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Um estudo de Tresaventura de Guimarães Rosa (13/09/2002 21:16)

DE QUANDO A ESCOLHA DAS PALAVRAS É NOVELO


NO LABIRINTO DO TEXTO.

Darcilia Simões (UERJ)

A língua divide o mundo e faz da infinita multiplicidade da realidade um


calhamaço abarcável e divisível. A língua ordena e articula a infinitude do
concreto, mas também a realidade espiritual. Nós vemos o mundo através
deste calhamaço formado pela linguagem.(Baldinger, 1977: 105)

Introdução

O presente ensaio, como já pode denunciar a epígrafe, ocupa-se da análise lingüística, perscruta
o sistema da língua portuguesa e o faz através da leitura do conto Tresaventura de Guimarães Rosa,
contido no livro Tutaméia – Terceiras Estórias (5ª ed. José Olympio, 1979), buscando discutir o
universo lingüístico representado na superfície textual. A abordagem adotada orienta-se nos estudos
lexicológicos, lexicográficos, semânticos e estilístico-semióticos. Nessa direção, procura-se apontar
as aventuras lexicais do autor e suas conseqüências na leitura do conto.

Convém esclarecer que a análise dos semas componenciais das unidades léxicas será pautada
pela teoria semântica construída por Pottier (1978).

Nossa interpretação parte de pressupostos semióticos da iconicidade (Peirce, 1839-1914) e da


funcionalidade (Halliday, 1985 e 1991). E a iconicidade se traduz na potencialidade textual de
conduzir o leitor pelas trilhas do texto, orientando-lhe ou desorientando-lhe a descoberta dos
sentidos ali inscritos.

Nessa ótica, serão eleitas palavras-chave na/da trama textual, cujos semas componenciais serão
examinados, com vistas a construir um sentido para o texto, decifrar-lhe a mensagem básica
emergente do mundo lingüístico captável. As unidades léxicas serão o fio do novelo que conduzirá
nossa leitura pelo labirinto do texto.

Passemos então ao estudo do conto Tresaventura.

Pistas para ler o conto

Dois mundos se confrontam no cenário de Tresaventura. No entanto, o título provoca uma


reflexão: o que quererá dizer tres+aventura? Será um ícone neológico de uma aventura a três ou em
três tempos? Ou será uma aventura tão especial que precisa de vocábulo novo para representá-la?
Terá o elemento tres- o valor do numeral três ou do prefixo tres1- (= trans-) que significa
locomoção para além de? Por um lado ou por outro, uma aventura é uma aventura! Logo, convém
nela entrarmos e seguir-lhe o percurso.

A epígrafe do conto já traz à tona uma idéia de que a narrativa vai cuidar de lembranças, de
tempos já vividos, seja na vida real seja na imaginada. São tempos memoráveis.
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A narrativa começa com a descrição mínima de um cenário campestre onde é desenhada a


imagem de uma menina muito especial que De ser se inventava: — “Maria Euzinha...”, conta o
narrador.

E um primeiro modelo de mundo se anuncia no conto: o da infância, o das coisas pequeninas e


singelas. Das ideiazinhas virgens e férteis.

A mestria de Guimarães Rosa (GR) empresta ao personagem-narrador de Tresaventura a


capacidade de relatar a estória por meio de uma seleção lexical muito particular. O léxico vernáculo
é acrescido de formas novas (neologia), e unidades preexistentes são enriquecidas em seu espaço
significativo em função do uso extravagante de que vêm a participar durante a aventura do então
narrado.

Um levantamento lexical

O mundo de Dja ou Iaí (a menininha) é construído com diminutivos, com neologismos típicos
das experiências lingüísticas infantis na fase de aquisição da língua. Menininha, ideiazinhas,
suspirinhos, coelhinho, mentirinhas, alicercinhos, narizinho, mansinho, vividinho, florinhas,
traseirinha, pouquinho pontinho, perninhas e mãozinha são escolhas léxicas que evocam a fala
infantil — voz menor que uma trova, segundo o narrador.

