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Doi: http://dx.doi.org/10.

1590/1413-73722233705

VIDA E RESISTÊNCIA: FORMAR PROFESSORES PODE


SER PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE?1

Rosimeri de Oliveira Dias2


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

RESUMO. Este artigo discute a formação de professores relacionando-a com as noções de vida e de resistência.
Propõe uma análise que faz atravessar estas três noções: formação, vida e resistência. Esta análise acontece por
meio dos estudos da produção de subjetividade na perspectiva de Michel Foucault, problematizando o fato de que
na fronteira da constituição da existência, na zona de indeterminação que emerge dela, é possível tratar o tema
da formação como produção de subjetividade. A noção de experiência-limite de Maurice Blanchot contribui para
se poder afirmar que formar professores é produzir subjetividades. Com este agenciamento entre formação, vida
e resistência, a ideia é pensar possibilidades de condições de trabalhos para professores que vêm sendo
judicializadas e aprisionadas em formações ditas competentes para lidar com o contemporâneo e suas facetas,
que cada vez mais investem em uma vida pret-à-porter para que se mantenha a permanência de práticas
pedagogizantes. Contrário a esta posição, o artigo propõe agenciamentos para formar e desformar, assumindo os
riscos e afirmando modos desindividualizantes e mais coletivos e assim facultando a expressão de uma formação
inventiva de professores.
Palavras-chave: Subjetividade; formação de professores; invenção.

LIFE AND RÉSISTANCE: CAN TRAINING TEACHERS


BE PRODUCTION OF SUBJECTIVITY?

ABSTRACT. This article discuss the teachers training linking it with the notions of life and résistance. It proposes
an analysis that crosses these three notions: training, life and résistance. This analysis happens through studies of
production of subjectivity under the perspective of Michel Foucault, problematizing that in the border of the
existence constitution, inside the indeterminacy area that emerges from it, it is possible to deal with the subject of
training as production of subjectivity. It uses, as well, the notions of limit experience of Maurice Blanchot to
reassure that teachers training is to produce subjectivities. With this agency among training, life and résistance the
idea is to think possibilities of work conditions to teachers that have been judicialized and trapped in supposedly
competent trainings to deal with the contemporary and its aspects that, increasingly, invest in a pret-à-porter life in
order to maintain the pedagogical practises. Against this view, the article proposes agencies to train and deform,
owning the risks and asserting unindividualizing and more collective ways, therefore, allowing the expression of an
inventive teachers training.
Keywords: Subjectivity; teachers training; invention.

VIDA Y RESISTENCIA: ¿FORMAR PROFESORES PODE SER


PRODUCCIÓN DE SUBJETIVIDAD?

RESUMEN. Este artículo discute la formación de profesores relacionándola con las nociones de vida y de
resistencia. Propone un análisis que hace con que se atraviesen estas tres nociones: formación, vida y
resistencia. Este análisis se produce por medio de estudios de la producción de subjetividad en la perspectiva de
Michel Foucault, problematizando que en la frontera de la constitución de la existencia, en la zona de
indeterminación que emerge de ella, es posible tratar el tema de la formación como producción de subjetividad.
La noción de experiencia-límite de Maurice Blanchot contribuye para poder afirmar que formar profesores es

1
Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
2
Endereço para correspondência: Faculdade de Formação de Professores da UERJ - Rua Francisco Portela, 1470 -
Patronato – CEP 24.435-005 - São Gonçalo-RJ. E-mail: rosimeri.dias@uol.com.br.

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producir subjetividades. Con esta diligencia entre formación, vida y resistencia la idea es la de pensar
posibilidades de condiciones de trabajos para profesores que vienen siendo judicializadas y aprisionadas en
formaciones dichas competentes para lidiar con el contemporáneo y sus aspectos que, cada vez más, invierten
en una vida pret-à-porter para que se mantenga la permanencia de prácticas pedagogizantes. Contrario a esta
posición, el artículo propone diligencias para formar y des-formar, asumiendo los riesgos y afirmando modos
desindividualizantes y más colectivos, facultando así, la expresión de una formación inventiva de profesores.
Palabras-clave: Subjetividad; formación de profesores; invención.

Este trabalho trata do tema da formação, gostaria o mais pleno possível. Uma
uma questão específica, embora não menos experiência é qualquer coisa de que se
difícil e delicada, que quero discutir em sua sai transformado. Se eu tivesse de
escrever um livro para comunicar o que
relação com as noções de vida e de resistência.
já penso, antes de começar a escrevê-lo,
Estou propondo esta discussão de um lugar não teria jamais a coragem de
onde estas três noções se atravessam. Este empreendê-lo. Só o escrevo porque não
lugar é o dos estudos da produção de sei, ainda, exatamente o que pensar
subjetividade na perspectiva foucaultiana. sobre essa coisa em que tanto gostaria
Acredito que na fronteira da constituição da de pensar. De modo que o livro me
existência, na zona de indeterminação que transforma e transforma o que penso.
emerge dela, é possível tratar o tema da Cada livro transforma o que eu pensava
formação como produção de subjetividade. quando terminava o livro precedente.
Sou um experimentador e não um
Quando falo em formação não quero este teórico. Chamo de teórico aquele que
único sentido que lhe é atribuído pelo senso constrói um sistema global, seja de
comum. Formação não é só dar forma a, o que dedução, seja de análise, e o aplica de
já está dado de antemão ou que insiste como maneira uniforme a campos diferentes.
limite para o conhecimento; ao contrário, aqui a Não é o meu caso. Sou um
formação é pensada ensaisticamente como uma experimentador no sentido em que
experiência modificadora de si (Foucault, escrevo para mudar a mim mesmo e não
mais pensar na mesma coisa de antes.
1984/1994), cuja tessitura exige de nós o esforço
de fazer uma prática formativa que evite
Foucault toma o seu trabalho como um
naturalizações e, com esse esforço, resistir e
deslocamento, movimento que possibilita ao
diferir. Precisamente uma concepção de
indivíduo diferenciar-se e experienciar uma
formação concebida pela sua possibilidade de se
relação consigo e com a produção de verdade.
deslocar (Dias, 2011), de se transformar, na
Com esta ideia movente, o filósofo se
relação com as coisas, com os outros, consigo
autodenomina um experimentador, - questão
mesmo, com a verdade - algo muito próximo do
muito cara para uma formação inventiva (Dias,
que Foucault (2007; 2010b) fez com seus
2012), que não quer se reduzir ao lugar-
estudos e livros sobre a loucura, a delinquência
comum de dar forma a, mas se coloca como
e a sexualidade, que dizem respeito àquilo que uma formação-experiência, estando além das
resultou de uma transformação profunda da dimensões (im)pessoais, pois uma formação é
relação que o próprio autor se viu impelido a ter feita consigo, com outros e para outros. Esta
com estes domínios. As contribuições de questão tem um alcance coletivo, dizendo
Foucault em diversos âmbitos não consistiram respeito a uma prática que tem por objetivo
em reafirmar um progresso do conhecimento, desindividualizar, a um modo de pensar que
uma acumulação de saberes e poderes, mas em extrapola o sujeito individual e se endereça à
provocar deslocamentos. Afirma Foucault experiência daqueles que serão formados ou
(1994/2010a, p. 289): atravessam o caminho do formador. Nestes
termos, uma formação-experiência se opõe a
Tenho absoluta consciência de me
lógicas capacitadoras e pedagogizantes que
deslocar sempre, ao mesmo tempo, em
relação às coisas pelas quais me formam produzindo verdades únicas e
interesso e em relação ao que já pensei. explicações que reduzem a relação com os
Não penso jamais a mesma coisa pela saberes, os fazeres, as coisas. Estas lógicas
razão de que meus livros são, para mim, capacitadoras e pedagogizantes são aqui
experiências, em um sentido que entendidas por um modo naturalizado, que

