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FUNDAMENTOS DA PSICOTERAPIA

FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL1

Bruno Barbedo Carrasco2

Resumo​:
Este artigo tem como intuito apresentar os embasamentos filosóficos e metodológicos da
psicoterapia fenomenológico existencial: a filosofia existencialista e o método fenomenológico,
destacando sua particularidade no modo de encarar a existência humana e de proceder o processo
psicoterapêutico. O existencialismo oferece um olhar sobre a condição humana enquanto algo não
definido, livre para fazer escolhas e em constante transformação, que se constitui em seu existir
concreto por meio de sua experiência singular, imerso no mundo e na relação com as pessoas,
espaços e consigo mesmo. O método fenomenológico oferece uma abertura para o entendimento das
singularidades da existência em seus modos próprios de se manifestar, buscando compreender as
distintas características e disposições de cada indivíduo, evitando pressuposições ou conceitos prévios
sobre a pessoa, buscando captar o modo como se revela a cada encontro.

Palavras-chave: ​Psicoterapia, Existencialismo, Fenomenologia, Psicologia.

Introdução

O presente trabalho pretende oferecer uma breve revisão dos fundamentos filosóficos
da psicoterapia fenomenológico existencial, expondo seus norteamentos teóricos, iniciando
com a filosofia existencialista e seu entendimento sobre a existência humana, e o método
fenomenológico, que indica atitudes para se aproximar da existência em seus distintos modos
de ser e se expressar.
Existencialismo é uma filosofia contemporânea que compreende a existência em sua
manifestação concreta, singular e afetiva, entendendo o ser humano como livre para fazer
escolhas e responsável por elas, porém sempre aberto a novas possibilidades e escolhas. A

1
Artigo aprovado como conclusão da Pós-graduação em Psicologia Existencial Humanista e Fenomenológica, pela
Faculdade Venda Nova do Imigrante, em abril de 2020.
2
Psicoterapeuta existencial e professor, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em
Ensino de Filosofia, especializado em Psicoterapia Fenomenológico Existencial.
fenomenologia se apresenta como um método para acessar a subjetividade e singularidades,
do modo como cada um se apresenta, partindo da captação pré-reflexiva de mundo.
O intuito desta pesquisa é explorar os pressupostos filosóficos e o entendimento sobre
as teorias que servem de embasamento para a prática da psicoterapia fenomenológico
existencial. Pretende-se, portanto, responder algumas questões partindo do existencialismo e
da fenomenologia sobre o entendimento de ser humano, e sobre o modo como proceder a
análise da existência humana, de acordo com estas vertentes.
As psicoterapias fenomenológico existenciais dispõem uma maneira específica de olhar
para a existência humana, entendendo esta como um processo e não enquanto algo fixo, mas
sempre aberto à transformações, constantemente afetada pela relação com as outras pessoas
e objetos, presente no mundo, aberta a novos entendimentos de mundo e de si mesmo. O
método fenomenológico se coloca como um meio para acessar a subjetividade e a relação
afetiva da pessoa com o mundo, com os outros e consigo mesma, se aproximando de seus
modos de ser, de sua consciência de mundo e de si.
O trabalho se iniciará com a descrição dos fundamentos teóricos, filosóficos e
conceituais da psicoterapia fenomenológico existencial, para depois apresentar a psicoterapia
fenomenológico existencial. Deste modo, espera-se possibilitar uma introdução sobre esta
vertente de psicoterapia, que por ser pouco conhecida, acaba sendo erroneamente
confundida com a Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, a Gestalt-Terapia, de Fritz
Perls, ou a Psicoterapia Existencial Humanista, de Rollo May.
Para a pesquisa foram utilizados alguns dos livros mais relevantes publicados sobre
existencialismo e fenomenologia, juntamente com artigos sobre os temas abordados. ​Essa
necessidade de voltar aos fundamentos é justamente com o intuito de oferecer um breve
entendimento sobre as bases para que se possa compreender melhor a prática.
1. Existencialismo

