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Padre Cícero:

176 Anos de um reacionário de marca maior


Postado por Sued Carvalho março 24, 2020 .

Em uma manhã de 11 de abril de 1872 chegava à pequena Tabuleiro Grande um padre recém-
ordenado de nome Cícero Romão Batista, inicialmente para apenas para rezar uma missa pedida por
dois ilustres locais. O jovem de 28 anos ansiava ir para Fortaleza trabalhar na diocese ou continuar
seus estudos, afinal só muito recentemente, em 1854 havia sido criada a diocese do Ceará e ainda
estava no cargo de bispo aquele que foi o primeiro a ocupa-lo, Dom Luís, era, então, a oportunidade
para padres jovens da antes esquecida província do Ceará ascenderem na hierarquia da igreja. O
destino de Cícero, porém, não viria a ser tão harmonioso.

Pela noite, Padre Cícero acorda de um sonho, onde afirma ter visto Jesus Cristo a pedir que cuidasse
dos pobres da região. Crente (Ou não) de seu devaneio noturno, Cícero decide ficar em Tabuleiro
Grande, onde exerceu com bastante dedicação a batina, praticando a caridade, visitando os idosos e
orando missas com regularidade. Tal veemência em suas atividades, associadas ao prestígio da
Igreja Católica enquanto parte do Estado Imperial e escravista brasileiro lhe renderam influência
local, que usou para cercear e atacar as manifestações culturais do povo negro do distrito, proibindo
o samba, considerado como dança sensual de “escravos”, como ressalta Ralph Della Cava (1976, p.
42).

As coisas seguiam tranquilas até que, em 1º de março de 1889, a beata Maria de Araújo, uma das
várias mulheres solteiras que se dedicaram a uma vida de “esposas de Cristo”, verteu, segundo
dizem, uma hóstia em sangue. Tal evento já ocorria e viria a se repetir pelos dias seguintes. Não
cabe a História afirmar se milagres existem ou não, mas sim analisar o contexto no qual nasce e o
fenômeno social que resulta do evento. Um movimento se inicia, três meses depois ocorre a
primeira romaria, vinda do Crato, trazida por Monsenhor Monteiro, três mil pessoas ocuparam o
pequeno vilarejo, crentes de que o sangue vertido era o sangue do Messias.

A informação chega atrasada ao segundo bispo do Ceará, Dom Joaquim, que fica sabendo apenas
oito meses depois do suposto milagre e de um movimento de catolicismo popular que sai de seu
controle. Em um momento de perca do papel da Igreja Católica enquanto religião oficial, havia um
esforço para romanizar as manifestações católicas da população, que misturavam, em uma dinâmica
circularidade cultural, misticismo e religiões de matriz afro com o catolicismo apostólico,
construindo superstições e tradições particulares (Como é o caso das renovações e das novenas, por
exemplo). Frustrado nesse inglório trabalho por seus próprios subordinados, entre eles o Padre
Cícero, o bispo reage com todo rigor, ordenando imediatamente que os párocos não se manifestem a
respeito do suposto milagre e submetendo a beata, maior vítima da polêmica, a diversos testes.

Tudo terminou com Maria de Araújo enclausurada e desacreditada, Padre Cícero perdeu seus
privilégios de rezar missas e ouvir confissões após diversas tentativas de se explicar para a diocese e
para o vaticano, porém foi exaltado pelos milhares de romeiros que agora ascendiam e tinha o favor
dos comerciantes que prosperavam com esses “turistas”, o suposto milagre foi também, pelo seu
crescente poder e por ser branco e homem, atribuído ao padre e não a beata, que morreu esquecida
em 1914, tendo seu corpo desaparecido nos anos 1950 e nunca mais encontrado.

