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07/10/2017 Design e Genêro - Experiência Cliche

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 02:05min Q: Primeiramente, vou pedir para você se apresentar:

Falar da gente é sempre complicado. Eu sou a Marinês, professora do curso de Bacharelado em Design e de Tecnologia
em Design Gráfico da UTFPR, trabalho também no Programa de Pós-Graduação e Tecnologia da UTFPR, onde
desenvolvo pesquisas nas relações entre cultura, material e gênero. E na graduação trabalho com a disciplina de
Design e Cultura, tanto para o curso de Tecnologia em Design Gráfico tanto quanto para o curso de Bacharelado em
Design.

Dê uma introdução sobre o que seria esta questão de gênero, como você
 03:30min

enxerga e aborda este tema nas suas pesquisas e no seu enfoque teórico.

Primeiro eu queria dizer que a abordagem teórica que eu adoto é afiliada à linha de pensamento construcionista, ou
seja, eu entendo que as feminilidades ou as masculinidades não são atributos próprios do corpo, não é algo que nasce
conosco, são noções construídas cultural e históricamente acerca destes corpos sexuados nos quais habitamos o
mundo. Ou seja feminilidade e masculinidade não são entendidas como caracterísctas ontológicas, mas sim como
investimentos que fazemos no dia dia, em práticas cotidianas. Investimento no sentido de identificação das pessoas na
direção de determinados tipos de feminilidade e masculinidades. Por exemplo, se eu escolho usar um salto alto e uma
blusa decotada eu estou investindo em um tipo de feminilidade específica diferente de eu usar uma calça jeans, um
tênis e uma camiseta. Então são tipos de feminilidades e masculinidades, porque são múltiplas, são plurais no quais a
gente investe dependendo da ocasião que estamos vivendo. Neste sentido não é uma feminilidade e masculinidade que
podemos perder. Porque não é algo que eu tenho a priori, mas é algo que tenho que investir no coditiano, como uma
pessoa que detêm um certo tipo de masculinidade ou feminilidade. Agora o que acontece com esses investimentos, é
que eles também são regulados culturalmente, ou seja, existem sistemas de normas, de classificações que definem os
contornos e estabelecem os limites para esses investimentos. Existem padrões considerados adequados ou como
aceitáveis para mulheres e homens em termos de comportamento, interesses, atividades, gostos, usos do corpo,
gestualidades ou mesmo nas questões de relacionamento afetivos e é nesse ponto que o gênero se encontra com as
relações de poder.

O que eu entendo como gênero é um conjunto de discursos e práticas e também de artefatos que atuam na construção
do que entendemos por masculino e feminino, do que se entende por homens e mulheres que também são categorias
que podemos pensar como não naturais. São significados sempre relacionais, pois a definição de um depende da

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"Gênero é um conjunto de discursos e práticas e também de artefatos que atuam na construção


do que entendemos por masculino e feminino."

definição do outro. E esses significados estão sempre em disputa do que é classificado normal na nossa sociedade e o
que é classificado como desviante. Podemos dizer que o genêro, do ponto de vista do discurso hegemônico, atua na
produção de sujeitos ajustados na norma heterossexual no meio de discursos, práticas e artefatos que acabam
regulando e disciplinando os corpos. Mas também podemos pensar nas práticas de resistência, no ponto de vista
contra-hegemônico podemos pensar no gênero como algo que pode atuar como instrumento de contestação das
normas, de reivindicação de outras maneiras de ser e estar no mundo.

Recentemente, tivemos um grande case, com grande repercussão na questão


 07:19min

design e gênero. Foi o caso do Kinder Ovo que fez uma ação especial para a páscoa
lançando o produto em duas versões. Eles tinham a versão padrão e mais duas
versões: uma azul direcionado para meninos com brinquedos para meninos, e uma
rosa para meninas contendo brinquedos para meninas. Gostaria que você
comentasse este caso e se existe uma explicação cientifica ao associar azul para
meninos e rosa para meninas ou isto é mais um estereótipo social?

