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RESUMO
De acordo com a maior parte das lideranças candomblecistas na Bahia, a interdição feminina
ao tambor consiste numa prática tradicional secular trazida ao Brasil pelos povos yorubanos.
No entanto, Oyèrónké Oyéwùmí, feminista nigeriana, nos lembra, o que os próprios estudos da
língua yorubana mostram, que categorias sociais generificadas no contexto euro-americano, tais
como esposa, filha, irmã, no contexto yorubano, possuem ambivalência. Seriam algumas
práticas historicamente concebidas como parte da “tradição” dos povos de terreiro, ou
candomblecistas, heranças coloniais? Ao analisarmos a historiografia das religiões afro-
brasileiras, encontraremos subversões eventuais de uma pretensa hegemonia masculina nos
tambores. Serão essas subversões paliativos tomados diante de uma “necessidade” de manter a
ordem ritual? Ou serão essas práticas resquícios, rastros resíduos de práticas advindas de África
que necessitam ser recontadas a fim de se reinventar a tradição candomblecista?
PALAVRAS CHAVES: mulher; tambor; tradição; invenção; subversões identitárias.
INTRODUÇÃO
1 Sanara Rocha é feminista negra, multiartista e mestranda em cultura e identidade pelo Programa
Muldisciplinar de Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Desenvolve uma pesquisa poética
etnomusical desde 2016. Interessa-se por questões político-identitárias relacionadas a gênero, negritude e
interseccionalidades.
religiosa como um todo, para justificar o motivo de ser tabu, na maior parte dos terreiros de
candomblé (roças, ou ilê axés) as mãos femininas tocarem no couro dos tambores sagrados.
O mito de criação do tambor ritual pela divindade masculina Aiyom, narra a passagem
deste homem dotado de enorme virilidade e força, -capaz de arrancar Iroco de seu pé com uma
única mão!
Conta-se que esse homem, após arrancar o tronco de uma árvore do seu pé sem esforço,
escavou o seu tronco deixando-o oco, e com o couro de um bode morto, vedou o tronco em
ambas as extremidades, construindo, assim, o primeiro tambor ritual da história yorubana.
É a partir deste mito que se associa a palavra yorubana “bajé”, cujos significados
extraídos do Vocabulário Yorubá são: “estragar; apodrecer; ruim; mofar, azedar”
(NAPOLEÃO, 2011, p. 58), dentre outras conotações negativas, ao ciclo menstrual feminino,
e o tabu da mulher tocar tambor é instaurado.
Não obstante, alguns aspectos presentes neste discurso do bajé como fator irrevogável
que impede a mulher tocar no tambor, são essenciais para análise que pretendo desenvolver
neste trabalho:
1- O ciclo menstrual feminino dura um curto período de alguns dias, apenas, o que
levaria a tal interdição se sustentar respaldada no corrimento menstrual, após findado o ciclo
do mesmo?
2- A condição da menstruação hoje não mais se refere somente aos corpos auto
identificados como femininos. As discussões acerca da transgeneridade nos convocam a
enxergar um corpo auto identificado no masculino como passível de menstruar, passível de ter
útero, vagina, vulva, seios protuberantes ou mesmo de, gestar, enfim. Assim como nos
convocam a conceber mulheres que não menstruam por não serem dotadas de útero ou vagina.
As discussões acerca da transgeneridade simplesmente pulverizam o argumento do “bajé”,
pondo em xeque o próprio sentido do que ainda pode ser sustentado como “tradição secular”
nas práticas candomblecistas como um todo;
3- O território mítico é espaço simbólico em disputa. Não por mero acaso, as narrativas
fundacionais de um mesmo grupo étnico, frequentemente são vistas e narradas de maneiras
diferentes, mas quase sempre são oficializadas como “verdadeiras” aquelas que colocam em
evidência a virilidade cisgênera e heterossexual, não importando qual o contexto cultural.
Não terá existido nenhum herói mítico ou heroína mítica ou divindade, homossexual
ou transgênera? Serão todos os protagonistas dos mitos fundadores da sociedade yorubana, por
exemplo, homens e mulheres cisgêneras e heterossexuais ou as narrativas que exibem as
sexualidades e gêneros dissidentes terão sido obliteradas a partir de uma perspectiva
patriarcalista?
Tomando como ponto de partida este quarto aspecto, antes de prosseguirmos com essa
análise, nos deteremos a investigar, mesmo que rapidamente a importância do sangue na
dinâmica ritual candomblecista, bem como a valoração do sangue menstrual feminino na
perspectiva cosmogônica yorubana segundo a etnóloga Juana Elbein dos Santos (2012).
Muitas narrativas míticas ou itan yorubanos apresentam essa relação entre o poder
feminino e o corrimento menstrual. Dentre estas, existem duas narrativas que podem nos ajudar
a compreender a valoração do sangue menstrual feminino no contexto da cosmogonia yorubana.
