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“A autonomia da vontade é a qualidade da vontade pela qual ela é uma lei para si mesma
(independentemente de toda qualidade dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto:
não escolher de outro modo senão de tal modo que as máximas de sua vontade também estejam
compreendidas ao mesmo tempo como lei universal do mesmo querer” (KANT, 2009:285).
A análise deste trecho exige que, inicialmente, tracemos algumas breves considerações sobre
a maneira como o pensamento de Kant é estruturado. Assim, primeiramente, Kant, em
“Crítica da Razão Pura” (1999) concebe o conhecimento como sendo dividido em duas partes,
quais sejam, o conhecimento teórico – dependentes de uma fonte lógica – e o conhecimento
prático – relacionados a uma fonte sensível. O primeiro refere-se ao conhecimento ou razão
pura (a priori), que diz respeito a proposições universais e necessárias, enquanto o segundo
relaciona-se ao conhecimento empírico (a posteriori), dependente da experiência.
A partir disso, temos que o conhecimento não poderia preceder a experiência, de modo que
ele seria, de algum modo, dependente do fenômeno que ocorre no espaço-tempo. Não
obstante, essa dependência não implica exatamente estar completamente atrelado ao dado
sensível segundo uma relação de causalidade. Como ressalta Kant (1999:53): “mas embora
todo nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso ele se origina justamente
da experiência”. Com efeito, há, em Kant, uma divergência em relação aos empiristas – para
os quais somos afetados pela realidade e, a partir disso, formamos nossas ideias (postura
passiva) –, na medida em que, para ele, o homem assume uma postura ativa perante a
realidade, uma vez que eu percebo as coisas no espaço-tempo. Isso porque Kant também
realiza uma diferença (através da “crítica”) no que concerne aos objetos: estes seriam,
concomitantemente, coisas-em-si (essência) e fenômenos (aparência), de modo que a nossa
relação com o mundo só permite que nos relacionemos com as coisas enquanto fenômenos,
isto é, na medida em que elas são percebidas por nós mesmos. Assim, as categorias de espaço
e de tempo estariam em nós – sujeitos – e não nos objetos, uma vez que são elas que nos
permitem a percepção.
que poder pensá-los” (1999:43). Daí temos a possibilidade da liberdade através dessa razão
especulativa, e não através do conhecimento empírico propriamente dito.
A partir desta breve introdução, podemos tomar com mais clareza, neste momento, a
“Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (2009), livro de Kant ao qual pertence a
citação que se coloca sob análise. Em primeiro lugar, neste, encontramos uma outra
diferenciação fundamental estabelecida pelo autor, qual seja, entre a filosofia pura e a
empírica. Isso significa que, para Kant, todo conhecimento racional implica tanto uma relação
com um substrato material (a posteriori) quanto com um dado formal (a priori). Como
consequência, temos que mesmo ciências como a física e a ética, que se pautam
especialmente em dados materiais, seriam passíveis de serem “depuradas” de maneira a se
encontrar uma razão pura que as defina. Este seria a tarefa da “metafísica dos costumes” – a
crítica da razão pura prática, em contraposição à crítica da razão pura, ou metafísica
especulativa – a qual buscaria definir um princípio supremo da moralidade aplicável a todos
os seres racionais.
Ora, no que concerne à moralidade propriamente dita, Kant inicia este texto questionando-se
sobre o que poderia ser efetivamente considerada uma boa vontade, de modo a chegar,
inicialmente, à seguinte conclusão: o que é moralmente bom não basta estar apenas de acordo
com a lei moral, mas deve cumpri-la por amor a esta lei. A boa vontade estaria, então, ligada a
algo incondicionado – daí sua autonomia –, ou seja, não poderia depender das condições
práticas para ser ou não cumprida. Além disso, essa boa vontade não seria assim denominada
por sua finalidade ou por aquilo que realiza de fato, mas porque possui, em si mesma, seu
pleno valor. Este seria seu valor absoluto.
Neste sentido, a vontade que se manifesta como fruto da razão distingue-se do instinto, na
medida em que este seria mais adequado para a conservação da vida – no caso de esta ser a
finalidade última da natureza. Como ressalta o autor:
“Uma ação praticada por dever tem seu valor moral, não no
propósito que com ela quer atingir, mas na máxima que a determina;
não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente
do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo de todos os
objetos da faculdade de desejar, foi praticada” (KANT, 1980:114).
Essa passagem é fundamental para compreender essa aparente dialética do pensamento
kantiano, a saber, a que determina uma relação intrínseca entre um princípio a priori (formal)
e um princípio a posteriori (material). Assim, é somente porque somos providos de uma
“vontade” que podemos agir não apenas em conformidade com a lei ou com o dever – fruto
de uma inclinação por conta de um interesse ou por temor, ou de uma relação de causa e
efeito – mas, sim, que podemos nos posicionar ativamente e escolher agir por dever à lei,
mesmo que em detrimento de minhas inclinações naturais. Distintamente do restante da
natureza, na qual haveria uma coincidência (identidade) entre a lei e a ação em conformidade
com essas leis, haveria, nos seres racionais, uma divisão da própria lei numa base objetiva (a
lei propriamente dita) e numa subjetiva (a vontade, o respeito subjetivo por esta lei), as quais
não se relacionam segundo um princípio de identidade. Assim, uma vontade somente seria
“boa” na medida em que é plenamente determinada pela razão, algo que não ocorre de
maneira automática e certa no que diz respeio ao homem, uma vez que ele estaria sujeito ao
contingente (sua própria vontade). Ao mesmo tempo em que isso comprovaria certa
imperfeição do ser humano – uma vez que sua subjetividade não coincide necessariamente
com a lei objetiva, o que levaria ao “bom” – é através da vontade, ou dessa razão prática
(distinta da razão especulativa), que o homem pode agir segundo seus princípios subjetivos –
as máximas – de modo a ser incondicionado e livre.
É dessa abordagem que surge o conceito de imperativo, que se expressa por meio do verbo
dever, ou seja, como uma obrigação ou um mandamento. Tal conceito, enquanto se mostra
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como obrigação apenas perante determinada situação, considerando seus possíveis efeitos,
classificar-se-ia como um imperativo hipotético – que pode ser problemático, quando
envolvem habilidades para que certos fins sejam atingidos, ou assertórico, o qual coloca a
própria felicidade humana como finalidade última. Em ambos os casos, no momento em que
fossem excluídas as finalidades dessa inclinação, esta perderia automaticamente seu valor.
Não obstante, apenas na medida em que essa obrigação se exprime como uma necessidade de
determinada ação tomada por si só, como fim em si mesma e sem levar em conta quaisquer
efeitos práticos possíveis, é que ela adquire um valor intrínseco a si mesma e que podemos,
então, classificá-la como um imperativo categórico, ou seja, um princípio da razão que se
torna válido para todos os demais seres humanos ou racionais, garantindo, portanto, um
assentimento universal e uma imparcialidade, isenta de contradições ou exceções. Como
esclarecido por Kant (1980:129): “o imperativo categórico é portanto só um único, que é
este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal”. Ou ainda em outro trecho:
categóricos podem ser considerados como tais e, mais do que isso, que eles podem tornar-se
universalmente aplicáveis – isto é, a todos os seres racionais. Portanto, temos que “a vontade
não está, pois, simplesmente submetida à lei, mas submetida de tal maneira que ela tem
também de ser vista como autolegisladora e, justamente por isso, submetida afinal à lei (da
qual pode se considerar autora” (KANT, 2009:251-253).
Bibliografia
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999.
_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, In: Textos Selecionados/ Immanuel
Kant. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Barcarolla/Discurso,
2009.