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expressa uma formação universal e que se dá EM QUE SENTIDOS FORMAR PROFESSORES


por aplicação de um saber prévio PODE ASSUMIR UMA DIMENSÃO DE
generalizante. Ao contrário de tais lógicas, PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE?
“uma experiência é alguma coisa que fazemos
inteiramente sós, mas só podemos fazê-la na
medida em que escapará à pura subjetividade, Aqui é necessário problematizar o que
em que outros poderão, não digo retomá-la diariamente acontece em cada aula e cada
exatamente, mas, ao menos, cruzá-la e espaço-tempo de preparação desta aula, no
atravessá-la de novo.” (Foucault, 1994/2010a, ensaio pensado como uma experiência
p. 295). modificadora de si (Foucault, 1984/1994), nas
Se isso poderia ser facilmente admitido para conversas e encontros feitos entre formadores e
a experiência de formar um professor - que é, formandos. Por que falar em produção de
afinal, uma produção, um acontecimento -, como subjetividade no lugar de formar professores? O
colocar nessa chave da fabricação da que emerge por essa exigência que se cumpre
experiência aquilo que disparou uma formação ou se perde quando falo de um modo que
inventiva? Como se abrir para uma formação implica diretamente a produção de subjetividade
que assuma uma dimensão de tessitura, e seus efeitos no formar?
coemergente na articulação entre pessoas, Pensar a formação de professores como
conhecimentos, relações, programas e gestos? produção de subjetividade serve de desvio do
Em que sentido seria possível tomar a formação imperativo de identidade que marca o campo. A
como efeito de resistências que intensificam a identidade é uma operação de formalização
vida? Seria possível em territórios escolares indutiva e dedutiva que faz com que se criem
forjar práticas de experimentação ativa que simetrias que autorizam a demarcação do
tornem visíveis as diferenças? Como supor que território da educação em categorias que
isto seja uma tessitura coletiva? definam sujeito, objeto, didáticas e práticas
Estas questões têm me acompanhado nos pedagógicas a partir de uma dimensão abstrata,
movimentos formativos e, neste trabalho, inteligível, harmoniosa e consensual. Esta
tematizo agenciando as noções de formação, operação identitária, embora seja fundamental
de vida e de resistência. Para tanto, uso a para uma grande variedade de pensares e
perspectiva de produção de subjetividade de fazeres da educação, não é a única ferramenta
Foucault e a noção de experiência-limite de que possuímos para forjar mundos e o si.
Blanchot para pensar uma formação- Produção de subjetividade e
experiência. Junto com estes conceitos, que dessubjetivação, como propõe Foucault, entram
me guiarão no decorrer do trabalho, uso a como uma variante de um caminho possível à
noção de vida e de resistência para dizer que ânsia de um sujeito e um mundo dados
previamente que se dão a conhecer. A profusão
formar professores é produzir subjetividades e
desta noção exige que se percorram suas
dessubjetivações. Com este agenciamento
experiências para compreender seus distintos
entre formação, vida e resistência à ideia é
modos de funcionar. Por isto é importante dizer,
possível pensar possibilidades de condições
de início, que produção de subjetividade não é
de trabalho para professores diversas das que um termo a mais para designar o mesmo que
vêm sendo hegemonicamente praticadas e sujeito, eu, consciência, identidade,
pensadas, as quais são judicializadas e personalidade, termos muito usuais no cotidiano
aprisionadas em formações ditas competentes pedagógico que insistem em manter o sujeito em
e habilidosas para lidar com o contemporâneo seu lugar dado e determinado previamente. Não
e suas facetas, que cada vez mais investem obstante, é bom lembrar que neste trabalho
em uma vida pret-à-porter (Rolnik, 1997), problematizo o modo como a formação de
identitária, para que se mantenha a professores é hegemonicamente pensada e
permanência de práticas generalizantes. praticada; porém, quando desloco a
Contrariamente a esta posição de subjetividade para o ângulo da sua produção,
judicialização da experiência, o agenciamento percebo aí a possibilidade de o indivíduo
é feito para formar e desformar assumindo os apropriar-se das forças em jogo na sua
riscos de colocar a formação como invenção. constituição e, com isso, expressar-se e criar-se

