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c· í éeader Jean Lefranc


-�Kant
Georges Pascal
- Compreender Nietzsche
Jean Lefranc
- Compreender Platão
Christophe Rogue
- Compreender Schopenhauer
Jean Lefranc
-�Hegel COMPREENDER
Fr.mcisco Pereira Nóbrega
NIETZSCHE

Tradução de Lúcia M. Endlich Orth

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lefranc, Jean
. Compreender Nietzsche /Jean Lefranc ; tradução
Lúcia M. Endlich Orth.- Petrópolis, RJ: Vozes,
2005.
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U.F.M.G. -BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA


ISBN 85.326.3209-2

�111111�11111111111
Título original : Comprendre Nietzsche.

Bibliografia.
17360708
1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich
NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA
Wilhelm, 1844-1900 I. Título.

05-5048 CDD-193 Â EDITORA


Índices para catálogo sistemático:
Y VOZES
I. Nietzsche : Filosofia alemã 193 Petrópolis
2005
va no verão de 1875: "Sócrates, reconheço, se mant�m tio
próximo de mim que quase sempre tenho de combater con­
tra ele"1• E é este combate que faz aparecer o socratismo
como tal.
3 É claro que Nietzsche não ignora as circunstâncias políti·
cas do fim da era trágica, cujo desenvolvimento é paralelo ao
0 SOCRATISMO
da democracia. Paradoxalmente, são os sucessos obtidos por
Atenas com as guerras médicas que correspondem à morte
do grande lirismo musical e à morte da filosofia. Nietzsche
não acha possível um Píndaro ateniense nem um Empédocles
o� um Heráclito atenienses. Se a época trágica sucumbiu, não
Numa carta de 5 de maio de 1873 a seu amigo Carl von fm de morte natural, mas em conseqüência do poder material
Gersdorff, Nietzsche menciona a extensão de seu estudo ain­ e político de Atenas. Os gregos foram então impedidos de dar
da inacabado sobre os pensadores pré-platônicos: "Estou no­ o melhor de si mesmos. Ao contrário da imagem tradicional
vamente convencido de que nada é mais magnífico do que �
do apogeu e Atenas, são as vitórias gloriosas sobre os persas,
aquilo que são, que eram os gregos. O caminho de Tales a Só­ a hegemoma que se seguiu e a rivalidade com Esparta que in­
crates é algo prodigioso". Quinze anos depois, Ecce homo verá terromperam bruscamente a possibilidade que se anunciava
na interpretação do socratismo a novidade decisiva do Nasci· de. uma cultura grega mais alta: "É claro que os gregos esta­
mento da tragédia da mesma forma que a do dionisismo. Ora, o vam a ponto de encontrar um tipo ainda mais elevado de huma­
significado do socratismo só aparece se o homem Sócrates é nidade que anteriormente. Foi neste ponto que o cinzel fez
novamente situado na época trágica e em contraste com ela, um corte. Continua-se na época trágica dos gregos"2• Este é 0
exatamente no final deste período; só então será possível fr�casso, a ferida de que ainda sofre o pensamento europeu.
compreendermos como o platonismo, que se vale dele, pôde _ conclmu.
Socrat �s nao nada, nem podia concluir nada do que
dominar a história da filosofia até os nossos dias. Se seguir­ anunciavam grandes filósofos anteriores, os da era trágica: "O
mos a periodização da obra de Nietzsche, proposta por Char­ reformador quefracassou é Empédocles; depois deste fracasso, só
les Andler, o Sócrates do primeiro período, o do "pessimismo resta Sócrates". É por isso que o próprio termo "pré-socráti­
estético" , é antes de tudo o adversário da tragédia, e o Sócra­ cos" pode ser enganador, se entendermos por ele uma série
tes da "última filosofia" é essencialmente um "decadente"; de precursores. O "problema de Sócrates" se coloca a partir
será que a diferença chega a tal ponto, levando em conta que de uma ruptura que abalou e abala ainda toda a nossa tradi­
a própria noção de decadência só foi introduzida tardiamen­ ção filosófica e artística: "Quem é esse que, sozinho, ousa
te? Deveríamos acrescentar, apesar das afirmações de Ecce aventurar-se a negar este ser grego que, com Homero, Pínda­
homo, que o socratismo teria sido reabilitado no segundo pe­ ro e Ésquilo, com Fídias, Péricles, Pítia e Dioniso, com seus
ríodo, chamado "intelectualista", e que Nietzsche teria "socra­ abismos profundos e seus picos mais altos, conquistou a nos­
tizado" desde Humano, demasiado humano até Caia ciência? Te­ sa admiração e nossa adoração?'a
mos aí um exemplo das facilidades ilusórias de uma periodi­
zação sistemática. Sem dúvida não há razão para supor uma
revirada (duas reviradas?) dojulgamento sobre esta personali­ l. Fragments posthumes, t. li, 2' parte, 6[3], p. 335.
dade fora do comum. Como Nietzsche, o filólogo, o filósofo, 2. Ibidem, p. 342.
poderia não ter sentido a proximidade de Sócrates? Ele obser- 3. Nascimento da tragédia, § 13.

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Os primeiros filósofos, conforme os testemunhos que como Sócrates o fez, então é grande o perigo de
nos restam, apresentavam-se como homens de Estado, de que uma outra coisa seja tirânica. A racionalidade
comportamento majestoso, semelhantes a heróis da tragédia. foi então apresentada como salvadora; nem Só­
Por outro lado, em oposição a todos aqueles que, antes dele, crates, nem seus "doentes" estavam livres de ser
figuravam como filósofos, Sócrates é o homem do povo, hábil razoáveis - era a rigor, para eles, o último remé·
mas sem fazer-se passar por importante, cuj o aspecto feio fas­ dio. O fanatismo com o qual toda a reflexão gre­
cina os jovens aristocratas como Alcebíades. Por ocasião de ga se lançou na racionalidade foi pressentido
seu processo, ele se vangloria de não participar da vida públi­ como um sinal de infortúnio; estava-se em perigo,
ca. Em 1888, Nietzsche insiste mais ainda do que em 1873 nas só restava uma alternativa: ou soçobrar ou então
ser absurdamente radonat.
condições políticas do sucesso de Sócrates em Atenas. O
"problema de Sócrates" já está todo ele no elogio paradoxal O problema de Sócrates, já exposto por Platão, é o pro­
que Alcebíades faz da personalidade de Sócrates no fim do blema do fascínio que ele exercia sobre os jovens nobres de
Banquete, num célebre retrato que fornece a Nietzsche todos Atenas, fascínio paradoxal, uma vez que sua feiúra e sua ori­
os elementos de sua interpretação. gem popular o opunham aos valores aristocráticos. A respos­
Sócrates pertencia, por sua origem, à populaça ta está na existência de um socratismo antes de Sócrates, de uma
mais baixa. Sócrates era povo. Sabe-se, e isto ain­ situação de desgraça que se caracteriza, em termos de fisiolo­
da se vê, como era feio. Mas sua feiúra, que é em gia, pela "anarquia dos instintos", pela "degenerescência",
si uma objeção, está bem perto, entre os gregos, pela doença; e, em termos políticos, pela tirania (episódio dos
de ser uma refutação [ ... ]Dei a entender como trinta tiranos em Atenas). Ora, Nietzsche sabe muito bem que
Sócrates causava repugnância, e isto torna mais na cidade grega, quando o tirano assume o poder pela violên­
difícil ainda explicar que ele fascinava. - É que ele cia, em tempos de insurreição, o que ele faz em primeiro lu­
havia descoberto um novo tipo de agon, e era o gar é apoiar-se no povo e representar seus interesses contra os
primeiro mestre de armas nos meios nobres de
interesses da aristocracia. O domínio de si mesmo pela razão
Atenas. Ele fascinava apaziguando o instinto agô­
se torna uma tirania, um fanatismo inevitável num meio que
nico dos helenos. Ele viu o que estava por trás des·
Sócrates é o primeiro a perceber como já em decadência, ele
ses nobres atenienses, percebeu que seu caso, a
idiossincrasia de seu caso, não era mais um caso
que se conhece a si mesmo com "a idiossincrasia" (termo mé­
excepcional. Uma forma semelhante de degene­ dico) de um decadente. O que é excepcional nele é sua capaci­
rescência preparava-se silenciosamente por toda dade de responder a este "instinto agônico" grego, que Nietz­
parte: a velha Atenas chegava a seu fim. - E Sócra­ sche já havia desvendado, depois de Burckhardt, entre os he­
tes compreendeu que todo mundo precisava dele róis homéricos5• Ele não julga necessário ressaltar a coragem
- de seu remédio, de sua cura, de seu saber-fazer de Sócrates na guerra sobre a qual insistia Alcebíades, e é mui­
pessoal para a conservação de si... Por toda parte to mais discreto que Alcebíades sobre a luta erótica envolvida
estava a anarquia dos instintos, e por toda parte na sedução que Sócrates exercia sobre os jovens atenienses.
se estava bem perto de exceder os limites. O mons· Do que eles precisavam era da arte de Sócrates na nova dispu·
trum in animo era o perigo geral. As pulsões que­
ta da dialética. Pouco importa que ele não seja precisamente
rem manipular os tiranos; é preciso encontrar
um contra-tirano que seja mais forte. Como Sócra­
tes se tornou seu próprio mestre? [... ]. Quando se 4. Extratos do Crepúsculo dos ídolos. "O problema de Sócrates",§ !1, 11, 9
tem necessidade de fazer da razão um tirano, (Evitamos as palavras "plebe", "plebeu", visivelmente romanas).
5. "A disputa em Homero". In: Cinco prefácios.

