Você está na página 1de 12

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E JUSTIÇA RESTAURATIVA:

Um relato do projeto de intervenção da Defensoria Pública

Ana Letícia de França1


Evelyn Paula Soares Matioski de Lima2
Patrícia Regina Olbermann Duda3

RESUMO:

Este artigo apresentará um recorte de um projeto de atendimento a mulheres em situação da


violência doméstica, realizado na Defensoria Pública do Estado do Paraná, sob a perspectiva
da Justiça Restaurativa, a partir da metodologia dos Círculos de Construção de Paz. Essa
experiência faz parte de um projeto maior, desenvolvido em parceria com o Cejusc, que
trabalhará com os ofensores. Serão descritas as etapas desenvolvidas até o momento e os
dados já obtidos, discutindo as nuances do trabalho com este público e as reflexões que
servirão como base para o posterior trabalho em grupo.

PALAVRAS CHAVE: Mulheres em situação de violência doméstica. Justiça Restaurativa.


Círculos de Construção de Paz.

1. INTRODUÇÃO

O atendimento a mulheres que vivenciam situações de violência doméstica é delicado


e desafiador. Sem negar que o apoio é essencial, considera-se de igual importância que elas
possam refletir sobre seus padrões de comportamento e como a violência se perpetua
intergeracionalmente. Este artigo pretende relatar o trabalho desenvolvido pelo Centro de
Atendimento Multidisciplinar (CAM) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE), sede
de Ponta Grossa - PR na área da violência doméstica contra mulheres, com foco no projeto
de intervenção denominado Circulando Relacionamentos4 que está em desenvolvimento em
parceria com o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), com destaque
para as etapas já realizadas até o momento.
Conforme o Mapa da Violência 2015, entre os anos de 1980 e 2013, 106.093
mulheres morreram vítimas de homicídio (WAISELFISZ, 2015), dado que traz à tona a

1
Assistente Social da Defensoria Pública do Estado do Paraná - sede de Ponta Grossa. Graduada
pela UEPG. Especialista em Práticas Interdisciplinares Junto à Família pela UEPG e em Saúde Pública
com ênfase em saúde da família pela Uninter.
2
Assistente Social da Defensoria Pública do Estado do Paraná - sede de Ponta Grossa. Graduada
pela UEPG. Integrante do Grupo de Estudos em Justiça Restaurativa do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG.
3
Psicóloga da Defensoria Pública do Estado do Paraná - sede de Ponta Grossa. Graduada pela
Unicentro. Pós-graduanda em Psicologia Forense e Jurídica pela AVM - Faculdade Integrada.
Integrante do Grupo de Estudos em Justiça Restaurativa do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais Aplicadas da UEPG.
4
“Este projeto consiste em proporcionar aos envolvidos, adequado atendimento especializado com
fundamento nos princípios da Justiça Restaurativa, através de métodos autocompositivos, intrínsecos
de uma cultura de paz, para o enfrentamento da violência doméstica e familiar, por meio do diálogo,
empatia, empoderamento da vítima e responsabilização dos ofensores” (Projeto Piloto “Circulando
Relacionamentos”).
necessidade de manter, aprimorar e despertar atuações que identifiquem, denunciem,
apoiem e assistam as vítimas da violência e suas famílias.
Neste sentido, diante da necessidade emergente de atuar com esta demanda cada
vez mais recorrente em nossa sociedade e de integralizar o atendimento jurídico prestado
pela DPE, justifica-se o desenvolvimento do projeto. Esse atendimento é preconizado pela Lei
Maria da Penha (BRASIL, 2006), grande marco no combate a violência doméstica contra
mulheres, que depositou na Defensoria Pública o encargo de garantir à vítima o acesso ao
Juizado de Violência Doméstica, através de um atendimento específico e humanizado.
De acordo com a Lei Complementar nº 136, de 19 de maio de 2011, que estabelece a
Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado do Paraná, é função institucional da DPE,
dentre outras:

XI - exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do


adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da
mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais
vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (PARANÁ, 2011, grifo
nosso).