A partir desta visão podemos pensar no Kinder Ovo e em outras práticas de design como tecnologias de gênero,
dialogando com a teórica Teresa de Lauretis. Há imagens e artefatos e outras coisas que podem fazer parte da nossa
cultura material, também podem ser entendidos como formas de marcar a feminilidade e masculinidade, como
dispositivos que atuam na construção e no reforço destas noções, que atuam na construção das diferenças entre
homens e mulheres. Neste sentido, o Kinder Ovo se encaixa perfeitamente na ideia de Lauretis, de uma tecnologia de
gênero. Uma maneira muito comum de estabelecer estas noções do que entendemos do feminino e do masculino é por
meio da naturalização de diferenças. Voltando para as questões comentadas anteriormente do que é entendido por
aceitável ou não para mulheres e homens em termos de comportamento, interesses, atividades, gostos, usos do corpo,
gestualizades e relacionamentos. Porque o universo dos brinquedos é marcado por essas divisões.

Kinder Ovo para meninos e para meninas.

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O Kinder Ovo, em resposta a essa movimentação que teve, comentou que


 09:10min

realizou uma pesquisa com seus consumidores e havia reclamações desta falta de
separação de brinquedos nas embalagens-padrões. Esta própria crítica veio dos
consumidores, reforçando que realmente existe essa marcação de este é um
brinquedo feminino, este é um brinquedo masculino.

Existem essas marcações em função destas expectativas sociais em relação a comportamento, interesses e atividades.
O que é uma atividade de menina? O que é uma atividade de menino? O que é o interesse visto como próprio das
meninas? O que é o interesse visto como próprio dos meninos? Isto não está necessariamente nas crianças e não está
necessariamente no brinquedo, a priori, porque percebemos as crianças atravessam estas fronteiras, mas isto está
circulando na sociedade no sentido que, como esses brinquedos eles estabelecem determinadas fronteiras e quando
existem atravessamentos destas fronteiras, incomoda de uma maneira geral as pessoas.

É preciso explicar heteronormatividade. Temos no universo dos brinquedos uma série de marcações e divisões, mas
que não acontece apenas neste universo, mas também veremos isto em roupas e outras esferas da vida social, às vezes
muito mais abstratas. Mas vamos pegar o brinquedo que é o nosso mote de exemplo, onde este universo é marcado
por divisões do tipo: meninas gostam de rosa, meninos gostam de azul, meninas brincam de bonecas, meninos de
carrinho, meninas são comportadas, meninos são agitados, as meninas se importam com a aparência e os meninos são
desleixados, as meninas se interessam em questões do universo doméstico e os meninos preferem aventuras. Os
brinquedos se estruturam a partir destas organizações binárias e isto de certa forma acaba por naturalizar que as
meninas gostam de boneca e os meninos gostam de carrinho. As próprias lojas são setorizadas, divididas em partes.
Você entra em uma loja e o vendedor ou a vendedora vem ao seu encontro e pergunta: "É para menino ou para
menina?" porque a loja é dividida em duas partes. A própria organização arquitetônica da loja já é uma tecnologia de
gênero, algo que está construindo e reforçando diferenças.

 12:00min E quem seria o responsável por esse reforço e por esta construção do
gênero?! O design tem participação nisto?!

Pense quando projetamos um brinquedo, embalagem, ilustração ou a própria propaganda que vai veicular esse
brinquedo. Se esse projeto, propaganda ou embalagem adere a essas clivagens, a essas divisões, o designer que está
projetando não está apenas repetindo um fenômeno que existe no mundo social, o designer está reforçando estes
valores e ajudando a construir essas noções de feminilidade e masculinidade também. Quando aderimos a um
determinado discurso, ou uma determinada forma de representação ou uma determinada forma de materialidade
estamos reforçando, produzindo veículos para que estes valores circulem na sociedade. Não existe possibilidade de
neutralidade porque no momento que você projeta o produto que reforça algum tipo de estereótipo, divisão deste tipo,
alguma noção de masculinidade ou feminilidade específica, estamos construindo conhecimento sobre gênero e
sexualidade. Então os artefatos, as imagens constroem conhecimento, e estão falando de uma certa maneira de ver o
mundo. Estão convocando as pessoas que vão ler ou se envolver com a prática do brincar a se posicionar de uma
determinada forma frente a estes artefatos, brinquedos. Na vida cotidiana, nas práticas sociais, muitas vezes estes
valores hegemônicos que são reforçados por práticas, como esta do Kinder Ovo de dividir brinquedos entre meninos e
meninas, muitas vezes são burladas, são questionadas, as pessoas atravessam estas fronteiras. Os meninos podem se
interessar pelas bonecas e as meninas podem se interessar pelos carrinhos. Mas aí temos um problema: quando eu
falo de construção da diferença, não se trata de negar as diferenças, afinal elas existem e é muito bom que seja assim.
O problema é quando as diferenças que existem na sociedade sejam elas construídas, ou não, servem de justificativa
para o estabelecimento de relações de desigualdade, quando são usadas para justificar hierarquias, para estabelecerem
limites de ação. Aí entramos novamente nas relações de poder.