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de um modo inteiramente novo, singularizando de linhas e regimes que se movimentam: “Não


sua experiência. são nem sujeitos nem objetos, mas regimes que
Feito isto, convoco Veyne (2008/2011) para é necessário definir pelo visível e pelo
a discussão, pois ele diz que Foucault anuncia enunciável, com as suas derivações, as suas
que o sujeito é constituído, o sujeito não é transformações.” (Deleuze, 1996, p. 85). Nos
natural, mas sim, feito em cada época do dispositivos existem múltiplas linhas de
dispositivo, pelos discursos, pelas práticas de segmentaridades diversas, de visibilidade e de
sua liberdade individual e suas estéticas. Afirma enunciação, de forças e de subjetivação, luz e
Veyne: enunciação que não são nem sujeito nem objeto,
mas regimes definidos pelo visível, pelo invisível
A constituição do sujeito corresponde a e pelo enunciável, com suas derivações e suas
de suas maneiras: ele se comporta e se transformações. As linhas de forças comportam
vê como vassalo fiel, súdito leal, bom o saber e o poder. As linhas de subjetivação
cidadão etc. Um mesmo dispositivo que
falam “de uma crise do pensamento de Foucault”
constitui esses objetos, loucura, carne,
sexo, ciências físicas, (p.86), que faz emergir o si, uma produção de
governamentalidade, faz do eu de cada subjetividade. Nestas linhas e regimes o que há
um certo sujeito [itálico do autor]. A física é uma dimensão de si que não é de forma
faz o físico. Assim como, sem um nenhuma um a priori que se encontre acabado,
discurso, não haveria para nós objeto mas sim, um processo, uma produção de
conhecido, não existiria sujeito humano subjetividade, na medida em que o dispositivo o
sem uma subjetivação. Engendrado pelo deixe ou o torne possível. Deleuze entende que
dispositivo de sua época, o sujeito não é
não há uma fórmula geral nas linhas de
soberano, mas filho de seu tempo; não é
possível tornar-se qualquer sujeito em
subjetividade, o que há são linhas de fuga, uma
qualquer época. Em compensação, é potência de invenção. “O estudo da variação dos
possível reagir contra os objetos e, processos de subjetivação é uma das tarefas
graças ao pensamento, tomar distância fundamentais que Foucault deixou aos que lhe
em relação a eles, à religião como Igreja estavam próximos.” (p. 88). Em tais estudos há
e clero, por exemplo. um traçado de efeitos forjados com a noção de
De tal maneira que o homem nunca dispositivo que destaco aqui: o repúdio dos
deixou de se constituir na série infinita e universais e a abertura para a invenção, efeitos
múltipla de subjetividades diferentes e fundamentais que permitem dizer, com Deleuze,
que nunca terão fim, sem que nunca que pertencemos a dispositivos e agimos neles.
estejamos diante de algo que seria o O dispositivo então se define pelo que se
homem. ... Ao falar de morte do homem passa de mais duro e formal, atravessando as
de maneira confusa, simplificadora, era
linhas que marcam a capacidade de se
isso o que eu queria dizer. A noção de
subjetivação serve para eliminar a transformar, rachando e enfraquecendo as linhas
metafísica, o duplo empírico- mais duras e sólidas. Quando as linhas mais
transcendental que extrai do sujeito rígidas se fragmentam abre-se espaço e tempo
constituído o fantasma de um sujeito para se traçarem caminhos de criação. “Não é
soberano. (p. 179). predizer, mas estar atento ao desconhecido que
bate à porta.” (Deleuze, 1996, p. 94).
Seguindo as direções apontadas por Veyne As diferentes linhas do dispositivo –
para compreender a produção de subjetividade e visibilidade, enunciação, força e subjetivação –
as experiências de dessubjetivação, uma mostram bem o traçado metodológico e prático
espécie de prática de si, é preciso, a meu ver, de Foucault: manter viva a força de uma linha
colocar em análise duas noções importantes: atual. “O atual não é o que somos, mas aquilo
dispositivo e estetização de si. Deleuze (1996; em que nos vamos tornando, aquilo que somos
1986/2005), ao analisar a obra de Foucault, diz em devir, quer dizer, o Outro, o nosso devir-
que o trabalho deste último se apresenta como outro.” (Deleuze, 1996, p. 92). Veyne
dispositivo concreto, um conjunto multilinear (2008/2011) complementa dizendo que o
composto por linhas diferentes que seguem empreendimento de Foucault foi
direções e processos que estão sempre em
desequilíbrio. ... problematizar um objeto, perguntar-lhe
O dispositivo configura-se como máquinas como um ser foi pensado numa época
de fazer ver e falar para poder pensar em termos dada (é a tarefa do que ele chamava de

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arqueologia), analisar (é a tarefa da Trata-se da análise da constituição de uma