O termo ‘existencialismo’ é resultante da soma da palavra ‘existência’ com o sufixo


‘ismo’. Segundo Penha (2014, p.11), a palavra ‘existência’ é uma derivação do verbo existir,
que se origina do latim ​existere,​ cujo significado corresponde a “sair de uma casa, um
domínio, um esconderijo. Mas precisamente: existência, na origem, é sinônimo de mostrar-se,
exibir-se, movimento para fora.”
O existencialismo enquanto vertente de filosofia possui influências de diversos
filósofos, como Sören Kierkegaard (1813-1855), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin
Heidegger (1889-1976), e outros que contrariaram boa parte das bases da filosofia ocidental
desde a Antiguidade até a Idade Moderna. Porém, foi por meio do filósofo francês Jean-Paul
Sartre (1905-1980) que o existencialismo tomou corpo enquanto filosofia. Sartre se assumiu
enquanto existencialista e destacou o existencialismo como uma filosofia do engajamento e
da ação, evidenciando a responsabilidade de cada pessoa por sua existência.
Reynolds (2014) destaca alguns dos temas fundamentais tratados pelos
existencialistas: a liberdade, a morte, a finitude, a experiência fenomenológica, a angústia, a
náusea, o tédio, a autenticidade e a responsabilidade. Segundo ele, eventos como a Segunda
Guerra Mundial e a ocupação alemã na França, possibilitaram um maior questionamento
sobre questões como a liberdade, a responsabilidade e a morte. Segundo Penha (2014), o
existencialismo foi a corrente filosófica mais discutida entre as décadas de 1940 e 1950.
No livro ‘O existencialismo é um humanismo’, Sartre cita sua célebre frase “a existência
precede a essência” (2014, p.18), argumentando que este é o primeiro princípio do
existencialismo, complementando que “o homem nada é além do que ele se faz” (2014,
p.19). Segundo ele, não há nenhuma definição prévia sobre o ser humano com relação aos
seus modos de ser, de se relacionar e de se colocar no mundo. Cada pessoa se constrói na
prática da vida concreta, na relação com outras pessoas e por meio das escolhas que faz.

Que significa, aqui, que a existência precede a essência? Significa que o


homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida.
Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele
não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será
aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há um Deus
para concebê-la. (SARTRE, 2014, p.19)

O conceito essência, segundo a tradição filosófica, refere-se ao que é previamente


determinado, que caracteriza algo ou de um ser, antes mesmo de sua existência concreta,
neste sentido, a existência seria resultante desta essência. A filosofia existencialista se
contrapõe ao pensamento essencialista, entendendo a existência como resultante da própria
existência, e não de uma essência.
Foulquié (1975) descreve o existencialismo partindo de sua diferença para com o
essencialismo. Para ele, até o século XIX, o pensamento essencialista prevalecia, e a filosofia
não questionava a primazia da essência sobre as pessoas, seja no mundo das ideias de Platão,
nas categorias em Aristóteles, nas essências da escolástica, inclusive nas ideias inatas de René
Descartes (1596-1650). Todas estas filosofias consistiam em tendências que priorizavam as
essências em detrimento da existência.

O existencialismo surge, pois, como uma teoria que afirma o primado ou a


prioridade da existência. Mas em relação a que afirma este primado ou
prioridade? Em relação à essência. (FOULQUIÉ, 1975, 7p.)

Para a filosofia essencialista, a essência corresponderia a algo universal que caracteriza


um ser, enquanto que a existência seria a disposição para colocar em ato tal essência. O
existencialismo, pelo contrário, considera a existência como prioridade ao invés da essência.
Para o existencialista, a existência não é uma realização de uma essência previamente
definida, mas uma experiência que constitui o que podemos chamar de essência.