Assim, ressalta-se que, além de atuar juridicamente nos casos envolvendo violência
doméstica, a DPE tem a competência de realizar trabalhos extrajudiciais, através do CAM5,
em demandas que se apresentem como relevantes e de maior vulnerabilidade.
A equipe responsável pela elaboração e execução deste projeto é composta por duas
assistentes sociais e uma psicóloga e foi capacitada em Justiça Restaurativa pela Escola de
Magistratura do Paraná, por meio do Cejusc de Ponta Grossa. O curso proporcionou a
sensibilização e a apropriação de conhecimentos que se tornaram indispensáveis para a
atuação da equipe técnica com as demandas que são apresentadas a DPE, trazendo maior
resolutividade e eficiência para os atendimentos de maneira geral.
Conforme o autor Howard Zehr,

Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto


possível, todos aqueles que tem interesse numa determinada
ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos,
necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de
promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na
medida do possível (ZEHR, 2012, p.49).

Desta forma, a Justiça Restaurativa atua com base na reflexão, no diálogo e no


empoderamento das partes envolvidas no processo, tornando possível a reparação de danos

5
O Centro de Atendimento Multidisciplinar constitui órgão auxiliar da Defensoria Pública e tem por
finalidade promover o atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou servidores das diferentes
áreas que o compõe, em casos que a demanda pretendida pelo usuário ultrapasse o plano judicial
(PARANÁ, 2014).
e a restauração de segurança e dignidade dos envolvidos no conflito. As vítimas costumam
sentir que foram privadas do controle sobre sua própria vida, e esse trabalho pode restaurar
esse senso de poder (ZEHR, 2012). Neste sentido, o empoderamento das mulheres que
vivenciaram situações de violência doméstica se torna o foco principal do projeto.
A Justiça Restaurativa traz uma resposta inovadora às necessidades não atendidas
de vítimas e ofensores, fazendo da justiça um processo mais efetivo e consequentemente
mais transformador (ZEHR, 2012). Esta disciplina se torna uma importante aliada para o
trabalho com mulheres que sofreram violência doméstica na medida em que propicia a
reflexão sobre sua condição, não somente de vítima, mas como autora da sua própria história
e com capacidade de mudança.
Além disso, o trabalho com o ofensor torna-se fundamental na medida em que a
Justiça Restaurativa tem como maior foco, depois das necessidades da vítima, a
responsabilidade do ofensor.

O sistema de justiça penal se preocupa com responsabilizar os ofensores,


mas isto significa garantir que recebam a punição que merecem. O processo
dificilmente estimula o ofensor a compreender as consequências de seus
atos ou desenvolver empatia em relação a vítima. Pelo contrário, o jogo
adversarial exige que o ofensor defenda os próprios interesses. O ofensor é
desestimulado a reconhecer sua responsabilidade e tem poucas
oportunidades de agir de modo responsável concretamente (ZEHR, 2012, p.
27).

