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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

EVELYNE MEDEIROS PEREIRA

A DIALÉTICA DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL INTERREGIONAL:


A QUESTÃO SOCIAL NO NORDESTE BRASILEIRO (2007-2015)

RIO DE JANEIRO

2018
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EVELYNE MEDEIROS PEREIRA

A DIALÉTICA DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL INTERREGIONAL:


A QUESTÃO SOCIAL NO NORDESTE BRASILEIRO (2007-2015)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutora em Serviço Social.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos


Reis

RIO DE JANEIRO

2018
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Evelyne Medeiros Pereira

A DIALÉTICA DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL INTERREGIONAL:


A QUESTÃO SOCIAL NO NORDESTE BRASILEIRO (2007-2015)

Tese de Doutorado aprovada em 24 de agosto de 2018 pelo Programa de Pós-Graduação em


Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutora em Serviço Social.

Banca Examinadora

______________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis (ESS/UFRJ - Orientador)

______________________________________________________________
Prof.ª. Dra. Maria Augusta Tavares (DSS/UFPB-UNL)

______________________________________________________________
Prof.ª. Dra. Ana Elizabete Fiuza Simões da Mota (ESS/UFRJ-UFPE)

______________________________________________________________
Prof.ª. Dra. Maria Mello de Malta (IE/UFRJ)

______________________________________________________________
Prof.ª. Dra. Tatiana Brettas Waehneldt (ESS/UFRJ)

Rio de Janeiro - 2018


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Dedico este trabalho à minha mãe, ao meu pai


e ao meu avô, Pedro Marcelino (in memorian),
o homem centenário, da terra do sol e de Iracema,
que se foi durante a feitura do presente trabalho.
Esse, assim como tantos outros severinos e severinas,
teve sua vida marcada pela migração do sertão ao litoral,
sanfoneiro, pescador, comerciante e autodidata,
“num invejando dinheiro nem diploma de doutor”,
em busca de um destino não destinado.
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AGRADECIMENTOS

Devo admitir que o aprendizado desde o primeiro ano do doutorado escapou e


transbordou livros, textos, teses, artigos, palestras e seminários que constituem o mundo
acadêmico. Foi inevitável lembrar a história daquele intelectual-militante, que não se encontra
mais entre nós, mas já nos alertava que os grandes acontecimentos e divisores de água de sua
vida [e do país] ocorreram exatamente aos trinta e poucos anos, durante a tese de doutorado.
Certeiro! Isso talvez porque as exigências de abstrações durante a feitura de uma tese nos levem
também a caminhos que nos fazem refletir de forma mais profunda sobre o mundo em que
vivemos e sobre nós mesmos. Portanto, os dilemas do tempo presente, das mulheres e dos
homens do nosso tempo, desafiaram também a construção da tese que aqui apresentamos.
Foram muitas pedras no meio do caminho que tornaram o ato da escrita e da concentração
muitas vezes penoso, do Golpe orquestrado na vida política do país às dores das perdas na vida
pessoal. Por outro lado, foram muitos os exemplos do quão somos capazes de arrancar do chão
árido as raízes fortes que nos alimentam e nos recompõem e do quanto, apesar dos pesares,
existem companheiros e companheiras que nos fortalecem e sensibilizam diante de tanta dureza.
Isto, sem dúvida, fez com que o caminho percorrido até aqui, entre encontros e desencontros,
tenha sido costurado teimosamente por muitas mãos. Assim, gostaria de registrar meus sinceros
agradecimentos:
À minha mãe, Maria, e ao meu pai, José, com quem venho aprendendo, desde cedo, que
o amor não é naturalmente instituído, mas construído em meio as adversidades e imperfeições.
Às minhas irmãs, Erika e Gizelle, e ao meu irmão, Ed, com quem aprendi a construir uma
irmandade em meio a tantas diferenças e a reconstruir relações interrompidas.
Aos amores e as paixões da vida, do passado e do presente, por me fazerem encarar os
caminhos necessários, difíceis, prazerosos e tortuosos entre a solidão e a solitude, fundamentais
para o (re)despertar da arte do desenho.
Aos meus amigos e amigas de longa data que continuam me ensinando que o bem-querer,
o amor e a partilha da vida sobrevivem à distância: Lucas Bezerra, amigo, irmão e confidente,
com quem dividi as angústias da vida e da escrita desta tese. Obrigada pela paciência e sugestões!
Janaiky Almeida, uma pessoa imprescindível, que desperta em mim maior crença na
humanidade e esperança em valores e práticas que venham a nos tornar “ser-mais”. À Cynthia
Studart, pela referência de profissional comprometida e crítica e, além disso, de mulher forte,
articulada e capaz de superar os maiores obstáculos. À minha hermana Paola Morales, contigo
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entendi que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi
visto, ver outra vez o que se viu [...] o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que
aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos
novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.” (José Saramago). Ao Ednaldo
Abreu (Ed), as nossas conversas existenciais e poéticas. À Glau Holanda e ao Ailton Lopes,
pelos reencontros, acolhida e partilha, mesmo que breve, de morada. À Tetê (in memorian), por
seu exemplo de simplicidade e dignidade que transcende a existência material.
Às amizades mais recentes proporcionadas pelas vivências durante o doutorado, em
terras estrangeiras, dentro e fora do Brasil: Michelly, querida companheira a qual tenho
profundo respeito e carinho; Renatinha, amiga-irmã com quem dividi a vida, ombro a ombro,
nas suas alegrias, belezas e dores; Leozinho e Taci, pelo companheirismo e pela agradável
partilha a la “mineirada-cearense”; Marisol e Sandra, pelas agradáveis conversas e trocas sobre
nuestra América desde a Colômbia ao Brasil. Rafaela Rodrigues e Helena Monteiro, que no
exercício de suas profissões e projetos de vida contribuíram decididamente para me conhecer e
me fortalecer mais diante de relações tão adversas do tempo presente. Aos bons encontros além-
mar com as queridas Maria Augusta (Guga), Virgínia e Naire, exemplos de mulheres fortes, à
frente de seu tempo, cuja larga inteligência não as fizeram menos generosas. Obrigada pela
paciência e ensinamentos! Ao Coletivo Andorinha, em especial a Carol e Heide, pela
solidariedade, resistência e partilha frente aos preconceitos e discriminação que persistem e nos
desafiam diariamente.
Aos lutadores e as lutadoras do povo, resistentes ao Golpe e à todas as atrocidades da
dinâmica capitalista, insistentes das causas coletivas, da necessidade cada vez mais urgente da
transformação social e de uma vida mais plena de sentido. Aos militantes da Consulta Popular,
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e todos aqueles que compõem a Via
Campesina. Ao feminismo, que tenho criado cada vez mais intimidade, e às companheiras que
enfrentam cotidianamente o peso do persistente “atraso” sob a vida das mulheres. Aos amigos
e amigas, companheiros e companheiras, de Iguatu - Ceará, que fazem da vida no sertão menos
árida.
Aos estudantes, de ontem e de hoje, que tive (e tenho) a oportunidade de contribuir de
alguma maneira na formação profissional e política, com os quais pude construir relações que
não cabem na denominação fria e pretérita de ex-alunos e alunas. Aqui faço um agradecimento
especial, pelo apoio e companheirismo, à Keile, Andressa, Wanessa, Raí e Raimundo. Com
vocês, diante de tantos percalços, além de muito orgulho, fico mais certa sobre a profissão que
escolhi seguir na vida.
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À Escola Nacional Florestan Fernandes, feita pelas mãos de trabalhadores e


trabalhadoras que participam dos mais diversos processos de formação, pela grandiosidade do
que representa no âmbito da batalha das ideias e pela oportunidade de ter conhecido um pouco
mais sobre o pensamento social do Brasil.
Aos docentes do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e da Escola de Serviço
Social da UFRJ, pelo aprendizado e pelo compromisso com a classe trabalhadora expresso, por
exemplo, na realização do curso de Serviço Social pelo Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (PRONERA) no qual tive a oportunidade de ser monitora.
Ao meu orientador, Marcelo Braz, pelo exemplo de compromisso profissional e político,
pela acolhida, seriedade, generosidade e confiança.
Ao Prof. Francisco Teixeira, pela atenção dispensada, pelas conversas e sinalizações
atravessadas pela dureza e beleza do sertão cearense que contribuíram para o desabrochar da
tese, inclusive do seu título.
À banca de qualificação e de defesa de tese, pelas contribuições dadas ao trabalho e à
minha formação, por exigirem o rigor necessário a um trabalho comprometido com a classe
trabalhadora.
À todas as pessoas queridas que, mesmo não tendo sido aqui nominadas, atravessaram
e marcaram de alguma maneira minha trajetória.
Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), pelo apoio e
incentivo durante todo o período que estive liberada da função de docente.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio
financeiro para a realização do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) junto a
Universidade Nova de Lisboa. Iniciativas e oportunidades, estas, ameaçadas pelo Golpe
também contra a Educação em curso no país, restringindo cada vez mais as parcas condições
democráticas no Brasil.
Que possamos resistir!
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O que é que pode fazer o homem comum


Neste presente instante senão sangrar?
Tentar inaugurar
A vida comovida
Inteiramente livre e triunfante?
[...]
O que é que eu posso fazer
Um simples cantador das coisas do porão?
Deus fez os cães da rua pra morder vocês
Que sob a luz da lua
Os tratam como gente - é claro! - aos pontapés
Era uma vez um homem e o seu tempo
Botas de sangue nas roupas de lorca
Olho de frente a cara do presente e sei
Que vou ouvir a mesma história porca
Não há motivo para festa: Ora esta!
Eu não sei rir à toa!
Fique você com a mente positiva
Que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!)
Pois sou uma pessoa
Esta é minha canoa: Eu nela embarco
Eu sou pessoa!
A palavra pessoa hoje não soa bem
Pouco me importa!
[...]
Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!

Belchior
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RESUMO

PEREIRA, Evelyne Medeiros. A dialética do desenvolvimento desigual interregional: a


questão social no Nordeste brasileiro (2007-2015). 2018. 305 f. Tese (Doutorado em Serviço
Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2018.

O Brasil da última década reflete a dialética do desenvolvimento desigual e combinado que


incide na questão social no Nordeste, região particularmente inserida na recente dinâmica de
expansão do capital. Esse contexto influenciou consideravelmente sobre o aumento da
expectativa de vida da população nordestina e a tendência positiva que apontou diversos
indicadores de elevação da participação da região Nordeste no crescimento econômico nacional.
É possível sinalizar que, mesmo diante da perpetuação das desigualdades regionais no país,
ocorreram inflexões nas formas de enfrentamento a questão regional, enquanto dimensão da
questão social, concomitante a renovação de suas múltiplas expressões a partir da realidade
nordestina. Uma vez que não houve ruptura com as determinações neoliberais, a reprodução e
complexificação da dependência e da divisão inter-regional do trabalho, em uma recombinação
entre o “atraso” e o “moderno”, são confirmadas. Apesar dos efeitos imediatos e de melhorias
individuais, partimos do pressuposto de que a tentativa de governar mediante um modelo de
conciliação de classes via pacto social permite apenas temporária e conjunturalmente promover
variações na questão social, ao ponto de, inclusive, repercutir no desenvolvimento do país, mas
sem, substancialmente, reduzir a desigualdade social no Nordeste e no território nacional. Ao
serem priorizados investimentos nessa região atendeu-se ao fim capitalista e à população mais
pobre, mesmo que de forma desigual, predominando a pauperização relativa. Fica evidente, no
caso brasileiro, as amarras impostas pela lei do desenvolvimento desigual e combinado nos
marcos do capitalismo. Tais constatações foram fruto da pesquisa de natureza quanti e
qualitativa que teve como base o estudo bibliográfico, priorizando a perspectiva crítico-
dialética e o diálogo com dados primários e secundários. A delimitação do período (2007-2015)
buscou atentar desde as condições mais favoráveis para o acesso às informações consolidadas
e oficiais até alguns aspectos que marcam o início, o auge e os sinais de esgotamento do último
ciclo de desenvolvimento no país, com o foco na questão regional.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento desigual e combinado. Questão social. Nordeste.


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ABSTRACT

PEREIRA, Evelyne Medeiros. The dialectic of uneven interregional development: the social
issues in the Brazilian Northeast (2007-2015). 2018. 305 f. Thesis (Doctorate in Social Work)
- School of Social Service, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

The Brazil of the last decade reflects the dialectic of uneven and combined development which
focuses on social issues in the Northeast, region incorporated in the recent expansion of
capital.This context has influenced the increase of the life expectancy of the northeast
population and the positive trend which pointed out several indicators of increased participation
of the region in the national economic growth.Even in the face of continuing regional
inequalities in the country, occurred inflections in the forms of confront regional aspect, while
dimension of social issue.Since there was no break with the neoliberal determinations,
reproduction and complexity of logic of dependncy and regional division of labour, in a
recombination between the "backwardness" and the "modern", are hereby confirmed. Despite
the immediate effects and individual improvements, we assume that the attempt to govern
through a model of class reconciliation via the social pact allows only temporarily and
conjuncturally to promote variations in the social question, to the point of even having
repercussions on the development of the country, but without substantially reducing social
inequality in the Northeast and in the national territory.However, it is clear that it is impossible
to escape of the law of uneven and combined development.Such findings were the result of
quantitative and qualitative research based on the bibliographical study, highlighting the
critical-dialectic perspective and dialogue with primary and secondary data. The delimitation
of the period (2007-2015) sought to pay attention since the most favourable conditions for the
access to consolidated and offical information even some aspects that mark the start, pinnacle
and the signs of exhaustion of the last cycle of development in the country with the focus on
regional issues.

KEY WORDS: Unequal and combined development. Social issues. Northeast.


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RESUMEN

PEREIRA, Evelyne Medeiros. La dialéctica del desarrollo desigual interregional: la


cuestión social en el Nordeste brasileño (2007-2015). 2018. 305 f. Tesis (Doctorado en Servicio
Social) - Escuela de Trabajo Social, Universidad Federal de Río de Janeiro, Río de Janeiro,
2018.

El Brasil de la última decada refleja la dialéctica del desarrollo desigual y combinado que incide
en la cuestión social en el Nordeste, región particularmente inserta en la reciente dinámica de
expansión del capital. Ese contexto incidió sobre el aumento de la expectativa de vida de la
población nordestina y en la tendencia positiva que apuntó diversos indicadores de elevación
de la participación de la región Nordeste en el crecimiento económico nacional. Es posible
señalar que, aún delante de la perpetuación de las desigualdades regionales en el país, ocurrieron
inflexiones en las formas de enfrentamiento a la cuestión regional, en tanto dimensión de la
cuestión social, concomitante con la renovación de sus múltiples expresiones a partir de la
realidad nordestina. Al no existir una ruptura con las determinaciones neoliberales, la
reproducción y complejización de la lógica de la dependencia y de la división interregional del
trabajo, en una nueva combinación entre lo “atrasado” y lo “moderno”, son confirmadas. A
pesar de los efectos inmediatos y de mejoras individuales, partimos del presupuesto que la
tentativa de gobernar mediante un modelo de conciliación de clases vía pacto social permite
sólo temporaria y coyunturalmente promover variaciones en la cuestión social, al punto de,
inclusive, repercutir en el desarrollo del país, aún sin, sustancialmente, reducir la desigualdad
social en el Nordeste y en el territorio nacional. Al ser priorizadas inversiones en esa región se
atendió a la finalidad capitalista y a la población más pobre. No obstante, resulta evidente la
imposibilidad de huir de la ley del desarrollo desigual y combinado en los marcos del
capitalismo. Tales constataciones fueron fruto de la investigación de naturaleza cuanti y
cualitativa que tuvo como base el estudio bibliográfico, priorizando la perspectiva crítico-
dialéctica y el diálogo con datos primarios y secundarios. Para tal fin, la delimitación del
período (2007-2015) buscó considerar desde las condiciones más favorables para el acceso a
las informaciones consolidadas y oficiales, hasta algunos aspectos que marcan el inicio, el auge
y las señales de agotamiento del último ciclo de desarrollo en el país, focalizando en las acciones
que apuntan a la cuestión regional, a partir de la realidad nordestina.

PALABRAS CLAVE: Desarrollo desigual y combinado. Cuestión social. Nordeste.


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LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS

Gráfico 1 Desembolsos do BNDES para o Nordeste - 2007-2013 (em R$ bilhões)..... 242

Gráfico 2 Brasil e Nordeste: população ocupada por nível de instrução (2010) .......... 246

Tabela 1 Nordeste: dinâmica do mercado de trabalho (2000-2010)........................... 244

Tabela 2 Brasil e regiões – Evolução do rendimento médio das famílias................... 247

Tabela 3 Taxas anuais de crescimento do PIB total (1990 e 2000)............................. 249

Tabela 4 Empreendimentos Financiados pelo BNDES no Nordeste (2005-2013)..... 261

Tabela 5 Previsão de Investimento em Infraestrutura no PAC por região.................. 269


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................... 16
1 O DESIGUAL E O COMBINADO NO DESENVOLVIMENTO
CAPITALISTA................................................................................................ 30
1.1 O debate do desenvolvimento na tradição marxiana e marxista....................... 36
1.2 A maturidade do desenvolvimento capitalista como sistema mundial............... 47
1.3 A face regional do capitalismo........................................................................... 60
1.4 O amálgama entre o “moderno” e o “atraso” como processo
histórico............................................................................................................ 67
1.4.1 O desenvolvimento da dependência na América Latina……………………… 88

2 ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA CONFIGURAÇÃO


REGIONAL DA REALIDADE BRASILEIRA............................................ 105
2.1 Desenvolvimento desigual na conformação da sociedade de classes no
Brasil................................................................................................................. 107
2.2 A modernização dependente no capitalismo tardio brasileiro........................... 119
2.3 Estado brasileiro, questão social e o Nordeste na era monopolista.................... 137
2.3.1 O Nordeste não nordestinado na “dialética nação-região”: integração
nacional e (nova) divisão regional do trabalho.................................................. 149
2.3.2 “Existirmos: a que será que se destina?”: planejamento,
desenvolvimentismo e questão regional............................................................ 162
3 O NORDESTE BRASILEIRO NO PADRÃO DE ACUMULAÇÃO
CAPITALISTA VIGENTE............................................................................. 190
3.1 Mundialização e regionalização: crise capitalista, questão regional e
neoliberalismo no Brasil.................................................................................... 197
3.1.1 Os fragmentos da integração capitalista e as novas fronteiras regionais............ 213
3.2 O desenvolvimento possível sob a hegemonia neoliberal: da emergência a
crise de um novo ciclo brasileiro........................................................................ 220
3.2.1 A questão social no contexto nordestino contemporâneo (2007-2015):
principais expressões e formas de enfrentamento.............................................. 239
15

3.2.1.1 A Política Nacional de Desenvolvimento Regional: a peleja da retomada da


saga................................................................................................................... 263
3.3 O Nordeste desigualmente combinado ao nosso tempo histórico:
permanências e vicissitudes do desenvolvimento desigual inter-regional......... 274

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 284

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 295
........
16

INTRODUÇÃO

O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,


forro, sou nascido diferente.
Eu sou eu mesmo. Divirjo de todo mundo...
Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.
O senhor concedendo, eu digo:
Para pensar longe, sou cão mestre –
O senhor solte em minha frente uma ideia ligeira,
E eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!

Guimarães Rosa

Em referência ao romance Grande Sertão Veredas, Antônio Cândido (2014, s/p) nos
lembra o quanto a realidade do homem do sertão traz consigo uma presença íntima dos
problemas universais e acrescenta:

Para mim, o mundo de Guimarães Rosa não é em Minas. O mundo de Guimarães Rosa
é o mundo. O sertão é o mundo porque dentro daquele enquadramento rigoroso
documentado no sertão mineiro, aquilo serviu de palco para ele desenvolver um drama
que ocorre em qualquer lugar do mundo […] que são os problemas do homem […].
Isso transcende muito o sertão. Por isso eu digo: o sertão é o mundo. […] A vontade
do homem é mais forte que o poder do lugar. […] O que é bonito no Grande Sertão
Veredas é a extrema ambiguidade. [...] As coisas são e não são. […] Tudo é e não é.
Tudo começa e devia acabar de um jeito, acaba de outro. O vencido, que devia ser
sacrificado, é livre. O homem, que é homem, é mulher. […] E isso tira o Grande Sertão
Veredas da craveira comum de qualquer romance regionalista. […] Como é que se
pode resolver esse paradoxo? De um regionalismo que não é regionalismo? De uma
universalidade que é mais particular possível? Ele fez o livro que supera o
regionalismo através do regionalismo. […] A meu ver é um paradoxo supremo.

As sábias palavras de um dos maiores intérpretes do Brasil, que partiu desta vida
recentemente nos deixando um importante legado, inclusive para pensarmos a realidade
sertaneja para além de particularismos e determinismos, certamente contribuem para o
entendimento da dinâmica regional, de permanências e mudanças, que conforma o Brasil em
sua história recente.
Referimo-nos, mais precisamente, ao Nordeste brasileiro de hoje que não mais cabe nas
concepções homogeneizantes, por um lado, (re)construtoras da paisagem pitoresca do litoral
turístico e da caricatura árida do sertanejo miserável e analfabeto; por outro, renovadoras de um
regionalismo que reforça ora a natureza folclórica, ora a concepção de “região problema”.
É certo que as expressões atuais da realidade nordestina, especialmente da última década,
tais como o aumento da expectativa de vida e a diminuição da pobreza absoluta, sinalizam
inflexões nas expressões da questão social e nas suas formas de enfrentamento, especialmente
17

por parte do Estado na região. Isto muito propagandeado como resultado de uma política de
“inclusão social”, com maior peso para o proclamado desenvolvimento, realizada sob a égide
dos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores (2003-2015) que teriam promovido
maior crescimento e desenvolvimento econômico em regiões historicamente mais pauperizadas
e com menores índices de desenvolvimento humano do país.
Essa constatação é possível ser observada na própria realidade, não apenas através dos
indicadores sociais e econômicos desse período, que demonstram uma efetiva melhoria das
condições de vida dos trabalhadores com a ampliação de postos de trabalho, de industrialização
(inclusive na agricultura), do acesso à renda, ao consumo e a políticas sociais como a educação
e assistência, como também através dos resultados na política institucional, fazendo da região
uma importante base eleitoral desses governos. Por que isso ocorreu? Quais os fatores que
permitiram tais inflexões na região no último ciclo de desenvolvimento? As respostas para tais
questões certamente estão muito além da simples vontade política.
De fato, ao se observar os números e os documentos oficiais, particularmente os planos
plurianuais governamentais, é possível identificar algumas diferenciações em relação à
ortodoxia neoliberal em curso no Brasil durante a década de 1990. A região Nordeste
efetivamente esteve entre as prioridades dadas por parte de instituições estatais via “políticas
de desenvolvimento”, a exemplo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), através do financiamento de grandes projetos infraestruturais e industriais, como a
Transposição do Rio São Francisco, os Complexos Portuários e Siderúrgicos, os Polos
Industriais e a Transnordestina, além de programas de cunho assistencial, como o Programa
Bolsa Família (PBF), o Minha Casa Minha Vida e o Luz Para Todos, para atender quem esteve
à margem do trabalho formal ou mesmo aqueles que não foram incorporados pelo mercado.
Tais políticas foram desenvolvidas sob a ideia de “combate à miséria” e inclusão “dos mais
pobres no orçamento” governamental.
O Nordeste do atraso, da fome e da migração tornou-se a região do “protagonismo”, o
Nordeste moderno, das oportunidades, da interiorização dos serviços, do regresso daqueles que
um dia tiveram que tentar a vida longe, constituindo trajetórias de vida de inúmeros anônimos
que inspiraram a arte popular de Luiz Gonzaga a Belchior. Todavia, nos perguntamos: há
realmente um novo desenho social e econômico da região? Essas mudanças se devem a quê? O
que há de herança e ruptura com a realidade retratada em romances como o de Guimarães Rosa,
Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Euclides da Cunha que motiva este a escrever a célebre
18

afirmação: o “sertanejo é, antes de tudo, um forte”1?


Constatamos que, para entender essa realidade e responder tais questões, foi preciso
desvendar um Nordeste profundo, em suas contradições e heterogeneidades, porém, já que o
“sertão é o mundo”, foi também necessário transcendê-lo, ir para além da região, dos discursos
de desenvolvimento, das alianças e propostas políticas dos governos em busca de entender
como essa região se (des)integra ao capitalismo; de identificar os “fios invisíveis” que
constituem a dinâmica regional-universal no modo vigente de produção e reprodução da vida
social, particularmente no período priorizado por nós (2007-2015). Esse caminho, tal como
sinaliza Antônio Cândido (2014), não pode ser feito sem revelar as ambiguidades e os
paradoxos constitutivos dessa realidade, assim como não há possibilidade de entender as
expressões e formas de enfrentamento a questão social de outrora, a exemplo do cangaço 2, por
uma via de mão única. E foi exatamente este o nosso intento no processo de construção da tese
que aqui apresentamos. Os limites desse processo, porém, diante do tempo estipulado de
desenvolvimento da pesquisa, da abrangência do tema, da prioridade dada a uma realidade
ainda bastante recente, das transformações e dos retrocessos desencadeados desde o fim dos
Governos do PT e de outros tantos contratempos da vida que continuou pulsando para além da
construção da tese, foram irremediáveis.
Ainda sobre nosso objeto e o caminho da pesquisa, atentamos que foi necessário
perceber, antes de tudo, que as desigualdades regionais compõem a dinâmica do
desenvolvimento capitalista e apresentam uma tônica particular nas formações sociais
dependentes, como é o caso do Brasil, devido à forma específica de integração ao mercado
mundial. Esse ponto de partida, ao tempo em que faz menção à sociedade nacional, não implica
desconsiderar que tais desigualdades, ora mais graves, ora mais tênues, componham também
outros diversos contextos, inclusive de países “centrais”, como é o caso daqueles situados ao
Sul da Europa que se inserem em tal continente de forma periférica.3
No Brasil, alguns pensadores foram (e ainda são) fundamentais para entender a natureza
dessas desigualdades nas nuances de uma formação social constituída através de um processo
histórico-social que “vinculou o destino da Nação emergente ao neocolonialismo”.
(FERNANDES, [1968] 2008, p.24). Dentre outros intérpretes, priorizamos o diálogo com
aqueles que nos ajudaram a entender essa realidade e seus desdobramentos sobre o

1
Referência presente na obra “Os Sertões” de 1902.
2
Ver em Rui Facó, Cangaceiros e Fanáticos.
3
Esse fenômeno foi alvo de diversas elaborações, como as de Antônio Gramsci ([1932] 2002), que encontrou no
Risorgimento italiano cenário propício para analisar a questão meridional na Itália moderna.
19

desenvolvimento econômico regional fora do circuito de interpretações dualistas rígidas,


consonante com a lei do desenvolvimento desigual ou lei do desenvolvimento desigual e
combinado. Lei esta que, segundo Florestan Fernandes ([1968] 2008, p.65):

[...] punha em questão a relação do desenvolvimento do capitalismo e do regime de


classes com a revolução social, enfatizando que, dadas certas premissas, em um país
atrasado uma classe social pode desempenhar as tarefas de outra e promover, assim,
um salto qualitativo na história. Essa é a forma dialética de resolver o assunto. Não é
preciso que o regime de classes esteja “completamente desenvolvido” para que o
proletariado realize suas tarefas revolucionárias (a as que não foram alcançadas pela
burguesia).