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seu inventor, pois foi ele que soube fazer dela "o" remédio Não é uma questão frívola perguntar se
inevitável para uma doença que se expandia silenciosamente caso tivesse permanecido indiferente ao f�
socrático, não teria encontrado um tipo maia eJe.
pela cidade. Desta forma, a personalidade única de Sócrates
vado de humanidade filosófica, tipo que para nóe
"cristalizou" (no sentido stendhaliano) todo um socratismo
se perdeu para sempre?'
não aparente que só ele tornou manifesto como tal.
Uma página do Nascimento da tragédia descreve como a
O que devemos entender pela estranha expressão "absur­
sombra crescente do otimismo teórico se estende progressi·
damente racional"? - Que o antimisticismo de Sócrates é de
- vamente sobre a história da humanidade, no declínio dos
fato uma mística da racionalidade. A atitude de Sócrates du­
pensamentos solares de um Heráclito ou de um Anaxágoras,
rante seu processo, diante da morte na sua prisão, mostra
dos quais não resta mais do que uma longa nostalgia:
uma exaltação de sua "natureza lógica" que se arroga uma vo­
Que se tome claramente consciência como, des­
cação divina. Um dos aspectos mais significativos do ser de
de Sócrates, o mistagogo da ciência, as escolas fi­
Sócrates é este misterioso "demônio" que fala à sua consciên­
losóficas foram se substituindo uma à outra como
cia nos casos difíceis, mas sempre negativamente e para dissu­
as ondas, como a ânsia de saber se expandiu nos
adi-lo. É assim que se manifesta a exceção socrática na época países mais longínquos com uma universalidade
trágica dos gregos, sua monstruosidade, como Nietzsche não imprevista, como a ciência conduziu em alto-mar
hesita em descrevê-la: os espíritos mais dotados como se se tratasse de
Enquanto em todos os homens produtivos o ins­ uma verdadeira vocação, sem que jamais, desde
tinto corresponde exatamente a uma força cria­ então, eles pudessem ser completamente desvia­
dora e afirmativa, em Sócrates o instinto se torna dos dela, como esta universalidade do saber en­
crítico e a consciência, criadora- uma verdadeira cerrou numa única rede de conhecimento o glo­
monstruosidade à revelia6• bo terrestre inteiro, até mesmo com um olhar so­
No entanto, é esta monstruosidade que vai triunfar do bre as leis de todo o sistema solar; que se repre­
pessimismo trágico, e o socratismo não vai cessar de desenvol­ sente tudo isto, e inclusive a pirâmide assombro­
samente alta do saber atual, sem que se possa ser
ver-se e impor-se sob forma de otimismo teórico e científico.
impedido de ver em Sócrates a virada, o pivô do
Já por trás da personalidade de Sócrates, "como através de
que é chamado história universat'.
uma sombra", manifesta-se a força prodigiosa do socratismo.
É possível imaginar um Platão que não teria conhecido Estaríamos enganados se víssemos aqui apenas uma am­
Sócrates, um Platão, se ousamos dizer, pré-socrático, um Pla­ plificação retórica, pois já existe de fato o princípio de uma
tão cujo gênio talvez tivesse cumprido as promessas de um apreciação da ciência que será precisada nas obras posterio­
Empédocles? Ou melhor, é preciso esperar o próprio Nietz­ res. Acontece ainda que, nos diálogos de Platão, todas as esco­
sche, o contemporâneo de Wagner, o contemporâneo das las filosóficas são consideradas como diretamente dependen­
grandes revoluções industriais, para que a filosofia do futuro tes ou não da revolução socrática. já não foi dito, sem ser des­
reencontre enfim o solo natal que assegura seu impulso? Em mentido, que toda filosofia não é mais que um comentário es-
Humano, demasiado humano, Sócrates é comparado a uma pe­
dra que, jogada nas engrenagens de uma máquina, basta para
danificá-la. 7: Hu::zano, demasiado humano, § 261. Encerrado em seu sistema de perio­
dizaçao. Ch. Andler vê nesta passagem um "resíduo da época anterior",
com muita arbitrariedade, parece (ver Andler, tomo 11, p. 2 1 2).
6. Nascimento da tragédia, § 13. 8. Nascimento da tragédia, § 1 5.

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crito na margem das obras de Platão?9 Admitimos também
que é em nome de Sócrates que se impôs aos melhores espíri­
tos o primado do saber teórico, ou pelo menos que, desde Só­
crates, todo o debate filosófico supõe este primado: dogma­
tismo, ceticismo e criticismo não podem dispensar-se de in­ 4
terpretar de novo a famosa frase pronunciada no século IV
antes de nossa era: "só sei uma coisa, é que não sei nada" -
0 DIONISÍACO E O APOLÍNEO
Mas a ciência? Sócrates é considerado desde a Antigüidade
como o primeiro sábio a se ter desviado dos estudos da física
e da cosmologia para aplicar seu interesse exclusivo às ques­
tões propriamente humanas, às questões da moral. Não é pre­
cisamente neste ponto que ele se distingue mais nitidamente Como observa Curt Paul janz em sua extensa biografia
de seus predecessores denominados por esta razão "físicos"? de Nietzsche, a primeira obra publicada pelo professor de fi­
Contudo, a tese de Nietzsche será exatamente q�e a ciência, a lologia clássica de Basiléia: O nascimento da tragédia no espírito
ciência mais moderna, aquela que se passa por desinteressa­ da música contém em germe todos os temas filosóficos ulterio­
da, a mais objetiva, também supõe uma "crença" de ordem res, inclusive o do eterno retorno. O próprio Nietzsche reco­
moral; que ela implica uma projeção antropomórfica sobre a nheceu isso claramente no Ensaio de autocrítica de 1886, depois
natureza e o universo; que os sábios mais convictos de atingir �
em 188 , e � Ecce homo, onde ele insiste nos principais aportes
a verdade pura e simples, a de um "imaculado conhecimen­ desta pnme1ra obra: o dionisismo e o socratismo, descobertas
to", são levados a reconhecer que "também eles são piedo­ decisivas mas ainda envolvidas em formulações kantianas ' he-
sos", para retomar o título de um aforismo de Caia Ciência10• gelianas, schopenhauerianas ou até wagnerianas:
De um lado ao outro, em sua própria exigência de universali­ Como lamento agora não ter tido a coragem (ou
dade, é um fanatismo da razão que anima o imenso desenvol­ a imodéstia?) de me permitir, em consideração
vimento das ciências. de intuições pessoais ousadas, uma linguagem
Poderíamos assim chegar a dizer que a evolução de todo que também seja pessoal - de ter tentado expri­
mir penosamente em formulações schopenhau­
pensamento humano se divide em uma era pré-socrática e uma
erianas ou kantianas avaliações surpreendentes,
era pós-socrática. É este sem dúvida o destino que cabe a Sócra­
novas que se opunham fundamentalmente ao es­
tes, até que um outro destino, o do autor de Zaratustra, venha a
pírito, como também ao gosto de Kant e Schope­
ser um divisor dos milênios11• Quem, portanto, senão Nietz­
nhauer'.
sche, podia compreender por que Sócrates era um destino?
De fato, foram essas formulações que garantiram o suces­
so da obra nos meios wagnerianos, como lhe foram vivamente
censuradas nos meios universitários de filologia. É duvidoso
que uma linguagem pessoal, nova, tenha melhorado a situação!
Nietzsche que, é bom lembrar, se havia tornado professor uni­
versitário sem ser doutor, pensava com este livro tornar-se acei­
9. Whitehead.
to e reconhecido no círculo dos filólogos, foi na realidade des-
10. Caia ciência,§ 564. "Imaculado conhecimento" é o título de um canto
de Zaratustra.
11. t.Cce homo. "Por que sou um destino", §§ 7 e 8.
I. Ensaio de autocrítica, § 6.

