
120
personagem, e abre com uma frase direta: “como posso falar de amor, com tanta
gente sofrendo?”. Sabendo-se que vive em um “tempo de guerra, um tempo sem sol”,
Marcelo olha a menina, que, por sua vez, também o olha. A troca de olhares reitera a
se afastar da menina, como se quisesse se afastar do mal estar que ela lhe provocara.
parece causar alguma perturbação nas duas partes, mas não o suficiente para que
rápidos e resolutos, para um destino que o filme não nos revela ou resolve196.
negação existencial e moral da sua classe e a ação direta (e até suicida) contra a
cacofônica e enigmática. Glauber estaria fazendo uma apologia à luta armada, como
196
O curioso é que Vianinha, que interpreta Marcelo, intelectual em crise, detestava este filme, tanto do
ponto de vista estético, quanto do ideológico. Aliás, o dramaturgo tinha uma postura crítica em relação ao
Cinema Novo como um todo, proferindo duras críticas ao aclamado Terra em Transe, por exemplo (“O
Brasil não é aqui. O Brasil não é esta merda que o Glauber vê”). Estas posições, quiçá representativas
daquilo que aqui chamamos de “núcleo duro” da política cultural mais afinada com o Partido Comunista
Brasileiro (Grupo Opinião e afins), revela a riqueza e complexidade das dinâmicas da “resistência
cultural”, para além das dicotomias simplistas do tipo “tropicália” versus “nacional popular”. Sobre o
debate de Vianinha com os cinemanovistas ver RAMOS, Alcides. “Oduvaldo Viana Filho e o Cinema
Novo: apontamentos de um debate estético-político”. Revista Fenix, 1/1, out-dez 2004. Disponível em
(http://revistafenix.pro.br/pdf/Artigo%20Alcides%20Freire%20Ramos.pdf., acessado em 19/8/2010).
121
saída necessária para uma trajetória errática e trágica do intelectual tragado pela
épica, tanto quanto inútil. Ou melhor, Glauber sugere que a “utilidade” histórica da sua
como revolução passiva, sem massas. Mas não nos sugere o que viria depois, o que
do Cinema Novo, nada mais faz do que radicalizar a crise existencial e ideológica do
personagens modelares (para o bem ou para o mal) fugia dos filmes brasileiros mais
(Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Como era gostoso o meu francês (Nelson
partir da segunda metade dos anos 1970, capitaneado por filmes que procuravam fugir
da linha do engajamento, como Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976) e
197
XAVIER, I. Alegorias....p. 13
122
Cinema Novo, sobretudo em sua segunda fase, que se fez a dissecação mais
no plano da relação com o público, a opção pela agressão ao gosto médio). Mas, na
música popular, a relação entre artista e público era menos direta e mais problemática,
críticos ao sistema.
Música popular
198
Rosane Kaminski, ao estudar a obra ficcional inicial de Sylvio Back – Lance Maior (1968), Guerra dos
Pelados (1971) e Aleluia, Gretchen! (1976) – aponta outras conexões possíveis entre cinema e política
nos anos 1960 e 1970, fora do mainstream consagrado pelo cinemanovismo, ou mesmo pelo cinema
marginal. Na ótica da autora, o entrecruzamento entre regionalismo (sulino), existencialismo difuso e
diálogos livres com as tendências dominantes no cinema brasileiro, marcaram os filmes em questão,
traduzindo outras perspectivas fílmicas sobre os dilemas da modernização brasileira. Ver KAMINSKI,
Rosane. Poética da Angústia: história e ficção no cinema de Sylvio Back. Tese de Doutorado em História,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007
123
conceito de Música Popular Brasileira (MPB). Nesta área artística, a cultura nacional-
como o momento propício da ação histórica efetiva (ou seja, a queda do regime), eram
desde a melancolia crítica de Chico Buarque, que duvidava do tempo como fator de
bastante sui generis: o da bossa nova cosmopolita. A bossa nova explodiu em 1959,
no mesmo ano que o rock'n roll entrou com grande força no mercado brasileiro. Se os
dois gêneros tinham seus entusiastas em estratos sociais diferentes (a alta e a baixa
entre o público jovem, comprovado pelo êxito dos shows inaugurais do movimento,
musical pelos intelectuais do movimento estudantil, como a base para uma canção
engajada nacionalista199.
199
LINS E BARROS, Nelson. “Bossa Nova, colônia do Jazz”. Movimento/UNE, 11, maio 1963.
124
diante das duas opções “imperialistas” que ocupavam a cena musical: o jazz e o rock
200
.
estava atento ao samba tradicional e mesclava temas românticos com letras de cunho
nacionalista, mostrando o potencial crítico (nos termos da época) das canções da BN.
Sua ligação com o Centro Popular de Cultura da UNE, a partir de 1962, era uma ponte
manifesto do CPC, redigido por Carlos Estevam Martins, pouco influenciou o campo
musical engajado, ao menos até 1964. Seus termos – estética simplória, conteudista,
comunicativa – não foram muito bem assimilados na música popular, já marcada pelas
o Teatro Municipal do Rio de Janeiro e foi produzido pelo CPC/UNE, foi a tentativa de
gosto dos estratos mais jovens da classe média, proporcionando encontros sociais e
culturais com o “morro”. Essas pontes não uniram apenas duas tradições mas,
ao longo dos anos romperia os limites do público carioca e seria a base na expansão
alguns meses antes pelo encontro de Carlos Lyra e outros músicos da bossa nova
200
TRECE, David. “A flor e o canhão: A bossa nova e a música de protesto no Brasil. Questões e
Debates, 32, UFPR, Curitiba, 1997, p. 5
201
CONTIER, A. “O nacional e o popular..”. Op.cit., p. 27
202
GARCIA, Miliandre. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC (Centro Popular de
Cultura) da União Nacional dos Estudantes (UNE)”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 47, n. 47,
p. 127-162, 2004.
125
moderno – mas havia trazido para o público de classe média a música dos grandes
músicos que buscavam uma bossa nova nacionalista ou uma canção engajada. Até
1964, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Lins e Barros, Vinícius de Moraes e outros
musical popular. Por meio dessas pontes que se construíam entre dois mundos,
de “elevar” o gosto musical do “povo”, talvez não tenha se concretizado. Mas, sem
musical.
Esse novo público de música popular brasileira (até 1965 se escrevia com
teatro, a música popular irá cada vez mais ocupar um espaço “midiático”, e será a
partir dele que seu público crescerá de maneira exponencial. Ironicamente, a chamada
“MPB” atingirá franjas de um público bastante popular, sobretudo ao longo dos anos
1970, mas não pela atuação das entidades civis, estudantis e sindicais, ligadas à
militância de esquerda (como se projetava nos tempos áureos do CPC), e sim pela
música brasileira (como a jovem guarda) que mais concorreram para consolidar o
tradição da grande música da “era do rádio”, nos anos 1930, com a renovação
proposta pela bossa nova, no início dos anos 1960. A “abertura” do público original de
música popular, de raiz nacionalista e engajada, se deu via mercado, com todas as
que foram grandes fenômenos de vendagem na segunda metade dos anos 1960,
MPB, que rompia os limites dos campi universitários e dos shows patrocinados por
entidades estudantis (ocorridos no Teatro Paramount, onde, por sinal, Elis e Chico
iniciaram suas carreiras em São Paulo). Os dados sobre vendas de discos desses dois
artistas são impressionantes. Elis, por exemplo, será a primeira cantora a atingir a
marca de 500 mil LPs vendidos (fato notável para 1965). Chico Buarque, entre 1966 e
1969, foi um dos três maiores vendedores de LPs e compactos, só perdendo para
203
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit. Para uma descrição detalhada dos festivais da canção
ver também HOMEM DE MELLO, Zuza. A Era dos Festivais. São Paulo, Editora 34, 2003.
204
Idem, p. 163
205
Pesquisa Semanal sobre vendas de Discos (São Paulo / Rio de Janeiro). IBOPE (1966-1968). Arquivo
Edgar Leuenroth, Unicamp, Campinas.
127
O público massivo do rádio, nos anos 1950, formado pelos extratos mais
baixos da classe média e pelos segmentos mais populares, foi em parte incorporado
pela “moderna” MPB. Esse segmento do público não teve o seu gosto marcado pelo
românticas influenciadas pelo bolero. A partir de 1965, parte da MPB se abriu para
esse gosto musical mais tradicional, ampliando seu público. Uma audiência que,
inicialmente, teve contato com a MPB por meio da televisão para, no início dos anos
consumidora de discos. Arrisco dizer que Elis Regina e Chico Buarque não “caíram”
“midiatizada” pela TV, pelo rádio e pelo disco. Isso não quer dizer que os shows, o
encontro físico do público nos espetáculos musicais – uma sociabilidade mais direta,
portanto – deixará de ser importante, mas que uma dinâmica nova articulava a
engajadas de mercado, como foi dito várias vezes, sobretudo por Caetano Veloso.
Mas o tiro saiu pela culatra. Ao invés da “implosão” do público, tal como havia ocorrido
com o “tropicalismo” teatral, o que acabou ocorrendo foi uma nova ampliação da faixa
206
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. Cotia, Ateliê Editorial, 1995, p. 107. Sobre o
tropicalismo musical ver também VILLAÇA, Mariana. Polifonia tropical: engajamento e experimentalismo
na música popular: Brasil e Cuba (1967-1972). São Paulo, Humanitas/ História Social-USP, 2004.
128
classificado como uma das suas “tendências”. A força do mercado acabou por
canção brasileira, por incorporar a linguagem pop e abrir caminho para uma audiência
surgida a partir de 1968. Na festa de arromba da MPB sempre tinha espaço para mais
alguém, desde que ungido pelo gosto elástico das classes médias brasileiras, que
Tropicalismo
naquilo que viria a ser mais tarde designado pelo nome de Tropicalismo, esboçada no
final de 1967, explodiria com toda força no início de 1968. As polêmicas em torno da
Roda Viva (que estreou em janeiro de 1968) tornaram público o debate em torno das
começam a apontar para a ideia de que aquilo tudo poderia se traduzir num
movimento.
manifesto, intitulado Cruzada Tropicalista, teria sido escrito por Nelson Motta, a partir
207
A historiografia vem questionando, recentemente, estes padrões de gosto e sociabilidade musicais
impostos pela classe média intelectualizada e seu sentido histórico. Ver, por exemplo ARAUJO, Paulo
Cesar. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro, Record, 2001;
FERREIRA, Gustavo Alonso. Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e
os limites de um memória tropical. Dissertação de Mestrado em Historia. UFF. Niterói. 2007
129
reações na mídia e nas artes em geral. Logo em seguida, Torquato Neto assume o
moda cultural.
1967 e que, pouco tempo depois, emprestaria o nome para a composição de Caetano
Veloso. Vale a pena a longa citação209 : Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem
caminhos alternativos para a saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços
208
NETO, Torquato. Últimos dias de paupéria, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973, p.309-310
209
OITICICA, Hélio. Catálogo da Exposição na Whitechapel Gallery. Londres, 1969
130
que o espectador circula há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando,
os sons que você ouve vindos de fora (vozes e todos tipos de som) se revelam como
tendo sua origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. É
extraordinário a percepção das imagens que se tem: quando você se senta numa
imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão ha três tipos de
coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa sucessão de
uma parte a outra) e a imagem televisiva.(...) Eu criei um tipo de cena tropical, com
mas desde que é um problema universal, eu também propus este problema num
criar uma linguagem que poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos
nos colocar contra uma imagética internacional da pop e pop art, na qual uma boa
Neste caso, a proposta sensorial não é mera atitude, mas torna-se homologia
de uma nova proposta de relação da vanguarda com o público das artes plásticas,
imagens de brasilidade vigentes até então: “O monumento não tem porta/ a entrada é
uma rua antiga estreita e torta/ e no joelho uma criança sorridente feia e morta/
estende a mão (...) no pátio interno há uma piscina/ com água azul de amaralina/
coqueiro brisa e fala nordestina e faróis (...) emite acordes dissonantes/ pelos cinco mil
alto-falantes/ senhoras e senhores ele põe os olhos grandes sobre mim (...)/ O
210
REIS, P. Op.cit; FREITAS, A. Op.cit.
131
monumento é bem moderno/ não disse nada do modelo do meu terno/ que tudo mais
modernas do Brasil. Não por acaso, a canção de Caetano começa citando a carta de
Pero Vaz de Caminha (relíquia fundadora), em tom de blague, tendo ao fundo o som
ritualizada, buscando provocar o público das artes para além do jogo catarse-emoção.
como absurdo, como ente simbólico atemporal, estático e sem saída. Por outro, ao
cultural. A peça Rei da Vela estreou no mesmo mês das apresentações do III Festival
211
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. Op.cit.
212
O som universal (de Caetano e Gil). Folha de S.Paulo, vol.02, nº 3, 12/out/1967
132
outro lado, vale lembrar que o espetáculo O Rei da Vela foi dedicado à Glauber
Rocha, diretor de Terra em Transe, o filme de maior impacto artístico de 1967 entre a
alguma relação entre estas três obras (ou momentos) inaugurais é a busca da
Tropicalismo musical
Inicialmente, não havia um questionamento direto das estruturas do festival, mas uma
que se fixaram no plano da memória social, as canções defendidas por Caetano e Gil
inicial. Já em fins de 1967, Gilberto Gil assumia a busca do som universal, próximo à
consegue se comunicar - dizer o que tem a dizer - de maneira tão simples como um
textos e fotos”.
com que o debate fosse centralizado neste campo artístico, principalmente em 1968,
quando as posições se acirraram. Se Caetano, Gil, Guilherme Araujo, Gal Costa, Tom
213
apud PAIANO, E. O berimbau e o som universal. Lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60.
Dissertação de Mestrado em Comunicação, ECA/USP, 1991, p.146
133
composições do disco, assinadas por Gil, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Tom
Zé, com arranjo de Rogério Duprat, pode-se ouvir diversos fragmentos sonoros e
citações poéticas, num mosaico cultural saturado de crítica ideológicas: Danúbio Azul,
Frank Sinatra, A Internacional, Quero que vá tudo pro inferno, Beatles, ponto de
umbanda, hino religioso, sons da cidade, sons caseiros, carta de Pero Vaz de
sistêmica e orgânica por parte dos autores. Entre as composições de outros autores,
destacam-se duas: As três caravelas, versão ufanista de João de Barro para uma
rumba cubana que, deslocada de seu contexto, soa ambígua: ora como uma paródia
oscila entre a blague dadaísta (ao se utilizar de uma música desvalorizada pelo gosto
medida em que traz à tona o material musical cultural recalcado pela linha evolutiva,
baiano e selou as afinidades com a vanguarda paulista do grupo Música Nova 214.
214
O grupo Musica Nova, surgido por volta de 1963, era composto por jovens maestros e compositores
da vanguarda paulista da música erudita, que buscavam um novo código e um novo mateiral sonoro para
134
como rótulo comercial, possuía muitos entusiastas entre o público e os jurados. Ficava
claro, pouco a pouco, que havia uma tentativa da indústria cultural em transformar as
de tornar-se mais que um estilo, um gênero, para um público jovem bem delimitado.
polêmicas abertas por Caetano e Gil surgiam duas novas estrelas; Tom Zé (ganhador
1968, uma definitiva aliança com os músicos tropicalistas. Na verdade desde 1966,
organizado por Augusto de Campos tem importância fundamental para o processo que
Tropicalismo (ainda que seus artigos tenham intenções críticas), mas também como
programa de criação estética e projeto de memória histórica com base nos seguintes
compor suas peças. Destacam-se Rogério Duprat, Gilberto Mendes, Julio Medaglia, entre outros. Ver
ZERON, Carlos Alberto. Fundamentos histórico-políticos da Música Nova e da música engajada no Brasil
a partir de 1962: O salto do tigre de papel. Dissertação de Mestrado em História Social, FFLCH/USP,
1991.
215
Para um aprofundamento das relações entre concretistas e tropicalistas ver: SANTAELLA, M.L.
Convergências: poesia concreta e tropicalismo. São Paulo, Nobel, 1984
135
parecia ter chegado para a tradição da vanguada moderna brasileira: a massa comia o
críticas violentas por parte das correntes nacional-populares e de esquerda. Uma parte
proibir , cujo título aludia ao espírito jovem e libertário do 68 parisiense, Caetano foi
duramente vaiado pela platéia. Em meio a uma performance que reunia Gil, Os
que o movimento não abrisse mão completamente da discussão sobre o papel social
da arte216.
exemplo, denunciava que o universalismo em música popular era apenas uma fórmula
grupos que dominam o mercado de disco"217. Nesse sentido não seria a tradução nem
intelectuais engajados não perdoaram. Augusto Boal, por exemplo, tendo como alvo o
216
Sobre as convergências entre engajamento e tropicalismo, ver VILLAÇA, Mariana. Op.cit.
217
MILLER, S. "O universalismo e a MPB". In Revista de Civilização Brasileira, vol. 04, nº 21/22, set/dez.
1968, pp. 207-221.
136
incitando uma platéia burguesa a tomar iniciativas individuais contra uma opressão
culminava numa crítica assistêmica; era "tímido e gentil" com os valores da burguesia;
Apesar das críticas e polêmicas, 1968 é lembrado, até hoje, pelo triunfo desta
nova estética e pela gênese de uma nova crítica cultural, que mudava completamente
****
crise da dimensão pública da arte engajada, entre 1964 e 1968. Novos códigos, novos
como a censura e o exílio que pesaram sobre os criadores, não pode ser minimizado.
Por outro lado, ao longo dos anos 1970, a arte engajada ganhou um novo alento, na
218
BOAL, A. O que você pensa da arte de esquerda? Manifesto da I Feira Paulista de Opinião, São
Paulo, 1968
137
O caldeirão onde essa cultura radical de oposição foi cozido, a partir dos anos
busca do apoio estatal para reencontrar o grande público. O teatro, buscou “refazer” o
cinema ora tentou “prescindir” do público (mediante filmes “autorais” alternativos), ora
tentou ampliá-lo (produzindo filmes com mais apelo “comercial” feitos por diretores de
esquerda, como Cacá Diegues). O apoio oficial a essas áreas se revigorou a partir de
instigante, que deve ser pensado para além do jogo “cooptação-resistência” do artista
política220. Procurei demonstrar como a dita “hegemonia cultural” da esquerda pode ser
pensada dentro dos problemas mais amplos na área da cultura, revelando processos
219
RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais. São Paulo, Paz e Terra, 1987, p. 117;
MICELI, Sergio. Estado e cultura no Brasil, São Paulo, Difel, 1984, p. 56
220
No caso da relação do PCB com a mídia “capitalista”, Sacramento, Roxo e Goulart chamam atenção
para a dialética entre “infiltração” (mídia como instrumento) e “cooptação” (mídia como
instrumentalização) que marcou a presença dos militantes culturais do PCB na TV brasileira, situada nos
quadros de uma modernização completa dentro da qual estes artistas foram elementos ativos.
SACRAMENTO, Igor et alli. “O PCB e a modernização midiática no Brasil”. Paper apresentado no V
ENECULT (Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), Salvador (BA), 2009, p.3.
221
CZAJKA, R. Praticando delitos...Op.cit. p.232-235.
138
geração de intelectuais e artistas”. Neste sentido, a hegemonia deve ser vista como o
culturais, ao contrário da “resistência” que deve ser pensada sob o viés de “disputas
contracultural. O início dos anos 1970 assistiu um debate acirrado entre os herdeiros
ocupado pelo PCB e por seus compagnons de route filiados à tradição nacional-
popular. A necessidade eventual de alianças táticas entre as duas correntes nos anos
de chumbo, ambas ameaçadas pela repressão e pela censura, nem sempre pode
superar as tensões e conflitos, que serão examinados com mais detalhes no próximo
capítulo.
139
CAPÍTULO 4
graves estão indicando que, ao contrário da economia, nossa cultura vai mal e pode
piorar se não for socorrida a tempo. Quais os fatores que estariam criando no Brasil o
arquitetura moderna, cinema novo, bossa nova, grupo Arena – Ventura caracterizava a
busca das causas do “vazio cultural”, Ventura indicava não apenas motivações
intrínsecas à vida intelectual, mas sobretudo, rupturas históricas vividas fora do campo
punição” aos opositores, cujo epicentro era a censura prévia223. Ao lado destas causas
externas, Ventura afirmava que a cultura vivia “uma fase de transição em que, como
222
VENTURA, Z. “O Vazio cultural” IN: 70/80: Cultura em Trânsito. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000, p.40
223
A rigor, a censura às diversões públicas durante do regime ainda estava ancorada, em linhas gerais,
no Decreto 20.493, de 24/1/1946, acrescido da Lei 5536 (21/11/1968) e do Decreto-Lei 1077 (26/1/1970).
O primeiro regulamentava a censura à peças teatrais e filmes, bem como criava o Conselho Superior de
Censura (só implementado em 1979). O segundo instaurava a censura prévia, com base na crença de
que a “subversão” na cultura se alimentava da “perversão moral” e diluição dos “bons costumes”. Além
destas reformas normativas e doutrinárias, a Censura Federal se reorganizou do ponto de vista
administrativo, tentando ampliar, coordenar e profissionalizar seus quadros, sobretudo após 1972. Do
ponto de vista do alcance, a censura oficial foi mais presente e sistemática no campo das “diversões
públicas” (cinema, teatro, música popular, televisão, rádio), do que na literatura e nas artes plásticas. A
censura à grande imprensa, a rigor, era feita de maneira informal, através de canais de comunicação (ou
de pressão, se quisermos) entre o Ministério da Justiça, os donos das empresas jornalísticas e os
editores-chefes. Ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam....; KUSHNIR, Beatriz. Cães de
Guarda. Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro, Boitempo Editorial, 2004.
Para uma visão geral sobre a censura ver FICO, Carlos.. (Org.). Censura no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2010.
140
impasses culturais.
“vazio cultural”. Em 1973, ele escreveu: “O vazio era mais uma metáfora para
descrever com certa exatidão o quadro cultural dos anos 1969/1971, em que as
Ventura alertava, entretanto, que em 1973, o “vazio estava mais cheio”, ou seja,
existência de uma estrutura de produção cultural que não poderia ser desmontada
pela censura e pela repressão sem que houvesse graves prejuízos para a própria
vazio”, Ventura identificava três caminhos, já trilhados à época: uma cultura de massa
cooptação por este; uma cultura crítica, “tentando olhar para a realidade social e
política”.
224
VENTURA, Z. et alli, Op.cit., p.47
225
Idem, p.59
141
alternativas ao consumo massivo. Neste ponto, surgia a definição mais dura do artista
ameaça levar sua criação a um perigoso autismo e o risco de serem consumidos pelo
que rejeitam, esses artistas malditos, mais pelo que aparentam ser do que pelo que
produzem, talvez deixem para a cultura brasileira mais uma atitude do que uma
em suas diversas vertentes, incluindo até os tropicalistas Caetano e Gil que mesmo
artigo de 1974, intitulado “Da Ilusão de poder a uma nova esperança”228, fazendo
general Ernesto Geisel como Presidente, em março daquele ano, e sua promessa de
“distensão política”. Neste último artigo, foi veiculado o famoso e polêmico depoimento
econômico. Vale dizer que boa parte deste artigo era dedicada à revisão da cultura de
226
Idem, p.64
227
Idem, p.65
228
VENTURA et alli. Op.cit, p. 88-113.
142
Zuenir Ventura vão além de um mero balanço cultural do início dos anos 1970,
uma “linha justa” para a cultura brasileira: a crítica social e política, exercitada de
final da década de 1960, os textos de Ventura demarcam posições muito claras nas
lutas culturais do período. O texto de Schwarz nos remete a outro conceito de “vazio
para superar o “vazio cultural”, valorizando o exercício de uma cultura crítica que fosse
recuperar o fato de que, no início dos anos 1970, a expressão “vazio cultural” era
sintoma de uma das mais acirradas lutas culturais do período: a crítica da cultura de
o “passo para trás” dado por estas últimas correntes em relação a um tipo de produção
229
Edelcio Mostaço, inspirado no texto de Roberto Schwarz, utiliza esta expressão “hegemonia cultural da
esquerda”, referindo-se ao Partido Comunista e seus simpatizantes. Ver MOSTAÇO, E. Op.cit.
143
político-cultural dos anos 1960, sendo o Tropicalismo tomado como momento crucial
qualquer vazio cultural. Antes de operarem uma negação radical da cultura engajada
foram vistos por ambos os autores como uma espécie de up-grade estético e político,
procurava mostrar a contracultura como uma resposta histórica, uma busca de saída
para o chamado “vazio” e não uma mera impostura crítica sem lastro cultural. Para tal,
230
FAVARETTO, C. Tropicalismo: alegoria, alegria. Op.cit. e HOLLANDA, H.B.Impressões de Viagem.
Op.cit. A valorização da contracultura como nova crítica social e política ambém aparecia, de maneira
menos acurada, em VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal,
1977. Estes três trabalhos, surgidos entre 1977 e 1980 constituem um corpus bibliográfico básico sobre a
valorização do experimentalismo, à medida em que rechaçavam a idéia de vazio cultural, recolocando a
contracultura e a vanguarda na tradição de crítica cultural conseqüente, politizada e inovadora.
231
FAVARETTO, C. Op.cit.
144
brasileira dos anos 1970, que vivia à sombra dos ícones estéticos e dos criadores
lado, o contexto do início dos anos 1970 fazia co-existir resistência, massificação e
os circuitos da arte nacional-popular que, por sua vez, era absorvida paulatinamente
uma categoria inventada pela “corrente da hegemonia” refém, por sua vez, de uma
lutas culturais no cinema brasileiro. Conforme o autor, nos anos 1970, “O nacionalismo
perdia seu élan contestador dos anos 60, selava aliança com os produtores e Estado e
começo dos anos 1980, também desenvolveu uma revisão crítica do nacionalismo, à
232
ORTIZ, R. Moderna Tradição Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988
233
MOSTAÇO, E. Op.cit.
234
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.
145
O debate bibliográfico ocorrido ao longo dos anos 1970 e início dos anos 1980,
também deve ser visto como desdobramento das lutas culturais do final dos anos
1960, que demarcaram a revisão das políticas culturais das oposições ao regime em
Assim, em menos de dez anos, entre o final dos anos 1960 e o final dos anos
1970, a “corrente da hegemonia” perdia espaço não apenas na vida artística e cultural,
do “vazio cultural” deixava de ser uma questão de retomada dos elos culturais
próprio conceito de “vazio cultural”, tal como exposto nos textos de Ventura, deixava
de ter sentido amplo, sendo visto como um conceito que apenas mascarava um
235
Ver capítulo 8.
146
underground, que pareciam ganhar, cada vez mais, amplos segmentos da juventude.
Afinal, em última instância, este era o grupo sócio-etário para o qual se voltavam as
posições dos protagonistas, muitas vezes tomadas como evidências e não como
como pólos positivados de ação cultural e discernir qual delas seria a “linha justa” da
para uma nova história da resistência cultural dos anos 1970. Em primeiro lugar, é
meramente individual, responsável pela dissolução do viés crítico deste campo. E, por
último, mas não menos importante, assumir a premissa que entre o nacionalismo, o
nacional-popular de esquerda dos anos 1960, não há uma linhagem direta e reta,
épocas236.
236
Na tentativa de superar este paradigma explicativo – o nacionalismo da direita migrando para a
esquerda ao longo do tempo – Marcelo Ridenti propôs a existência de uma “estrutura de sentimento da
brasilidade revolucionária” forjada pela esquerda (sobretudo comunista, mas que transbordou os limites
do PCB) ainda nos anos 1930. Ver RIDENTI, M. Brasilidade revolucionária. São Paulo, Editora UNESP,
2010.
147
nas falas dos próprios protagonistas que sugeriram complexas relações entre os dois
exemplo, Leon Hirszman, um dos artistas mais identificados com o Partido Comunista
afirma: “No que se refere ao cinema é fazer com que o cinema possa contribuir para
uma política cultural que tenha relações com o nacional e o popular, isto é, que seja
relativo a uma cultura popular, que sua respostas seja o povo e que ele esteja como
raiz, como água nascendo de uma contradição interna existente” 237. Esta posição não
deve ser tomada como cinismo oportunista ou ingênuo. Três anos antes, no filme São
ainda que dialogando com as demandas de uma política cultural que então se
diferente do “movimento construtivo” que lhe precedera, pois este estava deslocado
ele [o artista construtivo], o tudo por fazer, construir, trabalhar. Sua tarefa é preencher
239
os vazios, ocupar o espaço de forma organizada e econômica” . Para o crítico e
237
HIRZMAN, Leon IN: Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Rio de Janeiro, Ed. Inúbia, 1976, p. 20
238
Sobre a inserção deste filme na política cultural e nas lutas culturais do período, ver RAMOS, José M.
Op.cit. p. 106. Para uma análise formal e histórica mais acurada, ver XAVIER, Ismail. “O olhar e a voz: a
narração multifocal do cinema e as cifras da história em São Bernardo”. Literatura e Sociedade, 2, 1997.
239
MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 79
148
contracultura também aparecia na fala de um dos gurus desta última. Torquato Neto,
campo nacional-popular, Chico Buarque (“está vivo, lutando como todo mundo”) e
Leon Hirzman (que teria a clareza sobre os limites da industrialização do cinema sob o
autoritarismo), Torquato questionava a idéia de “vazio cultural”: “esse tempo até que
pode ser chamado ‘de espera’ – mas que só os trouxas e os mais burrinhos (além dos
cegos) não conseguem encontrar no escuro alguma coisa luminosa como uma boa
canção que não sirva apenas pra fazer média com o que já está feito, comido e
prensado” 241.
era particularmente virulento. As áreas onde os embates foram mais fortes entre as
os aspectos propriamente formais que marcaram cada área artística. Se, no teatro, a
tradição realista e dramática era defendida com unhas e dentes pelo núcleo de
era mais complexa, pois o Cinema Novo já apontara para a quebra de linguagem em
240
Sobre as relações entre arte conceitual e resistência cultural ver FREITAS, A. Op.cit.
241
Torquato Neto IN Torquatália (Geléia Geral). Obra reunida de Torquato Neto. Rio de Janeiro, Rocco,
2004, p.224 (texto originalmente publicado em sua coluna, em 10/09/1971)
149
estratégia básica de expressão242. Por conta desta ruptura, Glauber Rocha aparece no
ao lado de Caetano e José Celso Martinez Correa, ainda que o diretor baiano fosse
comum, em termos políticos, com a tropicália musical ou com o Grupo Oficina, embora
transformada em uma sigla com significado amplo e plural, acabou por incorporar as
dos anos 1970, ainda que se mantivessem alguns embates secundários e pontuais,
popular, o discurso de Caetano contra a “juventude que quer tomar o poder”, no TUCA
lucidez de Caetano naquele momento, mas sua intervenção não se tratava do anúncio
dos novos termos da crítica cultural, como se esta fosse, em si mesma, uma
242
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento.Op.cit.