Essa característica universal ao capitalismo (desigual e combinado), aprofundada e


particularizada em sociedades dependentes, no nosso entendimento, revela o caráter integrador
e ao mesmo tempo desintegrador de regiões nesse sistema, que, para Leon Trotsky ([1930] 1977,
p.25), viabiliza uma “aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas”. Em outras palavras, “estruturas
econômicas em diferentes estágios de desenvolvimento não só podem ser combinadas
organicamente e articuladas no sistema econômico global. Sob o capitalismo dependente, a
persistência de formas arcaicas não é uma função secundária e suplementar.” (FERNANDES,
[1968] 2008, p.61). E isso ocorre especialmente no desenvolvimento do capitalismo brasileiro.
Daí o entendimento de que não há etapas bem definidas de desenvolvimento pelas quais
cada formação social deva passar, inevitavelmente ou predestinadamente. Essa constatação
contribuiu de forma decisiva para compreender, por exemplo, o “por que” foi viável na história
de um país como a Rússia (semi-feudal) uma revolução popular socialista, além da existência
de formas de sociedade tão distintas sob o mesmo modo de produção.
A apreensão dos aspectos que tornaram burguesa a sociedade brasileira sem vivenciar,
por exemplo, um processo de ruptura com o latifúndio e seus antigos representantes foi, a nosso
ver, pressuposto central para o estudo sobre os fundamentos das desigualdades regionais e os
descompassos entre as regiões tidas como mais ricas ou “avançadas” e as pobres ou “atrasadas”4
enquanto fenômeno moderno.
Essas desigualdades tomam proporções e características diversas no contexto
contemporâneo. O processo de financeirização e sua incessante busca de valorização do capital

4
A concepção de “atraso” e sua relação com o “moderno” tem como base a leitura desenvolvida por Lênin ([1899]
1982) e Trotstky ([1930] 1977) a partir da análise da realidade do desenvolvimento capitalista na Rússia. Portanto,
esse termo (atraso), quando utilizado ao decorrer deste trabalho, não pretende reiterar concepções dualistas entre
o “atraso” e o “moderno”, “subdesenvolvido” e “desenvolvido”. Optamos, frente a tal ponderação, por retirar as
aspas a partir de então.
20

tem como necessidade a constante superação de fronteiras de tempo e espaço, o que, por outro
lado, acaba por estabelecer outras tantas barreiras territoriais e diferenciações regionais em uma
mundialização que também se regionaliza. Fruto desse processo ocorre o adensamento da
questão social na sua dimensão regional, expressa pela intensificação da divisão internacional
(e inter-regional) do trabalho, da exploração por intermédio da reestruturação produtiva e dos
diversos conflitos de base territorial refletidos na violenta onda migratória cada vez mais
pulsante nos dias de hoje, produzindo milhões de refugiados mundo afora, (re)compondo a
questão regional em termos macrossociais. 5
No Brasil, compreendemos a região Nordeste como destaque nessa questão, sofrendo
com tônica diferenciada os reflexos da concentração de riqueza, renda e poder no país. Os
desdobramentos econômicos e políticos desse processo constituíram uma narrativa dominante
e elitista de “região-problema”, predominante até hoje, muito embora com aspectos dissonantes
- a exemplo daqueles presentes no último ciclo de desenvolvimento no país - que pôs em
destaque essa região como promissora e protagonista de uma onda de crescimento econômico,
tal como já sinalizado.
A despeito da condição estrutural, houve, durante o período priorizado em nossa
pesquisa, também a forte presença de alguns “contrapesos” que, a nosso ver, viabilizaram o
crescimento econômico do Nordeste na última década e seus consequentes impactos na questão
social e regional. Primeiro, a política de composição de classes vigente no referido período foi
pautada e sustentada por um ganho maior de setores empresariais, inclusive do agronegócio.
Assim, como lado mais pesado da mesma moeda, os governos em questão, ao retomarem a
política industrial relegada pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e reorientarem a
atuação estatal, de acordo com Brettas (2013, p.196), deixam claro “sua preocupação em não

5
Entendemos que a questão regional é um aspecto fundamental para a conformação do capitalismo,
particularmente no Brasil. Desse modo, é também uma importante mediação para dimensionar a questão social.
Esta, para Iamamoto (2004, p.27-28), “sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam
as desigualdades e a ela resistem e se opõem”. Assim, com o desenvolvimento capitalista, emergem e acirram-se
os conflitos sociais através do aprofundamento da questão social, que se mundializa regionalizando-se. Trata-se,
portanto, de um conjunto das expressões das desigualdades sociais que tem uma raiz comum: “a produção social
é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos
mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade [...].”. Ou, nas palavras de Mota (2010), referimo-
nos ao “conjunto de questões reveladoras das condições sociais, econômicas e culturais em que vivem as classes
trabalhadoras na sociedade capitalista”. Há, contudo, abordagens e perspectivas teórico-metodológicas
diferenciadas sobre o tema da “questão social”, especialmente na literatura profissional do Serviço Social
brasileiro, mesmo que, como nos alerta Netto (2000, p.41), seja um “ponto saliente, incontornável e praticamente
consensual”. Nesse sentido, ainda segundo o autor, “é fato que a expressão ‘questão social’ não é semanticamente
unívoca; ao contrário, registram-se em torno dela compreensões diferenciadas e atribuições de sentido muito
diversas.”. Na tradição marxista, por exemplo, não há como se remeter a esse tema sem relacioná-lo ao fenômeno
do pauperismo, típico da ordem burguesa, sendo a “questão social” constitutiva do desenvolvimento capitalista.
Feitas tais observações, optamos por retirar as aspas dos termos “questão social” e “questão regional”.
21

romper com o capital, mas de fortalecê-lo. O faz, todavia, de maneira diferente da que se definiu
nos governos anteriores”. Segundo, é possível identificar relativa estagnação de outras regiões.
Terceiro, a realidade nos fez constatar a ausência de significativas mudanças nas desigualdades
sociais e concentração de renda.
Como resultado desse processo, a tal melhoria nas condições de vida sinaliza de modo
cada vez mais latente o seu caráter relativo e temporário. As próprias taxas de crescimento não
têm sido estáveis, constantes, nem significativamente altas, especialmente nos últimos anos, a
revelar os limites do pacto social e da forma de se fazer a política de conciliação de classes que
foi bem-sucedida por um tempo. Isso tendo em vista, dentre outros fatores econômicos e
políticos no contexto internacional, que a dinâmica capitalista possibilita dentro da dialética de
expansão e estagnação entre as regiões, um período, mesmo que temporário, de ascensão
econômica e de desdobramento de contra-tendências. Essa dinâmica permitiu alterações no
movimento migratório, nas expressões e formas de enfrentamento a questão social no Nordeste,
o que não significou, por outro lado, alterações substanciais na divisão regional do trabalho, na
concentração de riquezas em território brasileiro e nas próprias políticas sociais voltadas para a
questão regional, a exemplo da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR).
Como síntese, constitui-se uma nação que ocupa o posto entre a 7ª e 8ª maior economia
do mundo com o contingente de 1% mais rico da população a ganhar quase cem vezes mais que
os 10% mais pobres. Tal desigualdade mantém um forte corte regional, o que faz, por exemplo,
do Nordeste brasileiro concentrar cerca de 30% da população nacional e mais da metade da
pobreza no país. (PNUD, 2013). Este quadro torna-se mais agravante diante da baixa qualidade
dos serviços públicos e políticas sociais cada vez mais escassas, fragmentadas e focalizadas.
Mas, então, o que viabilizou essas mudanças, mesmo que temporárias? O que explica
as inflexões das expressões e das formas de enfrentamento a questão social no Nordeste nos
anos 2000 e qual a importância desse fenômeno para o desenvolvimento capitalista no país
durante esse período? Ousamos, durante este trabalho, apresentar alguns sinais para que as
respostas a tais questionamentos pudessem ser maturadas ao decorrer da tese. Isto levando em
consideração os aspectos marcantes do contexto internacional contemporâneo; as
possibilidades do desenrolar de medidas anticíclicas, com tempo cada vez menor de
permanência; o maior descompasso historicamente constituído entre riqueza e pobreza em
determinadas regiões cujo peso do atraso tornou-se mais presente; as diferenças existentes entre
o novo pacto social, que viabilizou a “frente neodesenvolvimentista” nos anos 2000, e o período
anterior de vigência da ortodoxia neoliberal, anos 1990; as tensões existentes entre os setores
diversos que compõem as classes sociais no país; a recomposição (ou recombinação) da relação
22

entre moderno e arcaico na história brasileira mais recente.


Entendemos que o último ciclo de desenvolvimento foi viabilizado, produzindo um
impacto rápido e significativo, além de uma maior dinamização na economia, mediante a
prioridade dada às regiões mais pauperizadas, com mais espaço para a expansão capitalista nos
diversos setores da sociedade e condições mais propícias de crescimento sem maiores perdas
em termos de lucratividade dos principais setores empresariais, diminuindo a pobreza absoluta
em relação a relativa e o desemprego, a implicar na reconfiguração da superpopulação relativa,
mesmo em meio à permanência e ao espraiamento de formas degradantes de exploração da
força de trabalho, mercantilização e financeirização das políticas sociais.
Daí o destaque do Nordeste, região que historicamente cumpre um papel central na
divisão regional do trabalho, constituindo um exército industrial de reserva que tenciona o
rebaixamento do preço da força de trabalho no país; com grande diferenciação salarial em
relação à média nacional; menor índice de industrialização em comparação a outras regiões,
implicando em taxas reduzidas de produtividade do trabalho e menor composição orgânica do
capital; maior peso da pauperização absoluta e, portanto, de condições de trabalho informais e
precárias; além da grande marca da questão agrária que retrai ainda mais o mercado interno e
revela com maior clareza a relação orgânica entre o atraso e o moderno no capitalismo. Tais
fatores, no nosso entendimento, foram determinantes para a prioridade dada à geração de postos
de trabalho e aos investimentos em grandes projetos no período priorizado nesta pesquisa. Isso,
muito embora, contraditoriamente, também tenha implicado sobre a recomposição da classe
trabalhadora e o conjunto de resistências coletivas, particularmente na referida região, a
exemplo da forte e histórica presença de movimentos sociais, incluindo os de cunho sindical,
de trabalhadores do campo. Esses aspectos subsidiaram também uma explicação sobre as
inflexões relativas à questão social no Nordeste e a importância desse fenômeno para o último
ciclo de desenvolvimento, que implicou, de fato, nas condições de vida e trabalho dos sujeitos
integrantes da base da pirâmide social no país.
Para não esquecermos o nosso fio condutor expresso no movimento paradoxal, dialético,
da realidade, é preciso lembrar que, no enredo do capital, tal como no de Grande Sertão Veredas,
“as coisas são e não são”, “tudo é e não é”, muito embora o que predomine, o que impere, seja
os interesses capitalistas, a produção de mercadoria, alienação e barbárie. Porém, isso não nos
tira as condições possíveis de mudança e desalienação. Assim, como no referido romance, a
história, longe de ser pré-determinada, nos mostra também que “tudo que começa e deveria
acabar de um jeito”, pode acabar de outro. Basta observar o desencadeamento de revoluções
em realidades, a princípio, adversas como a Rússia do início do século XX. De toda forma,
23

como a tese que aqui se apresenta não se trata de um romance, tendo em vista a predominância
do objeto de pesquisa posto no real, a prioridade foi conhecer a realidade em suas contradições.
Estas, no entanto, extrapolam os limites categóricos, conceituais e temporais da pesquisa em
questão, já que o movimento de expansão e estagnação entre as regiões produz clivagens nas
classes, disputas de interesses inter e intraclasse transcendendo qualquer dicotomia e
polarização. Em outras palavras, entendemos a incorporação de trabalhadores e de regiões na
dinâmica do capital produzem mudanças significativas e perceptíveis, porém, muitas vezes,
ainda não absorvidas pelas classes em relação, luta.
Feitas essas considerações introdutórias, destacamos que o objetivo geral da nossa
pesquisa foi analisar as inflexões ocorridas na questão social no Nordeste durante os anos 2000
e suas repercussões para o desenvolvimento capitalista no país durante esse período. Já os
específicos foram, respectivamente, i) identificar os aspectos e fundamentos que constituem a
dimensão regional da questão social no capitalismo, atentando para o papel das regiões na
reprodução social, no movimento de concentração e centralização do capital e na lei do
desenvolvimento desigual e combinado; ii) entender a importância histórica do Nordeste na
formação social brasileira, em especial na configuração da relação orgânica entre atraso e
moderno no capitalismo dependente; iii) caracterizar o desenvolvimento capitalista no Brasil
no último período (2007-2015) com foco nos elementos (econômicos e políticos) mais
relevantes que conformaram a questão social no Nordeste.
Para tanto, foi necessária uma apresentação, mesmo que breve, de alguns aspectos que
caracterizam a questão regional, como dimensão da questão social, no último período, a partir
do Nordeste, na busca de entender quais foram os fatores que levaram a um quadro de relativas
mudanças nas condições de vida e trabalho das classes subalternizadas dessa região, incidindo
temporariamente sobre as desigualdades regionais no país. Isto tendo como base as
problematizações e os apontamentos, em especial, por parte de autores, pensadores clássicos e
intérpretes do Brasil.
Foi importante adensar o estudo bibliográfico, com explicitação de dados primários e
secundários, a fim de fundamentar nossas argumentações, considerando os aspectos sócio
históricos da realidade, as expressões e tendências do capitalismo contemporâneo e suas
particularidades na recente conjuntura brasileira e nordestina. Isso foi o ponto de partida
necessário para o entendimento do papel das desigualdades regionais no atual padrão de
acumulação capitalista, sem perder de vista a compreensão da totalidade social. Para tanto, foi
necessário atentar para o seguinte:
24

[...] para não viciar sua capacidade de observação, de análise e de interpretação, o


sujeito investigador precisa, para investigar unidades que caem no segundo caso,
ajustar-se criticamente às condições específicas seja do seu objeto de estudo, seja de
sua investigação. Isso implica romper com o resíduo naturalista implícito na ideia de
que o regime de classes surge da mesma maneira, funciona do mesmo modo e produz
os mesmos resultados onde quer que ele apareça. Para os fins de nossa discussão, isso
quer dizer, especialmente, que o sociólogo deixará de considerar o desenvolvimento
capitalista como se ele próprio fosse um cientista de laboratório ou um matemático
(FERNANDES, 1979, s/p.)

Nessa perspectiva, consideramos a pesquisa como mediação privilegiada na relação


entre conhecimento e realidade. Assim, um dos principais desafios apresentados a esse processo
foi o método investigativo. Isto diante da necessidade de apreender a processualidade
contraditória, o movimento do real enquanto aparência e essência a partir da forma mais
avançada, mais complexa de existência, àquela mais simples. Afinal, o caminho feito por Marx
([1867] 1984) não se deu a “partir da economia feudal para chegar à economia capitalista. Mas,
ao contrário, de considerar a economia capitalista constituída na sua forma mais avançada, isto
é, a partir da Inglaterra, na qual o modo industrial de produção se revela já com dinamismo
típico do mundo moderno.” (FERNANDES, 1995, p.51). E foi tentando se espelhar nesse
movimento que buscamos as conexões necessárias entre o universal e o regional.
Dessa forma, analisamos a realidade regional conectada aos processos globais (macro-
sociais) contemporâneos de mundialização do capital, sem deixar de levar em consideração as
particularidades. O mesmo foi feito com a discussão sobre a esfera da política procurando
conectá-la aos aspectos econômicos, conforme sinaliza Netto (1990, p.70): “Tornou-se claro
que a compreensão do ordenamento político de uma sociedade historicamente situada só é
alcançável quando conectada à compreensão da sua estrutura”. Assim, houve a necessidade de
pôr em questão na reflexão sobre desenvolvimento capitalista, questão social e classes sociais
no Nordeste as “mediações (históricas e sociais) que articulam as duas instâncias (política e
econômica) na conformação de uma totalidade sócio-histórica”.
Partimos do pressuposto de que na teoria social não é cogitada a pretensão de uma
neutralidade, mesmo que haja um distanciamento do objeto a ser estudado. Afinal, “a relação
sujeito/objeto no processo do conhecimento teórico não é uma relação de externalidade, tal
como se dá, por exemplo, na citologia ou na física; antes, é uma relação em que o sujeito está
implicado no objeto” (NETTO, 2009, p.674), superando o dualismo entre sujeito e objeto na
construção do conhecimento.
A saber que o método de exposição difere daquele referente à investigação, entendemos,
a partir dos termos do próprio Trotsky (1977, p.382), que “qualquer exposição histórica tem o
direito de pretender que se lhe conheça objetividade quando, apoiar-se em fatos exatamente
25

estabelecidos, ela reproduz a ligação interna deles à base do desenvolvimento real das relações
sociais. A razão intima de ser do processo que então se desvenda é, em si mesma, a melhor
verificação da objetividade da exposição”. Desse modo, a compreensão que nos guiou sobre a
história é a de que ela culmina na explicação do presente e que, além disso, existe uma relação
reciproca entre prática e teoria, conhecimento e transformação da realidade. Assim, para nós, a
“necessidade de atuarmos sobre a realidade é o que nos conduz ao conhecimento. Não obstante,
para intervir, é preciso conhecer” (GUERRA, 2009, p.705) mediante procedimentos adequados.
A partir desse entendimento, para conseguirmos alcançar os objetivos aos quais nos dispomos,
foi necessário recorrer a determinadas fontes, procedimentos e instrumentos durante todo o
processo de investigação, tal como a pesquisa bibliográfica, construindo um diálogo com a
realidade empírica mediante dados e informações coletadas.
Desde a construção do texto de qualificação, foi importante o desenvolvimento de um
“estado da arte”, um levantamento prévio das principais e diferentes interpretações correntes
sobre o tema em questão, priorizando a perspectiva do nosso trabalho. Este passo foi
fundamental para a construção das categorias, compreendidas enquanto “formas de modos de
ser, determinações de existência, frequentemente aspectos isolados de [uma] sociedade
determinada” (MARX apud NETTO, 2009, p.685). Tais categorias, sendo reais, objetivas,
portanto históricas e transitórias, mediante procedimentos intelectivos, poderão ser
reproduzidas teoricamente pelos sujeitos da pesquisa. Elas se “constroem pela reflexão que ao
mesmo tempo vai articulando as relações, os processos que constituem o seu objeto”,
representando, dessa forma, uma síntese e ao mesmo tempo um ponto de partida, uma “unidade
na diversidade” (IANNI, [1986] 2011, p.13). Com base nessa perspectiva dialética de
construção do conhecimento, a princípio, apresentamos duas categorias centrais:
desenvolvimento desigual e questão social, sendo priorizado o contexto do Nordeste brasileiro.
Desenvolvemos, portanto, uma pesquisa bibliográfica e documental que buscou se
respaldar nos seguintes passos: a) um criterioso estudo de obras clássicas e contemporâneas de
autores referenciados no tema da pesquisa e nas questões transversais; b) uma análise rigorosa
de dados e informações em documentos oficiais (censos, estatísticas, pesquisas, relatórios,
comunicados e demais publicações) que respaldou o alcance aos objetivos geral e específicos
da tese.
Para tanto, a delimitação do período (2007-2015) buscou atentar desde as condições
mais favoráveis para o acesso às informações consolidadas e oficiais até alguns aspectos que
marcam o início, o auge e os sinais de esgotamento do último ciclo de desenvolvimento no país,
com o foco nas ações mais voltadas para a questão regional e o Nordeste. Diante disso,
26

observamos que em 2003 teve início a gestão no âmbito do governo federal do Partido dos
Trabalhadores (PT) que permaneceu até 2016 com mudanças significativas. De 2003 a 2009,
mesmo diante da crise de 2008, houve um aumento considerável de investimentos públicos –
quase quatro vezes, segundo Tautz et al (2010), especialmente via fundo público através de
instituições como o BNDES, permitindo a viabilidade de iniciativas e medidas anticíclicas
(redução da taxa de desemprego, política de valorização do salário mínimo, adoção de uma
política industrial, incentivo ao crédito, programas de transferência de renda, fortalecimento de
grandes grupos empresariais, etc). Porém, já no ano de 2012 alguns sinais de esgotamento do
padrão de crescimento econômico e atuação do Estado tomam relevo, expressando as
contradições do projeto de desenvolvimento em curso naquele momento, em maior medida e
intensidade, nos protestos massivos de junho de 2013 e em 2015 através do pacote adotado pelo
governo de ajuste fiscal, com cortes orçamentários, que contribuiu para o desencadeamento de
uma crise social, política e econômica.
Dentre outros marcos importantes que refletem esse contexto e incidem sobre os
objetivos da pesquisa de tese, citamos aqueles que sinalizam o ano de 2007 como importante
para o início da nossa delimitação temporal. Vejamos:
• Lançamento da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), em 2003,
que, no entanto, passa a ser institucionalizada apenas em 2007 através do decreto nº
6.047 da Presidência da República;
• Publicação dos Planos Plurianuais para os períodos de 2004 à 2008, de 2008 à 2011, de
2012 à 2015, respectivamente nos anos de 2004, 2008 e 2012, decretados pelo
Congresso Nacional e sancionados pela Presidência da República através de lei
específica. Esses documentos sinalizam as prioridades, inclusive orçamentárias, dos
últimos governos;
• Criação de iniciativas voltadas para o crescimento econômico e enfrentamento a questão
regional, com forte presença em alguns estados nordestinos, como o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007;
• Instauração da nova Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)
através da Lei Complementar Nº 125, de 3 de janeiro de 2007.
Assim, com o intuito de uma caracterização geral desse período (2007-2015), foram
priorizados dados (nacionais e regionais), buscando, inclusive, uma comparação com o período
anterior (década de 1990), a partir de alguns eixos, com suas respectivas variáveis, que
representam importantes dimensões da realidade pesquisada: empregabilidade (formal e
27

informal), salário-mínimo, crescimento econômico (PIB), orçamento investido nas atividades


econômicas, desigualdades sociais e regionais, concentração de renda, expectativa de vida,
renda média, orçamento público destinado às principais políticas e programas sociais, fluxos
migratórios, demografia rural e urbana, entre outros.
Esse caminho ocorreu a partir da base de dados oficiais divulgados por instituições que,
a nosso ver, nos deu maiores subsídios, inclusive em termos de validade, sobre as questões
relativas ao tema e objetivos da pesquisa, tais como: Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Departamento Intersindical de Estatísticas e
Estudos Sócioeconômicos (DIEESE).
A análise documental que realizamos subsidiou também uma constatação sobre o “lugar
do Nordeste” no discurso oficial que predomina acerca da região. Para isso, priorizamos
documentos como a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), os Planos
Plurianuais, matérias jornalísticas, entre outros.
A relevância da temática também se apoia na possibilidade de contribuirmos para o
debate acadêmico e político sobre a questão regional, muitas vezes negligenciada e concebida
de forma simplista, reproduzindo estereótipos e (ultra)generalizações que se distanciam da
realidade e da capacidade de compreendê-la tal como é, dialética. Há também a intenção em
gerar mais um subsídio para o Serviço Social e o entendimento das particularidades da questão
social no Brasil que venha a servir de apoio para o desenvolvimento de ações no âmbito das
políticas públicas em meio a uma importante trajetória já construída por renomados pensadores
e pensadoras que ousaram (e ainda ousam) analisar as entranhas da dinâmica capitalista e da
realidade brasileira e regional.
Outro aspecto que contribuiu para a escolha do tema, além dos estudos desenvolvidos
durante o mestrado6 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de 2009 a 2011, foi a
vivência pessoal e profissional, enquanto docente no curso de Serviço Social do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), criado em 2010, na região Centro-
sul do Ceará onde pudemos observar no nosso cotidiano, nas ações de pesquisa e extensão, na
relação com os estudantes e demais sujeitos, mudanças nos fluxos migratórios e na própria
dinâmica de vida e trabalho na região do sertão cearense.
Ressaltamos também duas experiências importantes ao decorrer do doutorado: a

6
Estudos que viabilizaram a dissertação de mestrado intitulada “Cooperação e hegemonia na dinâmica do
capitalismo contemporâneo: a cooperação agrícola e organização política dos trabalhadores rurais na Lagoa do
Mineiro/Ceará”.
28

primeira foi a realização do Curso Aspectos do Legado Teórico e Político de Florestan


Fernandes na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), onde tive a oportunidade de
conhecer melhor a grandeza das ideias e das ações deste importante brasileiro; a segunda foi o
estágio doutoral em Lisboa, que nos proporcionou ampliar o entendimento em torno do caráter
e da dinâmica contemporânea do desenvolvimento desigual e combinado capitalista e suas
principais expressões, observando as contradições e crises do bloco regional europeu, a partir
da realidade portuguesa. Isto também subsidiou o desvelamento, desde as terras lusitanas, dos
aspectos (divergentes e convergentes) que conformam historicamente a formação social
brasileira e sua configuração regional. Das semelhanças às diferenças entre Brasil e Portugal, é
certo que, muitas vezes, “de longe a gente se vê melhor”. Daí sinalizamos novamente a sintonia,
presente e futura, entre os diversos acontecimentos e estudos que estão sendo desenvolvidos no
Brasil e aqueles em curso “além-mar”. Estreitar esse canal de diálogo e viabilizar sua
permanência é, por isso, fundamental não apenas para a expansão do horizonte das pesquisas,
como também para ampliar a própria visão de mundo dos diversos sujeitos que se propõem a
analisar e agir sobre a dura e fértil realidade na qual estamos implicados.
Como resultado de todo esse processo, temos a tese, aqui apresentada, com a certeza de
que, apesar dos limites, das lacunas e dos desafios pela frente, demos nossa contribuição no
estudo sobre o Nordeste e a questão regional contemporânea, especialmente para o Serviço
Social. Nessa breve trajetória, ao invés de mais certezas, mais dúvidas se revelaram,
demonstrando a veracidade das palavras de Rosa ([1956] 2001, p.80) quando nos diz que “[...]
o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Além desta Introdução e das Considerações Finais, organizamos a tese em três
capítulos:
O primeiro, intitulado “O desigual e o combinado no desenvolvimento capitalista”,
apresenta um debate mais teórico e histórico em torno da questão do desenvolvimento na
tradição marxiana e marxista, a dialogar com a elaboração da lei do desenvolvimento desigual
e combinado, além das demais tendências e contradições que incidem mais centralmente na
configuração estrutural da questão regional. Procuramos também situar a concepção de região
e questão regional que orienta o trabalho e desenvolver um diálogo com autores sobre a
condição de dependência dos países latino-americanos e sua relação com o imperialismo e a
ideologia desenvolvimentista.
O segundo, denominado “Estado e desenvolvimento na configuração regional da
realidade brasileira”, trata sobre os aspectos centrais que constituem a formação social
brasileira, particularmente nordestina, com foco nas expressões do desenvolvimento desigual e
29

combinado, no amálgama entre arcaico e moderno, “desenvolvimento” e


“subdesenvolvimento”. Traçamos uma breve caracterização sobre o Estado brasileiro na era
monopolista e as principais formas de enfrentamento a questão regional como dimensão da
questão social, observando o papel histórico das desigualdades regionais e da região Nordeste
na divisão inter-regional do trabalho e no padrão de reprodução do capital em território nacional
como um todo.
O terceiro, intitulado “O Nordeste brasileiro no padrão de acumulação capitalista
vigente”, priorizou uma breve caracterização do capitalismo na sua fase atual com o enfoque
na relação entre mundialização e regionalização. Portanto, as expressões contemporâneas da lei
do desenvolvimento desigual e combinado foram também conteúdo central no referido capitulo,
especialmente aquelas que compõem o contexto brasileiro no período priorizado na pesquisa
(2007-2015). Os dados e o diálogo com os documentos oficiais (PNDR e PPAs) aparecem com
mais contundência, tal como o arremate dos pontos centrais da tese. Por fim, traçamos uma
avaliação sobre os recuos e o aprofundamento da questão social e de suas formas de
enfrentamento a partir do Nordeste contemporâneo, repondo a tese central do trabalho como
síntese de múltiplas determinações.
Por fim, mesmo certos de que o romance sinalizado no início desta introdução pode
servir como ponto de partida, mas não como ponto de chegada, que, assim como no enredo de
Guimarães Rosa, a necessidade de forjar o novo no velho não nos deixe solapar pela dureza do
nosso tempo e não nos faça desistir da batalha das ideias. Esta certamente não poderá ser travada
sem a devida munição de conhecimento sobre a realidade que nos cerca. Aqui, mais
precisamente, sobre a questão regional vigente nesses tempos. E, assim, continuemos, apesar
de tudo, nos inspirando a dar outros e maiores passos na nossa pesquisa, para além da conclusão
deste trabalho.
30

CAPÍTULO 1

1. O DESIGUAL E O COMBINADO NO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA

Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado.


Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.
[...] O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.

Guimarães Rosa

A sociedade brasileira compõe uma dinâmica histórica que no capitalismo toma


contornos distintos. Dentre estes, aquele já descrito por Marx e Engels (1998, p.11-12), em
1848, plenamente manifestado nos dias atuais, através das seguintes palavras: “No lugar da
tradicional auto-suficiência e do isolamento das nações surge uma circulação universal, uma
interdependência geral entre os países. E isso tanto na produção material quanto na intelectual”.
Trata-se da condição de existência e desenvolvimento do modo de produção capitalista: a
universalização, a expansão mundial do capital como tendência, o que torna possível a
burguesia criar um mundo “à sua imagem e semelhança”.