Nos anos que se seguiram, Cícero Romão Batista percebeu sua influência entre os seus irmãos
padres diminuindo e todos seus privilégios eclesiásticos se foram, porém, como dito acima, os
comerciantes e a nova elite da vila agora chamada de Juazeiro do Norte lhe eram muito gratos e, por
razões de sobrevivência, o padre se alia a eles; mais do que isso: Se torna um deles, defendendo
seus interesses. Contribui com os latifundiários, naturalizando sua dominação econômica ao mandar
romeiros pobres e desempregados para suas fazendas como mão-de-obra barata, assim como enche
as oficinas que prosperavam na região com trabalhadores desesperados por um meio de vida. Sem o
Padre Cícero famílias influentes em Juazeiro do Norte até nossos dias, como a Bezerra, não seriam
o que foram e são, alimentadas por camponeses colocados em regime de semiescravidão que
barateavam e muito seus custos de produção.

Não demorou menos de vinte anos para que Juazeiro do Norte tivesse uma pujante economia
baseada no comércio religioso que possibilitava, também, trabalhadores em “busca da terra Santa”
para tornarem-se camponeses nas terras dos coronéis. As romarias, frutos da crença popular em um
milagre supostamente manifestado através da boca de uma mulher negra que se encontrava presa,
fizeram com a maré subisse os barcos de todos os ricos, gerando uma desigualdade social tremenda,
permitindo, segundo dados do Atlas Brasil, que Juazeiro do Norte tivesse, até 1991 uma taxa de
mortalidade infantil de 80,6 por mil crianças de até 5 anos de idade e um IDH pífio de 0, 419,
realidade que só viria a mudar em meados dos anos 2000.

Juazeiro do Norte tornou-se maior do que a cidade da qual era distrito, Crato, e tornou-se
independente em 1911, sendo o Padre Cícero, vejam só, seu primeiro prefeito. Três anos após a
independência os pobres tornaram-se, mais uma vez, buchas de canhão para os interesses das elites.
O pároco emérito, associado às elites agrárias do Cariri e do Ceará e tendo, para elas, grande valor,
filiou-se ao PRC (Partido Republicano Conservador), partido do governador do Ceará, Nogueira
Accioly, membro e representante das elites coronelistas e tradicionais do Estado.

Havia uma contradição entre a nova burguesia liberal da belle époque cuja riqueza advinha do
comércio e a burguesia agrária e rural coronelista do estado, este segundo grupo havia conseguido
manter no poder por mais de uma década Nogueira Accioly e transformava o PRC no Partido
dominante da política estadual, a oposição cada vez mais fortalecida, porém, consegue, em 1912,
dar um golpe e colocar no poder o liberal Franco Rabelo.

Franco Rabelo, então, cuida de consolidar seu poder e consegue um grande inimigo, o Padre Cícero
e seu aliado, o político conservador Floro Bartolomeu. O novo governador chega até mesmo a
enviar tropas para as proximidades de Juazeiro, estacionando-as em Barbalha, para garantir que a
nova ordem, das elites comerciais, fosse estabelecida e mantida em todo o Ceará. A isso Padre
Cícero reage, junto aos coronéis e ao “Dr. Floro”, aproveita-se da movimentação das tropas para
convencer romeiros de todo o Nordeste que a “Jerusalém do Sertão”, Juazeiro do Norte, estava
ameaçada pelas tropas mundanas. Romeiros, policiais da cidade e jagunços dos coronéis formam
um exército para defender a autoridade de seus exploradores tradicionais, os latifundiários, contra
um outro modelo de exploração (Mesmo que mais progressista), convencidos de que lutavam por
uma causa sagrada. É o mais cru exemplo do uso da religião usada como ideologia e forma de
reprodução, como havia pensado Marx e como pensaria Lukács anos depois.

O evento ficou conhecido como sedição do Juazeiro, em 1914 milhares de fiéis do Padre Cícero
cavaram uma trincheiro em volta da cidade usando panelas e algumas pás, e venceram as tropas
estaduais usando armas de fogo, facões, foices e enxadas. Atitude heroica, a incrível força popular
usada para a permanência da exploração do trabalho. Os romeiros perseguiram as tropas até
Fortaleza e, lá, foi destituído Franco Rabelo, sendo o poder devolvido ao PRC. As forças
conservadoras que haviam feito sua fortuna sobre o trabalho escravo no Império estavam mais uma
vez no poder, graças ao “Santo” popular.