Neste viés, a responsabilização do ofensor tem impacto direto na redução e


probabilidade de futuras ofensas, propiciando o rompimento com o ciclo da violência.
“O encontro oferece a oportunidade para que as vítimas falem do mal sofrido, e para que os
ofensores o reconheçam como tal” (ZEHR, 2012, p. 56). Afinal, a punição sem um trabalho
concomitante não surte resolutividade para os comportamentos violentos.
Isso pode ser afirmado considerando-se que a cultura dos relacionamentos e dos
papeis de feminino/masculino em nossa sociedade construíram-se historicamente sob o viés
do patriarcado. Durante muito tempo as mulheres foram extremamente desvalorizadas e
tratadas como bens de propriedade dos homens (MARTINS & CARVALHO, 2012).
Martins e Carvalho (2012) apontam que o acúmulo de papeis sociais construídos para
a mulher até hoje lhe incumbem a missão de, além das atividades profissionais, zelar pelo
bem-estar da residência, do casamento, do marido e dos filhos, o que produz diminuição ou
até perda da autoestima e da identidade pessoal em detrimento do contexto familiar. Além
disso, salientam que à mulher também foi culturalmente atribuída a capacidade de enfrentar a
dor, exercer a docilidade e a paciência, apaziguar conflitos e ser cordial. Por estes motivos, a
mulher que enfrenta uma situação de violência doméstica pode, muitas vezes, sentir que cai
sobre si a responsabilidade de suportar a violência do companheiro para garantir a
continuidade da família, considerando que a situação é insolúvel e, por isso, aceitável,
calando-se perante seu sofrimento e não assumindo seu papel como pessoa portadora de
direitos.
Trata-se, assim, de uma questão de poder exercida na dimensão relacional de
homens e mulheres (MARTINS & CARVALHO, 2012). Toda essa questão, que é cultural, faz-
se presente em grande parte dos contextos e relações estabelecidas em nossa sociedade
atual. Homens e mulheres, naturalmente, pensam e agem a partir dessa herança patriarcal e
de diferenciação de gênero e assim reproduzem esse modo de ser e se relacionar.
Outro fato que produz a repetição dos padrões violentos de comportamento é a
convivência com a violência em sua própria vida. Gover, Kaukinen e Fox (2008 apud
OLIVEIRA e SANI, 2009) salientam que a exposição à violência durante a infância tem
relação direta com a ocupação de papeis de vítima ou agressor nos relacionamentos afetivos
da vida adulta. A pesquisa realizada por Paixão et al. (2015) corrobora a informação de que
grande parte das mulheres que vivenciam situações de violência doméstica presenciaram o
mesmo ocorrendo com seus pais. Informações do Balanço Central de Atendimento à Mulher
(BRASIL, 2015), que analisou os atendimentos realizados pelo disque denúncia entre os anos
de 2005 e 2015, revelam que 77,83% das mulheres em situação de violência doméstica
possuem filhos, sendo que 80,42% destes presenciaram ou também foram vítimas das
agressões.
Diante o exposto, considerando a amplitude deste projeto e seus objetivos,
salientamos que este artigo tem por objetivo destacar somente o trabalho que está sendo
desenvolvido com as mulheres, sendo que o trabalho desenvolvido com os homens ficou sob
a incumbência do Cejusc e não será objeto deste artigo.