Em todas as formas de sociedade se encontra uma produção determinada, superior a


todas as demais, e cuja situação aponta sua posição e sua influência sobre as outras. É
uma iluminação universal em que atuam todas as cores, e às quais modifica em sua
particularidade. É um éter especial, que determina o peso específico de todas as coisas
às quais põe em relevo (MARX, 2008, p.264)

Diante de tais afirmações que, historicamente, são ratificadas pela realidade, para
Fernandes (1998, p.111-112), Marx e Engels desde o Manifesto Comunista já identificam a
tendência de intensificação de fluxos globais do comércio como aspecto da expansão global do
capitalismo, “processo constitutivo do mundo moderno”. Trata-se, portanto, de uma
característica indispensável do “novo modo de produção” que, nos termos do autor, “pela
primeira vez na história, integrou todo o planeta em um único mercado, subordinando,
subvertendo e suplantando variadas formas de cultura e de sociedade preexistentes.”. Daí o
papel da colonização no processo de consolidação capitalista como expressão de uma “nova
ordem que é a do mundo moderno”. (PRADO JR, 2008).
Por outro lado, é necessário entender a universalização do capital na esteira da
31

controvérsia e da contradição presente na própria lei do valor, demandando também a


concentração e a centralização da riqueza, propriedade, população e do poder por parte da
burguesia, mediante a formação de Estados nacionais unificados, resultando e viabilizando a
fase imperialista e monopólica do capitalismo.
Sobre isso, vale ressaltar que o desenvolvimento capitalista, especialmente na sua fase
imperialista, é constituído pela capacidade do trabalho socialmente combinada sob a forma do
trabalhador coletivo7, “forma fundamental do modo de produção capitalista”, valorizando o
valor 8 (agora, não apenas do valor-de-uso como também do valor-de-troca 9 ), através do
aumento da produtividade com a divisão social do trabalho10, inserção de técnicas e diminuição
do tempo socialmente necessário em uma combinação de extração de mais-valia relativa e
absoluta. Nesse sentido, diante da subsunção real do trabalho ao capital, a cooperação dos
assalariados passa a depender da amplitude da concentração dos meios de produção em mãos
dos capitalistas, do domínio e da “magnitude do capital que cada capitalista dispõe dos meios
de subsistência de numerosos trabalhadores”. Agora, certo montante mínimo é “condição
necessária para a conversão de muitos processos isolados e independentes num processo de
trabalho social, combinado […]. O comando do capitalista no campo da produção torna-se
então tão necessário quanto o comando de um general no campo de batalha” (MARX, 2008,

7 Segundo Marx (2008, p.375-379), “a produção capitalista só começa realmente quando um mesmo capital
particular ocupa, de uma só vez, número considerável de trabalhadores, quando o processo de trabalho amplia sua
escala e fornece produtos em maior quantidade. A atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no
mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadoria sob o
comando do mesmo capitalista constitui, historicamente e logicamente, o ponto de partida da produção capitalista
[...]. Chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no
mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos [...]. Não se trata aqui da
elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas da criação de uma força produtiva nova, a saber,
a força coletiva”.
8 No modo de produção capitalista, “na medida em que do trabalho resultam mercadorias cujo possuidor é o
capitalista, que, vendendo-as, obtém um excedente dos produtores diretos, o trabalho é, além de processo de
criação de valor, processo de valorização do capital. A criação de valor opera-se no tempo de trabalho necessário;
a valorização opera-se no tempo de trabalho excedente” (NETTO; BRAZ, 2007, p.111).
9 Na sociedade capitalista “os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca. O
valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção
em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e espaço” (MARX, 2008, p.58). “O valor-de-troca
das mercadorias e, portanto, dos meios de produção não aumenta em virtude da maior exploração de seu valor-de-
uso” (Ibid., p.377).
10 A também chamada de divisão capitalista do trabalho “conduz à especialização das atividades e, ao mesmo
tempo, à destruição dos saberes de ofício que permitiam ao trabalhador o conhecimento técnico do conjunto das
operações necessárias à produção de certo bem; alocado a uma única e determinada tarefa, que repetirá ao longo
de todas as jornadas de trabalho, o trabalhador será despojado dos seus conhecimentos e perderá o controle de suas
tarefas [...]. A divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas propiciará um enorme aumento
da produtividade do trabalho e terá como efeito uma diferenciação da força de trabalho que favorecerá os desígnios
do capitalista” (NETTO; BRAZ, 2007, p.112). Segundo Iamamoto (2009, p.16), as formas gerais dessa divisão
são expressas “no mercado mundial, por grupos de países, no interior de um país, entre agricultura e indústria,
cidade e campo, etc., passando pelas formas singulares e particulares dentro dos ramos de produção, até a divisão
do trabalho no interior da oficina”.
32

p.383-388).
A re(produção) das relações sociais que viabilizam esse padrão de acumulação dá-se
contraditoriamente sob determinadas (re)configurações de tempo e espaço tendo como
expressão o aprofundamento da questão social e, consequentemente, o acirramento dos
conflitos por intermédio das classes sociais, na tentativa incessante de se reproduzirem objetiva
e subjetivamente. “Tudo isso resulta no que chamamos de 'desenvolvimento geográfico
desigual' do capitalismo” (HARVEY, 2013, p.478).
É importante ressaltar, para evitarmos análises lineares da história, que a forma de
produção dominante exerce (e exerceu) sua hegemonia nos territórios a partir de formas
particulares - inclusive nas formações sociais onde subsistem relações pré-capitalistas - como
uma “luz universal” que transforma as outras “cores”, tal como sinalizam as contribuições de
Lênin “sobre a variada combinação de estruturas econômico-sociais nas distintas formações
sociais nacionais geradas no rastro da expansão global do capitalismo” (FERNANDES, 1998,
p.117-118). Daí o nível de complexificação do desenvolvimento capitalista nas diferentes
sociedades, atuando como uma “unidade na diversidade”, se propagando sobre uma realidade
heterogênea, que cresce e se difunde “em um ambiente geográfico variado que abarca grande
diversidade” (HARVEY, 2013, p.526).

Portanto, a articulação tensa e contraditória de dimensões globais e nacionais está


entranhada na modernidade capitalista desde seus primórdios […]. O mercado
mundial ainda está longe de “retirar da indústria sua base nacional”, mesmo no caso
das empresas multinacionais. O humanismo universalista ainda está longe de
substituir “a estreiteza e o exclusivismo nacionais” como principal referência de
identidade […] uma vez integrado economicamente o planeta, não se pode esperar
que as regiões incorporadas mais tardiamente reproduzam o mesmo padrão de
desenvolvimento dos países onde o capitalismo se originou […] o mundo unificado
pelo capitalismo não é moldado homogeneamente à imagem das suas sociedades
centrais. (FERNANDES, 1998, p.113-115).

Mesmo que o movimento ampliado do capital tendencialmente aponte para a destruição


das fronteiras regionais e demais barreiras territoriais ao desenvolvimento das forças
produtivas11 e outras necessidades materiais e espirituais de expansão capitalista, encontra, no
seu próprio modo de ser, barreiras que demandam a produção de novas formas de

11
“No capitalismo, as forças produtivas, compreendidas sempre como forças sociais, encontram-se todo o tempo
em interação dinâmica. A competição entre os capitais, a busca de novos processos produtivos, a conquista de
outros mercados e a procura de lucros provocam a dinamização das forças produtivas e da forma pela qual elas se
combinam e aplicam nos mais diversos setores de produção, nas mais diferentes nações e regiões do mundo. Estão
em marcha os processos de concentração do capital, o que implica na contínua reinversão dos ganhos no mesmo
ou em outros empreendimentos, e os de centralização do capital, o que implica na contínua absorção de outros
capitais, próximos e distantes, pelo mais ativo, dinâmico ou inovador.” (IANNI, 1995, p.137).
33

“diferenciação geográfica”. Nesse sentido, Löwy (1995, p.73-74) sinaliza a magnitude da


contribuição dada por Leon Trotsky à perspectiva marxista através da sua “teoria do
desenvolvimento desigual e combinado”, o que, segundo o autor, foi “uma tentativa de […] dar
conta da lógica das contradições econômicas e sociais dos países de capitalismo periférico ou
dominados pelo imperialismo”. Acrescentamos os seguintes termos de Trotsky (1977, p.25):

A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se


com maior e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das
necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos.
Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de
denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que
significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas,
amálgama das formas arcaicas com as mais modernas.

Alguns autores fazem referência às economias desses países como aquelas que se
conformam a partir de uma maior presença da combinação de elementos do moderno e do
arcaico (ou atraso). Todavia, é importante observar que em muitos momentos de constituição
do capitalismo, inclusive na Inglaterra, onde se conformou, segundo Marx (1984), em sua forma
clássica, do processo de acumulação primitiva (ou originária) do capital aos desdobramentos
das tendências e contradições que compõem a Lei Geral da Acumulação Capitalista,
(re)incidiram formas de existência retrógradas, mais características de outros modos de
produção. A fome, a baixa expectativa de vida, habitações completamente insalubres e
miseráveis para uma parcela crescente da população, em meio a produção também ascendente
de riquezas, passam a ser fenômenos comuns da nova era. Afinal, “todo capitalista tem interesse
absoluto em extrair determinado quantum de trabalho de um número menor de trabalhadores,
em vez de extraí-lo de modo tão barato ou até mesmo mais barato de um número maior de
trabalhadores” (MARX, 1984, p.203). Daí a presença ainda marcante do trabalho forçado,
acompanhado por legislações excessivamente punitivas para uma sociedade regida pelo lema
da “liberdade”, que foi se configurando ao passar do tempo em formas análogas à escravidão.
Eis a irremediável relação entre pobreza e riqueza nos marcos da sociabilidade capitalista,
mesmo nos ditos países “desenvolvidos”.
Essas formas têm sua origem no processo de acumulação originária capitalista, portanto
num país rico “o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo
expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa
disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa
e da tortura”. (MARX, 1984, p.277). Ou seja, liberdade e escravização; legalidade e ilegalidade;
barbárie e civilização; cidadania e violação de direitos; contrato social e golpes violentos;
34

consolidação e dissolução da democracia; o velho e o novo são face da mesma moeda, sendo a
violência “parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma
potência econômica”. Dessa forma, reiterando as palavras de Marx (1984, p.286-292), se o
dinheiro “[...] ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces’, então
o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeito da cabeça aos pés”.
Para Lukács (2008, p. 96), isso remete também a relação histórica entre modernização
e colonialismo em que a “libertação” das colônias não fez desaparecer o “traço da velha
exploração e opressão; mas, na verdade, a política que se apresenta como nova […] não é mais
do que, em sua real substância, o prosseguimento com novos meios técnicos da velha política
colonialista”. Sobre isso, vejamos o que Marx (1984, p.285) nos diz:

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização


e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem
das índias Orientais, a transformação da África em um cercado para caça comercial
às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos
idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva.

Nessa perspectiva, Williams (2012, p.32-33) situa a relação entre capitalismo e


escravização como demanda necessária em um determinado período de desenvolvimento
capitalista, exemplificando as colônias inglesas e o papel econômico da escravidão negra e do
tráfico negreiro para a Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo na Inglaterra. O
autor, rompendo as barreiras do pensamento hegemônico de sua época, nega a concepção de
que a escravidão moderna seria fruto de uma aptidão natural e disposição racial do negro ao
trabalho forçado. Na verdade, para ele, a “escravidão foi uma instituição econômica de primeira
importância” diante da necessidade de substituir, nas colônias, o trabalho pessoal na terra pelo
compulsório. Porém, “a superioridade econômica do trabalho assalariado livre em relação ao
trabalho escravo é evidente […]. A mão de obra escrava trabalha com relutância, não é
qualificada, falta-lhe versatilidade. Em igualdade nas demais condições, é preferível o homem
livre”. Mas, então, por que a escravidão moderna? Observemos o que nos responde o autor em
questão:

Quando se adota a escravidão, não se trata de uma escolha em detrimento do trabalho


livre; simplesmente não há escolha. As razões da escravidão […] “são condições não
morais, e sim econômicas; dizem respeito não ao vício e à virtude, e sim à produção”.
Com a população reduzida da Europa no século XVI, não haveria como prover a
quantidade necessária de trabalhadores livres para uma produção em grande escala de
cana-de-açúcar, tabaco e algodão no Novo Mundo. Por isso foi necessária a escravidão
[…]. Em certas circunstâncias, a escravidão apresenta vantagens evidentes. Em
culturas como a cana-de-açúcar, o algodão e o tabaco, cujo custo de produção se reduz
consideravelmente em unidades maiores, o dono de escravos, com a produção em
35

grande escala e turmas de trabalho organizadas, consegue ter um uso mais rentável da
terra do que o camponês proprietário ou o pequeno agricultor. […] “O trabalho
escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de trabalho livre”
[…]. A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência
da escravidão. O trabalho forçado no Novo Mundo foi vermelho, branco, preto e
amarelo; católico, protestante e pagão. […] Eis aí, portanto, a origem da escravidão
negra. A razão foi econômica, não racial; não teve a ver com a cor da pele do
trabalhador, e sim com o baixo custo da mão de obra. Comparada ao trabalho indígena
e branco, a escravidão negra era muito superior. (WILLIAMS, 2012, p.33-50).

Novamente destacamos os apontamentos de Marx (1984, p.275) sobre o papel da


escravização (inclusive infantil) não apenas nas terras coloniais, mas na própria conformação
originária do capitalismo na Inglaterra de Henrique VIII, onde no século XVI se alguém se
recusasse a trabalhar, deveria “ser condenado a se tornar escravo da pessoa que denunciou como
vadio. O dono deve alimentar seu escravo com pão e água, bebida fraca e refugos de carne,
conforme ache conveniente. Tem o direito de forçá-lo a qualquer trabalho, mesmo o mais
repugnante, por meio do açoite e de correntes”. A escravização e o comércio de escravos foram
métodos centrais de acumulação primitiva do capital. Assim, “de maneira geral, a escravidão
encoberta dos trabalhadores assalariados na Europa precisava, como pedestal da escravidão
sans phrase, do Novo Mundo”. (MARX, 1984, p.291). Isso permite constatar que na criação
da lei aqui descrita está subjacente a forma de escravizar o trabalhador. O que mudou e o que
se perpetua nos tempos atuais? Certamente as consequências históricas desse processo
influenciou o peso de relações de trabalho mais degradantes em algumas regiões em relação a
outras, inclusive internamente a própria formação social brasileira, o que trataremos mais
adiante.
Dessa maneira, o amálgama entre as formas modernas e arcaicas e a desigualdade do
ritmo, como parte do desenvolvimento desigual e combinado, não estão presentes apenas nas
relações internacionais, que adquirem maior fôlego na fase imperialista do capitalismo, mas na
própria dinâmica de constituição das formações sociais (nacionais), influenciando
decisivamente em suas condições de inserção no movimento global cujo “ponto de partida do
desenvolvimento que produziu tanto o trabalhador assalariado quanto o capitalista foi a servidão
do trabalhador”. (MARX, 1984).

A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de


todo o processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e
percorre as várias fases em sequência diversa e em diferentes épocas históricas.
Apenas na Inglaterra, que, por isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma
clássica. (MARX, 1984, p.263).

Para melhor entender esse tema, podemos nos respaldar, nas contribuições de clássicos
36

como Vladimir Lênin (1870-1924), Antônio Gramsci (1891-1937) e José Carlos Mariátegui
(1894-1930) que, motivados pela necessidade de transformação social da realidade em que
viveram (respectivamente, Rússia, Itália e Peru), ousaram nas análises, hoje tão atuais como em
sua época, pondo em “movimento a dialética na história” e desvelaram particularidades no
desenvolvimento do capitalismo não apenas nessas nações, “mas também para outros países
que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem
passar pela revolução política de tipo radical-jacobino” (GRAMSCI, 2002, p.209-210). Essas
realidades nos colocam como desafios, tendo em vista o objeto desta tese: a) conhecer as
contribuições dos clássicos e a particularidade de cada época; b) entender o movimento
estrutural e conjuntural do modus operandi do capital como também suas expressões e
contradições mais marcantes na permanente dialética entre o “atraso” e o “moderno”, o
“regional” e o “universal”; c) perceber que é incompreensível o debate do desenvolvimento sem
o situarmos historicamente.

1.1. O debate do desenvolvimento na tradição marxiana e marxista

“Crescimento”, “progresso”, “evolução”, “avanço”, “prosperidade”. Todos os


sinônimos do “desenvolvimento” não são, nem poderiam ser, autoexplicativos. Afinal, não se
trata de uma questão etimológica. Como não existe um desenvolvimento nato, quando se trata
do processo histórico que constitui a humanidade, nos cabe alçarmos algumas questões centrais:
de qual desenvolvimento estamos falando? Desenvolvimento de quê, para quê e para quem?
O debate em torno da questão do desenvolvimento no legado do materialismo histórico-
dialético é atravessado por polêmicas desencadeadas a partir de inúmeras e distintas
interpretações que não poderão ser contempladas no presente texto. Buscamos, sumariamente,
alguns elementos que possam introduzir nossa discussão, escapando de noções mais difundidas
nas bibliografias próprias da Ciência Econômica e das teorias do desenvolvimento que, em geral,
associam tal questão “ao trânsito inexorável por etapas históricas bem definidas”.
Compactuamos com a concepção que entende “ser possível resgatar uma visão de mundo dentro
da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo, isto é, utilizado
[…] para se referir às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado”, sendo
“o desenvolvimento capitalista […] uma fase historicamente contingente do desenvolvimento
social em geral”. (BONENTE, 2014, p.276).
37

Assim, no nosso entendimento, a análise sobre a questão do desenvolvimento, na


perspectiva aqui priorizada, nos remete a dois principais movimentos. O primeiro, a crítica a
uma concepção abstrata e a-histórica de desenvolvimento, associada a uma ideia de crescimento
econômico supostamente para todos, que não nos permite conceber o desenvolvimento dentro
de uma dinâmica processual de articulação de complexos com graus diferenciados na história
que conformam uma totalidade. Esta constituída por várias esferas: economia, arte, política,
religião, direito. Ou seja, referimo-nos a um desenvolvimento geral, social, da humanidade com
determinações comuns a todas as épocas, mesmo que adquiram uma particularidade em cada
período.

Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais […], podemos dizer, por
exemplo, que mesmo o mais deplorável dos seres humanos é mais desenvolvido que
um animal de estimação […]. Nesse caso, o aumento no grau de complexidade poderia
ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido extensivo (aumento da
quantidade de componentes predominantemente sociais como elementos mediadores
da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade dos componentes já
existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como recuo das barreiras
naturais. […] (BONENTE, 2014, p. 277).

Aqui nos referenciamos na concepção de desenvolvimento ao qual o ser humano é


constantemente “confrontado com as bases naturais e sociais de sua atividade de maneira
dualisticamente excludente.”. Ou seja, trata-se de avançar no recuo das barreiras naturais, por
um lado, e, por outro, na realização da sociabilidade humana. Portanto, diz respeito a um
processo irreversível que é fruto e promotor do desenvolvimento social da humanidade que
teria no comunismo o começo de uma história real, propriamente dita, ou seja, o fim da sua
“pré-história”. Nessa perspectiva, “quanto mais desenvolvida uma sociedade no sentido social,
tanto mais variadas decisões de detalhes ela exige de cada um de seus membros, em todos os
domínios da vida, de tal modo que, objetivamente, domínios próximos entre si também podem,
frequentemente, mostrar grandes diferenças [...].”. Na mesma lógica, “quanto mais uma
sociedade é primitiva, [...] tanto mais raramente ela faz exigências múltiplas a seus membros,
exigências que estes só podem satisfazer no caminho da pergunta e da resposta” (LUKÁCS,
2010, p.91-93). Por tudo isso, não há como se pensar na questão do desenvolvimento sem
levarmos em consideração a práxis social. Vejamos:

Na medida em que assim a economia se torna ao mesmo tempo produtora e produto


do homem em sua práxis, a tese de Marx, de que os homens fazem sua própria história,
ainda que não em circunstâncias por eles escolhidas, tem como consequência natural
que também a generidade humana não é capaz de desenvolver-se sem que os
indivíduos tomem posições conscientes e práticas quanto aos problemas nela contidos
[…]. É o desenvolvimento econômico objetivo que transforma uma massa de
38

população em trabalhadores, criando, assim, interesses comuns para situações comuns.


Com isso, porém, a classe objetiva que assim nasce é “já uma classe face ao capital,
mas ainda não o é para si mesma”. Só na luta, cuja gênese imediata não pode ser
compreendida sem decisões alternativas sempre operantes de indivíduos humanos,
surge aquilo que Marx chama, com acerto, de “classe para si mesma”. Só a partir daí
é possível uma luta que chegue a se desenvolver plenamente, uma luta política. Se
acrescentarmos o momento […] da consciência da ação adequada indispensável para
tal práxis, que, segundo Lênin, “só pode ser trazida ao trabalhador de fora”, isto é,
fora da luta econômica, fora da esfera das relações entre operários e patrões, vemos,
de um lado, que cada decisão alternativa de cada trabalhador tornado individualidade
pressupõe como base um determinado estágio do desenvolvimento do ser social, e,
por outro lado e ao mesmo tempo, é impossível que a práxis coletiva assim originada
[…] possa ser mera consequência mecanico-causal imediata do desenvolvimento
(econômico) social objetivo. Pelo contrário, ela pressupõe a decisão alternativa
individual e, portanto diferente, de muitos indivíduos. No entanto, não se deve
esquecer que, naturalmente, a realidade fundante de que cada uma dessas decisões
alternativas é provocada pelo ser econômico, que permanece em última análise seu
único espaço real. (LUKÁCS, 2010, p.88-99).

O segundo movimento é o de situar o desenvolvimento no padrão hegemônico de


determinado período histórico, que, no caso específico da sociedade capitalista, significa
entender a operação das [suas] leis que emanam de uma organização social regida pelo capital
em “sentido extensivo e/ou intensivo”. Nessa organização específica, o indicador do grau de
desenvolvimento está na “predominância mais ampla da lógica capitalista na existência social”,
ou seja, no maior peso, centralidade e amplitude de atuação do capital no conjunto da vida
social. “Ainda que Marx destaque a teleologia como o aspecto distintivo da práxis humana, ele
simultaneamente caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da articulação
espontânea, não-teleológica dessas práticas.” (BONENTE, 2014, p. 279).
O desenvolvimento capitalista é, portanto, aquele que viabiliza a reprodução ampliada
do capital com suas forças propulsoras que determinam as diferenças do seu ritmo e sua
complexidade em cada realidade, impactando consideravelmente a humanidade em todas as
suas dimensões. Nessas circunstâncias, fazer “crescer o bolo” não está associado a sua divisão,
muito pelo contrário. Daí, tal como já sinalizamos, a fundamentação de muitos autores e
pensadores em adotarem nas suas análises outras designações, a exemplo do “desenvolvimento
desigual” ou “desigual e combinado”.
Partindo da realidade russa do início do século XX, Lênin (1982, p.373-374) apresenta
a seguinte constatação:

Dada a própria natureza do capitalismo, esse processo de transformação não pode


ocorrer de outro modo senão em meio a uma série de desigualdades e desproporções:
aos períodos de prosperidade sucedem os de crise, o desenvolvimento de um ramo
industrial provoca o declínio de outro, o progresso da agricultura afeta aspectos da
economia rural que variam segundo as regiões […] quando mais alto é o
desenvolvimento do capitalismo, tanto mais intensa se torna a contradição entre o
39

caráter social da produção e o caráter privado da apropriação […] o capitalismo


substitui a antiga dispersão da produção por uma concentração sem precedentes […].

O desenvolvimento capitalista atinge um alto grau de complexidade quando suas leis


como tendências estruturais estão amplamente objetivadas. E é exatamente a análise e
identificação dessas leis o grande legado da crítica a economia política. Porém, “qualquer
suposição de um único fator se opõe claramente à concepção do modo de produção capitalista
como uma totalidade dinâmica, na qual a ação recíproca de todas as leis básicas de
desenvolvimento se faz necessária para que se produza um resultado específico.” (MANDEL,
1982, p.25).
Sabemos que o novo nasce do velho, porém não houve uma transição mecânica de
camponês ao trabalhador assalariado; de nobreza a burguesia; de produção mercantil simples a
(re)produção ampliada capitalista. Foi necessário um conjunto de transformações que compõem
o processo de acumulação primitiva do capital, já sinalizado anteriormente, momento em que
“o próprio modo de produção não possuía ainda o caráter especificamente capitalista”. Em
outras palavras, quando o novo ainda não nasceu e o velho já não é mais possível, este torna-se
anacrônico.

A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das


condições de realização do trabalho. […] A assim chamada acumulação primitiva é,
portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de
produção. Ele aparece como “primitivo” porque constitui a pré-história do capital e
do modo de produção que lhe corresponde. […] Assim, o movimento histórico, que
transforma os produtores em trabalhadores assalariados, aparece, por um lado, como
sua libertação da servidão e da coação corporativa; e esse aspecto é o único que existe
para nossos escribas burgueses da História. Por outro lado, porém, esses recém-
libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de
produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições
feudais, lhes foram roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos
anais da humanidade com traços de sangue e fogo. (MARX, 1984, p.262).

Quanto mais alto é o desenvolvimento capitalista, mais amplamente consolidam-se seus


elementos constitutivos, tais como: a dissolução da propriedade privada baseada no próprio
trabalho e na dependência pessoal12; a desintegração do campesinato e a formação do mercado
interno; a generalização da (re)produção de mercadoria, da exploração do trabalho via extração
de mais-valia e do capital como relação social; a separação entre manufatura, indústria e

12
“Propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, existe apenas onde os meios de trabalho e
suas condições externas pertencem a pessoas privadas. Porém, conforme estas pessoas privadas sejam
trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume também caráter diferente. Os infindáveis
matizes que a propriedade privada exibe à primeira vista refletem apenas as situações intermediárias existentes
entre esses dois extremos” (MARX, 1984, p.292).
40

agricultura, substituindo “a antiga dispersão da produção por uma concentração sem


precedentes, quer na agricultura, quer na indústria” (LÊNIN, 1982, p.374); o predomínio do
trabalho abstrato sob o concreto; o trabalho socialmente combinado e o trabalhador coletivo
baseado na cooperação do trabalho e na sua divisão social; o salto da subsunção formal a
subsunção real do trabalho ao capital; o aumento da produtividade13 e da quantidade de trabalho
no processo produtivo, já que “o acréscimo do capital variável torna-se então índice de mais
trabalho, mas não de mais trabalhadores ocupados”; a mudança na composição técnica do
trabalho com acréscimo do capital constante em relação ao variável, atentando que, “ora o
capital continua a crescer sobre sua base técnica dada e atrai força de trabalho adicional em
proporção a seu crescimento, ora ocorre mudança orgânica e se contrai sua componente
variável”; a conformação do exército industrial de reserva e da superpopulação relativa 14 em
que “a população trabalhadora produz […] em volume crescente, os meios de sua própria
redundância relativa. […] essa superpopulação torna-se, por sua vez, a alavanca da acumulação
capitalista, até uma condição de existência do modo de produção capitalista.” (MARX, 1984,
p.199-203); a anarquia da produção e a “discrepância entre o desenvolvimento das forças de
produção e o desenvolvimento do consumo de massa” (MANDEL, 1982, p.18). Nos termos de

13
“[…] o grau de produtividade social do trabalho se expressa no volume relativo dos meios de produção que um
trabalhador, durante um tempo dado, com o mesmo dispêndio de força de trabalho, transforma o produto. A massa
dos meios de produção com que ele funciona cresce com a produtividade de seu trabalho. […] condição ou
consequência, o volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles
incorporada expressa a crescente produtividade do trabalho.” (MARX, 1984, p.194).
14
“A superpopulação relativa existe em todos os matizes possíveis. Todo trabalhador faz parte dela durante o
tempo em que está desocupado parcial ou inteiramente. […] ela possui continuamente três formas: líquida, latente
e estagnada. Nos centros da indústria […] trabalhadores são ora repelidos, ora atraídos em maior proporção, de
modo que, ao odo, o número de ocupados cresce, ainda que em proporção sempre decrescente em relação à escala
da produção. A superpopulação existe aqui em forma fluente. […] Assim que a produção capitalista se apodera da
agricultura […] decresce […] a demanda de população trabalhadora rural de modo absoluto […]. Parte da
população rural encontra-se, por isso, continuamente na iminência de transferir-se para o proletariado urbano ou
manufatureiro […]. Essa fonte da superprodução relativa flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante
para as cidades pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo […]. O trabalhador rural é, por
isso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo. A terceira categoria
da superpopulação relativa, a estagnada, constitui parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação
completamente irregular. Ela proporciona, assim, ao capital, um reservatório inesgotável de força de trabalho
disponível. […] É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário. Sob a rubrica de trabalho
domiciliar, já tomamos conhecimento de sua principal configuração. […] Finalmente, o mais profundo sedimento
da superpopulação relativa habita a esfera do pauperismo. […] o lumpemproletariado propriamente dito, essa
camada social consiste em três categorias. Primeiro, os aptos para o trabalho. […] Segundo, órfãos e crianças
indigentes. Eles são candidatos ao exército industrial de reserva e, em tempos de grande prosperidade […] são
rápida e maciçamente incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Terceiro, degradados, maltrapilhos,
incapacitados para o trabalho. […] O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército ativo de trabalhadores
e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa,
sua necessidade na necessidade dela, e ambos constituem uma condição de existência da produção capitalista e do
desenvolvimento da riqueza. […] Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército
industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral da acumulação capitalista.”
(MARX, 1984, p.206-209).
41

Mandel (1982, p.25-26):

[…] todas as variáveis básicas desse modo de produção possam [podem], parcial e
periodicamente, desempenhar o papel de variáveis autônomas – naturalmente, não ao
ponto de uma independência completa, mas numa interação constantemente articulada
através das leis de desenvolvimento de todo o modo de produção capitalista. Essas
variáveis abrangem os seguintes itens centrais: a composição orgânica do capital em
geral e nos mais importantes setores em particular (o que também inclui, entre outros
aspectos, o volume de capital e sua distribuição entre os setores); a distribuição do
capital constante entre o capital fixo eu circulante […]; o desenvolvimento da taxa de
mais-valia; o desenvolvimento da taxa de acumulação (a relação entre a mais-valia
produtiva e a mais-valia consumida improdutivamente); o desenvolvimento do tempo
de rotação do capital; e as relações de troca entre os dois Departamentos […]. Nossa
tese é que a história do capitalismo, e ao mesmo tempo a história de suas regularidades
internas e contradições em desdobramento, só pode ser explicada e compreendida
como uma função da ação recíproca dessas seis variáveis.