Conta o mito que, certa vez, Oxum foi procurada por uma das esposas diletas de Oxalá,
aos prantos, pois havia sido escorraçada por seu esposo após desrespeitar o seu tabu: Sentara
ao seu lado com as vestes tingidas de vermelho do sangue de sua menstruação, sem ter
conhecimento. A mulher havia sido enfeitiçada pelas duas esposas mais velhas e enciumadas
de Oxalá por meio de uma infusão que fez com que o seu sangue menstrual escorresse sem que
percebesse.
Aflita com a rejeição e reação violenta de Oxalá, a mulher procura pela ajuda de Oxum,
e esta, através de um banho de folhas sagradas transforma o seu corrimento menstrual em
vistosas penas vermelhas de edidé, a preciosa ave vermelha yorubana, também chamada de
ekodidé, e as deposita uma a uma, no interior de uma cabaça, tornando, assim, a cabaça e as
penas vermelhas da ave, símbolos respectivos do útero e do sangue menstrual feminino.
Tal feito causa espanto e admiração em toda a comunidade que passa a reverenciar a
fertilidade feminina manifestada no corrimento menstrual e no awo de Oxum. O próprio Oxalá
se admira do feito de Oxum prostrando-se aos seus pés diante de todos e reverenciando o poder
feminino da gestação representado pelas penas de ekodidé dentro da cabaça. Com uma das
penas enfeita sua cabeça e institui que dali em diante todo iniciado nos cultos sagrados também
deverá ornar seu orí com uma pena de ekodidé em reverência ao poder supremo feminino
essencial à existência de todo ser vivo.
Tal relação simbólica, da cabaça e das penas vermelhas com o útero e a menstruação
feminina, também poderá ser encontrada em outra passagem, no mito de criação do mundo.
Odúa, também conhecida como Odúduwa, única mulher dentre os orixás encarregados pela
criação do mundo, ao ver-se em desvantagem diante do poder dos seus companheiros com
relação as funções atribuídas a cada um na criação do mundo, questiona Olodumare, o deus
supremo iorubano, acerca de qual seria a sua importância e quais poderes lhe seriam concedidos
que fossem a altura daqueles conferidos aos seus companheiros na missão. Olodumare,
entregando-lhe uma cabaça contendo uma ave com penas vermelhas dentro, disse-lhe que seria
a mãe de todos, responsável pela fertilização do humano e do mundo. Devendo todo ser vivo
na terra lhe ser obediente e oferecer-lhe reverências. A ave e a cabaça tornam-se novamente
símbolos da fecundidade e do poder supremo feminino.
A despeito disso, Elbein (2012) vai observar e criticar a deturpação que os símbolos
femininos sofreram nas interpretações dos intelectuais homens tanto nigerianos quanto
europeus posteriormente. Sobretudo pela ligação destes com os poderes ocultos das Eleye Iyá
Mi Oxorongá, as mães ancestrais, grandes feiticeiras temidas por seu temperamento
considerado “instável”.
Talvez tenha sido a partir de uma interpretação intelectual masculina que a menstruação
e o corpo da mulher vieram a se tornar tabu na ritualística yorubana, sendo interditado em
determinados espaços de poder bem como a mulher impedida de executar certas funções, por
seu estado de “impureza”. Afinal, foi sobretudo a elite intelectual masculina euro-americana –
a africana também teve alguma contribuição - que se responsabilizou em registrar e traduzir
culturalmente, a partir de códigos ocidentais, as práticas culturais dos povos subalternizados
africanos. Tornando evidente que analisar as práticas yorubanas a luz de uma cosmovisão
fortemente patriarcalista como a ocidental, só contribuiu para uma série de interpretações
equivocadas.
Iyawo, por exemplo, é termo que designa a sujeita (o) iniciada (o) no culto lesé orixá,
no Brasil, independente do gênero ou sexualidade do indivíduo. Iyawo diz respeito a um grau
hierárquico no culto candomblecista, representando os corpos recém agregados àquela
determinada comunidade.
Inaicyra Falcão (2006), pós-doutora em artes cênicas, foi a primeira a socializar o mito
de criação do primeiro tambor ancestral yorubano por uma nova perspectiva, agora é Ayán
Toke, uma mulher, a primeira alagbe da história yorubana, quem constrói o primeiro tambor
batá. Presenteada por Exu com um couro de bode, após inúmeras tentativas de tocar em couros
de outros animais que se rasgavam durante suas performances exuberantes, Ayán torna-se uma
percussionista popular nos quatro cantos do mundo e sua performance chega ao conhecimento
do próprio obá de Oyó, Sangó. O obá vai ao seu encontro e maravilhado com a sua performance
a convida para tocar em seus rituais sagrados, tornando Ayán a primeira alagbe a tocar tambor
para orixá dentro do contexto sagrado.
