Anthony Giddens concebe a modernidade enquanto uma máquina - o carro de Jagrená
- sobre a qual não possuímos um controle absoluto e, consequentemente, não somos capazes de obter uma sensação plena de segurança. Mas é um período que traz também novos arranjos e possibilidades. Os aspectos que compõem esse cenário e suas consequências têm impactado de forma significativa as relações de cunho intimo e pessoal, havendo uma alteração nessas interações. O autor pretende dar conta, nesse capítulo, das relações entre as consequências da modernidade, mais especificamente dos sistemas abstratos e a intimidade.
Ao tratar da intimidade e a sua relação dialética com a impessoalidade, Giddens
afirma que não se pode dizer que na modernidade a impessoalidade substitui a pessoalidade. Houve, ao contrário, uma alteração dessas relações, uma intersecção entre a confiança pessoal e os laços impessoais. O autor explica que, em contextos pré-modernos as relações no cotidiano estavam baseadas numa dimensão familiar oriunda daquele lugar específico. Com a emergência da “transformação da intimidade” - consequência do surgimento e difusão dos mecanismos de desencaixe e modificação dos ambientes de confiança - essas relações e as formas com as quais elas se “concretizam” modificam-se, segundo o autor. A modernidade traz consigo um aspecto “deslocador”, mas, em contrapartida, possibilita uma reestruturação, ou nas palavras do autor, uma alteração no tecido da vivência social. Nessa alteração, são “associados” o distante e o próximo, estando, nesse processo, presente a relação entre estranhamento e familiaridade. Assim, relações íntimas podem ser mantidas a longas distancias e laços pessoais são constituídos com sujeitos que antes eram desconhecidos e localizados até mesmo do outro lado do mundo. Os sistemas abstratos são de suma importância nesse sentido, pois propiciam as possibilidades para que as relações ocorram e se mantenham. O correlativo do deslocamento é o reencaixe. Os mecanismos de desencaixe tiram as relações sociais e as trocas de informação de contextos espaço- temporais específicos, mas ao mesmo tempo propiciam novas oportunidades para sua reinserção.
Giddens afirma que, nessas relações a confiança é ambivalente. Os agentes tem em
vista a possibilidade de separação, pois esses laços podem ser rompidos e voltar a dimensão do impessoal. A confiança pressupõe uma abertura, através do estabelecimento da ideia de que nada deve ser ocultado do outro, misturando renovação da confiança e ansiedade. A confiança, de acordo com o autor, vai exigir auto-entendimento e auto-expressão, fontes de tensão psicológica. Além da auto-revelação, os sujeitos necessitam de reciprocidade e apoio que, em conjunto, são incompatíveis. Assim, tormento e frustação vão se associar com a necessidade de confiança como provedor de cuidados e apoio. A perícia também tem impactado de maneira importante, já que se configura como parte da intimidade e isso é evidenciado pela gama de livros, programas de televisão e terapias direcionados aos relacionamentos. Segundo o autor, isso não significa que a vida e as decisões pessoais estejam subordinadas a perícia técnica, como afirmou Habermas, primeiro porque as mudanças na natureza da vida cotidiana também afetam os mecanismos de desencaixe e, segundo, em razão da constante reapropriação da perícia pelos leigos no seu contato diário com os sistemas abstratos. Tornar-se perito é algo que só pode ocorrer em relação a uma parcela muito pequena de alguma área do conhecimento; ninguém pode se tornar perito em tudo. Mas é necessário que se tenha um conhecimento mínimo para poder interagir com os sistemas abstratos. Giddens elenca, então, os elementos envolvidos na transformação da intimidade. Para o autor, existe uma relação intima entre as tendências globalizantes da modernidade e eventos localizados do dia-a-dia dos sujeitos, a já mencionada tensão entre o global e o local. O projeto reflexivo do eu também é importante, por ser parte da reflexividade da modernidade, faz com que o individuo busque sua identidade entre estratégias e possibilidades proporcionadas pelos sistemas abstratos. A auto-realização se fundamenta na confiança básica e, deve ser buscada a partir de uma abertura do eu para o outro e o estabelecimento de uma revelação mútua, que vai orientar os laços pessoais e eróticos. A auto-satisfação se torna importante, pois, além de um elemento de defesa em relação ao mundo externo, consistirá, também, em um apoderamento de aspectos possibilitados pelas tendências globalizantes, aspectos esses que impactam a vivência rotineira dos sujeitos. Em suma, para o nosso autor é possível evidenciar que a ligação dos sistemas abstratos e a transformação da intimidade não se dá pela substituição de laços impessoais, característico desses sistemas, mas resulta na emergência de novas formas de relações, que interagem com esses sistemas cotidianamente, e de novas “formas” de confiança, alicerçadas em mecanismos distintos: a confiança deve ser construída, trabalhada. Além disso, os sistemas especializados/peritos impactam na medida em que produzem conhecimento acerca dos relacionamentos e, com isso, influem na forma como eles acontecem e se mantêm. Os relacionamentos, portanto, se constituem também de forma reflexiva.