Como indica a própria palavra, o existencialismo caracteriza-se sobretudo pela


tendência de colocar o acento na existência. O existencialista desinteressa-se
das essências, dos possíveis, das noções abstratas: situa-se nas antípodas do
espírito matemático; seu interesse dirige-se ao que existe, ou melhor, à
existência daquilo que existe. (FOULQUIÉ, 1975, 37p.)
Uma tendência muito presente desde a filosofia aristotélica, que também foi utilizada
pela ciência moderna, é olhar para as coisas partindo de categorias que são estabelecidas de
acordo com suas semelhanças com outras coisas, separando estas por suas diferenças. Essa
tendência de olhar para as categorias prévias, ao invés de olhar para as coisas, nos impede de
perceber as singularidades e distintas particularidades sobre o que observamos.
Para Foulquié (1975), o existencialismo também se coloca contrário à este
intelectualismo, que prioriza a racionalidade e a objetividade. Contrariando esses suposições
meramente teóricas sobre a existência humana, o existencialismo parte do entendimento de
que é impossível fixar regras prévias para a vida e para os modos de ser de cada indivíduo,
buscando olhar para a singularidade ao invés das generalizações.
A existência é um privilégio do ser humano, não é tida como algo pronto ou
previamente determinado, tal como acreditavam os filósofos essencialistas, mas enquanto
um constante tornar-se, em permanente transformação. Por conta disso, a existência humana
implica na liberdade, pois para existir precisamos, necessariamente, fazer escolhas. É por
meio da relação que estabelecemos com os lugares, com os objetos e com as pessoas,
juntamente com as escolhas que fazemos, que constituímos nossos modos de existir.

(...) eu sou bonito ou feio, filho de proletário ou de ilustre ascendência, chove


ou faz calor… diante destes fatos sou impotente. Mas sou senhor de minha
atitude à respeito destas maneiras de ser, independentes de mim: posso
orgulhar-me ou envergonhar-me delas, aceitá-las ou insurgir-me contra elas.
Eu não as escolho, mas escolho a forma como as considero, ou, no dizer dos
existencialistas, eu as assumo. (FOULQUIÉ, 1975, 46p.)

Essa liberdade de fazer escolhas, segundo o entendimento existencialista, não consiste


em vivenciar momentos do modo como desejamos ou esperamos, mas escolher o que fazer
diante das distintas situações, circunstâncias e adversidades que atravessamos.
Segundo o existencialismo, todos somos livres para fazer escolhas e direcionar a nossa
existência, de acordo com nossas condições e possibilidades. Porém, não temos nenhuma
garantia sobre o que pode acontecer por conta de um caminho que escolhemos seguir, de
modo que toda escolha é um risco, e isso nos gera uma sensação de angústia.
Por não termos uma essência que nos defina e que nos constitua, somos nós os únicos
responsáveis pelas escolhas que fazemos, e isso nos torna responsáveis por nossa existência,
pela pessoa que vamos nos tornar, a cada escolha que fazemos, a cada momento que
escolhemos, estamos também escolhendo a nós mesmos, a pessoa que seremos.

Mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo


que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem
em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade
total por sua existência. (SARTRE, 2014, 20p,)

Toda pessoa pode, em certo sentido, e de acordo com suas possibilidades e condições
externas, escolher o que fazer de si mesma, a todo momento de sua existência. O que não é
possível, segundo Sartre (2014), é não escolher. É neste sentido que ele declara que “o
homem está condenado a ser livre” (Sartre, 2014, 24p.), ou seja, a liberdade não é uma
opção, mas uma condição da existência humana. Enquanto condição implica em estarmos
sempre escolhendo o que vamos fazer de nossa existência.
Como não há uma essência prévia que determine nossa existência e nossos modos de
viver, não há também um sentido previamente estabelecido sobre como viver a vida. Essa
constatação pode parecer por demais angustiante, mas é também libertadora. Segundo o
existencialismo, o sentido da vida pode ser acolhido, abraçado ou criado.