243
NAPOLITANO, Marcos. “A MPB nos anos de chumbo” IN: ILLIANO, R. & SALA, M. Music and
dictatorship in Europe and Latin America. Lucca, Brepols Publ., 2010, 641-668
150
nacionalista era filha dileta da Bossa Nova. Veja-se Sérgio Ricardo, Carlos Lyra e Edu
Nas artes plásticas, desde os anos 1950, a “tradição da vanguarda”244 era de tal
(como no caso do figurativismo pop dos anos 1960) ou perdia expressão como valor
expressar uma atitude radical e inovadora, com invenções e proposições estéticas que
constituíram, talvez, uma das mais instigantes vanguardas dos anos 1960245.
anos 1970 e seus embates culturais, no momento em que o “vazio cultural” era
244
Em princípio, a busca do novo como imperativo da modernidade instaura uma tradição, a “tradição da
ruptura” como notada por Octavio Paz em seu famoso artigo, imagem reiterada por Caetano Veloso em
entrevista nos anos 1970. Sobre a “tradição da ruptura” ver PAZ, Octavio. "Los Hijos del Limo. In La Casa
a
de la Presencia (poesia e historia). Obras Completas (I). 2 ed. México, Fondo de Cultura Económica,
1994, p.333-334 . No caso brasileiro, os movimentos artísticos do século XX que podem ser alinhados,
de alguma maneira, aos modernismos, desenvolveram uma relação complexa com a tradição e com o
material “arcaico” da cultura herdada sob o signo da brasilidade que não pode ser resumida na simples
negação da tradição para afirmação descontínua do novo. O que parece ser uma das marcas comuns dos
“projetos modernos brasileiros” é a negação do passado como “modelo formal”, e sua incorporação
seletiva como material (estado bruto das formas tidas como originárias) e poiesis (procedimento e fatura
na realização da obra). Esta questão está presente em muitas vanguardas históricas, como o Cubismo,
mas no caso brasileiro ganhou particular importância à medida que as vanguardas modernas quiseram
inventar uma nova brasilidade, na qual o “povo-nação” foi tomado como origem e destino da estética
moderna. Neste sentido é que recusamos a dicotomia analítica entre “nacional-popular” e “vanguarda
cosmopolita”. Ver capítulo 9.
245
Sobre a importância de Hélio Oiticica no contexto artístico dos anos 1960 e 1970, ver FAVARETTO, C.
A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo, Edusp, 1992; REIS, Paulo. Exposições de arte. Op.cit.;
FREITAS, A. Op.cit.; JUSTINO, Maria José. Seja marginal, seja herói. Modernidade e pós-modernidade
em Hélio Oiticica. Curitiba, Ed. UFPR, 1998.
151
experimental, tida como alienada pelos críticos mais ortodoxos de esquerda. Neste
O udigrudi
dos valores morais que sustentavam e eram sustentados pelo regime militar.
“modismo hippie”, por volta de 1969, deve muito ao movimento da Tropicália. Esta
dos anos 1970, a experiência tropicalista foi também o ponto de referência primária
246
O termo “contracultura” pode ser definido a partir da experiência norte-americana, de vida comunitária
e estilo anti-conformista. O termo foi visto na época como produto de uma “unidade geracional” – a
“juventude” – que se rebelava contra os padrões comportamentais e os valores políticos do Ocidente. Ver
ROSZAK, Theodore. A contracultura. Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil.
Petrópolis: Vozes, 1972. Para uma visão mais atualizada, ampla e crítica ver BRAUSTEIN, P. & DOYLE,
Michael. Imagine Nation: the american counterculture of the 60’ and 70’. London, Routledge, 2001.
247
DUNN, C. Brutality Garden: tropicália and the emergence of Brazilian counterculture. Chaper Hill and
London, The University of North Carolina Press, 2001, p. 161
152
brasileira. Embora criticados por não articular uma oposição coletiva ao governo
uma festa que durou enquanto o regime pode se mostrar um pouco mais liberal (...) as
cujo termo final seria a crise do sujeito no mundo contemporâneo, em especial a morte
248
MORAIS, Frederico. Op.cit.,p., 98
249
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. p. 33.
250
Para uma revisão crítica em torno da categoria “juventude” ver PAIS, José Machado. “A construção
sociológica da juventude”. Análise Social, XXI (105-106), 1990, 139-165.
153
causa, mas apesar da ditadura251. Vai mais longe: “É tolice afirmar, como muitos
Para Claudio Pinto Coelho, a contracultura, ao lado da luta armada, foi uma forma
se deve ter uma visão heróica desta recusa, pois ela acarretava, no limite, um caminho
251
RISÉRIO, Antonio. “Duas ou Três coisas sobre contracultura no Brasil”. IN: Anos 70: Trajetórias. São
Paulo, Iluminuras, 2006, p.26
252
Idem, Ib.
253
COELHO, Claudio Novaes P. “A contracultura: o outro lado da modernização autoritária” IN:Anos 70:
Trajetórias. Op.cit. p.. 39
254
A crítica ao racionalismo tecnocrático da sociedade capitalista que inspirou a contracultura foi
desenvolvida, basicamente, em dois livros por MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio
de Janeiro, Zahar, 1979 (5ªed.); MARCUSE, H. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
Neste, sobretudo, Marcuse faz uma leitura marxista de Freud, historicizando a dinâmica libidinal básica
(Eros versus Tanatos) e apontando saídas para a repressão constitutiva da sociedade capitalista.
154
para temas e atitudes contraculturais, mas foi a partir de 1969 que consolidou a
1972. A histórica entrevista de Leila Diniz257, a coluna de Caetano Veloso escrita desde
o seu exílio em Londres e o artigo-manifesto de Luis Carlos Maciel258 podem ser vistos
manteria sua coluna de assuntos diversos sob o olhar contracultural, até 1971. Outro
texto importante é o não menos famoso “Recuso + Aceito = Receito” de Gilberto Gil259,
no qual este reafirma sua busca de liberdade estética e individual, mesmo em situação
de exílio.
basicamente por Luiz Carlos Maciel e, eventualmente, por outros autores, como
Antonio Calmon, Antonio Bivar e Jorge Mautner260. A coluna foi publicada no mesmo
Pasquim, entre maio de 1970 e inicio de 1972. Nela, Maciel elaborou e difundiu o
255
Esta visão heróica e isenta de contradições pode ser percebida nos protagonistas e suas memórias,
que ajudaram a fixar o tema na cultura brasileira. Ver, por exemplo, MACIEL, Luiz Carlos. Geração em
transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.
256
Revista VEJA, 12/11/1969 (apud, COELHO, Claudio. Op.cit. , p.41).
257
Pasquim, 22, 20 a 26/Nov/1969.
258
“Cultura de Verão”, Pasquim, 21, 13 a 19/11/1969.
259
Pasquim 39, 19 a 25/3/1970, p.6.
260
CAPELLARI, Marcos Alexandre. O discurso da contracultura no Brasil : o underground através de Luiz
Carlos Maciel. Tese de Doutorado, História Social/USP, 2008. Nesta tese o autor aponta Maciel como o
mediador entre a contracultura internacional e o público jovem brasileiro, tendo em vista que as condições
de emergência do movimento (modernização capitalista) estavam também presentes aqui, ainda que as
condições políticas fossem diferentes dos EUA e da Europa.
155
de publicar notícias sobre os temas e heróis da “nova era”: misticismo, cultura psi,
linguagem artística, Hélio Oiticica, Living Theatre, Jimi Hendrix, Caetano Veloso261.
começo da nova cultura (...) Não se deixe perder no demônio da velha razão (...) Não
jovem engajada dos anos 1960. Citamos na ordem que se apresenta na fonte: Paz,
maconha, amor tribal, tranquilo, som e cor, místico, alegre, Ipanema e Bahia, flor, na
sua, subjetividade, ligado, praia, Reich, prazer, Rock, filho natural, sexo, curtição,
outras, típicas da cultura jovem e engajada dos anos 1960, tais como: angústia, amor
livre, agressivo, ateu, Brasil, Panfleto, comunicação, bossa nova, ego, discurso, em
outras palavras, neste “manifesto”, Maciel recusava, num só golpe, a cultura burguesa
radical das duas vertentes. Signos e valores típicos da esquerda, como o ateísmo,
americana, era substituído por Reich, mais apropriado para a realização do “amor
tribal”, em contraponto ao “amor livre” ainda vivido no âmbito do casal (sic!). Portanto,
261
Os textos foram reunidos posteriormente. Ver MACIEL, Luiz Carlos. Nova Consciência: Jornalismo
contracultural (1970-1972). Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. Sobre a imprensa contracultural ver
BARROS, Patrícia. “A imprensa alternativa da contracultura no Brasil (1968-1974): alcance e desafios”.
Patrimônio e Memória. UNESP/Assis, 1/1, 2005, p.86-93
262
Pasquim, 8/1/70, p.11
156
teatrais de 1971, Hoje é dia de Rock263, apresentava uma carta aberta, em tom de
pra falar das coisas d’Ele, nossa, a gente recorre aos gritos, à comunicação de
massas que não pintava em Israel, IV a.c. O horror está em volta...A gente acredita
que do maior horror nasce a maior maravilha. Não mais ser classe para si, mas ser
para si, que é ser pro todo. Responder à altura já era – responda nas alturas. Daqui do
Evangelho do Rock, a boa nova de que o sonho está só começando, que é preciso
estar desperto porque está próximo o Reino da Paz (...) a bandeira está hasteada, a
porta do sol está aberta, e você não tira os olhos do chão. Não seja só. Get togheter!
contracultura brasileira foi Torquato Neto, poeta e jornalista com passagem pelo
Torquato Neto exercitou uma linguagem ousada, mistura de crítica de arte e crítica
seus impasses. Sua trajetória pessoal, marcada pela luta contra a desagregação
263
“Hoje é dia de Rock” é considerado o espetáculo teatral mais importante de 1971, ficando em cartaz
até 1973. A peça, escrita por José Vicente e dirigida/interpretada por Rubens Correa, tematiza o conflito
entre tradição e modernidade a partir de uma família do interior de Minas Gerais, a migração dos jovens
para os centros urbanos e a busca da paz e comunhão estéticas e espirituais. O espetáculo ganhou ares
ritualísticos, no qual os espectadores eram recebidos com pães, flores e sorrisos, e a encenação invadia
a platéia, sem agredi-la. Uma busca de comunhão em tempos sombrios. Foi definida por Yan Michalski
como um “inigualável monumento teatral à mentalidade ‘paz e amor’”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob
pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50
264
“Carta aberta do Teatro Ipanema”, de 2/9/1971 (apud NETO, T. Torquatália. Op.cit.p. 213)
265
BRANCO, Edwar. Todos os dias de Paupéria. Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo,
Annablume, 2002. Sobre a faceta de crítico musical de Torquato Neto ver COELHO, Frederico. “A
formação de um tropicalista: um breve estudo da coluna ‘musica popular’ de T.Neto”. Estudos Históricos,
CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 30, 2002, 129-146
157
brasileira dos anos de chumbo. Por exemplo, na coluna intitulada “baixo astral” (24
“Afastar o baixo astral com uma única palvra: SIM.”. E seguem os vários “sins”, signos
Botafogo; Waly Sailormoon, Flor do Mal266, Ivan Cardoso, Caetano Veloso, Luiz Carlos
Maciel, Helio Oiticica, Maria Bethania, terminando com a máxima “A palavra é sim.
Nele podemos ler268: “Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço à beça e
só você sabe o que pode fazer do seu. Antes, ocupe. Depois, se vire (...) Cada um na
sua. Silêncio (...) Não se esqueça de que você está cercado, olhe em volta e dê um
rolê (...) Principalmente, amor, não se descuide. Bater papos com paredes é o fim da
picada (...) transe e não se tranque”. Torquato parecia querer afirmar um receituário
cultural individual, para além de qualquer coletivo, dado que o tempo dos movimentos
desesperada e agônica, “segurando a primavera nos dentes”, como dizia a canção dos
cultural como atividade vital para a resistência individual e coletiva269: “Invente. Uma
266
Jornal fundado por Luiz Carlos Maciel e Tito Lemos, que durou 6 números, entre 1971 e 1972
267
NETO, T. Torquatália. Op.cit. p. 310-311
268
Idem, p. 304-305 (original 16/11/1971)
269
Idem, p 278
158
câmera na mão e o Brasil no olho: documente isso, amizade. Não estamos do lado de
tem suas brechas, olhe por elas, fotografe, filme, curta dizendo isso”. A hipertrofia da
diluindo as fronteiras entre arte e vida, em operação estética nem sempre bem
sucedida.
cultura, vá para o inferno: o paraíso na tela, no palco na boca do som e nas palavras
todas na ferrugem dos gestos e das trancas da porta da rua”270. Depois de elogiar o
herói da esquerda com a dupla sertaneja ufanista de direita, reiterando uma estratégia
eu sou / agora / sem grandes segredos dantes / sem novos secretos dentes / nesta
mim / eu sou como eu sou / vidente / e vivo tranquilamente / todas as horas do fim.
O seu fim pessoal veio com o suicídio, em 1972, evento marcante para toda
uma geração que tentou pintar o arco-íris no céu de chumbo da ditadura. Outro poeta
270
Idem, p. 269-270
271
Idem, p.375
159
símbolo da geração, Cacaso, gravou o clima pesado da época no poema cujo título
era precisamente aquele ano fatídico272: “Meu coração De mil e novecentos e setenta e
dois / Já não palpita fagueiro / Sabe que há morcegos de pesadas olheiras / Que há
arautos da nova era mística. Havia também uma vertente explicitamente polítizada,
voltada, sobretudo, para o ativismo estético radical para a implosão do sistema cultural
e para a dissolução das fronteiras entre arte e vida, na melhor tradição das
seja por falta de energia estética, tempo ou mesmo vontade política, pouco
culturais da frente armada contra o regime. Nomes como Antonio Callado, Augusto
Boal, Sérgio Ferro, Geraldo Vandré ou Carlos Zílio tiveram relações mais ou menos
refletem os impasses da esquerda que conduziram à luta armada, após o golpe militar.
Entretanto, boa parte deles não comungava com a contracultura ou com a vanguarda
272
Cacaso IN: Poesia Jovem. Coleção Literatura Comentada, São Paulo, Abril Cultural, p.15
273
Uma das primeiras formulações deste conceito foi feita pelo artista argentino Julio Le Parc. Ver LE
PARC, Julio. “Guerrilha cultural?” IN: IN: FERREIRA, Gloria & COTRIM, C. (orgs). Escritos de Artistas.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006, p. 198-202 (original de 1968).
274
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro.
160
artista promissor na exposição Nova Objetividade (1967), Zílio se envolveu com a luta
panfleto: uma marmita – signo operário por excelência – em cujo fundo via-se um rosto
em relevo. No lugar da boca, havia uma única palavra, em tom imperativo: “lute”.
Nesta obra, indicativa de um caminho não traçado pelo próprio artista enquanto
como um modelo de panfleto a ser distribuído para os operários nas portas das
fábricas.
O caso de Glauber Rocha também deve ser analisado com cuidado, pois seu
ao que parece nunca chegou a significar uma ligação orgânica com grupos
seja em meio às ações reais, seja em forma encenada. De qualquer forma, sua obra é
275
OITICICA, Hélio. “Esquema geral da Nova Objetividade” IN: FERREIRA, Gloria & COTRIM, C. (orgs).
Op.cit, p. 154-168. Neste manifesto, Oiticica define a nova postura tendo como bases: 1) a vontade
construtiva geral (ou seja, a afirmação de uma determinada tradição de vanguarda, para além da figura e
da mera abstração); 2) a negação do objeto artístico em si mesmo, ou seja, a obra (escultura, quadro,
etc); a participação sensorial do espectador se apropriando das proposições do artista, como caminho
para a fruição crítica; 4) a tomada de posição diante dos problemas “políticos, sociais e éticos” (neste
ponto, o artista afirma o empenho na transformação do real); 5) tendência ao coletivo, superando os
movimentos sectários e o culto ao artista-gênio; 6) revisão do conceito de antiarte. Outro aspecto
importante é que Oiticica afirma-se dentro de uma tradição brasileira e internacional, a um só tempo. O
manifesto foi originalmente publicado no Programa da mostra “Nova Objetividade brasileira”, no MAM-RJ,
1967.
276
Sobre o “cinema tricontinental” de Glauber, ver CARDOSO, M. O cinema tricontinental de Glauber
Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). Tese de Doutorado em História Social, FFLCH/USP,
2007; sobre as relações de Glauber com Cuba na perspectiva de uma ação revolucionária
161
cabo, era tributária dessa mesma cultura. No lugar do operário surgia o marginal como
linguagem, da divisão entre arte e vida e seus corolários: palco e platéia, obra e
exercitando uma poética da agressão não apenas contra o “sistema” em abstrato, mas
da contracultura dos anos 1970. A busca por um novo público nas artes plásticas não
recepção pública que afirmaria a arte como fenômeno coletivo e acessível. Hélio
Oiticica é quem se perguntava277: “Para quem faz o artista sua obra? Vê-se depois,
que sente uma necessidade maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar
algo que para ele é fundamental, mas essa comunicação teria que se dar em grande
escala, não numa elite reduzida a experts mas até contra essa elite, com a proposição
internacionalista (e seus impasses) ver VILLAÇA, M. “America Nuestra: Glauber Rocha e o cinema
cubano”. Revista Brasileira de História, 22/44, 489-510, 2002
277
OITICICA, Helio. “Esquema geral da Nova Objetividade” IN: COTRIM, Cecilia e FERREIRA, Glória.
Escritos de artistas: anos 60 e 70. Rio de Janeiro Ed. Jorge Zahar, 2006, p.167
278
Entrevista-manifesto de José Celso M.Correa a Tite de Lemos, publicada na Revista de Civilização
Brasileira, número especial, julho 68 (republicada in ARTE em Revista, 2, Kairos, 1979, p. 47-49)
162
cultural oficial, a cultura do consumo fácil (...) o sentido da eficácia do teatro hoje é o
linhas do pensamento humanista (...) Enfim, é uma relação de luta. Luta entre atores e
mesmos, também. Ora ela não pode ter a adesão do público que não está disposto a
poética de agressão, o que, em parte, seria responsável pela sua dissolução como
documento coletivo do grupo declarava279: “Teatro canhoto. Teatro sem regra / Teatro
sem padrão. Teatro energia pura / o único papel do teatro é levar as pessoas pra fora
dos teatros. / destruir teatro onde houver teatro / construir teatro onde não houver
seguido pela arte – da fase moderna à atual – foi o de reduzir a arte à vida, negando
Quanto mais a arte confunde-se com a vida e com o cotidiano, mais precários são os
obra acabou.....”Não sendo mais ele [o artista] autor de obras, mas propositor de
279
Manifesto Grupo Oficina, publicado por Torquato em 4 / 3/ 1972 (apud NETO, T. Torquatália.
Op.cit.p.374)
280
MORAIS, Frederico. Op.cit. p. 24/26
163
artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos, necessita tomar
Frederico Morais esteve por trás de um dos eventos mais radicais da época, a
exposição “Do Corpo à Terra”282, evento que pode ser visto como o fechamento de um
ciclo histórico de exposições de arte que renovaram não apenas a arte brasileira, mas
sua relação com a política e com a vida pública283. No auge repressivo da ditadura,
de guerrilha cultural, em plena praça, dentro de um evento que, na verdade, era parte
Dois artistas, durante este evento, marcaram os debates em torno dos limites
queimou galinhas vivas amarradas a uma madeira num ritual que rompeu as fronteiras
da arte como representação (no caso, da violência), chegando no limite do ato estético
281
MORAIS, Frederico. Op.cit, p.26
282
Idem, p.104. Ver também coletânea organizada por SEFFRIN, Silvana. Frederico Morais. Rio de
Janeiro, FUNARTE, 2004,
283
REIS, P. Exposições de arte. Op.cit.
164
martírio real de um ser vivo, em referência aos presos políticos da época, que
agredia o decoro e a ideia de arte como sublimação, mas ao mesmo tempo, conduzia
das Neves, em Belo Horizonte, Barrio arremessou suas “trouxas”, na verdade sacos
longe, as trouxas pareciam corpos boiando, numa alusão direta aos corpos das vitimas
A guerrilha cultural foi uma atitude de vanguarda com impacto na cena cultural,
realismo e à arte mimética, que queriam se manter nos limites da arte como
artístico, na busca de um ato político, o artista acabou por ficar preso ao rito,
284
FREITAS, Artur. Op.cit. p.253-261.
285
Para uma análise detalhada desta intervenção artística, ver FREITAS, A. Op.cit. p. 104-160. Uma
outra faceta desta arte de intervenção, numa mirada mais construtiva, com amplos significados políticos
pode ser vista nas obras de Carmela Gross de 1968, Presunto e Escada. A primeira é uma lona
costurada, preenchida com palha de madeira, mimetizando um corpo que jaz. A segunda, é uma
intervenção pública na periferia de São Paulo, a partir de um desenho com esmalte sobre a terra.
165
celebrando uma tradição estética na qual a obra canônica desaparece, mas não
social e o culto ao gênio artístico que, afinal, também eram objeto de contestação da
guerrilha cultural286.
Ou seja, ‘a arte não é para a massa desde o seu nascimento. Ela chega a isso no fim
renovação havida neste início de década foi, de fato, o mercado de arte”. Na mesma
linha, Carlos Zilio, artista que vivenciou a dupla face de artista ligado ao
não se situa fora dele, a não ser criticamente. Ainda que esteja genericamente
ela encontra sua origem e a sua meta. Sendo crítica, reconhece suas limitações e não
pretende oferecer uma opção radical, mas procura intervir abrindo alternativas
rastros e motivos no teatro, na música, nas artes como um todo, reverberando até os
final dos anos 1980 na cultura jovem alternativa. Neste sentido, ao contrário do que
286
CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo,
Edusp, 1997, p. 45. Canclini define “ato” estético como “intervenções eficazes em processos sociais”.
287
MORAIS, Frederico. Op.cit, p.114
288
O artista estava refletindo acerca de sua primeira exposição individual em 1974. ZILIO, Carlos. (texto
sem título). IN: COTRIM. G et al. Op.cit., p. 349 (originalmente publicado em 1975)
166
previra Ventura, esta corrente também constituiu um legado de obras perenes, e não
apenas de comportamento datado. Uma série de eventos podem ser tomados como
José Celso, o álbum Araçá Azul de Caetano Veloso e seu impacto negativo no
constituíam uma espécie de núcleo duro da política cultural que mais se aproximava
contra a vanguarda radical em duas frentes: seja voltando a reclamar seu lugar no
Lançado em agosto de 1973, o Plano de Ação Cultural (PAC) não apenas sinalizava
mais recursos para a área, com um amplo calendário oficial de eventos culturais e
artísticos, mas também era uma tentativa de “degêlo em relação aos meios artísticos e
culturais”289. Ocorreu uma aproximação tensa e enviesada, como não poderia deixar
289
MICELI, Sérgio. “O processo de construção institucional na área cultural federal (anos 70)”. IN:
MICELI,Sérgio(org.). Estado e cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984. p. 55.
167
governo Geisel, na gestão do ministro Ney Braga e seu Plano Nacional de Cultura
(PNC), de 1975.
palavra aos palcos” - vista como a ponte que traria o público de volta aos teatros,
superação do “vazio cultural” imposto pela ditadura, listando os sucessos Gota d´’Água
(Chico Buarque / Paulo Pontes), O último carro (João das Neves) e Longa Noite de
Cristal (Vianinha)290. Paulo Pontes, um dos autores de Gota D’Água, definia esta
uma temática popular (com uma “visão de mundo próxima do povo”); a construção de
uma forma e de uma narrativa que valorizem a comunicação, sem abrir mão da
qualidade; a priorização do “povo como destinatário”, ponto que ele mesmo reconhecia
ser o mais difícil e problemático, haja vista a estrutura comercial do circuito teatral e a
exclusão sócio-econômica das classes populares291. Na verdade, este não era o único
como veremos adiante, colocava sob suspeita o intelectual que se dispusesse a falar
“em nome” do povo, ainda que fosse politicamente engajado e bem intencionado.
290
“Contra a ditadura obscurantista, a criação cultural é uma forma de luta”. Voz Operária, 129, dez/1976,
p. 2
291
PEIXOTO, F. “Subúrbio e poesia”. Debate com Chico Buarque e Paulo Pontes sobre Gota d’Água.
Movimento, 31, 2/2/1976, p. 8.
168
Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal e José Celso Martinez Correa. Para Jose Arrabal,
comercial. Boal, por sua vez, não falava em unidade, mas em “teatro popular”,
por um teatro de agit-prop que expressasse dilemas políticos e morais causados pela
experiência das ditaduras. Finalmente, José Celso defenderia uma recusa radical das
ao corpo-ato. Tal como se observava por volta de 1972, com o colapso momentâneo
sugeria uma linha de ação e reflexão que deveria informar o teatro brasileiro
anônimo político, aos campeões das lutas populares: pleito de gratidão à Velha
292
PATRIOTA, R. “O fenômeno teatral como objeto de pesquisa histórica: O Brasil da década de 1970 e
as encenações de Fernando Peixoto” IN: MACHADO, M. H. e PATRIOTA, R. (orgs). História /
Historiografia: perspectivas contemporâneas de investigação. EDUFU, Uberlandia, 2006.
293
ARRABAL, José. “Anos 70: movimentos decisivos da arrancada” IN: Anos 70: ainda sob a tempestade.
Rio de Janeiro, Aeroplano, 2004, p. 208
294
Oduvaldo Vianna Filho falando sobre Rasga Coração, 28/02/1972, publicado em MICHALSKY, Y.
(org). O melhor teatro de Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo, Global, 1984, p. 57
169
segundo lugar, quis fazer uma peça que estudasse as diferenças que existem entre o
época gravitando em torno das posições mais ligadas ao PCB, embora não fosse
toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”. Na peça, ambientada em 1972,
Manguari Pistolão, militante comunista e funcionário público e Luca, seu filho, ligado à
contracultura. A estrutura é narrada a partir do pai, sem que isto signifique passar por
Mesmo os dramaturgos que não eram pautados pelo decoro e pelo diálogo
Oficina. O insuspeito Plínio Marcos também questionava tais princípios296: “Eu acho
que a platéia não tem que se mexer. Se mexer para que? Tem que ficar sentadinha,
quietinha, ouvindo o que a gente tem a dizer. No final, se não gostar, vaia, se gostar,
aplaude. O que eu acho que devia ter é debate com o público no final, para se discutir
o que foi posto no palco, porque não é justo você só ouvir a opinião do outro e não
poder debater. No debate final, a platéia participa. Agora, esses espetáculos com todo
295
PATRIOTA, R. A crítica do teatro crítico. p. 58-61. Lembramos que a peça foi vetada em 1975, mesmo
sendo premiada pelo SNT em concurso oficial. Sua estréia, em 1979, acabou por se enquadrar em outro
contexto de debates entre a “velha esquerda” representada pelo partidão, e a “nova esquerda” que iria
confluir para o nascente PT. Portanto, a questão da tradição da militância ainda era um tema, mantendo a
acuidade histórica da peça.
296
MARCOS, Plinio. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. Op.cit. p. 65
170
história cultural brasileira ainda é pouco estudado como tema monográfico, o que torna
mais difícil sua análise. Ao que parece, a peça Um grito parado no ar, de
tipo de teatro e aprofundar uma crítica (ou autocrítica) da área teatral seduzida pelo
precisava dele. A peça encena esta crise externa e interna ao teatro, fazendo com que
com um grito agônico no palco escurecido. Uma explosão de energia que sinalizava a
histórica que passou a fundamentar a sua crítica ao teatro de vanguarda, cuja linha de
antes mesmo do acirramento da censura. Conforme João das Neves, que em 1976
lotava os teatros com a peça O Último Carro, vista pela crítica como um dos exemplos
cultura. E, nesse momento, para aqueles que trabalhavam num teatro de palavras, em
297
NEVES, João IN:“Paulo Pontes: a arte da resistência. Rio de Janeiro, Versus, 1977, p. 19
171
[Grupo Opinião] tinham que ficar em segundo plano”. Paulo Pontes, co-autor de Gota
D’Água, endossava a mesma linha de análise298: “De 1968 para cá, o teatro brasileiro
novamente a recuperar a hegemonia do nosso teatro e a palavra vai sendo cada vez
mais valorizada”. Ao fim da entrevista, Pontes cita a própria peça, Gota D’Água
por críticos identificados com esta corrente e dividindo as atenções com os chamados
298
PONTES, Paulo (entrevista) IN: Paulo Pontes: Arte da Resistência. Op.cit., p. 39
299
Michalski recupera a importância das experiências formais, radicais e de derrubada de todos os tabus,
entre 1967 e 1973. Pontes contestava este tipo de teatro, sem considerar suas contribuições.
MICHALSKI, Y. Arte da Resistência, Op.cit.p. 5
300
O realismo, para esta corrente, poderia aparecer matizado pela forma do drama, da tragédia, da
comédia de costumes. Ou seja, funcionava mais como uma perspectiva do que como um gênero em si
mesmo.
301
Para uma visão crítica geral sobre estes grupos e suas contribuições, ver FERNANDES, Silvia. Grupos
teatrais dos anos 1970. Campinas, Editora Unicamp, 2000
172
Santo Inquérito (Dias Gomes), O Último Carro (João das Neves), Muro de Arrimo
(Carlos Queiroz Telles), Rasga Coração (Oduvaldo Vianna Filho, escrita em 1974 e
montada em 1979), Patética (João Ribeiro Chaves Neto, estréia em 1978), entre
retomada desta linha dramatúrgica303. Depois de frisar que o teatro brasileiro foi a área
que mais teria sofrido o impacto do “vazio cultural”, o autor saúda a cena teatral que
O Último Carro que “apesar da diversidade das suas soluções formais, têm em comum
como uma homologia sobre os impasses do “povo brasileiro” naquela altura dos anos
1970: “Vários pequenos dramas que permeiam a peça perdem sua autonomia e
302
TELLES, Carlos Queiroz. Muro de Arrimo - A realidade e a ficção (programa do espetáculo). São
Paulo, Acervo BIBLIOTECA Jenny Klabin Segall,1975. Monólogo sobre o pedreiro Lucas, que oscila entre
reflexõoes pessoais sobre sua condições e a a emoção coletiva diante de um jogo da seleção brasileira,
enquanto constrói um muro (estréia Nov/1975, dir: Antonio Abujamra); Ponto de Partida alude de maneira
alegórica à morte do jornalista Wladimir Herzog, transportando a ação para uma aldeia medieval na qual o
poeta local aparece misteriosamente enforcado no meio da praça (estréia set/1976, dir: Fernando
Peixoto); NEVES, João das. O Último Carro: anti-tragédia brasileira. Rio de Janeiro: Grupo Opinião, 1976.
Nesta peça, ambientada em um vagão de trem de subúrbio, que parece estar em uma louca corrida sem
motorneiro, vários operários e lumpens tentam tomar o controle da situação. A partir deste mote, surgem
individualidades em choque na formação de uma coletividade capaz de controlar o trem e evitar a
tragédia que se anuncia (direção João das Neves, estr: mar/1976, RJ); GOMES, Dias. “O santo inquérito”.
O teatro de Dias Gomes. Nesta, a ação se ambienta na Paraíba em 1750, durante a visitação do Santo
Ofício e perseguição à uma cristã nova que salva um padre do afogamento e acaba denunciada por este
como vítima do Demônio; BOAL, Augusto. Murro em ponta de faca. São Paulo, Hucitec, 1978 (Dir: Paulo
José, estréia em 1978), sobre a vida e as agruras do exílio. Outra autora de sucesso no final dos anos
1970, que flertou com esta corrente teatral foi Maria Adelaide Amaral, mais voltada para o perfil da classe
média brasileira e suas complexas relações com o regime militar. Ver textos da autora como “A
resistência” (1975) e “Bodas de Papel” (1978).