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Ulrich von Wila­ uma metafísica de artista, tanto aos olhos de Ritschl e de Wllao
considerado depois dos panfletos eruditos de mowitz, como de Wagner, ou até mesmo de seu amigo Rito­
sor:
mowitz que era doutor mas ainda não era profes de, o historiador das religiões antigas que tomou vivamente
que
Que o senhor Nietzsche tenha eloqüência,
Índia sua defesa. Mas por fascinado que Nietzsche tenha ficado por
ele se apodere de seu tirso, que ele venha da
Richard Wagner e Cosima Liszt, por feliz e lisonjeado que se
à Grécia, mas que renuncie à sua cátedra
onde
e pan· tenha sentido com o acolhimento que lhe proporcionaram
deve ensinar a ciência; que ele reúna tigres
filó­ na casa deles em Tribschen, à margem do lago de Lucerna,
teras a seus pés, se quiser, mas não os jovens
logos alemães que devem trabalhar na ascese
e na ele não podia contentar-se com o papel de comentador filosó­
• 2
'
renuncia . fico da obra wagneriana. Bem cedo, antes mesmo da publica­
Wagner, de ção do Nascimento da tragédia por Schopenhauer, pouco depois
Nietzsche contou com o apoio de Richard
e, mas seu mestr e vener ado, Ritsch l, não por Wagner, ele começa a distanciar-se: as notas póstumas
seu amigo Rhod _
ele devena re­ não deixam nenhuma dúvida a este respeito. O elogio que ele
achou possível tomar sua defesa. Doravante
e. Seu cur­ faz de Schopenhauer na terceira Consideração intempestiva
nunciar a toda ambição "científica" na Universidad
teve mais que dois ouvint es que nem eram especialis­ ("Schopenhauer educador", e o não menos vivo elogio de
so não
o com esta situaç ão. Um de Wagner na quarta Intempestiva ("Richard Wagner em Bayreu­
tas. Nietzsche ficou muito abalad
s de Bonn declar ou diante de seus aluno s: "Quem th") são testemunhos paradoxais de um afastamento revelado
seus colega
idamente filó­ pelas publicações póstumas. E no entanto jamais cessará o
escreveu isto está morto para a ciência". Decid
o cargo de profes sor em 1877, depois de diálogo entre Nietzsche e Schopenhauer, entre Nietzsche e
sofo ele abandonou
.:.Sinterr upçõe s, por razões de saúde , mas sem muito pe­ Wagner, desde o Nascimento da tragédia até os últimos escritos
vári
sar, ao que parece. Foi nessas circunstâncias que
cresceu ne e! de 1888 (O crepúsculo dos ídolos. O caso Wagner). São esses diá­
de isolam ento e de incom preen são que nao logos "nas alturas" que permitem situar o pensamento de
um sentimento
de amizade e
mais o abandonará, apesar das manifestações Nietzsche não na atualidade, mas fora da história, pendendo
admiração que sempre o cercaram. para o questionamento metafísico.
entendi­
A extrema complexidade da obra devia ser mal Deixando de lado os debates puramente históricos ou fi.
tanto pelos leitore s que lhe demo nstrar am seu entusias­ lológicos nos quais Nietzsche pôde deixar de envolver-se, va­
da,
larizando-o.
mo, como por aqueles que o atacaram, ridicu mos voltar à descoberta essencial que ele designou como o
futuro " zomba va Wilam owitz, no próprio tí­ sentido do dionisismo na Grécia, que só pode ser apreciado
"Um filósofo do
tulo de seu panfleto, parodiando A obra de arte
dofuturo, publi­ em relação com o apolinismo. Ora, Apolo e Dioniso não se
como adversá­ deixam reduzir a "objetos" de uma pesquisa científica e que
cada por Wagner em 1850. Tanto partidários
no jovem profes sor de Basilé ia mais do que o só existiriam para nós traduzidos em conceitos diáfanos e in­
rios não viram
discípulo de Schopenhauer, o metafísico que preten � ia arr�i­ certos. Yamos devagar: não�5-predpitaàélm� de Dia�
nar os fundamentos do Ocide nte cristão , o advers áno sarcas­ .
niso e �o��1?�!<?§-ª .d�çifrl!-r que os grandes poetas da
hos univer sitários e, além disso, o discíp ulo des­ �ntigüi<l _ a<;}e não ç�.��.Ya.m de enriquecer-éõ� �
tico dos trabal
te outro schopenhaueriano, Wagner, o revolu cionár io que pre­ · :[,
? �cre; toda ;·gelli�lidade de Nlê-iZscheserra·e-�tãõTêrsirl� or
a músic a e a arte. Por fim, Nietz­ sua vez e de novo, um grande fabricante de mitos com os mã­
..
tendia renovar totalmente
por apóstolo de teriais da filologia clássic'\, assim como WagrterJá o éra com
sche, com seu primeiro livro, se faz passar
os materiais da mitologJã g�"imânica dos Nfeberiingen�"Séínêió�--­
·vida foi isto que os meios wagnerianos ê o próprio Wagner
2. Citado de C.P.Janz, tomo I, p. 429. Tigres
e panteras são os animais do compreenderam. O Nietzsche, criador de mitos, o "mitopoe-
cortejo de Dioniso vindo da Índia à Grécia.
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ta", pode dar ocasião a múltiplas interpretações simbólicas ou A evolução da arte depende necessariamente dl
alegóricas, a comentários indefinidos- o que não faltou3• Mas I antagonismo dessas duas forças arústicaa da nacg,
o autor do Nascimento da tragédia não renunciou à filosofia reza, como a evolução da humanidade depende
do antagonismo dos sexos. A superabundânc:t.
nem à metafísica, como o diz explicitamente a dedicatória a
de poder e a medida, a forma mais elevada da
Richard Wagner. Ele pôde lastimar depois de não ter feito
afirmação de si numa beleza fria, distinguida, alti·
obra mais pessoal. O uso de um vocabulário kantiano e scho­
va - o apolinismo do querer grego.
penhaueriano (que ele aliásjamais abandonou completamen­
te) e mesmo longas citações de Schopenhauer não deixam de Esta oposição do dionisíaco e do apolíneo no in·
terior da alma grega é um dos grandes enigmas
implicar uma pesquisa propriamente filosófica. Se a tragédia
cuja sedução senti na presença do ser grego. No
não é apenas um gênero literário, se ela não tem seu similar
fundo esforcei·me por nada mais do que adivi­
numa outra cultura que não seja a da Grécia, é que o nascimen­
nhar por que o'apolinismo grego devia surgir de
to da tragédia também é o nascimento da filosofia. Aqui nascimen­
um substrato dionisíaco, por que o grego dionisía­
to é fundação, muito mais do que origem histórica. Tomando
co teve que tornar-se necessariamente apolíneo;
o exemplo de Lavoisier que decompõe a água em oxigênio e
isto é, romper sua vontade do monstruoso, do
hidrogênio, Schopenhauer havia decomposto a alma num eu múltiplo, do incerto e do horrível por uma vonta­
que conhece e num eu que quer. Da mesma forma Nietzsche de da medida, da unidade, da ordenação segun­
decompõe o trágico num elemento dionisíaco e num elemen­ do a regra e o conceito. Seu fundamento é a de­
to apolíneo. mência, a desordem, o asiatismo; a coragem do
Pela palavra dionisíaco é expresso um impulso pa­ grego consiste num combate contra seu próprio
ra a unidade, uma saída para fora da pessoa, do co­ asiatismo; a beleza não lhe é dada mais que a lógi­
tidiano, da sociedade, da realidade, acima do abis­ ca, mais que a moral natural - ela é conquistada,
mo do que acontece; o transbordamento apaixo· desejada, tomada de assalto à força- ela é uma vi­
nado, doloroso, em estados mais obscuros, mais tória grega'.
fortes e mais flutuantes; uma afirmação extasiada
A tragédia ática, isto é, um espetáculo dramático, musi­
da vida como totalidade enquanto ela é igual a si
cal, religioso e até político, retrata plenamente um período
mesma em toda mudança, igualmente poderosa,
igualmente feliz; a grande participação panteísta
(ou um período no sentido de ponto mais alto) do ser grego,
na alegria e na dor, que aprova e que santifica poderíamos dizer do "gênio" grego no sentido dos historiado­
até os aspectos mais terríveis e mais enigmáticos res clássicos'. O dionisíaco e o apolíneo não remetem ao que
da vida; a eterna vontade de gerar, de produzir e chamamos de estética desde o século XVIII; não se trata ape·
de reproduzir; o sentimento da unidade necessá­ nas do templo dórico ou iônico, da estatuária arcaica, clássica
ria da criação e da destruição. Pela palavra apolí· ou helenística, da poesia épica ou lírica, de uma música, en­
neo é expresso um impulso para um ser comple­ fim, que Ni �tzsche � ue pode caracterizar através do liris­
to por si, uma "individualidade" caracterizada, .
mo e do dJttrambif. � já havia escrito: "O povo grego re·
para tudo o que torna único, que coloca em rele·
vo, reforça, distingue, elucida, caracteriza; a li­
b erdade na lei. 4. Fragments posthumes, 14 [ 14) tomo XIV, p. 30 (primavera de 1888).
5._ Bossu �t fal �, _por e� e�plo, do "gênio de Rmna" no sentido das apti·
does e d1sposJçoes propnas a um povo, a uma cultura e que explicam ao
3. Ver, por exemplo, E. Bertram. Nietzsche, essai de mythologie, 1918, trad. mesmo �e�po �ua "grandeza" e sua "decadência". Este equivalente ele
Wesen nao 1mphca entao _ nenhuma genialidade romântica.
fr. 1932.

70 71
velou seu próprio espírito a si mesmo de uma maneira sensí­
vel e visível, em seus deuses. Deu-lhes na arte uma forma per­
feitamente de acordo com as idéias que eles representam.
Graças a este acordo perfeito, que está implicado tanto na
dos costumes, das artes, das filosofias, du reli•
giões, dos conhecimentos de tempos que nlo do
os nossos que conseguimos adquirir alguma im•
portância, isto é, tornamo-nos enciclopédias vi·
�,
't,
'
u}'
·li
),�;
t

vas, como nos diria talvez um antigo grego, extra·


arte como na mitologia grega, esta foi na Grécia a mais alta ex­
viado no nosso tempo•.
pressão do absoluto, e a religião grega é a própria religião da
arte"6• Esta leitura teológica e metafísica da arte é habitual em Este antigo grego que toma conhecimento da grandiosa.
todo o romantismo do século XIX. No vasto desenvolvimento construção dialética da Enciclopédia das ciências filosóficas, de
histórico do espírito absoluto hegeliano, a arte clássica grega Hegel, não seria o filólogo, autor do Nascimento da tragédia?
aparece como um momento de equilíbrio entre uma arte cha­ Nietzsche inverte a perspectiva hegelian�, remontando
mada "simbólica" oriental (asiática, egípcia) e uma arte que desde o helenismo tardio, que se prolonga no cristianismo,
Hegel caracteriza como "romântica" e que corresponde ao até a Grécia da era trágica, em todo esplendor de seu começo,
cristianismo e à subjetividade absoluta de Cristo, o "ser uni­ das belezas e das volutas iônico-corintianas até o forte equilí­
versal que apareceu sob forma humana". Esta conciliação do brio da ordem dórica que exprime não tanto a estabilidade se­
amor à Grécia e da adesão ao cristianismo, por meio da dialé­ rena, mas a tensão do apolíneo e do dionisíaco. Hegel supõe
tica, garantiu ao século XIX o sucesso do hegelianismo, em to­ justificar dialeticamente a serenidade dos deuses gregos:
dos os campos e não somente no campo estético. Schopenhauer Longe da agitação e do tumulto que se prendem
já havia denunciado esta "filosofia universitária", esta síntese à perseguição dos interesses finitos, retirados em
de um helenismo e de um cristianismo que se tornaram con­ si mesmos, eles se apóiam em sua própria univer­
seqüentemente superficiais, reduzidos a um jogo de concei­ salidade, como sobre uma base eterna, onde en­
tos pálidos, mas cujo ensinamento foi incentivado pelos Esta­ contram o repouso e a serenidade'.
dos, e em particular pelo Estado prussiano'. Na esteira de Este tema da serenidade, essencial à religião grega da
Schopenhauer, Nietzsche se põe a fazer a crítica da "cultura arte, Hegel o tomou emprestado dos célebres trabalhos de
histórica" do século XIX, da maneira menos dialética possí­ Winckelmann, como aliás Goethe e a maioria de seus contem­
vel, isto é, referindo-a à cultura essencialmente não histórica porâneos.
da Grécia, tornando-se de alguma forma "intempestivo". Ouso assegurar, dizia Winckelmann desde 1755,
Este famoso e pequeno povo, que não é de um que os grandes traços desta nobre simplicidade,
passado tão longínquo, refiro-me aos gregos, ti­ desta grandeza tranqüila que caracteriza as está­
nha preservado obstinadamente, no auge de sua tuas gregas, observam-se mais ou menos sensivel­
maior força, um sentido não histórico; se um de mente nas obras dos homens geniais que escreve­
nossos contemporâneos fosse enviado, por ma­ ram durante o século de ouro das letras na Grécia
gia, a esse mundo, acharia sem dúvida os gregos e, particularmente, nas produções dos discípulos
muito "incultos" e exporia o segredo cuidadosa­ de Sócrates.
I

mente guardado da cultura moderna à irrisão pú­ Aliás, Winckelmann opõe este século de ouro pós-socrático
blica: é que nós, modernos, não temos nada de e seu ideal de serenidade à época dos primeiros poetas trági­
próprio; é só enchendo-nos e empanturrando-nos cos (que é também a dos filósofos pré-socráticos), evocando

6. Hegel. Curso de estética, tomo V, a arte clássica. 8. Considerações intempestivas, 11, § 4.


7. Ver Parerga et Paralipomena, tomo I, "Sobre a filosofia universitária". 9. Hegel. Curso de estética, ibidem.

72 73
"essas expressões hiperbólicas que tornaram as tragédias de
Ésquilo, e sobretudo seu Agamemnon, mais obscuras e mais
P""Ud<>l>ele�o �, :"'ti-heleno � "". Portanto, não ,e tmta prec!Jo,
m�nte da h1stona de um genero literário, mas de bem outra
cmsa. As relações históricas que Nietzsche pretende estabele-
·11'
.