Sem a orientação de regras universais de moralidade, da natureza humana ou


de um Deus cognoscível, que emitiu certos mandamentos indiscutíveis (e
várias teologias podem acordar com isso), devemos dotar o mundo de
significado e somente nós podemos fazer isso. Devemos realizar este ato de
fé: criar o significado em que buscamos viver. (REYNOLDS, 2014, 17p.)

A escolha que cada um faz sobre sua existência é acompanhada, segundo Kierkegaard,
pelo temor e por uma falta de tranquilidade, pois apesar de todas as nossas avaliações e
deduções racionais sobre o que iremos escolher, nunca teremos certeza de que uma de
nossas escolhas será tal como desejamos ou esperamos, ou mesmo que será melhor do que a
outra que não escolhemos. Neste sentido, toda escolha que fizermos será sempre um risco, e
cada escolha implica na negação de outras possibilidades de escolha.

2. Fenomenologia

O termo ‘fenomenologia’ foi utilizado por diversos autores, com intenções distintas.
Etimologicamente significa o estudo ou a ciência dos fenômenos, sendo os fenômenos aquilo
que aparece. Seu estudo se iniciou entre o final do século XIX e início do século XX, com o
filósofo e matemático Edmund Husserl (1859-1938), tendo sido continuado e transformado
por filósofos como o alemão Martin Heidegger (1889-1976), os franceses Jean-Paul Sartre
(1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), entre outros.
Apesar da existência de autores anteriores a Husserl que utilizaram este termo, como
Hegel ou Kant, é com Husserl que a fenomenologia segue um novo caminho, que irá
influenciar boa parte da filosofia, da psicologia e do modo de se praticar ciências humanas no
século XX em diante, partindo do entendimento de que “o sentido do ser e o do fenômeno
não podem ser dissociados” (Dartigues, 2008, 11p.)
Partindo de um questionamento sobre a ciência positivista e sobre a filosofia idealista,
criticando o uso do método das ciências naturais na psicologia e nas ciências humanas, a
fenomenologia surge como um contraponto e uma nova perspectiva de se fazer ciência que
começa a aparecer entre o final do século XIX e início do século XX.

Entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas


deve, pois, existir uma terceira via, aquela que antes de todo raciocínio, nos
colocaria no mesmo plano da realidade ou, como diz Husserl, das “coisas
mesmas”. (DARTIGUES, 2008, 18p.)
A fenomenologia é uma ciência da subjetividade, que busca olhar para o fenômeno do
modo como este se mostra por si mesmo, libertado de seus encobrimentos, teorizações e
interpretações sobre este. Trata-se de um método que busca descrever os fenômenos do
modo como são experimentados subjetivamente.
Se apresenta, portanto, como um método de acesso à subjetividade, que não pretende
encontrar razões metafísicas ou descrever as coisas de maneira objetiva, mas se aproximar do
modo como sentimos e apreendemos o mundo. Para Cerbone (2012, 20p.), a fenomenologia
“está precisamente ocupada com os modos pelos quais as coisas aparecem ou se manifestam
para nós, com a forma e estrutura da manifestação”. Trata-se, portanto, de uma busca da
compreensão das coisas como são captadas, do modo como são captadas.

A fenomenologia tem por objeto as coisas que se manifestam ou se mostram,


tais como se manifestam os fenômenos; neste sentido, as coisas constituem
aquilo que é rigorosamente dado, aquilo que eu encontro e que é, para mim,
originalmente presente. (...) É a filosofia do inacabamento, do devir, do
movimento constante, onde o vivido aparece e é sempre ponto de partida
para se chegar a algo. (LIMA, 2014, 12-13p.)

Trata-se de um método utilizado para distintas abordagens de psicologia que possuem


como foco a subjetividade e as emoções, tais como a Psicoterapia Existencial, a Abordagem
Centrada na Pessoa, a Gestalt-Terapia, entre outras. Ao contrário das abordagens objetivas e
interpretativas, este método busca captar o que se mostra, do modo como é experimentado
pela pessoa.
O método fenomenológico consiste num esforço para ir de encontro com as
experiências subjetivas sem estar permeado pelas especulações teóricas, mas também sem
buscar explicações metafísicas. Deste modo, não parte da generalização teórica nem da
abstração, mas busca reconhecer e valorizar as singularidades, olhando para a existência
partindo do modo como esta se manifesta de maneira singular.