303
COUTINHO, Carlos N. “No caminho de uma dramaturgia nacional-popular”. Movimento 76,
13/12/1976, p. 16
173
desgovernada.
Gota D’Água, por outro lado, foi um dos maiores sucessos do teatro brasileiro,
na dialética local-universal. Mais do que uma peça de teatro, Gota D’Água tornou-se
políticas304. Miriam Hermeto sustenta que a peça foi o resultado da ação político-
cultural de um grupo de intelectuais por ela nomeada como “Grupo Casa Grande”,
Cultura Contemporânea”, além dos três ciclos de debates sobre economia, eventos
armada. O núcleo do grupo eram Paulo Pontes, Antonio Callado, Bete Mendes, Chico
Buarque, Max Haus, Zuenir Ventura. Luiz Werneck Vianna (que à época estava
clandestino e vivia na casa de Paulo Pontes) e Ferreira Gullar também circularam pelo
passou uma temporada importante em São Paulo, entre 1971 e 1975, cursando o
304
A historiadora Miriam Hermeto realizou um trabalho minucioso de análise de Gota D´Água e sua
historicidade, tomada como evento cultural e político multifacetado e lugar de memória para a cultura
brasileira sob o regime militar. Ver HERMETO, Miriam. ‘Olha a Gota que falta’: um evento no campo
artístico-intelectual brasileiro (1975-1980). Tese de Doutorado em História, UFMG, Belo Horizonte, 2010
305
HERMETO, Miriam. Op.cit. p. 89.
174
doutorado na USP, sob orientação de Francisco Weffort. Também circulou pelo Centro
quando foi preso, em 1975. Depois de um interrogatório policial, fugiu para o Rio de
Janeiro, onde se abrigou, “meio clandestino”, na casa de Paulo Pontes e Bibi Ferreira,
para concluir sua tese de doutorado, defendida na USP em 1976. Conforme Vianna,
enquanto Paulo Pontes escrevia Gota D’Água, ele escrevia Liberalismo e Sindicato no
resistência, bem como o contexto autoritário que se vivia, e suas contradições307. Por
outro lado, Vianna foi também uma espécie de articulador das oposições intelectuais
de Janeiro – cuja tradição remete à sociabilidade cultural mais difusa, oscilando entre
MDB, mas que não resistiria à criação do Partido dos Trabalhadores em São Paulo e à
ascensão do Brizolismo no Rio de Janeiro308. Por outro lado, este frentismo parece ter
O prefácio de Gota D’Água pode ser visto como a expressão ideológica mais
partir das conexões entre um projeto estético e uma crítica política à modernização
306
VIANNA, Luiz W. Liberalismo e sindicato no Brasil. Editora Belo Horizonte, 1999 (4ªed.). A primeira
edição é de 1976.
307
Entrevista de Luiz Werneck Vianna IN: RUGAI, Elide e FERNANDES, F. (orgs). Conversas com
sociólogos brasileiros. São Paulo, Editora 34, 2006, p. 169
308
Um dos documentos mais bem acabados desta tentativa de articular um frentismo intelectual e político
de oposição foi o programa do MDB para as eleições de 1974, elaborado por uma comissão de
intelectuais cebrapianos (Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Paul Singer, Luiz Werneck
Vianna e Francisco Oliveira), a convite de Ulisses Guimarães. Ver entrevista de Vianna IN: RUGAI, E. e
FERNANDES, f. (Orgs.). Op.cit. p. 168. Este frentismo reunia liberais de oposição, social-democratas e
comunistas na releitura do papel do Estado e das classes sociais na modernização brasileira e seria
objeto de crítica das forças que viam na transição política para a democracia um momento de refundação
do Brasil, de “baixo para cima”, prescindindo e criticando o papel histórico das elites e do Estado. Os
circuitos e implicações desta rede ainda estão por ser investigados em profundidade.
175
conservadora da sociedade brasileira309. O texto, cujo relator principal foi Paulo Pontes,
bastante influenciado pelas conversas com Vianna, começa com uma crítica direta à
utopia, um certo orgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novo são algumas
que esta rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos projetos colonizadores
sempre tiveram que assimilar, amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma
função dinâmica no processo social”. E conclui: “No auge da crise expressiva que o
diretor assumiu o primeiríssimo plano na hierarquia da criação teatral (...) uma fobia
pela razão ia tomando conta da nossa criação teatral (...) A linguagem, instrumento do
palavra, portanto, tem que ser trazida de volta, tem que voltar a ser nossa aliada”311.
Gota D’ Água constatava: “O povo sumiu da cultura brasileira (...) o povo brasileiro
como ponto de apoio para esta ofensiva contra o underground, não por acaso, os
Para esta linha de resistência cultural, nem corpo era “motor da obra”, como
afirmava Frederico Morais, nem o ato era a superação da representação, como queria
309
HERMETO, Miriam. Op.cit. p. 95-99.
310
BUARQUE, C. & PONTES, P. Apresentação. Gota D´Água: uma tragédia brasileira. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2008, p. XIV
311
BUARQUE, C & PONTES, P. Op.cit, p. xvii
312
Idem, p. xvi
176
experiência teatral, de atores e do público313. Se o “povo”, cada vez mais difícil de ser
palco e isento do choque proposto pelo teatro contracultural. A linha de ação cultural e
mais amplas do Partidão, recusava esta guerrilha cultural, numa atitude homóloga ao
campo da política, no qual o PCB recusava a guerrilha “de fato” como caminho válido
de combate ao regime.
próximo, sem dúvida, do realismo dramático, dito “burguês”. Aliás, muitos críticos,
ao teatro de agressão, se esvaziou por si. Persistir na sua linha hoje é infantilidade,
pois agride os seus próprios aliados e tentáculos. Na verdade, mesmo na sua primeira
313
Para o crítico José Arrabal, o debate em torno da palavra era uma falsa questão: “o teatro comercial
continuou com muita palavra como sempre”. ARRABAL, J. Op.cit, p.233
314
FEBROT, Luis. Crítica publicada no jornal O Estado de S.Paulo, em 24/12/1972, sobre a peça “Um
edifício chamado 200”. Republicado IN: Teatro de Paulo Pontes. Ed. Civilização Brasileira, p.73. Na
verdade, Luis Febrot era ligado ao Partido Comunista, tendo sido um dos responsáveis por convidar
Nelson Pereira dos Santos para ingressar no Partido, ainda nos tempos do Colégio Estadual Presidente
Roosevelt (anos 1940). Febrot ainda dirigiu o jornal O Reflexo (1947-1956), da comunidade judaica
progressista radicada no Brasil. Sua crítica militante abrigada em um grande jornal liberal e conservador,
é um exemplo da convivência de linhas ideológicas distintas, mas convergentes em determinados
momentos, no mesmo espaço ou instituição sócio-cultural. No caso específico, o Suplemento Literário
d”OESP foi um espaço importante e plural de crítica cultural, em contraponto ao conservadorismo político
da linha editorial do mesmo jornal.
315
Idem, ib.
177
histórica, ao nomear o período que vai do final dos anos 1960 e início dos anos 1970,
como sendo marcado pelo “vazio” e pelo “confusionismo ideológico” (sic!)316: “Essa
voltados para uma discussão concreta dos problemas vividos pelo povo brasileiro”.
Para a fala oficial do PCB, um dos melhores exemplos deste processo no campo
Partidão no teatro não era fruto de ações e iniciativas individuais coincidentes, e sim
reunida na frente cinemanovista rearticulada no início dos anos 1970317, lutava pela
316
“Nova etapa na luta cultural contra o fascismo”. Voz da Unidade, 125, junho 1976,p. 2
317
Deste grupo, podemos destacar: Cacá Diégues, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirzsman, Gustavo Dahl.
318
Sobre a relação entre Estado e cinema no Brasil dos anos 1970, ver: AMANCIO, Tunico. Artes e
Manhas da Embrafilme. O cinema estatal brasileiro em sua época de ouro. Niterói, EDUFF, 2000;
MALAFAIA, Wolney. “O Cinema e o Estado na Terra do Sol: A Construção de uma Política Cultural de
Cinema em Tempos de Autoritarismo”.IN: MORETTIN, Eduardo et alli. Historia e Cinema. São Paulo,
Editora Alameda, 2007, 327-350
178
pelo produto nacional, à medida que era dominado pelo produto estrangeiro, vale
dizer, norte-americano. Neste ponto, havia uma porta aberta para a convergência de
nacionalismo crítico ao novo contexto pós-64, este grupo acabou por ficar
popular” (Xica da Silva, Cacá Diégues, 1975, Amuleto de Ogum, Nelson Pereira dos
Santos, 1974), sem falar na posição de Glauber que, próximo ao produtor Luis Carlos
Barreto, sonha com a grande indústria do audiovisual brasileiro, sem abrir mão do seu
319
A PNC será analisada no capítulo 5.
320
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.p. p.117-158
321
Idem, p.105 e p. 132
179
ator e realizador ligado à contracultura, era direto na crítica ao Cinema Novo322: “Ao
pela revista oficial do INC um número impreciso de filmes marginais também veio à
tona em exibições mais ou menos regulares na Cinemateca do MAM (Rio). (...) Entre
cinema: cresce, brilha, aparecerá. E o cinema novo (alguma novidade) caiu do galho e
impossível porque a nova ordem gerou uma dispersão geral. E tem mais: a partir de
certo momento o cinema novo passou a se ocupar de coisas mortas” (segue elogio a
esquerda323: “E que eles mesmos, os cineastas que voltaram aflitos para construir a
indústria do cinema brasileiro, se é que eu sei quem são, preferem ignorar (...) e
vanguardas e da busca de novas linguagens324: “Os fatos são graves: os filmes dos
novos cineastas que se opuseram com grande publicidade aos filmes do ‘cinema novo’
322
NETO, Torquato. Torquatália (Geléia Geral). Op.cit. p. 189
323
Idem, p. 226 (coluna de 11/09/1971)
324
. ROCHA, G. “Carta a Alfredo Guevara” IN: BENTES, I. (org). Glauber:Cartas ao mundo. São Paulo,
Cia das Letras, 1997, p. 408
180
de baixo custo e padrão estético), em 1973, foi divulgado o Manifesto “Luz e Ação”. O
documento foi assinado por Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon
Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr. Carlos Diegues e Miguel Faria
Jr. Diz o manifesto325: “Nossos filmes mais recentes são a evidência de que queremos
cinema para nós só tem sentido enquanto invenção permanente em todos os níveis de
criação (...) o prazer da forma, as grandes utopias, o sentimento do mundo são direitos
formulou as teses mais radicais da cultura brasileira durantes os anos 1960 (...)
evitar que o cinema brasileiro se transforme, a curto prazo, na mais recente indústria
Sem abrir mão da “invenção” que nas lutas culturais do teatro poderiam ter
325
Disponível em “Em memória: projeto de base de dados sobre 15 cineastas brasileiros”. Cinemateca
Brasileira, 1996.
181
era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), São Bernardo (Leon
época e não por acaso, bate na tecla da continuidade. Sua tônica é de convite, dirigido
poder, para uma mobilização que suscite novas idéias, compatíveis com o ideário do
grupo, que faça o cinema brasileiro sair da crise. (...) apesar das habituais estocadas
acirrou ainda mais o debate e acabou por suscitar, mais para o final da década de
Hirszman, por exemplo, aceitava o diálogo com a política cultural do regime, mas tinha
claro que era necessário superar os dissensos internos dos cineastas para não
aceitação do mecenato oficial era o preço a pagar, perpassado por contradições, para
puder somar, para ampliar a frente que luta pela independência nacional e pela
326
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Op.cit. p.50
327
HIRZMAN, Leon. Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande. p. .31
182
democratização, isto é que é o importante. São etapas da luta. Para nós, o cotidiano
de fazer cinema, a prática desta luta, envolve questões para as quais as repostas
pessoas para o diálogo e evitar de colocar questões secundárias, que dividem, como
sendo prioritárias”. Cacá Diegues, ao optar por uma estética mais próxima da
chanchada, opção que ficava clara após seu filme de grande sucesso Xica da Silva
resistência cultural e flertar com o populismo e com a vulgaridade. Sua reação daria
início a uma das maiores polêmicas culturais dos anos 1970, a questão das “patrulhas
crise328.
Rocha desenvolveu uma linha de reflexão política toda própria, mas que ganhou ares
Terceiro Mundo, cada vez mais distantes da vaga guerrilheira de inspiração guevarista
dos anos 1960329, Glauber passava a ver no nacionalismo militar um élan progressista
328
RAMOS, José Mario. Op.cit. p.150.
329
A derrota político-militar das guerrilhas de inspiração guevarista (a morte do próprio Guevara na Bolivia,
ALN no Brasil, JCR na Argentina, Tupamaros no Uruguai), os golpes militares triunfantes, o alinhamento
de Cuba à União Soviética e a acomodação das tensões da Guerra Fria com a política de distensão entre
EUA e URSS e entre EUA e China levadas a cabo por Richard Nixon e Henry Kissinger constituem
exemplos deste refluxo da esquerda revolucionária nos anos 1970.
330
A “Revolução dos Cravos” em Portugal (25 de abril de 1974), quando os militares assumiram a postura
anti-colonialista e democratizante, e o governo do General Velasco Alvarado no Peru (1975-1978),
quando o Exército peruano governou com uma plataforma nacionalista e reformista, parecem ter
impactado Glauber Rocha e sugerido uma revisão do papel das Forças Armadas na realização da utopia
nacionalista e anti-colonial. O governo Geisel e seu tom “nacional-desenvolvimentista” e não-alinhado, foi
lido por esta chave interpretativa, um tanto equivocada, mas coerente com o nacionalismo terceiro-
mundista de Glauber, mais forte, ao que parece, do que outras vertentes formadoras de sua opinião
política.
183
manifestou certa simpatia pelo governo Geisel331. De maneira mais simples e direta,
***
primeira metade dos anos 1970. Estas áreas foram cindidas por embates internos
anterior. Ambas se tornavam cada vez mais dependentes do mercado que impunha
expressaram escolhas difíceis, com contradições próprias em cada área: qual o limite
sem a qual não haveria efetiva resistência cultural? Como se relacionar com o circuito
sócio-cultural, cada vez mais mercantilizado, pelo qual a arte se realizava? Como
331
ROCHA, G. (carta de Glauber a João Carlos Rodrigues) IN: BENTES, I (org). Cartas ao Mundo. São
Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 460-463. Nesta carta, Glauber defende explicitamente as pretensas
virtudes do nacionalismo militar terceiromundista.
184
canônicas filiadas a um projeto cultural herdeiro do modernismo (em sua vertente mais
nação, iniciados nos anos 1930, mas em vias de exaurir-se, historicamente falando.
Neste sentido, a década de 1970, neste sentido, marcaria o fim deste amplo ciclo
cultural e ideológico.
185
CAPÍTULO 5
regime militar. Também acabou sendo o código e o canal utilizado pelo Estado para
compreensão crítica das lutas culturais do período não deve ficar refém da dicotomia
contraditório, no qual uma parte significativa da cultura de oposição foi assimilada pelo
mercado e apoiada pela política cultural do regime. Mesmo reconhecendo que havia
entre si e destes com o Estado. De outra parte, a aproximação tática entre liberais e
332
Este capítulo é uma versão ampliada do texto “Vencer Satã só com orações? Políticas culturais e
cultura de oposição no Brasil dos anos 1970” IN: ROLLEMBERG, D. et all. A construção social dos
regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro, Ed.
Civilização Brasileira, 2010.
186
média jovem e intelectualizada. Sérgio Miceli apontou esta tendência que se inicia no
final dos anos 1960 e se estende ao longo dos anos 1980333: “O êxito nacional e
333
MICELI, Sérgio. “O papel político dos meios de comunicação” IN SOSNOWSKI, S e SCHWARZ,
Jorge. (orgs). Op.cit.p. 60-61
187
pois a indústria ainda não constituía um sistema plenamente integrado que pudesse
dirigir e prever essa produção cultural. Além disso, apostava-se no alto valor agregado
garantiam lucros maiores a médio e longo prazos. No caso da música popular, esse
“gênero” MPB.
Rede Globo, à época acusada de ser aliada do regime, deu espaço para atores e
dramaturgos comunistas, como Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Dias Gomes,
Francisco Milani, Carlos Verezza, Armando Costa, entre outros. É interessante notar
neste caso, como a política de “ocupação dos espaços” que marcou a atuação cultural
Em relação aos casos específicos de Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho é preciso
destacar que bem antes do golpe militar estes profissionais já produziam para os
Vianinha é inegável que sua relação com a televisão fica mais intensa a partir de 1968,
quando ele assumiu o meio como um espaço válido para disseminar a dramaturgia do
188
apenas pelo rompimento sistemático e contínuo, após o golpe militar, dos circuitos
intestino nos agentes sociais que formavam o amplo leque de oposições ao regime.
contraponto foi marcado por duas posições de recusa, cujos valores e produtos
apontam para uma idéia de “resistência cultural” bem mais radical, distante da
partir do final dos anos 1960, a estrutura do mercado cultural tinha sofrido uma
334
PELLEGRINI, Sandra. “Televisão, política e história: dimensões da problemática social na
teledramaturgia de Vianinha”. Revista de História Regional, UEPG, Ponta Grossa, 6/2, 2001
189
mudança significativa, surgindo uma nova classe média, cada vez mais escolarizada,
335
Expressão criada por SILVA, Flamarion Maués Pelúcio. Op.cit.
190
1970 – 4.259.000
1971 – 5.750.000
1972 – 6.750.000
1973 – 7.780.000
1974 – 9.000.000
1975 – 10.140.000
1976 – 11.150.000
1978 – 12.000.000
1979 – 13.000.000
1980 – 14.518.000
nacional após o incremento dado pela Política Nacional de Cultura, via Embrafilme, a
partir de 1975.
crescente entre civis liberais e militares autoritários, ainda que esta relação tenha
336
Para uma análise qualitativa mais detalhada destes dados, ver ORTIZ, Renato. “O mercado de bens
simbólicos” IN: Op.cit. p. 113-148. Os quadros 1 a 4 foram extraídos de ORTIZ, p. 122, 123, 125, 127
(respec.). O quadro 5 foi extraído de MICELI, S. “O papel político dos meios de comunicação de massa”
IN: SOSNOWSKI, S. e SCHWARZ, J. (orgs). Op.cit. p.61. O quadro 6 foi montado pelo autor a partir das
“Séries Históricas” – IBGE, disponíveis em www.ibge.gov.br
191
(MDB), construído ainda nos anos 1960 e consolidado após a expressiva votação que
esta frente oposicionista teve nas eleições de 1974337. Aliás, a tese de que o PCB
estava por trás desta surpreendente vitória eleitoral da oposição parlamentar, custou-
lhe caro, pois estimulou a vaga repressiva de 1975 contra o Partido que matou 11
liberais, muitas vezes de matiz conservador. O ponto em comum entre esses setores
como se ambas não fossem perpassadas por contradições, divisões e conflitos entre
337
Sobre a atuação do MDB (1966-1979) ver MOTTA, Rodrigo Patto S. Partido e Sociedade: a trajetória
do MDB. Ouro Preto, Editora UFOP, 1997. Sobre as relações entre o PCB e o MDB durante a ditadura ver
a entrevista de Roberto Freire disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/303766.pdf
(acessada em 31/8/2010) . Sobre a onda repressiva contra o PCB, ver MARKUM, Paulo. Vlado – retrato
de um homem e de uma época. São Paulo, Brasiliense, 1985. Lembremos, mais uma vez, que o Partido
Comunista Brasileiro, à época, apoiava oficialmente e usava a legenda do MDB, grande frente liberal-
democrática de oposição. Em que pese a existência de um vigoroso movimento social e de uma nova
esquerda crítica e cheia de potencialidades, o processo de transição negociada para o regime civil terá
nos liberais agrupados no (P)MDB o seu ator mais decisivo, sobretudo a partir de 1982. Ver
FIGUEIREDO, Cesar A.S. A relação dos PC's com o MDB-PMDB no cenário da transição e as eleições
de 1982 no RS. Mestrado em Ciência Política, UFRGS, 2009
338
CODATO, Adriano. “O golpe de 64 e o regime de 68”. História, Questões e Debates, 40, 11-36, Editora
UFPR, 2004
192
Contracultura, muito significativa entre a juventude de classe média baixa dos grandes
de vista político, mas nos seus aspectos mais amplos (comportamentais, culturais e
ruptura com a linguagem “realista” e com os valores “nacionalistas”, tão cara aos
comunistas. A “poesia jovem”, o “cinema marginal”, o teatro jovem podem ser tomados
O que os informava era a busca de uma nova ligação com a cultura popular,
339
Para o caso da música popular esta afirmação não vale, pois a contracultura musical (Caetano, Gil e
mesmo os “malditos” Jards Macalé e Luis Melodia, ocupavam faixas importantes, ainda que menores, do
mercado fonográfico.
340
A questão da “herança cultural” para a esquerda comunista é fundamental e pressupõe, na linha de
Georg Lukacs a incorporação dos autores e obras considerados progressistas, dentro da tradição realista
do cânone ocidental. Ver RUBIM, Antonio C. “Partido comunista e herança cultural no Brasil”. Ciência e
Cultura. 41/6. jun 89, p. 552-565
341
Para um aprofundamento desta critica ao nacionalismo e ao elitismo cultural de esquerda, ver: CHAUÍ,
Marilena. Conformismo e a resistência: aspectos da cultura popular. São Paulo, Brasiliense, 1985 e
BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo, Cia das Letras, 1989.
193
amadores de Teatro que proliferaram nos anos 1970 são exemplos desta tendência de
processo de produção artesanal, (ii) uma estética marcada pela linguagem direta,
trabalhadores das periferias urbanas e, (iv) um novo tipo de gestão das empreitadas
estes grupos eram diferentes da vertente teatral ligada ao Partidão, que se pautava
estes grupos independentes fossem iguais entre si, pois tinham muitas variáveis
Marcos ou Carlos Queiroz Telles. Havia ainda grupos que encenavam os dois tipos de
texto, como foi o caso do Forja de São Bernardo. O que parecia ser comum a estes
deslocando suas sedes para regiões mais periféricas da cidade, como aconteceu com
Arena343.
de 1979, em Osasco (SP), e Pensão Liberdade (1980), escrita e montada pelo Grupo
342
RIDENTI, Marcelo. “Todo o artista tem que ir aonde o povo está”. IN: Em busca do povo brasileiro.
p.317-364.
343
O texto Em busca de um teatro popular (Santos, Confenata, 1981), lançado em 1977 pelo grupo
Teatro União e Olho Vivo, pode ser visto como uma tentativa de afirmar uma proposta geral para o teatro
popular, enfatizando: amadorismo militante, incorporação da cultura popular, busca de uma ‘estética
popular’, prioridade para apresentações em bairros periféricos a preços reduzidos, interação com a
comunidade e com outros grupos de “teatro popular” na troca de experiências políticas e estéticas.
194
Forja, de São Bernardo, foram marcos neste tipo de teatro. Na primeira, a encenação
periférico “Os grupos que sobreviveram produzindo bem durante um período de tempo
maior foram aqueles que conseguiram armar um projeto, ainda que de dimensões
estas duas correntes alternativas, disputando não apenas a direção política dos
movimentos sociais, mas também sua direção cultural. A contracultura jovem era logo
nova esquerda era qualificado como “esquerdista, sectário e basista”. Estes adjetivos
segmento nas lutas culturais. Entretanto, se a crítica ao teatro de vanguarda era quase
344
GARCIA, Silvana. Teatro da Militância. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004 (2ª), p. 146. Neste livro,
Silvana Garcia lista vários grupos “independentes” surgidos no contexto da militância em bairros e em
movimentos sociais: Núcleo Expressão de Osasco (1972-1979), Teatro Circo Alegria dos Pobres (1974-
1982), Núcleo Independente (1969-1979), Cordão (1974-1977), Galos de Briga (1976-1985), Truques,
Traquejos e Teatro (1977-1982), Grupo Ferramenta (1978), Ferramenta (1979-1985). Ver p. 128-146.
345
ALVES, Mariangela. “Quem faz o teatro” IN Anos 70: ainda sob a tempestade. Op.cit.,.p; 257. Sobre a
história do TUOV ver: TORRES, Adamilton Andreucci. Teatro União e Olho Vivo: uma pista para outra
cena brasileira em São Paulo. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas, ECA/USP, 1989
195
bairros periféricos da grande São Paulo, citando o exemplo do Teatro do Núcleo, como
dramaturgia ligada ao PCB) e o teatro de “produção popular” (cujo grande exemplo era
dessa maneira uma dupla recusa, ao mercado e ao Estado. Este último, por outras
A cultura não fez aproximar, apenas, alguns atores da oposição civil. O regime
militar, por sua vez, assumindo a carência de intelectuais orgânicos de direita que
pudessem ajudar a veicular seus projetos ideológicos, fez uma leitura pragmática da
código comum deste improvável diálogo era o nacionalismo cultural, que estabeleceu
rupturas - constituiu a dinâmica da cena cultural brasileira dos anos 1970, que se
montava sob uma estrutura social cada vez mais mediada pelo mercado.
346
PEIXOTO, Fernando. “Teatro 76: em busca da realidade perdida”. Movimento 81, 17/1/1977
347
“O prazer da reflexão”. Movimento 36, 8/3/1976, p.15
196
policial. A cultura, bem como as artes, serviria como um código comum para estes
canais. Este diálogo poderia incluir até os artistas de esquerda, normalmente mais
valorizados pelos grupos formadores de opinião, identificados com uma cultura crítica
questão cultural sempre ocupou, ainda que de maneira pouco orgânica, a agenda do
capitalista assumida pelo regime, “mercado era cultura”. E, sobretudo, cultura era
mercado. A repressão sobre a cultura tinha efeitos problemáticos sobre o mercado, até
porque o setor mais dinâmico do consumo cultural se voltava para a classe média
valorizavam a cultura, mas por motivos diferentes. Para a oposição, a esfera cultural
militar e disseminação dos valores democráticos. Para o governo militar, a cultura era,
348
“MEC diz que há subversão até no Mobral”. O Estado de S.Paulo, 31/jan/1974, p. 5.
197
seu apoio à ditadura ou, pelo menos, neutralizá-la como massa de oposição ativa.
Abusando das citações extraídas de vários líderes revolucionários como Lenin, Mao,
propaganda sub-reptícia, através das letras e artes, e muitas vezes, de meios ilegais
pela propaganda de descrédito em seus objetivos, seus líderes e seus seguidores (...)
temos verificado que certos elementos se vêm infiltrando nas áreas de educação e
utilizando novas técnicas para difundir suas mensagens, baseadas em temas políticos,
rótulo de “cinema novo brasileiro” alguns produtores valem-se de temas regionais para
ideológica e de dissolução dos bons costumes. Nos últimos anos tem havido uma
grande escala, para a decadência moral da sociedade (...) A técnica por eles
empregada chega a levar até pessoas com um certo grau de maturidade a ficarem
palco. No Brasil há muitos grupos qu, acobertados sob o rótulo de ‘arte’, movimentam-
“Grupo Teatro Oficina Sociedade Civil Ltda” como exemplo desta nova “técnica
comunista”.
Eliminar dos parques e edifícios toda boa escultura, substitui-la por “configurações
informes, sem graça e sem significação” (sic!); 3) Fazer desaparecer as leis que
rejeitam a “obscenidade” (sic!) nos livros, jornais, cinema, teatro e TV; 4) Infiltrar-se
199
nas igrejas e substituir a “religião revelada pela religião social” (sic!); 5) “Desacreditar”
a família como instituição, favocerendo o amor livre e o “divórcio fácil”. E advertia que,
educacionais”.
ambigüidade que tomava conta do regime na sua relação com o meio artístico e
cultural, ora visto como objeto de controle, ora como meio de cooptação e diálogo com
setores oposicionistas. Obviamente, boa parte das afirmações do documento não tem
católico e o anti-comunismo delirante. Ambos, já não tinham, nos anos 1970, a mesma
sustentação ideológica e social que apresentavam, por exemplo, nos anos 1930,
imprensa) era vista como nobre atividade intelectual por boa parte da sociedade. O
campo da cultura foi valorizado como canal de comunicação do Estado para com a
papel central, ainda que contraditório, neste jogo, no qual práticas de “cooptação” e
A nova política cultural do regime militar não passou despercebida no PCB, até
porque os artistas que gravitavam em torno do Partido eram os que mais tinham
ênfase na resistência que não se deixava cooptar, limitavam o debate efetivo em torno
regime, que por um lado matava comunistas nas câmaras de tortura e, por outro,
campo cultural. No primeiro artigo349, o jornal afirma que a “única maneira do regime
lidar com a cultura de oposição, era a repressão aberta contra intelectuais (...).
cultural (..) ainda que possa ter encontrado um relativo êxito junto a algumas figuras
seu conjunto. O que une esta camada intelectual, qualquer que seja a orientação
de criação: isso, o ‘mecenato’ de Passarinho e Nei Braga não pode nem de longe
tolerar”.
Partido, a se julgar pelas poucas matérias que discutiram a questão cultural nos anos
deixando claro que o importante era manter uma produção cultural crítica, ainda que
de documentos oficiais voltados para as artes e a cultura não permitem avaliar o grau
artistas comunistas às políticas culturais do regime, ainda que ela não significasse
capitulação do espírito crítico das obras. Enfatizava que a ditadura era destruidora da
cultura brasileira e que os intelectuais tinham que manter a unidade, afirmando a tática
que, em meados dos anos 1970, a ditadura estava mais sofisticada no manejo da
cultura, articulando censura, vigilância policial e mecenato. Este último, não sendo
fechado aos artistas mais críticos ao regime, complicava ainda mais o debate sobre
“como resistir”.
conteúdo crítico, em si mesma, era vista como antídoto contra a ditadura, desde que
em que pode e deve ser buscada a criação cultural (e por isso, ela não comporta
desenvolver e consolidar uma ampla frente antiditatorial, precisa dos artistas, dos
homens de cultura. Mas nós, comunistas, não podemos deixar de lembrar aos artistas
350
“Contra a ditadura obscurantista, a criação cultural é uma forma de luta”. Voz Operária, 129, dez/1976,
p. 2
351
“Questão em debate: as relações do artista com a atividade política”. Voz Operária, 139, out/1977, p.8
202
e aos homens de cultura em geral que eles também precisam de uma oposição
perigoso.
1970 sem levar em conta a política cultural352 do Regime Militar. As ações que partiam
não tenha sido invenção do regime militar, o fato é que seu mecanismo e legislação
352
Conforme Teixeira COELHO, política cultural pode ser definida como “ciência da organização das
estruturas culturais” COELHO, T. (org.). Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo, Iluminuras,
2001, p. 293), Ainda conforme o autor, as políticas culturais “freqüentemente apresentam-se
ideologizadas, atuando na legitimação da ordem político-social”. As políticas culturais encontram-se
motivadas por dois tipos de exigência: a) pela idéia de difusão cultural, baseado num “núcleo positivo” da
cultura que deve ser compartilhado pelo maior número de pessoas possível e; b) pelas demandas sociais,
reagindo conforme as reinvindicações são apresentadas pelos atores sócio-culturais (p. 294). Como
veremos, estas duas demandas foram levadas em conta na definição da política cultural do regime militar,
sobretudo após 1975.