2. METODOLOGIA

No intuito de garantir a concretização dos objetivos previamente estabelecidos,


seguiram-se algumas etapas de ação previamente organizadas, dentre outras que se fizeram
necessárias durante o trabalho. A efetivação do projeto se iniciou com o estabelecimento de
contato com os serviços da rede municipal de atendimento às mulheres em situação de
violência doméstica. O objetivo deste contato inicial era conhecer os serviços já oferecidos a
esse público no Município de Ponta Grossa, para que não se ecoassem atuações e também
para que se buscasse possíveis parcerias.
Após diversos contatos, acabou sendo firmada a parceria de trabalho com o Cejusc e
realizadas diversas reuniões para definição da metodologia de trabalho e organização do
fluxo de encaminhamentos de processos. Definiu-se como seria o acesso aos mesmos e os
critérios para seleção dos casos. Na sequência, os processos passaram a ser enviados à
DPE pelo Cejusc, realizou-se a leitura deles, elaborou-se um resumo de cada caso,
coletando-se os dados das mulheres e realizando-se as primeiras tentativas de contato
telefônico com elas. Neste contato, explicava-se os objetivos e funcionamento do projeto e
era feito um convite para uma primeira conversa na sede da DPE.
Este atendimento foi realizado individualmente a partir da metodologia dos pré-
círculos, etapa inicial do trabalho com Círculos de Construção de Paz, conforme apresentado
por Pranis (2010). Amparando-se pela Justiça Restaurativa enquanto disciplina, alguns
modelos de se operar as práticas dentro dos mais diversos contextos foram desenvolvidos,
sendo que Zehr (2012) destaca que uma das mais importantes é o Círculo de Construção de
Paz. Pranis (2010) aponta que estes são um método diferenciado para se trabalhar com
grupos em diferentes contextos, tanto para lidar com situações de conflito, quanto para se
trabalhar com relacionamentos e situações em que é necessário falar sobre dor, raiva e
outros sentimentos que podem mobilizar os seres humanos.
De acordo com Pranis (2010), os círculos reúnem pessoas com interesses comuns
em um espaço onde todos são tratados igualmente, oferecendo a possibilidade de dialogar
sobre suas experiências pessoais mais difíceis, de modo que possam ser de fato ouvidas e
respeitadas plenamente. A ideia central da filosofia que norteia esse trabalho é a de que
todos os participantes possuem sabedoria para transmitir aos demais e, por isso, todos
podem aprender com a experiência do outro através da contação de histórias. A partir dessa
preciosa troca, abre-se a possibilidade para uma ressignificação dos próprios problemas e
para se chegar a novas soluções.
Por todas essas particularidades da metodologia, optou-se por ela para o trabalho
com as mulheres. Assim, nos pré-círculos, cada potencial participante é convidado para uma
conversa individual com os facilitadores, que são os profissionais que conduzirão os círculos,
cujo papel é garantir um espaço seguro para os participantes e organizar as atividades,
atentando-se para as necessidades de todos e fazendo isso como um participante igual a
todos os outros (BOYES-WATSON; PRANIS, 2011).
Assim, neste pré-círculo conversou-se individualmente com as mulheres, explicando
sobre os círculos, objetivos do projeto e modo de funcionamento, fazendo-lhes o convite para
participar dos grupos e verificando sua disponibilidade de dias e horários para tal. Também, a
partir uma entrevista semiestruturada, suas histórias foram ouvidas, atentou-se para sua
relação com o homem que cometeu a violência contra elas, questionou-se como sua vida foi
afetada pela violência, quais suas expectativas para essa situação, qual o seu contexto
familiar e fontes de apoio, bem como seu nível de instrução foi avaliado, no intuito de preparar
adequadamente as atividades para os círculos. Além disso, os casos que apresentaram
necessidade de algum encaminhamento social ou jurídico receberam-no.
Após este contato inicial com cada mulher, depois de ter fechado o grupo, passou-se
para a elaboração dos círculos, pensando em atividades que permitissem que cada mulher
compartilhasse suas vivências com as demais, oferecendo-se suporte e identificando as
fontes de apoio para cada uma. Para além disso, as atividades foram pensadas de modo que
pudesse surgir um espaço de reflexão sobre o papel de cada uma delas no ciclo de
perpetuação da violência, a fim de que percebessem seus padrões de comportamento que
podem acabar conduzindo-as a novas situações semelhantes, influenciando também o modo
de se relacionar dos seus filhos e outras pessoas da família que tenham convivido com a
violência. Nesse sentido, trabalhar-se-á, conforme a definição de Pranis (2010), com “círculos
de diálogo”, que têm por objetivo explorar determinados assuntos a partir de vários pontos de
vista, de modo que os participantes sejam estimulados ao exercício da reflexão.
Para isso, serão abordados diversos aspectos durante os círculos. O início se dará
com atividades que objetivem desenvolver o vínculo entre as participantes e facilitadoras; na
sequência, buscar-se-á a identificação de elementos de relacionamentos positivos, seguido
de atividades relacionadas a autorreflexão e autoconscientização. Em seguida, serão
trabalhadas as injustiças da vida e o papel que cada pessoa assume perante elas, refletindo
sobre a perpetuação da violência em suas vidas e na de seus filhos e familiares, discutindo-
se para isso questões relacionadas a gênero. Continuamente será discutida a utilização de
máscaras para esconder as emoções e a importância de uma boa expressividade, finalizando
com a identificação de fontes de apoio. Destaca-se que, apesar de todos os círculos terem
sido previamente preparados, todos são passíveis de alterações, conforme as necessidades
percebidas no decorrer dos primeiros encontros.
Os círculos entre as mulheres ocorrerão em um total de cinco encontros. Depois disso
será realizado um círculo cruzado entre as mulheres e os homens que participarão das
oficinas no Cejusc. Este círculo cruzado será planejado de modo que os casais ou ex-
companheiros não se encontrem no mesmo grupo; para isso, serão realizados dois grupos
pelas facilitadoras, sendo que em um participarão três homens e três mulheres e, no outro,
dois homens e duas mulheres. As atividades realizadas neste círculo cruzado serão
planejadas posteriormente, em conjunto pelas facilitadoras do grupo de mulheres e do grupo
de homens, conforme as demandas que forem percebidas durante os encontros iniciais.
Ao final, será proposto aos participantes dos grupos a realização de um círculo
restaurativo entre mulheres e seus ofensores, conforme trabalho já realizado pelo Cejusc no
projeto Circulando Relacionamentos. Destaca-se que, apesar de acreditar-se que esse
encontro é importante e pode produzir significativas transformações na relação entre os
casais, estejam eles vivendo juntos ou não, bem como crer-se que os círculos deste projeto
aqui descrito possam produzir reflexões importantes como forma de preparar homens e
mulheres para um diálogo mais consciente e saudável, a participação neste círculo
restaurativo é voluntária, o que implica que ninguém será forçado a participar caso não se
sinta à vontade para isso.
3. AS ETAPAS DESENVOLVIDAS E OS DADOS COLETADOS