Os neologismos apuráveis, em sua maioria, representam o tempo do fazi, trazi, di... (analogias
do raciocínio lingüístico infantil). No conto aparecem formas como: destriste, relembramento,
furta-flor, mixordiosos, tremeter-se, enfeitiço, amalucamentos, figuradio, belfazeja, decisa,
direitidão, indominada, deslance, folhuscas, neblinuvens.

Tentando um agrupamento por analogia, podemos ter:

1. Neologia mórfica:

a. por prefixação: destriste, indominada, deslance.

b. por sufixação: relembramento, mixordiosos, figuradio, direitidão, folhuscas,

c. por derivação regressiva: decisa > indecisa

d. por aglutinação → palavra-valise: tremeter-se = tremer + meter-se; enfeitiço =


enfeite + feitiço; neblinuvens = neblina + nuvens

2. Neologia fônica: furta-flor (cf. furta-cor); belfazeja (cf. benfazeja); deslance (cf.
desenlace)

Convém lembrar que o neologismo só se consagra como tal quando preenche uma lacuna
expressional. Há, portanto, formações novas na língua que utilizam as disponibilidades do sistema,
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mas são dispensáveis por estabelecer concorrência com formas coexistentes. Exemplo disso é a
forma amalucamentos, que pode ser considerada um sinônimo de maluquices. O leitor então se
perguntaria: -Por que teria o autor inventado tal termo? As respostas podem ser várias, como: para
representar a fala infantil (que cria palavras em suplência de repertório); para exercitar as
potencialidades da língua; para acentuar a expressividade, etc. Por isso, o neologismo precisa ser
observado com critério. No caso de amalucamentos, a base amalucar está dicionarizada {Houaiss,
s.u. & Aurélio, s.u.} e é datada de 1881 naquele dicionário, logo, não oferece hipótese para ser
tomada como neologismo em sentido restrito.

Uma interpretação semântica para o léxico apurado

Ao reolhar-se o levantamento apresentado, é possível reorganizá-lo segundo as noções que


carreiam. Se o universo considerado é o mundo das ideiazinhas infantis, verifica-se nesse rol léxico
a riqueza do imaginário da criança representada pela menina Dja Iaí, em seu dizer. Curiosa em
relação ao vasto mundo que a cercava, sobretudo o que se distanciava de sua casa, o do arrozal —
queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo ondeante, o ar que lá — Maria Euzinha,
representada na fala do narrador, descrevia um mundo percebido de desusado modo. Inteligente e
astuta, era capaz de captar nuanças no seu entorno. E a partir desse enfoque, torna-se possível
agrupar os vocábulos em:

3. o pensado – ideiazinhas, suspirinhos, mentirinhas, narizinho, mansinho, florinhas,


vividinho

4. o experimentado – menininha, coelhinho, mentirinhas, alicercinhos, traseirinha,


pouquinho pontinho, perninhas e mãozinha

O mundo pensado do tempo infantil confunde-se com a ficção. É um mundo quase sempre
fantástico, maravilhoso. E as descrições captáveis em Tresaventura conduzem-nos a esse tipo de
mundo. Os neologimos arrolados, além de funcionarem como ícones da fala infantil — na qual o
sistema lingüístico se presta ao uso e ao “abuso2” — também servem de índices para a formulação
de um mundo hipotético, possivelmente existente na mente infantil. Nesse mundo, as coisas se
apresentam mais vivas, mais ricas que as percebidas pelos “olhos adultos”, quase sempre
embaçados pelo desencanto.