- ��(
confusas que os enigmas de Heráclito"10• A Grécia que Winc­
cer entre Sócrates e Eurípides provavelmente são muito con· ·r
kelmann só podia observar nas cópias romanas tardias, ou no
testáveis. Seg�e se que a tragédia euripidiana é uma tragédia ,

máximo em alguma obra helenística como o Laocoonte, esta �


Grécia falsamente "ingênua" é ainda a de Schiller, de Goethe, �em �unh � tra�co, _um drama dominado pelo diálogo e pela
mtebgenCia cntlca, Isto é, por aquilo que Nietzsche chama no
.
de Hegel; ela não é mais aquele que Nietzsche descobre. Ape­
Nascimento da tragédia de "socratismo estético", tão estranho à
sar disso, nada aqui se decide pela positividade da pesquisa
arte apolínea como à arte dionisíaca:
histórica; Nietzsche efetivamente descobriu com o dionisismo
Esses meios de emoção são pensamentos friamente
o que dá sentido às obscuridades da poesia trágica e permite
paradoxais no lugar das intuições apolíneas, e
reconstituir o templo enterrado da mais alta cultura.
afetos inflamados no lugar dos êxtases dionisía·
Jules Girard, em 1869, certamente não foi o primeiro a cos, pensamentos e afetos indubitavelmente imi­
caracterizar a sucessão dos três grandes trágicos atenienses tados de modo extremamente realista, mas de
como um desenvolvimehto do pensamento racional, em de­ forma nenhuma banhados no éter da arte".
trimento do sentimento religioso: "Curioso, inquieto, mais Eurípides abre assim o caminho à nova comédia ática (Me­
voltado para a filosofia do que para a religião, Eurípides não nandro), comédia de intriga entregue às paixões mais comuns.
tem a serenidade de Sófocles, nem a profunda emoção religi­
O teatro de Eurípides é a agonia da tragédia. Mas ela não
osa de Ésquilo"11• No estudo que ele faz desses três autores,
� orre de esgotamento, morre antes de uma espécie de suicí­
Nietzsche não diz muito mais do que isso, mas com os mes­
diO, por dissociação dos dois elementos apolíneo e dionisía­
mos materiais históricos e filológicos, sua perspectiva tam­
co. Convém ainda tomar cuidado para não identificar socra­
bém neste caso ainda é inversa: não mais a de um desenvolvi­
�smo com apolinismo. Não há nem pode haver tragédia apo­
mento- aliás surpreendentemente rápido- da tragédia ática,
bnea co �o ��rece ter reconhecido Eurípides, consagrando
mas a de uma brusca decadência, de uma decomposição do :
ao mito dwms1aco sua última obra dramática, as Bacantes.
dionisíaco e do apolíneo provocada pelo socratismo, encarna­
Sócrates é o protótipo e o ancestral do homem
do no próprio tipo de Sócrates. No Crepúsculo dos ídolos, o ca­ teórico característico de uma "cultura alexandri­
pítulo intitulado "O problema de Sócrates" dá todo seu alcan­ na" que é ainda principalmente a nossa. Sobre a
ce à oposição do trágico e do socratismo: "Para mim, esta irre­ maior parte do domínio no qual se estende o gê­
verência de pensar que os grandes sábios são tipos de decadên­ nero helênico, desencadeou-se o sopro devasta­
cia me ocorreu ao espírito precisamente no caso em que a dor deste espírito que se dá a conhecer como esta
contradição é mais forte no julgamento dos eruditos como forma da "serenidade grega" da qualjá se tratou e
dos não eruditos: reconheci Sócrates e Platão como sintomas que não é senão um modo senil, improdutivo de
de decadência, instrumentos de dissolução do helenismo, como ter prazer em existir; esta serenidade é o contrá­
rio da soberania "ingênua" dos antigos gregos
que deve ser concebida como o pleno desabro­
char da cultura apolínea, surgindo de um abismo
10. Winckelmann. Réjlexions sur l'imitation des artistes grecs. Trad. fr. de
1786, p. 33-34.
11.]. Girard. Le sentiment religieux en Grece, p. 424. Para Girard, toda a 12. Crepúsculo dos ídolos. "O problema de Sócrates", § 2.
arte da tragédia é transformar as angústias da consciência "numa resigna­ 13. Nascimento da tragédia, § 12.
ção cheia de experiência e de serenidade" (p. 542).
75
74
tenebroso, como a vitória que a vontade helênica
conquista sobre o sofrimento, sobre a sabedoria
do sofrimento, refletindo-se na belez;r.

A nostalgia da Grécia, ainda com o século XVIII de Winc­ 5


kehnann, achou por muito tempo que podia satisfazer-se aspi­
rando a esta pseudo-serenidade, pelo menos até que Kant, de­ TRAGÉDIA E MÚSICA
pois Schopenhauer, mostrassem os limites do otimismo teórico.

O nascimento da tragédia do espírito da música é o título com­


pleto da primeira edição {1872) e da segunda (1874). O ensaio
de autocrítica que serve de prólogo à terceira edição (1886) co­
loca de saída estas questões: "Da música? Música e tragédia? Os
gregos e a música trágica?" Vamos deter-nos um pouco nessas
questões um tanto surpreendentes, pois Nietzsche não tem,
mais do que seus contemporâneos, conhecimento direto da
música grega arcaica. Ele se representa através do grande liris­
mo de Arquíloco a Píndaro, uma música em que a melodia, ao
que lhe parece, tem menos importância que a rítmica, ao con­
trário da música moderna. Além disso, ele só pode apoiar-se
nas análises de Schopenh�uer quando elas distinguem essenci­
almente as artes plásticas (para a Antigüidade, particularmente
a escultura) e a música que manifesta diretamente a vontade de
viver, o mundo do ponto de vista metafísico, e isto bem além
das formas arquitetônicas, esculturais, pictóricas, nas quais se
encarna e se objetiva o ser em si do mundo. O exemplo dado
por Schopenhauer é o de uma sinfonia de Beethoven'. É sobre
este compositor que Wagner publica em 1870 seu escrito mais
schopenhaueriano e sobre o qual ele manterá uma conversa
com Nietzsche em Tribschen. Ele dirá que sente uma "exalta­
ção mística" ao estudar a Nona Sinfonia que ele havia dirigido
desde 1848 e será esta mesma obra que ele regerá por ocasião
do lançamento da primeira pedra do teatro de Bayreuth. Lem­
bremos que o quarto movimento, com o coro cantando o Hino

1. O mundo como vontade e como representação, cap. 39 dos suplementos.


Ver nosso "Comprendre Schopenhauer" onde é citado o texto.
14. Nascimento da tragédia,§ 14. Grifo nosso.
77
76
à alegria, de Schiller, tinha sido uma revelação para o jovem Daí o efeito fundamentalmente diferente
músico que era Nietzsche. zido pela música e pela pintura: Aqui [na
a mais profunda calma, lá [na música] a exaltaçlo
Não devemos surpreender-nos com esta correspondên­
mais elevada da vontade [ ... ]. No músico, a vonta­
cia entre a música da Grécia Antiga e a da Alemanha moder­ de tem imediatamente o sentimento de uma uni·
na. Não se trata, como se supunha, de uma aplicação mais ou dade além dos limites da individualidade, pois 01
menos arbitrária da estética de Schopenhauer a domínios ar­ ouvidos lhe abrem uma porta pela qual o mundo
tísticos distantes. Já encontramos exemplos do que é para penetra fortemente até a vontade e reciproca­
Nietzsche um verdadeiro método pelo confronto, ou melhor, mente. Esta formidável submersão dos limites do
pela interpretação recíproca do mais antigo e do mais moder­ fenômeno provoca necessariamente num músico
inspirado um arrebatamento que não se compara
no, um e outro esclarecendo-se, mesmo que seja por contras­
a nenhum outro; então a vontade se reconhece
te. A exaltação que se sente ao ouvir uma sinfonia de Beetho­
como vontade universal todo-poderosa' .
ven não permite certamente identificá-la ao ditirambo trági­
Mas Schopenhauer jamais estabeleceu diferença, muito
co, mas ela dá um sentido ao elemento dionisíaco que a ani­
menos oposição, entre os efeitos plásticos e os efeitos da mú­
ma. Portanto, podemos concluir que, por espírito da "músi­
sica: não· poderia tratar-se de exaltação da vontade mas ao
ca", devemos entender o elemento dionisíaco do qual nasceu
a tragédia, como por união sexual com o elemento apolíneo.
contrário, de sua suspensão numa contemplação que é s m­ �
pre da mesma natureza. De outro lado, se os desejos individu­
Desde a primeira página do Nascimento da tragédia, Nietzsche ais são de fato acalmados no espectador de uma obra ' de arte
evoca seu cumprimento num "ato metafísico miraculoso da plástica que se tornou "puro objeto para um puro sujeito",
vontade helênica". Este é o sentido último do "milagre grego" acontece exatamente o mesmo com o ouvinte. Não há, em
sobre o qual não pode ser dada nenhuma explicação históri­ Sch?p��hauer, absorção, fusão mais ou menos mística do que­
ca, mas que, ao contrário, dá sua perspectiva a toda pesquisa rer mdiVIdual numa vontade universal quase divinizada. Enfim,
filológica. Aqui a metafísica da vontade é sem dúvida a de Wagner tende a reduzir a distinção entre as artes plásticas e a
Schopenhauer, e este fala exatamente de um ato metafísico a música à distinção kantiana fundamental entre o fenômeno
propósito do "caráter inteligível" do indivíduo humano; mas o aparecer conhecido objetivamente e a coisa em si metafísic �
ele jamais teria admitido uma vontade "helênica" específica � is�o é para Schopenhauer o querer atingido por intuição sub-­
objetivando-se na "idéia" de uma helenidade. Nietzsche, e já jetiva); portanto, ele não leva absolutamente em conta a idéia
quase platônica, ou seja, esta forma de objetivação da vontade
Wagner, retomam, no vocabulário schopenhaueriano da von­
que é o objeto próprio da arquitetura, da escultura, da pintu­
tade, a noção hegeliana de espírito de um povo (Volksgeist)
ra e da poesia.
como momento da dialética do espírito do mundo (Weltgeist).
No Nascimento da tragédia, a leitura que Nietzsche faz da
Nietzsche, é claro, não se torna hegeliano com isto, mas é com
�etafísica da vontade é ainda excessivamente wagneriana,
razão que, em seu prólogo de 1886, ele lastima que uma lin­
rsto quer dizer que, apesar do que freqüentemente se escre­
guagem schopenhaueriana, com alguns traços hegelianos, te­
veu, ele já está muito longe da estética schopenhaueriana:
nha podido entravar a expressão de um pensamento que lhe
Não é correto deduzir o trágico somente de uma
era próprio. definição da arte geralmente concebida sob a ex-
Nietzsche mantém certamente de Wagner e a partir de
Schopenhauer esta diferença decisiva entre o deus das artes
plásticas, Apolo, e o deus da música, Dioniso: 2. Richard Wagner. Beethoven ( 1 870).