genealogia, no sentido nietzschiano da experiência interessada na questão do sujeito e
palavra) e descrever as diversas práticas sua relação com a verdade. Esta
sociais, científicas, éticas, punitivas,
problematização aprofunda o tema da estética
médicas etc. que tiveram por correlato
que o ser tivesse sido pensado assim. A da existência, estética que faz ver e falar o
arqueologia não busca extrair estruturas momento em que as forças ativas dominam as
universais ou a priori, mas sim reduzir forças que tendem à submissão. É neste
tudo a acontecimentos não espaço-tempo que uma experiência formativa
universalizáveis. E a genealogia faz com como invenção se produz e, ao mesmo tempo,
que tudo desça de uma conjuntura forja uma vida bela e livre. A liberdade só é
empírica: a contingência sempre nos faz produzida no momento em que o indivíduo dirige
ver o que éramos ou somos. O que é a vida por si mesmo.
nem sempre foi; isto é, foi sempre na
confluência de encontros, de acasos, ao
A própria matéria de uma estética de si
longo de uma história frágil, precária, aponta a capacidade de conduzir a vida liberta
que se formaram as coisas que nos dão da moral em termos de juízo de valor, e é neste
a impressão de serem as mais momento que se pode sair da armadilha da
evidentes. (Veyne, 2008/2011, p. 183). judicialização da experiência. Foucault (2004;
2010b) abre um campo de problematizações
Problematizar, analisar e enunciar práticas sobre as artes de viver, não no sentido de
forjadas nos encontros educativos pode ajudar a investigar uma vida de prazer ou de alegria
pensar em uma formação de professores como entediada, mas sim, de governar a própria vida
produção de subjetividade? Para manter viva a numa espécie de saber e de arte - algo como
questão, sigo com a segunda noção: estetização uma governabilidade implicada na relação de si
de si. A estética de si é um pensamento que se consigo mesmo, que significa justamente essa
acentua no contexto do problema filosófico noção de governabilidade entendida como um
perseguido por Foucault, a saber: como se dá conjunto de práticas pelas quais é possível
historicamente a constituição das subjetividades “constituir, definir, organizar, instrumentalizar
e quais os efeitos éticos, estéticos e políticos de estratégias que indivíduos, em sua liberdade,
tais definições (Foucault, 1994/2006). Trata-se podem ter uns em relação aos outros. São
de uma perspectiva ontológica que diz respeito à indivíduos livres que tentam controlar,
constituição dos sujeitos e, ao mesmo tempo, à
determinar, delimitar a liberdade dos outros e,
forma como se dão suas relações de poder e de
para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos
saber e suas relações consigo. Para Foucault, é
para governar os outros.” (Foucault, 1994/2006,
na dimensão ética, pelas práticas de si,
p. 286). Governabilidade significa governar a si
expressas na relação de si para consigo, que o
não por uma moral normalizadora e dominante,
indivíduo resiste e possibilita uma vida livre. Não
mas pela capacidade de dar forma a si próprio e
obstante, nem toda prática pedagógica prevê
de modular seus próprios valores, gestos,
uma positivação das experiências e da relação
com o outro. Foucault (1994/2006) diz que o que pensares e fazeres. “A noção de governabilidade
unifica seus estudos é a noção de permite fazer valer a liberdade do sujeito e a
problematização, que relação com os outros, ou seja, o que constitui a
própria matéria da ética.” (Foucault, 1994/2006,
... não quer dizer representação de um p. 286).
objeto preexistente, nem tampouco a Nestes termos, o dispositivo e a estetização
criação pelo discurso de um objeto que de si facultam problematizar a formação de
não existe. É o conjunto das práticas professores como produção de subjetividade e
discursivas ou não discursivas que faz necessidade de dessubjetivação e exigem
alguma coisa entrar no jogo do colocar em análise e intervir diariamente nos
verdadeiro e do falso e o constitui como
focos de experiência para poder agir, escrever,
objeto para o pensamento (seja sob a
forma da reflexão moral, do comunicar, pensar e forçar o pensamento a
conhecimento científico, da análise pensar - termos que forjam um modo de
política etc.). ... Como se constitui uma expressão e um estilo da atitude. Formação não
‘experiência’ em que estão ligadas a é somente dar forma a, representar um objeto
relação consigo mesmo e a relação com preexistente e resolver problemas, sendo
os outros. (p. 243). necessário um esforço para resistir às

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pedagogizações, pois há sempre uma desenvolvidos que devem ser atingidos e por isto
resistência, uma invenção favorável à expressão podem ser ensinados.
de uma experiência ética, estética e política que Ao desnaturalizar a vida e a formação
problematiza para poder afirmar a vida lá onde envolvo os acontecimentos políticos,
ela acontece. econômicos, sociais, educativos e subjetivos
nela ocorridos que emergem quando diferentes
formas e forças entram em ação, forjando efeitos
ENTRANDO PELOS MEIOS PARA que não podem ser antecipados e, por isto,
PROBLEMATIZAR UMA VIDA JUDICIALIZADA E precisam ser cartografados. Quando a formação
AFIRMAR A VIDA COMO POTÊNCIA E diverge de sua versão naturalizada ela se
RESISTÊNCIA associa a práticas formativas por meio de temas
que destacam o controle da vida, a
A ideia de uma vida judicializada coloca a lei despotencialização do cotidiano, o
como produção de liberdade padronizada e questionamento do tema da experiência como
regulada, definindo ações legais que devem ser somatório e acúmulo, os investimentos
tomadas, como a idade de entrada na escola, econômicos feitos para a manutenção de lógicas
dentre tantos outros exemplos: “a lei enquadra a capacitadoras que privilegiam experiência como
vida.” (Scheinvar, 2012, p. 46). Neste enquadrar, acúmulo e a produção de saberes e de
como acentua Scheinvar, os processos de especialistas nesse campo. Tomar a formação
judicialização investem na verdade e instauram como um problema é incluir todas essas
uma lógica para a vida que desqualifica outras dimensões e outras impensadas em sua análise,
possibilidades de existência, definindo como se privilegiando as experimentações ativas das
deve educar, trabalhar, viver, cuidar dos filhos, o micropolíticas que geram realidades vistas e
que é invenção, o que é formação, quais as ditas sobre e com ela. Faço isto para poder
práticas pedagógicas que formam para uma vida deslocar uma vida judicializada para uma vida
de liberdade padronizada, o que é uma relação como resistência e potência, seguindo junto com
de trabalho justa. Uma vida judicializada existe e Foucault e Blanchot, que pensam a vida como
se mantém por uma regra geral e definida por um ensaio intenso que se coloca no eixo das
leis e princípios invariantes que, assim, podem relações problematizadoras e próximas para
ser aplicados e intervêm nas existências mais afirmar coletivos que desindividualizam e podem,
íntimas, incluindo desejos e estilos de pensar e com isto, pensar práticas formativas abertas à
fazer. invenção de si e do mundo.
Com efeito, no campo da formação de O sentido de vida ganha, assim, a dimensão
de uma experiência-limite que mantém acesa a
professores enquadra-se para naturalizar e
ideia de Blanchot (1986/2007), abordando a
tomar a vida, nas relações pedagógicas, por
possibilidade permanente de o homem se
meio de normas, currículos, avaliações,
colocar em questão. Desta maneira, Blanchot,
controles e imposições de um modo de
conversando com Bataille, coloca em evidência
governabilidade que apreende a vida e a reduz a
a ideia de que a experiência exige o
práticas de controle que não permitem que ela
acontecimento de se colocar em questão,
se efetive nos acontecimentos, nas negociações,
porque ela abre na existência acabada uma
nos encontros e nas conversas. brecha para que isso que está definido deixe-se
Por isso, aqui sigo as sugestões de Foucault repentinamente transbordar e escapar como
e digo que a vida na formação será tomada uma possibilidade, num inacabamento disforme,
como algo a ser problematizado. – portanto a estranho. “De onde vem este movimento de
formação se distancia de modos exceder cuja medida não é dada pelo poder que
representacionais e pedagogizantes, que tudo pode?” (Blanchot, 1986/2007, p. 190).
antecipam o aprender como aquisição de Sobre esta questão feita a Bataille, em que
competências. Desta maneira, ao colocar Blanchot anuncia a necessidade de entender
questões para a formação de professores estou rigorosamente, eu cito:
retirando-a do dito lugar-comum, no qual ela é
compreendida como naturalmente formativa, É preciso entender que a possibilidade
quando vista, obviamente, por um plano não é a única dimensão de nossa
organizado que se sustenta na prefixação de existência e que talvez seja-nos dado
níveis de habilidades ou processos a serem “viver” cada acontecimento de nós