O mundo infantil, mágico, belamente possível, viabiliza as transformações, a criação do mundo


ideal pensado. E isto se reflete nos itens léxicos que se mostram na superfície do texto em análise.
Vejam-se:
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 mudança de estado → destriste (desfazimento da tristeza), indominada (que não se deixou


dominar), deslance (desfazimento da vicissitude; desfecho positivo)

 aglutinação de idéias → tremeter-se (meter-se em algo com medo, tremendo) enfeitiço (o feitiço
é uma situação que transforma e, na visão infantil, deve transformar enfeitando), neblinuvens
(imagem perfeita da impressão causada pela neblina, como se fossem nuvens de fumaça, por
exemplo)

 aproximação fonossemântica →furta-flor (as flores são objetos concretos, portanto, podem ser
furtadas; são coloridas, logo, superam o termo furta-cor) belfazeja (se benfazeja faz o bem,
belfazeja faz o belo, alinda.)

 avaliação criteriosa: mixordiosos, amalucamentos, figuradio, decisa, direitidão, folhuscas (são


todos adjetivos e substantivos que carreiam noções avaliativas para mais ou para menos, como
em folhuscas3)

 consciência da viagem pelo imaginário e pela memória → relembramento

Um necessário parêntese teórico.

Em Lingüística, a coincidência de subjetividade é o que se costuma chamar objetividade. E no


conto em estudo, a objetividade lexical não é o forte. Ao contrário, em Tresaventura, GR ora
inaugura significados (neologia semântica) ora inaugura formas lingüísticas (neologia fônica,
mórfica, sintática). Portanto, a objetividade tem de ser também inaugurada pelo leitor-autor. Isto se
deve ao fato de não existirem dois objetos absolutamente idênticos, assim como não existem dois
sujeitos com a mesma experiência, com o mesmo inventário léxico e com o mesmo conteúdo. Por
isso, a produção textual reflete subjetividades que, por sua vez, exigem do leitor-autor uma
negociação de sentidos, por meio do confronto de experiências — a narrada e a vivida —, a partir
do que se viabiliza a compreensão da mensagem.

O compartilhamento de idéias, no entanto, precisa ser orientado pelo texto, pois, se as


experiências são diferenciadas, a visão de mundo assim o será; logo, sem uma estratégica marcação
textual, o sentido construído pelo leitor-autor pode ser algo totalmente díspar do que teria sido
inscrito no texto. Ou seja, tomar-se-á gato por lebre!

Fechemos o parêntese.
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Campos semânticos e visões de mundo

Retomando-se o conto como objeto de estudo, do vocabulário levantado é possível deduzirem-


se pistas para a interpretação do título: Tresaventura. Os mundos experimentados por Dja Iaí4 não
são duais como se costuma pensar — a) Tapava os olhos com três dedos. b) virou para um lado,
para o outro, para o outro — lépida, indecisa, decisa. A menininha “viaja” por entre suas
percepções sensoriais (o que ouve, o que vê, o que toca...), seus anseios e as imagens construídas
pelos outros — representantes do mundo trabalhoso, do mundo adulto.

O mundo infantil que ela mentava não assustava nem a sustava. Mesmo em se tratando do
imaginado, do não visto, Iaí na se deixava frear pelo medo.

Observe-se:

Iaí psiquepiscava. Arrenegava. apagava aquilo: avesso, antojo. Sapos, cobras, rãs, eram pa ser
de enfeite, de paz, sem amalucamentos, de modo são, figuradio. (§13, l. 2-3)

O mundo da menininha deveria ser como as imagens figurais percebidas — em vigília ou em


sonho. Acima de tudo suas imagens! E isto se materializa nos itens léxicos apagava e antojo5 —
índices da arrenegação — e sem amalucamentos6 e figuradio7, ícones descritivos imagéticos.

A deformação das imagens projetada para o mundo adulto, segundo Maria Euzinha, se
materializa no texto em passagens como:

 Ficava no intato mundo das ideiazinhas. (§2, fl.1)

 Precisava de ir, sem limites. (§7, fl.1)

 Opunha o de-cor de si, fervor sem miudeio, contra o tintim de tintim. (§7, fl.1)

 Dja fechava-se sob o instante (...) Negava a ver. (§2, fl. 2)

O confronto aberto entre os dois mundos presentifica-se em:

 descrição da água na ótica adulta: “A água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo de meio
palmo...” (§3, fl.2)

 descrição da água na ótica de Dja Iaí: A água é fria, clara, dada da luz, viva igual à sede da
gente.. Até o sol nela se refrescava. (§4, fl.2)