78 79
clusiv;J. categoria da aparência e da beleza; é a par­ fundamental entre o fenômeno e o em si. Por isso Apolo
6
tir do espírito da música que podemos compreen­ deus da "bela aparência". Ora, a ontologia schopenhau
der a alegria do aniquilamento do indivíduo. Os
erlana
assemelha, a ponto de quase confundir, a aparência (Schlin)
exemplos particulares deste aniquilamento só to­
com o fenômeno (Erscheinung): "O homem que acede à filoso­
mam significado para nós pela manifestação eter­
fia tem até mesmo o pressentimento de que, sob a realidade na
na da arte dionisíaca, aquela que traz à expressão
qual vivemos , existe uma segunda, totalmente diferente, se
da vontade, em toda a sua potência, por assim di­
bem que esta primeira realidade também é uma aparência"4•
zer, por trás do princípio da individuação, a vida
eterna além de todo fenômeno e apesar de todos Subjacente ao mundo da realidade física, da representa·
os aniquilamentos. A alegria metafisica que se pren­ ção, afirma-se eternamente, isto é, fora do tempo e do espaço,
de à tragédia é uma tradução, em linguagem figu­ uma realidade em si, metafísica, que experimentamos em nós
rada, da sabedoria dionisíaca instintiva e incons­ como vontade no sentido amplo, como paixão, como vida afe­
ciente: o herói, esse supremo fenômeno da vonta­ tiva, e finalmente como dinamismo interno de nosso corpo.
de, é negado, para o nosso prazer, porque ele_ é Sem dúvida, para Schopenhauer esta vontade permanece, em
apenas fenômeno, e a vida eterna da vontade não sua realidade última, una, mesmo enquanto ela se objetiva:
é perturbada por seu aniquilamento. "Cremos na particulariza e individualiza indefinidamente no mundo feno­
vida eterna", assim exclama a tragédia, enquanto
menal: a libertação pela contemplação estética, pela moral da
a música é a idéia imediata desta vida. As artes
piedade, pela abnegação da vontade por ela mesma, supõe
plásticas têm uma finalidade totalmente diferen­
que seja abolido o egoísmo do desejo individual e que �eja re­
te: aqui Apolo supera os sofrimentos do indiví­
duo pela glorificação brilhante da eternidade do
conhecida a unidade profunda da vontade de viver. As for­
fenômeno; aqui a beleza triunfa sobre os sofri­
mas do princípio de individuação, muitas vezes evocado no Nas­
mentos inerentes à vida, a dor, em certo sentido, cimento da tragédia, são as do mundo fenomenal: espaço, tem­
desaparece dos traços da natureza por uma men­ po, causalidade; mas Schopenhauer admite que a individuali­
tira. Na arte dionisíaca e em seu simbolismo trá­ dade tem raízes profundas no mundo da vontade, sem falar
gico, esta natureza nos fala com sua voz verdadei- da multiplicidade das idéias. Sua metafísica sempre negou ser
1 ra, não disfarçada: "Sede como eu sou! Eu, a mãe
original que cria eternamente a sucessão dos fe­
nômenos, que os obriga eternamente a existir,
uma mística. Nietzsche adota uma interpretação da metafísica
que é redutora, como já era a de Wagner , e dá prioridade à
oposição entre o indivíduo e a vontade "universal", isto é, en­
que se satisfaz eternamente com esta sucessão de tre a visão apolínea e o êxtase dionisíaco. De um lado:
fenômenos"'.
Poderíamos caracterizar o próprio Apolo como a
Observe-se que Nietzsche se desvia mais ainda da noção magnífica imagem divina do princípio de indivi­
propriamente schopenhaueriana de idéia, quando ele aplica duação, cuja atitude e olhar exprimem aos nossos
esta palavra à música, justamente a única arte que exclui o co­ olhos todo o prazer e sabedoria da aparência uni­
nhecimento por idéia, segundo Schopenhauer. A distinção en­ da à beleza.
tre o deus das artes plásticas e o deus da música parece portan­ De outro lado,
to coincidir, em nível da produção artística, com a distinção Transponde em quadro o Hino à alegria, de Bee­
thoven, e não deixeis vossa faculdade de imaginar
3. Nascimento da tragédia, § 16 (final). Fenômeno traduz Erscheinung, no
sentido kantiano-schopenhaueriano. Manifestação da arte dionisíaca tra­
du?. o alemão Phiinomenon. 4. Nascimento da tragédia, § I .

80 81
para trás, quando milhões de seres se prostram
na em confusão, em fantasia com pleta e at4! meto
tremendo no chão: é assim que se pode aceder ao
mo em contradição; exercer nossa pobre aapclo
dionisíaco [ .. . ]. O homem não é mais artista, mas dade em tais comparações e não ver o que eate
tornou-se obra de arte; o que se revela aqui, no fato tem de explicável coincide totalmente com o
frêmito do êxtase, é a força artística da natureza modo da estética atual. Mesmo quando é o músi­
inteira à busca do supremo apaziguamento vo· co que falou em imagens em sua composição,
l uptuoso encontrado no Um originário. Com a quando designou uma sinfonia como " pastoral",
argila mais fina, o mármore mais precioso, é mo­ uma passagem como "cena à beira de um riacho"
delado, é talhado o homem e, com os golpes de ele usa apenas representações analógicas, nasci :
cinzel do demiurgo dionisíaco, retine o apelo do das da música; tais representações não podem en­
mito eleusiano. "Milhões de seres, vós vos pros­ sinar-nos nada sobre o conteúdo dionisíaco da
trais por terra? Mundo, pressente teu criador'•. música, e elas não são, seja no que for, exclusivas
Portanto Nietzsche não hesita em colocar em paralelo o de outras imagens7•

mármore antigo mais famoso, o Apolo do Belvedere, e a mú­ É por isso que o grande lirismo de Arquíloco a Píndaro é
sica mais célebre do século XIX. Nesta interpretação, fre­ tão mal compreendido quando se desconhece a música dioni­
qüentemente usada por ele, chega ao ponto de ouvir um ape­ síaca que o sustém. Ao fazer do poeta lírico um artista emi­
lo dos mistérios de Elêusis em dois versos de um poema de nentemente "s ubjetivo", por contraste com o poeta épico que
Schiller, em que não se trata de nada disto. Descobrir o dioni­ seria "obj etivo", era impossível superar a contradição interna
sismo é ouvir seus ecos que se prolongam até os nossos dias. entre a expressão lírica das paixões individuais e o desprendi­
Para apreender seu sentido, Nietzsche utiliza todo umjogo de mento, o desinteresse, sem os quais não haveriajulgamento
analogias, pedindo-nos que acionemos nossa faculdade de nem contemplação estética. Como é possível o poeta lírico
produzir imagens, de transpor a sinfonia num quadro. Ao como artista? A resposta não pode estar numa dialética inter­
contrário de Schopenhauer, que via na associação da música na à poesia, mas na identidade, reconhecida na Antigüidade,
com as palavras uma alteração da natureza própria da música, porém esquecida desde então, do poeta e do músico. Nietz­
que só se liberta de si mesma se for puramente instrumental, sche cita o testemunho de Schiller para quem um "certo esta­
Nietzschej ulga que é inevitável a passagem do som à palavra, do de alma musical" precede a idéia poética. Poderíamos citar
da melodia à poesia. Ele mesmo sublinha: "A melodia é o ele­ Paul Valéry dizendo do Cimetiere marin: "Ele nasceu, como a
mento primeiro e universal que, por esta razão, pode admitir di­ maioria de meus poemas, da presença inesperada no meu es­
versas objetivações em diversos textos'{>. pírito de um certo ritmo", e ainda: "Do que me lembro é de
Aliás, este é o caso do canto popular (Volkslied). Também ter tentado manter condições musicais constantes, isto é, que
aqui a sinfonia de Beethoven oferece um exemplo: me esforcei para obedecer a cada instante à vontade ou à in­
Temos disto a experiência toda vez que uma sin­ tenção de satisfazer o sentido auditivo'6•
fonia de Beethoven obriga cada um dos ouvintes Então a individualidade do poeta lírico se desvanece e,
em particular a um discurso i maginado, mesmo por trás das paixões, dos amores e dos ódios do ser humano'
quando a comparação dos diferentes modos de
o único sujeito que se exprime musicalmente é Dioniso.
imagens suscitadas por um trecho musical termi-

5. /bidem. No fim citação do poema de Schiller "À alegria" , estrofe 5. 7. /bidem.


Nrmimenlo da tragédia, § 6. Grifado por Nietzsche. 8. Paul Valéry. Oeuvres (tomo I, p. 1.685 e 1.876, Biblioth
fi.
eque de la Piéiade).