Trata-se, na verdade, de um “retorno”, um caminho de volta, em que o “fim”


nada mais é do que o começo: “de volta às coisas mesmas”, para citar a tão
famosa expressão husserliana. A fenomenologia é, portanto, o caminho de
volta às coisas mesmas, ao mundo da experiência vivida ou ​Lebenswelt
(mundo-da-vida). (STRUCHINER, 2007, 242p.)

Uma das críticas da fenomenologia está relacionada ao uso dos métodos das ciências
naturais para os estudos das ciências humanas. A constatação da fenomenologia pode ser
exemplificada na relação que ocorre quando olhamos para um objeto qualquer, como uma
pintura, o que vemos não são as moléculas e ondas de luz que atingem a nossa retina, mas
estabelecemos uma consciência intencional com este objeto, de modo que nos abrimos para
a percepção deste, onde o capturamos enquanto belo ou feio, interessante ou
desinteressante, alegre ou triste, e assim por diante.
Esta percepção é sempre intencional, pois resulta da relação entre a nossa consciência,
do modo como esta se direciona para um objeto, e o objeto, do modo como este se apresenta
a uma consciência. Porém, nunca captamos um objeto em sua totalidade, pois sempre o
observamos partindo de um ângulo, de modo que há sempre muitos ângulos e variações que
podem alterar a nossa percepção das coisas e do mundo.

A consciência é sempre intencional, está constantemente voltada para um


objeto, enquanto este é sempre objeto para uma consciência; há entre ambos
uma correlação essencial, que só se dá na intuição originária da vivência. A
intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; ela é que
unifica a consciência e o objeto, o sujeito e o mundo. Com a intencionalidade
há o reconhecimento de que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não
é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma
significação para ele. (FORGHIERI, 2019, 15p.)

O filósofo e psicólogo alemão Franz Brentano (1838-1917) influenciou fortemente a


fenomenologia de Edmund Husserl, especialmente com o seu entendimento sobre a
intencionalidade da consciência. De acordo com Brentano, “todos os processos psíquicos
seriam marcados pela intencionalidade, ou seja, estariam sempre dirigidos para um objeto”
(Penna, 2001, 18p.).
A experiência que tenho com algo é apenas uma aparição deste algo, e o interesse da
fenomenologia não é exclusivamente sobre a consciência ou sobre o objeto, mas justamente
na correlação entre ambos, no que surge da experiência na relação entre consciência e
objeto, deixando de lado qualquer intenção de formular hipóteses ou estabelecer inferências
sobre o que é percebido, de modo a permitir que o que é percebido se mostre em seu modo
de aparecer.

(...) os filósofos tradicionais costumavam começar por teorias ou axiomas


abstratos, mas os fenomenólogos alemães iam direto à vida como a viviam a
cada momento. Deixavam de lado quase tudo o que vinha alimentando a
filosofia desde Platão: enigmas sobre a realidade das coisas ou sobre a
possibilidade de conhecermos com certeza alguma coisa sobre elas. Esses
fenomenólogos alemães, em vez disso, ressaltavam que qualquer filósofo que
faça tais perguntas já está inserido num mundo cheio de coisas — ou, pelo
menos, cheio de aparências de coisas ou “fenômenos” (da palavra grega que
significa “coisas que aparecem”). Então por que não se concentrar nesse
encontro com os fenômenos e ignorar o resto? Não é necessário abandonar
para sempre os velhos enigmas, mas eles podem ser postos entre parênteses,
por assim dizer, para que os filósofos possam lidar com assuntos mais
terrenos. (BAKEWELL, 2017, 10p.)