Ao surgimento da proposta de um projeto de atuação na área da violência doméstica a


preocupação precípua foi atender a demanda que se apresentava à DPE e que era percebida
pelo CAM como um assunto de extrema importância e passível de intervenção.
A partir desse entendimento, entrou-se em contato com o Núcleo de Estudos da
Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na Cidade de Ponta Grossa (Nevicom);
Ministério Público, através da 16ª Promotoria de Justiça desta comarca, cujo promotor
responsável indicou o Cejusc. Em uma primeira reunião, ambas as instituições, DPE e
Cejusc, firmaram uma parceria a fim de trabalhar a mesma temática: violência doméstica
contra a mulher. Decidiu-se então, conjuntamente, que a primeira ficaria responsável pela
abordagem com as mulheres e a segunda com os homens.
Após firmada a parceria, com o objetivo de oficializar e evidenciar o projeto, realizou-
se uma reunião entre o promotor da 16ª Promotoria de Justiça; juíza atuante na 4ª Vara
Criminal, responsável pelos crimes contra a mulher; coordenadoras e estagiários do Nevicom;
delegada da Delegacia da Mulher; coordenadoras do Cejusc, assim como a juíza responsável
pelo mesmo; e, representando a DPE, os três defensores públicos atuantes até então, assim
como equipe do CAM. Em tal encontro, os agentes envolvidos com o tema tomaram ciência e
posicionamento em relação ao projeto, dando assim maior visibilidade ao que estava sendo
almejado.
Disto posto, iniciou-se o planejamento das ações em união com as coordenadoras do
Cejusc, objetivando determinar uma linha ideológica a ser seguida por ambas as partes para
a confecção dos círculos com os homens e com as mulheres.
Definiu-se também que uma das coordenadoras ficaria responsável por entrar no
sistema Projudi6 para captar os processos que se enquadrariam no perfil que se buscava:
processos que envolvessem violência doméstica entre companheiros ou ex-companheiros.
Posteriormente, entrou-se em contato com as mulheres a fim de fazer-lhes o convite para
participar dos grupos e só a partir do momento em que houvesse 6 mulheres, seus
respectivos ofensores seriam intimados, via determinação judicial no processo, a participar
dos encontros no Cejusc.
A partir desta definição, 33 processos foram enviados para o CAM, cujos assuntos
principais, conforme descrito no processo, eram violência doméstica ou ameaça e que
objetivavam a concessão de medida protetiva.
Analisando os processos, os dados foram condensados e observou-se o seguinte: as
mulheres apresentaram idade entre 17 e 60 anos, enquanto a faixa etária dos homens foi de