82 .83
O eu do poeta lírico ressoa do abismo do ser: sua
arte com um significado propriamente metafísico e o simbo­
"subjetividade" no sentido da estética moderna é
lismo dos sátiros expressa por analogia a relação da coisa em
ilusão. Quando Arquíloco, o mais antigo lírico
si e do fenômeno. Por isso não pode tratar-se de uma síntese,
grego, declara ao mesmo tempo seu amor frenéti­
menos ainda de uma fusão entre o elemento dionisíaco e o ele­
co e seu desprezo pelas filhas de Licambo, não é
sua paixão que dança diante de nós n u m delírio
mento apolíneo que permanecem distintos e reconhecíveis:
orgiástico; vemos Dioniso e suas Mênades, vemos Vem daí uma nítida oposição de estilos no interi·

Arquíloco, o exaltado submerso no profundo sono o r da tragédia: linguagem, cor, movimento, dinâ­

da embriaguez - e é então que chega Apolo perto mica do discurso se distribuem no lirismo do coro

dele e o toca com seu laurel. O encantamento dionisíaco e, de outro lado, o mundo onírico apo­

musical dionisíaco do dorminhoco faz então jor­ líneo da cena como em esferas de expressão com­

rar em torno dele, como num resplendor de ima­ pletamente separadas. Os fenômenos apolíneos

gens, poesias líricas que em seu mais sublime de· nos quais Dioniso se objetiva não são mais "um

senvolvimento se tornam as tragédias e os diti­ mar eterno, uma trama mutante, uma vida arden­

rambos dramáticos•. te", como o é a música do coro; eles não são mais
apenas forças sentidas, sem serem materializadas
Encontra-se assim justificada a tradição que remonta à
em imagens nas quais o servo inspirado de Dioni­
Antigüidade e que liga a tragédia e também todo o teatro gre­
so está à busca da proximidade do deus; o que ele
go ao culto de Dioniso e a seu cortejo de silenos e de sátiros. A fala depois da cena é agora uma figura épica clara
própria etimologia da palavra (canto de bode) já sugere a ori­ e distinta; é Dioniso agora que toma a palavra, não
gem tanto no rito do sacrifício de um bode, como num coro mais por intermédio de forças, mas como herói
"satírico" de cantores mascarados de bodes. Nietzsche consi­ épico, quase na linguagem de Ho mero12•
dera como fora de dúvida que a tragédia, no início, não foi
Note-se bem que as poucas palavras citadas para sugerir
mais do que o coro:
as forças dionisíacas não são tomadas de uma tragédia antiga,
No ditirambo estamos diante de um conj unto de
nem mesmo de uma tragédia moderna, mas provêm de um
atores inconscientes que se consideram uns e ou­
poema pré-romântico. Novo exemplo de interpretação: é
tros como transformados. Por esta possessão, o
exaltado dionisíaco se vê como sátiro, e como sátiro num drama característico do Sturm und Drang, do final do sé­
ele contempla o deus; quer dizer que, por sua trans­
culo XVIII, que se pode ouvir o eco da música dionisíaca. Mas
formação, há uma nova visão que ele exterioriza sobretudo é assim que se encontra estabelecida a relação en­
como c umprimento apolíneo de seu próprio esta­ tre o drama, a ação trágica e o relato épico, cujo exemplo pri­
do. Com esta nova visão, é o drama que se es tabe­ vilegiado é Homero. Ora, Homero opõe-se a Arquíloco como
lece. A partir daí, devemos conceber a tragédia Apolo a Dioniso.
grega como o coro dionisíaco que se descarrega Homero, o velho sonhador, absorto em si mes­
em imagens sempre novas num mundo apolíneo10• mo, tipo do artista apolíneo ingênuo, olha com

É isto que Nietzsche chama, no Nascimento da tragédia, "o assombro o rosto apaixonado de Arquíloco, o be­
licoso servo das musas, violentamente arrebatado
fenômeno originário "11• Este aparececimento fundamental da
pela vida".

9. O nascimento da tragédia, § 5.
10. Ibidem, § 7. 12. Ibidem, § 8. A citação vem do Fausto, de Goethe, verso 505.
11. Kunstlerisch Urerscheinung, ibidem, § 8. 13. Ibidem. Homero é "poeta ingênuo" no sentido de Schiller.

84 85
Se as duas fontes, épica e lírica, podem confluir na repre­ líneo o elemento que constitui a característica da
sentação cênica do herói trágico, o aparecimento de um fenô­ música dionisíaca, e por conseguinte da música
meno novo, próprio à Grécia, a tragédia propriamente dita, em geral, isto é, a violência do som, a ondulação
tomou-se possível sob duas condições que convém sublinhar unitária do canto e o mundo absolutamente in­
"
mais do que se costuma fazer. Em primeiro lugar, Dioniso não comp arável da harmonia .

deixa de ser o herói trágico sob todas as figuras míticas, sob Há, portanto, todo um jogo de correspondências entre o
todas as máscaras, tanto a do Prometeu de Ésquilo, como a do equilíbrio de uma colunata dórica, a majestade de um friso es­
Édipo de Sófocles. Ele é o único a ser verdadeiramente real culpido ou de uma estátua e o ritmo puramente musical.
sob as aparências diversas dos heróis épicos claramente indi­ Nietzsche continuará a contrapor ritmo e harmonia como na
vidualizados na epopéia. Não há nada de surpreendente nis­ lenda grega a cítara do deus Apolo se opõe à flauta do sátiro
to, se nos lembrarmos que o espírito da música se manifesta Mársias. Daí se pode concluir que, seja qual for o triunfo final
suscitando uma multiplicidade de imagens e de palavras: de Apolo sobre o sátiro, é o cortejo dionisíaco que revela a es­
Que força foi esta que libertou Prometeu de seus sência de toda música. Desta associação do elemento apolí­
abutres e transformou o mito em veículo de uma neo com o elemento dionisíaco, numa arte como a música,
sabedoria dionisíaca? Esta força de Héracles é a for­ Nietzsche dá um exemplo, ou melhor, um símbolo que pode
ça da música que, chegando à sua manifestação su· parecer surpreendente. Ele escolheu uma pintura e não uma
prema na tragédia, é capaz de interpretar o mito composição musical e, além disso, um grande quadro clássico
dando-lhe uma nova e mais profunda significação 14• de tema cristão: a Transfiguração, última obra de Rafael, isto é,
Esta dimensão propriamente trágica da música, nem He­ do artista que representava a perfeição da arte para as esco­
gel, nem Schopenhauer, fascinados pelo debate dramático, las do século XIX. Na metade deste quadro, Cristo se eleva
conseguiram percebê-la. entre os profetas Elias e Ezequiel. A metade inferior do qua­
De outro lado, o apolinismo não se limita à produção de dro representa, na sombra do Monte Tabor, uns quinze per­
belas formas, belas imagens plásticas ou verbais; ele constitui sonagens gesticulando, tomados de violentas emoções, que
uma cultura completa que, em todos os domínios, se esforçou assistem à cura do jovem sonâmbulo possesso. É tal o contras­
por conter o impulso dionisíaco, a princípio extrínseco à Gré­ te entre as duas partes que alguns historiadores da arte chega­
cia. Há uma ética apolínea (o "conhece-te a ti mesmo"), uma ram a supor que a parte inferior não e�a inteiramente da mão
religião (os deuses luminosos do Olimpo sucedem aos som­ de Rafael, mas de seus discípulos, em particular de Jules Ro­
brios Titãs), mas também uma música apolíneajá presente no main, sem nenhuma prova a não ser sua incompreensão do
mundo homérico. significado analógico da última obra-prima: "Aqui temos sob os
S e, aparentemente, a música já era conhecida olhos, no mais elevado simbolismo da arte, o mundo apolíneo
como arte apolínea, no entanto ela não o era, pro­ da beleza e seu plano de fundo, a terrível sabedoria do sileno,
priamente falando, senão como um desfraldar e captamos intuitivamente sua necessidade recíproca'l6•
rítmico, cuja força de criação se desdobrava na Sem dúvida é preciso ir mais longe, ainda que Nietzsche
apresentação de estados apolíneos. A música de não o diga explicitamente: aquele que é transfigurado aqui,
Apolo era uma arquitetura dódca de sons, mas sob a imagem de Cristo na glória da ressurreição, não seria
de sons somente indicados como convém à cíta­ em última análise o eterno herói Dioniso?
ra. Anteriormente estava descartado como não apo-

15. Ibidem, § 2 .
1 4. /bidem , § 10.
1 6 . Ibidem, § 8.

86
87
nha de grandes trabalhos de síntese. Basta citar a SimbdlNII
de Creuzer2 na qual foi introduzida uma distinção entre o
mito e o símbolo.
O que é chamado força pela inteligência aperfeiço­
6 ada, chama-se pessoa na observação primitiva [ ... ].
Este sentido profundo que excita tão vivamente
DIONISO FILÓSOFO nossa alma não tem outra causa senão a imensa
desproporção entre o ser e a forma, a idéia e sua
expressão [. . . ]. O espírito, preocupado com as ima­
gens que ele cria para si mesmo, chama a arte em
seu socorro e lhe pede emprestadas formas visíveis
somente a seus olhos, a suas crenças [. . .]. É o sím­
Para o filólogo Nietzsche, Apolo e Dioniso são antes de
bolo divino que alia maravilhosamente a beleza da
tudo deuses da religião grega antiga, isto é, seres históricos
forma com a sublime plenitude do Ser'.
conhecidos por uma multiplicidade de "momentos escritos
Quanto ao mito propriamente dito, ele supõe, segundo
ou figurados, objetos de ritos complexos e de relatos legendá­
Creuzer, um desenvolvimento articulado, em particular no
rios às vezes contraditórios". Coloca-se, de início, e isto desde
relato épico, mas também na teogonia, o mito histórico ou
a Antigüidade, a questão da "história" do deus, ou seja, da ori­
cosmogônico.
gem de seu culto, de sua expansão, dos diversos sincretismos,
das assimilações e das substituições num mesmo santuário. Deveríamos citar ainda, entre as fontes, Jules Mich�let,
Em Delfos, o culto de Apolo sucede ao da serpente Píton e é cuja Bíblia da humanidade era conhecida do círculo wagneria­
partilhado com o de Dioniso. Cultos locais são absorvidos no no? Nela estava desenvolvida a oposição entre a lira e a flauta,
culto dos deuses principais e os mitos são elaborados para ex­ entre a razão de Apolo e a orgia de Dioniso, no estilo inflama­
plicar as novas hierarquias. No caso de religiões que não pos­ do do historiador decadente, e colocada a serviço de uma
suem textos sagrados comparáveis ao "Livro" dos monoteís­ vaga ideologia do progresso. É difícil reconhecer aí uma inspi­
mos, os mitógrafos, os poetas, em particular os poetas trági­ ração filosófica que anuncia Nietzsche4• Charles Andler insis­
cos, tiveram uma liberdade de introduzir variações e seqüên­ te num liv�o dejules Girard, O sentimento religioso na Grécia de
cias aos relatos míticos. Portanto, torna-se impossível dar uma Homero a Esquilo, publicado em 1869, mas nunca afirmou que
resposta simples à questão do caráter autóctone ou estrangei­ Nietzsche o tenha lido. É verdade que esta obra revela a oposi­
ro de um deus. É neste sentido que Nietzsche admite, desde ção essencial entre o sentimento da harmonia e o sentimento
as primeiras páginas do Nascimento da tragédia, que Dioniso é da vida, entre Apolo e Baco; e ele mostra a exaltação própria
antes de tudo um deus "oriental", mas é para distinguir logo ao culto de Baco na origem da tragédia. Pode haver, é claro,
de saída "o imenso abismo que separa os gregos dionisíacos convergência nos resultados da pesquisa filológica. Mas é evi­
dos bárbaros dionisíacos"1• Só entre os gregos é que o dioni­ dente que para]. Girard a história do sentimento religioso da
sismo pôde tornar-se um fenômeno estético.
Sempre é possível discutir a erudição de Nietzsche, e 2. G.F. Creuzer ( 1 771-1858), professor na Universidade de Heidelberg
onde fundou o seminário de filologia. Sua Simbólica e Mitologia dos antigos
isto mais ainda porque a documentação histórica se acumula povos e em particular dos gregos foi publicada em 18 1 0-1812. A obra foi tra­
sem cessar. Sem remontar além do século XIX, ele já dispu- duzida e "refundida" em franc ês a partir de 1823, sob o título "Religions
de I'Anliquilé", por J.D. Guigniault, um amigo de Victor Cousin.
3. Tomo I da tradução, Introdução, p. 25-26.
I. Nascimento da tragédia, § 2. 4. Ver a biografia de C.P. Janz. Nietzsche, tomo I, p. 362-393.