353
A rigor, a censura às diversões públicas durante do regime ainda estava ancorada, em linhas gerais,
no Decreto 20.493, de 24/1/1946, acrescido da Lei 5536 (21/11/1968) e do Decreto-Lei 1077 (26/1/1970).
O primeiro regulamentava a censura à peças teatrais e filmes, bem como criava o Conselho Superior de
Censura (só implementado em 1979). O segundo instaurava a censura prévia, com base na crença de
que a “subversão” na cultura se alimentava da “perversão moral” e diluição dos “bons costumes”. Além
destas reformas normativas e doutrinárias, a Censura Federal se reorganizou do ponto de vista
administrativo, tentando ampliar, coordenar e profissionalizar seus quadros, sobretudo após 1972. Do
ponto de vista do alcance, a censura oficial foi mais presente e sistemática no campo das “diversões
públicas” (cinema, teatro, música popular, televisão, rádio), do que na literatura e nas artes plásticas. A
censura à grande imprensa, a rigor, era feita de maneira informal, através de canais de comunicação (ou
de pressão, se quisermos) entre o Ministério da Justiça, os donos das empresas jornalísticas e os
editores-chefes. Ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam, ou acabam. Op.cit; KUSHNIR, Beatriz. Cães
de Guarda. Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro, Boitempo Editorial,
2004. Para uma visão geral sobre a censura ver FICO, Carlos.. (Org.). Censura no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2010.
203
complicada, pois havia alto custo político em censurar jornais ligados a grandes
Mesmo a censura ao cinema também não era simples, visto que a indústria
cinematográfica era vista como o elo mais frágil da indústria da cultura no Brasil,
artes plásticas também ocorreram com freqüência355, mas não era tão sistemática e de
coordenadas a partir dos aparelhos de Estado, havia uma forma indireta de política
354
Sobre a censura ao teatro brasileiro ver GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam. Op.cit.;
sobre a censura ao cinema ver SIMOES, Inimá. Op.cit.; sobre a censura à música popular ver CAROCHA,
Maika L. Pelos Versos das canções: um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a
ditadura militar brasileira (1964-1985). Dissertação de Mestrado em História Social, UFRJ, 2007. Sobre a
censura a telenovelas ver RIBKE, Nahuel. “Telenovelas writers under the military regime in Brazil: Beyond
the cooptation and Resistance dichotomy”(digit, 2009).
355
Sobre o controle censório e repressivo nestas áreas, ver FREITAS, A. Op.cit. e MAUES, Eloisa A.
Op.cit ; MARCELINO, Douglas Attila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de
livros e diversões públicas nos anos 1970. Dissertação de Mestrado em História Social, UFRJ, 2006
356
José Brunner considera a política cultural do regime militar brasileiro uma variável do “modelo
mercantil”, marcado pelo clientelismo voltado para o mercado, aliado à prática de mecenato público,
visando proteger a alta cultura e conservar o patrimônio nacional. . Apesar de bastante presente, o
mecenato do Estado é complementar e subordinado ao mercado. Outro dado particularmente importante
para entender a aparente contradição na atuação do regime militar na área cultural, é a inexistência,
nesse modelo, de uma ideologia central, sendo que as pequenas ações de fomento se inscrevem nas
redes clientelistas, fenômeno que Brunner chama de “clientelismo pluralista”. BRUNNER, José Joaquin.
América Latina: cultura y modernidad. México, Grijalbo/CONACULTA, 1992, p. 221
204
357
“integração nacional” . Nas palavras de Marcelos Ridenti358: “Concomitante à
Ministério da Educação e Cultura, que tinha à frente Ney Braga, o regime buscaria
censura à imprensa360. Esses três sistemas repressivos atuaram sobre a vida cultural,
produtos culturais.
longo de todo o regime. Seus objetivos e intensidade variaram entre 1964 e 1985.
Houve, em linhas gerais, três momentos repressivos sobre a área cultural que diferem
357
ORTIZ, R.Op.cit.
358
RIDENTI, M. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP,
17/01, junho 2005, p. 97
359
Para uma radiografia ampla do sistema repressivo ver FICO, Carlos. Como eles agiam: os
subterrâneos da ditadura militar. Espionagem e policia politica. Rio de Janeiro, Record, 2001
360
KUSHNIR, Beatriz. Op.cit, p. 187
361
BREPOHL. M. “A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no
Brasil. Revista Brasileira de História, 17/34, 203-220, 1997
205
O primeiro momento repressivo sobre a vida cultural vai de 1964 a 1967, e foi
consagrada na imprensa, logo após o golpe militar. Outra característica desse primeiro
ciclos de maior ou menor rigor entre 1964 e 1967, uma vez que a base legal da
início de 1979, foi marcado por uma prática repressiva orgânica e sistêmica, não
apenas por meio da violência policial direta sobre a área cultural, mas também pela
movimentos sociais e regime autoritário chegou a tal ponto que a cultura efetivamente
caminho da luta armada. Portanto, o controle da cultura, neste período, fez parte da
da oposição não eram levadas a sério pela repressão e pela censura, pois perspectiva
para atuar como censor implacável das manifestações culturais. Alguns fatos jurídicos
e burocráticos traduzem este processo. Em primeiro lugar, foi promulgada uma nova
lei de censura (Lei 5536, novembro de 1968), voltada para obras teatrais e
somente em 1979). Logo depois, surgiu o famigerado Decreto Lei 1077, de janeiro de
seria abrandada a partir de 1977, a censura a temas morais no campo das diversões
públicas continuaria vigorosa até o final do regime militar, uma vez que era anterior e
conteúdo e linguagem para a expressão artística. Havia uma nova ênfase no controle
totalmente vetadas mais de 400 músicas. Este período também foi marcado pela
362
Sobre as diferenças, interações e tensões entre censura moral e censura política ver FICO, Carlos.
"Prezada Censura": cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, p.251-286,
2002
363
ALBIN, Ricardo Cravo. Driblando a censura. De como o cutelo vil incidiu na cultura. Rio de Janeiro,
Gryphus, 2002
207
tendência histórica do Estado nacional brasileiro que, desde meados do século XIX,
elo principal de “integração nacional” num país marcado por fortes regionalismos e
entanto, configurar uma “política cultural de conteúdo” agressiva e impositiva, tal como
havia sido aquela empreendida pelo Estado Novo getulista (1937-1945)364. A questão
questão da cultura nacional era vista como tática de defesa contra o imperialismo
defesa da nação, ainda que sob signos ideológicos trocados. Além disso, o Estado
procurou normatizar diversas iniciativas na área cultural, tentando construir uma alta
Conselho Federal de Cultura365. Este conselho era formado por 24 membros e tinha
364
Sobre a política cultural no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), ver: WILLIAMS, D. Cultural
Wars in Brazil. The first regime Vargas. Durham, Duke Univ. Press, 2001.; VELLOSO, Monica P."Os
intelectuais e a política cultural do Estado Novo". Revista de Sociologia e Política. UFPR, Curitiba, n. 9.,
1997, p. 57-74.CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no Varguismo e no
Peronismo. São Paulo, Ed. Unesp. 2009 (2ªed.).
365
MAIA, Tatyana de Amaral. A construção da memória em tempos autóritários: a experiência do
Conselho Federal de Cultura (1966-1975). Tese (Doutorado em História), Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, 2006. O exame de alguns nomes que passaram pelo Conselho pode servir de base para uma
análise de perfil da intelectualidade conservadora pró-regime, ainda relativamente pouco estudada.
Citamos alguns: Gustavo Corção, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Raquel de
Queiroz, Helio Vianna, Ariano Suassuna, Josué Montello (primeiro presidente). Tatyana Maia aponta de
maneira arguta que o núcleo do CFC era formado pelos setores modernistas conservadores, atuantes
junto ao Estado desde os anos 1930. Por outro lado, a progressiva marginalização destes intelectuais na
própria burocracia federal da cultura em meados dos anos 1970, é sintomática de uma configuração
histórica completamente diferente do setor cultural.
208
patriota.
pontes entre o regime e os setores mais dinâmicos e reconhecidos nas várias áreas
pressão organizados, para discutir uma futura política cultural. Esta aproximação ainda
conviveu muito bem com as políticas repressivas, foi sintetizado pelo documento
366
Ver CALABARE, Lia. “Política cultural no Brasil: um histórico”. Paper apresentado no I ENECULT,
Salvador (BA), 2005, disponível em http://www.cult.ufba.br/enecul2005/LiaCalabare.pdf , acessado em
01/09/2010. Sobre a experiência piloto deste tipo de mecenato, ainda em escala municipal, que inspiraria
a PNC, ver DALMÁS, Carine. “Política cultural e MPB em Curitiba na década de 70”. Comunicação
apresentada no VIII Encontro Regional de História, ANPUH, Curitiba, 2002.
367
COHN, Gabriel. “A concepção oficial da política cultural nos anos 70”. In: MICELI, Sérgio. Estado e
Cultura no Brasil. São Paulo, DIFEL, 1984, p. 87-96.
209
cultural do governo, com aporte generoso de verbas. Ainda foram criados órgãos
que seu objetivo era “zelar pelo patrimônio cultural da nação, sem intervenção do
Estado, para dirigir a cultura”369. O recado era claramente destinado aos produtores
diálogo tenso entre oposição e governo, cujo fiador, ao fim e ao cabo, era o generoso
368
MICELI, Sérgio. “Teoria e prática da política cultural oficial no Brasil” IN: Estado e Cultura no Brasil. p..
108
369
MEC. Política Nacional de Cultura, p.5
370
SILVA, Varderli Maria. A construção da política cultural no Regime Militar: concepções, diretrizes e
programas. Mestrado em Sociologia, FFLCH/USP, 2001
371
A questão da “qualidade” do produto cultural, que em última instancia nos remete às hierarquias sócio-
culturais de apreciação estética e afirmação do gosto, era outro ponto de aproximação entre setores da
oposição de esquerda e a burocracia da cultura. Ambos criticavam o “mau gosto” na linguagem, a
vulgaridade e o erotismo, coincidindo na busca de um certo decoro estético.
210
produtores culturais de esquerda. O texto assumia que seu “objetivo maior era a
realização do homem brasileiro como pessoa”372 e, para tal, era preciso defender a
cultural massificado e, neste sentido, também coincidia com parte das críticas de
notadamente os importados.
positivo374, evitando apenas os temas e abordagens vetados pela censura oficial, tais
políticas, entre outros. A PNC tinha como eixo de atuação central o estímulo às áreas
de teatro e cinema, que, não por acaso, junto com a música popular, formavam o
conteúdo em si e mais pelo controle dos circuitos socioculturais pelos quais as obras
repressiva iniciada ainda em 1964, qual seja: cortar os elos da cultura nacional-popular
esquizofrenia na vida cultural era facilitada pela exclusão escolar e pela progressiva
canalizada pelo mercado, seja porque o sistema escolar, excludente, não ajudava a
(ainda que chanceladas pelo mercado) e gosto popular massificado, tem estimulado
esquerda dos anos 1970375. O problema é que este revisionismo deixa escapar um
ponto importante, e que não é incompatível com a relativa elitização do consumo deste
tipo de cultura (aliás, foi por ele alimentado): o papel da esquerda na re-estruturação
375
Ver, por exemplo, ARAUJO, Paulo Cesar. Op.cit; ALONSO, Gustavo Ferreira. “Quando a versão é
mais interessante que o fato: a construção do mito Chico Buarque”. IN: REIS, Daniel e ROLLAND, Denis
(orgs). Intelectuais e modernidades. Rio de Janeiro, Editora FGV, p. 161-194
212
tese questionável, que imputa ao pretenso elitismo e sofisticação das obras, a causa
herança cultural de esquerda dos anos 1960 e 1970, base do cânone, e o consumo
quase sempre como adesão a uma linguagem sofisticada e inacessível, por princípio,
consumidor de cultura. Nem um, nem outro explicam o processo cultural consolidado
nos anos 1970. Em primeiro lugar, porque os produtos artísticos criados pelos artistas
dimensões, em alguma medida, estava incorporada por esta arte de esquerda (samba,
cotidiana, etc). E, por último, é preciso levar em conta que a construção do gosto não
nos anos 1960 não se massificou nos termos em que foi pensada por seus artífices e
como patrimônio comum perdeu sentido nas últimas décadas não apenas pelas justas
críticas intelectuais que a apontam como uma porta para a imposição de valores
tentativa de dotar os produtos formatados pela indústria da cultura nos anos 1970, da
Dias Gomes, as canções da MPB, os filmes de Nelson Pereira dos Santos, para citar
alguns exemplos, dialogam diretamente com esta herança, ou seja com a literatura
engajada dos anos 1930 (de Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos) e a
política cultural do regime partia do princípio que havia uma “boa” herança cultural
376
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit; ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. Op.cit.; o caso
da música e da televisão são exemplares deste processo histórico.
377
RIDENTI, Marcelo. A brasilidade revolucionária. Op.cit.
214
Estado. O INC foi extinto em 09/12/1975, pela mesma lei que ampliou a Embrafilme
apêndice do INC. Caracterizava-se como uma empresa de economia mista, sendo que
estímulo à filmagem de obras literárias para fazer seu filme, de grande impacto na
cultural era tal, que o mesmo filme ficou retido na censura por muitos meses,
falência.
de 1974, Roberto Farias foi nomeado como presidente, tendo Gustavo Dahl, oriundo
sucesso, muitos deles dirigidos por cineastas identificados com a esquerda, foram
378
Em 1979, Celso Amorim foi nomeado presidente, substituindo Roberto Farias. Em 1982, foi nomeado
Roberto Parreira. Ver AMÂNCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: o cinema estatal brasileiro em
sua época de ouro (1977-1981). Niterói, EDUFF, 2000.
215
regime militar, tais como: Sagarana, o duelo (Paulo Thiago), Dona Flor e seus dois
(Glauber Rocha), Pixote (Hector Babenco), Eu te amo (Arnaldo Jabor), O homem que
virou suco (João Batista de Andrade), Pra frente Brasil (Farias), Eles não usam black-
do filme e participando dos lucros. É preciso destacar o caráter complexo desse viés
ditadura, como foi o caso notório de Pra Frente Brasil, que encenava a tortura contra
diversos aparelhos e instâncias do Estado não era unívoca e muitos destes filmes
causaram mal-estar dentro do Governo e nas Forças Armadas, como ocorreu com o
próprio Pra Frente Brasil, pivô de uma grande crise interna na Embrafilme.
ligados ao Cinema Novo, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo
Malafaia379: “Se levarmos em consideração que, justamente nesses anos setenta, são
379
MALAFAIA, Wolney. “O cinema e o Estado na terra do sol:a construção de uma política cultural de
cinema em tempos de autoritarismo”. IN:; MORETTIN Eduardo et alli. Op.cit.
216
mais jovens e transgressores: a recusa dos termos desta política de mecenato oficial e
filmes eróticos de baixa qualidade técnica e estética, do que aderir aos padrões
Teatro, criado em 1937 e extinto em 1981, quando foi fundado o INACEN (Instituto
liberais e mecenato oficial, que não estava isenta de conflitos com outros setores do
culturais para o setor, começou com a criação da ACET (Associação Carioca dos
Empresários Teatrais), em 1969, pelo próprio Orlando Miranda e por Paulo Pontes.
governo para desenvolver uma política para a área que, ao fim e ao cabo, envolvia
380
RAMOS, José Mario Ortiz. Op.cit.
381
GARCIA, Miliandre. Políticas culturais no Regime Militar: a gestão de Orlando Miranda no SNT (1974-
1979). Relatório Técnico-Científico de Pesquisa. Pós-Doutorado, USP/FAPESP, São Paulo, 2010
217
não apenas a questão do apoio à produção de peças, mas também a rediscussão dos
foram revitalizados os prêmios anuais criados em 1964, sem falar na bem sucedida
mercado. Essa colaboração foi criticada pela esquerda não vinculada ao PCB e pelo
teatro ligado à contracultura383 e aos movimentos sociais, num processo similar, ainda
que não idêntico, ao campo do cinema, sobretudo porque se baseava num paradigma
várias áreas da cultura que marcou o regime no final da década de 1970, momento em
adiante.
é que o governo percebeu que poderia usar a televisão para consolidar seu projeto
382
“TEATRO: onde a limitação dá prejuízo”. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 22 dez. 1973 (apud
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam.... , p. 30
383
MOSTAÇO, Edélcio. Op.cit.; ESCOBAR, Carlos Henrique. “Um intelectual sob suspeita”. IN: KHÉDE
Censores de pincenê e gravata: dois movimentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri,
1981
218
como Dias Gomes e Oduvaldo Vianna Filho, já atuavam na Rede Globo desde o inicio
podemos esquecer que o teatro era um dos eixos centrais da cultura de esquerda,
desde o final dos anos 1960, em função da presença de público jovem e estudantil.
política cultural do regime militar e do diálogo com a esquerda foi a Funarte (Fundação
importante papel em três áreas: artes plásticas, folclore e música popular385. Assim,
governo. Seu primeiro diretor, Roberto Parreira, foi um dos redatores do Plano
Nacional de Cultura.
384
PIQUEIRA, Maurício Tintori. Entre o entretenimento e a crítica social: a Telenovela Moderna da Rede
Globo de Televisão e a formação de uma nova identidade nacional (1969-1975). Dissertação de
Mestrado em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010
385
O SNT era, inicialmente, um departamento da FUNARTE, mas possuía grande autonomia e iniciativa
própria. Com a existência da FUNDACEN (Fundação Nacional de Artes Cênicas) a área passou a ter
autonomia, mas foi reabsorvida pela FUNARTE em 1981, sob o nome de INACEN.
386
STROUD, Sean. The defence of tradition in Brazilian popular music. Hampshire: Ashgate, 2008
219
O Projeto Pixinguinha foi a iniciativa mais bem sucedida da Funarte para a área da
é notável é que mesmo numa área altamente capitalizada como a música popular, a
a idéia de que houvesse um processo de cooptação, afirmando que ele e sua equipe
Dentre os órgãos da política cultural oficial, sem dúvida, foi um dos que teve atuação
anos 1970 foi marcado por uma conjuntura rica em dinâmicas, alternativas e
grupos de oposição, mas também fruto das mudanças estruturais na vida sócio-
uma tutela ambígua por parte do Estado. Este, por sua vez, controlava a produção
387
apud Idem, p. 166
388
A série “Anos 70” e a coleção “O nacional e o popular na cultura brasileira”, editada em seis volumes,
entre 1980 e 1983, são os exemplos mais sistemáticos deste balanço crítico.
220
não ir ao mercado; ser ou não nacionalista; falar ou não falar em nome do povo;
vigentes.
econômica do regime, dada a percepção de que o Estado era uma estrutura pesada
seus diversos matizes, convergia para uma transição negociada para um governo civil,
censura. Assim, o caminho para a aliança tática entre setores comunistas e liberais
jogo entre governo e oposições (parlamentar, civil, armada). Ao longo dos anos 1970,
não chegou a ser incompatível com o crescente interesse por produtos culturais
A tradição que informava esses três “atores”, naquela conjuntura, não permitia
389
A discussão articulada dos conceitos de “realismo crítico”, de origem lukacsiana, e de “nacional-
popular”, de origem gramsciana, como base da estética e da cultura defendidas pelos comunistas pode
ser vista em COUTINHO, Carlos Nelson. “Notas sobre a questão cultural no Brasil”. Escrita Ensaio, nº1,
São Paulo, Escrita, 1977. Para a recepção de Lukacs no Brasil ver FREDERICO, Celso. Op.cit.. Sobre
estas e outras categorias que informaram as políticas culturais de esquerda ver NAPOLITANO, Marcos.
“A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Revista Temáticas, 37/38, Pós-
Graduação em Sociologia, IFCH/Unicamp, 2011 (prelo)
222
improvável associação tática, num contexto de luta por hegemonia, perpassado por
para reconciliar-se com a classe média, base social do golpe militar, perdida desde
1968, e apagar a memória do “terrorismo cultural”, ponto de fricção não apenas com
a resistência cultural, por outro. Há uma gradação ampla entre estes dois pólos. O
média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a
esquerda pode ter sido, paradoxalmente, o resultado da sua inserção bem sucedida
das formas empresariais de produção cultural. Por outro lado, admitindo-se o princípio
mercado cada vez mais dominado pelo grande capital, veicular uma produção muitas
a cultura de esquerda com o mercado, por um lado, e com o Estado, por outro. O
de forma genérica e diluída, pois havia uma demanda de produtos “críticos”, até como
efeito compensatório para a derrota política dos projetos de esquerda. O Estado, por
De todas as áreas artísticas até aqui citadas, a música popular391 era a que
390
CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, Editora EFRJ, 1997
391
O destaque que esta pesquisa deu à música popular não deve sugerir que a música erudita não teve
papel importante na resistência cultural ao regime militar. Indica apenas os limites do autor. Neste sentido,
ver SOARES, Teresinha Rodrigues Prada .A Utopia no Horizonte da Música Nova. Tese de Doutorado em
História Social, USP, 2006. Nesta tese, a autora analisa o Festival de Música Nova e o Curso
Latinoamericano de Música Contemporânea como eventos de afirmação de uma cultura crítica contra o
224
cultuados pelo seu talento e coerência política, a música popular, ao mesmo tempo, foi
lado da televisão. Portanto, o exame detalhado deste circuito e seus produtos mais
parte pelos liberais e tendo a imprensa liberal como um dos focos disseminadores,
regime. Ver também a coletânea de entrevistas e textos de COELHO, João Marcos. No calor da hora:
música e músicos nos anos de chumbo. São Paulo, Editora Algol, 2008
392
Exemplos dessa afirmação, são os depoimentos tomados pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e
publicados em três volumes sob o título “A memória militar sobre...”. Ver também. FERREIRA Jr., Amarílio
& BITTAR, Marisa. “O coronel Passarinho e o regime militar: o último intelectual orgânico” IN: MARTINS
Fo.. João Roberto. O golpe e o regime militar de 1964: novas perspectivas. São Carlos, Editora UFSCAR,
2006, p.201-219.
393
SCHWARZ, R.Op.cit.
225
CAPITULO 6
de letras que tentavam conciliar a tradição lírica das emoções subjetivas com a
expressão épica dos desejos coletivos395. Esta parece ter sido a tendência dominante
canções de teor exortativo, direto e movidas pelo ethos da mobilização, como nos
marcaram a “era dos festivais da canção” sofreu um corte abrupto depois do fatídico
principais ídolos musicais dos festivais eram forçados a sair de cena. Caetano Veloso
394
Este capítulo é resultado da fusão, sob outra estrutura, de dois artigos já publicados: ”A MPB nos anos
de chumbo de regime militar brasileiro” IN: Illiano, R e Sala, M.(Eds). Music and Dictatorship in Europe
and Latin America; “MPB: a trilha sonora da abertura”. Estudos Avançados,69, IEA/USP, mai-ago 2010
395
Em outro texto, desenvolvi uma análise mais extensiva dos exemplos musicais a partir desta
tendência, nomeada por mim como “sublimação lírica da experiência do autoritarismo”, presente em
várias canções de sucesso do início dos anos 1970, na obra de Milton Nascimento, Secos & Molhados,
Chico Buarque de Hollanda, Elis Regina, Raul Seixas, Gonzaguinha e outros compositores/intérpretes da
MPB. Ver NAPOLITANO, Marcos. “A MPB nos anos de chumbo” IN: ILLIANO, R. & SALA, M. Op.cit
396
Sobre a gênese, características e variáveis ideológicas dos hinos revolucionários da esquerda ver
HAGEMEYER, Rafael. A identidade antifascista do cancioneiro da Guerra Civil Espanhola. Tese de
Doutorado, História, UFRGS, 2004
226
e Gilberto Gil foram presos, ainda no Natal de 1968. Geraldo Vandré, o autor de
deixar o Brasil, depois de ser “aconselhado” a fazê-lo pelos militares no poder. Edu
artistas consagrados que ficaram no Brasil (Elis Regina, Vinícius de Moraes, e outros),
bastante paradoxal. Logo após o AI-5, configurou-se uma crise criativa, entre 1969 e
com a Rede Globo tentando capitalizar o sucesso dos programas musicais da década
anterior, sem o mesmo êxito399; as casas noturnas voltaram a se abrir para artistas
duplos, voltavam a obter altos lucros com o sucesso de artistas nacionais, como o
novato Ivan Lins, grande revelação do ano. Surgia, também em 1971, a idéia de
vigoroso até 1975, aproximadamente, e que levaria a MPB para várias cidades de
médio porte, sobretudo do interior de São Paulo, de Minas Gerais e dos estados do
crescimento, com o incremento de uma grande renovação artística. Nestes três anos,
aclamados pela crítica como marcos nas carreiras de ambos. Aliás, o encontro
histórico dos dois compositores mais reconhecidos da MPB, no teatro Castro Alves em
semanas entre os cinco mais vendidos, conforme dados do IBOPE400. A estrela Elis
Regina reencontrava a sua vocação para o sucesso com o LP de 1973, no qual ela
musical brasileira: João Bosco e Aldir Blanc. Milton Nascimento e o Clube da Esquina,
como exemplos de samba popular e, ao mesmo tempo, refinado. O primeiro, por sinal,
foi um dos grandes vendedores de LPs da década de 1970401. Entre as cantoras, três
carreiras iniciaram sua escalada para o topo do sucesso: Gal Costa (LP Fatal, de
1972), Maria Bethania (Drama 3º Ato de 1973) e Clara Nunes (LP de 1974).
Em resumo, nesses três anos “de chumbo” – 1972 a 1974 - a canção brasileira
400
Vendas mensais de discos. Coleção IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.
Arquivo Edgar Leuenroth, UNICAMP, Campinas (SP).
401
Idem.
228
commodities. Conforme Rita Morelli: “o contexto de repressão política vivido pelo país
abortava a canção antes dela nascer. Foi o caso de Chico Buarque, que em 1974
próprio Chico, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Raul Seixas, entre outros. Por outro
lado, a censura também prejudicava a produção industrial das canções, e isto ocorria
veto, a mudança exigida nas letras (que acabava prejudicando toda a estrutura da
402
Embora a censura existisse há muito, a partir de 1969, o Serviço foi reorganizado para ajudar no
controle da opinião política dentro da lógica de combate à subversão do regime militar. A partir de então
as canções foram alvos preferenciais dos censores e, ao contrário do que a memória social propagou,
não arrefeceu com a abertura a partir de 1975, ocorrendo, entretanto, o incremento da justificativa moral
(que também não deixava de ser controle ideológico) por parte dos censores. O levantamento da
pesquisadora Cecília Heredia demonstra o seguinte nº vetos/ano: 1970 (14 vetos); 1971 (91); 1972 (41);
1973 (120); 1974 (104); 1975 (14); 1976 (138); 1977 (289); 1978 (10); 1979 (32). Notemos que os picos
numéricos se localizam ou nos anos de maior repressão ou nos anos de abertura, indicando,
provavelmente, uma preocupação dos órgãos de censura com a perspectiva de maior liberdade de
expressão, a qual deveria ser controlada. Ver HEREDIA, Cecilia. A censura musical no Brasil dos anos
1970. Relatório de Iniciação Científica, FAPESP, 2010
403
MORELLI, Rita. A indústria fonográfica. Uma abordagem antropológica. Campinas, Ed. Unicamp,
1991, p. 48
404
Entre 1970 e 1976, a indústria fonográfica brasileira viu seu faturamento aumentar 1.375%, conforme
citado em ORTIZ, R. Op.cit.p. 127
229
casos mais notórios foram os LPs Chico Canta (ex-Calabar), em 1973 e o LP Milagre
simplesmente destruiu o álbum, vetando a letra da maior parte das canções, o que
Canção de 1972, que prometia ser um grande acontecimento musical, após o fracasso
do evento no ano anterior, foi cerceado não apenas pela vigilância policial do regime
militar, mas também pela própria Rede Globo, que tentava interferir nos resultados
finais. O resultado foi um festival tumultuado, com muitos conflitos nos bastidores e no
Além do mais, não era apenas pela censura que o Estado autoritário exercia
sua violência contra a cena musical brasileira. Eram freqüentes os casos de coerção
moral e física dos artistas. Dois casos exemplares, com resultados opostos: Geraldo
Geraldo Vandré era uma das maiores estrelas da canção engajada brasileira,
cuja carreira explodiu entre 1966 e 1968. Cada vez mais ligado a uma espécie de
Vandré viu sua carreira subitamente interrompida com a edição do AI-5. Na música
Caminhando, uma das estrofes foi considerada uma afronta às Forças Armadas: “Há
soldados armados / amados ou não / quase todos perdidos de armas na mão / nos
quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão” . A
música apresentada no FIC de 1968, cerca de um mês antes da edição do AI-5, era
equivalente a uma sentença de prisão. Aliás, ela apenas não foi efetuada porque
405
SCOVILLE, E. Op.cit. p. 53-64; HOMEM DE MELLO, Zuza. Op.cit.
230
Vandré fugiu do país a tempo, numa seqüência de episódios ainda muito obscura406. A
São Paulo, pois era amigo de Abreu Sodré, governador na época. Em fevereiro de
jornal O Globo o localizou no Chile. Expulso do país por causa da falta de visto,
Vandré iniciou um périplo pela Argélia e Europa, até fixar-se na França por cerca de
um ano e meio. Lá, gravou seu último LP Das terras de Benvirá (lançado no Brasil, em
1973). Em seguida Vandré voltou ao Chile, de onde teria saído em retorno ao Brasil
em julho de 1973, depois do tancazo de junho em Santiago. Esta é uma das partes
que Vandré teria desembarcado no Brasil, mas teria sido preso, ainda no aeroporto,
novo “clima de paz e tranquilidade” trazidos pelo regime militar. Episódios como este,
reforçaram os rumores que Vandré teria sido torturado ou “sofrido lavagem cerebral”,
resultado da coerção física e mental contra aquele que era uma espécie de lenda viva
criativa tão profunda que acabou por interromper a sua carreira artística. Depois disso,
406
ARAUJO, Paulo C. Op.cit, p. 108
407
“Vandré volta e é preso”, Jornal do Brasil, 18-07-1973, p. 5 (apud ARAUJO, P. Op.cit.p.109).
231
valores estabelecidos pelo “gosto médio” (ainda que fossem valores críticos ao
regime). Mas a prisão e o exílio acabaram por diluir a pecha de artista “alienado” que o
envolvessem ao longo dos anos 1970. Depois de três meses de prisão, Caetano saiu
internacional. Em janeiro de 1971, ele recebeu permissão para ficar um mês no Brasil,
para assistir as cerimônias dos quarenta anos de casamento dos seus pais, com a
interrogaram e me ameaçaram por seis horas. Tive muito medo, muita angústia.