6
O processo judicial digital, também chamado de processo virtual ou de processo eletrônico, pode ser definido como um
sistema de informática que reproduz todo o procedimento judicial em meio eletrônico, substituindo o registro dos atos
processos realizados no papel por armazenamento e manipulação dos autos em meio digital. Fonte:
https://projudi.tjpr.jus.br/projudi/
20 a 74 anos. Nos relatos constantes nos boletins de ocorrência, nos quais encontram-se os
últimos fatos que desencadearam a denúncia, percebeu-se as seguintes situações: violência
física 42,42%; violência psicológica (ameaças, intimidação, perseguição) 93,93%; violência
moral (ofensas) 48,48%; violência patrimonial (invasão de domicílio, depredação de objetos
pessoais) 18,18%. Notou-se também violência, seja ela física ou psicológica, envolvendo os
filhos (15,15%). Em relação ao consumo de álcool pelo ofensor, foram apontados em 3
relatos contidos nos processos (9,09%). Dos 33 pedidos de medida protetiva, 26 foram
concedidas (78,78%), 6 ainda estavam para decisão da juíza (18,18%) e apenas 1 (3,03%) foi
indeferido.
De todos esses processos conseguiu-se contato telefônico com 18 mulheres
(54,54%), porém muitas não demonstraram interesse por diversos motivos, dentre eles:
mudança de cidade, não desejar retomar o assunto, trabalhar o dia todo, ter medo de que o
ofensor possa vir a saber, entre outros. Através do contato telefônico 12 mulheres agendaram
horário para o pré-círculo, mas somente 6 compareceram, sendo que não foi possível contato
posterior com as ausentes. A partir destes primeiros encontros, tomou-se conhecimento da
história mais detalhada de cada uma.
Muitas destas mulheres sofreram algum tipo de violência desde o início do
relacionamento e não tiveram condições de se desvencilhar dele. Importante ressaltar que
não foi possível identificar, por meio dos processos, o tempo decorrido entre o fato e a
denúncia. Em relação a isso, salienta-se que muitos casos se referem a situações de
violência contínua, sendo que, muitas vezes, o fato que motivou a denúncia não foi o episódio
mais grave de agressão, mas, por motivos particulares de cada caso e que não podem ser
identificados pelo processo, foi o estopim para a realização da denúncia.
Isso deve produzir reflexões sobre o tempo que muitas mulheres permanecem
convivendo com a violência rotineiramente, sem conseguir empoderar-se ao ponto de tomar
uma atitude que possa livrá-las desse sofrimento. Essa informação é corroborada pelos
dados do Balanço Central de Atendimento à Mulher (2015), que apontam que 55,87% das
mulheres que relataram violência doméstica convivem com o agressor há mais de 05 anos.
Além disso, a mesma pesquisa demonstra que a violência ocorre diariamente em 38,72% dos
casos e semanalmente em 33,86% das situações. Os dados ainda trazem a informação de
que em 13,68% das situações a violência se iniciou já no primeiro ano de relacionamento do
casal e, em 30,45% dos casos, entre um e cinco anos de convivência.
Somente 4 mulheres aceitaram participar do projeto, o que foi considerado um número
aquém das expectativas. Notadamente algumas mulheres têm receio de falar sobre o que
vivenciaram, algumas indicaram medo do ofensor, que apesar da medida de afastamento
ainda mantém algum contato e sabem seu endereço e local de trabalho, ou temem pelos
filhos que mantêm contato com o genitor. Em relação a isso, Saffioti (2004 apud MARTINS e
CARVALHO, 2012) destaca que a violência doméstica acontece dentro da vida privada e
íntima da mulher e, por isso, tem-se espaço para os sentimentos de vergonha e medo em
expor sua situação, ferindo sua identidade pela humilhação a que são submetidas.
Duas situações foram peculiares na realização dos pré-círculos e impediram a
participação das mulheres interessadas: a primeira relacionada a uma questão no processo e
a outra devido ao receio da participante de que o ofensor, ao ser intimado para participar, a
responsabilizasse e ela sofresse alguma retaliação.
Além das 4 mulheres que foram contatadas através dos processos enviados, uma
outra participante chegou até o CAM por meio do atendimento realizado pelos assessores
jurídicos da DPE. Ela foi encaminhada após o reconhecimento da demanda e realizou-se o
pré-círculo, a partir do qual ela demonstrou interesse e aceitou participar do projeto. Chegou-
se então ao total de 5 mulheres participantes.
Analisando os processos e através dos relatos de algumas mulheres foi possível
identificar situações em que estas foram mal atendidas pelos órgãos de proteção, como
Polícia Militar e Delegacia da Mulher. Alegaram que não receberam orientação adequada,
que a forma de atendimento foi considerada agressiva e até mesmo que foram culpabilizadas
pela situação em que se encontravam. Essas situações podem ser compreendidas pela
ausência de compromisso do Estado perante o tema, deixando de investir na capacitação dos
profissionais e nos próprios serviços de atendimento às vítimas, o que acaba gerando a
sobrecarga de trabalho e emocional para as equipes, limitando a resolutividade das situações
(SILVEIRA, 2003?).
Algumas dificuldades obstaram a elaboração dos círculos com as mulheres pelo fato
de algumas delas não possuírem habilidade com a leitura e escrita, sendo assim as
atividades previamente elaboradas foram reorganizadas e adaptadas, visando não causar
qualquer desconforto e obter melhores resultados.
Com o objetivo de facilitar o acesso dos participantes no projeto, o Cejusc realizou
uma parceria com a Prefeitura Municipal de Ponta Grossa, que viabilizou vale-transporte para
todos os encontros em grupo que serão realizados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se trabalhar um assunto tão delicado como a violência doméstica com pessoas em