A consolidação desses elementos, à medida que se complexificam, promove também


uma mudança moral no conjunto da população, intensificando as contradições contidas na
forma de ser capitalista, expressas no aprofundamento da sua tendência central: “a acumulação
da riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria [...] no polo oposto,
isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital”. Isso tendo em vista que,
no padrão de (re)produção do capital, “nas mesmas relações em que avança o desenvolvimento
das forças produtivas, desenvolve-se também uma força repressiva” e, muitas vezes, regressiva,
já que “essas relações só produzem a riqueza burguesa, isto é, a riqueza da classe burguesa, sob
aniquilamento contínuo da riqueza dos membros individuais dessa classe e criação de um
proletariado sempre crescente”. (MARX, 1984, p.210).
A queda da taxa de lucro e o desencadeamento das consequentes crises de
superprodução de mercadorias, superacumulação de capitais e subconsumo das massas
trabalhadoras compõem o “DNA” desse desenvolvimento, já que, se “o sobretrabalho da parte
ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva” e esta exerce pressão a
primeira de tal modo a obrigá-la a se submeter aos ditames do capital, há, inversamente ao
aumento da produtividade do trabalho e da massa crescente dos meios de produção, a
generalização da média do tempo de trabalho socialmente exigido para a produção de
mercadorias através da concorrência mediante a lei do valor e condições menos propícias para
o consumo e o dinamismo do mercado interno frente ao crescente desemprego.

[…] para Marx as crises não são provocadas unicamente por uma
desproporcionalidade de valor entre vários ramos da indústria, mas também por uma
desproporcionalidade entre o desenvolvimento do valor de troca e do valor de uso,
isto é, pela desproporcionalidade entre a valorização do capital e o consumo
(MANDEL, 1982, p.22).
42

Tudo isso dificulta a realização da mercadoria e a valorização do capital implicando no


descenso da taxa de lucro. Daí a atuação orgânica do Estado e de suas políticas anticíclicas
como importante mecanismo de “drible”, mas não de extirpação, dessas tendências,
reestabelecendo um novo fôlego – às vezes mais curtos e outras vezes mais longos, mas cada
vez mais curtos – para o circuito de crescimento virtuoso do desenvolvimento capitalista.
(MANDEL, 1982, p.203).
Trata-se, portanto, do desenvolvimento de uma forma de sociabilidade característica da
era moderna que promove historicamente uma simbiose entre civilização e barbárie, tendo esta
segunda uma maior tônica, especialmente frente as transformações contemporâneas. Isso tendo
em vista que “as promessas de emancipação humana trazidas pela modernidade capitalista […]
exigem, para sua plena realização, a superação do próprio capitalismo” (COUTINHO, 1998,
p.54).

Quaisquer que sejam as “melhorias” que possam ser oferecidas no interior da estrutura
do modo de controle do capital, elas devem ser submetidas aos limites e contradições
da “produção como finalidade da espécie humana”, restrita à riqueza material alienada
como finalidade da produção. As melhorias definidas em tais termos podem, sob o
nível historicamente alcançado de desenvolvimento global do capital excessivamente
expandido, nos prometer apenas mais daquilo que já é excessivo, na quantidade
atualmente disponível, por causa de suas consequências irreversivelmente destrutivas.
(MÉSZÁROS, 2002, p.632).

Como a humanidade não é uma mera sucessão de fatos e etapas, nem poderia ser, é
possível observar que Marx (2008), ao se referir a complexidade das formações sociais, faz
constante referência ao desenvolvimento das forças produtivas e a sua capacidade civilizatória.
Sobre isso, ressaltamos que, no capitalismo, tal desenvolvimento tem sido a alavanca
propulsora do fetichismo da mercadoria. Vejamos:

[…] o desenvolvimento da força produtiva social do trabalho pressupõe cooperação


em larga escala, […] só com esse pressuposto é que podem ser: organizadas a divisão
e a combinação do trabalho; poupados meios de produção mediante concentração
maciça; criados materialmente meios de trabalhos apenas utilizáveis em conjunto, por
exemplo, sistema de maquinaria etc; postas a serviço da produção colossais forças da
Natureza; e pode ser completada a transformação do processo de produção em
aplicação tecnológica da ciência. […] O terreno da produção de mercadorias só pode
sustentar a produção em larga escala na forma capitalista. Certa acumulação de capital
nas mãos de produtores individuais de mercadorias constitui, por isso, o pressuposto
do modo específico de produção capitalista. […] todos os métodos de elevar a força
produtiva social do trabalho, surgidos sobre esse fundamento, são, ao mesmo tempo,
métodos de elevar a produção de mais-valia ou mais-produto, que, por sua vez, é o
elemento constitutivo da acumulação. São, por conseguinte, métodos para produzir
capital mediante capital ou métodos de sua acumulação acelerada. A contínua
retransformação de mais-valia em capital apresenta-se como grandeza crescente do
43

capital que entra no processo de produção. Este se torna, por sua vez, fundamento para
uma escala ampliada de produção, dos métodos que o acompanham para elevação da
força produtiva do trabalho e produção acelerada de mais-valia. (MARX, 1984, p.195).

Porém, é importante observar que o desenvolvimento das forças produtivas não existe
sem a permanente e complexa articulação com as relações sociais de produção, variando ao
longo da história, o que tornou possível a constituição como também o colapso, em um certo
grau de desenvolvimento, dos modos de produção já existentes diante da contradição entre as
forças produtivas materiais da sociedade e as relações de produção existentes. “De formas
evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se,
então, uma época de revolução social” (MARX, 2008, p.45). Ou, em outras palavras:

Esse modo de produção [pré-capitalista] pressupõe o parcelamento do solo e dos


demais meios de produção. Assim como a concentração destes últimos, exclui também
a cooperação, divisão do trabalho dentro dos próprios processos de produção,
dominação social e regulação da Natureza, livre desenvolvimento das forças
produtivas. Ele só é compatível com estreitas barreiras naturalmente desenvolvidas da
produção e da sociedade. Pretender eternizá-lo significaria, como diz Pecqueur com
razão, 'decretar a mediocridade geral'. Em certo nível de desenvolvimento, produz os
meios materiais de sua própria destruição. […] Sua destruição, a transformação dos
meios de produção individuais e parcelados em socialmente concentrados, portanto
da propriedade minúscula de muitos em propriedades gigantescas de poucos, portanto
a expropriação da grande massa da população de sua base fundiária, de seus meios de
subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação da massa
do povo constitui a pré-história do capital. […] O que está agora para ser expropriado
já não é [somente] o trabalhador economicamente autônomo, mas o capitalista que
explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se faz por meio […] da centralização
dos capitais. […] desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em
escala sempre crescente, […] o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial […], aumenta a extensão da miséria, da opressão, […] da exploração, mas
também a revolta da classe trabalhadora […]. O monopólio do capital torna-se um
entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos
meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto em que tronam
incompatíveis com seu invólucro capitalista. […] a produção capitalista produz [...]
sua própria negação. É a negação da negação. […] A transformação da propriedade
privada parcelada, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade
capitalista é […] um processo incomparavelmente mais longo, duro e difícil do que a
transformação da propriedade capitalista, realmente já fundada numa organização
social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da expropriação da massa do
povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores
pela massa do povo. (MARX, 1984, p.292-294).

Mandel (1982, p.152) ressalta o equívoco em interpretações mecânicas desse trecho da


obra de Marx, pois conceber a sociedade capitalista como plenamente desenvolvida, com suas
forças produtivas suficientemente operantes, não significa dizer que, a partir desse momento,
“qualquer desenvolvimento adicional se torne impossível sem uma derrubada desse modo de
produção; significa apenas que [...] as forças de produção ulteriormente desenvolvidas entrarão
em contradição cada vez mais intensa com o modo de produção existente”, o que se apresenta
44

como um fator agravante para a sua derrubada.

Embora as forças produtivas possam se desenvolver ainda mais, isso não altera o fato
de que a missão histórica do capitalismo foi completada. Na verdade, em
determinadas circunstâncias, tal desenvolvimento quantitativo poderia efetivamente
pôr em risco suas conquistas qualitativas. A tese de Lênin de que não há situações
absolutamente desesperadas para a burguesia imperialista não implica que, enquanto
não ocorrer uma revolução socialista, o modo de produção capitalista possa sobreviver
indefinidamente, ao preço de períodos crescentes de estagnação econômica e crise
social. […] a dinâmica do desperdício e destruição do desenvolvimento potencial que
a partir de agora acompanha o desenvolvimento efetivo das forças produtivas é tão
grande, que a única alternativa para a autodestruição do sistema, ou mesmo de toda a
civilização, reside numa forma superior de sociedade. Dessa maneira, apesar de todo
o crescimento internacional das forças produtivas no mundo capitalista [...], a opção
entre 'socialismo ou barbárie' adquire atualmente seu pleno significado. (MANDEL,
1982, p.156).

Lukács (2008, p.161-162) nos aponta as contradições postas na histórica relação entre
processo de trabalho, forças produtivas, necessidades e capacidades humanas:

o desenvolvimento das forças produtivas provoca diretamente um crescimento das


capacidades humanas, mas pode, ao mesmo tempo e no mesmo processo, sacrificar
os indivíduos (classes inteiras) […] – e aqui emerge plasticamente o problema da
alienação – o desenvolvimento das capacidades humanas não produz,
obrigatoriamente, aquele da personalidade humana.

O vínculo entre o desenvolvimento das forças produtivas, as capacidades humanas e a


formação do gênero humano, não é, portanto, unilateral e mecânico, mas atravessado por
relações sociais contraditórias e complexas, mudanças quantitativas e qualitativas15, tendo “a
luta de classes entre o capital e o trabalho, o papel do Estado burguês e da ideologia [...], a
estrutura concreta e mutável do comércio mundial e as formas predominantes de superlucros”
papel decisivo. Todos “esses elementos precisariam ser incorporados a qualquer exposição das
sucessivas fases históricas do desenvolvimento do capitalismo, e mesmo da fase contemporânea,
de capitalismo tardio” (MANDEL, 1982, p.04).
Consequentemente, entendemos que o padrão hegemônico de desenvolvimento da
sociedade em cada época é parte de um conjunto de embates de projetos coletivos também no
plano político-cultural. Isto tendo em vista que a taxa de mais-valia, de exploração da força de
trabalho, de uma determinada classe, “é uma função da luta de classes e de seu desfecho
provisório em cada período específico, entre outras coisas”. Assim, se essa taxa “vai

15
“[...] segundo Marx, a missão histórica do modo de produção capitalista não residia num desenvolvimento
quantitativamente ilimitado das forças produtivas, mas em determinados resultados qualitativos desse
desenvolvimento […] a grande qualidade histórica do capital é criar sobretrabalho” (MANDEL, 1982, p.156).
45

efetivamente aumentar ou não dependerá, entre outros fatores, do grau de resistência revelado
pela classe operária aos esforços do capital para ampliá-la”. (MANDEL, 1982, p.26). Daí a
importância da produção de hábitos, comportamentos e modos de vida, generalizando o projeto
da burguesia como imagem e semelhança de um projeto “de todos”, para a sustentação das
relações sociais antagônicas sob hegemonia do capital.
Nessa direção, é oportuna a crítica de Lowy (2015) a perspectiva etapista que, para o
autor, está presente inclusive na tradição marxista, tendo como premissa uma análise do
desenvolvimento como uma sucessão invariável de etapas históricas, o que constitui, para nós,
uma apropriação do materialismo histórico sob o viés dogmático e economicista. Este tendo
como um de seus representantes o marxista Karl Kautsky, um dos fundadores da social-
democracia alemã, que no início do século XX já sinaliza ser “apenas onde o sistema de
produção capitalista atingiu um alto nível de desenvolvimento que as condições econômicas
permitem ao poder público transformar os meios de produção em propriedade social”.
(KAUTSKY apud LOWY, 2015, p.14). Essa leitura da realidade respaldou uma concepção
sobre a necessária realização de uma revolução “democrático-burguesa” para se desencadear
um processo revolucionário de outra qualidade, a exemplo da revolução socialista. Esta
perspectiva influenciou durante muito tempo os Partidos Comunistas mundo afora. A etapa de
uma “revolução burguesa clássica” 16 como inevitável acabou se tornando, para muitos que
optaram pelos caminhos tortuosos da social-democracia e do revisionismo no referido século,
o objetivo último, tal como para Eduard Bernstein.
O desabrochar da Revolução de Outubro na Rússia, por exemplo, demonstrou, em meio
a condições completamente adversas em termos de desenvolvimento capitalista, que a “história
se move dialeticamente – não unilinearmente –, por meio de inumeráveis combinações, fusões,
descontinuidades, rupturas e saltos súbitos, qualitativos.”. Em outras palavras, revelou o
“caráter multiforme do desenvolvimento social concreto”, fazendo com que um conjunto de
tarefas democráticas não ficasse a cargo da burguesia, mas do proletariado. (LOWY, 2015, p.39-
43).

Esta quase unanimidade entre marxistas e seus críticos mais hostis a respeito da
ligação unilinear entre desenvolvimento econômico e revolução socialista reforçou
uma determinada interpretação do marxismo que alega que o materialismo histórico
provou-se uma análise falida. De fato, se o pensamento de Marx fosse simplesmente

16
“[…] é mais propriamente a Grande Revolução Francesa que fornece a Marx e Engels o protótipo ‘clássico’ da
revolução burguesa; pois, à diferença de sua predecessora inglesa, ‘ela constituiu um corte completo com as
tradições do passado; limpou até o último vestígio de feudalismo’.”. Tal concepção, porém, foi (e continua sendo)
questionada. Segundo Lowy (2015, p.16), Nicos Poulantzas em Poder Político e Classes Sociais, de 1975, é um
dos críticos da ideia de que o padrão exemplar de outras revoluções burguesas tenha sido a francesa.
46

este que lhe imputou Kautsky, então o desenrolar do século XX efetivamente


desmentiu todas as previsões de Marx. […] Aliás, se a exaustão do potencial de
desenvolvimento econômico em algum sentido abstrato é a pré-condição estrutural
predominante, qual país poderia cumprir o critério mesmo hoje? (LOWY, 2015, p.14-
19).

Em contrapartida, negar ou desconsiderar as determinações estruturais e a importância


central das condições objetivas decorrem também em equívocos históricos, a exemplo do
politicismo, que não nos aproxima do rico arcabouço teórico-metodológico do materialismo
histórico-dialético. Assim, admitir “a possibilidade objetiva de uma ruptura na sucessão de
tarefas históricas”, que possuem “uma articulação complexa, dialética”, exige o conhecimento
profundo sobre as circunstâncias concretas que viabilizam tal possibilidade, tendo sido objeto
de grande empenho por parte de pensadores revolucionários a partir de realidades como a russa.
Porém, ressalta Lowy (2015, p.21), isso “não pode ser reduzido a um evolucionismo metafísico
e economicista.”.
Falar de desenvolvimento de forças produtivas não significa necessariamente se referir
ao desenvolvimento capitalista. Basta observarmos a caracterização das suas tendências e das
formas clássicas de enfrentá-las por parte dos capitalistas que, em geral, implica em uma
“tremenda devastação das forças produtivas” (GORENDER, 1983, p.61). Portanto, pautar outro
desenvolvimento humano, sob fundamentos sócio-históricos distintos, tão complexo quanto o
que temos hoje, não é apenas viável, mas condição necessária para alterar as regras já dadas.
Isto tendo em vista que, ao contrário do disseminado por parte de alguns críticos à tradição
marxista, a concepção crítico-dialética nos oferece o entendimento sobre a questão do
desenvolvimento, particularmente capitalista, necessário para nos munir contra os argumentos
jusnaturalistas, componentes da ideologia burguesa, e para nos aproximar do objeto da tese.
Não se trata, nesse sentido, de um desenvolvimento “como encarnação da racionalidade
supra-histórica, nem suas leis específicas assumem o caráter de leis naturais”, o que temos são
sucessivos modos de produção (e reprodução social) representando grandes fases do
desenvolvimento histórico, “cujo princípio explicativo reside na correspondência entre as
relações de produção e o caráter das forças produtivas” (GORENDER, 1983, p.55).
Tal compreensão é, a nosso ver, fundamental, especialmente para os críticos da
sociabilidade capitalista, tendo em vista que tal crítica não “pode implicar […] a rejeição da
ampliação e diferenciação das necessidades como um todo, ou uma volta ao estado natural
primitivo dessas necessidades; seu alvo é, necessariamente o desenvolvimento de uma
'individualidade rica' para toda a humanidade”. Esta, para Mandel (1982, p.277), só pode ser
atingida pelo “desenvolvimento racional do consumo, conscientemente controlado e […]
47

subordinado a seus interesses coletivos”. Assim, a crítica no sentido marxista a sociedade


produtora de mercadorias deve estar compatível a rejeição de “todas as formas de consumo e
de produção que continuem restringindo o desenvolvimento do homem, tornando-o mesquinho
e unilateral”.

1.2. A maturidade do desenvolvimento capitalista como sistema mundial

Diante dessas considerações, constata-se que o teor de complexidade e contradição do


padrão de acumulação toma relevo no capitalismo tardio 17 , não por acaso, período que
contextualiza esta pesquisa, onde “a contradição entre o crescimento das forças produtivas e a
sobrevivência das relações de produção capitalistas assume uma forma explosiva. Essa
contradição leva a uma crise cada vez mais acentuada dessas relações de produção”. (MANDEL,
1982, p.393).

O monopólio do capital torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu


com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho
atingem um ponto em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. […]
Mas a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de um processo natural, sua
própria negação. […]. (MARX, 1984, p.293-294).

Trata-se, portanto, de um período em que tomam uma maior tônica as características do


imperialismo, desde a concentração e centralização de capitais como também aquelas que
compõem o quadro já apresentado por Marx (1984) no processo de acumulação primitiva, tal
como a dívida pública e o sistema de crédito, nos lembrando que a expropriação está para além
da “despossuição”, diz respeito a todo um sistema tributário e fiscal que, guardadas as devidas
medidas, é tão central hoje quanto no nascedouro capitalista. Por isso, a atualidade da análise
feita ainda no século XIX que nos diz:

17
“Em primeiro lugar, o termo ‘capitalismo tardio’ não sugere absolutamente que o capitalismo tenha mudado em
essência, tornando ultrapassadas as descobertas analíticas de O Capital, de Marx, e de O Imperialismo, de Lênin.
Assim como Lênin só conseguiu desenvolver sua descrição do imperialismo apoiando-se em O Capital, como
confirmação das leis gerais, formuladas por Marx, que governam todo o decorrer do modo de produção capitalista,
da mesma maneira, atualmente, só podemos intentar uma análise marxista do capitalismo tardio com base no
estudo de Lênin de O Imperialismo. A era do capitalismo tardio não é uma nova época do desenvolvimento
capitalista; constituiu unicamente um desenvolvimento ulterior da época imperialista, de capitalismo monopolista.
Por implicação, as caraterísticas da era do imperialismo enunciadas por Lênin permanecem, assim, plenamente
válidas para o capitalismo tardio”. (MANDEL, 1982, p.4-5).
48

O sistema de crédito público, isto é, das dívidas do Estado […] apoderou-se de toda a
Europa durante o período manufatureiro. O sistema colonial com seu comércio
marítimo e suas guerras comerciais serviu-lhe de estufa. […] A única parte da assim
chamada riqueza nacional que realmente entra na posse coletiva dos povos modernos
é – sua dívida de Estado. Daí ser totalmente consequente a doutrina moderna de que
um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se
o credo do capital. […] A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas
da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro
improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha
necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação
industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois
a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que
continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro
sonante. […] a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio
com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa
e a moderna bancocracia. […] Com a dívida do Estado surgiu um sistema
internacional de crédito, que frequentemente oculta uma das fontes da acumulação
primitiva neste ou naquele povo. […] A supertributação não é um incidente, porém
muito mais um princípio. […] A influência destruidora que exerce sobre a situação
dos trabalhadores assalariados interessa-nos aqui, entretanto, menos que a violenta
expropriação do camponês, do artesão, enfim, de todos os componentes da pequena
classe média, que ele condiciona. […] Sua eficácia expropriante é fortalecida ainda
pelo sistema protecionista, que constitui uma de suas partes integrantes. […] Nos
países secundários dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como,
por exemplo, a manufatura de lã irlandesa, pela Inglaterra. (MARX, 1984, p.288-290).

Todavia, dentre as diferenças e particularidades que podemos sinalizar em relação ao


imperialismo clássico na expansão capitalista e busca de novos mercados, mediante a crise
estrutural expressando a incongruência entre o crescimento do modo de produção em curso e o
nivelamento efetivo das taxas de lucro, Mandel (1982, p.151) destaca a expansão mais rápida
das forças produtivas, “transformadas em forças de destruição”, como padrão de
desenvolvimento, continuando “plenamente justificada a definição de Lênin do imperialismo
como uma fase da ‘decadência crescente do modo de produção capitalista’”. Além disso, a
massificação e mecanização dos serviços, representando não uma sociedade pós-industrial, mas
uma sociedade onde há a “industrialização generalizada universal pela primeira vez na
história”18; a importância das organizações internacionais, enquanto grandes corporações, como
parte do processo de internacionalização do capital marcado cada vez mais pela exportação de
capital, não mais de bens de consumo, fazendo da empresa multinacional a “forma organizativa

18
“A mecanização, a padronização, a super-especialização e a fragmentação do trabalho, que no passado
determinaram apenas o reino da produção de mercadorias na indústria propriamente dita, penetram agora todos os
setores da vida social. Uma das características do capitalismo tardio é que a agricultura está se tornando
gradualmente tão industrializada quanto a própria indústria […]. A televisão mecaniza a escola, isto é, a reprodução
da mercadoria força de trabalho. Filmes e documentários de televisão tomam o lugar dos livros e dos jornais. A
'lucratividade' das universidades, academias de música e museus começa a ser calculada da mesma forma que a
das fábricas de tijolos ou de parafusos. Em última instância, todas essas tendências correspondem à característica
básica do capitalismo tardio: o fenômeno da supercapitalização, ou capitais excedentes não investidos, acionados
pela queda secular da taxa de lucros e acelerando a transição para o capitalismo monopolista.” (MANDEL, 1982,
p.271-272).
49

determinante do grande capital”.


Em outras palavras, trata-se de uma fase em que “a concentração internacional do capital
começou a transformar-se em centralização internacional”. Isto só foi possível devido ao peso
do Estado no capitalismo tardio e a um “novo desenvolvimento das forças produtivas”19, já que
a lucratividade não pode ser mais produzida apenas em escala nacional e a configuração
territorial vigente já não podia mais responder em tempo hábil a necessidade do mercado de
novas áreas e campos de investimento diante do volume de capital acumulado.
A “internacionalização das forças produtivas cria assim a infraestrutura para a
internacionalização do capital” (MANDEL, 1982, p.223), entrelaçando “todos os povos na rede
do mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista”, permitindo um
nível qualitativamente mais alto de concentração e centralização do capital mediante
superlucros temporários e duradouros. Afinal, o monopólio, não sendo absoluto, não neutraliza
a concorrência, mas a acirra, propiciando a expropriação de muitos outros capitalistas por
poucos e aprimorando o trabalho coletivo e a divisão internacional do trabalho mediante o
desenvolvimento da forma cooperativa do processo de trabalho. Com isso, o aumento da
extensão da miséria, da opressão, da exploração, mas também a revolta da classe trabalhadora.
(MARX, 1984, p.293). Sobre isso, fazemos nossas as palavras de Gorender (1983, p.69-70),
relembrando a atualidade do pensamento marxiano:

[...] Marx previu, com inteira clareza, a tendência da transição inevitável da


concorrência ao monopólio. Tendência que deduziu do curso da acumulação
capitalista por meio de dois processos principais: os da concentração e da
centralização dos capitais. No primeiro processo, certos capitais individuais se
incrementam mais depressa pelo ganho dos superlucros e pela reprodução ampliada
em condições mais favoráveis. No segundo processo, as empresas melhor sucedidas
na competição absorvem suas concorrentes, o que ocorre com maior frequência nas
fases de crise e depressão do ciclo econômico. Ademais, o processo de centralização
encontra nas sociedades anôminas formidável mecanismo propulsor, que potencia
capitais dispersos e faz avançar a socialização das forças produtivas ainda dentro do
envoltório capitalista. A própria dinâmica da concorrência capitalista conduz ao
monopólio, sob cujo domínio o capitalismo se tornaria um entrave cada vez menos
tolerável ao desenvolvimento das forças produtivas.

19
“O mundo ainda estaria sem estradas de ferro, caso ficasse esperando até que a acumulação de alguns capitais
individuais alcançasse o tamanho requerido para a construção de uma estrada de ferro. No entanto, a centralização
mediante as sociedades por ações chegou a esse resultado num piscar de olhos. E enquanto a centralização assim
reforça e acelera os efeitos da acumulação, amplia e acelera simultaneamente as revoluções na composição técnica
do capital, que aumentam sua parte constante à custa da sua parte variável e, com isso, diminuem a demanda
relativa de trabalho. As massas de capital soldadas entre si da noite para o dia pela centralização se reproduzem e
multiplicam como as outras, só que mais rapidamente e, com isso, tornam-se novas e poderosas alavancas da
acumulação social. Ao falar, portanto, do progresso da acumulação social - hoje, os efeitos da centralização estão
implícitos.” (MARX, 1984, p.198).
50

A concorrência não deixou de existir. Ao contrário. Dá-se de forma mais violenta através
dos oligopólios numa luta conduzida por intermédio do “barateamento das mercadorias” que
depende diretamente da produtividade do trabalho tendo como arma nessa “luta da concorrência”
o sistema de crédito que se “transforma em enorme mecanismo social para a centralização dos
capitais” (MARX, 1984, p.197).
Nessa nova fase do imperialismo, a internacionalização representa, na verdade, a
reprodução em escala global “de um dos problemas básicos da análise de Marx do capital: a
relação entre o desenvolvimento desigual e a concorrência, que tende a sufocar o
desenvolvimento desigual e ao mesmo tempo é embaraçada por ele”. Afinal, ao contrário dos
muitos apologistas do crescimento e defensores da estabilidade econômica, “o crescimento do
modo de produção capitalista conduz sempre a um desequilíbrio” e consequentemente por um
desnivelamento das taxas de lucro que se expressa de diferentes formas nos territórios distintos
e desiguais. (MANDEL, 1982, p.51). É exatamente sobre esse aspecto que voltamos nossa
atenção, tornando-se central para o entendimento das desigualdades regionais como expressões
significativas da questão social no capitalismo.
Para melhor entender essas contradições, é fundamental lembrarmos das tendências e
leis do desenvolvimento do capitalismo, já brevemente sinalizadas no item anterior, desveladas
a partir da concepção de que tal modo de produção “não se desenvolveu em meio a um vácuo,
mas no âmbito de uma estrutura socioeconômica específica, caracterizada por diferenças de
grande importância” que se expressam territorialmente, em regiões.
As formações sociais, em seu surgimento e desenvolvimento, “reproduzem em formas
e proporções variáveis uma combinação de modos de produção passados e presentes” que não
é reduzida pela “unidade orgânica do sistema mundial capitalista” a um “fator de importância
apenas secundária em face da primazia dos traços capitalistas comuns […]. Ao contrário: o
sistema mundial capitalista é, em grau considerável, precisamente uma função da validade
universal da lei de desenvolvimento desigual e combinado” (MANDEL, 1982, p.14).
O imperialismo, confirma tal constatação, já que se trata de uma fase em que o
capitalismo transformou-se efetivamente em um sistema universal, aprimorando a socialização
da produção, o aperfeiçoamento técnico e a apropriação cada vez mais privada da riqueza frente
a exploração e “subjugação colonial e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da
população do planeta por um punhado de países ‘avançados’”, beneficiando os especuladores.
De acordo com o próprio Lênin (2012, p.124-125):

Se fosse necessário definir o imperialismo da forma mais breve possível, dever-se-ia


51

dizer que ele é o estágio monopolista do capitalismo. Essa definição compreenderia o


principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes
bancos monopolistas fundido com o capital de grupos monopolistas de industriais, e,
por outro, a partilha do mundo é a transição da política colonial, que se estende sem
obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista, para a
política colonial de dominação monopolista dos territórios de um mundo já
inteiramente repartido. […] convém dar uma definição do imperialismo que inclua as
seguintes cinco características fundamentais: 1) a concentração da produção e do
capital alcançou um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios,
os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital
bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse ‘capital financeiro’, da
oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de
mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de
associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre
si; 5) conclusão da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais
importantes. O imperialismo é o capitalismo no estágio de desenvolvimento em que
ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro; em que a
exportação de capitais adquiriu marcada importância; em que a partilha do mundo
pelos trustes internacionais começou; em que a partilha de toda a terra entre os países
capitalistas mais importantes terminou.