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mesmos numa dupla relação: uma vez acima, fora do ser e não depende
como aquilo que compreendemos, portanto nem da ontologia, nem da
agarramos e dominamos (mesmo que dialética, o homem se vê atribuir, entre
com dificuldade e dolorosamente) ser e nada e a partir do infinito desse
relacionando-o a um bem qualquer, um entre-dois acolhido como relação, o
valor qualquer, isto é, uma última estatuto de sua nova soberania, a de um
instância, à Unidade; outra vez como ser sem ser no devenir sem fim de uma
aquilo que se subtrai a todo emprego e a morte impossível de morrer. A
todo fim, mais ainda, como aquilo que experiência-limite é assim a própria
escapa a nosso próprio poder de prová- experiência: o pensamento pensa aquilo
lo, mas à prova do qual não poderíamos que não se deixa pensar! O pensamento
escapar: sim, como se a impossibilidade, pensa mais do que pode pensar, numa
aquilo em que já não podemos poder, afirmação que afirma mais do que o que
nos aguardasse atrás de tudo o que se pode afirmar!
vivemos, pensamos e dizemos, por
menos que tenhamos estado alguma vez Blanchot (1986/2007) diz que o mais é a
no fim dessa espera, sem nunca faltar própria experiência de pensar e voltar-se contra
àquilo que exigiu esse excedente, esse
a soberania do homem ao se fazer instrumento
acréscimo, excedente de vazio,
acréscimo de “negatividade”, que é em de soberania; uma experiência que não é um
nós o coração infinito da paixão do acontecimento vivido, mas se afirma e pode ser
pensamento. (Blanchot, 1986/2007, p. falada talvez na espessura estrangeira e
190). flutuante de comunicar o visível e o invisível do
ser da linguagem, que
Blanchot chama a atenção para uma vida
que se coloca também sob outra forma quando a ... não aparece a si próprio senão no
relaciona ao jogo do interdito e da resistência, o desaparecimento do sujeito. Como ter
que ultrapassa o limite do possível. “O interdito acesso a esta estranha relação? Talvez
marca o ponto onde cessa o poder” (Bataille, por uma forma de pensamento cuja
possibilidade ainda incerta, a cultura
1987 citado por Blanchot, 1986/2007, p. 190).
ocidental esboçou nas suas margens.
Neste jogo, para Blanchot, é possível afirmar que Este pensamento que se mantém fora de
a resistência não é um ato de que, em certas toda a subjetividade para fazer surgir
condições, a força e o domínio de certos homens como que do exterior os seus limites,
se mostrariam ainda capazes. Ela designa aquilo enunciar o seu fim, fazer cintilar a sua
que está radicalmente fora do alcance: um virtual dispersão e dela recolher apenas a
que exige do homem se abrir quando o poder invencível ausência, e que ao mesmo
deixa de ser nele a última dimensão. tempo se mantém no limiar de toda a
A dimensão virtual externa um pensamento e positividade, não tanto para lhe
apreender o fundamento ou a
o porquê de a experiência não vir do sujeito, mas justificação, mas para redescobrir o
do movimento que a conduz e do qual ela não se espaço em que ela se desdobra, o vazio
separa, já que seus princípios exprimem o que lhe serve de lugar, a distância na
infinito do questionar. Por isto é necessário qual ele se constitui e onde se esquivam
concluir sem pressa o que se passa entre o as certezas imediatas assim que o olhar
acontecimento, a produção de si e a as procura –, este pensamento, por
dessubjetivação e demorar-se no acontecimento referência à interioridade da nossa
para experienciar um não saber que pode reflexão filosófica e por referência aquilo
a que poderíamos chamar em suma “o
afirmar o que não é um produto, como resultado
pensamento do exterior.” (Foucault,
da dupla negação, e escapar a todas as 1966/2001, p.15-16).
oposições e dialéticas que se consumam antes
da experiência. Afirma Blanchot (1986/2007, p. Ao afirmar o pensamento do fora, Foucault
193): anuncia que o sujeito esvai-se, e com seu
desaparecimento se manifestam movimentos
É o sim decisivo. É a presença sem sensíveis desejosos de estabelecer uma relação
nada de presente. Nessa afirmação que
se libertou de todas as negações, que
entre o desconhecido e o que transforma. O
relegou e depôs o mundo dos valores, pensamento deixa de ocupar o lugar de
que não consiste em afirmar – em portar verdadeiro para assumir a conotação de uma
e suportar – o que é, mas se mantém provisoriedade para as questões que emergem