situações, muitas vezes, de extremo sofrimento e fragilidade, é essencial destacar o papel
dos profissionais na abordagem do público envolvido. Assim, por mais que possa parecer
óbvio, é fundamental salientar que é preciso tomar cuidado com o julgamento das pessoas
envolvidas, pois direcionar as partes para papeis estagnados de vítima (que precisa de
proteção) e agressor (que precisa de punição) não levaria além do que o sistema de justiça
tradicional executa.
Por esse motivo o foco do presente trabalho com mulheres que vivenciaram situações
de violência doméstica não é de as vitimizar, mas sim de promover reflexões que as tornem
conscientes sobre seu papel nos problemas que enfrentaram, de modo que, a partir da auto-
observação, possam assumir o controle de suas ações e empoderar-se para construir modos
de agir diferentes. Ao produzir essa análise reflexiva com as mulheres, pretende-se oferecer
meios para que elas possam romper com os ciclos de violência em suas vidas, que muitas
vezes se iniciaram quando eram crianças e, possivelmente, podem acabar se repetindo nos
seus relacionamentos posteriores e até mesmo de seus filhos.
No decorrer das etapas já realizadas do projeto, alguns fatos importantes foram
percebidos e merecem destaque. Primeiramente, um elemento importante foi a falta de
preparo de muitos profissionais que trabalham cotidianamente com casos de violência
doméstica, especialmente dos policiais que, na maioria das vezes, são os primeiros a ter
contato com a situação e com as partes. Os fatos observados em relação a isso evidenciam
que muitos guiam suas intervenções pela crença de que “mulher gosta de apanhar”, de que
“se continua com o homem que a agride é porque quer e, por isso, merece ser agredida”,
ideias estas construídas sob um viés cultural machista que ainda domina o discurso de nossa
sociedade e que desconsidera totalmente todas as vulnerabilidades a que a mulher está
exposta.
O fator mais preocupante acerca disso é de que, além de promover mais uma
violência contra a mulher que, afinal, acaba tendo seu direito de proteção negado, promove
na população a descrença no sistema de justiça e o silêncio perante a violência. Por esse
motivo, é essencial que os profissionais destas áreas sejam sensibilizados para a essencial
atenção e escuta qualificada que precisam exercer no trato com esse público e capacitados
para as particularidades da violência doméstica.
Além disso, outro aspecto que chamou bastante a atenção foi a dificuldade
encontrada para alcançar o número de mulheres previamente estabelecido para o grupo. Um
dos motivos para isso foi a dificuldade de contato telefônico com boa parte delas, mesmo que
a absoluta maioria tivesse um número de telefone indicado no Boletim de Ocorrência. Isso
nos leva a pensar também nas dificuldades das próprias autoridades judiciais estabelecerem
contato com elas, o que pode acabar as prejudicando em alguns aspectos.
Ainda, boa parte das mulheres com quem conseguimos estabelecer contato não se
disponibilizou a participar do grupo, muitas por não querer tocar mais no assunto pelo receio
de que, falando sobre, estariam revivendo o sofrimento vivenciado. Sobre isso, compreende-
se que seja uma temática extremamente delicada e que muitas delas não possuam estrutura
emocional para falar sobre; contudo, todas precisaram desenvolver a estrutura psicológica
para enfrentar a violência. Por isso, certamente já foram muito fragilizadas e tem-se a
preocupação de que, sem discutir o assunto, possam acabar não conseguindo se fortalecer e
desenvolver a reflexão necessária para que esse ciclo não se repita em sua vida futuramente.
Salienta-se que os serviços de proteção à mulher precisam encontrar meios de aproximar-se
ainda mais desse público, abrindo as portas também para aquelas que não identificaram a
ajuda de que necessitam.
Destarte, é fundamental apontar a importância das redes de apoio, tanto as pessoais
quanto as públicas, para a manutenção dos efeitos que este projeto tem a pretensão de
produzir. Isso porque alcançar uma mudança de postura diante de uma situação de violência
exige reflexão e empoderamento por parte da mulher, mas também requer a existência de um
suporte para os momentos em que as necessidades extrapolarem as possibilidades da
mulher. É essencial ter familiares e/ou amigos para quem ela possa recorrer quando precisar
de ajuda. É importante ter serviços com profissionais capacitados para dar suporte
psicológico, social e jurídico, instrumentalizando a pessoa para momentos de dificuldade. É
necessário ter políticas que permitam que todos esses atores sociais tenham onde se
respaldar para oferecer suporte. Por fim, é preciso que as mulheres identifiquem e tomem
conhecimento dessas fontes de apoio para saber a quem podem recorrer.
Como até este momento apenas os pré-círculos foram realizados, não temos a
possibilidade de avaliar a adequabilidade da utilização da Justiça Restaurativa e Círculos de
Construção de Paz para o trabalho em grupo com mulheres que vivenciaram situações de
violência doméstica. Esperamos que essa metodologia permita uma maior expressividade e
reflexão acerca dos temas abordados, mas só saber-se-á se isso de fato ocorrerá ao final do
trabalho.
Analisa-se, por fim, que este projeto está sendo executado por profissionais com
objetivos específicos guiados pela necessidade de atendimento de uma demanda social.
Contudo, a Justiça Restaurativa requer que o trabalho vá além de um fazer profissional e
tecnicista, pois exige disponibilidade e entrega pessoal no trato com o outro. Por isso,
salienta-se que as executoras deste projeto são profissionais que, antes disso são mulheres
e, acima de tudo, são seres humanos. Afinal, como bem afirmou o psiquiatra suíço e fundador
da psicologia analítica Carl Gustav Jung, “Conheça todas as teorias, domine todas as
técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”.