Diante de um gravador de rolo ligado (...), os homens que me levaram – mais os que
estavam à minha espera (todos se identificavam como oficiais, mas usavam roupas
a estrada que o governo militar começava a construir e que era um dos símbolos do
seguir logo para Salvador (...) estava proibido de cortar o cabelo e fazer a barba
enquanto estivesse em território nacional (temiam que parecesse obra deles); não
podia recusar entrevistas com a imprensa, mas teria que dá-las por escrito e submetê-
las à leitura prévia por parte dos agentes federais que me vigiariam durante toda a
232
estadia; finalmente, era obrigado a fazer duas apresentações na TV, uma no programa
do Chacrinha e outra no Som Livre Exportação, o novo musical da TV Globo, para que
a comentar que ele estava com medo de falar inclusive com eles e que o corte da
público. A tumultuada volta de Vandré, no ano seguinte, não significou seu retorno à
cena musical. Neste caso, morreu o artista e ficou o mito. No caso de Caetano, o mito
408
VELOSO, C. Verdade Tropical. São Paulo, Cia das Letras, 1997, p. 452
409
O Rastro de um mito. Veja, 07/02/1971, p. 52
410
Na entrevista a Geneton Moraes Neto, na Globonews, um dos momentos mais interessantes (e
lúdicos) do artista foi quando ele explicou o porquê do abandono da carreira nos anos 1970, afirmando
que aquele público que o ovacionara no Maracanazinho em 1968, já não existia mais. Talvez seja
233
repressão na chegada ao Brasil, como os que atingiriam mais tarde com Caetano e
Vandré, o retorno de outro ídolo da MPB, Chico Buarque de Hollanda, foi cercado de
muito “barulho”. Esta tinha sido a sugestão de Vinícius de Moraes e assim se fez. Em
março de 1970, seu desembarque no Rio de Janeiro foi marcado por grande presença
ludibriar a censura com a música Apesar de você, lançada em 1970, cujo compacto
No caso de Elis Regina, a relação com o regime militar, no início dos anos
1970, foi mais problemática412. A cantora, que mais tarde seria uma das vozes mais
televisivo, o Encontro Cívico Nacional. Elis Regina teria ajudado na convocatória para
a festa cívica. O impacto no público de esquerda foi muito negativo, segmento que a
tinha como uma das suas cantoras preferidas. Muitos jornalistas e críticos passaram a
Elis Regina passou a explicar sua participação no evento porque tinha sido ameaçada
de prisão, caso não aderisse à proposta do governo. Este também é um ponto obscuro
exagero, mas indica uma percepção das mudanças de sentido e função da canção engajada. Ver a
entrevista na íntegra em http://g1.globo.com/platb/geneton/2010/09/21
411
Para maiores detalhes da trajetória do compositor no exílio e sua volta ao Brasil, ver FERREIRA,
Gustavo A. Op.cit.
412
LUNARDI, Rafaela. Em busca do falso brilhante: performance e projeto autoral em Elis Regina.
Relatório Técnico-Científico de Mestrado - FAPESP, novembro de 2010. Nesta pesquisa de mestrado, a
historiadora Rafaela Lunardi examina a imagem pública e o repertório de Elis entre 1965 e 1976,
analisando a construção de sua persona pública que se confunde com as vicissitudes e impasses da
própria MPB.
413
Para uma análise mais aprofundada da propaganda no Governo Médici ver FICO, C. Reinventanto o
otimismo. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1997.
234
entrevista que Elis participara do Encontro Cívico Nacional porque tinha sido muito
passava, pois, por diversas estratégias: censura, coerção policial, cooptação financeira
MPB, porém, o paradoxo era de outra ordem: criada por muitos artistas simpatizantes
econômico produzido pela política do regime militar, sobretudo após 1968. Apoiado em
militar não podia radicalizar a repressão e a censura aos padrões de consumo desta
mesma base social que fornecia os quadros profissionais recrutados pela economia
em expansão415. A MPB foi, em certo sentido, beneficiada por este paradoxo, apesar
dos dilemas e conflitos vividos pelos artistas mais conscientes e autocríticos. Assim, a
cena musical brasileira dos anos de chumbo, sobretudo após 1972, ocupava tanto o
circuito mais alternativo dos espetáculos realizados nos campi universitários, quanto o
414
Apud. Elis Regina por ela mesma. São Paulo, Martin Claret, 2004 (2ªed.). p.156
415
MICELI, S. “O papel político dos meios de comunicação” IN SOSNOWSKI, S. et al. Op.cit.
235
agressão”. Esta poética não foi resultado direto do novo clima de repressão e
intolerância que reinava no país após 1968, mas foi estimulada por ele. Em parte, a
poética da agressão era uma resposta ao chamado “terrorismo cultural”. Neste novo
regras passou a dar o tom de inúmeras produções para o teatro e para o cinema,
Comunista Brasileiro que via nesta poética a manifestação de uma “decadência moral
Como todo regime autoritário, o governo militar brasileiro sonhava com uma
arte de integração e propaganda. Esse projeto não vingou, e em que pese algumas
tentativas feitas no início dos anos 1970 pela Agência de Relações Públicas do
anti-esquerdistas de muito sucesso na época, tais como Eu te amo meu Brasil, Brasil,
Eu fico, Das duzentas pra lá, Protesto ao protesto, entre outras, a cena musical
brasileira dos anos 1970 não foi dominada por nenhum tipo de movimento ufanista, ao
(Ari Barroso) e Brasil Pandeiro (Assis Valente). O que predominou nos anos 1970 foi a
sensu, podendo incluir a crônica social, o lirismo subjetivo, a ironia ao sistema e outras
autoritarismo416
sociedade civil críticos ao regime, esta última acabou se impondo. Isto ocorreu não
passaram a abrir cada vez mais espaço para os artistas que estavam identificados
416
Do ponto de vista de Theodor Adorno, toda canção inserida numa estrutura de consumo cultural
realiza a “paz social” e reproduz os “valores” ideológicos dominantes, independente do sentido explícito
da letra e das eventuais intenções críticas dos compositores. A neutralização do valor de uso da obra de
arte, em função do seu valor de troca no mercado, base da teoria adorniana, está por trás desta
argumentação. Mas, ainda que admitamos a validade desta tendência conceitual da obra mercantilizada,
ela não pode ser tomada como regra absoluta para entender todas as situações concretas de objetivação
histórica da canção em contextos determinados. Ver ADORNO, T. “A indústria cultural” IN: Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002. Como contraponto, sem prejuízo da acuidade
normativa do conceito, defendo que sob certas circunstâncias históricas a cultura e arte inseridas no
mercado podem participar diretamente dos processos de construção de hegemonias e contra-
hegemonias, na medida em que formam e conformam estados de consciência social e identidades
políticas. Isto não significa desconhecer as contradições e limites de tais processos. A canção brasileira,
particularmente o campo da MPB, é um exemplo histórico desta tese.
417
“Música Popular em debate (II)”. Jornal do Brasil, 24/09/1969, p.B-1. Ver também a sua autobiografia:
MIDANI, A. Música, ídolos e poder. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008
237
pontuais e isolados. Uma rápida análise do mercado fonográfico brasileiro nos permite
situar melhor a MPB como gênero musical específico dentro desta estrutura e
tendência de consumo mundial, a MPB mais uma vez foi valorizada. A consolidação
da era do long playing de 33 rotações por minuto (LP), aliada à estabilização do cast
popular como sistema e da MPB como instituição419. O “produto LP” tinha alto valor
econômico agregado e era direcionado para uma faixa de consumo sofisticada e com
de capital e tecnologia. Portanto, a MPB (e alguns outros gêneros, como parte dos
dos grupos sociais de oposição ao regime militar, era fundamental para a estratégia da
indústria fonográfica brasileira, situação que perdurou até o início dos anos 1980420.
sendo que a MPB fornecia quadros para este último tipo, e estes absorviam a maior
fatia de investimento em produção. Desta lógica deriva o fato dos LPs de MPB serem
418
FLICHY, P. Les industries de l’imaginaire. PUG, Grenoble, 1991
419
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção.
420
DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São
Paulo, Boitempo Editorial, 2000
421
Em 1977 – 47 milhões de unidades vendidas; em 1979 - 64.104 mil unidades vendidas (40.624 de
música nacional). Esta proporção, de 65% à 80% de música nacional para 20 a 35% de música
estrangeira, era uma constante desde o final dos anos 60.
238
de catálogo” tinham maior valor agregado. Os gêneros mais populares, como o samba
e a chamada música cafona, poderiam até vender mais que a MPB, em termos
absolutos. Mas o valor agregado presente nos produtos (long plays e compactos)
situados nesta faixa era muito maior, movimentando mais capitais para o sistema
Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Clara Nunes, entre outros.
segunda metade dos anos 1960 até o início 1970, poderia ser considerada um
Em 1973, a Phonogram/ Philips tinha cerca de 80% do cast da MPB. Com a crise do
petróleo que explodiu no mesmo ano, cujos efeitos foram imediatos na área
fonográfica na medida em que o produto era uma das matérias primas para fabricação
uma série de artistas de MPB com menor vendagem (Jards Macalé, Luiz Melodia,
ligados ao gênero, processo este que se consolida por volta de 1975, ano-chave para
a “abertura” política.
422
DIAS, Marcia T. Op.cit.
423
Fundada como Sinter 1945; CBD (1955, comprada pela Philips em 1958); Phonogram (1971 – com
selo Philips aparece em 1972) e Polygram (1978) – braço fonográfico da Philips
239
fonográfica424:
Bethânia
• Sigla / Som Livre - trilhas sonoras de novelas que incluíam inúmeros sucessos
aquisitivo.
quando abriu seu escritório no Brasil em julho de 1976, pretendia ganhar cerca de 8%
um artista nacional, quando ocorria, era sempre muito maior do que o sucesso de
qualquer lançamento internacional dado que o artista brasileiro contava com uma faixa
mais profunda de público”425. Entre 1978 e 1980, a gravadora conseguiu contratar Elis
Regina, Gilberto Gil e Ney Matogrosso. A alemã Ariola, por sua vez, tirou Chico
Outro dado que revela a importância da MPB para o mercado fonográfico dos
anos 1970 são os números relativos à audiência das rádios. Uma pesquisa de 1978,
424
Conforme censo de 1977, extraído da Folha de S.Paulo, 25/12/77, apud MORELLI, R. Op.cit., p. 52
425
Idem, p. 52
240
brasileira, revelava quais eram as gravadoras que tinham as músicas mais ouvidas426:
Phonogram (20%), EMI-Odeon (17%), RCA (12%), CBS (11%) e WEA (8%).
as duas primeiras tinham sua marca corporativa associada à MPB e a terceira (RCA)
(16%), Polygram (13%), RCA427 (12%), WEA (5%), Copacabana e Continental (4,5%),
máquina publicitária da Rede Globo. A CBS tinha Roberto Carlos, de longe, o maior
Raimundo Fagner, que estourou como sucesso popular em 1976 e vivia, então, seu
auge.
426
Pesquisa InformaSom/IstoÉ , 84, 2/8/78
427
A RCA foi adquirida em 1977 pela BMG/Ariola
241
1977 e 1979, para aqueles que vendiam, ao menos, 150 mil discos em 1 ano, também
Pássaro Proibido (1976), Pássaro da Manhã (1977) e Álibi (1978), todos de Maria
Bethânia; Meus Caros Amigos (1976) e Chico Buarque, (1978), ambos de Chico
Buarque; Pé no Chão (Beth Carvalho, 1978); Canto das Três Raças (Clara Nunes,
1979); Rosa do Povo (Martinho da Vila, 1976); Geraes (Milton Nascimento, 1977).
o compositor disse: “Reconheço que o momento atual talvez seja um pouco mais
quente do que alguns anos, atrás, mais otimista no sentido de que as coisas podem
melhorar. Está havendo uma mobilização muito maior, inclusive você vê isso em
lotando três noites o Ibirapuera em São Paulo, em Porto Alegre também. E não é só
isso: espetáculos com artistas menos conhecidos também estão levando muita gente.
Acho que está havendo uma necessidade de reunião muito grande. Claro que o disco
não tem muito a ver com isso que estou falando. Mas acho que é paralelo”.
428
Revista Somtrês, 5, 1979, p. 105
429
Coojornal, Porto Alegre, nº 17, 1977, p.18/19
242
da MPB fica ainda mais clara. Uma primeira constatação é a de que a cidade do Rio
de Janeiro consumia mais samba do que São Paulo, enquanto esta consumia mais a
chamada “música popular cafona”, ao menos até meados de 1973. À exceção do ano
de 1972, o Rio de Janeiro consumiu mais MPB do que São Paulo. Em 1970 e 1978, o
coletâneas.
430
Boletins de vendas semanais de discos (SP/RJ). Acervo IBOPE, Arquivo Edgar Leuenroth/ Unicamp.
243
60
50
40
30 Música Brasileira
20 Música Estrangeira
10
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978
70
60
50
40
Música Brasileira
30 Música Estrangeira
20
10
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978
244
lugares/ano):
50
40
30
Rio de Janeiro
20
São Paulo
10
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978
35
30
25
20
Rio de Janeiro
15 São Paulo
10
5
0
1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1978
transnacional do disco no país, a MPB passou a dividir espaço tanto com segmentos
nacional)”.
431
DIAS, Marcia Tosta. Op.cit., p.75
245
abertura política influenciou até a política cultural do regime militar, mais voltadas para
setores onde o mercado era irregular ou pouco integrado, como o teatro e o cinema.
Criado em 1977, com duração até 1997, o Projeto Pixinguinha ajudou a promover e a
de 540 artistas, 695 intérpretes, 1.770 músicos, 3.300 compositores e 190 diretores
artísticos.
abertura política experimentava os seus limites. Não havia, obviamente, relação causal
entre os dois processos – político e fonográfico – mas havia uma sinergia de ordem
sociocultural, com parte dos valores da juventude migrando para outro tipo de
antes ocupadas pela MPB, a indústria percebeu o potencial do novo gênero: o pop-
rock brasileiro, cujo processo se consolidaria em 1985. Dois fatores explicam essa
comprador de discos brasileiro, nos anos 1970, ainda tinha mais de 30 anos, sendo
246
fonográfica, no início dos anos 1980. O rock como commoditie musical e produto
fonográfico final tinha um baixo custo de produção – dez vezes menos, em média, em
relação à MPB433.
após a censura, manteve não apenas o seu prestigio cultural, como também a relativa
MPB nestes segmentos. Além disso, muitos artistas ligados ao pop-rock assumiam a
MPB como uma das suas fontes criativas, como era o caso de Cazuza e Arnaldo
Antunes, selando uma “aliança” informal de gêneros nos anos 1990, na afirmação de
que, com o tempo, tornou-se difícil defini-la a partir de um ponto de vista unicamente
mercado fonográfico. Não é por acaso que, no início dos anos 1970, a crítica
432
conforme declaração de André Midani apud DIAS, Marcia T. Op.cit., p. 82
433
Idem, p.85
434
NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. .
247
de uma esfera pública435 progressista que vivia uma situação paradoxal: cerceada
país, definindo o limite entre o “bom” e o “mau” gosto. A MPB sob o autoritarismo era
construída na negação da ditadura militar, a MPB acabou por servir a uma espécie de
democrática, que irá ocupar a cena pública brasileira, sobretudo à esquerda, no final
da década de 1970.
das correntes identificadas pela critica como sendo parte do guarda-chuva da MPB,
dividiu-se em dois períodos bem demarcados de expressão: (i) entre 1969 e 1974, a
“canção dos anos de chumbo”; (ii), a “canção da abertura”, entre 1975 e 1982. Dentro
de cada grande conjunto, por outro lado, abrigava-se uma pluralidade de expressões
poéticas e musicais.
chumbo
No Brasil, antes mesmo da MPB surgir nos anos 1960, a canção já tinha
consolidado seu lugar no mercado de bens culturais e na vida cultural cotidiana dos
temas abordados pela canção437. Foi dentro desta tradição, e não apenas limitada à
435
Para um aprofundamento da relação entre a música, os compositores canônicos e a esfera pública ver
CHANAN, Michael. From Haendel to Hendrix. The composer and the public sphere. London, Verso, 1999
436
WISNIK, José Miguel. “O Minuto e o Milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez” IN:
Anos 70 / Música popular. Rio de Janeiro: Europa, 1980
437
NAPOLITANO, M. Síncope das idéias: a questão da tradição na MPB. São Paulo, Ed. Fundação
Perseu Abramo, 2007
248
uma tradição de exortação política strictu sensu que a MPB dos anos 1970 realizou a
chamada “rede de recados” contra a ditadura, recado este que não apenas
ditadura não é nem ordem, nem palavra, nem “palavra de ordem”, “mas uma pulsação
que inclui um jogo de cintura, uma cultura de resistência que sucumbiria se vivesse só
corpo, da música, da linguagem (...) a música popular é uma rede de recados, onde o
Naqueles anos, ouvir uma canção, ainda que nos limites de um espaço privado, era
cantores identificados com aquilo que a MPB significava, herdeiros da cultura política
438
WISNIK,, J. Miguel. “O Minuto e o Milenio ou, por favor, professor, uma década de cada vez” IN:
Op.cit, p.8
249
nacional popular dos anos 1960, ainda filiava-se aos gêneros e poéticas mais
tradicionais da canção popular. Estas duas tendências que foram chamadas pela
imprensa da época de “tendência Caetano” e “tendência Chico”, não eram, afinal, tão
Salvador (BA), e gravado em LP, é um dos eventos que sinalizam esta convergência
propiciava.
experimentou um refluxo no início dos anos 1970, ainda que seu legado experimental
choque e ao estranhamento. Além desses aspectos, a MPB desde 1965, fazia parte
amplificava suas mensagens para segmentos sociais mais amplos que a audiência
“jovem-universitária-de-esquerda”439.
439
Esta capacidade de síntese e amplificação das mensagens políticas, pela via musical, quando a
canção e o movimento político-social se encontram historicamente, já havia sido notada por Ron
Eyerman, no seu estudo sobre a canção norte-americana (EYERMAN, R & JAMISON, A. Music and social
movements. Mobilizing Traditions in 20th. Century. New York, Cambridge Univ. Press, 1998, p 119).
250
samba e o baião. Este, me parece, foi o caso de Gilberto Gil, de Jards Macalé, dos
exemplo, eram marcadas por uma opção nítida pela linha da ruptura e pela busca do
musical e poética. Caetano Veloso, por sua vez, movimentava-se nas duas linhas de
médio (LPs Chico e Caetano Juntos e ao Vivo, 1972; Qualquer Coisa, 1976).
da MPB, a música dos anos de chumbo foi marcada pela reafirmação dos gêneros e
Ivan Lins e Vitor Martins, João Bosco e Aldir Blanc, entre outros.
Entretanto, a cena musical brasileira dos anos de chumbo não era ocupada
apenas pelo pós-tropicalismo musical e pela MPB mainstream. O início dos anos 70
assistiu a consolidação da black music brasileira (Tim Maia, Jorge Ben) e do pop-rock
afinidade com a black music e o pop-rock. Já os nomes do samba mais tradicional, tal
440
Destacamos também, nesta corrente, os poetas-letristas: José Carlos Capinam, Torquato Neto,
Galvão e Wally Salomão.
251
como praticado pelas classes populares e pelas escolas de samba do Rio de Janeiro,
para uma espécie de “frente ampla musical”, expressando o leque de valores estéticos
consumo mais valorizado do mercado fonográfico brasileiro, acabou por exigir que o
veiculava. Este foi o caso do “sambão jóia”441, das baladas e boleros românticos
Aqui nos importa analisar quais as variáveis que a canção dos anos de chumbo
441
O nome de “sambão-jóia” foi dado pela crítica musical para qualificar o samba simplório, pleno de
lugares-comuns (poéticos e musicais) e timbragem homogeneizada em estúdio, produzindo canções de
fácil assimilação, nos planos poético, rítmico e melódico.
442
A “canção cafona” era considerada pela crítica o nível mais baixo da cena musical brasileira, produzida
e consumida pelos extratos mais pobres das classes populares das grandes e médias cidades brasileiras.
Sua estrutura melódico-harmônica era a mais simples possível (geralmente composta em tons maiores e
cadências pré-estabelecidas no cancioneiro popular), seus arranjos eram padronizados, com muitas
cordas, metais e, eventualmente, algum toque pop (guitarra e bateria). As performances vocais dividiam-
se em dois tipos básicos: Ora predominavam as vozes anasaladas de pequena tessitura, nítida imitação
de Roberto Carlos, ora predominavam as vozes operísticas, da muita potência mas sem recursos
sofisticados de interpretação vocal. Ver ARAUJO, P. C. Op.cit.
252
poética da agressão não predominou nestas variáveis da MPB, embora tenha sido um
pela audiência popular massiva. E, last but not least, a função específica da música
destes três vetores contribuiu para matizar a poética da agressão na canção dos anos
de chumbo.
tradição da música popular brasileira, cuja linguagem e gêneros vinham desde os anos
musical dos anos 1960. Ao contrário certas vertentes da canção tradicional (samba,
Caymmi, Ari Barroso, Orlando Silva, Carmem Miranda, Lupiscínio Rodrigues, Wilson
443
Quando uso a expressão “sistema” tenho em mente a definição básica de Antonio Cândido que
pressupõe a integração de artistas, empresários, técnicos e público, num conjunto conflitante e permeado
por debates e tensões, ligadas às estruturas sociais mais amplas. Esta categoria permite maior
flexibilidade na análise da articulação entre obras, autores e sociedade, analisando o adensamento de
253
médio de expressão e gosto musicais que a permitia transitar entre tradição e ruptura,
sem sucumbir a um possível impasse, fruto desta dicotomia. É bom lembrar que o
primeiro momento tropicalista (1968) tentou, justamente questionar este “termo médio
com a sigla MPB, em sua relação com o tipo de canção historicamente dominante na
canção romântica, em si mesma, não era valorizada pela juventude universitária e pela
classe media intelectualizada, pelo contrário, era vista como uma expressão de
“alienação” do artista, pecha que nos anos 1970 implicava em uma determinada forma
Maria Bethânia, Paulo César Pinheiro, Ivan Lins, entre outros, gravaram inúmeras
canções que poderiam ser classificadas como românticas e nem por isso eram
dos anos 1970, como Gota D´água (Chico Buarque), Valsinha (Chico Buarque), Não
dá mais pra segurar (Gonzaguinha), entre outras, acabavam tendo conotação política
e de afirmação da subjetividade446.
gosto médio da audiência, parece ser uma peculiaridade do campo musical brasileiro.
Zé, Caetano Veloso, Walter Franco, Jards Macalé, Luiz Melodia, entre outros, tinha um
musical, como nos LPs Revolver e Ou não (Walter Franco) ou Araçá Azul (Caetano
446
Sobre o papel da poesia em contextos de resistência sob a égide da afirmação de uma subjetividade,
ver BOSI, Alfredo. “Poesia-resistência”. O ser e o tempo na poesia. São Paulo, Cia das letras, 2008, p.
163-227. Bosi analisa a poesia literária, mas suas inferências podem servir para entender o papel das
letras de MPB, dado o componente literário de muitas letras das canções engajadas. Ou seja, as letras,
independente de serem “poesia” ou não, desempenhavam uma função poética.
255
totais. Já os primeiros LPs de Jards Macalé (1972) e Luiz Melodia (Pérola Negra,
muito mais às suas atitudes diante das fórmulas fáceis de sucesso da MPB do que a
exceção a esta tendência tenho sido Tom Zé, que apesar de amplo espaço na
imprensa, logo após a sua vitória no Festival da TV Record de 1968, não conseguiu
Uma das características centrais das canções dos anos de chumbo, era a
gama de expressões poéticas que procurava dar conta de uma experiência traumática,
na esfera privada. Este foi um dos resultados do corte abrupto com o “espírito 68,
provocado pelo AI-5 e pelo novo patamar de violência policial e repressão política do
expressar os efeitos da violência política na vida social e política. Por outro lado, elas
(Gonzaguinha)
(Toninho Horta/ Fernando Brandt); Bala com Bala (João Bosco / Aldir Blanc)
• fantasia / realidade: Bala com bala; Cálice ; Ouro de Tolo (Raul Seixas)
257
silêncio, e este, por sua vez, era desafiado pela voz coletiva que emanava da canção.
para manter vivo o próprio espaço público, vigiado sistematicamente pela repressão e
pela censura. A resistência pode ser vista como a operação de ligação com uma
negados pela repressão política, como pequenos atos de revolta individual contra o
sistema; critica como negação dos valores ideológicos e políticos oficiais, seja como
por sua vez, quase sempre aparecia nas letras de forma sutil ou metaforizada pois, se
447
KEDWARD, E. Op.cit.
258
abertura
Por volta de 1976, o período de maior violência política parecia superado, mas
a aguardada era de liberdade ainda não havia começado. A tensão entre a canção
como veiculo das atitudes críticas e militantes e a canção como veiculo de lirismo ou
cidadania por uma nova era de liberdade, que todavia ainda não havia chegado
ainda continuar forte, a canção popular foi uma das primeiras expressões a
representar simbolicamente a nova era, onde o prazer poderia voltar a ter vez e a
expressão poética da paz, justiça social e liberdade. Neste sentido, a canção aponta
para uma “promessa de felicidade”, enfatizando o limiar de uma nova utopia. Este
448
Neste ponto, vale lembrar que em 1968, antes mesmo do acirramento da censura do regime, a crítica
de esquerda apontou o “dia-que-virá” como a figura poética predominante da canção engajada brasileira
(ou Moderna MPB), com implicações políticas imobilizadoras, tendo em vista que não conseguia exortar
uma ação efetiva no ouvinte no seu presente imediato. Ver GALVÃO, Walnice. “MMPB: uma análise
ideológica”. Saco de Gatos. São Paulo, Duas Cidades, 1976, 93-119.
259
novo tempo: Falei do tempo / Falei do fogo / Falei da dor / Agora calo / Calço o chinelo
/ Reparo a flor. Andei Correndo / Andei sofrendo / Andei demais / Agora deito / Olho
pro teto / Penso na paz (Deixei recado, Gilberto Gil, 1974). Outra das canções-
emblema deste tempo foi O que será (à flor da terra), de Chico Buarque e Milton
Diferente das canções mais paradigmáticas dos anos de chumbo, O que será demarca
a ansiedade por uma nova era de liberdade que, por não haver chegado ainda,
também em expressão de uma paixão coletiva reprimida que, nos termos da canção,
nos circuitos de consumo, cuja ironia se apresenta como sintoma dos valores e
“Para ouvir canções de protesto contra a sociedade de consumo, nada melhor do que
cultura no Brasil.
260
consciência, fruto do conflito de fazer uma canção que, apesar de se querer “popular”,
era consumida pelos extratos sociais com maior poder aquisitivo. Em entrevista dada
O consumo está cada vez mais concentrado. No mercado da música, a mesma coisa:
meus discos hoje vendem muito mais que antes. Para os produtos mais sofisticados,
realmente existe um mercado cada vez maior, isso é verdade. Basta ver os cigarros
que são lançados todos os dias com filtro de ouro, filtro platinado, para essa mesma
parcela da população.
“Qualquer música minha não vale uma fila do feijão. Eu não sou a pessoa mais
credenciada para analisar a situação toda, mas acho que a coisa está preta mesmo e
do jeito que está não tem muita saída. Eu vejo na minha área o pessoal muito
animado, com muita disposição para fazer coisas, acreditando que as coisas vão
melhorar. Acontece que essa minha geração já viveu outra época de euforia muito
grande também em 68 e vai sempre com o pé atrás(...)E de uma certa forma é preciso
449
Coojornal nº 17, , Porto Alegre, 1977, p.18/19
261
obras. Em Chico Buarque a política surge como uma condição existencial e perpassa
imperativo ético que deve marcar a consciência política explode numa poesia agônica,
popular, como base de uma sabedoria e de uma legitimidade que não poderiam ser
barradas pela repressão. Aldir Blanc e João Bosco, donos de uma das obras mais
contundentes (e consistentes) dos anos 1970, fundiram crônica social e poesia, para
cacete, Samba plataforma, Tiro de Misericódia). Por outro lado, souberam recriar o
tom épico para retratar as grandes lutas populares contra o poder opressivo. Paulo
César Pinheiro e Maurício Tapajós ora utilizaram o sussurro como arma poética, ora
também foram para o estilo épico e contundente, embora mais alegórico que a dupla
potencializadas entre os anos 1960 e 1970. Caetano Veloso e Gilberto Gil refletiram
entre outros, operaram releituras da cultura jovem e fundiram elementos regionais com
tradicional. Por outro lado, nomes ligados ao samba, como Martinho da Vila e Paulinho
das vozes femininas na MPB, foi fundamental para a efetiva disseminação social da
de Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia e Clara Nunes, o poder de comunicação e
dotes vocais destas intérpretes marcava a tal ponto o sentido da canção que
poderíamos falar numa segunda autoria. As cantoras mais populares dos anos 1970,
ao contrário do que ocorria no inicio dos anos 1960, não se pautaram pelos estilos
intimistas da Bossa Nova. Em certo sentido estavam mais próximas das performances
tradicionais da era do rádio, marcadas por vozes com amplo volume e tessitura, em
MPB.
destacam-se três tendências básicas nos temas poéticos abordados pela canção da
liberdade plena de expressão e outra, que refletia sobre a experiência dos “anos de
chumbo” recentes.
uma irrupção violenta de uma energia reprimida durante muito tempo. Essas canções
amor individual, tema que muitas vezes serviu de metáfora do reencontro do indivíduo
Equilibrista; de Chico Buarque: O que será, Meu caro Amigo, O Cio da Terra
segurar; de Paulo César Pinheiro e Mário Duarte: O Canto das Três Raças; de Milton
Nascimento e seus parceiros: Maria Maria, Coração Civil; de Vitor Martins e Ivan Lins:
Abre Alas, A Bandeira do Divino. O ano de 1979, em especial, viu surgir alguns
histórico, limiar entre o trauma e a esperança: Começar de Novo (Ivan Lins e Vitor
Martins) e Sol de Primavera (Beto Guedes). Além delas, os “hinos” do movimento pela
(Pinheiro / Tapajós).
gerados pelo “círculo do medo” imposto à sociedade na era do AI-5. Algumas canções
450
VASCONCELLOS, G.Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro, Graal, 1977
264
são paradigmáticas desta linhagem: Nos dias de hoje (Ivans Lins e Vitor Martins), Aos
Moura / Márcio Borges), Não chore mais (Gil, a partir da canção original de Bob
Marley).
Poderíamos ainda demarcar uma terceira vertente, ocupada pelas obras de Gil
(Caetano Veloso), Qualquer coisa (Caetano Veloso), Refavela (Gilberto Gil), Jeca
Total (Gilberto Gil), Maracatu Atômico (Jorge Mautner), Super Homem (Gilberto Gil),
Realce (Gilberto Gil), Sampa (Caetano Veloso), Terra (Caetano Veloso), O Índio
ao regime militar. É importante notar que mais do que desempenhar uma função
direta, a crença no futuro inexorável e exortar a ação direta contra uma situação de
opressão, a canção da abertura, ainda que seja tomada como uma variante da canção
cantava a liberdade que ainda não era plena e o medo que já não era mais
predominante.
265
A canção Aos Nossos Filhos (Ivan Lins/ Vitor Martins) tem uma singularidade
marcante, escapando aos paradigmas até aqui citados. A voz que pede perdão “aos
nossos filhos” pela “cara amarrada / pela falta de ar / pela falta de abraço / pela falta
de abrigo....” tenta encontrar um álibi: “os dias eram assim”. Na segunda parte, a voz
que pede perdão pelo passado, como se a repressão fosse introjetada como culpa do
reprimido por não combater o regime opressivo de forma eficaz, se volta para o futuro:
água /(...) e quando colherem o fruto (....) digam o gosto pra mim”. A derrota no
aproveitar o futuro. Assim, a canção nem sublima o medo e a violência, nem consegue
Aos nossos filhos pode ser configurada como uma “canção do trauma”, modelo raro na
MPB.