88 89
Grécia arcaica é inteiramente comandada por um princípio embriaguez", é preciso reconhecer o ser mesmo, o em sl que H
de harmonia e de progresso moral, cujas primeiras manifesta­ afirma absolutamente sem fim e sem razão, e que experimenta.>
ções ele tenta encontrar na origem da civilização . É com esta mos em nós mesmos como vontade una, além de todas as indl·
interpretação tradicional que Nietzsche vai romper, e esta vidualidades e de todos os fenômenos particulares; é mais fácil
ruptura é de ordem filosófica e até metafísica, longe de pro­ ainda reconhecer no mundo do sonho o mundo dos fenôme­
longar os resultados adquiridos da ciência filol ca. � nos segundo Schopenhauer. Em síntese, a natureza como artis­
Em Nietzsche, os deuses Apolo e Dioniso não são os no­ ta dionisíaca e como artista apolínea é simplesmente o mundo
mes de categorias estéticas que eles poderiam sintetizar. Se eles como vontade e como representação. Contudo, apesar das referên­
são simbólicos, não o são apenas de atividades artísticas huma­ cias precisas, Nietzsche já se afasta consideravelmente de Scho­
nas, mas primeiramente das próprias forças da natureza artista: penhauer no Nascimento da tragédia em dois pontos pelo me­
Até o momento, tratamos do elemento apolíneo nos. Por um lado, ele reduz a negação da vontade por ela mes­
e de seu oposto, o elemento dionisíaco, como po­ ma a uma negação do princípio de individuação; e nisto ele
tências artistas que surgem da própria natureza, wagneriza como já vimos acima. Por outro lado, identificando
sem intermédio do homem artista; é nelas que a o ser em si com a vontade de viver, ele torna possível uma exal­
natureza satisfaz ime diata e diretamente suas ne­ tação, uma alegria dionisíaca. Desde os primeiros textos de
cessidades de arte: de um lado, como um mundo Nietzsche começa portanto uma subversão da metafísica de
de sonho cuja realização não tem relação com o Schopenhauer: uma ontologia do pior dos mundos possíveis
nível intelectual ou a for mação artística do indiví­ que tem tão-somente o necessário para subsistir, é substituída '
duo e, de outro lado, como a realidade totalmen­
por uma ontologia da superabundância, incluindo tanto a ale­
te delirante que não cuida bastante do indivíduo,
gria dionisíaca como os terrores titanescos.
mas busca antes aniquilar o indivíduo, torná-lo li­
Por curtos instantes, nós somos realmente o pró­
vre numa impressão de unidade mística. Em com­
prio ser originário, sentimos sua sede inextinguí­
paração com as tendências da natureza para a
vel, sua volúpia de existir; o combate, o tormento,
arte, o artista humano não passa de um imitador'.
o aniquilamento dos fenômenos parece-nos en­
Nietzsche retoma aqui, sem dúvida, a expressão de Aristó­ tão uma necessidade com a superabundância das
teles, da arte como "imitação da natureza" que se manteve até inúmeras formas de existência que se compri­

os nossos dias no centro de todas as discussões em estética, mem e se acotovelam para viver, com a fecundi­

aliás com as interpretações mais diversas e muitas vezes mais dade inesgotável da vontade universal; o aguilhão
furioso dos tormentos nos transpassa no mesmo
opostas, tanto da noção de imitação como de natureza. De fato,
instante em que de algu ma forma nos fazemos
Nietzsche tira quase todo significado da argumentação tradi­
um com a imensa volúpia originária da existên­
cional, porque, se o homem artista não passa de um interme­
cia, em que esperamos a indestrutibilidade e a
diário para o poder artista da natureza, se ele é apenas penetra­ eternidade desta volúpia no êxtase dionisíaco.
do como indivíduo pelo poder criador, será preciso dizer que é Apesar do terror e da piedade, somos viventes
Apolo que esculpe ele mesmo sua própria estátua. bem-aventurados, não como indivíduos mas como
Aqui não somos tanto remetidos à estética própria de Scho­ o vivente único com o qual estamos em vias de
penhauer como à sua metafísica da vontade. Na "realidade da fundir-nos na volúpia de gerar•.

5. Nascimento da tragédia, § 2. Para designar a atividade produtiva, preferi­


mos a fonna adjetiva "artista", e não artística. 6. Ibidem, § 1 7.

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Passagem surpreendente que retoma Schopenhauer para com a parte, de um aspecto da sensibilidade com seu sistema
subvertê-lo melhor. Assim "a indestrutibilidade de nosso ser inteiro. Convém lembrar quejá Schopenhauer subordinava o
em si" está no título de um capítulo do Mundo no qual é citada intelecto à vontade, como o cérebro ao conjunto do organis­
a famosa fórmula de Spinoza: "Sentimos e experimentamos mo. Seja como for, é preciso fixar que o abandono da inter­
que somos eternos". Mas ao mesmo tempo a metafísica scho­ pretação metafísica e a passagem a uma linguagem psicofisio­
penhaueriana é refutada com o "contra-senso" wagneriano lógica não suprime a distinção entre os elementos dionisíacos
sobre a vontade universal. Para o pessimismo de Schopenhauer, e apolíneos, sem a conjunção dos quais o nascimento da tra­
a volúpia de gerar não é mais do que a pior das ilusões, aquela gédia teria sido impossível.
que oculta que a vida no fundo é sofrimento e que vivente e No momento em que nos despedimos da metafísica
bem-aventurado são termos contraditórios. O tema da 'justi­ schopenhaueriana, ou pelo menos de sua linguagem, ainda
ficação do mundo" presente em todo o Nascimento da tragédia, que com ela deva ser reinterpretada toda a filosofia ociden­
já umajustificação "além do bem e do mal", anuncia um novo tal a partir de uma filiação grega jamais totalmente esqueci­
pessimismo que o Ensaio de autocrítica, que serve de prefácio à da, onde estamos nós? A descoberta do dionisismo está no
terceira edição de 1881, chamará de "pessimismo da força". A fim de uma longa busca do mais elevado tipo de humanida­
descoberta do dionisismo não pode inscrever-se no dualismo de, até na Grécia arcaica de Heráclito e não mais na Grécia
fundamental do Mundo como vontade e como representação; isto Clássica de Platão e de Aristóteles. Mas o Dioniso grego, ca­
é, no estrito idealismo transcendental sempre reivindicado racterístico da vontade propriamente grega, aquele cuja ima­
por Schopenhauer. Mas então, além desse idealismo, o que se gem una e múltipla é o herói trágico, não é ou não é mais o
torna a oposição entre o deus da aparência e o deus do ser ori­ Dioniso bárbaro. Na sua união com Apolo, ele deu origem
ginário? Será que ela vai desvanecer-se com a distinção meta­ simultaneamente à tragédia e à filosofia dos pré-socráticos.
física entre o fenômeno e o em si? Nietzsche sempre a mante­ Pelo jogo das correspondências que ele está acostumado a
ve e no Crepúsculo dos ídolos o apolíneo e o dionisíaco se tor­ fazer entre o mais antigo e o mais recente, Nietzsche se per­
nam explicitamente "dois modos de embriaguez". Mas: gunta se não é ele mesmo o primeiro filósofo trágico, o su­
A embriaguez apolínea mantém excitado antes de
cessor direto dos pré-socráticos:
Neste sentido tenho o direito de me considerar
tudo o olho, e ele retém uma força de visão. O pin·
como o primeirofilósofo trágico - isto é, o extremo
tor, o escultor e o poeta épico são visionários por
oposto, o antípoda de um filósofo pessimista. Antes
excelência. No estado dionisíaco, ao contrário, é o
de mim, não houve esta transposição do dionisía·
conjunto do sistema dos afetos que é excitado e
co numa atitude filosófica; a sabedoria trágica faz
exacerbado até descarregar simultaneamente to­
falta - Eu ,mesmo fui buscar indícios dela entre os
dos os seus meios de expressão e fazer surgir ao
grandes filósofos gregos, os de dois séculos antes
mesmo tempo toda a sua força de representação,
de Sócrates. Restava-me uma dúvida a respeito de
de imitação, de transfiguração, de transformação,
toda espécie de mímica e de comédia'.
Heráclito junto de quem me sinto melhor, mais à
vontade do que em nenh u m outro lugar. A afir·
Doravante, a própria música não será mais do que uma mação da impermanência e do aniquilamento,
nova especialização para o sentido da audição. Esteticamente a decisão em favor de um filósofo dionisíaco,
pelo menos, a relação do dionisíaco e do apolíneo é a do todo o consenti mento com a contradição e a guerra, o
devir, a recusa da própria noção de "ser" -. em
tudo isso devo reconhecer, no que foi pensado
7. Crepúsculo dos ídolos. "Divagações de um inatual", § 1 0.