Para proceder com o método fenomenológico, é preciso praticar a redução, ou a


‘​epoché’​ , termo grego que significa abstenção ou suspensão do juízo, colocando todas as
suposições, hipóteses ou imaginações entre parênteses. Isso não significa eliminar as
pressuposições, mas deixá-las de lado, para se abrir ao que se apresenta.
A redução consiste em focar a atenção não nos objetos, mas na experiência dos
objetos. Trata-se justamente do procedimento de se aproximar dos fenômenos, tais como se
apresentam à consciência, despindo-se de abstrações, ideias feitas, teorias e hábitos. Neste
sentido, fenômeno é tudo aquilo que se apresenta à consciência, seja um objeto, uma
situação, uma imagem ou uma lembrança, seja esta real ou não.

O que é, então, uma xícara de café? Posso definir a bebida em termos da


química e da botânica da planta, acrescentar resumidamente como os grãos
são cultivados e exportados, como são moídos, como a água quente passa
pelo pó e então esse líquido é vertido num recipiente de determinado
formato, para ser apresentado a um integrante da espécie humana que o
ingere oralmente. Posso analisar o efeito da cafeína no corpo ou abordar o
comércio internacional do café. Posso encher uma enciclopédia com esses
fatos e ainda assim estarei longe de dizer o que é esta xícara de café em
particular, à minha frente. Por outro lado, se procedo ao inverso e invoco um
leque de associações puramente pessoais e sentimentais. (...) essa xícara de
café é um aroma rico, ao mesmo tempo agreste e perfumado; é o movimento
indolente de uma voluta de vapor erguendo-se de sua superfície. Quando o
levo à boca, é um líquido que se move placidamente e um peso dentro da
xícara de bordas grossas em minha mão. É um calor que se aproxima, então
um intenso sabor carregado em minha língua, começando com um impacto
levemente austero e então se distendendo num calor reconfortante, que se
espalha da xícara para meu corpo, trazendo a promessa de um estado
duradouro de alerta e revigoramento. A promessa, as sensações antecipadas,
o cheiro, a cor e o sabor fazem, todos eles, parte do café como fenômeno.
Todos emergem ao serem experimentados. (BAKEWELL, 2017, 46p.)

A fenomenologia possibilita tratar-mos de qualquer objeto como experiência subjetiva,


do modo como este é sentido e captado por uma consciência, voltando-se, portanto, para as
vivências de uma pessoa. De acordo com Dartigues (2008), os fenômenos ocorrem para nós
enquanto experiências que se dão por meio dos sentidos, de modo que as vivências sempre
estão dotadas de sentido. O sentido do fenômeno pode ser percebido por meio da análise
intencional.

O princípio da intencionalidade é que a consciência é sempre “consciência de


alguma coisa”, que ela só é consciência estando dirigida a um objeto (sentido
intentio​). Por sua vez, o objeto só pode ser definido em sua relação à
consciência, ele é sempre ​objeto-para-um-sujeito​. (DARTIGUES, 2008, 22p.)

Por meio da redução, podemos retornar às “coisas mesmas”, ao estágio pré-reflexivo, à


nossas percepções e afetos experimentados antes das elaborações e teorizações sobre eles. É
justamente este estágio anterior e originário que interessa à fenomenologia, para que se
possa restabelecer os sentidos na pessoa atendida, retomando a si mesma em meio a
confusão de suposições ideais e racionais sobre si.
Essa análise intencional parte justamente das “coisas mesmas”, ou seja, do modo como
as coisas são percebidas, enquanto vivências originais para a pessoa que experimentou. Os
objetos percebidos nunca são “objetos em si”, com valores em si próprios, independente dos
indivíduos que os captam, mas são sempre “objetos para uma consciência”, seja este um
objeto-percebido, objeto-pensado, objeto-rememorado, objeto-imaginado, entre tantas
outras possibilidades.
A consciência e o objeto não são duas instâncias separadas, mas estão sempre em
relação, e essa relação estabelece o que entendemos por “real”, que não deixa de ser uma
possibilidade captada por meio da correlação entre consciência e objeto. A análise
fenomenológica busca a compreensão dessa correlação, que se dá de modos distintos em
cada sujeito e situação.