Portanto, uma leitura linear e homogênea da história, desconsiderando as


particularidades e heterogeneidade do desenvolvimento capitalista nas mais diversas regiões, é
um equívoco, uma simplificação grotesca, além de não ser condizente com a realidade. “Se o
modo de produção capitalista possui as mesmas categorias e leis em toda parte, o curso do [seu]
desenvolvimento [...] não pode deixar de se diferenciar conforme a acumulação originária do
capital [...]”. Esta não ocorreu em todos os lugares a partir do feudalismo, mas também por
outras vias, como a colonial ou, na concepção de Gorender (1983, p.70) ao tratar do caso
brasileiro, mais adiante trabalhado por nós, do “escravismo colonial” - afinal, para nós, é
importante compreender como o Brasil se insere nesse processo.
Basta observar que, no período da livre concorrência, “a produção direta de mais-valia
pela indústria em grande escala limitava-se […] à Europa ocidental e à América do Norte”.
Porém, em outras regiões, concomitante a esse processo, em outro ritmo, ocorria a acumulação
originária de capital. E mesmo na Europa ocidental, não havia homogeneidade, a exemplo da
realidade alemã. Vejamos:

Embora o Império Germânico chegue a ser o gigante industrial da Europa até o final
do século, não deve ser esquecido que a “Alemanha” de 1844-56 era ainda semifeudal,
pré-industrial e politicamente fragmentada. […] Marx analisou com grande precisão
a característica simultaneamente atrasada e avançada da sociedade alemã […] é a
ameaça “debaixo”, da classe trabalhadora, que faz conservadora a burguesia alemã e
a impede de se tornar uma força revolucionária de qualquer monta. (LOWY, 2015,
p.22-24).

Outro importante exemplo é a realidade italiana que no final do século XIX a tecelagem
doméstica ainda predominava em relação a fabril na produção têxtil. Isto por uma série de
52

fatores, como a ausência de um sistema integrado de transportes. De acordo com Mandel (1982,
p.33-35), não apenas a Itália, mas a Rússia e o Japão são exemplos de países que, até então,
eram considerados “capitalistas em desenvolvimento” que, ao longo do processo de
industrialização e acumulação primitiva, o capital estrangeiro não desempenhou um papel
decisivo. “O capital que sustentou esse movimento era quase exclusivamente nacional. […] Foi
dupla a articulação concreta entre esses países […] e o mercado mundial capitalista. […] os
produtos estrangeiros simplesmente prepararam o terreno para o desenvolvimento do
capitalismo ‘nacional’”.
A realidade desses países já é diferente, por exemplo, daqueles que passaram por um
processo de colonização (e neocolonialismo). Na verdade, sem o papel das “sociedades e
economias […] semi-capitalistas […] seria praticamente impossível compreender traços
específicos de cada estágio sucessivo do modo de produção capitalista” – do “capitalismo
britânico de livre concorrência” até a atualidade. (MANDEL, 1982, p.15). Tais tendências
renovam-se e tomam proporções diferenciadas com o passar do tempo, porém, não desaparecem.
As contradições marcadas centralmente pela relação entre capital e trabalho, pela apropriação
privada da riqueza e pela expropriação do trabalhador coletivo, conformam e organizam
também os territórios, a divisão entre nações e regiões no mundo que se alimentam das
desigualdades existentes entre as mesmas. Daí a motivação, de um lado, para a célebre frase:
“trabalhadores do mundo, uni-vos!”. De outro, para a construção ideológica de nações de
“Primeiro mundo” e de “Terceiro mundo”, ou de países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”,
como se estes assim fossem em virtude da ausência de desenvolvimento capitalista, quando, na
verdade, assim são exatamente por estarem inseridos, de forma particular, neste modo de
produção.
Com o desenvolvimento do capitalismo, mediante sua maturação e complexificação, em
seus diferentes graus e ritmos, acirram-se as contradições presentes no seu próprio modo de ser,
tais como a tendência da queda da taxa de lucro, operando por métodos (anárquicos), que lhe
são próprios, obtendo a luta de classes e a divisão do trabalho uma configuração territorial
diferenciada em relação a períodos anteriores. Assim, o que parece ser, especialmente com a
ascensão do imperialismo, a disputa e luta de um país contra o outro, de um ramo industrial
contra outro, de um setor da economia mundial em relação a outro, trata-se de disputas entre as
classes sociais e suas frações no adensamento da concorrência e na heterogeneidade dessas
mesmas classes que se utilizam das diferenças regionais tornando-as, de forma cada vez mais
aprimorada, desigualdades.
Dito isso, é certo que “o desenvolvimento global do modo de produção capitalista não
53

pode se subordinar à noção de ‘equilíbrio’”, mas a combinação entre crise e períodos acelerados
de produção, de “reprodução ampliada” e “reprodução interrompida”, alimentando esse quadro
de desigualdades que também se expressa territorialmente. Portanto, o discurso do
desenvolvimento e crescimento econômico atrelado a uma concepção de equilíbrio,
planejamento e pleno emprego, supostamente voltados ao bem comum e a uma capacidade
equitativa do capital, frente aos reflexos das crises, cai por terra ao observarmos que, na verdade,
o crescimento econômico, sob o capitalismo, “deve sempre acarretar um desequilíbrio, assim
como ele mesmo é sempre o resultado de um desequilíbrio anterior”. Afinal, “todo o processo
de crescimento da produção capitalista” aciona a “desigualdade crescente de seu
desenvolvimento”. (MANDEL, 1982, p.17-19).
A dinâmica de reprodução ampliada do capital, em meio ao desenvolvimento desigual,
construiu estratégias na busca de superlucros20, com maior tônica em alguns períodos a exemplo
do “imperialismo clássico”, pautadas nas diferenças entre as taxas de lucro das metrópoles e
das colônias e na drenagem de mais-valia para as metrópoles, tais como: a troca desigual21 e a
exportação de capital22; menor composição orgânica do capital e maior taxa média de mais-
valia das colônias através de maior expropriação da força de trabalho, produção de mais-valia
extraordinária23, da existência de um considerável exército industrial de reserva, entre outros,
que refletem diretamente no baixo valor e preço da força de trabalho nas colônias.

20
“Dado o fato da concorrência, 'o anseio incessante por enriquecimento', que é um elemento distintivo do capital,
consiste na realidade na busca de um superlucro, de um lucro acima do lucro médio. Essa procura conduz a
tentativas permanentes no sentido de revolucionar a tecnologia, conseguir menores custos de produção que os dos
concorrentes e obter superlucros, o que é acompanhado por uma composição orgânica do capital mais elevada e,
ao mesmo tempo, por uma taxa crescente de mais valia. Todas as características do capitalismo como forma
econômica estão presentes nessa descrição, características baseadas em sua tendência inerente a rupturas de
equilíbrio. Essa tendência também se encontra na origem de todas as leis de movimento do modo de produção
capitalista”. (MANDEL, 1982, p.17).
21
“A troca de mercadorias produzidas em condições de mais alta produtividade do trabalho por mercadorias
produzidas em condições de mais baixa produtividade do trabalho era uma troca desigual; era uma troca de menos
trabalho por mais trabalho, que inevitavelmente conduziu a um escoamento, a um fluxo para fora de valor e capital
desses países, em benefício da Europa ocidental. A existência de grandes reservas de trabalho barato e terra nesses
países logicamente resultou numa acumulação de capital com uma composição orgânica de capital mais baixa do
que nos primeiros países a se industrializarem” (MANDEL, 1982, p.35).
22
“A exportação de capitais influencia o desenvolvimento do capitalismo no interior dos países em que são
investidos, acelerando-o extraordinariamente. Se, em consequência disso, a referida exportação pode, até certo
ponto, ocasionar uma estagnação do desenvolvimento nos países exportadores, isso tem lugar em troca de um
alargamento e de um aprofundamento maiores do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo. […] A
exportação de capitais, uma das bases econômicas mais essenciais do imperialismo, acentua ainda mais o
isolamento completo da camada dos rentistas da produção e imprime uma marca de parasitismo a todo país que
vive da exploração do trabalho de alguns países e colônias do ultramar”. (LÊNIN, 2012, p.96-138).
23
“Se a demanda normal for satisfeita pela oferta de mercadorias de valor médio, portanto de um valor a meio
caminho dos dois extremos, as mercadorias cujo valor individual estiver abaixo de valor comercial realizarão uma
extraordinária mais-valia ou um superlucro, enquanto aquelas cujo valor individual exceder o valor de mercado
não poderão realizar uma parte da mais-valia nelas contida” (MARX apud MANDEL, 1982, p.69)
54

Marx aduziu outros fatores que, sem serem consubstanciais à atuação da lei [da queda
da taxa de lucros], também contribuíram para atenuar ou deter temporariamente a
queda da taxa de lucro. Um deles, é o comércio exterior, que permite obter bens de
produção e/ou bens-salário mais baratos […]. O outro fator é a exportação de capitais
aos países atrasados, onde a taxa de lucro costuma ser mais elevada, motivo por que
os lucros dos investimentos no exterior impelem para cima a taxa de lucro no país
exportador de capitais. (GORENDER, 1983, p.65).

Ressaltamos que tais ponderações não podem, nem devem, cair no mérito de qual a
classe trabalhadora mais explorada ou, por outro lado, de qual a burguesia menos exploradora:
a imperialista ou aquela que cumpre um papel de “sócio menor do imperialismo”? Vale lembrar
que a mais-valia é proporcional ao desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, melhores
condições materiais, em geral, estão associadas à maior exploração. Todavia, isso não quer
dizer que não existam diferenças intraclasses muito em decorrência das frações existentes nas
classes sociais que, em determinadas formações sociais, são mais presentes ou tênues. Daí as
particularidades também das realidades em que o peso da dependência é operante, o que
trataremos com maior atenção, em território latino-americano, mais adiante. Portanto, longe de
qualquer juízo de valor, nosso propósito é entender o modo operandis, a organização, da
dinâmica capitalista, atentando para o papel da questão regional.
Por ora, adiantamos que, ao contrário do que é propalado, as desigualdades regionais,
expressas nas diferenças entre composições orgânicas do capital, tempo de rotação do capital,
composição do exército industrial de reserva, taxas de lucro, valor de matérias-primas com o
barateamento do capital constante circulante, produtividade do trabalho e valor/preço da força
de trabalho, regido por um movimento conjunto de exportação de capitais, de monopólio da
propriedade e das técnicas, não representam um desequilíbrio ou disfunções do sistema, mas
mecanismos necessários para um aumento na taxa média de lucro como fonte extraordinária de
superlucros.
Por isso, “a intensa exportação de capitais para regiões menos desenvolvidas, que
começou numa escala maciça em meados de 1880, representou portanto uma resposta para” os
problemas do padrão de reprodução capitalista, a exemplo da tendência a queda da taxa de
lucros. Afinal, “o capital imperialista exportado conseguia, agora, superlucros” investindo em
países de economia dependente, com baixa composição orgânica e abundância em matérias-
primas baratas, permitido um aumento da taxa de lucros devido a expansão do exército de
reserva e a consequente redução do preço da mercadoria força de trabalho abaixo do seu valor.
(MANDEL, 1984, p.55-56). Diante dessa realidade, não resta dúvida de que a constituição do
mercado mundial via imperialismo viabilizou, na verdade, um “sistema internacional
hierarquizado e diferenciado de níveis variáveis de produtividade do trabalho”, incidindo
55

fortemente sob a divisão do trabalho criada no século XIX. (MANDEL, 1984, p.57).
Destacamos que as características historicamente constitutivas dos países dependentes
incidiram sob uma formação particular das classes sociais, síntese de uma modernização cuja
herança encontra-se em relações coloniais, ou seja, na moderna escravização. Esta marca é
atravessada pela forte presença da questão agrária, agravada pela ausência de reformas
estruturais que, diferente de outras nações, não foram demandadas pelo desenvolvimento
capitalista, a exemplo da reforma agrária. Ao contrário, pois a presença do latifúndio foi uma
exigência para os superlucros mediante a superexploração – mais adiante trabalhada por nós –
e a garantia de uma força de trabalho a baixo custo, tensionada permanentemente por uma
superpopulação relativa formada, em boa parte, por trabalhadores rurais afastados e destituídos
de suas terras. Essa fração será parte constitutiva do semiproletariado ou subproletariado nos
países dependentes cujas novas necessidades não serão incorporadas aos seus salários. Tudo
isso interferirá diretamente nas experiências e nas formas de organização política dessas classes
sociais, por exemplo, do Brasil e, mais ainda, da região Nordeste, o que implica que tais
aspectos são fundamentais para a constatação da nossa tese, ratificando o peso não apenas do
atraso nesta região como também o seu papel para o último ciclo expansivo do capital no país.
Em termos econômicos, tais condições influenciaram na atrofia do mercado interno e
na desaceleração da acumulação (primitiva) nesses territórios, continuamente expropriados
pelo capital estrangeiro, sufocando o desenvolvimento econômico por parte das classes
dominantes locais, concentrando “os recursos remanescentes nos setores que se tornariam
característicos do ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’ […] ou do ‘desenvolvimento da
dependência’ […]: comércio exterior, serviço de influência para as firmas imperialistas,
especulação com a terra e a construção imobiliária […]” (MANDEL, 1982, p.36).

O que determinou o “subdesenvolvimento” unilateral do chamado “Terceiro Mundo”


não foi a má-vontade dos imperialistas, nem qualquer incapacidade social – e muito
menos “racial” - de suas classes dominantes nativas; foi um complexo de condições
sociais e econômicas que, enquanto promovia a acumulação primitiva de capital
monetário, tornou a acumulação de capital industrial menos lucrativa […]. Na era
clássica do imperialismo [...] passou a existir uma aliança social e política a longo
prazo entre o imperialismo e as oligarquias locais […]. Esse fato limitou de forma
decisiva a extensão do ‘mercado interno’ […]. A dominação do capital estrangeiro
sobre os processos de acumulação de capital nos países subdesenvolvidos resultou
num desenvolvimento econômico que […] tornou esses países complementares ao
desenvolvimento da economia dos países metropolitanos imperialistas […] isso
significou que eles deveriam concentrar-se na produção de matérias-primas vegetais
e minerais. […] Assim, o crescimento de um relativo excedente de capital nos países
metropolitanos e a procura de mais elevadas taxas de lucro e matérias-primas mais
baratas formam um complexo integrado […]. (Ibid., p.37-39)
56

Diferente do “imperialismo clássico”, onde a principal forma de superlucros originava-


se das diferenças entre as taxas de lucro das metrópoles e das colônias, no período de transição
para o “capitalismo tardio”, de acordo com Mandel (1982), marcado pelo pós-guerra, pelas
guerras de libertação nacional, pós-recessão de 1929, dentre outros aspectos, ocorreu uma
verdadeira “mudança nas formas de justaposição do desenvolvimento e do
subdesenvolvimento”. Observemos esse processo a partir das palavras do próprio autor:

O capital monopolista internacional passou a interessar-se não somente pela produção


de matérias-primas a baixo custo por meio de métodos industriais avançados, em vez
de utilizar escravos coloniais para produzi-los, mas também pela produção, nos
próprios países subdesenvolvidos, de bens acabados que ali poderiam ser vendidos a
preços de monopólio, em lugar das matérias-primas que haviam se tornado
excessivamente baratas. Assim, a reprodução da divisão do trabalho criada no século
XIX está entrando em colapso vagarosa, mas firmemente, face à súbita expansão da
produção de matérias-primas e a uma alteração nas taxas diferenciais de lucro
provenientes da produção de matérias-primas e da produção de bens acabados […] a
exportação cada vez maior de elementos do capital fixo resulta no interesse crescente
dos maiores grupos monopolistas por uma industrialização incipiente do Terceiro
Mundo: afinal, não é possível vender máquinas aos países semicoloniais, se eles não
têm permissão para utilizá-las. Em última análise, é esse fato […] que constitui a raiz
básica de toda a “ideologia do desenvolvimento”, que tem sido promovida no Terceiro
Mundo pelas classes dominantes dos países metropolitanos. (MANDEL, 1982, p.43).

Esse novo e atual curso da economia mundial, ao contrário do que é propagandeado


pelas principais agências e institutos representantes do capital, não representaria uma nova
tendência em viabilizar o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” através da
industrialização sistemática do “Terceiro Mundo” na perspectiva de uma eventual
homogeneização do padrão de acumulação capitalista no movimento virtuoso de globalização.
Inversamente, “a força contrária do desenvolvimento desigual do capital impede a formação de
uma verdadeira comunidade global de interesses capitalistas. A fusão de capital se dá a nível
continental, mas desse modo a concorrência imperialista intercontinental intensifica-se muito
mais.” (MANDEL, 1984, p.234).
A universalização do modo de produção capitalista é constituída exatamente pela
reconfiguração e aprofundamento dos aspectos que compõem o “círculo vicioso do
subdesenvolvimento”, quais sejam: a) o agravamento da troca desigual, tendo, no capitalismo
tardio, a produção direta de superlucros nas colônias um papel secundário; b) o maior
escoamento e transferência de valor para países imperialistas em forma de dividendo e juros,
daí o papel da dívida pública frente ao destaque do rentismo; c) as renovadas formas de extração
de mais-valia e reconstrução do exército industrial, por um lado, intensificando as exportações
de capital e sufocando os investimentos internos, isto é, enviando “capital para onde ainda existe
57

excesso de força de trabalho, ao invés de trazer força de trabalho para onde haja excesso de
capital; de outra parte”, intensificando a automação e concentrando “investimentos para liberar
tanto trabalho vivo quanto possível” (MANDEL, 1984, p.128); d) o crescimento da
produtividade, mecanização e industrialização na agricultura, conjugado com a herança
latifundiária e com a atrofia de outros setores industriais e produtivos, reposicionando as
economias dependentes no mercado mundial e aprofundando a questão agrária; e) a ampliação
da divisão social do trabalho por meio da expansão da esfera improdutiva e de funções
intermediárias nos setores de serviços, comércio e transportes conjugada ao aumento da
precarização do trabalho e ao avanço da privatização de serviços públicos. (MANDEL, 1984,
p.269).
Desse processo, o resultado certamente é aumento da dependência e a ausência de
soberania nacional, sendo que o “fluxo principal das exportações de capital não se dá mais das
metrópoles para as colônias, mas entre os próprios Estados metropolitanos. Nos países
subdesenvolvidos, a ênfase dos investimentos estrangeiros deslocou-se da pura produção de
matérias-primas para a fabricação de bens de consumo.” (MANDEL, 1984, p.245). Tudo isso
para garantir a redução do tempo de rotação do capital fixo, os superlucros, a diminuição do
custo do capital constante, o aumento da taxa de mais-valia relativa, dentre outras características
predominantes no capitalismo tardio. Por outro lado, tais medidas incidem sob a reprodução
com maior tônus das contradições sociais e as dificuldades crescentes da realização da mais-
valia no capitalismo tardio refletidas e evidenciadas, por exemplo, na grande expansão do
crédito ao consumidor como também no endividamento privado dos Estados. Daí o
entendimento de que a fase contemporânea do capitalismo está associada as características
diferenciadas dos ciclos capitalistas, entre expansão e estagnação, onde este polo passa a ser
mais agudo e duradouro. Por isso, corroboramos com Mandel (1984, p.126-128) quando nos
diz o seguinte:

O capitalismo tardio não pode evitar um período de expansão econômica


relativamente desacelerada, caso não consiga quebrar a resistência dos assalariados e,
por esse meio, garantir um novo aumento em largas proporções na taxa de mais-valia.
No entanto, isso é inimaginável sem uma estagnação, e mesmo sem uma queda
temporária nos salários reais. […] a expansão do exército industrial de reserva se
tornou atualmente um instrumento deliberado de política econômica em benefício do
capital. [...] Por um lado, a asfixia dos investimentos internos diminui a taxa de
crescimento e assim intensifica os antagonismos sociais. Por outro, depois de certo
tempo […] as diferenças no nível de salários entre o país exportador de capital e o
país importador também começarão a diminuir. Naturalmente, a velocidade desse
processo será determinada em larga medida pela estrutura social e econômica interna
do país importador de capital: se o mesmo já for industrializado, esse processo não
será adiável; se for uma semicolônia subdesenvolvida, o processo permanecerá sob
controle por um período mais longo. […]. No entanto, mais importante que essas
58

contradições a longo prazo na resposta tática do capital à queda na taxa média de


lucros é o efeito imediato dessa resposta na luta de classes. O capitalismo tardio é uma
ótima escola para o proletariado, ensinando-o a não se preocupar unicamente com a
partida imediata do valor recém-criado entre salários e lucros, mas com todas as
questões do desenvolvimento e da política econômica, e particularmente com todas as
questões que envolvem a organização do trabalho, o processo de produção e o
exercício do poder político.

Trata-se, portanto, de um momento do desenvolvimento capitalista em que há uma


amplitude e uma nova qualidade na materialização da lei do desenvolvimento desigual e
combinado, o que se expressa em novas proporções da questão social e de sua configuração
regional, repercutindo, inclusive, no aprimoramento de instrumentos coercitivos por parte do
Estado na garantia de hegemonia, o que trataremos com maior atenção, em termos históricos,
mais adiante. Por ora, destacamos que, de fato, o movimento de concentração e centralização
do capital tem demandado um maior controle do processo de produção, circulação e reprodução,
o que significa a concentração também do poder político.
Lembrando que construção de hegemonia também diz respeito a um conjunto de valores
cultivados e propagandeados que compõem a sociabilidade de uma época. Tudo isso com o
intuito de ter a garantia de uma das principais funções objetivas do desenvolvimento capitalista:
permitir que as diversas fontes de acréscimo na taxa de mais-valia se conjuguem e fluam
simultaneamente, desatando os nós impeditivos da acumulação e valorização do capital. Um
exemplo disso é que “ao mesmo tempo que o capital tem um interesse óbvio de integrar a
família nuclear patriarcal na sociedade burguesa, seu desenvolvimento a longo prazo tende a
desintegrar esse tipo de família ao incorporar as mulheres [...] na força de trabalho assalariada
[...]”. Tais mudanças são conjugadas, na época do capitalismo tardio, a cultura do consumo que
reforça uma “reprivatização da esfera do lazer da classe operária”. (MANDEL, 1984, p.275-
276).
A maior demanda em diminuir o tempo de rotação do capital tem promovido alterações
relativas ao tempo e ao espaço de realização da mais-valia, refletindo em um nível de consumo
mais elevado por parte dos trabalhadores, convertendo bens (de luxo) voltados, antes, apenas
para determinados segmentos mais abastados e intermediários da sociedade, para o consumo
de massa. Isso em consonância com a obsolescência programada, permitindo uma alteração
rápida da forma das mercadorias, absurda do ponto de vista de um consumo racional,
convertendo a ampliação das necessidades do assalariado, que deveria corresponder a elevação
de seu padrão cultural e ao desenvolvimento de uma rica individualidade, em objetivos da
sociedade do consumo, de um ser humano mesquinho, ganancioso e unilateral. Daí a distinção
necessária, feita por Marx (2011, p.704) já nos Grundrisse entre o luxo e o “naturalmente
59

necessário”:

O luxo é o contrário do naturalmente necessário. As necessidades naturais são as


necessidades do indivíduo, ele próprio reduzido a um sujeito natural. O
desenvolvimento da indústria abole essa necessidade natural, assim como aquele luxo
– na sociedade burguesa, entretanto, o faz somente de modo antitético, uma vez que
ela própria repõe uma certa norma social como a norma necessária frente ao luxo.

Em outras palavras, especialmente na era do capitalismo tardio, constata-se uma


verdadeira transmutação de forças produtivas criativas a forças produtivas de destruição 24 ,
tornando de uma extrema atualidade o debate clássico do legado revolucionário em torno do
caráter civilizatório e da natureza bárbara do capitalismo que evoca a grande questão:
Socialismo ou Barbárie?
De toda forma, é importante lembrar que, para além dos limites ambientais e de recursos
naturais para sustentar esse padrão de reprodução, há um desnível necessário entre consumo e
produtividade do trabalho, fazendo com que a expansão do consumo dos trabalhadores dê-se
até o ponto que não corresponda a mesma taxa do aumento da produtividade do trabalho, não
comprometendo a taxa de lucro. Afinal, “a obrigação de valorizar e de acumular – em outras
palavras, a concorrência e a propriedade privada dos meios de produção – impossibilita tal
coisa”. (MANDEL, 1984, p.279). Essa relação entre consumo e produtividade terá uma
configuração diferenciada nos países altamente industrializados como também nos dependentes,
tornando-se importante para nós tal entendimento tendo em vista a centralidade dada tanto na
expansão do consumo como no crédito no último período de desenvolvimento capitalista no

24
“[...] a marca distintiva do imperialismo e de sua segunda fase, o capitalismo tardio, não é um declínio nas forças
de produção mas um acréscimo no parasitismo e no desperdício paralelos ou subjacentes a esse crescimento. A
incapacidade inerente ao capitalismo tardio, de generalizar as vastas potencialidades da terceira revolução
tecnológica ou da automação, constitui uma expressão tão forte dessa tendência quando a sua dilapidação de forças
produtivas, transformadas em forças de destruição: desenvolvimento armamentista permanente, alastramento da
fome nas semicolônias […], contaminação da atmosfera e das águas, ruptura do equilíbrio ecológico, e assim por
diante […]. Em termos absolutos, na era do capitalismo tardio vem ocorrendo uma expansão mais rápida nas forças
produtivas do que em qualquer outra época. […] No entanto, o resultado é lastimável […] continua plenamente
justificada a definição de Lênin do imperialismo como uma fase da 'decadência crescente do modo de produção
capitalista'. O desperdício de forças reais e potenciais de produção pelo capital aplica-se não só às forças materiais,
mas também às forças produtivas humanas. […] A ciência podia se tornar efetivamente uma força produtiva direta.
[…] A visão profética esboçada por Marx e Engels de uma sociedade na qual 'o livre desenvolvimento de cada um
é a condição para o livre desenvolvimento de todos', e na qual a riqueza efetiva se origina na 'produtividade
desenvolvida de todos os indivíduos', poderiam agora se tornar realidade praticamente palavra por palavra. […] A
pior forma de desperdício, inerente ao capitalismo tardio, jaz no mau uso das forças de produção humanas e
materiais existentes; em vez de serem usadas para o desenvolvimento de homens e mulheres livres, são cada vez
mais empregadas na produção de coisas inúteis e perniciosas. Todas as contradições históricas do capitalismo estão
concentradas no caráter duplo da automação. […] empobrecimento moral e intelectual. A automação capitalista,
desenvolvimento maciço tanto das forças produtivas do trabalho quanto das forças alienantes e destrutivas da
mercadoria e do capital, torna-se dessa maneira a quintessência objetivada das antinomias inerentes ao modo de
produção capitalista”. (MANDEL, 1984, p.151-152).
60

Brasil, especialmente na região Nordeste. Porém, esse tema será melhor trabalhado mais adiante.

1.3. A face regional do capitalismo

O movimento analítico que realizamos até então nos permite entender, a priori, que o
capitalismo atua historicamente sob a contraditória relação entre ritmos diferenciados e
particulares de desenvolvimento, (re)configurando, a partir dessas diferenciações, as regiões
que, ao contrário do que é comumente disseminado, não são determinadas pela natureza
geográfica, mesmo que haja incidência deste fator. Essa dinâmica é produzida e reproduzida
em proporções distintas, não apenas entre continentes e nações, mas dentro dos próprios países
e das próprias regiões.
A noção que tratamos aqui de região 25 é distinta daquela prevalecente nas formações
pré-capitalistas, sendo sua existência associada à divisão social (e regional) do trabalho e a
centralização do poder e do capital. Assim, “a divisão do trabalho em geral está relacionada
diretamente à divisão territorial do trabalho, à especialização de certas regiões na produção de
um único artigo, às vezes de uma única variedade de um artigo e até de uma única parte de um
artigo. [...] A manufatura não cria apenas regiões completas, mas introduz a especialização no
interior mesmo dessas regiões”. Isto, porém, contraditoriamente, nos diz que “a existência de
matéria-prima num dado local não é, de modo algum, obrigatória para a manufatura e
dificilmente seria comum a ela, já que a manufatura pressupõe relações comerciais já bastante
amplas”. (LÊNIN, 1982, 275-276).
O desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo que demanda o processo de
homogeneização para sua reprodução ampliada, ou seja, romper com as diferenças regionais e
integrar as regiões no mesmo modo de produção – daí a importância fundamental do Estado –,
cria e aprofunda, pelos mesmos meios, as desigualdades regionais. Nesse sentido, a região é
“produto-produtora das dinâmicas concomitantes de globalização e fragmentação […] dos
processos de diferenciação social” (HAESBAERT, 2010, p.07). Trata-se, dessa forma, de uma
espécie de arena de atuação dos diferentes sujeitos sociais vinculados à sociedade política e a

25
“[…] a região pode ser pensada praticamente sob qualquer ângulo das diferenciações econômicas, sociais,
políticas, culturais, antropológicas, geográficas, históricas. […] privilegia-se aqui um conceito de região que se
fundamente na especificidade da reprodução do capital, nas formas que o processo de acumulação assume, na
estrutura de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas formas da luta de classes e do conflito social
em escala mais geral.” (OLIVEIRA, 1993, p. 27).
61

sociedade civil26, expressando territorialmente as contradições de fundo da sociedade em que


vivemos.