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em um dado local e tempo, em um presente ao indizível, ao impensado, a qual, por isto, se


histórico - nem antes nem fora do tempo, com afirma como uma potência dispersa e estranha.
seus limites, possibilidades e mortes - pois o Com efeito, pensar a formação como
possível não é o que está dado, mas a coragem processo de produção de subjetividade pode
de inventar novas formas e modos de pensar e assumir a composição de uma multiplicidade de
fazer e torná-los atuais. Isso implica arrancar o forças em devir permanente que se desviam de
sujeito de si mesmo para dar visibilidade aos práticas de judicialização para afirmar a vida
devires, para experimentar a relação com a pela sua potência de diferenciação. Como coloca
alteridade, com o mundo, com a vida. A Deleuze (1986/2005), o processo de formação é
experiência do fora assume o sentido de um uma dobra do fora que guarda uma potência de
devir outro, um expresso que está em vias de se resistência que distribui diferença. Formar é
fazer, sem começo e sem fim, mas que se faz como uma dobra do fora para experienciar a vida
entre dois, que não é oposição nem e forjar um exercício de resistência e, assim,
complementaridade de dois opostos, mas a abrir-se aos deslocamentos; é uma tensão no
afirmação de uma diferença entre duas coisas campo da educação que se faz
distintas; contudo, vida e experimentação são hegemonicamente como um campo de aplicação
distintas uma na outra, porém são de didáticas e de pedagogias identitárias. Há
indissociáveis. A vida aponta as condições por uma necessidade incessante de se avaliar
meio das quais emergem as experimentações, quanto se trabalha para a judicialização da vida
que, por sua vez, fogem, desviam-se da própria ou para a expansão da vida, uma necessidade
vida. Como se deslocar na vida produzindo emergente de escolhas que respondam à
desvios e fazendo devirem novas desindividualização e à constituição de planos
possibilidades de existência? Vida e devir são mais coletivos de se formar.
um fenômeno de dupla captura que “não é uma
produção do Mesmo, é uma repetição do
diferente. Não é a emanação de um Eu, é a AGENCIAR PARA ARRISCAR, FORMAR,
instauração da imanência de um sempre-outro DESFORMAR E INVENTAR
ou de um Não-eu.” (Deleuze, 1988, p. 105).
A experiência do fora desdobra a vida As noções de dispositivo, de estetização de
presente, no sentido de uma atualidade em que si, de produção de subjetividade e
não se volta ao passado para pensar o presente, dessubjetivação se associam às ideias de
mas para delimitar a diferença dos modos de formação, de vida e de resistência para a criação
existência em determinadas formações. O que de um plano coletivo de formar que conceba a
nos forma? Que devires? Que deslocamentos? vida como uma obra de arte (Dias, 2011; 2012).
Quais os efeitos? Nestes termos, cada um dos conceitos e dos
O que interessa a Foucault é a nossa gestos de formar é um espaço-tempo de risco, e
atualidade, os sentidos que conseguimos ver, nisto, mais uma vez Blanchot (1955/2011) é
dizer, pensar para constituir modos de convocado para forçar a pensar, quando traz
existência. É uma vida que acontece entre o que uma passagem de uma carta de Rilke
se deixa de ser e o que se transforma, um (1898/2011) endereçada a Clara Rilke, ao dizer
ressoar permanente de questões e forças que que “... as obras de arte são sempre os produtos
marcam as relações de poder e suas de um perigo corrido, de uma experiência
resistências; é poder sobre a vida e potência de conduzida até ao fim, até ao ponto em que o
vida. Blanchot e Foucault mostram-se homem não pode mais continuar” (p. 193). E
fundamentais para se pensar a formação como continua Blanchot (1955/2011), acrescentando
produção de subjetividade, como correlação de que “a obra de arte está ligada a um risco, é a
forças que constituem modos de vida afirmação de uma experiência extrema. Mas
experienciais. Neste sentido, Foucault qual é este risco? Qual é a natureza desse
(1966/2001) busca em Blanchot a ideia do fora, vínculo que a une ao risco?” (p. 257).
para falar de um pensamento do exterior ou um O risco de que o autor fala acima é o de
pensamento de resistência; fora que não está assumir uma experiência-limite que objetiva
dentro e nem é exterior; fora do eu de uma terminar com a permanência do homem e da
consciência crítica, de certezas naturalizadas; verdade para poder tensionar sua dimensão
fora como abertura ao imprevisível, ao invisível, natural, formada e dada histórica e socialmente.

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Assumindo-se o risco amplia-se o grau de problematizadora, a formação inventiva