A força frenadora da voz adulta se mostra claramente no conto:

Djaiaí, sustou-se e palpou-se — só a violência do coração bater. A mãe, de lá gritando,


brava ralhava. Volveu. Travestia 8 o garbo tímido, já de perninhas para casa. (§5, fl.3) [nota
nossa]
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Para apoiar nossa análise, elaboramos um quadro demonstrativo dos semas componenciais das
unidades léxicas levantadas, para que se possa acompanhar a constituição dos campos semânticos
por elas construídos. Chamamos de campos semânticos os núcleos significativos que podem ser
interpretados como subunidades temáticas que se entrelaçam no engendramento da história e na
tessitura textual.

Vejamos o quadro para que se compreenda o agrupamento que propomos:

QUADRO Nº 1 - UNIDADES LEXICAIS E SEUS SEMAS COMPONENCIAIS EM TRESAVENTURA


SEMAS ANIMADO NATURAL ALEGRE BELO DINÂMICO NECESSÁRIO NÃO- HUMANO ANIMAL

LEXEMAS PERIGOSO
1. destriste + + + + + + + _ _
2. mixordiosos + + + + + + + _ +
3. enfeitiço - + - + + + + - -
4. figuradio - + + + + + + - -
5. belfazeja - + + + + + + - -
6. direitidão + + _ _ + + + - -
7. indominada + + + + + + + + _
8. deslance - + + + + + + - -
9. folhuscas - + - - - - + - -
10. neblinuvens - + - + + - + - -
11. gente + + + + + + + + -
12. perturbação + - - - - - - + +
13. longe - - - - - - - - -
14. baixa - - - - - - - - -
15. molhada - - - - - - - - -
16. ralhavam- + - - - + + - + -
lhe
17. perigos - - - - - - - + -
18. feia - - - - - - - + -
19. febre - - - - - - - + -
Observação: O sinal (+) indica a presença do sema; (-) indica a ausência do sema.

A partir de um cruzamento entre as idéias representadas pelos semas enumerados e pela


marcação da presença/ausência do sema em cada unidade lexemática, fica patente a diferença de
visões de mundo entre adultos e infantes.

Continuaremos o estudo do vocabulário, discutindo, individualmente, unidades léxicas que


atuam como “logomarcas” na narrativa rosiana.

Observe-se:

Lá não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde árvores se assombram...
(§5º, l. 2) [grifamos]

O verbo assombrar9, em uso pronominal, alimenta a ambigüidade do mundo descrito no conto:


por um lado, um mundo trabalhoso (segundo os adultos); por outro, um mundo sem amalucamentos
(segundo Dja Iaí), uma vez que a predicação daquele verbo passa a reunir as noções de cobrir-se de
sombra, admirar-se e assustar-se: idéias que representam campos semânticos distintos.
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Vejam-se:

QUADRO Nº 2 - SEMAS COMPONENCIAIS PARA O LEXEMA ASSOMBRAR-SE EM TRESAVENTURA:


SEMAS → POSITIVO NEGATIVO PROTEÇÃO MEDO ARQUISSEMEMA

LEXEMAS ↓
cobrir-se de sombra virtuema virtuema semantema virtuema assombrar-se
admirar-se semantema virtuema semantema virtuema
assustar-se virtuema semantema semantema semantema
Lembrando-se que, na classificação de Pottier (1978: 71-75), semantema é o signo resultante
do conjunto de semas específicos (os que definem uma significação). Logo, se o sema proteção é a
interseção das traduções para assombrar-se, constata-se a possibilidade semântica na língua de
conotação para assombrar-se como cobrir-se de sombra. Acrescente-se ainda que a distribuição —
meio a meio — dos semas discutidos entre semantema e virtuema corrobora a potencialidade da
conotação construída por G. Rosa em Tresaventura para o arquilexema (lexema que recobre o sema
básico de um conjunto de unidades léxicas) e que, neste caso (o de assombrar-se) coincide com o
arquissemema (semema genérico constituído pelo denominador comum da série dos sememas mais
específicos que recobre — Dubois et al, 1978; Galisson & Coste, 1983).