5. REFERÊNCIAS

BOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. No coração da esperança: Guia de práticas


circulares. Trad.: Fátima de Bastiani. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2011.

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei N.°11.340, de 7 de Agosto de 2006.

_______. Secretaria de Políticas Para as Mulheres. Balanço central de Atendimento à Mulher.


Brasília (DF): 2015. Disponível em <http://www.spm.gov.br/central-de-
conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/balanco180-10meses-1.pdf> Acesso em 01 jul.
2016.

PARANÁ. Defensoria Pública do Estado do Paraná. Deliberação nº 19 de 2014.

________. Defensoria Pública do Estado do Paraná. Lei Complementar nº 136, de 19 de


maio de 2011.

MARTINS, Cláudia Cristina Rodrigues; CARVALHO, Maria Cristina Neiva de. O papel da
mulher na perpetuação do conflito doméstico no âmbito da justiça: realidade e
superação. In CARVALHO, Maria Cristina Neiva de. Sistemas de justiça e direitos humanos.
Curitiba: Juruá, 2012.

OLIVEIRA, Madalena Sofia; SANI, Ana Isabel. A intergeracionalidade da violência nas


relações de namoro. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Porto:
Edições Universidade Fernando Pessoa, 2009. Disponível em
<http://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/1325/1/162-170_FCHS06-6.pdf> Acesso em 01 jul.
2016.

PAIXÃO, Gilvânia Patrícia do Nascimento; et al. Mulheres vivenciando a intergeracionalidade


da violência conjugal. Rev. Latino-Am. Enfermagem. Ribeirão Preto, v. 23, n. 5, p. 874-879.
Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v23n5/pt_0104-1169-rlae-23-05-00874.pdf>
Acesso em 01 jul. 2016.

PRANIS, Kay. Processos Circulares. Trad.: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena,
2010.

SILVEIRA, Lenira Politano da. Serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência.


2003?. Disponível em <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/lenirapdf.pdf> Acesso
em 01 jul. 2016.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil.


Brasília: Flacso Brasil, 2015. Disponível em:
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acesso em
01 jul. 2016.

ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Trad.: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena,
2012.

Você também pode gostar