A sensação de hiato no tempo histórico foi muito recorrente nas referências aos
que esta canção coloca uma dúvida sombria, não muito comum na canção da
filhos” da repressão, pois o hiato de tempo histórico também era um hiato geracional.
Quem fala na música parece ser um fantasma de si mesmo, penando nos tempos
no futuro está presente na certeza de que os filhos “passarão a limpo/ lavarão a alma /
canta espera que eles ensinem aos pais a nova utopia democrática.
266
produziu no programa do espetáculo Elis, Essa Mulher, de 1979. Nele, Elis escreveu
um texto que resumia a trajetória da sua carreira e da própria MPB desde os anos
autoritarismo político ainda hegemônico: “Nessa hora e meia, a gente vai falando do
Que hoje tem o mesmo riso, faz a mesma algazarra, gosta da cachaça, etc...Mas que
isso aí. Devagarinho vai se levando. Pra, no final, a esperança ser posta na berlinda
de novo. Esperança que pinta, mas já com a certeza de que a gente tem que cavar.
hipóteses
uma diminuição do papel político da canção, embora possa ter diluído seus efeitos
sentidos e função política de uma canção devem ser inseridos na análise das
Lembramos que a maior parte das análises acadêmicas se concentra nas obras em si
consagrados pela própria memória social sobre o período. Faz-se necessária uma
sociologia retrospectiva da música popular dos anos 1970 para compreender melhor
consumidor isolado e da audiência musical solitária e privada é uma das mais difíceis
orais. Não é exagero afirmar que este tipo de audiência foi importante, sobretudo no
período mais duro da repressão e da censura, pois além de facilitar a assimilação mais
audiência que pode ter sido importante, do ponto de vista da afirmação de valores e de
relaxadas e descompromissadas451. Mas isso não deve ser tomado como regra,
(no caso, a televisão) permitia o contato com a imagem do artista, ídolo e referência
451
EYERMAN, R.& JAMISON, A. Op.cit.
268
importante e pouco estudado ciclo de programas musicais surgidos nos anos 1970.
(SP), surgida em 1970 e no ar até hoje (2003), produzida por Fernando Faro; o ciclo
de programas musicais da TV Bandeirantes, entre 1974 e 1980, com auge entre 1976
e 1978, que agregava uma audiência de classe média intelectualizada e era uma
pela ação da censura, mas também pelo esgotamento da fórmula televisiva destes
programas.
monumentais que marcaram a era dos festivais viram-se prejudicados pela nova
teatros de pequeno e médio porte, que mantiveram a MPB próxima do seu ouvinte
Caetano (Rio de Janeiro), o Teatro do Paiol (Curitiba), entre outros. Outros espaços
de maior dimensão marcaram os anos 1970: Canecão (Rio de Janeiro), Palácio das
Convenções do Anhembi (São Paulo), assim como vários ginásios públicos e privados
452
O universitário era considerado a síntese da “classe média em seu extrato superior”. Conforme Ana
Maria Bahiana: “Música sai da classe média, é orientada pela classe média e por ela consumida” Ver
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1979, p.25
269
que comportavam mais de 1000 pessoas, foram espaços importantes para absorver a
ampliação do público da MPB. Nos anos 1980 os teatros de médio porte (entre 300 e
do gênero, passando a ser ocupados cada vez mais por artistas do circuito musical
tipo de circuito foi um dos mais importantes da MPB da abertura. Na maioria dos
cívicas, sindicais ou políticas (comícios), mais freqüentes a partir de 1978. A MPB foi
MDB (Chico Buarque e Milton Nascimento eram fieis ao partido e continuaram sendo
ao regime militar ainda não foram devidamente estudados e constituem-se num tipo de
completamente diferente das outras audiências citadas. Neste caso, é de se supor que
eventos.
453
Sobre o papel da música e da cultura na resistência protagonizada pelo Movimento Estudantil ver
MULLER, Angélica. A Resistência do movimento estudantil brasileiro contra a ditadura e o retorno da
UNE à cena pública (1969-1979). Tese de Doutorado em História, USP/ Universidade Paris I, São
Paulo/Paris, 2010 (p.71-88); COSTA, Caio T. Cale-se. São Paulo, A Giraffa, 2003
270
premonitório, fez a seguinte declaração ao Pasquim: “O som dos anos 70 talvez não
seja um som musical. De qualquer forma o único medo é que esta talvez venha a ser a
1970 como “a década do silêncio”, depois dos memoráveis sons musicais dos anos
1960.
Ao fim e ao cabo, a música popular pode ter tido alguma responsabilidade pela
os limites dos grupos sociais previamente identificados com ela, bem como os limites
estético. Isto não quer dizer que a música ocupou o lugar da política: ambas
na vida pública, fazendo acordar os homens e adormecer as crianças. Ou, quem sabe,
CAPÍTULO 7
pela sua inserção na cultura de massa. Essa crise foi marcada por um grande debate
no segundo semestre de 1978 o debate cultural foi dominado pelo tema das “patrulhas
ideológicas”, termo cunhado pelo cineasta Carlos Diegues que estava lançando seu
novo filme – Chuvas de Verão. O filme, tal como o anterior – Xica da Silva, de 1975,
que já o havia criticado pelo filme anterior, Diegues veiculou sua indignação diante da
público, com ampla cobertura da imprensa, sempre interessada numa boa polêmica.
454
NAPOLITANO, Marcos. “O caso das patrulhas ideológicas na cena cultural brasileira do final dos anos
1970” IN: MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São
Carlos, EDUFSCar, p. 39-46.
272
O debate em torno das "patrulhas ideológicas" deve ser pensado como sintoma
de uma crise mais ampla da relação entre arte e política no Brasil após 1964. Este foi
para a democracia, que se anunciava na segunda metade dos anos 1970, sob o
caso das “patrulhas ideológicas” foi um sintoma desta crise maior que marcou o fim de
um ciclo de engajamento artístico que se iniciou no final dos anos 1950, atravessou a
década de 1960 e entrou numa longa crise a partir de 1968, embora represada devido
A relação entre arte e política no Brasil, tal como experimentada à esquerda, foi
demarcadas.
455
HOLLANDA, Heloisa B. & MESSEDER, Carlos. (Orgs.). Patrulhas ideológicas. São Paulo: Brasiliense,
1980
273
de São Paulo. Portanto, no seio da arte engajada brasileira, o projeto de uma estética
politizada.
fenômeno ocorrreu dentro de um mercado cultural cada vez mais forte e alargado a
partir do final dos anos 1950, ampliando o diálogo entre estes diversos campos
artísticos, estimulado pelo surgimento de novos circuitos de arte engajada. Uma das
marcas centrais deste ciclo de engajamento artístico foi a migração de jovens artistas,
artista deixasse de lado seus interesses puramente estéticos, para elabora um tipo de
massas na direção das Reformas sociais propostas pelo presidente João Goulart,
estético, e desde o seu lançamento iniciaram um grande debate sobre dois aspectos
274
texto de José Miguel Wisnik abria o debate: “Em 1968, a cultura estava refletindo ou
políticas, por um lado, estéticas, por outro” [Boal, Vandré, Oficina, Sganzerla]. Agora,
em 78, parece que certas questões ressurgem nas manifestações culturais, às vezes
Esse novo impasse só pode ser superado se pensarmos em o que aconteceu de fato
compreender o radicalismo cultural como produto de uma crise política, sob as ruínas
456
SOUZA, Miliandre Garcia. “A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC”. Op.cit.
457
“Arte, ideologia e poder”. Versus, 20, abril/maio, 1978, p. 36-39
275
alguns elementos que marcariam uma parte da nova crítica intelectual de esquerda
relação forma-conteúdo que era imposta por esta corrente. Ao mesmo tempo, a
presença estruturante dos meios de comunicação, dirigidos por uma lógica própria e
incontornável, era uma realidade concreta e exigia novos termos para organizar o
debate. O mesmo Wisnik tentou sintetizar o debate proposto, pautado na recusa geral
“Parece que se tornou difícil sustentar projetos culturais não só por estas questões de
massa (...) que dá à produção cultural um caráter dirigido, isto é, ela é dirigida por
Nessa fala estavam postos os dilemas que se aprofundariam ainda mais nos
questão central, colocava-se em questão o lugar do intelectual que não era, a priori,
458
Idem, p. 38
276
área cultural, talvez represente a última tentativa de afirmar um frentismo cultural com
nacional-populares.
comunicação” impresso.
Primeiro de Maio” que reuniram a elite musical da MPB em espetáculos voltados para
brasileira. O primeiro deles foi realizado em 1979, no Rio Centro, o mesmo lugar do
277
frustrado atentado à bomba de 1981, quando dois agentes do DOI-CODI morreram por
dentro do pavilhão. O caso, apesar da farsa oficial que se montou para encobri-lo,
proposto não em São Paulo, mas em Niterói, entre 2 e 6 de agosto de 1979, do qual
Nacional, a qual tentava articular a luta pela democracia (anistia, constituinte, fim da
A idéia de “unidade sindical” defendida pela entidade chegou ao seu ponto máximo na
não aprofunde ou assuma o dissenso estrutural no meio intelectual, é lógico supor que
459
Brasil Democrático, 3, 1979, p.8.
460
Para uma análise do primeiro CTI, lançado em 1963, ver CZAJKA, Rodrigo. “Redesenhando
ideologias: cultura e política em tempos de Golpe”. História, Questões e Debates, 40/40, 2004, 37-57
461
Brasil Democrático, 3, 1979, p. 7
278
moldes dos anos 1960, ou mesmo em formato diferenciado e mais plural, pois mesmo
um consenso mínimo em torno das tarefas culturais na luta democrática parecia cada
vez mais improvável no final dos anos 1970. Neste sentido, as tensões estéticas e
partidária e nos movimentos sindicais. Se a luta pela democracia como fim era
pelo PCB dentro da lógica frentista, era o sistema político (sobretudo o parlamento) e a
cujas lutas não deveriam ser canalizadas pelo frentismo oposicionista que tentava
dos problemas nacionais, legando maior poder aos técnicos e burocratas de carreira.
pode exercitar sua crítica de forma mais ou menos livre num precário exercício de
vida pública que se diluiu ainda mais após o Ato Institucional nº 5 (1968).
revolução para o tema da resistência democrática, cujo ponto de inflexão foi a derrota
279
regime, por volta de 1972. A partir de então, consolidou-se a visão de uma dupla
derrota revolucionária – seja a revolução burguesa, a via pacífica defendida pelo PCB
“Partidão”.
Estado, conquista que deveria se dar através das lutas civis, dos movimentos sociais e
da aliança tática com setores liberais, cada vez mais afastados do regime militar a
partir do final dos anos 1960. Este processo de “resistência democrática” vivido pela
Ernesto Geisel.
institucional e uma política cultural menos repressiva. Esta última tentou incorporar
uma arte de “boa qualidade”, contrapeso da indústria cultural crescente. Além, é claro,
brasileiro perante o mercado. Nas áreas de teatro e cinema, a política cultural oficial
será particularmente decisiva para dar novo vigor da produção artística, inclusive feita
por criadores de esquerda, entre 1975 e 1981. Esta conjuntura é fundamental para o
mais colada ao Estado – mesmo que só utilizando a máquina estatal por vias indiretas
– e à política de grandes produções; outra, que envereda por uma organização dos
cineastas de forma autônoma, que não deixaria de constituir um foco de pressão sobre
comunicação que este debate suscitou na época, ele está inserido numa problemática
maior, cuja análise deve ir além do campo cinematográfico, embora este fosse seu
epicentro mais sensível e complexo. No plano conjuntural, o debate foi instigado pelos
segmentos médios que florescerá nos anos 1980, mais ligado às heranças da crítica
articulado como projeto global de transformação social, como foi a arte engajada dos
entre a “nova” e a “velha” esquerda que este debate deve ser situado.
social que, ainda hoje, costuma ser pensada a partir de uma convergência e unidade
462
RAMOS, José M. O. Op.cit. p. 148
463
DUNN, C. Op.cit
281
ditadura.
de agosto de 1978, quando o diretor Carlos (Cacá) Diegues concedeu uma entrevista
jornalista Pola Vartuck, Diegues desabafou465: “tem uma certa esquerda no Brasil que
emoção, a derrota à vitória (...) um negócio que eu acho muito grave é essa espécie
de patrulha que existe no Brasil. Uma espécie de polícia ideológica que fica te vigiando
nas estradas da criação, pra ver se você passou da velocidade permitida” . Ao longo
ele era a retomada do “verdadeiro projeto original do Cinema Novo”. Além disso,
inserção da obra de arte no mercado, à medida que a “obra de arte era feita para o
mesma entrevista foi publicada no Jornal do Brasil, já com o título provocativo de “uma
Filmes), a empresa estatal que era um dos eixos da nova política cultural do governo
militar. O filme encenava a vida da famosa escrava que viveu no Distrito Diamantino
464
”Por um cinema popular e sem ideologias”. O Estado de São Paulo, agosto, 31, 1978. A mesma
entrevista foi republicada sob o título, mais bombástico, de “Uma denúncia das patrulhas ideológicas”,
Jornal do Brasil setembro 3, 1978, Caderno B, p.2. No mesmo dia, Diegues ainda publicou um texto-
manifesto e concedeu uma entrevista à Folha de São Paulo, onde reiterava suas críticas às “patrulhas”.
Estes textos foram republicados na íntegra em Diegues, Carlos. Cinema Brasileiro: idéias e
imagens.(Porto Alegre: Editora UFRGS, 1999).
465
DIEGUES, C. Op.cit. p.32-33
282
rico da Colônia. Ao optar pelo humor e erotismo, amarrados pelo tom de farsa histórica
que o seu filme foi um fracasso de crítica e vítima de algum boicote da opinião pública
valorizado. Foi considerado um filme que aliava qualidade e diversão, por quase todos
Brasil (José Carlos Avellar) e O Globo. Na estréia, foi elogiado por artistas como
Caetano Veloso, Gustavo Dahl e Chico Buarque e Glauber Rocha. Este último apesar
nacionalistas do governo Geisel, ainda era o grande guru do cinema brasileiro e foi um
Enfim, se o filme Xica da Silva teve tanta repercussão positiva, qual a causa da
ecoado pelos maiores órgãos da imprensa liberal da época? A rigor, o filme foi alvo de
466
Sobre a imprensa alternativa, destacamos o trabalho de KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
Revolucionários Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta. 1991
283
críticos ao regime.
Maar, dois nomes ligados à Universidade, acusaram Cacá Diegues de “voltar a matar”
Xica da Silva, transformando-a numa “dama de corte”, cultuando uma “inteligência fora
fortuna e a liberdade dos brancos”. Além disso, o filme era acusado de privilegiar o
perspectiva ideológica embutida no filme, diziam que Carlos Diegues era produto do
Terminavam o artigo de maneira provocativa, dizendo que Xica da Silva era “o melhor
1976”467.
467
RONCARI, Luis. e MAAR, Wolfgang. “O novo samba enredo de Xica da Silva”, Movimento, nº 65,
setembro, 09,1976, 17
284
regime militar, que procurava retomar o contato com setores intelectuais de oposição,
visando construir uma ponte com a sociedade civil. O artigo sugeria que Cacá Diegues
era um instrumento, ativo ou passivo, deste projeto que fazia convergir nacionalismos
de esquerda e de direita.
O jornal Opinião, através de cinco artigos, veiculou uma avaliação mais ampla
e plural do filme Xica da Silva468. Duramente criticado por Carlos Frederico, Carlos
Matta e pelo escritor Antonio Callado. Portanto, nem se pode dizer que o jornal foi
que uma condenação pública do filme. A rigor, Celso Frederico, Carlos Hasenbalg e
Beatriz Nascimento foram os que criticaram duramente o filme469. Para o primeiro, Xica
filme um “deboche” da verdadeira cultura popular, sendo “acrítico”, faltando com rigor
esquerda472.
468
Opinião, nº 206, outubro, 10,1976, 18-21.
469
Celso Frederico e Carlos Hasenbalg eram doutorandos em sociologia na época. O primeiro tornou-se
especialista em questões de estética marxista e o segundo, especialista em relações raciais no Brasil.
Ambos estavam ligados ao campo do marxismo universitário.
470
FREDERICO, C.”Genial?Racista?Digno do Oscar? Abacaxi?”. Opinião, out 10, 1976, p.18-19
471
HASENBALG, Carlos. “Copiando o senso comum”. Opinião, out 10, 1976, p. 19
472
NASCIMENTO, Beatriz. “A senzala vista da Casa Grande”. Opinião, out 10, 1976, p.20-21
285
farsesco de Xica da Silva, vendo na personagem a astúcia dos fracos que usa o corpo
Apesar dessas críticas terem sido feitas no final de 1976, somente no segundo
na opinião pública. Carlos Diegues estava lançando seu novo filme – Chuvas de Verão
– que também não seguia a fórmula dos filmes engajados e militantes, ao contar a
história de amor de dois idosos num subúrbio carioca. Ao veicular sua indignação em
outro, Jornal do Brasil, progressista), Cacá criou o slogan que foi a senha para muitos
pela direita para apontar as "patrulhas" como uma espécie de bode expiatório
responsável por todas as dificuldades existentes na vida intelectual. Por que o nome e
a coisa não apareceram antes? Porque durante os anos mais difíceis a oposição
explicitamente, como o foco dos patrulheiros de plantão, cobrando dos artistas que se
culturais, voltadas para o projeto de estimular a consciência crítica das massas. Mas, a
473
MATTA, R. “A hierarquia e o poder dos fracos”. Opinião, out 10, 1976,p. 19-20; CALLADO, Antonio.
“Bem nascido e bem dotado”. Opinião, out 10, 1976, p.21
474
HOLLANDA, H.B. e MESSEDER, C. Op.cit.
475
Jornal do Brasil, 30/08/1980, arquivo on-line acessado em 28/5/2004
476
HOLLANDA, H.B. e MESSEDER,C. Op.cit., p.8
286
rigor, o epicentro das patrulhas ideológicas era mais disperso, pois envolvia vários
pólos em conflito.
tinha-se a impressão que todo mundo patrulhava todo mundo na cena cultural
em torno de dois anátemas para a esquerda mais purista, ao mesmo tempo em que
havia muito tempo “estava no ar”, em meio à qual os atores políticos e culturais
brasileira.
477
Idem, ib.
287
exílio, em 1974), em outros jornais, entre 1977 e 1978, já em pleno fogo cruzado do
- A imprensa liberal que, seja através da cessão do espaço dos jornais, seja através
da fala de articulistas mais identificados com a linha editorial liberal, tentava direcionar
O jornal O Pasquim, por exemplo, foi um dos espaços que os “patrulhados” - Glauber
tempo, é bom lembrar, alguns membros do jornal, como os cartunistas Ziraldo e Henfil,
ficaram famosos pelas suas críticas a qualquer tipo de adesão ideológica ao regime
Caetano Veloso, um dos patrulhados por defender as virtudes culturais de uma música
Caetano, apesar disso, fez questão de marcar posição diferenciada em relação à Caca
Diegues: “Eu acho os filmes dele [Cacá Diegues] mais parecidos com o outro lado do
478
MOTA, Carlos G. Op.cit.
288
que com o lado patrulhado”479. Em outra entrevista, para a Revista Istoé, em dezembro
de 1978, bem ao seu estilo polemista, o compositor baiano atacava: “No Brasil ser de
cantava, em plena ditadura “deixa eu cantar / pro meu corpo ficar Odara”. Nos anos
1980, surgiu até uma certa “patrulha Odara”, apelido irônico da corrente de opinião
voltada para a defesa de uma contracultura pop e libertária, que invertia os sinais da
Mesmo Aldir Blanc, letrista consagrado pela audiência politizada, também se sentiu
patrulhado e atacou: “Eu tive experiências com muitas pessoas de esquerda, mas eu
procuro fugir da visão da esquerda, de parte da esquerda brasileira, que não evoluiu
historicamente, como se tivesse sido fechada para balanço, e quando há uma chance
Glauber Rocha deu uma explicação completa para o caso, apontando o dedo para
outros endereços ideológicos. Vale a pena a longa citação481: “Por exemplo, quem
Diegues, foi o jornal O Estado de São Paulo que é um jornal da extrema direita
paulista, que foi combatido até pelo Cláudio Abramo na Folha, que lamentou que as
da intelectualidade (...) Diga-se de passagem, que a denúncia de Cacá não tinha como
uma raiz interna que a imprensa nem sabe e o público também fica sem saber. Mas o
formou-se o jornal Opinião, dirigido pelo senhor Fernando Gasparian, que era ligado
479
apud VENTURA et alli. Op.cit. p.154
480
HOLLANDA, H.B e MESSEDER, C. Op.cit., p.119
481
apud VENTURA, Z. et alli. Op.cit. p. 156
289
ao MDB. A maioria dos colaboradores desse jornal era composta de universitários, dos
quais uma parte – professores, sociólogos, cientistas sociais e tal – estava ligada ao
Fundação Ford, não sei qual. Acontece que a política cultural desse grupo – que tem
uma ordem de combater o Cinema Novo, por que o cinema novo estava ligado ao
Estado, via Embrafilme (....) a patrulha era coisa da social democracia e do liberalismo
patrulhas ideológicas. Na segunda metade dos anos 1970, o mais famoso cineasta
unidade das oposições ao regime, cada vez mais esgarçada àquela altura, alertou483:
“a questão das patrulhas só produz, da parte dos intelectuais, um certo horror a este
tipo de cobrança e uma hostilidade com relação às pessoas que fazem esta cobrança,
o que tem como conseqüência a divisão do setor intelectual, e isto é uma coisa
esquerda
482
MOTA, Carlos G. Op.cit.
483
apud VENTURA, Z. et alli. Op.cit. p. 181
290
importa ressaltar é que, tomando por base os trechos citados, parecia haver uma
ao regime militar oscilava, desde o início dos anos 1970, entre diversas estratégias e
voz dos interesses populares na política e na cultura, já anunciada desde 1968, mas
congelada no momento de maior repressão do regime. Esta crise era marcada por três
homogênea de “povo” para emanar a identidade nacional; 3) não havia mais uma
expressão ideológica segura para aglutinar o interesse geral, nem uma estratégia
regime militar.
484
Outra tipologia, de caráter mais político-ideológico, da oposição ao regime militar pode ser vista em
SAES, Décio.Op.cit. O autor destaca três vertentes: a oposição liberal, a oposição sindical e oposição
democrático-popular.
485
PECAULT, D. Op.cit.
291
tanto para o velho populismo esquerdista, quanto para a nova esquerda que iria
vigoroso nas periferias das grandes cidades, que colocava em xeque um dos
justa” às reflexões e obras de arte produzidas por artistas e intelectuais que deveriam
486
Esta afirmação não nega a existência de uma arte de crítica social, que até hoje existe no Brasil, muito
ligada às novas identidades subjetivas que surgiram após os anos 1980, como aquelas representadas
pelos movimentos jovens, negros, de mulheres, etc. Apenas queremos destacar o esgotamento de um
tipo de arte engajada, ancorada em projetos universalistas de revolução política e social em direção ao
socialismo.
487
CHAUI, M. Seminários. Coleção “O nacional e popular na cultura brasileira”, São Paulo, Brasiliense,
1983.
292
anteriormente.
ligados a industria da cultura. Não foi por acaso que os grandes jornais liberais deram
Folha de S.Paulo chegou a afirmar que a “esquerda também tem seus patrulheiros,
verdadeiros corifeus de um terrorismo cultural que muitas vezes tem feito mais mal à
uma arte politizada como imperativo para a criação cultural. Na época, estes valores
liberais não eram consensuais entre os produtores culturais e ainda reinava uma certa
1964. Um dos poucos artistas a lembrar do caráter coercitivo da visão liberal de cultura
de mercado, que pegava carona na fala libertária de muitos “antipatrulheiros”, foi José
Celso Martinez Correa que se preocupava menos com os críticos de esquerda, e mais
com a “irresponsável concepção liberal de arte que termina por limitar a arte ao
universo do consumo”489.
imperativos políticos dados a priori por uma instância partidária ou ideológica. Além
488
Folha de S.Paulo , 22/1/80, p. 2
489
apud DUNN, C. Op.cit. p. 8
293
nem sempre praticado dentro das próprias redações dos grandes jornais, a questão da
marcado pelo embate entre as diversas políticas culturais de resistência ao longo dos
anos 1970. A querela central no começo da década era entre as táticas de “guerrilha
cena. Já no final dos anos 1970, o artista de esquerda não poderia mais supor que a
“ida ao mercado” era uma estratégia sem conseqüência políticas, veículo neutro para
expor suas idéias a um público mais amplo, tal como preconizado até meados dos
anos 1960. Cada vez mais, a indústria da cultura exigia fórmulas estéticas voltadas
políticas em torno da arte engajada. Esta tensão não era novidade, mas se acirrava no
ocidental, já consistia um problema em si, outra pergunta se fazia cada vez mais ouvir
em meio ao debate: como seria possível uma arte engajada mediada pela lógica do
Por trás da trama no caso das patrulhas ideológicas, havia um cenário invisível,
bem mais complexo. A linha cruzada de acusações recíprocas fazia com que os
logo rejeitada e estigmatizada como sendo parte de uma patrulha ideológica ilegítima,
revelando a fragilidade do debate e os dilemas da vida cultural, que eram veículos, por
sua vez, dos dilemas da vida política em tempos de “abertura”. Com as universidades
de tal modo impactantes que quando o regime militar anunciou sua agenda de
para quem estavam direcionadas as obras engajadas (“povo” ou “público”?), quem era
o inimigo principal a ser combatido, como retomar o elo perdido com a política cultural
quase tudo diferente da esfera pública convergente que se esboçou no imediato pós-
golpe, quando o regime era visto, por quase todos os intelectuais de maior prestígio,
Em meio a esta luta cultural complexa, uma instância afirmava-se cada vez
mais sobre as outras, como mediação social e medida de valor da vida cultural
490
LAHUERTA, Milton. “Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo e política no
Brasil”. Cadernos Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP), v. 8, p. 53-95, 2001
295
questão, portanto, vai além do julgamento moral perante o tribunal da história deste
dilemas colocados para o campo da cultura engajada: o que fazer com o legado da
sem caracterizar um “pacto faústico” com o poder? Como expressar novos valores e
desde 1964? Como entender um país marcado por uma relativa “hegemonia cultural”
fácil dos indivíduos ou grupos que aderiram e dos que resistiram ao “sistema”. A
491
ORTIZ, R. Op.cit.
492
A opinião pública de esquerda (não-comunista) tende a perceber este processo como uma
“cooptação” de seus quadros pela indústria da cultura e pela burocracia estatal, visão em parte
endossada por analistas da cultura de esquerda brasileira, como Edelço Mostaço (MOSTAÇO, E. Op.cit).
493
O campo intelectual da direita conservadora ou liberal também se posicionou em relação às
contradições da “hegemonia cultural” da esquerda no Brasil, desde os anos 1960. Exemplos deste tipo de
crítica podem ser notados nas crônicas de Nelson Rodrigues, nas colunas de Paulo Francis dos anos
1980 e seus seguidores contemporâneos que atualmente hegemonizaram o colunismo político-cultural
nos jornais brasileiros. Ocorre, no entanto, que as críticas da cultura de esquerda, quando proferidas por
estes polemistas de direita, acabam limitando-se a um olhar anticomunista (ou antiesquerdista) e a uma
linha de argumentação excessivamente valorativa e adjetivante. Neste sentido, a análise destes autores é
marcada, quase sempre, pelo tom saudoso de uma erudição perdida, pela defesa de uma espiritualidade
idealizada ou pela denúncia do conjunto dos artistas e intelectuais engajados como meros “impostores”
incultos. Paradoxalmente, estes textos têm um estilo mais próximo dos autores panfletários da esquerda
militante, o que dificulta um diálogo acadêmico mais sistemático com suas críticas culturais, mesmo
considerando a eventual pertinência de alguns dos seus argumentos. A única exceção entre estes críticos
culturais situados no espectro da direita, surgidos a partir dos anos 1960, talvez seja José Guilherme
Merquior. Este, um liberal assumido, elaborou uma obra respeitada em torno da crítica literária e
filosófica, indo além das suas famosas polêmicas com intelectuais de esquerda ao longo dos anos 1980,
como Marilena Chauí, Francisco de Oliveira e Helio Pellegrino, entre outros.
296
Brasil.
297
CAPÍTULO 8
cultural do regime militar. Objeto de ampla reflexão, quase sempre feita por
até então, era acalentado pela oposição ao regime, sobretudo pelo PCB.
494
SINGER, Paul et alli. São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis, Vozes, 1980; SADER, Eder.
Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988;; MACEDO, Carmem
C. Tempo de gênesis: o povo das CEBs. São Paulo, Brasiliense, 1986; DUARTE, Laura. Isto não se
aprende na escola. Petropolis, Vozes, 1984. Para uma visão crítica desta corrente ver COHN, Maria
Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo, Edições
Loyola, 2007 (6ªed), p. 273-294. Sobre as teorias e o contexto de atuação dos “Novos Movimentos
Sociais” nos anos 1970 e 1980, ver EVERS, Tillman. "Identidade: a face oculta dos movimentos sociais".
Novos Estudos Cebrap, 10, 1984; BOSCHI, Renato Raul. A arte da associação. Vértice e IUPERJ. São
Paulo/Rio de Janeiro, 1987; MOISÉS, José Álvaro et alii Cidade, povo e poder Paz e Terra, Rio de
Janeiro, 1985 (2ªed.); SCHERER-WARREN, Ilse e KRISCHKE, Paulo J. (org.). Uma revolução no
cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. Brasiliense, São Paulo, 1987.
495
Sobre a trajetória do PT e sua relação com os movimentos sociais e sindicais ver KECK, Margareth.
PT: a lógica da diferença. O partido dos Trabalhadores na construção da democracia brasileira. São
Paulo, Brasiliense, 1991
496
Sobre a esquerda católica no Brasil ver RIDENTI, Marcelo. “A ação popular” IN: .REIS FILHO, D. e
RIDENTI, M (orgs). História do Marxismo no Brasil (vol.5). Campinas, Ed. Unicamp, 2002;
MAINWARING, S. Igreja e política no Brasil. Brasiliense, 1989 (p.81-98); LIMA, H. & ARANTES, Aldo.
História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. São Paulo, Alfa-Omega, 1984. Um dos primeiros livros
sobre esta corrente foi escrito por Candido Mendes (Memento dos Vivos, 1966). Para uma análise mais
ampla da gênese político-filosófica da “esquerda cristã” ver BOSI, A. “Lugares de encontro.
Contraideologia e utopia na história da esquerda cristã” IN: Ideologia e Contraideologia.Op.cit. p. 257-
275. Neste artigo, Bosi destaca a atuação do movimento “Economia e Humanismo”, coordenado pelo
padre Louis-Joseph Lebret na França entre os anos 1940 e 1950. Para ele, este movimento ao lado da
atuação do Padre Lebret no Brasil está na base do “terceiro-mundismo católico”, até hoje vigoroso.