Voltando à proposta de reunir as unidades léxicas em campos semânticos com base na


freqüência do sema, construímos os seguintes quadros:

QUADRO Nº 3 - CAMPO SEMÂNTICO 1 → POSITIVO → VIDA


CAMPOS VIDA DINAMISMO NECESSIDADE NATUREZA E
SEMÂNTICOS E CORAGEM BELEZA

UNIDADES LÉXICAS
1. destriste (adj.) + + + +
2. mixordiosos (adj.) + + + +
3. enfeitiço (s.) + + + +
4. figuradio (adj.) + + + +
5. belfazeja (adj.) + + + +
6. direitidão (s.) + + + +
7. indominada (adj.) + + + +
8. deslance (s.) + + + +
9. gente (s.) + + + +
QUADRO Nº 4 - CAMPO SEMÂNTICO 2 → NEGATIVO →NÃO-VIDA
CAMPOS SEMÂNTICOS NÃO-VIDA ESTATICIDADE DESNECESSIDADE PERIGO

LEXEMAS
1. longe (adv.) + + + +
2. baixa (adj.) + + + +
3. molhada (adj.) + + + +
4. perigos (s.) + + + +
5. feia (adj.) + + + +
6. febre (s.) + + + +
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Como se pode ver, das 19 unidades léxicas discutidas no Quadro nº 1, apenas 6 indicam noções
negativas. No Quadro nº 4 figuram 3 adjetivos, 2 substantivos e 1 advérbio, em contraponto com o
Quadro nº 3 onde aparecem 5 adjetivos e 4 substantivos.

Interpretando o quantitativo das classes gramaticais representadas nos quadros 3 e 4, pode-se


dizer que os campos semânticos positivos — de vida — mostram uma leitura de mundo com
substância (substantivos → designativo de entes, seres e coisas) e epítetos de qualidade (adjetivos).

No quadro dos campos semânticos negativos — da não-vida (modelo repudiado por Dja Iaí) —
prevalece a aparência (adjetivo, elemento descritivo) sobre a essência (substantivo, elemento
nomeador) e ainda se vê a intervenção da circunstância (advérbio).

Ainda sobre freqüência de classes gramaticais nos quadros, verifica-se que os adjetivos
destriste, mixordiosos, figuradio, belfazeja, indominada são todos vocábulos derivados, o que pode
representar iconicamente que o mundo infantil é construído a partir do que se mostra disponível no sistema
que o mundo adulto lhe disponibiliza. Em outras palavras: a criança aprende a comunicar-se verbalmente, via
de regra, seguindo instruções dos adultos que, por sua vez, submetem-se aos ditames do sistema lingüístico,
pelo menos a princípio.

Tais adjetivos podem criar uma imagem do mundo infantil, um mundo idealizado, sem as perturbações
do mundo adulto. A iconicidade dos adjetivos se faz não só pela escolhas das bases, mas sobretudo pela
opção pela neologia. As unidades léxicas adjetivas em discussão foram consideradas ícone-símbolo (Simões,
2002) uma vez que representam vida como qualidade, na ótica da protagonista.

Os substantivos-chave também são excelentes cicerones para nossa leitura. No Quadro nº 3, temos 4
substantivos no campo semântico vida. São eles: enfeitiço, direitidão, deslance e gente. Os três primeiros
nomes, representam idéias abstratas que se materializam a partir da designação. O quarto — gente — é
substância propriamente dita; é nome que designa algo palpável, que se contém a si, de existência autônoma.
Em contraponto, o Quadro de nº 4 apresenta dois substantivos que representam idéias abstratas — perigos e
febre. Como estão no campo da não-vida, é possível inferir que a não-vida é a identificação de um mundo
trabalhoso (sic), contraditório, desconfortável. Tanto perigos quanto febre indica desequilíbrio. Conclui-se
então que se está diante de um símbolo-índice (Simões, 2002). É símbolo porque generaliza o mundo
adulto. É índice porque indica perda da estabilidade, desequilíbrio.