suportabilidade de uma experiência, e com isto é comparece, paradoxalmente, excedendo os
possível que se dê uma potência anônima, estados perceptivos do vivido, podendo assim
impessoal de uma formação que se comprometa acontecer como um esforço de liberar a vida lá
mais com a dissolução de sua naturalização onde ela é aprisionada, facultando
para que se possa deslocar e devir outro. O deslocamentos dos modelos representacionais -
tempo da suportabilidade designa o tempo da que colocam a formação como solução de
feitura e da fabricação de uma obra de arte, de problemas prévios - para um bloco de sensação
uma invenção, justamente porque as respostas no qual a formação assume a dimensão de
certas vacilam e a problematização se mantém. invenção de problemas.
No campo da formação de professores a ideia Um composto problemático que se abre,
de invenção nos fortalece para analisar e intervir vibra e se enlaça para tecer uma experiência. O
naquilo que se move e nos move, bem como tema da invenção no campo da formação de
seus efeitos diretos na vida dos formandos e professores passa a ser coletivo, o que implica,
formadores. para a maioria, muitos riscos; mas é possível ver
Com efeito, uma formação inventiva de que a palavra invenção e a experiência que a
professores (Dias, 2012) possibilita atravessa trazem perigo e riscos. Desde já é
deslocamentos quando força o pensamento a se bom deixar claro que o risco é signo da
derivar daquilo que já está colocado como liberdade, e nisto sigo contando com Blanchot
verdade, como um objeto a ser descoberto, (1955/2011) para ajudar a pensar por que formar
como uma aprendizagem adquirida e um professores pode assumir uma dimensão de
ensinamento forjado por códigos didáticos que produção de subjetividade. Afirma o autor:
pressupõem um plano de realidade configurado
como origem da representação do real que O homem é, de todos os seres, o que
legitima o corte sujeito/objeto, cultura/natureza, está sujeito a mais riscos, já que ele
próprio vai ao encontro do risco.
eu ensino/ele aprende, um plano que legitima
Construir o mundo, transformar natureza
um modelo e o replica por meio de métodos pelo trabalho, só tem êxito por um
pedagógicos, processos de ensino e avaliações desafio audacioso no decorrer do qual o
institucionais que regulam e judicializam a vida. mais fácil é posto de lado. Entretanto,
Formar nestes termos, em modelos que nesse desafio fala ainda a busca de uma
regulam, carrega em si a razão e o entendimento vida protegida, satisfeita e segura, falam
que contribuem para um conhecer que forma um as tarefas precisas e os deveres justos.
senso comum lógico como uma imagem O homem arrisca sua vida, mas sob a
proteção do dia comum, à luz do útil, do
dogmática do pensamento (Deleuze, 1988). Em salutar e do verdadeiro. Por vezes, na
outras palavras, geralmente formar assume uma revolução, na guerra, sob a pressão do
representação capacitadora. Esta generalização desenvolvimento histórico, ele põe em
possui elementos modelares que colocam a risco o seu mundo, mas sempre em vista
formação como ideal e, por isto, julga, prefigura, de uma possibilidade maior, para reduzir
supõe, recorda, percebe a formação como o longínquo, proteger o que é, proteger
idêntica, semelhante, analógica e oposta; os valores aos quais seu poder está
ligado – numa palavra, para compor o
contudo, o que há é uma produção identitária
dia e dilatá-lo ou verificá-lo na medida do
que se assenta principalmente na judicialização possível (Blanchot, 1955/2011, p. 258).
das relações, na pretensão de não escapar aos
enquadramentos. Como dilatar o possível? Qual risco se
Contrária a esta posição modelar que assume quando o que está em jogo é uma
judicializa a vida, uma formação inventiva de formação que tem por tarefa produzir
professores não acredita em projetos gerais, deslocamentos entre subjetividades e
capacitadores de professores. Há na invenção dessubjetivações? Tal interrogação já não é
outras formas que não convidam o pensamento surpreendente? Qual é o risco levantado por
a um exame, a um julgamento ou à manutenção Blanchot que o artista espera? Talvez seja
de um modelo. Estas formas forçam o preciso acreditar mais no possível para que se
pensamento a pensar e se colocam como um possa inventá-lo, para que se processe uma
aprender infinito, como uma instância experiência-limite. É necessário fazer uma
problemática. Com esta dimensão distinção entre o possível que se realiza e se

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estabiliza e um possível que se inventa. Na incessantemente, é o horror e a


formação, o primeiro refere-se ao possível como confusão, e a incerteza de uma
realização de um projeto previamente pensável e repetição eterna. ... O risco que o
homem corre quando pertence à obra, e
dado por determinações e limitações que
quando a obra é a busca da arte,
pedagogizam gestos; já o possível inventado consiste, portanto, em que ele pode
remete ao acontecimento que não e denominado arriscar-se do modo mais extremo: não
previamente, mas se atualiza na singularização, só arriscar sua vida, não só o mundo
efetivando uma transformação. Deleuze onde está, mas a sua essência, o seu
(1986/2005) diz da importância de se esgotar o direito à verdade e, mais ainda, o seu
possível como atualização de um estado de direito à morte.
coisas, como apreensão da atualidade de uma
situação para poder criar o possível como O risco da obra de arte tomada como vida
potência, como um campo de forças. força o pensamento a pensar para fazer ressoar
Esta dupla captura acredita na efetuação de os dois pontos importantes destacados no início
um campo problemático e desacredita das ideias deste artigo para se pensar a formação como
prontas, dos clichês, das totalidades, de que produção de subjetividade: dispositivo e estética
tudo já esteja dado de antemão, de que não de si. Deleuze (1996) recupera uma passagem
temos nada a fazer, nada em que acreditar. do livro “Arqueologia do Saber”, de Foucault
Tomar o possível, no campo da formação como (1969/2005), para afirmar que o dispositivo
potência, como experiência de problematização, possui linhas de estratificação ou de
como criação de novas possibilidades de vida, sedimentação e linhas de atualização ou de
de novos modos de existência, proporcionando invenção. Destaco uma parte que acentua o
pensar, fazer, sentir diferentemente. caráter de risco que o dispositivo proporciona
Deleuze (1986/2005) diz que Foucault faz
quando toma o desconhecido que bate à porta, o
uma história das condições institucionais e dos
errante que problematiza e faz emergir o que
sujeitos que integram relações diferenciais de
está do lado de fora, o que é diferença. Foucault
forças, no horizonte de um campo ontológico e
social. Para Deleuze, o que perturba Foucault é (1969/2005, citado por Deleuze, 1996, pp. 94-95)
o pensamento: “Pensar é experimentar, é explica:
problematizar. O saber, o poder e o si são a
A descrição do dispositivo dissipa essa
tripla raiz de uma problematização do identidade temporal em que gostamos
pensamento” (p. 124); mas afirma um de olhar para nós próprios para exorcizar
pensamento que prima pela diferença, pelo lado as rupturas da história; ela quebra o fio
de fora, que explicita o impensado problemático das teleologias transcendentais; e no
e dá lugar a um ser pensante que se lugar onde o pensamento antropológico
problematiza a si próprio, como sujeito ético. O interrogava o ser do homem ou a sua
que acontece é uma batalha, são relações de subjec-tividade, ela faz com que se
forças, intensidades e estratégias que manifeste o outro, o que está do lado de
fora. O diagnóstico, assim entendido,
subjetivam e dessubjetivam. As forças vêm
não confere o certificado da nossa
sempre de fora, atualizando e diferenciando sem identidade por intermédio do jogo das
deixar de se integrar. Deste modo, diferir é distinções. Ele demonstra que nós
sempre um arriscar-se em contínuo movimento. somos diferença, que a nossa razão é a
Blanchot (1955/2011, p. 260) afirma: diferença dos discursos, a nossa história
a diferença dos tempos, o nosso eu a
O risco que espera o poeta e, atrás dele, diferença das máscaras.
todo homem que escreve sob a
dependência de uma obra essencial, é o Deleuze (1996) destaca que as linhas de um
erro. Erro significa o fato de errar, de não dispositivo englobam toda a obra de Foucault,
poder permanecer porque, onde se está, expressando seu método e estratégia, que são
faltam as condições de um aqui decisivo;
extremamente novos ao analisarem as práticas
lá onde se está, o que acontece não tem
a ação clara do evento a partir do qual
discursivas, os jogos de poder e modos de
qualquer coisa firme poderia ser feita e, existência como foco de experiência que
por conseguinte, o que acontece, não expressa os modos de existência virtuais para
acontece, mas tampouco passa, nunca é sujeitos possíveis; mas acrescenta que isso é a
ultrapassado, chega, vai e volta metade da tarefa de Foucault, que as linhas de