O “maior cearense do Século” tornou-se o que é até nossos dias mais por sua atuação política do
que por sua atuação paroquial. Diferente do que a música do Tim Maia dá a entender, Padre Cícero
tornou-se grande proprietário de terras, fazendo jus ao título de “coronel de batina”. Associou-se a
ordem Salesiana na esperança de, ainda em vida, ver seus direitos de padre devolvidos, fazendo
desta ordem, após sua morte, um grupo poderosíssimo no Cariri, dono de terras, hotéis e escolas,
além, claro, da contribuição dos romeiros para uma igreja cuja construção nunca termina.

A atuação diligente do “Santo popular” em defesa do que havia de mais reacionário na política
nacional da primeira república não termina em 1914, adentrou-se no século de crise do modelo de
poder da republica velha. Na década das revoltas tenentistas o Padre Cícero não hesitou em
permanecer ao lado das elites conservadoras, não das massas populares que o amavam, mas da
reação. Isso fica claro quando, em 1926, a coluna Prestes, um grupo fruto da contradição e do
desgaste do modelo da república oligárquica, encabeçado pelo futuro secretário geral do Partido
Comunista do Brasil, Carlos Prestes, passava pelo Nordeste, enfrentando coronéis e bastiões e
sustentáculos do modelo de poder burguês vigente.

Temendo que a coluna viesse para Juazeiro e dessem cabo de si e de seus comparsas, Floro
Bartolomeu recruta jagunços e lhes farda, chamando a tropa de “batalhão patriótico”. Dai surge a
famosa história do contato de Padre Cícero com Lampião, que foi contatado por Floro para
comandar o batalhão contra os rebeldes, prometendo ao famoso cangaceiro a patente de capitão.

Lampião chega à cidade, porém Floro não se encontrava, fazendo com que o Padre ficasse
responsável pela conversa. Lampião saiu da cidade com uma patente falsa e armas novas e
modernas, porém sem enfrentar a coluna Prestes que (Infelizmente) não passou por Juazeiro.
Padre Cícero é uma figura polêmica, nascido em um dia como esse, 176 anos atrás, tornou-se santo
do catolicismo popular, porém sua atuação política o escancara como reacionário, defensor do
latifúndio e inimigo das classes camponesas e trabalhadoras. A História é, porém, dialética e movida
pelas contradições da vida material, esta figura religiosa, obscurantista e reacionária foi responsável
pelo desenvolvimento da vida comercial juazeirense através das romarias, forma econômica que
existiu de forma híbrida com as mais arcaicas formas de controle da terra, porém, com o tempo, o
comércio solapou o latifúndio, transformando Juazeiro no maior centro financeiro e comercial da
região. Não demorou para que, anos após a morte do Padre em 1934, os comerciantes passassem a
dar as cartas na política local. Padre Cícero impulsionou as forças econômicas modernizadoras que
passou a vida a enfrentar. O capitalismo é feito através de contradições, as romarias e o fenômeno
religioso de Juazeiro do Norte são exemplos disso.

Que nesse 24 de março de 2020 nós, defensores do progressismo e do socialismo, repudiemos com
uma só voz, essa figura reacionária e defensora do atraso que foi Cícero Romão Batista.
BIBLIOGRAFIA.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Juazeiro do Norte, disponível em:
http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/juazeiro-do-norte_ce, acesso em 24/03/2020.
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. 2ª ed. Paz & Terra, Rio de Janeiro, 1976.
ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. 1º ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2015.
PEREIRA, Cláudio Smaley Soares. DA “CIDADE DO PADRE CÍCERO” A “CIDADE DO CAPITAL”: A
MORFOLOGIA E A CENTRALIDADE URBANAEMJUAZEIRO DO NORTE/CE, disponível em:
http://www.cbg2014.agb.org.br/resources/anais/1/1403638206_ARQUIVO_DACIDADEDOPADRECICEROACIDAD
EDOCAPITAL-MORFOLOGIAECENTRALIDADE.pdf, acesso em 24/03/2020.
LUKÁCS, Gyorgy. Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social. 1ª ed. Boitempo Editorial, São Paulo, 2014.

SUED: Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo três livros
publicados, também é graduada em História pela Universidade Regional do Cariri e constrói o Partido Unidade Popular
pelo Socialismo. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia,
História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com

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