A tarefa efetiva da fenomenologia será, pois, analisar as vivências intencionais


da consciência para perceber como aí se produz o sentido dos fenômenos, o
sentido desse fenômeno global que se chama mundo. (DARTIGUES, 2008,
22p.)

Portanto, o método fenomenológico consiste justamente em retornar a uma


experiência anterior ao mundo teórico, anterior aos conceitos, indo em direção ao mundo e a
si mesmo, enquanto experiência pré-reflexiva e originária da experiência da consciência,
retomando a vivência que se acostumou descartada pelas tendências da objetividade, da
conceituação e da interpretação.

3. Psicoterapia Fenomenológico Existencial

A psicoterapia fenomenológico existencial é uma abordagem de psicoterapia que utiliza


como embasamento teórico o existencialismo e como método a fenomenologia, tendo como
objetivo proporcionar uma maior conscientização da pessoa atendida sobre seus sentimentos,
percepções e valores, estimulando sua autonomia psicológica.
De acordo com Teixeira (2006), não há apenas uma abordagem de psicoterapia que
utiliza como base o existencialismo e a fenomenologia, mas diversas, entre elas a Psicoterapia
Experiencial, a Psicoterapia Vivencial, a Daseinsanalyse, a Logoterapia, a Psicoterapia
Existencial-Humanista, a Psicoterapia Existencial, entre outras.
Essas distintas vertentes de psicoterapia não se apresentam com o objetivo de “curar”
as “perturbações mentais”, como era a proposta do modelo médico-científico, mas possuem
como intuito “facilitar o encontro do indivíduo com a autenticidade da sua existência, de
forma assumi-la e projectá-la mais livremente no mundo” (Teixeira, 2006, 289p.), onde o foco
principal é a existência da pessoa e não suas “perturbações”.
Os sofrimentos emocionais trazidos pelas pessoas que procuram psicoterapia são
entendidos enquanto resultantes de “dificuldades do indivíduo em fazer escolhas mais
autênticas e significativas” (Teixeira, 2006, 289p.). Por conta disso, o processo
psicoterapêutico enfatiza a percepção e conscientização dos afetos da pessoa atendida, para
que esta possa se aproximar de sua experiência e de sua existência, de modo a fazer escolhas
mais significativas e congruentes.
A psicoterapia existencial busca promover o reconhecimento e a valorização da
responsabilidade de cada indivíduo na construção de sua existência, favorecendo sua
autonomia e ampliação da possibilidade de fazer escolhas. Trata-se de um processo de se
perceber e se reconhecer, com vistas a tornar-se mais autêntico, lidando com suas
dificuldades e assumindo sua existência, indo de encontro com o que seja realmente
significativo, responsabilizando-se por suas escolhas e abrindo-se a novas possibilidades.

Em síntese, trata-se de facilitar ao indivíduo o desenvolvimento de maior


autenticidade em relação a si próprio, uma maior abertura das suas
perspectivas sobre si próprio e o mundo e, ainda, de ajudar a clarificar como é
que poderá agir no futuro de uma forma mais significativa. O centro é a
responsabilidade da liberdade de escolha do indivíduo. A palavra-chave é a
construção, uma vez que se trata de desafiar o indivíduo a ser o construtor da
sua existência. (TEIXEIRA, 2006, 294p.)

Algumas das principais características envolvidas no processo da psicoterapia


fenomenológico existencial são a abertura para receber a pessoa tal como se mostra, a
liberdade para se fazer escolhas e a valorização da autenticidade e singularidade de cada
indivíduo, que corresponde em receber a pessoa tal como ela se apresenta, sem buscar
explicações racionais, científicas ou interpretativas sobre o modo como esta se apresenta,
mas se aproximando dela livre de suposições, deixando que se mostre tal como percebe e
sente sua existência.
Para o psicoterapeuta, é necessário uma postura de abertura com relação ao outro, de
modo a captar como este se apresenta, em seus afetos e desafetos, suas vivências, seus
sentidos, enfim, se abrindo para a totalidade de suas experiências subjetivas e a relação que a
pessoa estabelece com sua história de vida e seu projeto. Deste modo é possível estimular a
consciência de si, compreender seu papel nas decisões e escolhas de sua vida, promovendo
uma maior autonomia e autenticidade consigo mesmo e com os outros.