298
político informada pelo antimodernismo do catolicismo Romano de Leão XIII e Pio IX,
ainda no século XIX, pelo novo papel atribuído ao laicato na afirmação doutrinária na
sociedade e pela luta contra o comunismo ateu, sobretudo a partir de 1917, ano do
ator político a partir da atuação de Dom Sebastião Leme497, dos intelectuais laicos dos
meio à rica conjuntura política criada pela Revolução de 1930, que colocou Getúlio
aproximação com os fiéis, através dos movimentos laicos, acabou por contaminar a
instituição dos novos valores políticos surgidos na luta por justiça social e defesa dos
Entretanto, a partir daí, o “povo de Deus” deixava de ser uma categoria genérica, e
passava a ser visto como “povo enquanto categoria específica que se refere ao
mineiro publicou a tese “Algumas diretrizes de um ideal histórico cristão para o povo
geral, esteve ao lado dos golpistas de 1964, saudando a “vitória sobre o comunismo” e
acabaram por levar a Igreja, como instituição, para o campo da oposição ao regime
militar, posição que seria radicalizada por uma parte significativa da sua alta
trabalhadoras, não apenas para conformá-las à ordem do mundo, mas para preparar
Humanos foi confirmada em 1968503. Este ano marca a virada política da Igreja e seu
canais de pressão e diálogo crítico na área de Direitos Humanos504. Entre 1970 e 1973,
500
MAINWARING, S. Op.cit. p. 82...
501
“Declaração de Princípios” da AP, 1962.
502
“Nota da CNBB” apud MAINWARING, S.Op.cit. p.102
503
A Teologia da Libertação de viés católico foi proposta por Gustavo Gutierrez no livro Teologia da
libertação (Petrópolis, Ed. Vozes, 1975,original de 1971) e por Leonardo Boff ( no livro Jesus Cristo,
libertador. Petrópolis, Vozes, 1972). Propunha uma releitura dos evangelhos na direção de uma
humanização da ação e da figura de Jesus Cristo, identificada aos oprimidos de todas as épocas. A
realização espiritual de origem divina passa a ser um desafio terreno e humano, na construção da
comunidade dos justos e iguais em luta contra as forças que a impedem. Nesta perspectiva, o “povo de
Deus” não se realiza em uma dimensão metafísica ou pós-apocalíptica, mas como ideal de sociedade a
ser construída cotidianamente em um processo de libertação social que começa com a libertação pessoal
entendida como jornada de conscientização ativa da pessoa humana. Daí a importância que a educação
de base politizada adquiriu para a esquerda católica. Outra vertente da “Teologia da Libertação”, de
matriz protestante-presbiteriana, podemos encontrar em Rubem Alves. Ver ALVES, R. Da esperança.
Campinas, Papirus, 1987.
504
SERBIN, Keneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na Ditadura. São
Paulo, Cia das Letras, 2001. Neste livro, o historiador norte-americano analisa a Comissão Bipartite que
entre 1970 e 1974 manteve um canal de diálogo entre Igreja e governo militar, sobretudo em torno da
questão dos direitos humanos. A existência de um canal institucional entre bispos e generais, conforme o
autor, deve matizar a dimensão que a ruptura entre Igreja e Estado ganhou na historiografia sobre o
regime.
300
uma das mais aguerridas na luta pelos Direitos Humanos, organizando cerimônias
militantes laicos, agentes pastorais e baixo clero. As CEBs foram o laboratório das
partir dos bairros periféricos das grandes cidades, locus idealizado da ação da Igreja,
como mediadora crítica entre o Estado e o Povo, a “voz dos que não tem voz”, como
se viam como uma vanguarda tanto quando as outras esquerdas, mas uma vanguarda
inserida geográfica e afetivamente dentro das massas populares. Aquilo que era
nomeado pelo PCB como “obreirismo” passava a ser visto como virtude ética do
505
MAINWARING, S. Op.cit. p. 123. Destaque-se, neste processo, os documentos “Marginalização de um
povo” (24/12/1970) e “Eu ouvi os clamores do povo” (6/9/1973).
506
MACEDO, Carmem C. Op.cit. p.249
301
laicas desenvolveram uma forma peculiar de militância política que tinha algumas
“anos de chumbo” fez com que esta forma de resistência, por vezes, se imbricasse
com outras, defendidas por outras correntes políticas, e ocupasse os mesmos espaços
que nos remete ao início dos anos 1960, quando surgiu a primeira grande organização
“Cultura Popular”, e que pode ser tomada como uma das bases para a futura definição
moderna tenha uma destinação universal, uma vez que as obras culturais se criam
fato, aos interesses de uma classe, de uma determinada posição social. A esse tipo de
507
FÁVERO, Osmar et alli. Cultura popular e educação popular: a memória dos anos 60. Rio de Janeiro,
Graal, 1983, p. 16-30
508
Idem, p. 22-23
302
cultura contra a outra). Mas é como, intencionalmente universal que a cultura deve ser
dita popular, isto é, uma cultura que permita a abertura das consciências num grau de
popular a cultura que leva o homem a assumir a sua posição de sujeito da própria
inserido”.
entanto, sua vocação como arma de consciência é voltar a ser universal, desde que
que a cultura seja apropriada pelas classes populares num processo paulatino que
católica, que no final dos anos 1970, informaria a crítica da nova esquerda basista ao
nas idéias do filósofo-educador Paulo Freire509. Apesar de, na conjuntura do início dos
trabalhistas. Desde seu surgimento em Recife, ainda no final dos anos 1950, apontava
509
FÁVERO, Osmar et alli. Op.cit.; FAVERO, O. Uma pedagogia da participação popular: análise da
prática educativa do MEB - Movimento de Educação de Base (1961/1966). Campinas: Autores
Associados, 2006; SCHELLING, Vivian. Op.cit. p.240-260.
510
BEISIEGEL, 1982, p. 103
303
da “revolução brasileira” isebiana, referendada pelo CPC e pelo PCB511. Para Daniel
grande parte retomado, no início dos anos 1970, pelos setores católicos das
relações e dos problemas cotidianos. O fato de que seja concebida sob o signo da
‘sociedade orgânica’, e que dela possa surgir uma dúvida sobre seus elos com as
educador humanista católico, que mesclou vários pensadores católicos como Jacques
originais de ações práticas e reflexões teóricas, tal impacto na vida cultural brasileira
ainda está por ser avaliado. Um dos efeitos desses movimentos, sem dúvida, foi a
afirmação de uma cultura popular “de resistência” ao longo dos anos 1970, que
511
Sobre o nacionalismo isebiano e o conceito de “revolução brasileira”, ver ORTIZ, R. Cultura brasileira e
identidade nacional. São Paulo, Brasliense, 1992. Para uma crítica do ISEB ver TOLEDO, Caio N. ISEB:
Fábrica de Ideologias. São Paulo, Ática, 1982 (2ªed.).
512
PECAUT, D. Op.cit. p. 168
513
Sobre as apropriações de Maritain no Brasil ver COMPAGNON, Olivier. Jacques Maritain et l’Amérique
du sud: le modèle malgré lui. Villeneuve D’Ascq, Presses Universitaires du Septentrion, 2003
514
Recife era a capital do Nordeste com maior influência da esquerda, tanto do ponto de vista político,
quanto cultural. Formava, com os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, o “Nordeste vermelho”,
marcado por experiências políticas, culturais e educacionais de grande impacto nacional. Uma das
primeiras manifestações desta efervescência política foi a Frente do Recife, formada em 1955 pelos
partidos PTB, PTN e PSB, com apoio do PCB, que elegeu Pelópidas da Silveira. Miguel Arraes foi o seu
sucessor, em 1959, dando continuidade ao governo municipal reformista, depois alçado ao governo do
Estado, em 1962. O MCP e o MEB fazem parte deste contexto.
304
Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Hermilo Borba Filho. Era um movimento plural,
incluíam biblioteca, cinema, teatro), uma galeria de arte (“Galeria de Arte do Recife”) e
um grupo teatral, o Teatro de Cultura Popular515. Tinha uma conexão quase orgânica
No seu “plano de ação” para 1963, o MCP assume seu caráter político e
515
“O que é o MCP?”. Folheto do Governo de Pernambuco, 1964 (republicado em Arte em Revista, 6,
out/1981, p.67-71
516
FAVERO, Osmar. Op.cit. p. 91
305
diretriz reveladora do germe da noção de “cultura popular” dos anos 1970 era a
“opta por ser povo”, sem deixar de ser vanguarda dirigente e externa às comunidades,
cultural era assumida, vista como necessária como animadora e impulsionadora das
atividades do MCP, mas suas “conquistas” deveriam ser estendidas “ao nível das
inspirado em Paulo Freire, tinha ligações orgânicas mais diretas com a Igreja Católica.
Neste sentido, apesar de matizar o seu discurso mobilizante em torno das “reformas
517
Idem, p. 93
518
Idem, p. 96.
519
Idem, p. 95
306
povo deve ser o agente da sua história (sem a direção de uma ‘vanguarda’ como força
vividos pela comunidade; c) respeito pela cultura e pelos valores populares, sem tomá-
tomadas como pistas de uma possível política cultural da esquerda católica, que
Esta perspectiva sobre a cultura popular, ainda que não estivesse imune ao
realçando o povo como “ser da nação”, ainda se viam como seus intérpretes e
conceito de “democracia da pessoa” era central nesta nova ética. A “pessoa humana”,
520
MAINWARING, S. Op.cit., p. 88-89
521
Idem, p. 90
522
PECAUT, D. Op.cit. p.169
307
oposto, tanto do conceito liberal de individuo, jurídico vazio, quanto do “ser social”
materialista dos comunistas. Era a base filosófica desta nova crítica cultural de
de esquerda como uma forma de ação pastoral, não deveria apenas dar “conforto,
realizar-se”526.
Os comunistas, por outro lado, herdeiros de uma política cultural mais antiga e
no início dos anos 1960. O famoso e muito citado “Manifesto” do CPC tipifica a cultura
em três níveis – nomeados como arte do povo, arte popular e arte popular
elemento externo à classe trabalhadora. Carlos Estevam Martins, seu autor, deixa bem
pretensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de
523
Aqui a esquerda católica reencontra os filósofos católicos que tematizaram a pessoa e a “democracia
da pessoa”. Ver MOUNIER, Emmanuel. “Le personalisme”. PUF, Coleção “Que sais-je?”, 395, 1950 e
MARITAIN, Jacques. Humanisme Intégral. Paris, F.Aubier, 1936.
524
SCHELLING, Vivian. A presença do povo na cultura brasileira. Ensaio sobre o pensamento de Mario
de Andrade e Paulo Freire. Campinas, Editora Unicamp, 1990; RIBEIRO, Jorge. Festa do povo:
pedagogia da resistência. Petropolis, Vozes, 1982, p. 273
525
SCHELLING, V. Op.cit..p..262
526
Idem, p. 263.
527
MARTINS, C.E. “Anteprojeto do Manifesto do CPC/UNE” IN: HOLLANDA, H.B. Impressões de
viagem.Op.cit.p.121-144
308
a única saída era a formação de uma “arte popular revolucionária”. Diz o manifesto:
“Como nos momentos em que o povo luta não nos comportamos como artistas e sim
como membros ativos das forças populares, podemos bem avaliar, enquanto atuamos
como artistas, a importância que têm as armas culturais nas vitórias do povo e o valor
pelo intelectual revolucionário que “optou ser povo” e por falar a linguagem do povo,
1963: “Colocamos assim os termos que formam o problema central da cultura popular.
De um lado, precisamos infundir no povo uma cultura que ele não tem e que lhe faz
falta, mas à qual ele não consegue chegar sozinho, pois ela é produzida e cultivada
fora do povo: ele encontra-se à margem do processo que produz e cultiva esta cultura.
De outro lado, não podemos entregar ao povo essa nova cultura sem que primeiro nós
próprios nos apossemos da velha cultura do povo. Temos que infundir algo novo e
para isso precisamos nos fundir com o que existe e no nível em que existe”530. Ferreira
sobretudo “às gerações novas”, livres de posições idealistas sobre o fazer artístico
cultural531. Diz ele: “Seria errado pensar-se que somente a produção de obras dirigidas
528
MARTINS, C.E. “CPC da UNE/Manifesto” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p. 65
529
Idem, p. 68
530
MARTINS, C.E.”A questão da cultura popular” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p.47
531
GULLAR, Ferreira. “Cultura popular posta em questão” IN: FÁVERO, O et alli. Op.cit. p.53
309
e o que nos importa é, sobretudo, ganhar os jovens que serão no futuro os produtores
de cultura”. Esta reflexão de Gullar estava assentada sobre a ação cultural direta em
1964532.
Base propostas por João Goulart, essas diferenças entre o documento da AP, as
manifesto” do CPC, aponta as diferenças entre o MCP e o CPC533: “Em primeiro lugar,
não tínhamos [O CPC] nenhuma ligação com o Estado, em segundo lugar, o grosso
do pessoal estava ligado às artes, coisa que não acontecia no MCP (...) O MCP fez
incrivelmente com as praças de cultura (...) seus melhores resultados foram obtidos
junto aos clubes de bairro, clubes de damas, montagem de cursos de corte e costura,
debate no final dos anos 1970, na forma de legados de ativismo cultural. Além destes
532
As diferenças entre as concepções de Gullar, um artista refletindo sobre o sentido ético-político da
criação, e Estevam, um teórico agarrado ao conceito de alienação como medida universal para normatizar
a ação cultural, foram bem exploradas por Sebastião Uchoa Leite, em artigo de revisão sobre a cultura
popular publicado em 1965. Ver LEITE, Sebastião U. “Cultura popular: esboço de uma resenha crítica”.
Revista de Civilização Brasileira, nº4, set-1965, 269-89.
533
MARTINS, C.E. Entrevista ao CEAC, 23/10/1978, publicada em Arte em Revista, 6, out./1981, p.77-82
( trecho p.78)
310
experiência extrínseca ao seu meio social. Na prática cultural efetiva que a arte de
esquerda assumiu no Brasil dos anos 1960 isto não ocorreu, até porque as bases
culturais mais afinados com o PCB, foi uma arte sofisticada em diálogo com a
diversos segmentos artísticos, ao fim e ao cabo, deu abrigo às duas. Seja como for –
pelo mercado e nas instituições ligadas à política cultural estabelecida. Sua linguagem
brasileira”.
534
MARTINS, C.E. Entrevista ao CEAC.Op.cit, p.77-82
311
popular. Este era visto como um mediador inserido nas comunidades populares, um
ao nacional-popular no final dos anos 1970535: “O nosso trabalho, no entanto, deve ser
e portador da nova consciência ao “optar em ser povo”, deveria ser utilizado como
“Manifesto” do CPC nem sequer guiaram efetivamente a produção cultural dos artistas
cultural que se exacerbou a partir do final dos anos 1970, com a emergência da nova
esquerda galvanizada pela emergência dos novos movimentos sociais e pela proposta
intelectualidade radical, não foi uma novidade dos anos 1970 e 1980. Mas acirrou-se a
535
“AP/Cultura Popular” IN FÁVERO, O et alli. Op.cit. p. 29
312
regime (1968-1976).
neste sentido, foi Luiz Ignácio Maranhão Filho, ex-deputado estadual e dirigente do
“nacionalismo”, mudança ocorrida por volta de 1973537, mesmo ano em que boa parte
da alta hierarquia católica assume seu distanciamento com o regime. Ao que parece,
Dakar (Senegal). Depois de fazer um balanço das lutas e misérias da América Latina,
exploração, defendendo uma “pressão moral libertadora”. Naquele contexto, essa era
luta cristã no meio estudantil, “onde existe em princípio um confronto com nossos
irmãos marxistas”, Dom Helder destaca que estes “começam a compreender” que os
536
Para uma análise detalhada da atuação política de Luiz Maranhão na aproximação com os cristãos,
ver GOES, Maria Conceição P. A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho: cristãos e comunistas na
construção da utopia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Revan, 1999; STUDART, Heloneida. Luiz, o santo
ateu. Natal, Editora UFRN, 2006
537
LIMA, Hamilton. Op.cit. p.209
313
católicos estão se “esforçando” para que a religião não seja o “ópio do povo”, mas o
Diz o artigo539: “Para os marxistas, o cristianismo não é por sua natureza uma ideologia
Marx podemos dizer que o cristianismo foi o ‘ópio do povo’, mas igualmente ‘o suspiro
da criatura oprimida’ (...) Os comunistas sabem disso. Por isso em suas relações com
os cristãos, eles não se deixam impressionar pela ideologia cristã, e preferem levar em
conta o comportamento prático, político, de cada grupo cristão, em cada momento (...)
João Paulo II, o PCB faz nova elegia da aliança tática entre cristãos (católicos,
mesmo campo (...)não há uma linha de demarcação entre os brasileiros definida pela
gerais, como Direitos Humanos e democracia, a conjuntura do final dos anos 1970 só
538
Voz Operária, ago/1971, p.4
539
Voz Operária, 136, Jul/1977, p 2. Percebe-se que o artigo era um aceno ao diálogo com a Igreja na
tentativa de reforçar uma nova aliança contra o regime, tendo em vista o documento “Exigências cristãs
de uma ordem política”, lançado em fevereiro de 1977 e assinado por 217 bispos, causando grande
impacto à época, pela contundência que a Igreja, como instituição, se posicionava frente à necessidade
de transição política.
540
Voz Operária, 151, out/1978, p.4
314
final dos anos 1960, o frentismo comunista ainda falava em “luta de classes”,
volta de 1977, comunistas apostavam cada vez mais no frentismo democrático cujo
foco de luta era mais voltado para o triunfo eleitoral - estratégia alimentada pela
popular, sindical e estudantil, culminando com a reconquista simbólica das ruas pelo
abrigado no PMDB por razões táticas. O fato é que o PCB, quase no mesmo momento
criativa – como atesta o episódio das “patrulhas ideológicas” – perdia espaço nos
541
LIMA, Hamilton. Op.cit. p. 160
542
Idem. p.154
543
Sobre os protestos públicos de rua contra o regime entre 1977 e 1984, ver NAPOLITANO, Marcos.
Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo. Curitiba, Juruá, 2002.
544
ANTUNES, Ricardo. O novo sindicalismo. São Paulo, Brasil Urgente, 1991. BOITO JR., Armando. O
sindicalismo brasileiro nos anos 90. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1991. Para uma visão mais crítica ver
RODRIGUES, Leôncio M. CUT : militantes e a ideologia. Rio de Janeiro : Paz e Terra. 1990.
315
O Partido não deu grande destaque à greve metalúrgica de 1978, tida como
movimento operário em 1979 chamou a atenção do “Partidão”, que tentou rever suas
posições e organizar a ação dos seus militantes sindicais para garantir a “unidade” do
classes populares como ator da política, mas deixava claro que elas deveriam ser o
das massas”547.
engrossar as fileiras da sonhada frente democrática dos comunistas, com a volta das
lideranças exiladas, só exacerbou sua crise. No ano seguinte, o PCB “rompia” com a
Igreja, ainda que seus militantes de base atuassem lado a lado nas lutas sindicais e
nas palavras de ordem e nas táticas de luta contra o regime também se explicitaram.
545
MULLER, Angélica. Op.cit....p.110-129. A “Refazendo” incluía militantes de outras tendências “não-
comunistas”.
546
LIMA, Hamilton. Op.cit. 241.
547
Voz Operária, 160, julho/1979, p. 4
316
nova esquerda como um todo. O nacional-popular cepecista passou a ser visto como
procurando outras bases e atores na resistência cultural, bem como outros materiais
debate sobre a cultura popular, marcado por bases diferenciadas em relação aos anos
1960, foi tema de concorridos eventos no meio acadêmico de 1977, como o seminário
cultura popular urbana; (ii) a interação entre urbano e rural no plano da cultura popular
debates da década anterior, que enfatizava o homem rural como o herói por
548
Carlos Guilherme Mota destaca a emergência de um nacionalismo crítico no meio universitário
paulista, a partir dos anos 1950, “pouco afeito ao reformismo desenvolvimentista, às explicações dualistas
[arcaico versus moderno] e aos nacionalismos culturais – ora difusa, ora pesadamente endossados pelas
esquerdas” (p. 38). Sugere que esta linhagem se inicia em Caio Prado, com a História Econômica do
Brasil, se encorpa nas obras de Florestan Fernandes e Antonio Candido (e pelo Grupo Clima),
constituindo-se numa escola de pensamento crítico. Contrapõe esta linhagem aos “parâmetros pedestres
da vertente populista, representada pela obra de Nelson Werneck Sodré”. Temos neste mapa intelectual,
uma boa pista para entender as origens do debate protagonizado pela esquerda petista – cuja base
intelectual em boa parte, estava sediada no meio universitário paulista - dos anos 1970 e 1980 que
colocará em xeque o nacional-popular pensado a partir do Partido Comunista Brasileiro.
549
Sobre o debate na SBPC, ver GALVÃO, Gilberto. “Quem tem medo da cultura popular?”. Movimento,
107, 18/7/1977, p.13; Sobre o simpósio na PUC-SP, ver “A cultura do povo”. Movimento, 101, 6/6/1977,
18
317
cultura popular. Para a nova esquerda, estas deveriam ser as chaves para uma nova
visão política sobre as classes populares. Esta perspectiva seria reforçada pela
emergência dos operários e dos movimentos sociais de periferia como atores políticos
importantes, a partir de 1978. Esta nova perspectiva também serviria para criticar o
“totalitarismo de esquerda” desenvolvida por Claude Lefort ainda nos anos 1950550,
como eixo de uma nova crítica política ao autoritarismo e suas diversas faces, à
esquerda e à direita.
550
Ver, por exemplo LEFORT, C. A invenção democrática. São Paulo, Brasiliense, 1987
551
CHAUÍ, Marilena. “Cultura do povo e autoritarismo das elites” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979, 119-134. Não por acaso, neste texto, Chauí
aponta três autores como basilares para esta nova, e mais avançada na sua perspectiva, concepção:
Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido); Eclea Bosi (Leituras de operárias) e José de Souza Martins (Viola
quebrada). Destes, dois são assumidamente ligados à esquerda católica (Freire e Bosi). Em todo o caso,
esta é apenas uma pista de uma articulação que merece mais pesquisas e reflexão.
552
CHAUÍ, Marilena. Seminários. p.83
318
apoiava. Hoje [1980] ...o radicalismo das críticas de direita e de esquerda parece
Esse aspecto talvez seja inevitável porque os autores não dizem explicitamente de
uma fala universal, cujas premissas são evidentes (...) o povo é ao mesmo tempo,
objeto e destinatário dos discursos. Enquanto objeto, é apresentado pelos textos como
consciência carecendo por isso de uma vanguarda que o oriente e conduza. Essa
imagem faz com que os autores se dirijam ao povo como dirigentes dele, uma vez que
si mesmos (...) desejos, ideias, modos de ser, práticas, ações, aspirações, tudo é
imputado ao povo e à nação, sem que nenhum deles apareça de viva voz. Os
a expô-los”.
553
Idem, p. 91-92
319
poder respeitar o povo o artista do CPC não pode tomá-lo nem como parceiro político
e cultural, nem como interlocutor igual: oscila, assim, entre o desprezo pelo povo
em missão – é construída a única imagem que interessa, pois é ela que se manifesta
cultural e política no interior das esquerdas que se opunham ao regime, mas tinham
esquerda intelectual que legitimou o PT nascente. Talvez, sejam o seu exemplo mais
mergulhado em meio a uma grande crise política, com a ruptura do lendário Luis
554
Considerado o líder mais radical da ala esquerda do PTB antes de 1964, Brizola tentou reerguer a
legenda partidária na ocasião da sua volta do exílio. Por uma manobra do governo, perdeu a legenda do
PTB para Ivette Vargas, mais conservadora. Assim, fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e
tentou consolidar a vaga doutrina do “socialismo moreno”, misturando políticas sociais mais agressivas
com discurso nacional-reformista. Isolado pelas críticas ao populismo à esquerda e pelas críticas
conservadoras e anti-reformistas à direita, conseguiu angariar um bom eleitorado apenas no Rio de
Janeiro e no Rio Grande do Sul.
320
lado das massas trabalhadoras, caminhando na linha tênue que separa o propositor
de debates livres do arauto da assembléia popular. Sua principal missão seria expor
adjetivo “nacional”556
revela uma incapacidade muito grande pra entender de fato o que foi o CPC. Não é
uma análise é uma manifestação ideológica de uma vontade que deseja cortar os
laços com o passado (...) querem fazer de conta que as correntes políticas a que
pertencem não existiam antes e não fizeram coisas que representam uma herança,
uma tradição que elas tem que receber com respeito e continuar com criatividade,
contexto no qual se discutia a transição para o futuro governo civil. Portanto, deveriam
555
CHAUÍ, Marilena. “Cultura do povo e autoritarismo das elites” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. São Paulo, Cortez e Moraes, 1979, p.119-134
556
Idem, p. 121
557
MARTINS, Carlos E. Entrevista ao CEAC. Op.cit, p. 81
321
uma tradição iniciada com o modernismo, que reafirmou o artista e o intelectual como
das lutas de massa exemplificadas pelo novo sindicalismo e pelos novos movimentos
sociais. Estes causaram grande impacto à época, ganhando ares de uma nova épica
confundia com estes valores, sendo, portanto, endossado pelos intelectuais críticos ao
crítica cultural da nova esquerda petista (em cujo epicentro estava a esquerda
acesso aos equipamentos culturais. Entretanto, suas posições não devem ser
558
O opúsculo intitulado “Politica cultural” (1985), escrito por vários intelectuais ligados ao PT, pode ser
visto como a síntese deste projeto. Nele, se desenha mais as diretrizes de uma crítica cultural ao Estado
e à indústria cultural, do que as bases de uma nova doutrina estética ou cultural. Com a experiência no
poder municipal de São Paulo, sob a gestão de Luíza Erundina (1989-1992), Marilena Chauí foi nomeada
secretária da cultura, colocando em prática uma série de iniciativas ancoradas no projeto de 1985. Nesta
gestão, Chauí tentou implantar a chamada “cidadania cultural” baseada em quatro pilares: a recusa das
políticas de mecenato clientelista; a desburocratização voluntarista da política cultural; o estímulo à
“participação popular” ativa na esfera cultural a partir das comunidades e bairros; a democratização do
acesso aos equipamentos públicos de cultura. A idéia central era ancorar a política cultural aos
movimentos sociais e evitar o dirigismo, através de uma fusão entre a ação cultural, a ação pedagógica e
a ação política. Ver CHAUÍ, Marilena; ABRAMO, Lélia; CANDIDO, Antonio; MOSTAÇO, E. Política
cultural. Mercado Aberto, Porto Alegre, 1985 (2ªed.). Note o leitor que os autores são conhecidos críticos
da política cultural tanto da direita oligárquica e elitista, quanto da “corrente da hegemonia”, ou seja, do
Partido Comunista Brasileiro. Para um balanço crítico deste projeto, ver DURAND, José Carlos. Política e
gestão cultural. EAESP/FGV/NPP - Núcleo de pesquisas e publicações, 2000,
http://www.eaesp.fgvsp.br/AppData/GVPesquisa/Rel13-2000.pdf, acessado em 25 de agosto de 2010.
559
Os resultados de uma pesquisa de fôlego que dá pistas importantes deste tipo de ativismo cultural de
base, ocorridos em uma cidade que era paradigmática para as lutas sociais no final dos anos 1970 e
primeira metade dos anos 1980, pode ser vista em PARANHOS, Katia. Mentes que brilham: sindicalismo
e práticas culturais dos metalúrgicos de São Bernardo. Tese de Doutorado em História, Unicamp,
Campinas, 2002. Conforme a autora, entre 1971 e 1988, foram criadas “tradições culturais” no âmbito da
luta sindical (mas que iam muito além dos limites institucionais do sindicato), enfatizando a interação entre
trabalhadores e intelectuais (de esquerda) na construção de um “trabalho de base”, entendido como “ação
libertadora” de intervenção a partir de experiências cotidianas de luta. A autora analisa as tensões
provocadas por esta interação de novo tipo entre o artista-intelectual e os operários, em meio a
acontecimentos épicos, como as greves de 1979 e 1980.
322
reposicioná-lo. Neste sentido, sua tarefa não era ser o arauto da nacionalidade e o
dos discursos que desconsideravam o papel político ativo das massas trabalhadoras e
da sua formação para gostar das coisas populares, pois o grande inimigo da cultura
efetiva entre o criador e os consumidores, era a indústria cultural. Contra ela, e seus
eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura de massa aproveita-se dos
telespectador, o que restou desse tempo (...) No entanto (...) a exploração, o uso
abusivo que a cultura de massa faz das manifestações populares, não foi ainda capaz
de interromper para todo o sempre o dinamismo lento, mas seguro e poderoso da vida
560
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Cia das Letras, 1987
561
Idem, p. 329. Em tempo: O ensaio em questão, “cultura brasileira e culturas brasileiras”, do qual foi
retirada a citação, foi escrito entre 1979 e 1980.
323
bases deste novo projeto cultural, a “cultura popular” se coloca como um núcleo duro e
parte, para o autor, a posição da cultura erudita diante da cultura popular é ambígua,
podendo gerar o “mais cego e demagógico populismo”, que ao fim e ao cabo sanciona
o preconceito e o elitismo classista, ou servir de base criadora para a “mais bela obra
de arte elaborada em torno de motivos populares”, sendo necessário para que tal
“relação amorosa” com o popular562. Bosi não se fecha à possibilidade desta relação
ocorrer nas fricções entre a cultura erudita, a cultura popular e a cultura letrada, na
direção de uma “cultura criadora individualizada” que se realize no interior das classes
dados em seu texto serem, quase todos, de artistas oriundos das classes médias
letradas: Mario de Andrade, Chico Buarque, Augusto Boal, Graciliano Ramos, Caetano
Veloso, Gilberto Gil, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Gianfrancesco
Guarnieri, Edu Lobo, entre outros. A rigor, os únicos nomes oriundos das classes
vanguarda modernista. A rigor, talvez não seja isto que está em jogo, ao menos no
balanço crítico proposto por Alfredo Bosi. Trata-se de apontar caminhos para uma
562
Idem, p. 331. Na expressão utilizada por Bosi - “relação amorosa” - poderíamos vislumbrar uma
tradução da caritas cristã entendida como “amor fraterno e sublimado de origem divina” entre as pessoas,
para além das diferenças econômicas e sócio-culturais. Este “amor”, criaria pontes morais, políticas e
culturais entre indivíduos assimétricos, mas irmanados na busca da realização da comunidade libertada e
justa. Para tal, a dialética entre “afeto” e de “intelecto” seria fundamental, a partir de uma nova vivência
junto aos “pobres”. As implicações desta ética cristã (de matiz católico-progressista) para a resistência
cultural, mesmo em correntes atéias e laicas, ainda estão por serem examinadas a fundo. Para uma
definição de caritas dentro da filosofia cristã ver NOGUEIRA, Maria Simone M. Amor, caritas, dilectio.
Elementos para uma hermenêutica do amor no pensamento de Nicolau de Cusa. Tese de Doutorado em
Filosofia Medieval, Faculdade de Letras de Coimbra, 2008 (notadamente, o capítulo 1),
563
Idem, p. 343-344
324
indústria cultural, não eximia suas obras das possibilidades de apropriações críticas
de um conceito até certo ponto elitista de “bom-gosto” – como faziam, até certo ponto,
os artistas e intelectuais mais afinados com o PCB ou mesmo com os valores liberais
necessária entre a cultura letrada erudita e a cultura oral dos “pobres”, superando o
periferia566.
Em um dos primeiros textos reflexivos sobre esta nova visão, Carlos Rodrigues
Brandão567 apontava, já em 1977, que a cultura popular (no caso os rituais religiosos
populares) não deveria ser vista como estática, puro objeto de preservação folclorista
564
BOSI, Eclea. Leituras de operárias. Petrópolis, Vozes, 1972.