Inaicyra (2006), ainda acrescenta que existe uma linhagem inteira de homens e
mulheres que cultuam Ayán (que ora é apresentada como a divindade do tambor ora como o
tambor em si) na Nigéria, durante a sua investigação da dança batá, a qual originou sua
dissertação de mestrado e posteriormente um livro. Nessa investigação descobre os diversos
títulos designativos daquelas e daqueles pertencentes a linhagem e culto de Ayán na Nigéria,
não sendo tal tradição destinada apenas aos sujeitos identificados na rubrica de masculinos.
Tal dado ratifica dois pontos já abordados anteriormente neste trabalho: 1- que certos
títulos e nomeações yorubanas são agêneras; 2- as narrativas míticas consistem num território
em disputa por fundamentarem moralmente toda a sociedade.
É importante elucidar aqui que o que estou defendendo não é o fim das tradições
candomblecistas, eu própria me considero membra desta comunidade e adepta desta
cosmogonia. O que proponho com o presente trabalho é a problematização de algumas das
tradições que compõem a ritualística yorubana, que se respaldam em discursos biologizantes e
impõem significados valorativos negativos sobre os corpos femininos. Além disso oblitera
todas as demais possibilidades de feminilidades que extrapolem a constituição fisiológica de
ter uma vagina e um útero. Afinal sabemos que o dispositivo religioso, para além de repetições
sistemáticas de ações e textualidades, representa os princípios morais e éticos que fundamentam
um povo, uma sociedade, uma nação.
Mircea Eliade nos revela que “os mitos são um ingrediente fundamental da civilização
humana (...) Uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente a fim de justificar os
comportamentos humanos em nossa sociedade desde a sua “origem” (ELIADE, 2000, p. 8),
desde tempos imemoriais. Servem como uma espécie de farol moral e ético, regendo nossas
condutas e ritos cotidianos. Assim, não é preciso muito esforço de nossa parte percebermos que
essas narrativas quase sempre dotadas de uma vocalidade hegemonicamente masculina,
extrapolam territórios simbólicos religiosos e se refletem nas nossas relações cotidianas.
Tradições podem ser inventadas a fim de controlar um grupo ou são herdadas, mantidas
ou modificadas de acordo com os interesses de quem detém o poder.
Vimos até aqui que a despeito de percebermos o território mítico como sendo mutável
e como sendo um espaço cujas narrativas são disputadas e também que certos discursos que
nascem no interior dos territórios afro-religiosos no Brasil extravasam para as nossas práticas
cotidianas e sociais e perpetuam estereótipos machistas, certas tradições são mantidas sob o
pretexto de se embasarem numa concepção de fixidez e imutabilidade desde a sua “origem” e
sendo assim, atualizá-las significaria perdê-las enquanto “essência”.
Neste sentido proponho agora uma cartografia das presenças femininas subvertendo
uma economia percussiva masculinista no território sagrado afro-religioso, desde o período
inquisitorial brasileiro até os dias de hoje como uma metodologia descolonial de gênero,
segundo Lugones (2010), a qual intitularei narrativas fósseis femininas, a título de
problematizar a interdição feminina nos tambores sagrados como sendo uma tradição variável:
1-Em “Religiões Negras No Brasil”, Valéria Costa e Flávio Gomes (2016) apresentam
vestígios de mulheres angoleiras que batiam tambores nos “famosos” Calundus de Luzia Pinta,
desde o período inquisitorial brasileiro. Esses Calundus, segundo as autoras, podem ser
considerados como desencadeadores da ordem litúrgica umbandista, comprovando a presença
feminina no cargo do tambor em rituais sagrados no Brasil, desde o século XVIII.
4-No Ilê Axé Ogum Marinho, em São Francisco do Conde, Bahia, Mãe Rose de Ogum,
toca nos tambores sagrados do culto lesé Orixáá desde os oito anos de idade, subvertendo a
hegemonia masculina dentro do seu próprio Ile Axé.
5- Como já foi mencionado antes, a Nigéria também é território de Ayan Toke, mulher
que criou o tambor batá e primeira a tocar no tambor para Orixá e nos rituais de celebração para
os espíritos ancestrais masculinos, os eguns.
Entre tambores Ijexá, batás e atabaques, não sem alguma tensão e marcada por uma
evidente rarefação, a presença feminina no território percussivo afro-religioso persiste
resistindo a uma economia masculinista do tambor desde a África pré-colonial até os dias de
hoje. Tal presença, compreendida como inexistente e abjeta no território percussivo sagrado,
consiste numa memória que ainda precisa ser reinventada.
REFERÊNCIAS
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte: Pàde, àsèsè e o culto Ègun na Bahia.
Petropolis: Vozes, 2012.