Estes pressupostos existencialistas tornam-se fundamentais na construção da


postura do psicólogo e dos objetivos de um processo diagnóstico. Dentro
dessa abordagem, o psicólogo não tenta explicar e enquadrar a pessoa
examinada em categorizações e parâmetros arbitrariamente teorizados, pois
ele acredita que a vivência dessa pessoa é sua própria explicação, sendo ela a
melhor interprete de si mesma. (TENÓRIO, 2003, 41p.)

É por meio da aproximação da pessoa atendida, do modo como se sente e se mostra


que o psicoterapeuta poderá estimular uma postura de aceitação de si mesma, incentivando a
liberdade de ser e fazer escolhas autênticas, possibilitando assim uma abertura a novas
possibilidades de vida.
Segundo Tenório (2003), o enfoque fenomenológico existencial está embasado numa
compreensão de ser humano enquanto livre e aberto às possibilidades, responsável por suas
escolhas e capaz de se inventar e cuidar de sua existência, sendo essas concepções
embasadas em autores como Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, José Ortega
e Martin Buber.

A pessoa, no processo diagnóstico, deve ser apreendida como sendo um


fenômeno único e, como tal, respeitada em sua totalidade; não deve,
portanto, ser avaliada segundo normas e padrões de comportamento
preestabelecidos, numa total revelia a sua própria existência. Seu nível de
crescimento ou de maturidade deve ser dimensionado por meio dos projetos
de vida por ela própria idealizados e de acordo com seu próprio mundo e
contexto existencial. (TENÓRIO, 2003, 41p.)

Deste modo, a psicoterapia fenomenológico existencial não trabalha com classificação


ou generalização de doenças, pois olha para a existência de modo singular, não atuando para
uma ou outra doença, mas com o olhar para a existência como um todo, buscando captar
seus modos de ser, de se expressar, suas dificuldades e suas possibilidades.

Considerações finais

Por meio desta pesquisa foi possível constatar que a filosofia existencialista somada à
fenomenologia na psicoterapia possibilita um processo muito valioso para se reconhecer as
singularidades e os afetos da pessoa atendida. Diferente dos modelos tradicionais de
psicoterapia, esta não busca resolver um “problema” ou interpretar os significados “ocultos”,
mas permitir que a existência se apresente do modo como cada um se sente e se percebe.
Trata-se de uma alternativa às tendências mais convencionais e presentes no cenário
da psicologia na atualidade, tais como as abordagens psicanalíticas e comportamentais,
oferecendo uma compreensão mais aprofundada sobre as questões subjetivas e existenciais
do indivíduo, possibilitando uma maior autoconsciência, autonomia e aumento no potencial
de escolha sobre sua própria vida.
Por fim, a psicoterapia fenomenológico existencial entende que grande parte das
dificuldades emocionais se desenvolvem por conta de uma relação inautêntica consigo
mesmo e com os outros. Por isso, sua prática pretende possibilitar o contato da pessoa com
sua própria existência de modo a proporcionar uma vivência mais autêntica, alinhada com
seus afetos, livre para fazer escolhas e ir de encontro ou criar o que faça sentido para si.
Para tanto, o psicoterapeuta necessita de um grande preparo teórico e prático. É
necessário um profundo embasamento para se dedicar a este modo de fazer psicoterapia,
que não é nada simples, pois parte muito da filosofia. Além de conhecer os pressupostos, é
necessária também uma postura própria de abertura e disposição para a prática.

Referências

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Abril de 2020.

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