Contemporaneamente, o conceito de região só é inteligível se visto no interior e na


relação com outra categoria essencial, que é nação. Associada à instituição política
que lhe dá sentido e forma, isto é, territorialidade, que é o Estado. Estas duas
instituições compuseram, do século XIX em diante, uma quase indissolúvel
associação, ao ponto de se fusionarem em uma única categoria histórica: o Estado-
nação, sujeito principal das relações internacionais no século XX, cuja importância e
centralidade está sendo posta em dúvida pelos apologéticos da globalização. (VIEIRA,
2006, p.141).

Dessa forma, entendemos a configuração regional no capitalismo não apenas pela


simples demarcação de fronteiras territoriais, mas fruto da expansão e consolidação do
desenvolvimento (desigual e combinado) desse modo de produção, atrelada, portanto,
substancialmente a questão agrária e urbana como também a todo o (neo)colonialismo que dá
base e fundamento histórico às formações sociais de capitalismo dependente na era imperialista.
Nesse processo, as migrações populacionais tiveram e ainda tem papel central, funcionando
como mecanismo regulador da superpopulação relativa e da divisão internacional (e regional)
do trabalho, consequentemente, adensando a questão agrária (e urbana) que compõe o quadro
das desigualdades regionais em determinado território. Isto tendo em vista que “a acumulação
capitalista produz constantemente […] uma população trabalhadora adicional relativamente
supérflua ou subsidiária, ao menos no concernente às necessidades de aproveitamento por parte
do capital”. (MARX, 1984, p.199).

Mesmo no capitalismo tardio, uma “volta à terra” ainda é temporariamente possível


em período de muito desemprego ou insuficiência de alimentos. Por outro lado, […]
o deslocamento do campo para a cidade assumirá proporções de uma verdadeira
avalancha […] uma divisão cada vez maior de trabalho só pode ser efetivada se as
tendências à centralização predominarem sobre as tendências à atomização.
(MANDEL, 1982, p.269).

O que estamos a adiantar aqui é que, assim como o movimento do capital, as regiões
não estão estanques, mesmo que as mudanças nos “papéis regionais” se tornem cada vez menos
amiúde no período de capitalismo monopolista, tardio. Para Francisco de Oliveira (1993, p.30),

26
A sociedade civil pode ser didaticamente compreendida como o conjunto de instituições responsáveis pela
representação dos interesses de diferentes grupos sociais, bem como pela elaboração e/ou difusão de valores
simbólicos e de ideologias, como igrejas, meios de comunicação de massa, escolas, partidos, etc. Estes aparatos
podem também ser denominados de aparelhos “privados” de hegemonia. Gramsci coloca aspas na palavra
“privados” para chamar a atenção que os aparelhos privados de hegemonia, mesmo com esse nome, são
indiscutivelmente públicos.
62

uma região “tende a desaparecer – embora alguns exemplos históricos atuais deem conta de sua
longa resistência [...] - na mesma medida em que as várias formas do capital se fusionam [...]”,
a exemplo da constituição do capital financeiro que impulsiona, dentre outras, transformações
na relação entre urbano e rural. Em outras palavras, “a relação 'zona industrial - região agrícola'
não permanece eternamente congelada sob o capitalismo. […] não haverá motivo pelo qual uma
zona que se industrializou cedo não se transforme numa área relativamente atrasada ou que um
antigo distrito agrícola não se torne uma área de concentração industrial”. (MANDEL, 1982,
p.71). Portugal, como antiga potência colonizadora, hoje compondo a periferia da Europa, e o
próprio avanço do agronegócio no Brasil, além de outros tantos exemplos, como o caso da
China e da Índia e o papel que esses países têm tido no desenvolvimento capitalista, poderiam
servir como ilustração a tal dinamização regional. Esta, vale ressaltar, possui configuração
radicalmente distinta no capitalismo, especialmente na fase imperialista, impondo maiores e
diferentes limites às possibilidades que têm os países não imperialistas em face das potencias
imperialistas, sendo muito estreitas as margens que permitem mudanças de posições entre eles.
Isto tendo em vista que as potências dominam historicamente pelas condições econômicas
criadas, o que não anula a condição do movimento do capital alterar permanentemente o
desenvolvimento das regiões e dos países. (LÊNIN, [1917] 2012).
Para tanto, assim como é fundamental alterar mecanismos que diminua o tempo de
rotação do capital, diante de um espaço cada vez mais ampliado em que opere esse movimento,
na (re)configuração regional assumem uma importância central os meios de comunicação e
transporte, podendo levar a “ascensão de alguns centros de produção e ao declínio de outros”,
prejudicando ou contribuindo para a formação de mercados nacionais. (MANDEL, 1982, p.71).
Essa perspectiva rompe com uma visão determinista sobre as regiões.

Exemplos dessa inversão de papéis de regiões podem ser encontrados no relativo


declínio de zonas de antiga industrialização, tais como a Nova Inglaterra, nos Estados
Unidos; a Escócia, o País de Gales e o norte da Inglaterra, na Grã-Bretanha; Nord/Pas-
de-Calais e Haute-Loire, na França; e a Valônia, na Bélgica. [...] Exemplo das
mudanças de papéis de ramos da indústria podem ser descobertos no relativo declínio
dos setores da indústria têxtil dedicados ao processamento de fibras naturais, na
indústria do carvão e potencialmente na indústria do aço. Não há dúvida de que tal
reversão de papéis regionais ocorreu no início da própria Revolução Industrial. [...]
Em acréscimo aos fatores mencionados por Marx – mudanças nos sistemas de
transporte e comunicação e alterações de mercados – nesse caso ocorreram, acima de
tudo, mudanças nas fontes principais das taxas de superlucro (anteriormente, o
comércio de mercadorias coloniais das Índias Ocidentais; a seguir, as indústrias de
crescimento tecnológico, sobretudo a indústria têxtil) e a especialização excessiva de
uma burguesia regional num mundo empresarial e num ramo há muito estabelecido,
o que tornou impossível uma rápida reconversão do mesmo. A posição geográfica
pouco favorável do sudoeste e os efeitos do bloqueio britânico e do sistema
continental durante as guerras napoleônicas também contribuíram para o declínio da
63

cidade. (MANDEL, 1982, p.72).

Portanto, é exatamente essa natureza heterogênea do desenvolvimento capitalista que


demanda uma configuração regional constituída não apenas por diferenças, mas essencialmente
por desigualdades combinadas, inclusive entre mais-valia absoluta e relativa.
Assim, é certo que a tendência à generalização do capital sob a égide do processo de
concentração e centralização não eliminou as regiões, afinal “o processo de reprodução do
capital é por definição desigual e combinado”. Porém, Francisco de Oliveira (1993, p.27) chama
a atenção para o seguinte:

[...] em alguns espaços econômicos do mundo capitalista, de que talvez a economia


norte-americana seja o exemplo mais completo, é inegável o grau de homogeneização
propiciado pela concentração e centralização do capital [...]. É óbvio que essa
exacerbação da homogeneização ocorreu no caso norte-americano precisamente por
ser o país líder da economia capitalista mundial: a face interna do imperialismo é essa
incoercível tendência à homogeneização do espaço econômico, enquanto sua face
externa na maioria das vezes não apenas aproveita das diferenças regionais reais,
como as cria para seu próprio proveito.

Para Mariátegui (2010, p.199), as regiões não nascem de um “estatuto político-


administrativo” de um Estado. “A região em geral tem raízes mais antigas” e profundas “que a
própria nação […]. Na Espanha e na Itália, as regiões se diferenciam claramente pela tradição,
pelo caráter, pelas pessoas e até pela língua”. Isto nos mostra que, apesar da hegemonia
capitalista, existe um verdadeiro amálgama que conjuga uma série de aspectos que não são
essencialmente capitalistas, tal como nos apresenta a concepção de desenvolvimento desigual
e combinado 27 . Tais aspectos incidem diretamente nas diferenciações territoriais enquanto

27
“A lei do desenvolvimento desigual e combinado traduz-se, assim, no processo de regionalização que diferencia
não só países entre si como, em cada um deles, suas partes componentes, originando regiões desigualmente
desenvolvidas mas articuladas. Sob o capitalismo queremos crer que a noção de combinação deve ser
explicitamente referida não apenas à coexistência no mesmo território de diferentes modos de vida, mas também
à articulação espacial destes territórios. A região pode ser vista como um resultado da lei do desenvolvimento
desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela
associação de relações de produção distintas. Estes dois aspectos vão traduzir-se tanto em uma paisagem como em
uma problemática, ambas específicas de cada região, problemática que tem como pano de fundo a natureza
específica dos embates que se estabelecem entre as elites regionais e o capital externo à região e dos conflitos entre
as diferentes classes que compõem a região. Os conflitos oriundos dos embates entre interesses internos, bem como
entre interesses internos e externos, podem gerar uma desintegração da região, que se exprimirá na sua paisagem.
Tendo isto em vista, pode-se dizer que a região é considerada uma entidade concreta, resultado de múltiplas
determinações, ou seja, da efetivação dos mecanismos de regionalização sobre um quadro territorial já previamente
ocupado, caracterizado por uma natureza já transformada, heranças culturais e materiais e determinada estrutura
social e seus conflitos. […] Ela [a região] não tem nada da preconizada harmonia, não é única […], mas particular,
ou seja, é uma especificação de uma totalidade da qual faz parte através de uma articulação que é ao mesmo tempo
funcional e espacial. Ou, em outras palavras, é a realização de um processo geral, universal, em um quadro
territorial menor, onde se combinam o geral […] e o particular […]. Acreditamos, com base na lei do
desenvolvimento desigual e combinado, que, neste caso, o processo de regionalização terá seu curso, refazendo
regiões ou áreas diferenciadas”. (CORRÊA, 1986, p.45-46).
64

desigualdades regionais. É “precisamente no descompasso entre nível das forças produtivas ou


formas de reprodução do capital e relações de produção [...] que reside uma das contradições
básicas do sistema capitalista de produção, e exatamente essa perspectiva é que abre as
possibilidades mais ricas para o estudo concreto dessa combinação desigual” (OLIVEIRA,
1993, p.29).
Assim como não só de pão vive o homem, não é possível entender a dinâmica regional
sem a interferências da dimensão política e do próprio Estado. Sob esse ponto de vista,
concordamos com Oliveira (1993, p.31-32) quando nos diz, já na década de 1970, o seguinte:

Talvez a elaboração mais cuidadosa do conceito de ‘região’ que se queira introduzir


seja a da dimensão política. Isto é, de como o controle de certas classes dominantes
‘fecha’ a região. Essa dimensão política não é uma instância separada da economia;
pelo contrário, é ou será da imbricação das duas instâncias que poderá surgir mais
completo o conceito que aqui se propõe, pelo menos na tradição teórica do marxismo.
O ‘fechamento’ de uma região pelas suas classes dominantes requer, exige e somente
se dá, portanto, enquanto estas classes dominantes conseguem reproduzir a relação
social de dominação, ou mais claramente as relações de produção. E nessa reprodução,
obstaculizam e bloqueiam a penetração de formas diferenciadas de geração do valor
e de novas relações de produção. A ‘abertura’ da região e a consequente ‘integração’
nacional, no longo caminho até a dissolução completa das regiões, ocorre quando a
relação social não pode mais ser reproduzida, e por essa impossibilidade, percola a
perda de hegemonia das classes dominantes locais e sua substituição por outras, de
caráter nacional e internacional.

As alterações e conformações dos limites geográficos e das fronteiras regionais,


componente indispensável da natureza capitalista, caminha permanentemente conforme as
demandas e exigências da sua expansão internacional combinada a formação de mercados
nacionais. E assim constitui-se a economia mundial capitalista como “um sistema articulado de
relações de produção capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas, ligadas entre si por
relações capitalistas de troca e dominadas pelo mercado capitalista mundial”. A formação do
mercado mundial, produto do desenvolvimento capitalista, foi viável em virtude de uma
combinação generalizada de economias e nações “capitaliscamente desenvolvidas e
capitaliscamente subdesenvolvidas num sistema multilateralmente autocondicinante”
(MANDEL, 1982, p.32). Esse processo se expressa na formação de um mercado mundial cuja
tendência inerente é “combinar a expansão internacional com a formação e a consolidação de
mercados nacionais”. Assim, “dependendo do desenvolvimento das forças produtivas e das
condições sociais, as relações capitalistas de troca a nível mundial aglutinam relações de
produção capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas numa unidade orgânica” (MANDEL,
1982, p.219-220). Essas relações são conformadas por aspectos do atraso e do moderno, sendo
um ou outro predominante regionalmente, o que não significa a coexistência de diferentes
65

modos de produção, mas a configuração de espaços, regiões e territórios “onde se imbricam


dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital, e por consequência uma forma
especial da luta de classes, onde o econômico e o político se fusionam e assumem uma forma
especial de aparecer no produto social e nos pressupostos da reposição.” (OLIVEIRA, 1993,
p.29).

[…] a “região” não seria um outro modo de produção, nem uma formação social
singular. O que preside o processo de constituição das “regiões” é o modo de produção
capitalista, e dentro dele, as “regiões” são apenas espaços sócio-econômicos onde uma
das formas do capital se sobrepõe às demais [...]. Não reconhecer [...] que existem
marcadas diferenças entre as várias formas de produção do valor dentro do capitalismo
é não reconhecer, em primeiro lugar, e a nível mais abstrato, a lei do desenvolvimento
desigual e combinado, e mais concretamente, o processo de constituição do próprio
capital enquanto relação social. (OLIVEIRA, 1993, p.30).

Esse processo é base da justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento que


será melhor trabalhada no próximo capítulo. Por ora, o que nos interessa é entender que o
desenvolvimento capitalista, com suas contradições, busca constantemente criar um “meio
sócio-geográfico adequado a suas necessidades” (MANDEL, 1982, p.4). Isso significa que o
nivelamento internacional da taxa de lucro não se sustenta, sendo “frontalmente contestado pela
lei do desenvolvimento desigual”.

No modo de produção capitalista, condições desiguais de desenvolvimento


determinam tamanhos diferentes de mercados internos e ritmos irregulares de
acumulação de capital. Nesse sentido, as enormes diferenças internacionais de valor
e de preço da mercadoria força de trabalho […] não são causas, mas resultados do
desenvolvimento desigual do modo de produção capitalista, ou da produtividade do
trabalho em todo o mundo, pois a lógica do capital normalmente o leva para as zonas
com maiores perspectivas de valorização. (MANDEL, 1982, p.249).

Como o desenvolvimento capitalista pressupõe a divisão social do trabalho, está


configura-se mundialmente e regionalmente mediante a diferença do nível de lucro, ritmo de
acumulação, crescimento econômico e produtividade entre os países e regiões, viabilizando a
acumulação e valorização do capital mesmo diante das tendências da queda da taxa de lucros e
das crises sistêmicas. Lembramos que, nessa divisão do trabalho, segundo Marx (1984, p.205),
“o exército industrial de reserva pressiona durante os períodos de estagnação e prosperidade
média o exército ativo de trabalhadores e contém suas pretensões durante o período de
superprodução e paroxismo”, sendo a superpopulação relativa “o pano de fundo sobre o qual a
lei da oferta e da procura de mão de obra se movimenta”. Esse movimento, que também se
expressa como “movimento geral do salário”, regulado pela “expansão e contração do exército
industrial de reserva”, adquire maior complexidade quando é consolidado e constituído
66

universalmente e regionalmente. Ou seja, não pode ocorrer regularmente, tal e qual, em toda
parte. (MARX, 1984, p.204).
Por isso chamamos a atenção para momentos de recomposição da classe trabalhadora,
- como o recente ciclo de desenvolvimento no Brasil dos anos 2000 -, em geral, marcados pela
diminuição do desemprego e aumento real do salário-mínimo que, no entanto, não anulam as
diferenças regionais de salário, mas são possíveis exatamente pela existência destas. Caso todos
os fatores fossem iguais, um aumento na composição orgânica do capital implicaria
imediatamente uma queda brusca na taxa de lucros.
Ainda de acordo com Marx (1984), para conter essa queda, dois fatores são muito
importantes: o barateamento dos elementos do capital constante e o aumento da taxa de mais-
valia. Isto só é possível sob a dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado entre as
regiões, territórios e setores da sociedade, ou seja, sob disparidades regionais que representam,
na verdade, a organização territorial da combinação entre o atraso e o moderno, constituindo as
diferentes sociedades e economias no sistema mundial. Diante disso, é certo que não se trata de
um “dualismo estrutural” entre regiões tidas como “atrasadas” e aquelas tidas como “modernas”.
Por isso, corroboramos com o que nos diz Francisco de Oliveira (1993, p.29):

A especificidade de cada “região” completa-se, pois, num quadro de referências que


inclua outras “regiões”, com níveis distintos de reprodução do capital e relações de
produção; pelo menos quando se está em presença de uma “economia nacional”, que
globalmente se reproduz sob os esquemas da reprodução ampliada do capital, é que o
enfoque aqui adotado, de diferenças na divisão regional do trabalho, pode encontrar
terreno propício para o entendimento das relações inter-regionais e abandonar a
abordagem dos “desequilíbrios regionais” por uma formulação que centre suas
atenções nas contradições postas e repostas exatamente pelas formas diferenciadas de
reprodução do capital e das relações de produção.

O que de fato ocorre é que o desenvolvimento capitalista se depara com “várias porções
da humanidade em diferentes estágios [e ritmos] de desenvolvimento, cada uma com suas
próprias e profundas contradições internas”. Gradualmente esse desenvolvimento “conquista a
supremacia em relação à desigualdade herdada, quebrando-a e alterando-a, passando a
empregar seus próprios recursos e métodos”, o que produz uma relativa equiparação dos níveis
“econômico e cultural entre os países mais adiantados e os mais atrasados”. Todavia, nos diz
Trotsky (apud MANDEL, 1982, p.15):

[…] ao aproximar economicamente os países entre si e ao nivelar seus graus de


desenvolvimento, o capitalismo opera por métodos que lhe são próprios, isto é, por
métodos anárquicos, que permanentemente solapam as bases de seu próprio trabalho,
lançam um país contra o outro e um ramo industrial contra o outro, desenvolvendo
alguns setores da economia mundial e, simultaneamente, dificultando ou fazendo
67

retroceder o desenvolvimento de outros. Unicamente a correlação dessas duas


tendências fundamentais – ambas surgidas da natureza do capitalismo – nos pode
explicar a textura viva do processo histórico.

Esse sistema, desintegradamente integrado, rompe fronteiras territoriais e, pelo mesmo


movimento, cria novas fronteiras, constituindo regiões ricas e pobres, umas pesando mais os
aspectos do atraso, outras do moderno, em um processo universal, articulado, de produção de
desigualdades. Nessa configuração regional mundial, o que importa centralmente não é a
propriedade das terras ou de dinheiro, ou mesmo a abundância em termos de riquezas naturais,
mas o comando sobre o trabalho que distingue ricos e pobres. Assim, mesmo que haja uma
maior produção de riquezas, de mais-valia, em determinadas regiões, isso não significa que tais
regiões sejam necessariamente ricas. Muitas vezes, dá-se exatamente o contrário. Isto de acordo
com o padrão de acumulação que estabelece parâmetros regionais da produção e da circulação
em cada período, por exemplo, fazendo com que a exportação de mercadorias deixe de ser
central em relação ao papel que passa a assumir a exportação de capitais.
Diante dessa lógica, por que perceber as particularidades desse desenvolvimento? Como
entendê-lo? Como a combinação entre atraso e moderno pode nos dar subsídios para
compreender a dialética universal-regional? Entendemos que, para delinear possíveis respostas,
é preciso, antes disso, recorrer e apreender algumas experiências históricas.

1.4. O amálgama entre o moderno e o atraso como processo histórico

Lênin, por exemplo, “se movia no interior de uma sociedade cuja estrutura de poder era
absolutamente autocrática, onde o emergente proletariado não dispunha de tradições
organizativas nem experiência política” (NETTO, 1982, p.09). No embate às ideias vigentes de
sua época, se desenvolveu uma das primeiras interpretações marxistas da emergência do
capitalismo numa sociedade de base fundamentalmente agrária. O trato sobre o tema da questão
agrária, relacionado ao processo de desintegração do campesinato, de criação do mercado
interno, das reconfigurações das relações de trabalho no latifúndio e das demais transformações
nas relações agrárias, expressões das contradições inerentes à economia mercantil e capitalista,
assegura a afirmação de Netto (1982, p.17) sobre o pensador russo: “Lênin realiza uma
importantíssima investigação sobre uma forma particular de transição do feudalismo ao
capitalismo […] ressaltando o caráter combinado e heteróclito da economia agrícola privada
[…]”.
68

Nesse sentido, para Vieira (2006, p.146-147), as análises de Lênin demonstram que a
Rússia segue o modelo de modernização das nações que, na segunda metade do século XIX
transitaram para o capitalismo industrial “pelo alto”, isto é, pela via prussiana. “Foi o ingresso
de capitais europeus, franceses e ingleses principalmente, que viabilizou o ‘salto’ de
desenvolvimento do russo, queimando as etapas que, em alguns países europeus, a exemplo da
Alemanha, se tornaram rigorosamente necessárias”.
Ao analisar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia na transição do século XIX
para XX, com o enfoque no processo de formação do mercado interno para a grande indústria,
Lênin (1982, p.370-372) identifica o papel das províncias periféricas, das colônias, da expansão
mercantil e da própria desigualdade regional. Vejamos:

Diante da desigualdade do desenvolvimento inerente ao capitalismo, alguns ramos


industriais ultrapassam outros e tendem a extravasar os limites da antiga região de
relações econômicas. Como exemplo, tomemos a indústria têxtil do período
imediatamente posterior à reforma. Já estando em um grau de desenvolvimento
capitalista bastante elevado […] essa indústria dominava plenamente o mercado da
Rússia central. No entanto, as grandes fábricas cresciam tão velozmente que não
podiam se satisfazer com o antigo mercado; passaram a procurar mercados mais
distantes entre a nova população que colonizara a Nova Rússia […]. A tendência
dessas grandes fábricas em ultrapassar os limites dos antigos mercados é inconteste.
Isso significa que as regiões dos antigos mercados não podiam absorver uma maior
quantidade de produtos têxteis? […] Não. Sabemos que, mesmo na antiga região, a
desintegração do campesinato, o desenvolvimento da agricultura comercial e o
crescimento da população industrial continuaram ainda a provocar a expansão do
mercado interno até dessa velha região. Mas essa expansão é entravada por múltiplos
obstáculos (o principal deles: a conservação de instituições anacrônicas que retardam
o desenvolvimento do capitalismo na agricultura) […]. Os fabricantes necessitam
imediatamente de um mercado e se, na velha região, o mercado é reduzido pelo atraso
dos outros ramos industriais, eles irão procurá-lo em outra região, em outro país ou
em colônias do seu país. Mas o que é uma colônia do ponto de vista da economia
política? […] segundo Marx, os indícios básicos desse conceito são: 1) a existência
de terras livres, não ocupadas e facilmente acessíveis aos colonos e 2) a existência de
uma divisão mundial do trabalho, já constituída, e de um mercado mundial, graças a
que as colônias podem se especializar na produção maciça de produtos agrícolas,
recebendo, em troca, produtos industriais acabados […]. Vimos, igualmente, que as
periferias do sul e do leste da Rússia […] atendiam precisamente a esses dois critérios
[…]. O que importa é que o capitalismo não pode existir nem se desenvolver sem
estender sempre o âmbito do seu domínio, sem colonizar novos países, sem inserir no
turbilhão da economia mundial velhos países não-capitalistas. Essa característica do
capitalismo se manifestou e continua a se manifestar, com força particular, na Rússia
posterior à reforma.

Já Gramsci (2002, p.319), na leitura sobre o desenvolvimento do capitalismo na Itália,


especialmente no período denominado de Risorgimento, de consolidação do Estado moderno,
concebe a “revolução passiva” como critério de interpretação da realidade, não como um
programa. Para ele, esse processo se realizou por intermédio de uma “revolução sem revolução”,
com fortes elementos de restauração “que acolheram uma certa parte das exigências que vinham
69

de baixo” e com “ausência de uma iniciativa popular unitária […], bem como o
desenvolvimento deu-se como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico,
elementar, não orgânico, das massas populares”.

O conceito de ‘revolução passiva’ deve ser deduzido rigorosamente dos dois


princípios fundamentais de ciência política: 1) nenhuma formação social desaparece
enquanto as forças produtivas que nela se desenvolveram ainda encontrarem lugar
para um novo movimento progressista; 2) a sociedade não se põe tarefas para cuja
solução ainda não tenham germinado as condições necessárias etc. Naturalmente,
estes princípios devem ser, primeiro, desdobrados criticamente em toda a sua
dimensão e depurados de todo resíduo de mecanicismo e fatalismo. Assim, devem ser
referidos à descrição dos três momentos fundamentais em que se pode distinguir uma
‘situação’ ou um equilíbrio de forças, com o máximo de valorização do segundo
momento, ou equilíbrio das forças políticas, e especialmente do terceiro momento, ou
equilíbrio político-militar […]. (GRAMSCI, 2002, p.321-322)

Mariátegui (2010), reconhecido como o primeiro na América Latina a interpretar esta


realidade pela ótica marxista, identifica o peso da questão indígena (e da cultura andina) e
agrária, nos países latino-americanos, em particular na realidade peruana dos anos 1920, e a
importância de tal constatação para o movimento socialista na região. Essa trajetória foi
acompanhada por uma severa crítica ao pensamento eurocêntrico e à uma leitura cartesiana da
realidade, entendendo que o processo de transição socialista em seu país, assim como em outros,
demandaria uma aliança operário-camponesa e o enfrentamento ao “problema do índio” como
parte também da questão agrária.
É inviável simplesmente olhar para as experiências em outros países e reproduzir as suas
“fases” em um terreno completamente adverso com distinções na própria configuração das
classes sociais. Não se trata, portanto, de implantar as bases do desenvolvimento capitalista
como aconteceu na Rússia para viabilizar a revolução socialista, por exemplo.
De acordo com o pensador andino, dentre os traços essenciais da formação e do
desenvolvimento do capitalismo peruano de sua época, é possível apontar a coexistência de
aspectos (híbridos) que correspondem a três economias diferentes: “Sob o regime de economia
feudal nascido da conquista subsistem na serra alguns resíduos ainda vivos da economia
comunista indígena. Na costa, sobre um solo feudal, cresce uma economia burguesa que, pelo
menos em seu desenvolvimento mental, dá a impressão de ser uma economia retardada”
(MARIÁTEGUI, 2010, p.46).
Ao contrário do desenvolvimento do “autêntico” capitalismo, como fenômeno
fundamentalmente urbano, que para viabilizar o surgimento da grande propriedade moderna
demandou a “dissolução da grande propriedade feudal […], a liberação da terra, a destruição
do feudo […], no Peru, contra o sentido da emancipação republicana, se encarregou ao espírito
70

do feudo – antítese e negação do espírito do burgo – a criação de uma economia capitalista”


(MARIÁTEGUI, 2010, p.51). Ou seja, os fundamentos políticos da república não foi na
contramão do latifúndio, ao contrário, atacou a “comunidade”28, conjugando a industrialização
com a concentração da propriedade agrária. Nessa direção, o destino de países como o Peru na
ordem capitalista é o de cumprir a função de colônias de exploração do imperialismo mundial.
Isto já é possível observar pelo próprio caráter da “revolução” independentista peruana, o que,
em outras palavras, pode representar uma “revolução sem revolução”:

A revolução encontrou o Peru atrasado na formação de sua burguesia. Os elementos


de uma economia capitalista eram, no nosso país, mais embrionários que em outros
países da América, onde a revolução contou com uma burguesia menos larvar, menos
incipiente. Se a revolução tivesse sido um momento das massas indígenas ou tivesse
representado suas reivindicações, teria tido necessariamente uma forma agrarista. Já
está bem estudado como a revolução francesa beneficiou particularmente a classe
rural, na qual teve que se apoiar para evitar o retorno do antigo regime. Esse fenômeno,
ademais, parece peculiar em geral tanto para a revolução burguesa quanto para a
revolução socialista […]. Dirigidas e tendo como atores principalmente a burguesia
urbana e o proletariado urbano, uma e outra revolução tiveram os camponeses como
beneficiários imediatos. Particularmente na Rússia, foi essa a classe que colheu os
primeiros frutos da revolução bolchevique, pois nesse país ainda não se havia operado
uma revolução burguesa que, no seu momento, tivesse liquidado o feudalismo e o
absolutismo e instaurado em seu lugar um regime democrático-liberal. Mas, para que
a revolução democrático-liberal tivesse esses efeitos, duas premissas eram necessárias:
a existência de uma burguesia consciente dos fins e interesses de sua ação e a
existência de um estado de ânimo revolucionário na classe camponesa e,
principalmente, sua reivindicação do direito à terra em termos incompatíveis com o
poder da aristocracia latifundiária. No Peru, menos ainda que em outros países da
América, a revolução da independência não respondeu a essas premissas […]. O
nacionalismo continental dos revolucionários hispano-americanos juntou-se a essa
convivência forçada de seus destinos, para nivelar os povos mais avançados em sua
marcha rumo ao capitalismo com os mais atrasados nessa mesma via.
(MARIÁTEGUI, 2010, p.81-82)