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Catalógo da Loja Top Toy na Suécia.

Por exemplo, mulheres são assim e homens assim, meninos gostam de azul e meninas gostam de rosa, eu estou
posicionando estas categorias: mulheres / homens, meninos / meninas em pares dicotômicos, em coisas que são
antagônicas, como se só houvesse a possibilidade de diferenças, eu não estou considerando nem a possibilidade de
igualdade entre elas (meninos e meninas gostarem de azul e rosa) e nem estou considerando as possibilidades das
diferenças entre mulheres e homens, então como fica as mulheres que gostam de azul e os meninos que gostam de
rosa? Porque existem diferenças de todos os níveis, estes pares, estas suposições binárias só funcionam no nível
abstrato, mas são instrumento forte de naturalização destas categorias que a gente entende por masculino e feminino,
homem e mulher. Então quando algumas crianças resolvem tensionar as fronteiras do que é presumido como
apropriado para elas, elas podem ter problemas no que diz respeito ao julgamento dos outros acerca do seu status de
normalidade. Então é neste sentido que podem ter acontecido alguns protestos contra o Kinder Ovo. Como meu filho
vai brincar de boneca? Como é que a menina vai usar uma arminha de atirar flechas?

"Quando eu falo de construção da diferença, não se trata de negar as diferenças ... o


problema é quando as diferenças servem de justificativa para o estabelecimento de
relações de desigualdade, quando são usadas para justificar hierarquias, para
estabelecerm limites de ação."

Aliás, quando as meninas atravessam as fronteiras é mais fácil de serem aceitas socialmente, do que o contrário.
Quando falamos destas questões temos que pensar, problematizar pelo menos estas duas variáveis no que diz a
respeito nestas hierarquia de gêneros, primeira as relações de desigualdades que podem se estabelecer entre mulheres
e homens. Por exemplo, a desvalorização de algumas características que são tradicionalmente entendidas como
femininas em contraste da positivação de atributos que são entendidos como próprio da masculinidade hegemônica,
daquelas questões de emoção vs razão, privado vs público. Tem um exemplo bacana de brinquedos de uma empresa
da Suécia, chamada Top Toy, que em função de reivindicação da sociedade, essas questões estão muito ligadas as
questões culturas então não podemos deixar de lembrar de onde que esses casos se estabelecem. Então, por exemplo
Kinder Ovo aconteceu no Brasil, temos que pensar nas características culturais brasileiras no que diz respeito a
entender gênero. Na Suécia teve um movimento contrário a esse, no sentido que é um país que tem uma certa cultura
de pensar equidade e igualdade de gênero, a sociedade de certa forma pressionou a empresa a reformular os catálogos
de anúncios dos produtos. Então nos catálogos desta loja aparecem meninos brincando de boneca, passando aspirador
de pó, meninos secando o cabelo de meninas e aparecem meninas brincando com arma, uma séria de meninas
brincando com brinquedos de ação. É interessante de ver isso e perceber como quando colocamos este catálogos que
fazem estes atravessamentos dessas expectativas sociais, do que se entende como próprio para meninas e meninos,
quando colocamos isto em sala de aula no Brasil as pessoas estranham muito. Quando é um menino com a arma na
mão é naturalizado, é assim mesmo e não tem problema.