Interessante notar que, do ponto de vista da estruturação vocabular, perigos e febre são
vocábulos primitivos. Isto pode ser interpretado como ícone da substância problemática de um
mundo diferente do idealizado pela criança. A opção pela forma primitiva gera a imagem de um
“pecado original”: o mundo adulto é desequilibrado por natureza, em essência, em substância.

Quanto a advérbio-chave, identificamos a opção por longe. Este aparece na terceira margem do
texto, construindo um contraponto triangulante: há um mundo adulto que se contrasta com o infantil
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e há um terceiro, longe, que pode ser a saída para a equilibração (Psic.) desejada pelas crianças
quando brincam de faz-de-conta. É uma tresaventura que está sendo lida. A protagonista desafia as
limitações do mundo adulto e

Virou para um lado, para o outro, para o outro — lépida, indecisa, decisa. Tomou direitidão.

(§16 l. 5-6)

parte em direção ao seu sonho, desbravando o mundo proibido pela voz adulta.

O destemor da protagonista se manifesta na sua linguagem. Os adjetivos de formação neológica


são ícones de sua capacidade de transformar o mundo. A neologia nos substantivos vai mais longe,
é símbolo de um mundo mutável a partir da vontade de seus intérpretes. Dja Iaí interpreta o mundo
segundo seu ideal.

Ficava no mundo intato das ideiazinhas ainda. (§2, l. 1) [grifamos]

A opção pela construção derivada é também icônica. No conjunto das formas atualizadas, tem-
se a iconicidade da produtividade do vernáculo e da potencialidade da transformação: da língua e do
mundo. É também icônica, e duplamente, a forma figuradio: do ponto de vista semântico,
interpretamos essa unidade como plasticamente construído e estabilizado; do ponto de vista
mórfico, vê-se que a base figur- traz em si os semas configuração, representação, que se mantêm
ativo na formação neológica figuradio. Por sua vez, o sufixo nominal –dio, variante de –io e
representante das noções de 'ação', 'referência'; 'modo de ser', 'tendência'; 'aproximação';
'semelhança {Aurélio, s.u.}, reitera a imagem evocada pela palavra, ou seja, tanto a base quanto o
sufixo significam a descrição de um modo de ser. Ao lado disso, vê-se que no mundo idealizado até
as qualidades se materializam, convolando em essência. A iconicidade do texto que representa a
fala de Dja Iaí desenha um mundo figuradio, onde as coisas são o que são, sem mais nem menos.

Por isso, o advérbio-chave levantado foi único: longe. E contendo o classema localizador, o
advérbio longe é, a seu turno, ícone da distância entre o mundo real e o imaginado por Dja Iaí. No
mundo real, vive-se a dicotomia adulto & criança; no mundo inventado, surge o signo de três em
que o circuito se fecha numa terceira margem, num terceiro lado, que é o mundo ideal onde tudo
está em tudo, onde crianças e adultos, enfim, pessoas, animais e plantas se resumem numa palavra:
natureza. Para a protagonista do conto, Maria Euzinha, o mundo é a imagem da paz:

Sapos, cobras, rãs, eram para ser de enfeite, de paz, sem amalucamentos, de modo são,
figuradio. (§13, l. 2-3) [grifamos]

Seguindo o fio das palavras, verifica-se o desafio posto em linha: Precisava de ir, sem limites.
(§7, l.2-3). GR desafia o sistema lingüístico na proporção do desejo de Dja Iaí que não cedia desse
desejo, de quem me dera. (§7, l. 3-4). Mas o autor mostra que na linguagem (ou pela linguagem)
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todos os mundos são possíveis e representa o mundo figuradio da menininha de forma inteligível e
possível:

Dja tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, cuspiu na cobra. Atirou-lhe uma pedrada
paleolítica, veloz com o amor. Aquilo desconcebeu-se. O círculo ab-rupto, o deslance: a cobra
largara o sapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lhepte, como mais as boas cobras
fazem. (§20, l. 1-6)

O mundo desenhado por Maria Euzinha (ela era muito ela) era um mundo de amor. Este tanto
concebe a vida como desconcebe o mal-assombro, a violência. E o neologismo designando processo
pode ser lido como símbolo da necessidade de ação em prol da mudança das coisas. Aquilo
desconcebeu-se.