É claro que, assim como em outras realidades, o Peru do início do século XX sofreu
consideráveis transformações, em quantidade e qualidade, exigidas pela própria dinâmica
capitalista, mesmo que particular. Um exemplo disso é o aumento demográfico, especialmente
nas cidades. “Os indígenas, que representavam três quartos da população, hoje só representam

28
“A defesa da 'comunidade' indígena não repousa em princípios abstratos de justiça nem em considerações
sentimentais e tradicionalistas, mas, sim, em razões concretas e práticas de ordem econômica e social. A
propriedade comunal não representa no Peru uma economia primitiva substituída gradualmente por uma economia
progressista fundada na propriedade individual. Não; as 'comunidades' foram despojadas de suas terras em proveito
do latifúndio feudal ou semifeudal, constitucionalmente incapaz de progresso técnico. […] A 'comunidade', ao
contrário, por um lado, acusa capacidade efetiva de desenvolvimento e transformação e, por outro, se apresenta
como um sistema de produção que mantém vivos no índio os estímulos morais necessários para seu rendimento
máximo como trabalhador. […] Dissolvendo ou relaxando a 'comunidade', o regime do latifúndio feudal não
apenas atacou uma instituição econômica, mas também, e sobretudo, uma instituição social que defende a tradição
indígena, que conserva a função da família camponesa e que traduz esse sentimento jurídico popular ao qual tão
alto valor atribuem Proudhon e Sorel” (MARIÁTEGUI, 2010, p.96-99).
71

um terço. A pobreza de 54% da população é consequência direta dessas mudanças” (ROJAS,


2010, p.19-20).
Como podemos observar, o desenvolvimento capitalista não é homogêneo, gerando
constantemente desigualdades de proporções diferenciadas que se desdobram regionalmente.
Desse modo, “os acontecimentos não poderiam ser considerados como um encadeamento de
aventuras, nem inseridos, uns após outros, num fio de moral preconcebida.” (TROTSKY, 1977,
p.15). Contudo, existem aspectos universais que, apesar de se desdobrarem em terrenos com
relevos distintos, são essenciais ao capitalismo e a base da sua economia mercantil, elementos
fundamentais no “processo de formação de um mercado interno para o capitalismo” (LÊNIN,
1982, p.13), tais como: a progressiva divisão social do trabalho; a separação entre
manufatura/indústria e agricultura e, portanto, a transformação da agricultura em indústria, em
ramo produtor de mercadorias; o consequente crescimento da população industrial e urbana às
expensas da população agrícola/rural; expropriação dos produtores e separação destes dos
meios de produção; progressiva socialização do trabalho junto a acumulação de riquezas cada
vez mais privada; entre outras.
Esses processos operaram de forma que, enquanto na Inglaterra em meados do século
XIV a servidão tivesse desaparecido, na Rússia, no mesmo continente, dois séculos depois ela
estava sendo instituída.
A expropriação das terras dos camponeses ingleses deu-se através “da Reforma e de
duas revoluções, até o século XIX. O desenvolvimento do capitalismo [...] dispôs do tempo
necessário para acabar com a autonomia dos rurais muito antes de nascer o proletariado para a
vida política.”. Assim, explorando o mundo inteiro através do colonialismo, em virtude dos
“privilégios históricos” do desenvolvimento capitalista na Inglaterra, “o conservadorismo
passou, com maleabilidade, das instituições para os costumes”. (TROSTKY, 1977, p.100).
Já na França, o embate direto com setores absolutistas e aristocráticos, além do alto clero,
“obrigou a burguesia de diferentes níveis a realizar por etapas, em fins do século XVIII, uma
revolução agrária radical”, ou seja, houve uma ruptura necessária, funcionando, posteriormente,
os camponeses como “sustentáculo da ordem burguesa”, inclusive repercutindo no Golpe dado
por Luís Bonaparte, em 1851, após das Revoluções de 1848-49 que conformaram a Primavera
dos Povos na Europa Central e Oriental. (MARX, [1852] 2008).
Diferentemente, na Alemanha, a classe burguesa mostrou-se “incapaz de resolver
revolucionariamente a questão agrária e, em 1848, abandonou os camponeses em mãos dos
pequenos senhores feudais”. Nessas circunstâncias, em meados do século XIX, o proletariado
alemão ainda era bastante fraco para encarregar-se da direção da classe camponesa. “Graças a
72

isso, o desenvolvimento do capitalismo, na Alemanha, dispôs de um prazo, senão tão longo


quanto o da Inglaterra, pelo menos suficiente para subordinar ao seu regime a economia agrícola
tal como havia saído de uma revolução burguesa inacabada.” (TROTSKY, 1977, p.61-62).
Voltando a realidade italiana, temos o seguinte exemplo:

[…] na Itália, a questão camponesa, como consequência da específica tradição italiana,


do específico desenvolvimento da história italiana, assumiu duas formas típicas e
peculiares, ou seja, a questão meridional e a questão vaticana. […]. É conhecida a
ideologia que foi difundida capilarmente pelos propagandistas da burguesia entre as
massas do Norte: o Sul é a bola de chumbo que impede progressos mais rápidos para
o desenvolvimento civil da Itália; os sulistas são seres biologicamente inferiores,
semibárbaros ou bárbaros completos, por destino natural; se o Sul é atrasado, a culpa
não é do sistema capitalista ou de qualquer outra causa histórica, mas da natureza, que
fez os sulistas poltrões, incapazes, criminosos, bárbaros, temperando esta sorte
madrasta com a exploração puramente individual de grandes gênios, que são as
palmeiras solitárias num deserto árido e estéril. (GRAMSCI, 2004, p.409)

A Itália moderna, para Gramsci (2004), nos mostra o quanto o país é atravessado por
uma cisão histórica, estrategicamente utilizada pelos setores dominantes, entre o Norte,
“industrializado” e “desenvolvido”, e o Sul, “agrário” e “atrasado”, fazendo das diferenças entre
as regiões um grande motivo para sobrepô-las hierarquicamente e fortalecer as desigualdades
regionais. Na verdade, poderíamos associar tais diferenças a “forma de como o capital articula
os diferentes modos de produção”, ou formações sociais historicamente distintas, “no interior
do território e determina as alianças entre as respectivas classes hegemônicas, tanto no espaço
nacional (a burguesia industrial do norte) quanto no regional (os grandes proprietários de terra
do sul)”. Essas alianças, inclusive, representaram a demanda por homogeneização diante das
fortes barreiras regionais, viabilizando o Risorgimento e a unificação italiana em torno do
Estado moderno através de uma revolução passiva, “em que a aristocracia sulista aceita a
hegemonia da burguesia nortista para manter inalterada a estrutura fundiária e o domínio
político sobre a região”, evitando uma maior desagregação regional e uma revolução popular,
especialmente por parte dos camponeses localizados no Sul do país. (VIEIRA, 2006, p.142).
Tais circunstâncias constituem a chamada “questão meridional” ou o Mezzogiorno29 como uma

29
“[...] Gramsci aponta a necessidade de 'dar importância especialmente à questão meridional, isto é, à questão em
que o problema das relações entre operários e camponeses se coloca não apenas como um problema de relação de
classe, mas também, e especialmente, como problema territorial, isto é, como um dos aspectos da questão nacional'
(L, 130). O III Congresso do Partido Comunista da Itália trata amplamente da questão meridional como o aspecto
principal, com a questão vaticana, da mais ampla questão agrária, que é, pois, o modo de analisar o caso específico
da formação histórica e da composição do Estado italiano. O partido deve se mover em duas frentes: de fato, é
necessário que ele 'destrua no operário industrial o preconceito inculcado pela propaganda burguesa de que o
Mezzogiorno é uma bola de chumbo que se opões aos grandes desenvolvimentos da economia nacional, e que
destrua no camponês meridional o preconceito, ainda mais perigoso, por meio do qual ele vê no norte da Itália um
só bloco de inimigos de classe' […]. Na verdade, a ruptura do bloco histórico tradicional e a construção de um
73

“chave” para entender a tônica do desenvolvimento do capitalismo na Itália, o que, para muitos,
pode ser associada a alguns episódios presentes na história do Brasil, como aqueles
desencadeados a partir dos anos 30.
A formação dos Estados Unidos também sinaliza alguns aspectos importantes sobre as
particularidades do desenvolvimento capitalista e a configuração da sua face regional.
Conformado a partir da unificação de antigas colônias inglesas na América do Norte, o país
também possui uma forte diferenciação territorial entre o Norte e o Sul. O Norte historicamente
conformado com maior presença de atividades econômicas mais voltadas para o mercado local,
interno, com base em pequenas e médias propriedades agrícolas, além de um maior
desenvolvimento industrial e menor peso do trabalho escravo em relação ao território nacional.
Em contraponto, o Sul estadunidense possui como peso histórico a forte presença da escravidão
negra, de atividades agrícolas (algodão, tabaco, etc.) com base no monocultivo, nas grandes
propriedades e na exportação para o mercado europeu30.

O nascimento dos Estados Unidos […] foi, sem dúvida, um fato revolucionário na
história do sistema mundial, por ser o primeiro estado nacional que se formou fora do
território europeu. Mas esta revolução não caiu do céu, ela foi provocada pelas
contradições do sistema […]. Por isso, os Estados Unidos foram uma novidade, porém,
não foram uma exceção […]. No século XX, os Estados Unidos assumiram a liderança
do sistema que havia sido dos europeus e levaram ao extremo sua tendência
contraditória à formação de um império mundial e, ao mesmo tempo, ao
fortalecimento do seu poder nacional. […] Mas, apesar destas diferenças e da
especificidade norteamericana, os Estados Unidos apresentaram […] uma tendência
expansiva que não se encontra nos demais estados “tardios” que foram criados na
América Latina, no início do século XIX. […] Do ponto de vista geopolítico, o fator
que mais pesou na independência e na formação do estado americano foi ter ocorrido
enquanto as Grandes Potências disputavam a hegemonia européia, entre o fim da
Guerra dos Sete Anos, em 1763, e o fim das guerras napoleônicas, em 1815. […] o
ponto decisivo que diferencia a formação da economia americana, durante as
primeiras décadas de vida independente, é sua relação complementar, funcional e
privilegiada com a economia inglesa, naquele momento, a principal economia

novo bloco social anticapitalista, constituído por operários e camponeses, é para Gramsci, em Alguns temas da
questão meridional, o caminho a ser seguido para enfrentar a questão meridional associando sua qualidade
nacional àquela de classe […] superar a forma da unidade nacional típica do Risorgimento, baseada na anexação
das regiões do Sul, para desenvolver um sentimento real de nação, por meio do protagonismo das massas
camponesas meridionais no processo histórico […], bem como, contemporaneamente, construir 'uma aliança
política entre operários do Norte e camponeses do Sul para afastar a burguesia do poder de Estado […]. 'O
Mezzogiorno pode ser definido como uma grande desagregação social […]. A sociedade meridional é um grande
bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa amorfa e desagregada, os intelectuais
da pequena e média burguesia rural, os grandes proprietários fundiários e os grandes intelectuais […]; isso permite
conservar o status quo, tanto meridional quanto setentrional, representando um elemento regressivo de dimensão
nacional”. (DURANTE, 2017, p.665-666).
30
“Entre 1820 e 1830, mais de um terço das exportações americanas foi para a Inglaterra, e os Estados Unidos
obtiveram um sexto das exportações britânicas, o que constituía mais de 40% do total de suas importações. Em
1821, os Estados Unidos ficaram com um sétimo das exportações britânicas, e em 1832 com um nono; o valor das
exportações aumentou 10%. As compras britânicas de algodão do Sul dos Estados Unidos estimularam o
crescimento do reino algodoeiro; bancos estatais e privados do sul do país pegavam empréstimos em Londres”
(WILLIAMS, 2012, p.188).
74

capitalista do mundo, em pleno processo de revolução industrial. Do ponto de vista


inglês, os Estados Unidos se transformou numa experiência pioneira do seu novo
sistema de divisão internacional do trabalho que seria estendido, durante o século XIX,
à América Latina, norte da África e a alguns países asiáticos. (FIORI, 2004, p.01-05).

Porém, tal experiência diferenciou-se, tendo em vista que “a vitória dos ideais
revolucionários, alcançados nas guerras da Independência e de Secessão, possibilitaram a
solução democrática do problema da terra (com a consequente eliminação dos excedentes de
mão-de-obra)” nos EUA, permitindo uma “melhor distribuição da riqueza nacional”, a
formação de um mercado interno e a presença de uma “forte classe média no campo”, tornando-
se base do regime liberal no país. (GUIMARÃES, 2008, p.33). A particularidade dessa
realidade, que para Mandel (1982, p.26-27) já era identificada por Marx repetidas vezes, dentre
outros aspectos, pode ser percebida no fato de os salários terem sido altos desde o início, mas
em decorrência de quais fatores? Esse fenômeno, observa o autor, não se dava em função da
alta produtividade do trabalho por si, “mas da crônica escassez de força de trabalho provocada
pela fronteira; portanto, a alta produtividade do trabalho nos Estados Unidos não foi a causa,
mas o resultado de altos salários, e consequentemente foi acompanhada, durante um período
bastante longo, por uma taxa de lucro mais baixa do que na Europa”. Tal exemplo demonstra o
quanto as relações sociais extrapolam a regra, não sendo o “grau de resistência do proletariado
[...] o único determinante que leva a taxa de mais-valia a se tornar uma variável parcialmente
independente da taxa de acumulação: a situação histórica original do exército industrial de
reserva também desempenha um papel decisivo”.
Retomando o exemplo russo, onde “população da gigantesca planície, com seu clima
rigoroso, exposta ao vento e às migrações asiáticas, estava destinada, pela própria natureza, a
uma prolongada estagnação”, a problemática envolvendo os nômades esteve muito presente,
fortalecendo a condição de centralidade das regiões do extremo Sul e Leste do país como
principais no capitalismo agrário russo. (LÊNIN, 1982). “A agricultura – base de todo o
desenvolvimento – progredia de maneira extensiva: no Norte cortavam-se e queimavam-se
florestas; no Sul desorganizavam-se as estepes virgens. Tomava-se posse da natureza em
extensão e não em profundidade”. É inevitável não pensar, diante dessa caracterização, nos
pontos de semelhança com outras diferentes realidades que, mesmo não tendo vivenciado um
período feudal, têm como marca em sua formação as migrações como fruto do peso de
fenômenos sociais, travestidos de argumentos deterministas, como se a estagnação fosse
estabelecida pela própria natureza regional, a exemplo do Brasil e, particularmente, do Nordeste
brasileiro. Contudo, sobre esta realidade, nos debruçaremos mais a frente.
75

Por ora, ressaltamos que todo processo de formação social russa esteve marcado pela
paradoxal relação entre Ocidente e Oriente, território onde o Estado assume uma importância
central em sua configuração particular, autocrática, no período pré-revolucionário, não apenas
condenando as classes populares a uma redobrada miséria, mas ainda enfraquecendo os setores
possuidores. “Como resultado, as classes privilegiadas, burocratizadas, jamais conseguiram
erguer-se em toda a sua pujança, e o Estado russo não fez senão aproximar-se ainda mais dos
regimes despóticos da Ásia.” (TROTSKY, 1977, p.23-25).
Vale mais uma vez lembrar as conexões existentes entre esta realidade e aquela que
priorizamos no desenvolvimento da tese, tendo em vista que a “autocracia burguesa” é um
aspecto também relevante nas análises sobre a realidade brasileira presentes nas obras de
importantes intérpretes do Brasil, a exemplo de Florestan Fernandes (2006), com os quais
dialogaremos mais adiante.
Dentre as particularidades dos primórdios do desenvolvimento capitalista na Rússia,
está a condição do artesanato não ter conseguiu se desvincular da agricultura, diferentemente
de outras realidades. As cidades eram centros de consumo, não de produção. Já o comércio era
voltado fundamentalmente para o estrangeiro, evidenciando um “papel dirigente” do capital
comercial externo em um ambiente caracteristicamente “semifeudal”. “Na falta de uma
democracia industrial nas cidades, a guerra camponesa não se poderia transformar em revolução
assim como as seitas religiosas das aldeias não puderam atingir a Reforma.”. Havia, portanto,
uma clara intenção por parte das classes dominantes de combinar o regime liberal com as bases
de dominação de casta. (TROTSKY, 1977, p.27). Portanto, a questão agrária, diferentemente
de outros países, tornou-se uma problemática essencial na Rússia tzarista.

Pode-se afirmar, sem receio de exagero, que o centro de controle das ações emitidas
pelos bancos, pelas fábricas e manufaturas russas encontrava-se no estrangeiro e a
participação da Inglaterra, da França e da Bélgica no capital atingia o dobro da
participação alemã. As condições em que se organizou a indústria russa, a própria
estrutura desta indústria, determinaram o caráter social da burguesia do país e sua
fisionomia política. A forte concentração da indústria demonstra por si mesma que
entre as esferas dirigentes do capitalismo e as massas populares não existia hierarquia
intermediária. […] o reservatório de onde saia a classe operária russa não era um
artesanato corporativo: era o meio rural; não a cidade, mas a aldeia. É preciso notar
que o operariado russo se formou não paulatinamente […]. A incapacidade política da
burguesia era diretamente determinada pelo caráter de suas relações com o
proletariado e os camponeses. [...] a burguesia era igualmente incapaz de arrastar a
classe camponesa porque estava enredada nas malhas de interesses comuns com os
proprietários de terras e porque temia um abalo da propriedade [...]. Se, portanto, a
revolução russa tardou em rebentar, não foi tão somente por motivo cronológico: a
culpa desta demora cabe também à estrutura social da nação. (TROTSKY, 1977, p.29-
30).
76

Apesar da submissão ao mercado exterior, o rápido desenvolvimento econômico na


Rússia, sob as condições de atraso, viabilizou um salto no processo de financeirização do capital
em relação a outros países. Porém, ainda sob o controle estrangeiro conjugado aos interesses da
burguesia russa, completamente contrária aos anseios populares. Esse vertiginoso
desenvolvimento possibilitou também a formação de um mercado interno, mesmo diante da
concentração de terras e da ruína dos pequenos produtores. “Na verdade, a transformação da
agricultura em indústria amplia o mercado interno através da ampliação do consumo produtivo
e individual, pessoal”. (LÊNIN, 1982, p.16). É certo que essa realidade destoa completamente
do que vem ocorrendo no Brasil, apesar de relativas semelhanças. Isto tendo em vista que a
agricultura neste país vem se modificando e modernizando através do agronegócio que se
baseia principalmente nas exportações e não no necessário aumento do consumo das massas e
do mercado interno que se deve a políticas que buscaram aumentar a renda do trabalhador, seja
via salários diretos, seja via salários indiretos (políticas sociais, programas sociais).
Contraditoriamente, não tendo vivenciado uma revolução burguesa ou mesmo uma
reforma agrária do ponto de vista dos interesses burgueses, tal como ocorreu em outros países,
mesmo diante do peso da questão agrária, da presença camponesa e do atraso, desencadeou-se
uma revolução popular de natureza socialista originalmente constituída na Rússia. Por quê?
Para aqueles que se limitam a “banais constatações históricas e a fazer analogias puramente
formais e que, nas diversas épocas, não consente em ver senão a sucessão lógica de rígidas
categorias sociais (feudalismo, capitalismo, socialismo; autocracia, república burguesa,
ditadura do proletariado)”, essa pergunta encontra uma resposta completamente anacrônica a
realidade.
“É ou não uma particularidade? Seria necessário tomar em consideração as profundas
singularidades de toda uma evolução histórica ou antes abandoná-las? Era assim que o
problema se apresentava ao proletariado russo, isto é, [...] ao proletariado do mais atrasado país
de toda a Europa”. (TROTSKY, 1977, p.386). E é assim que este continua sendo um problema
atualíssimo para os que estão dispostos a entender a realidade capitalista seriamente em suas
facetas contemporâneas que também atualizam a profunda necessidade de mudanças diante do
sentimento que acomete aqueles que trazem consigo a dificuldade de reconhecer o mundo de
hoje como um lugar adequado para se viver no sentido mais pleno da palavra.
Para tanto, nos remetemos novamente a uma questão fundamental que nos guia nesta
pesquisa: as palavras, os discursos e a avaliação moral não são mais fortes que a avassaladora
realidade com sua objetividade história. Isso não desconsidera sua dimensão subjetiva, ao
contrário, pois esta se constitui na relação orgânica com aquela, tornando possível, “quando um
77

velho regime se torna intolerável às massas”, a destruição das “muralhas que as separam da
arena política”, a derrocada dos seus representantes tradicionais e criação de “uma posição de
partida para um novo regime. Seja isto um bem ou um mal, cabe aos moralistas julgá-lo.”
(TROTSKY, 1977, p.15).
Assim, para além de toda a relação colonial que configurará a condição de dependência,
o capitalismo desenvolveu configurações regionais diferenciadas mesmo nas regiões ditas
centrais. Tais conformações são atravessadas fundamentalmente pela unidade entre o “mais
arcaico” e o “mais moderno”. E é exatamente o peso do atraso no desenvolvimento desigual e
combinado que explica determinadas particularidades como o caso russo, já ressaltadas por
Trotsky (1977) e Lênin (1982). Observemos o que o próprio Trotsky (1977, p.24-25) nos fala
sobre isso:

Um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados.


Não significa isto, porém, que siga servilmente estes países, reproduzindo todas as
etapas de seu passado. A teoria da repetição dos ciclos históricos [...] baseia-se na
observação dos ciclos percorridos pelas velhas estruturas pré-capitalistas e,
parcialmente, sobre as primeiras experiências do desenvolvimento capitalista. O
caráter provincial e transitório de todo processos admite, efetivamente, certas
repetições das fases culturais em meio ambiente sempre novos. O capitalismo, no
entanto, marca um progresso sobre tais condições. Preparou e, em certo sentido,
realizou a universalização e a permanência do desenvolvimento da humanidade. [...]
um país atrasado não se conforma com a ordem de sucessão: o privilégio de uma
situação historicamente atrasada [...] autoriza um povo ou, mais exatamente, o força
a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma série
de etapas intermediárias. Renunciam os selvagens ao arco e a flecha e tomam
imediatamente o fuzil [...]. Se a Alemanha e os EUA ultrapassaram economicamente
a Inglaterra, isso se deveu exatamente ao atraso na evolução capitalista daqueles dois
países. Em compensação, a anarquia conservadora que reina na indústria carbonífera
britânica [...] é o resgate de um passado durante o qual a Inglaterra [...] manteve a
hegemonia do capitalismo. O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada
conduz, necessariamente, a uma combinação original das diversas fases do processos
histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo,
combinado. A possibilidade de superar os degraus intermediários não é está claro,
absoluta […]. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processos histórico,
evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob
o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de
avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei
que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento
combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases
diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei,
tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender
a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em
segunda, terceira ou décima linha.

A lei do desenvolvimento desigual e combinado é, portanto, uma importante chave de


análise da realidade para entendermos que o atraso não é ausência de desenvolvimento
capitalista e a combinação com o moderno pode causar um efeito em determinadas formações
78

sociais bastante distintivo, desbancando qualquer propensão a uma análise etapista e linear da
história 31. Debate, este, central no tema da Revolução Brasileira, carregado por muitos embates
e polêmicas durante o século XX que, em parte, abordaremos no próximo capítulo.
Em outras palavras, o atraso em sociedades como a russa, até início do século XX, não
supõe que haja uma reprodução tardia neste país da história das nações da Europa Ocidental. A
Rússia não foi, nem será, uma Inglaterra ou uma França. A Rússia representa uma formação
social particular no sentido de assumir uma determinada posição no conjunto das relações
sociais que conformam o padrão de acumulação capitalista. Assim, “o incontestável atraso da
evolução russa, sob a influência e a pressão da cultura ocidental mais elevada, não conduz
apenas a uma simples repetição do processus histórico da Europa ocidental, mas determina
profundas particularidades que devem constituir, isoladamente, um assunto de estudo...”.
(TROTSKY, 1977, p.386).
Contraditoriamente, a condição de atraso na Rússia proporcionou um salto de
desenvolvimento. “Na realidade, a possibilidade de um progresso assim rápido era
precisamente determinada pelo estado atrasado do país”, o que, entretanto, não servirá de regra
para as demais formações sociais. Porém, é certo que, na condição de atraso, o incentivo ao
desenvolvimento das forças produtivas pode promover saltos, um rápido progresso, em relação
ao desenvolvimento “clássico” do capitalismo. É o que ocorreu, por exemplo, com a indústria
russa. “Tardiamente nascida [….] não percorreu, desde o início, o ciclo dos países adiantados,
porém neles se incorporou, adaptando ao seu estado atrasado as conquistas mais modernas”,
passando por cima de processos exigidos no desenvolvimento industrial de muitos países do
Ocidente como os períodos do “artesanato corporativo e da manufatura”. Dessa forma, a
“indústria russa desenvolveu-se em certos períodos com extrema rapidez. Entre a primeira
revolução e a guerra a produção industrial da Rússia quase dobrou”. (TROTSKY, 1977, p.28).

31
Aqui ressaltamos uma questão de ordem metodológica importante que diz respeito à distinção entre “etapas” e
“etapismo”. Identificar a necessidade de uma determinada etapa necessária para a revolução não significa a crença
cega a uma ou outra etapa, ou seja, não significa “etapismo”. Por exemplo, em 1905 Lênin defendia a necessidade
de uma revolução democrático-burguesa na Rússia. Além disso, há uma outra coisa: é importante considerar,
sempre, qual classe encarna o protagonismo para a consecução de um processo revolucionário que conduza a uma
nova etapa da história. O proletariado pode encarnar o protagonismo de uma revolução democrático-burguesa no
lugar da própria burguesia. Sobre isto, Florestan Fernandes ([1968] 2008, p.65) nos diz o seguinte: “[...] dadas
certas premissas, em um país atrasado uma classe social pode desempenhar as tarefas de outra e promover, assim,
um salto qualitativo na história. Essa é a forma dialética de resolver o assunto. Não é preciso que o regime de
classes esteja ‘completamente desenvolvido’ para que o proletariado realize suas tarefas revolucionárias (a as que
não foram alcançadas pela burguesia).”. Assim, o debate crítico em torno do “etapismo” deve conduzir ao correto
trato dialético das relações entre o atraso e o moderno. Aqui cabe mais uma observação: mesmo não corroborando
com o mecanicismo que opõe arcaico/atraso e moderno, devemos ter clareza de que tanto o atraso quanto o
moderno existem, não por qualquer determinação natural, uma vez que são legados por processos históricos
particulares. É possível perceber tal concepção, por exemplo, tanto nas ideias de Trotsky como de Lênin.
79

O exemplo da Rússia nos mostra, então, que, mesmo tardiamente, em alguns aspectos,
ocorreram transformações muito mais rapidamente que em outros países. Basta observar o
processo de constituição do capital financeiro, fruto da fusão do capital industrial com o capital
bancário que se deu de forma “tão integral como talvez não se tenha visto semelhante em
qualquer outro país”. Todavia, este fator não anulou a submissão do país ao mercado monetário
da Europa Ocidental. (TROTSKY, 1977, p.29). Por outro lado, a própria revolução socialista e
a organização dos sovietes não foram apenas fruto do atraso histórico russo, mas resultado da
luta de classes e da operante lei do desenvolvimento desigual e combinado, revelando sua
expressão mais alta: “começando por derrubar o edifício medieval apodrecido, a Revolução
eleva ao poder, em poucos meses, o proletariado, encabeçado pelo Partido Comunista”
(TROTSKY, 1977, p.32).

A lei do desenvolvimento combinado, própria dos países atrasados – no sentido de


uma combinação original dos elementos retardatários com os fatores mais modernos
– formula-se-nos em sua expressão mais perfeita, dando-nos, ao mesmo tempo, a
chave do enigma da Revolução Russa. Se a questão agrária, herança da barbárie, da
antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido
uma solução, o proletariado russo não teria, jamais, conseguido subir ao poder em
1917. Para que o Estado Soviético fosse fundado foi necessária a aproximação e a
penetração recíprocas de dois fatores de natureza histórica inteiramente diferentes:
uma guerra de camponeses, movimento característico da aurora do desenvolvimento
burguês; e uma insurreição proletária, isto é, um movimento que marca o ocaso da
sociedade burguesa. É isto a essência do ano de 1917. (TROTSKY, 1977, p.62).