565
Neste contexto, final dos anos 1970 e início dos anos 1980, ocorreu uma nova leitura de Antonio
Gramsci no Brasil, menos como teórico do eurocomunismo (como fizeram intelectuais do PCB) e mais
como teórico da cultura (e educação) popular, como o fez Moacir Gadotti. Para o aprofundamento deste
debate, a partir de suas fontes ver COUTINHO, Carlos N. "A democracia como valor universal", in
Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, nº 9, março de 1979, p. 33-48; BRANDÃO, Carlos
Rodrigues (org.). A questão política da educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1980; GADOTTI,
Moacir. Educação e compromisso. Campinas, Papirus, 1986; MANFREDI, Sílvia M. “A educação popular
no Brasil: Uma releitura a partir de Antonio Gramsci”. IN: BRANDÃO, Carlos R. (org). Op.cit.
566
BOSI, Ecléa. “Problemas ligados à cultura das classes pobres” IN: QUEIROZ, José & VALLE, Edenio
(orgs). A cultura do povo. Cortez e Moraes. São Paulo, 1979, p. 25-34
567
BRANDÃO , Carlos Rodrigues. “Um pouco de ordem neste debate”. Movimento, 119, 10/10/1977, 16
325
tendências intelectuais da nova esquerda, crente que a culpa pelo silêncio dos
elemento crítico ao nacionalismo e ao frentismo cultural vistos pela nova esquerda dos
568
SCHELING, V. Op.cit. p.273.
569
O “proletcultismo” pode ser definido como a emulação da cultura e da fala popular-operária pelo
militante cultural revolucionário de esquerda. Parte da negação da “herança cultural burguesa” e da
rejeição do hermetismo e experimentalismo formal da vanguarda. Ver NAPOLITANO, M.” A relação entre
arte e política: uma introdução teórico-metodológica”. Op.cit.
326
esquerda e da sua militância católica não deve ser endossada sem crítica, como
muitas vezes se fez na literatura acadêmica dos anos 1980. Se as derrotas de 1964 e
formas de resistência ao regime militar foram bem sucedidos, a nova esquerda não
logrou forjar uma política cultural orgânica, duradoura e plenamente coerente para os
parece não ter formado cânones estéticos e ocupado circuitos cultuais amplos nas
ajudou a desgastar a arte engajada tal como gestada pela esquerda comunista e
570
Uma das críticas mais duras às bases da esquerda católica foi feita, ainda nos anos 1970, por Roberto
Romano. Na verdade Romano se volta mais contra a Igreja progressista do que contra a “esquerda
católica”, mas sua crítica pode servir também para esta. O autor aponta várias contradições, como a
“vitimização do povo”, a “ênfase” no carisma oficializado (dom da hierarquia), posturas anti-modernas
(caráter nostálgico e utopia retrógrada). Ao fim a ao cabo, para Romano, a Igreja progressista não rompia
com a ideia de “povo-uno” e idealizado, nem com o dirigismo autoritário, à medida em que a sua
hierarquia era privilegiada no processo de ação pastoral. Ver ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o
Estado. São Paulo, Kairós, 1979. Ver também IANNI, O. “Crítica a Chauí” IN: QUEIROZ, José & VALLE,
Edenio (orgs.). Op.cit. p.135-139. Neste texto, o sociólogo critica a filósofa pela oposição simplista entre
“elite” e “povo”, ao definir este como o “conjunto dos pobres” – visão chancelada também pela esquerda
católica. Neste sentido, Chauí estaria diluindo o sentido político do conceito de povo (o conjunto dos
cidadãos divididos em classes), reiterando, involuntariamente, sua alteridade em relação ao intelectual
engajado que não se via como parte do “povo”, em seu sentido político.
327
valores políticos strictu sensu, pode ser vista como um projeto de resistência que, a
precisam ser mais bem avaliadas e analisadas. A tentativa de uma resistência cultural
feita a partir dos bairros e dos movimentos populares de base gerou, por exemplo, um
aos circuitos da indústria cultural é bastante questionável, embora ainda seja uma
noção vigente em muitos militantes culturais que atuam em movimentos artísticos das
podem estar por trás da revalorização da cultura regional, do folclore comunitário, das
culturas de “raiz”, fenômeno cultural que conheceu grande expansão entre os jovens
crucial sobre sua eficácia enquanto “resistência cultural” unívoca e consensual contra
CAPITULO 9
crise cultural, nomeada na época como “vazio” ou “terrorismo cultural”. Por outro lado,
essa visão negativa convive com uma memória positivada sobre a vida cultural,
criativa de artistas canônicos e consagrados pelo público deu o tom da vida cultural,
de teatro (Opinião, Zumbi, Rei da Vela, Roda Viva), pelas exposições de arte (Opinião
memória social (e histórica)574 sobre o período, a vida cultural parece ter sido cheia e
574
Embora sejam dimensões diferenciadas entre si, a memória (operação cultural identitária) e história
(operação intelectual crítica) estão imbricadas, tal como sugeriu Ulpiano Meneses (MENESES, Ulpiano T
Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das ciências
sociais”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros/USP, São Paulo, p. 9-24, 1992). Tanto a memória
social pode estar impregnada de historiografia, quanto esta pode ser perpassada por perspectivas e
tensões oriundas da memória social. A preocupação da historiografia em historicizar a memória parece
expressar esta questão, potencializada quando os historiadores se debruçam sobre o passado recente,
cuja memorização ainda está em processo, adensada pelo testemunho ou pelas disputas ideológicas
coetâneas à pesquisa.
330
engrandecida pelo alto nível estético da arte de oposição, amplamente estudados pela
literatura acadêmica.
da memória consolidada sobre a vida cultural durante o regime militar, que em muitos
período.
está inserida no debate geral sobre a memória em torno da ditadura brasileira que
parece estar passando por um momento muito rico, marcado por um duplo
lembrada entre os anos 1980 e 1990577. Obviamente, a eleição de Luis Inácio Lula da
Silva, em nome de uma nova esquerda surgida no período, parece ser o lastro
575
Neste sentido, destacamos o corpus bibliográfico já citado nos capítulos anteriores, cujo grau de
sofisticação e pertinência nas análises não deve obscurecer seu tributo à visão dos protagonistas (muitas
vezes na pessoa dos próprios autores). Ver, por exemplo: SCHWARZ, Roberto. Política e Cultura;
MOSTAÇO, E. Op.cit; FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. Op.cit.; HOLLANDA, Heloisa B.
Impressões de Viagem. Op.cit.
576
Nesta linha, ver: NAPOLITANO, M. Seguindo a canção. Op.cit.; FREITAS, A. Contrarte. Op.cit;
GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à canção engajada.
577
Por outro lado, o debate sobre a memória em torno da ditadura brasileira é coetâneo ao debate sobre
as tensões entre memória e história das ditaduras do Cone Sul latinoamericano. Obviamente, cada país
envolvido (Chile, Argentina, Uruguai) tem uma dinâmica e uma agenda próprias para o debate, mas
também apresentam, em menor ou maior grau, dilemas semelhantes sobre como “historicizar criticamente
a memória” sem reiterar verdades cristalizadas pelos sujeitos em disputa e grupos de pressão
institucionais à esquerda e à direita. Para um balanço destas questões ver CAPELATO, Maria Helena R.
“Memória da Ditadura Militar Argentina: Um Desafio para a História”. Revista CLIO, (UFPE), v. 1, p. 61-81,
2006.
331
pautado na idéia de que a “sociedade civil”, como um todo, foi vítima passiva do
militares só se impuseram naqueles anos pela força, pela manipulação dos meios de
militar, dando nova luz e compreensão ao vigor político que a ditadura teve ao longo
apoio. E as esquerdas não tinham olhos para ver isto. Nos anos pós-1979, lembrar
578
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O
golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, p. 90
579
Idem, p.89
332
novidades: reforma partidária, fim da censura prévia, Anistia e volta dos exilados,
Comunista e afirmação dos liberais580, via imprensa e novos partidos políticos como o
e à crise econômica que se aprofundaria nos anos seguintes, uma nova memória
Justiça lhes seja feita, os liberais no Brasil se mantiveram críticos ao regime em temas
esquerda. Na cultura, a esquerda comunista viu seu espaço crescer, dentro da mídia
paradoxo que a memória sobre a ditadura é portadora, fazendo conviver triunfo político
580
Não é simples definir historicamente o “campo liberal” no Brasil do final dos anos 1970 e 1980, que
envolve uma gama de atores, instituições e partidos nem sempre coesos e coerentes entre si. Para uma
definição precária e inicial, mas minimamente operativa no caso deste ensaio, proponho que o campo
liberal durante o regime militar era formado por amplos segmentos do MDB (posteriormente, PMDB), da
imprensa e das empresas de mídia e de algumas entidades profissionais e empresariais, como a OAB, a
ABI e a FIESP. Entre as lideranças políticas mais influentes no período da abertura e da transição,
destaco Ulysses Guimarães, Severo Gomes e Tancredo Neves. Sua expressão intelectual mais
sofisticada era o filósofo e diplomata José Guilherme Merquior. Sobre o liberalismo econômico
empresarial durante a ditadura ver CODATO, Adriano N.. Sistema estatal e política econômica no Brasil
pós-64. Sao Paulo: Hucitec/ANPOCS/Ed. da UFPR, 1997; sobre a construção da agenda liberal pela
imprensa na transição ver FONSECA, Francisco. O consenso forjado: a grande imprensa e a formação da
agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2005
333
fica patente em três eventos-chave para a história do regime militar: em 1964 (Golpe),
1979 (Anistia parcial sem julgamentos das violações aos Direitos Humanos) e 1985
A nova esquerda surgida entre 1979 e 1980, não chegou a abalar este
processo, pois tinha muita presença nas ruas, mas pouca presença institucional. Além
disso, faltava-lhe um projeto nacional viável, tendo em vista que procurava conciliar
movimento (PT). O acesso ao poder nacional desta nova esquerda só foi possível em
o fim do regime, o próprio tema da guerrilha foi redimensionado, passando a ser objeto
Gabeira e Alfredo Sirkis, para citar dois grandes sucessos editoriais582. A autocrítica
os fatos fundamentam esta versão, mas aqui nos importa sublinhar o seu lugar no jogo
581
Neste sentido, explica-se porque as prefeituras petistas dos anos 1980 e 1990, conseguiram realizar
governos progressistas e inclusivos, mantendo-se fiéis aos princípios políticos e éticos que deram origem
ao Partido, conciliando a democracia de base com poderes políticos a serviço da comunidade. A natureza
do Poder Municipal no Brasil, voltado para a gestão de problemas cotidianos e de serviços básicos pode
se manter próxima e até se alimentar das demandas dos movimentos sociais, relação que ficou inviável,
ao menos nos termos que se propunha, em escala nacional. Nesta outra escala, predominou uma lógica
política tradicional, de alianças ideologicamente vazias, negociação fisiológica, políticas sociais
compensatórias e política econômica conservadora. Em que pese o sucesso e o progressismo do
governo Lula em várias áreas, a sensação de crise de um projeto político original perseguiu os petistas,
sobretudo no aspecto ético, deixando de lado uma reflexão propriamente política sobre esta crise.
582
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro, Codecri, 1979; SIRKIS, Alfredo. Os
carbonários. Rio de Janeiro, Global Editora, 1980
334
contexto autoritário de 1964-1985, que nem sempre foi ocupado pelos mesmos atores,
da mesma maneira, o tempo todo que durou o regime. Estas são as questões
fundamentais para uma nova história – política e cultural – do regime militar: quem
heróica”, mas ao conhecimento crítico das culturas políticas em conflito e das práticas
583
RICOEUR, Paul. A Memória, a história eo esquecimento. Campinas, Ed. Unicamp, 2007
584
Para uma crítica acurada a este aparente triunfo da esquerda na batalha da memória, ver
ROLLEMBERG, Denise. “Esquecimento das memórias”. João Roberto Martins Filho (org.). O golpe de
1964 e o regime militar. São Carlos: Ed.UFSCar, 2006, pp. 81-91. A autora argumenta que a memória que
foi chancelada, à esquerda, foi aquela que correspondia ao ideal de “pacificação” e “conciliação” nacional
defendido por liberais e setores das Forças Armadas.
585
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada; VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil. Rio de Janeiro.
Globo, 2004
335
2010), parece indicar que este campo ideológico quer se livrar (ou relativizar) das
próprios liberais no passado. Esta chancela ocorreu, como vimos, por conta da
sobre a resistência política e cultural, que ajudou a forjar um álibi histórico para a
Anistia (1979) ou o movimento Diretas-Já (1984), cuja mobilização popular não foi
não foram vítimas de um assalto moral à sua memória, pois alguns dos seus
deste discurso.
de Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que tenha sido o resultado de uma coalizão
336
governo João Goulart, o Golpe de 1964 e a luta armada tem sido objeto de acirrado
debate, com as vozes liberais apontando para a farsa histórica do primeiro, o caráter
sobre a cultura da resistência é crucial, tendo em vista que o campo cultural forjou e
dinâmicas mais complexas das lutas culturais, sejam aquelas internas ao campo
destacamos quatro assertivas que se tornaram clichês, e que merecem ser revisadas:
b) A massificação da cultura via mercado destruiu a arte politizada e tirou espaço dos
586
Para um balanço historiográfico recente sobre o golpe e o regime militar ver: MARTINS Fo., João
Roberto. O golpe de 64 e o regime militar: novas perspectivas. Op.cit.; FICO, Carlos. Além do golpe:
versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2004; FICO, Carlos
(Org.) ; ARAUJO, Maria Paula (Org.). 40 Anos do Golpe de 1964: ditadura militar e resistência no Brasil.
Rio de Janeiro, 7Letras/Faperj, 2004; MOTTA, Rodrigo P. S. (Org.) ; REIS FILHO, Daniel. A. (Org.) ;
RIDENTI, Marcelo. (Org.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru, EDUSC, 2004
337
c) O regime militar destruiu a vida cultural brasileira como um todo, pautando-se por
esquerda.
como apontou Roberto Schwarz. Em linhas gerais, essa afirmação é correta, até pela
que a importância da dimensão pública da cultura não deve ser medida, unicamente,
pela sua dimensão quantitativa. No caso da música popular, foi a MPB, movimento
construída notadamente pela esquerda intelectual e artística no Brasil dos anos 1960 e
1970, parece ter um papel protagonista, que não está isento de contradições e logros
massificada, cujo grande exemplo seria a televisão brasileira dos anos 1970,
político Essa imagem apocalíptica, no entanto, precisa ser pensada com mais
produção cultural, mas também fornecer produtos para uma classe média em
segmentos jovens da classe média também forneceram boa parte dos quadros para a
e militância política deve ser vista em sua dinâmica e historicidades próprias, cuja
587
HABERMAS, Jurgen. Op.cit.
339
luta direta contra o regime. Além disso, muitos profissionais da cultura – dramaturgos,
mercantilização não deve ser vista como a negação pura e simples de um processo
segmentos da sociedade. Em outras palavras, valor de troca e valor de uso não são
produtos, mas este processo não é abstrato e linear, e sim, objetivado historicamente,
cada sociedade. Isso explica, em parte, porque a Rede Globo de Televisão, sobretudo
1970 (Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa, entre outros). A indústria
fonográfica, por sua vez, precisava dos jovens músicos de oposição ao regime, astros
dos festivais da canção, pois eles constituiriam o que se chamava artista de catálogo,
588
IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1992, p. 48
340
obviamente, é preciso partir da premissa que nenhuma ditadura faz bem à vida cultural
ou a qualquer outro aspecto da vida social. Entretanto, é preciso notar que o regime
militar brasileiro relacionou-se com a vida cultural e artística mediante duas formas
básicas: (i) pelo uso e abuso de um tripé repressivo, formado pelo sistema de
partir de 1975, ano da famosa Política Nacional de Cultura do MEC que, dito de
cineastas de esquerda. Além disso, a política cultural dos militares subsidiou circuitos
deve ser vista como expressão de uma aliança político-cultural sólida. Por outro lado,
campo cultural, entre outros, a ditadura brasileira foi diferenciada dos outros regimes
589
Uma reflexão histórica comparada sobre a repressão e as políticas culturais das ditaduras do cone sul
seria muito oportuna. A série de livros organizados por Saul Sosnowski a partir dos seminários realizados
na Universidade de Maryland (EUA) entre 1984 e 1991, constitui uma as poucas iniciativas neste sentido.
Ver SOSNOWSKI et alli. Cultura em trânsito. Op.cit.; SOSNOWSKI, S. et alli. Represion y Reconstrucion
de una cultura: el caso argentino. Buenos Ayres, Eudeba, 1988; SOSNOWSKI, S. et alli. Repression, exile
and democracy: the Uruguayan culture. Duke Univ. Press, 1992; SOSNOWSKI, S. et alli. Cultura,
autoritarismo y redemocratización em Chile. México, Fondo de Cultura Economica, 1993. Note-se que os
livros são organizados por país, mas permitem algumas comparações. No entanto, não fazem,
propriamente, uma “história comparada”.
341
cosmopolita” deve ser vista como herança das lutas culturais de época, entre a
obras que marcaram um e outro campo de forma mais detalhada, percebe-se que nem
Além do mais, não se pode dizer, por exemplo, que a obra de Edu Lobo nos
musicais – e ampliar a discussão sobre a cultura do período. Até para torná-la ainda
mais fascinante.
342
própria, exercitada ao menos desde os anos 1930590. Esta herança, que ajudara a
configurar certa “brasilidade vermelha”591, foi mobilizada nos anos 1960 e 1970,
sociedade brasileira. Aliás, não deixa de ser surpreendente a assimetria entre o lugar
que os militantes comunistas ocuparam na vida cultural (e sindical) e o seu lugar nos
espaços propriamente políticos Salvo melhor juízo, a balança pende para os primeiros
cânones estéticos e valores culturais que transbordaram para além dos segmentos
circuito massivo.
590
RUBIM, A. Op.cit..
591
RIDENTI, M. Brasilidade revolucionária..
592
NAPOLITANO, M. “O Fantasma de um clássico : recepção e reminiscências de Favela dos Meus
Amores (Humberto Mauro, 1935)”. Significação, ECA/USP, v. 32, p. 157-170, 2009; NAPOLITANO, M.
Sincope das idéias: a questão da tradição na MPB. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007;
GUIMARAES, Valéria. PCB cai no samba: os comunistas e a cultura popular. Rio de Janeiro, APERJ,
2009.
593
PIQUEIRA, Maurício T.. Op.cit. ; SACRAMENTO, Igor et alli. “O PCB e a modernização midiática no
Brasil”. Paper apresentado no V ENECULT (Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), Salvador
(BA), 2009
343
dos anos 1970, até chegar à consagração no mercado literário no final da década594.
amargor que pautaram a “geração AI-5” crescida à sombra das derrotas de 1964 e
1968, e sob o vulto, não menos ofuscante, dos heróis da grande arte de esquerda
daquela década.
594
A editora Brasiliense, por exemplo, capitalizou o boom da poesia jovem, consagrando no mercado
editorial nomes como Paulo Leminski e Ana Cristina Cesar, entre outros, publicados nos anos 1980, na
bem sucedida coleção “Cantadas Literárias”.
595
LANGLAND, Victoria. “Il est Interdit d’Interdire: The Transnational Experience of 1968 in Brazil”.
Estudios Interdisciplinarios de America Latina y el Caribe. Universidade de Tel Aviv, 17/1, jan-jun 2006
(www1.tau.ac.il/eial )
344
tinha sua sustentação na aliança tática entre comunistas e liberais em nome de uma
estéticos e concordava que o mercado era um espaço importante a ser ocupado pela
distanciamento em relação à luta armada, cujo radicalismo não era bem visto pelas
que, até os anos 1970, marcava a resistência. Nesta operação crítica, os católicos de
jurídico vazio e abstrato de individuo)596. Estes valores estavam na base de uma nova
596
SCHELLING, Vivian. Op.cit.;RIBEIRO, Jorge. Festa do povo: pedagogia da resistência. Petropolis,
Vozes, 1982, p. 273
345
formou cânones e não ocupou espaços tão amplos nas instituições, no mercado e, por
1950597.
derrotadas pelo processo de transação que pautou o fim do regime militar. O frentismo
comunista se diluiu na hegemonia liberal, processo agravado pela própria crise dos
Partidos Comunistas em escala mundial ao longo dos anos 1980. Mas o anti-frentismo
da nova esquerda acabou por isolá-la politicamente e fechar ainda mais possíveis
da década de 1990.
poética do “tesouro perdido”, cunhada pelo poeta francês René Char, para qualificar a
597
Sobre o processo histórico que afirmou a arte engajada no Brasil, ver NAPOLITANO, M. “Forjando a
revolução, remodelando o mercado: arte engajada no Brasil (1956-1968)”. IN: Jorge Ferreira; Danião
Aarão Reis. (Orgs.). Nacionalismo e reformismo radical (coleção "As esquerdas no Brasil"). Rio de
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2007, v. 2, p. 585-617
346
público" que os resistentes construíram, mas que havia se diluído após a derrota do
poderia aparecer".
participaram ou com ele simpatizam. A memória social construída sobre o período nos
sugere, à primeira vista, certa semelhança com o “tesouro perdido” arendtiano, aqui
espaço público esgarçado da política, sem que essa busca conseguisse apagar as
598
Sobre o conceito de “esfera pública informal” ver PROKOP, Dieter. “Ensaio sobre cultura de massa e
espontaneidade”. IN: MARCONDES Fº, Ciro (org.) Prokop: sociologia. SP: Ática, 1986, p. 114-148
347
rompidos os seus laços políticos com o conjunto das classes populares, já indicavam a
contra um inimigo comum ainda durante a vigência do regime militar (tampouco ele,
resistência e marcando este conceito como tal sob o signo da experiência da partilha
negligenciados.
definir, mas que não há ninguém que não entenda” - tornou-se matéria e categoria
centrais da criação cultural engajada. Mais do que um mero "reflexo" da vida política e
social, como tem sido muitas vezes analisada, a experiência partilhada da cultura em
estes que se tornaram mais centrais na cultura política de esquerda após a derrota da
vimos que as oposições eram perpassadas por inúmeras tensões internas, por vezes
exploradas pelo próprio regime militar, norteado pela máxima "dividir e imperar". Ao
convergência e de uma memória comum e, para tal, o aplanar as arestas das lutas
culturais do período foram fundamentais. Mais do que isso, a cultura foi o espaço de
com setores liberais que homologaram as lutas culturais contra o regime, sobretudo
se a si próprios pelo apoio ao golpe de 1964. Não foi por acaso que partiu dos liberais
o regime, foi se esgarçando ao longo dos anos 1970, com a presença estrutural do
público mais amplo foi sendo reocupado pela política de massas, retirando do artista-
construção dos diversos sentidos da ação cultural de resistência ao regime militar nos
349
anos 1970. Dos pequenos espaços públicos do início da década, "por onde se fazia a
vontade de liberdade, que parece ter ficado perdida no tempo, reforçando a sensação
chave de 1979. Talvez seja este, no fundo, o “ano que não acabou”.
obrigando a revisão das fronteiras entre o público e o privado, entre política e lazer,
“rede de recados” contra a ditadura passava por estes diversos espaços e por diversas
mundo compartilhado e de uma ação comum deve passar por uma análise mais
acurada.
próprio Estado, em larga medida, se dispunha a financiar obras produzidas por artistas
contra o monstro da ditadura deve ser repensada, até para se valorizar sua rica e
consciência de luta democrática. Assim, não se trata de revisar sua história para
parecem ter dado o tom do debate. Nesta crítica historiográfica, o importante é pautar
599
A utilização de categorias como “sujeito”, “agente”, “ator” não é fortuita. Obedece a critérios da teoria
sociológica para definir o papel dos indivíduos e grupos nos processos sociais (e históricos). Se o “sujeito”
é portador de uma consciência que se autoconstrói e se autoenuncia em narrativas sobre si e sobre os
outros, o “agente” não domina o sentido das suas ações, que pertence à lógica do sistema e às relações
de poder que estabelece com outros agentes. Por outro lado, o ator, ainda que aja a partir de um script
pré-definido, tem alguma margem de invenção no jogo social. Na historiografia brasileira tem
predominado o uso de uma vaga noção de subjetividade, reforçada pelo turning point culturalista dos
anos 1980. Neste trabalho, estamos mais próximos de uma apropriação historiográfica que tensiona os
conceitos de sujeito (aquele que enuncia seus projetos culturais) e agente (aquele que é constrangido
pelo sistema cultural). A ação cultura da resistência parece ser melhor compreendida nesta dialética,
ainda que corramos o risco do ecletismo teórico. Para uma discussão mais ampla sobre estas categorias
ver DUBAR, Claude. “Agente, ator, sujeito, autor: do semelhante ao mesmo”. Desigualdade &
Diversidade. Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, 3, Rio de Janeiro, jul-dez 2008, p. 56-69.
351
oposição. São estas questões que não ficam bem compreendidas quando predomina
cooptação pelo mercado ou pelo Estado, pode deixar escapar algumas faturas
efetivo que o regime militar e seus ideólogos sofreram ao ter contra si uma ampla
identidades políticas atuantes por longo tempo na sociedade brasileira, marcadas por
regime militar600
militar. A busca ativa da “liberdade” em tempos sombrios pede que esta ação seja
600
Aqui me refiro a um subgrupo identitário da sociedade brasileira que se forjou nas lutas cívicas pela
democratização e na resistência cultural contra o regime militar, na segunda metade dos anos 1970,
aglutinado em torno das manifestações públicas contra a ditadura, pela campanha das Diretas-Já, pelas
mobilizações sindicais na Nova República, pela campanha eleitoral do PT em 1989, culminando na
mobilização popular pelo Impeachment do presidente Collor de Melo (1992). Se havia um protagonismo
histórico inegável nestes eventos, o mapeamento das suas expressões ideológicas, formas organizativas
e composição social deste subgrupo não é tão simples. Como primeira hipótese, sugiro que ele se
pautava por certa “utopia democratizante de base”, pela “ética na política”, por uma vaga noção de
“justiça social” que tangenciava o socialismo democrático (e por que não, uma forma radical da “social-
democracia”). Sua organização (flexível e pouco orgânica) se baseava no ativismo de movimentos
sociais, associações de bairro, sindicatos e ONGs, em parte galvanizados pelo PT, e sua composição
social aglutinava trabalhadores não-manuais urbanos (classe média assalariada) e trabalhadores manuais
qualificados (operários). Os impasses e vicissitudes da democracia política brasileira após 1994 parecem
ter diluído e fragmentado este protagonista coletivo da história recente do Brasil. Como segunda hipótese,
acredito que a resistência cultural aqui estudada, cuja fatura identitária é mais próxima de um radicalismo
cívico-democrático do que de uma “cultura revolucionária”, forjou sua educação sentimental e cívica nos
termos clássicos do movimento operário e socialista.
352
Considerações Finais
A história da cultura sob regime militar costuma ser vista por dois ângulos: do
apontar seus dois limites óbvios: mesmo depois de seus momentos heróicos nos anos
1960, a cultura não fez a revolução e ficou restrita a poucos, sendo incorporada
regime, seja pela censura ou pela truculência policial. Por outro lado, desempenhou
consumo da cultura politizada e crítica era restrito – como aludiu Roberto Schwarz na
famosa imagem dos “50 mil em 90 milhões” – e boa parte das suas intenções críticas
intelectual” como herói da resistência. Além disso, entende que a arte de resistência,
sobretudo a arte produzida por artistas de esquerda, foi uma concessão compulsória
políticos, cuja incorporação pelo mercado, em seus diversos níveis e dimensões, foi
entre arte engajada e consumo cultural, bem como levou inúmeros artistas a exercitar
A perspectiva cética também deve ser objeto de revisão e crítica. Se ela nos
alerta para a crítica necessária à visão heróica e sem nuances da resistência, não
militar, a título de uma crítica generalizante que responde mais às angústias dos
aqui examinada. Nem seu caráter restrito, nem sua incorporação pela indústria cultural
devem ser vistos como explicação, a priori, para o fracasso de uma cultura de
apontou Raymond Williams, a “massa é sempre o outro”. Por outro lado, a longa
espaço público.
restrito torna a vida cultural algo menor, nem é possível esperar da cultura algo que
sociedade se estrutura e qual o lugar da cultura nas relações sociais, traduzindo certas
militar, é que ela era tributária do nacionalismo modernista e de uma cultura humanista
anos 1940 a 1960, altamente restrita, mas de boa qualidade. A consciência social
anos 1960 e 1970. Em outras palavras, vale dizer que os quadros criativos da cultura,
no cinema, no teatro, na música popular, nas artes plásticas, conciliavam uma boa
formação escolar (escrita, literária, erudita) com a experiência dos circuitos populares,
cujo melhor exemplo é o bem sucedido projeto de Música Popular Brasileira (MPB),
surgido nos anos 1960. Quando a indústria cultural arregimentou parte destes
quadros, que tinham no movimento estudantil sua base social mais ampla, eles já
possuíam uma experiência formativa que ia muito além dos limites e fórmulas do
356
mercado, os quais, por sinal, ainda não estavam consolidados, ao menos no Brasil.
paulatinamente ao longo dos anos 1970. A partir dos anos 1980, o quadro mudou
parte, a sensação de decadência da chamada “cultura brasileira”, tese que deve ser
incorporada com muita cautela para que mera nostalgia intelectual essencialista não
O consumo restrito gerou impasses e dilemas para o artista engajado, mas não
deve ser tomado como um caminho para explicar o fracasso das intenções críticas da
cultura sob o regime militar, exigindo uma análise criteriosa do seu papel formativo na
saídas para o elitismo cultural, ora se idealizou o “povo” como receptor massivo e sem
mediações, ora se idealizou o mercado como circuito neutro, ora se idealizou a cultura
idealizações, que não resistiram aos anos 1970, e foram substituídas por um
da cultura engajada contra o autoritarismo - também deve ser vista com muito cuidado.
entender a cultura dentro dos seus limites, mesmo quando ela quis ocupar o lugar da
política strictu sensu. Arrisco dizer que, talvez, o grande fracasso tenha sido o da
357
internos, não foi capaz de construir alianças suficientemente fortes para impor uma
pela ideologia liberal, mesmo quando seus produtos e conteúdos estavam ligados, de
uma fora ou de outra, à esquerda. A frase atribuída a Roberto Marinho, dono da Rede
Globo é reveladora neste sentido: “não toquem nos meus comunistas!”. Tomados aqui
como exemplo, podemos dizer que eles foram quadros fundamentais para a
todos os espaços” possíveis, dentro da lógica frentista que informava o PCB desde o
obscuros: seu impacto para a construção de uma memória sobre o regime militar
jogo de memória. Se for certo dizer que a cultura não ajudou a derrubar o regime,
ampla base na chamada “sociedade civil”, foram aos poucos sendo isolados no
apoiaram inicialmente, ou seja, o conjunto dos liberais dos quais a grande imprensa
No jogo tenso entre história e memória é que esta tese deve ser situada e
“nossa honra e nosso passado” como coletividade que se quer democrática, mas
explica pouco porque certos impasses herdados dos tempos da ditadura ainda
continuam a nos desafiar, passados mais de vinte e cinco anos do seu fim. Assim, na
tesouro perdido da cultura heróica da resistência, tal como definido por Hannah
desejo de encontrá-lo.
359
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3) Entrevistas e depoimentos
4) Fontes diversas