A palavra deslance é de alta iconicidade. Interpretamo-la como uma formação anagramática a


partir de desenlace que, embora mantendo o significado de desfecho, solução, representa
diagramaticamente no interior do vocábulo a mudança do rumo das coisas por intervenção do
desejo: o travador nasal /n/ é deslocado para a sílaba posterior, e a vogal média fechada desaparece
encurtando o vocábulo; o encurtamento vocabular pode ser interpretado como índice da aceleração
da solução do problema entre a cobra e o sapo (uma perturbação causada pelas falas do mundo
adulto que acabam por realizar-se, já que as palavras criam os mundos). Na sua relação sinonímica
com desenredo, desenlace ou deslance se traduz em desembaraço, liberação; o que corrobora nossa
interpretação.

Neste ponto da leitura, nos surpreendemos com nossas próprias palavras que agora são ícone de
que está na hora de concluir este estudo. É hora do desfecho da leitura.

“Já de perninhas para casa”


O fio das palavras é de fato eficiente para conduzir o leitor pelo labirinto do texto. Ainda que se
saiba que as palavras carregam significados que circulam na trama do texto, é também notório que a
leitura é um exercício interativo (entre autor e leitor-autor) de desvelamento de sentidos. Encontrar
a mensagem básica de um texto é isolar um referente e realizar o percurso isotópico até os
subterrâneos do texto, de onde devem emergir funções-valores compartilhados pelos autores ao
longo das sucessivas interações com o objeto-texto.

A interpretação é um novo signo. É também um novo texto. A chave de entrada que elegemos
para desbravar o mundo construído em Tresaventura é uma chave mágica: a palavra.

Desbravando uma aventura tríplice, por isso, uma aventura extraordinária, seguimos com GR a
rota das palavras por meio das quais a astúcia e a pureza de Dja Iaí construíram um mundo com três
lados: o mundo trabalhoso dos adultos, o mundo limitado para a criança e o mundo infantil
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figuradio. Com essa imagem ternária de mundo, vemos em GR a consciência semiótica traduzida
em linguagem e re-colorida com as nuanças da arte de dizer.

Os três mundos descobertos nesta tresaventura se organizam na ordem da produção do signo da


arte: do real imediato ao real imaginado. O mundo trabalhoso dos adultos é a imagem do cotidiano,
comum, é um ícone-símbolo; o mundo limitado das crianças é a outra face desta moeda corrente.
Mas o mundo infantil figuradio é uma ficção, uma construção imaginada, um ícone quase puro da
possibilidade de uma vida harmoniosa onde homens, animais, plantas, se combinam num mundo de
paz: a natureza.

Vemos no conto, os campos semânticos demarcados pelas vozes materiais presentes no conto:
Dja Iaí como representante do mundo infantil; o irmão, do mundo adulto. Eis que surge uma outra
voz, na contra-mão dos raciocínios, desconstruindo a língua e construindo a terceira margem: o
mundo intato das ideiazinhas. E aí se inaugura Maria Euzinha. A terceira fac(s)e da menininha que
desejava ir ao arrozal e que, dona em mãozinha de chave dourada, acena para um mundo pleno de
alegria.

Atravessamos o labirinto do texto. Encontramos a saída. De fato a palavra conduz, e com ela se
pode depreender um guia-mapa inscrito no texto.

E como em Desenredo10: pôs-se a fábula em ata.