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até agora, em todas as circunstâncias, o que este­ Será que se pode afirmar, depois de Além do bem e do ma�
ve mais próximo de mim8• que Dioniso não passa de um símbolo, uma espécie de alego­
Mais uma vez, aqui não foi introduzida nenhuma perspec­ ria segundo a terminologia de Creuzer, primeiro a da criação
tiva histórica, propriamente falando: o pensamento de Nietz­ musical, até o momento de sê-lo da vontade de poder ou mes­
sche revela e esclarece a perspectiva de Heráclito assim como o mo do eterno retorno? Falar aqui de símbolo é muito fácil
pensamento pré-socrático da época trágica é revelado e escla­ para quem quer manter à distância o pensamento de Nietz­
recido por ela. Em múltiplas figuras, só há um único filósofo sche e evitar o questionamento de suas próprias convicções e
trágico, o próprio Dioniso. Pois, por mais surpreendente que crenças. Mesmo que a figura de Dioniso seja categoria estéti­
possa parecer, os deuses também filosofam; pelo menos é isto ca, princípio metafísico ou expressão da vida cósmica, ela não
que Nietzsche pensa poder admitir nas últimas páginas de deixa de ser enriquecida e precisada por oposições sucessivas
Além do bem e do mal. Pois ele conversou com Dioniso, o deus entre o Dioniso bárbaro e o Dioniso grego, entre o Dioniso
que "tenta" no duplo sentido de tentativa e de tentação: grego e Apolo, entre o dionisismo e o socratismo, e enfim en­
Foi isto que ele me disse um dia: "Eventualmente, tre o deus pagão e o deus cristão. A última seção de Ecce homo
eu amo os humanos - fazendo alusão a Ariadne intitulada: "Por que sou um destino" termina numa frase que
que estava presente. O homem é um animal agra­ resume todo o último parágrafo: "Será que fui compreendi­
dável, corajoso, engenhoso; ele não tem igual na do? Dioniso contra o Crucificado'"0•
Terra e, mesmo nos labirintos, ele consegue achar Mas Nietzsche sabe que dificilmente será compreendido,
seu caminho. Eu sou bom para ele, penso muitas mesmo por seus amigos para os quais o ateísmo é evidente,
vezes como poderei fazê-lo progredir e torná-lo
como foi para o jovem Nietzsche: "Pois, como me foi revelado,
mais forte, mais malvado, mais profundo do que
vocês não crêem facilmente em Deus nem nos deuses"11• Um
ele é". - "Mais forte, mais malvado, mais profun­
do?", perguntei apavorado. Sim, confirn10u ele,
fragmento de maiojunho de 1888 diz: "O próprio Zaratustra, é
"mais forte, mais malvado, mais profundo e tam­ verdade, é simplesmente um velho ateu: não acredita nos anti­
bém mais belo" - e neste momento o deus tentador gos nem nos novos deuses. Zaratustra diz que creria, mas ele
sorriu seu meio-sorriso alciônico, exatamente como não crerá ... Que ele seja bem compreendido"12• Aqui Nietzsche
se tivesse dito uma encantadora amabilidade". se refere à primeira parte de A.l:5imfalava Zaratustra : "Eu acre­
Devemos ver neste texto, redigido e publicado em plena ditaria somente num Deus que soubesse dançar"". Dioniso fi­
lucidez, apenas a utilização metafísica de um mito clássico que, lósofo com quem Nietzsche conversa çm Além do bem e do mal
aliás, teria sido singularmente modificado? Pelo menos ele per­ não é aquele deus de pés ligeiros? No fragmento que acabamos
mite compreender melhor e julgar por assim dizer menos in­ de citar é exatamente dele que se trata:
sensato que, nas suas últimas cartas, Nietzsche se tenha identi­ E como são numerosos os novos deuses ainda
ficado com Dioniso e que se tenha dirigido a Cosima Wagner possíveis! Em mim mesmo em quem o instinto re­
sob o nome de Ariadne. A mesma identificação com Dioniso ligioso, isto é , formador de deuses, se torna às ve­
zes vivo de modo intempestivo, com que diversi­
aparece nos Ditirambos de Dioniso, preparados para a impressão
dade e variedade o divino se revelou a mim! Algo
nos primeiros dias de 1889, e que são na maioria uma retoma­
da dos "Cantos de Zaratustra". Através da filosofia de Nietz­
sche, em última análise quem fala é o deus Dioniso.
10. Ecce homo. "Por que sou um destino", § 9.
1 1 . Além do bem e do mal, § 295.
8. Ecce homo. "O nascimento da tragédia", § 3. 12. Fragments posthumes 17 [5], tomo XIV, p. 273, maio:iunho de 1 888.
9. Além do bem e do mal, § 295. 13. Zaratustra, I, "Do ler e escrever".

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de tão extraordinário já me aconteceu nesses ins­ Quando "todas as coisas" preferem dançar com os p�s do
tantes fora do tempo que sobrevêm na nossa vida acaso, é que se trata exatamente de uma cosmologia, em con·
como se caíssem da Lua, quando já não se sabe traste com a vontade do Criador bíblico, racionalizado pela
absolutamente que idade se tem e que j uventude
teologia e pela metafísica. Nietzsche já havia notado isso ao
ainda nos restará... Não duvidaria que houve n u­
comentar o famoso fragmento de Heráclito sobre "Isto não é
merosos gêneJ."os de deuses ... Não faltam aqueles
um orgulho culpável, é o instinto de jogo incessantemente
aos quais não se deve recusar um certo alcionis­
despertado que apela para o dia dos mundos novos'18•
mo, uma certa ligeireza... ter pés ligeiros talve�
Pois o riso reúne em si toda a maldade do mun·
seja característico do próprio conceito de deu�·.
do, mas santific ada e libertada por sua própria fe­
Mas será que se representa o Deus cristão dançando? Ou licidade e se o alfa e o ômega de minha sabedoria
caberia representá-lo rindo?" Mais uma vez é Dioniso que de­ é que tudo que pesa deve tornar-se mais leve,
vemos reconhecer na criança divinajogando dados, longínqua todo corpo tornar-se dançarino, todo es pírito tor­
imagem heraclitiana. Uma teologia cristã certamente não pode nar-se ave - está efetivamente aqui o alfa e o ôme­
fazer da Criação o jogo de uma criança. Os comentaristas ten­ ga de minha sabedoria'•.
taram encontrar o simbolismo dessas representações; segundo Observe-se a característica que se dá aqui ao riso cuja
Gilles Deleuze: "A dança afirma o devir e o ser do devir; o rir, a maldade fundamental não é negada, mas superada "pela pró­
risada, afirmam o múltiplo e o uno do múltiplo; o jogo afirma pria felicidade"2�.
0 acaso e a necessidade do acaso"16• Mas isto seria sistematizar
Note-se também a freqüência das alusões de Nietzsche à
demais, sem dúvida; e Zaratustra , quando substitui a Criação lenda do pássaro alcião que faz seu ninho nas profundezas das
bíblica pelo "céu da contingência, o céu da inocência, o céu do ondas e amaina as tempestades. Alciônica é a sabedoria que su­
acaso, o céu do capricho", mistura a dança e o jogo. pera a infelicidade trágica sem desconhecê-la nem negá-la. O
Pode haver nisso um pouco de sabedoria, é verda­
deus terrível, o deus cruel, o deus destruidor é também o deus
de; mas aqui está a certeza divina que encontrei
risonho, o deus que ri com um riso "sobre-humano e novo". A
em todas as coisas; é com os pés do acaso que elas
famosa fórmula "Deus está morto" à qual se reduz com muita
preferem - dançar!
freqüência o pensamento de Nietzsche sobre a religião não
6 céu sobre minha cabeça, céu puro, céu alto! A
pretende abolir todo sentido do divino, ela não anuncia a in­
p ureza aos meus olhos é que não há mais eternas
consistência de toda crença, mas anuncia a possibilidade, além
aranhas, eternas teias-de-aranha da razão.
do deus cristão, de um retorno de Dioniso. Esta ou aquela
É que tu me apareces como uma pista de dança
crença pode ser abolida. Mas poderíamos refutar o instinto re­
para os acasos divinos, como uma mesa de jogo
ligioso? Nietzsche teve muitas vezes citada esta fórmula: "no
divina para os dados divinos e os divinos jogado­
fundo, só o deus moral é refutado". Não devemos entender que
res de dados ... ".
Nietzsche propunha uma reconstituição, seja lá qual for, de um

14. Além do bem e do mal, § 294. Não usamos aqui maiúscula para "deus". 18. A filosofia na época trágica.
15. Baudelaire observou bem que, numa cultura cristã, é inconcebível 19. Zaratustm, Ill, "Os sete selos". Conforme o apocalipse dejoão: "Eu
e blasfematório que Deus seja representado rindo ( Curiosités esthéti· sou o alfa e o ômega, diz o Senhor Deus. Aquele que é, que era e que vem,
ques, le rir e) . o Todo-Poderoso". Convém comparar com as banalidades habítuais.so­
16. G. Deleuze. Nietz.sche et la philosophie (últimas linhas antes da conclusão). bre o efeito moralizador do riso (por exemplo Bergson.Le rire).
17. Zaratuslra, IH, "Antes da aurora". 20. Caia ciência, § 294.

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neopaganismo como foi tentado às vezes no fim do século
XIX; é exatamente de uma filosofia que se trata, de uma filoso­
fia trágica da qual a Antigüidade talvez só tenha conhecido um
breve esboço, de uma filosofia que não poderia negar o divino
(theion), sem desconhecer a própria vida, de uma filosofia sem
teologia, mas não sem "theiologia".
PARTE II
É aqui que situo oDioniso dos gregos: a aquiescên­ A crític a genealógica
cia religiosa à vida, à vida em sua totalidade, sem
nada dela reviver ou suprimir (Tipicamente, o ato
sexual evoca profundidade, mistério, respeito).
Dioniso contra o crucificado: eis aí a oposição.
Não é uma diferença quanto ao martírio deles ­
mas este martírio tem um outro sentido. A própria
vida, sua eterna fecundidade e renovação, supõe o
tormento, a destruição, a vontade de aniquilamen­
to. No outro caso, o sofrimento, o "crucificado
como inocente" causam objeção contra a vida e
trazem condenação contra ela. É fácil entender: o
problema é o sentido do sofrimento, isto é, se ele
tem um sentido cristão oti um sentido trágico. No
primeiro caso, ele deve ser o caminho que leva a
uma existência santificada; no segundo caso, a exis­
tência é considerada como suficientemente santifica­
da para justificar uma monstruosidade de sofri­
mento. O homem trágico consente até mesmo no
sofrimento mais agudo; ele é suficientemente for­
te, rico, bastante divinizante para isso; o cristão re­
nega até mesmo a sorte mais feliz na terra: ele é
bastante fraco, pobre, deserdado para sofrer ainda
com toda forma de vida. O deus na cruz é uma
maldição lançada sobre a vida, uma advertência
para livrar-se dela; -Dioniso cortado em pedaços é
uma promessa de vida: ele renascerá eternamente
e voltará sempre da destruição" .

21. Fragments posthumes 14 [89], tomo XIV, p. 63 (primavera de 1888).

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