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 18:30min Para fechar o tema, queria que você fizesse seus comentários finais, alguma
mensagem que você queira passar e comentasse mais um pouco sobre como, nós
designers olhamos esta questão de gênero na academia / universidade.

O que eu acho que eu queria fechar, precisamos pensar nestas relações de desigualdades tanto no desrespeito das
questões de gênero em relação a homens e mulheres, e nas relações de igualdade atravessadas pela categoria da
sexualidade, não dá pra pensar gênero sem esta categoria também.

"Precisamos pensar nestas relações de desigualdades tanto no desrespeito das questões de


gênero em relação a homens e mulheres, e nas relações de igualdade atravessadas pela
categoria da sexualidade."

Porque estes atravessamentos de fronteira de gênero, como estamos dentro de uma sociedade que tem como base a
heterosexualidade compulsória, quando acontece estes atravessamentos as questões da sexualidade entram em jogo e
aí a questão pega, porque entramos em um conjunto de julgamentos e normas que estabelecem a partir de um
contrato heteronormativo que os indivíduos que atravessam as fronteiras do que é entendido como normal, são
estigmatizados, são vistas como desviantes, como pessoas que estão fora de um registro de normalidade, não são
entendidas, não são percebidas como entendíveis, inteligíveis dentro desta matriz, chave de leitura. É preciso pensar.
Em relação ao design, um pouco do ponto de vista de professora e pesquisadora, eu acho que precisamos trabalhar
mais estes temas no mundo acadêmico e precisamos de mais pesquisas nesta área em design e gênero está muito
carente de engajamentos. Seria interessante fomentar o interesse pelo desenvolvimento de pesquisa em nível de
graduação, no nível de pós-graduação para podermos ter, aqui no Brasil, um fortalecimento desse enfoque.

Leitura Adicional:

 Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


BUTLER, Judith. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

 Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material.


CARVALHO, Vânia Carneiro de. São Paulo: EdUSP/Fapesp, 2008.

 Pornotopía: arquitectura y sexualidad em “Playboy” durante la guerra fría


PRECIADO, Beatriz. Barcelona: Editorial Anagrama , 2010.

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Rob Batista • 4 anos atrás


Mas que ClichêCast fudidasso! Pra quem quer refletir um pouco mais sobre design, principalmente na questão da construção de realidades e
normalidades, e posicionamentos, como de neutralidade na prática do design.

Isso tudo no mesmo caldeirão das questões de gênero, que desemboca no tema da sexualidade de modo mais amplo.

Depois do breve relato da Professora sobre como a questão é tratada na Suécia, eu fico pensando que nós, brasileiros, estamos muito, mas muito
mais atrasados do que imaginamos, se mirarmos relações mais igualitárias entre as pessoas, desconstruindo as hierarquias que temos construído
entre homens e mulheres.

Por fim, acho que algo fica evidente: na prática do design, não existe neutralidade. Quando projetamos uma cadeira, um cartaz, um brinquedo, um
gadget, ou seja lá o que for, estamos colocando nossas habilidades à serviço de um discurso social e político, seja esse discurso nosso, ou não.
Diante disso, digo o que venho falado há meses nos meus artigos para a Clichê: acho cada vez mais importante discutir o discurso não apenas do
que é projetado (isso já fazemos sempre), mas o discurso do projeto em si, ou seja, que tipo de mundo estou construindo quando colaboro, apoio
ou faço determinado projeto?

obs.: adorei a Profa Marinês Ribeiro *-*


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Guest • 2 anos atrás


dfasfdasdfasdfadfasd
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Guest • 2 anos atrás


teste

ffasfdasfda


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Desde o ano de 1998, o dia 05 de Novembro é considerado o Dia Nacional do Design. E desde o ano de 2010, o dia
08 de Novembro é marcado pelo dia do lançamento do projeto Cliche. E para comemorar essas duas datas
especiais, a Cliche preparou a experiência Cliche. São 5 entrevistas em formato de áudio e texto sobre diferentes
temas com foco na multidisciplinaridade e pontos de vista do design.

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