Bibliografia citada:
BALDINGER, Kurt (1977) Teoría semántica. Hacia una semántica moderna. Madrid: Ediciones Alcalá.
DUBOIS, J. et al. (1978) Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix.
GALISSON, R & D. COSTE (1983) Dicionário de didáctica das línguas. Coimbra: Livraria Almedina.
HALLIDAY, M. A. K. (1985). An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold.
HALLIDAY, M. A. K., & Ruqaiya HASAN. (1991) Language, context and text: aspects of language in a social-
semiotic perspective. London: Oxford University Press.
POTTIER, Bernard, (1978) Lingüística geral – Teoria e descrição. Rio de Janeiro: Presença/USU.
ROSA, João Guimarães (1979) Tutaméia: terceiras estórias. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio.
SIMÕES, Darcilia (2002) “Ícones e índices na superfície textual”. Comunicação apresentada na XIX Jornada de Estudos
Lingüísticos do Nordeste. UFC/CE. (setembro)
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ter(s) V. trans- [Do lat. trans.]Pref 1 = 'movimento para além de', 'através de'; 'posição para além de'; 'posição ou movimento
de través'; 'intensidade': transumância, transecular; transplatino; transverso (< lat.); transfazer. (Aurélio s.u.)
2
Aspeamos o termo para indicar que se encontra conotado, ou seja, despido dos semas negativos. No contexto dado, abuso quer dizer
exploração inusitada, extravagante.
3
-usco2 . Suf. nom. 1. = 'aproximação', 'um tanto'; 'depreciação': velhusco, farrusco. (Aurélio, s.u.) Verifica-se a desconstrução da noção
de depreciação em folhuscas, onde o sufixo passa a representar abundância, uma vez que as moitas folhuscas seria correspondente a
moitas folhosas; cheias de folha suficientemente para dar cobertura à retirada da cobra que se arrependera da investida contra o sapo.
4
Dja > já – ref. o aqui-agora; Iaí = e aí..., o depois, o sonho ou a realidade?
5
antojo2 (ô). [De entejo.] S. m. 1. Repugnância, nojo, entejo. 2. Tédio, fastio, aborrecimento, nojo. 3. Aquele ou aquilo que provoca
asco, irritação ou antipatia, nojo.
6
Observe-se o valor do sufixo: -mento [Do lat. -mēntum, i.] Suf. nom. 1. = 'ação ou resultado da ação'; 'coleção': ferimento; fardamento.
(Aurélio, s.u.)
7
io2 - Suf. nom. 1. tônico = 'ação', 'referência'; 'modo de ser', 'tendência'; 'aproximação'; 'semelhança': lavradio; doentio. [Equiv.: -dio, -
(d)iço2: escorregadio; enfermiço, fugidiço. Alternam-se entre si, às vezes, as formas -dio e -(d)iço2: escorregadio, escorregadiço; fugidio,
fugidiço.] (Aurélio s.u.)
8
[Do fr. travestir.] V. transobj. 1. Colocar fantasia em; fantasiar: Travestiu-a de colombina. V. p. 2. Disfarçar-se; dissimular-se:
Travestiu-se de mendigo para desvendar um crime. (Aurélio, s.u.)
A nosso ver, o autor reúne as duas idéias ao predicar de forma outra o verbo travestir — nem transobjetivo nem pronominal. Empregou-o
como objetivo direto, aproximando-o de transvestir.
[De trans- + vestir.] V. t. d. e i. Bras. 1. Transformar, transmudar, transmutar, metamorfosear: Eça de Queirós transvestiu seu conto
"Civilização" no romance A Cidade e as Serras; Transvestiram o rapazinho em velho, para a representação da peça. [Irreg. Conjug.: v.
aderir.] (Aurélio, s.u.)
9
V. p. 8. Cobrir-se de sombra: As encostas da colina assombram-se. 9. Admirar-se, maravilhar-se. 10. Assustar-se, espantar-se,
sobressaltar-se. (Aurélio, s.u.)
10
Desenredo é o título de outro conto da coletânea Tutaméia, de Guimarães Rosa.

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