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Formação, vida e resistência 425

atualização expressas em suas entrevistas são linhas da entrevista estejam também em vários
endereçadas para um futuro, para um devir. outros textos e entrevistas dos “Ditos e Escritos”
Chegando até este ponto, a questão inicial do (Foucault, 1994/2006). Serão elas a expressão
artigo se modula e a pergunta agora pode ser do que Foucault pensa ou a experimentação
formulada assim: Seria possível pensar em daquilo que pode o pensamento? E o próprio
práticas de produção de subjetividade e de autor responde: “Eu me resguardo de fazer a lei.
dessubjetivações na formação de professores, Tento antes colocar problemas, trabalhá-los,
no sentido de invenção e de investimento da mostrá-los em uma complexidade tal que chegue
experiência-limite? Com a modulação da a fazer calar os profetas e os legisladores, todos
questão e o agenciamento das noções aqui aqueles que falam pelos outros e antes dos
tratadas e com os riscos que tal agenciamento outros” (Foucault, 1994/2010a, p. 338). Ao calar
suscita no campo da formação de professores, os legisladores, Foucault faz ver e falar a
faço ressoarem as linhas da entrevista feita a complexidade de um problema com a
Foucault por Trombadori, em que o primeiro diz concretude da vida das pessoas e, com efeito,
que não se considera um filósofo e destaca que elabora um plano comum por meio de questões
seus autores mais importantes foram Bataille, concretas, de casos difíceis, de movimentos, de
Nietzsche e Blanchot, pois estes lhe permitiram encontros e de conversas. Com isto, ele elabora
deslocar-se de sua formação universitária. um trabalho social eliminando o porta-voz.
Afirma Foucault (1994/2010a, p. 291): O problema da formação de professores
como produção de subjetividades é, pra mim, um
... para Nietzsche, Bataille, Blanchot, ao problema muito difícil, pois os códigos são muito
contrário, a experiência é tentar chegar a
determinados e suas expressões assumem a
um certo ponto da vida que seja o mais
perto possível do não possível de ser dimensão do vivido, de um ser que já sabe de
vivido. O que é requerido é o máximo de antemão o que deve ser ensinado e solucionado.
intensidade e, ao mesmo tempo, de A formação de professores assume, deste modo,
impossibilidade. O trabalho um processo sistemático que pode ser
fenomenológico, ao contrário, consiste empregado como um método generalizante e é
em desdobrar todo o campo de
aplicável. Essa formação imprime grandes
possibilidades ligadas à experiência
vivida. ... A experiência em Nietzsche, sistemas pedagógicos e históricos que têm
Blanchot, Bataille tem por função efeitos de dominação, de manutenção e de
arrancar o sujeito de si próprio, de fazer controle da vida das pessoas, por isto funciona
com que não seja mais ele próprio ou por normas visíveis e invisíveis que aprisionam e
que seja levado a seu aniquilamento ou judicializam a vida, necessitando dessubjetivar.
à sua dissolução. É uma empreitada de
Por outro lado, a formação inventiva de
dessubjetivação.
professores e o risco que carrega assumem
A ideia de uma experiência-limite, que assim uma problematização e sua experiência-
arranca o sujeito de si mesmo, eis o que limite. Sem porta-voz, ela propõe tessituras de
foi importante, para mim, na leitura de
encontros e conversas que têm como desafio
Nietzsche, de Bataille, de Blanchot, e
que, tão aborrecidos, tão eruditos que
manter vivo um campo problemático (Dias,
sejam seus livros, eu os tenha sempre 2012). Possível e impossível por não se ocupar
concebido como experiências diretas, com a produção de sujeitos essencialmente
visando a me arrancar de mim mesmo, a prescritos, mas com o que ainda necessita
me impedir de ser o mesmo. continuamente se agenciar em um processo de
constituição da existência de si que forja objetos,
Com as linhas de atualização desta longa essa formação os desloca, e ao mesmo tempo
entrevista, Foucault faz uma ontologia do em que os deforma, ela os transforma e os
presente, de acordo com a qual a dissolução do transfigura. É a invenção e constituição de uma
sujeito era menos tributária da arte literária do série múltipla de subjetividades infinitas, dando
que remetida a todo um jogo de forças, apto a acesso à diferença como possibilidade de
reinventar a relação entre sujeito e experiência, alteridade, de estranhamento de si, do outro e do
pois na arte, quando a obra emerge como efeito mundo.
de uma expressão, o homem desaparece, Talvez - na contramão do momento atual,
necessitando de grandes deslocamentos para se que grita por normas e direitos que também
dessubjetivar de verdades a priori. Talvez estas modulam as relações, instituindo uma

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Psicologia em Estudo, Maringá, v. 19, n. 3, p. 415-426, jul./set. 2014

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