A utilização desses exemplos não nos autoriza tornar específica uma lei, uma tendência,
que compõe a forma capitalista de ser como se esta fosse própria dos países “atrasados” e não,
na verdade, produtora do atraso e do moderno ou, em outras termos, da “modernização
conservadora” 32 . Por isso, “as condições atrasadas de desenvolvimento que trouxeram o
proletariado russo ao poder formularam, perante este poder, problemas que, em essência, não
podem ser completamente resolvidos nos quadros de um Estado isolado”, de uma sociedade
isolada. (TROTSKY, 1977, p.384). Contudo, é inevitável perceber a profunda originalidade das
condições econômicas e políticas que produziram a Revolução de Outubro, antes do início de
qualquer revolução socialista na Europa. Originalidade esta que, para Trostky (1977, p.387), é
parte tanto do desenvolvimento universal capitalista como do tardio desenvolvimento histórico

32
“O termo modernização conservadora foi cunhado primeiramente por Moore Junior (1975) para analisar as
revoluções burguesas que aconteceram na Alemanha e no Japão na passagem das economias pré-industriais para
as economias capitalistas e industriais. Neste sentido, o eixo central do processo desencadeado pela modernização
conservadora é entender como o pacto político tecido entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento
capitalista nestes países, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários”. (PIRES; RAMOS, 2009,
p.412).
80

da Rússia, “comprimido pelo cerco dos imperialismos”, sucedendo a burguesia russa que “não
teve tempo de expulsar o tzarismo antes que o proletariado se tornasse uma força revolucionária
autônoma”. Negar o atraso, nesse sentido, seria apartar a realidade nacional e regional do todo
que a determina.
Diante disso, o que podemos observar é um processo de generalização dessa lei, fazendo
com que cada vez mais seja comum a combinação de elementos arcaicos e modernos no
desenvolvimento capitalista. Assim, tal como na Rússia, a Itália e o Brasil, assim como muitos
outros países, podem servir de exemplo de como a questão agrária também não foi resolvida
pela burguesia, mesmo que sejam formações sociais distintas. Eis a relação orgânica entre
questão agrária e regional.
Já que nos parece central o entendimento do atraso e de sua relação com o processo de
modernização para a (re)configuração regional, nos questionamos sobre quais seriam as
características que configuram e sintetizam esse atraso, do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente.
Alguns caminhos, inclusive já sinalizados por nós ao decorrer do presente texto, nos foram
dados pela teoria marxista e marxiana que didaticamente pontuaremos a seguir, separadamente,
mas na prática estão completamente conectados. Vejamos:

• O grau da divisão social do trabalho, do assalariamento e da produtividade do


trabalho, que falam sobre as condições hegemônicas de produção (técnica e
organização do trabalho), funcionando como um “mensurador essencial do nível
econômico de uma nação” (TROTSKY, 1977, p.28) e incidindo diretamente nas formas
predominantes de exploração da força de trabalho (mais-valia absoluta e relativa),
nas condições hegemônicas de pauperismo como também no desnivelamento salarial e
entre o aumento da empregabilidade nas regiões, sendo maior nas regiões “atrasadas”.
O “nível econômico de uma nação” depende do peso e do tipo de indústria na economia
do país33. A divisão social do trabalho é, portanto, um processo fundamental para o

33
Apresentamos novamente como pano de fundo o exemplo da realidade russa. Vejamos o que Trotsky (1977,
387-391) nos diz sobre essa questão do peso da indústria, da produção de mercadorias, no desenvolvimento
econômico, sua relação com o “atraso” e seu peso sob as classes sociais em determinada formação social: “Nós
procuramos os critérios de desenvolvimento econômico na produção – técnica e organização social do trabalho –
porém o caminho que o produto percorre entre o produtor e o consumidor é por nós considerado como um fato de
ordem secundária [...]. A grande expansão, pelo menos em superfície, de comércio russo, no século XVI, explica-
se [...] precisamente pelo caráter extremamente primitivo e atrasado da economia russa. [...] as cidades russas eram
[...] centros de consumo, e não de produção. [...] o nosso atraso econômico manifestava-se principalmente no fato
de que o artesanato, não se libertando da agricultura, permaneceu na fase dos pequenos ofícios rurais. Neste ponto
estávamos mais próximos da Índia do que da Europa, assim como as nossas cidades medievais eram mais asiáticas
do que europeias e nossa autocracia, ocupando um lugar intermediário entre o absolutismo das monarquias
europeias e o despotismo asiático, aproximava-se mais, sob alguns aspectos, dos últimos. […] O capitalismo russo
81

desenvolvimento do mercado interno que transforma a agricultura em indústria,


aprofundando a especialização do trabalho;

• O desenvolvimento do mercado interno, que sinaliza uma maior ou menor


envergadura do capital comercial e o estágio de separação ou imbricação entre o
artesanato, a indústria e a agricultura, já que o maior emprego em capital constante é
um indicativo de um maior nível do desenvolvimento das forças produtivas e ampliação
do mercado interno. Lembrando que “o crescimento da produção capitalista e,
consequentemente do mercado interno, vincula-se mais aos meios de produção e menos
aos artigos de consumo. […] segundo a lei geral da produção capitalista, o capital
constante cresce mais rapidamente que o capital variável.” (LÊNIN, 1982, p.23-24).
Noutros termos:

O mercado interno aparece quando aparece a economia mercantil: ele é criado pelo
desenvolvimento dessa economia e é o grau de fragmentação da divisão social do
trabalho que determina o nível desse desenvolvimento. O mercado interno se amplia
quando a economia mercantil passa dos produtos à força de trabalho, e apenas na
medida em que esta última se converte em mercadoria o capitalismo cobre toda a
produção do país, desenvolvendo-se graças sobretudo à produção de meios de
produção que ocupam um lugar cada vez mais importante na sociedade capitalista. O
‘mercado interno’ para o capitalismo é criado pelo próprio capitalismo em
desenvolvimento que aprofunda a divisão social do trabalho e decompõe os
produtores diretos em capitalistas e operários. O grau de desenvolvimento do mercado
interno é o grau de desenvolvimento do capitalismo no país. É incorreto colocar a
questão dos limites do mercado interno independentemente da questão do grau de
desenvolvimento do capitalismo – como fazem os economistas populistas. (LÊNIN,
1982, p.33).

• O aprimoramento dos sistemas de comunicação e transporte que é fundamental para


um desenvolvimento mais avançado do ponto de vista capitalista, alterando o tempo de

não se desenvolveu a partir do artesanato, para passar da manufatura à fábrica: e foi por isso que o capital europeu,
inicialmente sob a forma de capital comercial, depois, sob a forma de capital financiador e industrial, caiu sobre
nós, num período em que o artesanato russo, em seu conjunto, ainda não se havia dissociado da agricultura. Daí
surgiu, entre nós, uma indústria capitalista bastante moderna, no ambiente de uma economia absolutamente
primitiva: uma fábrica belga, ou americana, mas em derredor, lugarejos, aldeias com casas de madeira, cobertas
de colmo e que, todos os anos, eram destruídas por incêndios e por muitas outras desgraças... Os mais antiquados
elementos, ao lado das últimas realizações europeias. Daí o papel imenso desempenhado pelo capital da Europa
ocidental na economia russa. Daí a fragilidade da burguesia russa. Daí a facilidade com que destruímos a nossa
burguesia. Daí as dificuldades que surgiram, quando a burguesia europeia interveio em nossos negócios... Que
dizer do nosso proletariado? [...] Existirão nele tradições corporativas seculares? Nada de parecido. Lançaram-no
diretamente à fornalha, assim que retiraram de seu arado primitivo... Daí a ausência de tradições conservadoras, a
ausência de castas, mesmo entre o proletariado, e a juventude do espírito revolucionário; daí, entre outras causas
eficientes, Outubro e o primeiro governo proletário que existiu no mundo. Mas daí, também, o analfabetismo, a
mentalidade atrasada, a deficiência de hábitos de organização, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a
falta de educação cultural e técnica. A cada passo nos ressentimos dessas inferioridades na nossa economia e na
nossa edificação cultural”.
82

rotação de capital e, consequentemente, a realização da mercadoria, contribuindo para


a viabilização da reprodução social;

• O peso da questão agrária na relação urbano – rural, indústria – agricultura que


atravessa incisivamente a formação das classes sociais, favorecendo, por exemplo, uma
simbiose entre proletariado e camponeses, uma aliança entre massas populares e
proletariado, como também a própria proletarização das massas camponesas, elemento
propulsor do processo revolucionário russo, o que explicita a importância da questão
agrária como fruto, mas também provedora, do desigual e do combinado. Por isso, “o
fato do campesinato, em seu conjunto, obter uma vez mais a possibilidade [...] de agir
como fator revolucionário demonstra, ao mesmo tempo, a fraqueza das relações
capitalistas na aldeia e a força dessas mesmas relações”. (TROTSKY, 1977, p.343). Essa
contradição explicita o quanto a economia burguesa incorporou em sua dinâmica as
relações que não são essencialmente capitalistas sob seu julgo. Esse quadro é promotor
de uma hostilidade por parte da burguesia rural na Rússia para com as massas
camponesas, fazendo com que “o caráter da emancipação dos camponeses” fosse “tal
que a transformação acelerada do país no sentido do capitalismo” convertesse
“inevitavelmente o problema agrário em problemas de revolução. Os burgueses russos
sonhavam com um desenvolvimento agrário segundo os moldes franceses,
dinamarqueses, americanos do norte […].” (TROTSKY, 1977, p. 62);

• A configuração de Estado mais autoritário, de natureza centralmente coercitiva, se


expressando, em muitos casos, na conformação de uma “autocracia burguesa” 34
alinhada, porém, com o que há de mais moderno e sofisticado enquanto formas de poder,
a exemplo das forças imperialistas e rentistas. Afinal, da “mesma forma que um
representante que recebe percentagem fica interessado nos negócios de seu patrão”, a
burguesia, “semicompradora da finança estrangeira”, tem interesses imperialistas
mundiais. (TROTSKY, 1977, p.35). Trata-se, portanto, de uma burguesia associada,
“divorciada do povo, muito mais ligada ao capital financeiro estrangeiro do que às

34
“As classes possuidoras da Rússia tinham conflitos com as classes possuidoras da Europa, que lhes eram inteira
ou parcialmente hostis. Esses conflitos desencadeavam-se através das intervenções do Estado. Ora, o Estado era a
autocracia. Toda a estrutura e toda a história da autocracia teria sido diversa, se as cidades europeias não tivessem
existido, se a Europa não houvesse ‘inventado a pólvora’ […], se a Bolsa europeia não tivesse agido. Em seu
último período de existência, a autocracia não foi somente o órgão das classes possuidoras da Rússia: ela servia
também à Bolsa europeia para a exploração de nosso país”. (TROTSKY, 1977, p.391).
83

massas trabalhadoras de seu próprio país, hostil à revolução que conseguira a vitória, a
burguesia russa, entrando tardiamente em cena, não poderia encontrar por si própria
motivo algum que justificasse as suas pretensões ao poder”, por isso, já nasce
contrarrevolucionária e antipopular (TROTSKY, 1977, p.164). Nessas circunstâncias, a
democracia, mesmo nos marcos da sociedade burguesa, contém aspectos mais
restritivos e, ao mesmo tempo, progressistas, pois, em alguma medida, pode realçar e
fortalecer processos de caráter anticapitalista. Basta observar o processo revolucionário
russo e o contorno explosivo que tomaram as pautas de conteúdo democrático na
revolução, fazendo com que a Rússia ultrapassasse “de um salto a democracia
puramente formal”. (TROTSKY, 1977, p.32-33). Essas circunstâncias interferem nas
formas de organização das classes sociais, tomando proporções diferenciadas. Vejamos
o exemplo do capitalismo russo que, “desde seus primeiros passos, chocou-se” e foi
submetido pelo “capitalismo muito mais desenvolvido [...] do Ocidente […]. Do mesmo
modo, a classe operária russa, desde seus primeiros passos, encontrou instrumentos
inteiramente acabados, devido à experiência” já acumulada historicamente pelo
proletariado da Europa ocidental, tais como: “teoria marxista, sindicatos, partido
político.” (Idem, p.391). Em outras palavras, Lênin (apud TROTSKY, 1977, p.273) nos
diz o seguinte em relação a realidade russa do início do século XX:

A Rússia é um país de camponeses, um dos mais atrasados países da Europa. O


socialismo lá não pode ser vencedor, nem diretamente, nem tampouco imediatamente.
O caráter rural do país, porém, no qual se conservaram imensos latifúndios de
proprietários nobres, pode, à base da experiência de 1905, dar um formidável impulso
à revolução democrático-burguesa na Rússia e transformar nossa revolução no
prólogo de uma revolução socialista mundial, como degrau de acesso a esta.

Em resumo, para Lênin (1982, p.309), utilizando como exemplo Urais, na Rússia, o
“atraso técnico” de uma determinada região está associado aos baixos salários, à condição de
escravo do operário, a baixa produtividade, a predominância do trabalho manual, a exploração
primitiva, ao roubo das riquezas naturais, às poucas ferrovias e outras vias de escoamento de
mercadorias. Tais condições, não sendo estáticas, mas permanentemente suscetíveis a
transformações, ao entrarem em conexão com determinado grau de desenvolvimento das forças
produtivas, podem impulsionar suas contradições ao ponto que essas mesmas relações tornem-
se verdadeiros obstáculos para esse desenvolvimento, abrindo outras possibilidades históricas.
Isto tendo em vista que “nenhum regime econômico e menos ainda um regime agrícola, de
todos o mais atrasado”, jamais tenha cedido terreno sem que primeiro tivesse esgotado todas as
84

suas possibilidades.
Como podemos observar, as expressões e tendências do padrão de acumulação
capitalista tomam contornos territoriais e regionais, a exemplo do adensamento da questão
social que se apresenta com maior tônica nos países dependentes, em condições mais penosas
predominantemente inerentes à exploração da mais-valia absoluta, como também, em distinta
medida, nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, mesmo nos países imperialistas,
frente a combinação entre mais-valia relativa e absoluta. Isto sob uma recorrente combinação
entre formas de exploração de mais-valia que, a partir de cada território, torna-se mais presente
ou mais sofisticada. Porém, mesmo nas regiões “mais desenvolvidas”, tais formas não são
eliminadas. Sobre isto, recorremos a seguinte colocação:

Sem dúvida, olhando da perspectiva privilegiada do presente, parece óbvio que o


dinamismo básico do desenvolvimento capitalista não pode ser explicado sem o seu
mais sofisticado motor de exploração: a produção de mais-valia relativa. Diante desta,
a extração de mais-valia absoluta deve parecer não só tosca, mas também
perdulariamente ineficiente. Contudo, duas considerações fundamentais são omitidas
deste raciocínio, ambas cruciais para a compreensão da dinâmica do
'subdesenvolvimento'. Primeiro, historicamente a expropriação desumana de mais-
valia absoluta, mesmo em sua forma mais cruel, é o ponto de partida e o fundamento
material necessário para a variante mais refinada da exploração capitalista. Em outras
palavras, a produção e a apropriação de mais-valia relativa em uma escala sempre
crescente, visto ser ela um modo específico de reprodução, necessariamente pressupõe,
não apenas de forma analítico/conceitual, mas também em termos históricos reais, sua
real constituição material – isto é, sua produção original – por meio do mecanismo de
exploração comparativamente mais transparente da mais-valia absoluta. Segundo,
mesmo a uma distância considerável da fase histórica da “acumulação primitiva”, o
movimento para o predomínio da mais-valia relativa – e não se pode jamais falar de
algo mais que de sua predominância, já que a prática da exploração do tipo 'sweat-
shop' permanece com o capitalismo mesmo em seu estágio mais 'avançado', não
importa quão 'esclarecida' seja sua legislação trabalhista – decididamente não é
resultado de alguma 'progressão natural', quaisquer que sejam as mistificações
autocomplacentes das teorias desenvolvimenstistas de 'modernização' inspiradas pelo
capitalismo. Ao contrário, esse movimento é o resultado de duras batalhas e
confrontações extremas que, eventualmente, acabam por quebrar […] a capacidade
do capital para seguir a linha de menor resistência, incorporando materialmente as
concessões obtidas às práticas produtivas e às estruturas institucionais da sociedade
capitalista. (MÉSZÁROS, 2002, p.681).

A cisão criada entre o Norte e o Sul, entre campo e cidade, “centro” e “periferia”,
demonstra, a nosso ver, os efeitos contrários ou anárquicos a lógica de homogeneização, de
integração à forma vigente de reprodução social e, ao mesmo tempo, uma estratégia de
sobrevivência do capital, que se expande criando fissuras; mundializa-se regionalizando,
segmentando, segregando; socializa o trabalho e privatiza a riqueza gerada por este mesmo
trabalho; une, massifica, separando; ataca as diferenças, as tradições e a diversidade (cultural,
geográfica, etc) tonando-as desigualdades que ampliem as oportunidades de lucro e
expropriação.
85

Daí o entendimento das desigualdades regionais, denominadas por alguns como


propulsoras da questão regional, como fomentadoras e resultantes do desenvolvimento
capitalista, fazendo, por exemplo, com que a problemática das migrações e da questão agrária
se reconfigure, mas não se resolva nos marcos do desenvolvimento capitalista. Sobre isso,
Mandel (1982, p.120) ilustra a realidade do pós-guerra da seguinte forma:

A absorção de cerca de 10 milhões de refugiados e de milhões de trabalhadores


estrangeiros na Alemanha Ocidental do pós-guerra teve seu equivalente na Itália, com
a incorporação de milhões de camponeses e habitantes das áreas rurais da Itália
meridional na indústria da Itália setentrional; no Japão, com a absorção de um número
ainda maior de camponeses e trabalhadores ligados aos setores tradicionais da
economia pela grande indústria japonesa moderna, com efeitos similares, e nos
Estados Unidos, com a absorção na força de trabalho urbana de cerca de 10 milhões
de mulheres casadas e mais de 4 milhões de proprietários rurais, parceiros e
trabalhadores agrícolas […]. Assim, entre 1950 e 1965, cerca de 7 milhões de
trabalhadores deixaram o setor agrícola no Japão.

Esse retrato é tão atual quanto antes, tornando cada vez mais evidente o
desenvolvimento desigual e combinado de regiões diferentes, inclusive no interior dos mais
importantes países capitalistas, sendo “a fonte principal de reprodução ampliada”, conduzindo
a “penetração progressiva da circulação mercantil capitalista na agricultura, e da separação dos
produtores com relação à terra, [...] a um fluxo contínuo de capital-dinheiro para os mais
importantes distritos industriais, onde ex-camponeses marginalizados formaram um exército
industrial de reserva”. (MANDEL, 1982, p.129). A configuração do movimento migratório e
de seus elementos impulsionadores mostram-se, no nosso entendimento, cada vez menos
progressista na perspectiva apresentada por Lênin35 a partir da realidade russa na passagem do
século XIX para o XX, mesmo que tal movimento continue sendo fundamentalmente
contraditório. Esse tema, contudo, será retomado por nós mais a frente, quando o diálogo com
a realidade contemporânea se apresentar de forma mais categórica.
Pensamos que aí esteja a raiz da questão regional. Esta, assim como a questão agrária e
indígena, é parte de um todo e expressão das contradições capitalistas, do movimento de
concentração e centralização próprio da lógica vigente de acumulação, que constituem,
dimensionam e acirram a questão social. Esta, sendo desigualdade e “também rebeldia, por
envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem” (IAMAMOTO,

35
Para Lênin (1982, p.159-161), as migrações são fenômenos progressistas exatamente por possibilitar a
mobilidades de trabalhadores; o rompimento com as determinações locais; e a destruição das “formas servis do
salariado e do pagamento em trabalho”, reforçando a desintegração do campesinato nas regiões, oferecendo
“vantagens ‘puramente econômicas’ aos operários, porque eles se dirigem para locais onde os salários são mais
elevados e onde é mais vantajosa a sua situação de vendedores de força de trabalho”. Afinal, “enquanto a população
não tiver mobilidade, não pode ser desenvolvida [...]”.
86

2004, p. 27-28), nos permite identificar na questão regional também a sua dimensão política,
de luta por hegemonia entre as classes e suas frações; pelo controle do Estado moderno e por
formas que assume a modernização burguesa em cada território; pela “integração” das regiões
em prol de um determinado projeto de desenvolvimento, de sociedade, em âmbito nacional e
internacional. Por isso, e por outras tantas razões, não existe, nem poderá existir, capitalismo
sem uma forte presença do Estado.
Diante dessas circunstâncias, Mariátegui (2010, p.191-197), a partir da realidade
peruana em um período de forte presença do regionalismo e crítica ao centralismo por parte do
povo, aponta a descentralização administrativa como uma forma superficial de enfrentamento
as desigualdades regionais por parte das classes dominantes, deixando intocável as questões de
fundo, estruturais, e, por vezes, adensando a centralização do poder político e econômico nas
mãos das elites locais, representantes do “caciquismo”. Vejamos:

A questão do regionalismo se coloca, para nós, em novos termos. […]. A polêmica


entre federalistas e centralistas está superada e é anacrônica como a controvérsia entre
conservadorismo e liberais. […]. O federalismo não aparece em nossa história como
uma reivindicação popular […]. O centralismo se apoia no caciquismo […]. a
centralização ou descentralização administrativa não ocupa o primeiro plano da
polêmica. […]. Conservadores ou liberais, indistintamente, se declaram favoráveis ou
contrários à descentralização. […]. Admitida a prioridade do debate do “problema do
índio” e da “questão agrária” sobre qualquer debate relativo ao mecanismo do regime
mais do que à estrutura do Estado, resulta absolutamente impossível considerar a
questão do regionalismo, ou, precisamente, da descentralização administrativa, a
partir de pontos de vista não subordinados à necessidade de solucionar de forma
radical e orgânica os dois primeiros problemas. Uma descentralização que não leve a
esse objetivo já não merece nem mesmo ser discutida. Pois bem, a descentralização
em si mesma […] não significa nenhum progresso no caminho da solução do
“problema do índio” e do “problema da terra” que, no fundo, se reduzem a um só
problema. Ao contrário, a descentralização, aplicada sem outro propósito que o de
outorgar às regiões ou aos Departamentos uma autonomia mais ou menos ampla,
aumentaria o poder do gamonalismo contra uma solução inspirada no interesse das
massas indígenas.

A semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência. Aqui torna-se


extremamente relevante fazermos referência a fenômenos que, assim como o “caciquismo”
peruano, ilustram formas particulares de relações sociais de dominação em que a
correspondência entre a esfera pública e privada ganha notoriedade regional, atravessadas pela
questão agrária, a exemplo do “coronelismo” no Brasil, o que também conforma a questão
regional. Isto entendendo que a hipertrofia da esfera privada em detrimento de uma suposta
“vontade geral” está na própria natureza da democracia burguesa e do Estado, no caso,
capitalista – mas não apenas –, mesmo em contextos nacionais em que o Estado de bem-estar
social tenha ocorrido como também uma maior expansão democrática.
87

Ou seja, existe uma marca regional na relação entre Estado e sociedade civil mesmo que
seja um traço universal constitutivo da hegemonia vigente. Afinal, não nos custa lembrar que o
Estado moderno (e sua institucionalidade), é “produto do antagonismo inconciliável das classes”
(LENIN, 2007), portanto, lócus no acirramento da luta de classes e da dominação classista,
mesmo que não seja reduzido à mera vontade dos dominantes. Trata-se de um Estado (Integral)
que “deve ser concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um
novo tipo ou nível de civilização” (GRAMSCI, 2007, p.28). É uma instância, por excelência,
de exercício da hegemonia de classe, pois permite a combinação entre as funções de
dominação/coerção, a cargo da sociedade política, e de direção social/consenso, por intermédio
da sociedade civil, estabelecendo o consentimento e a dominação em prol do projeto da classe
dirigente e dominante.
Diante disso, aqui explicitamos o fenômeno do “coronelismo” como parte da formação
sócio-histórica brasileira, em especial nas regiões com maior peso agrário, com raízes coloniais
que, assim como a questão agrária, são tenazes, mesmo com reconfigurações. Por isso, não se
trata de um “fenômeno simples, pois envolve um complexo de características da política
municipal […]. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu
fenômeno típico de nossa história colonial”. (LEAL, 1997, p.39-40).

É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação
em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm
conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. Por isso
mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre
o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos
chefes locais, notadamente dos senhores de terra. Não é possível, pois, compreender
o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação
das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.
Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo
poder político, e isto se explica justamente em função do regime representativo, com
sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação
de dependência ainda é incontestável. Desse compromisso fundamental resultam as
características secundárias do sistema “coronelista”, como sejam, entre outras, o
mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços
públicos locais. (Ibid., p.40-41).

É, portanto, a partir de uma dinâmica profundamente desigual que os territórios são


(re)conformados e distinguidos entre si. Basta observarmos o padrão de organização de
qualquer cidade, do centro para a periferia: o fluxo, as paisagens, a arquitetura, a densidade
populacional, o acesso aos serviços, etc. E se pensarmos a relação entre campo e cidade as
discrepâncias se ampliam. Tudo isso respaldado em uma forma de conceber o “lugar” como
natural, por si mesmo, constituído por relações locais e, por isso, sendo bem-sucedido (ou não)
88

a partir do empenho, do “espírito empreendedor” da população local. O que há, na verdade, é


uma profunda alienação, que se intensifica com o passar dos anos, na relação entre ser humano
e espaço que invisibiliza a luta de classes na conformação dos territórios, dos continentes, das
nações e regiões. É preciso entender as causas que levam as classes sociais possuírem
hegemonicamente determinada cor, idade, gênero e território de moradia e de trabalho.
Por isso, Gramsci (2004, p.415) sinaliza que “o proletariado, para ser capaz de governar
como classe, deve se despojar de todo resíduo corporativo, de todo preconceito”, inclusive
aqueles construídos entre as regiões. Isso significa romper as barreiras e a aversão ao camponês.
Daí somente a conformação de uma aliança entre o proletariado e as massas camponesas,
autônomas e independentes, seria capaz de destruir o “bloco agrário meridional” de poder na
realidade italiana do início do século XX. Por outro lado, Mariátegui (2010, p.192) também
chama a atenção para a reprodução de “vícios” nas organizações políticas revolucionárias,
desconsiderando a questão agrária e indígena como um “problema nacional”.
Não serão, portanto, as desigualdades regionais resolvidas nos marcos do padrão de
acumulação capitalista. O que observamos, na verdade, é sua reconfiguração e aprofundamento
sob outros vieses. Basta observar que, mesmo com a consolidação do Estado moderno na Itália,
as desigualdades regionais permaneceram, expressas, por exemplo, pela forte concentração de
riqueza no Norte.
Partindo da compreensão de totalidade, com o intuito de não reproduzir análises
reducionistas da realidade e levando em consideração que o “conhecimento do concreto opera-
se envolvendo universalidade, singularidade e particularidade” (NETTO, 2011), identificamos
que a realidade latino-americana é fruto desse desenvolvimento capitalista desigual e
combinado, possuindo o debate em torno das desigualdades regionais o patamar de considerável
centralidade e atualidade, inclusive, para a análise da questão social. Isto especialmente na era
do capitalismo monopolista.

1.4.1. O desenvolvimento da dependência na América Latina

Certos de que o desenvolvimento capitalista e a expansão do seu padrão de reprodução


social dar-se integrando desigualmente os diferentes territórios, é imprescindível levarmos em
consideração as particularidades do estágio mais recente e complexo desse desenvolvimento se
quisermos aprofundar nossa análise não apenas sobre o desenvolvimento capitalista, mas sobre
89

a forma com que os países latino-americanos, especialmente o Brasil, se inserem nessa


dinâmica reproduzindo-a em território nacional.
Partimos do pressuposto marxiano que nos diz ser a sociedade burguesa a “organização
histórica da produção mais desenvolvida, mais diferenciada”, sendo suas categorias expressões
de suas condições e formas de existência. Nesse sentido, a compreensão de sua própria
organização viabiliza o entendimento da “organização e as relações de produção de todas as
formas de sociedade desaparecidas”. Em outras palavras, tal como “a anatomia do homem é a
chave da anatomia do macaco” é somente a partir do conhecimento de formas de ser mais
complexas que se torna possível compreender formas de existência mais simples, não o
contrário. Com isso, assim como o dinheiro “alcança historicamente […] seu ponto culminante
somente nas condições mais desenvolvidas da sociedade”, o caráter desigual do
desenvolvimento capitalista, a política (neo)colonial e, consequentemente, a dependência dos
países periféricos também assumem características que não podem ser reveladas somente a
partir da análise do período de capitalismo concorrencial e do seu “pacto colonial”. (MARX,
2008, p.259-262).
Nesse interstício, ocorreram mudanças também qualitativas no conjunto da sociedade
que permitiram, especialmente a decorrer do século XX, a existência de um grau de
desenvolvimento capitalista pautado, em especial, na formação de monopólios, no capital
financeiro, na fusão e exportação de capitais, denominado por Lênin (2012, p.27) de
imperialismo, como uma fase superior do capitalismo, tal como vimos nos itens anteriores.
O fato é que o imperialismo aprofunda tendências como a política de anexação das
regiões e o próprio monopólio, que nasce da política colonial, adensando as desigualdades
regionais e a condição de dependência, marca crucial da formação social e econômica do
continente latino-americano. Para entendermos tais particularidades é preciso questionarmos a
base de sustentação das chamadas “teorias do desenvolvimento” que concebem o capitalismo
“como figura inexorável do futuro da humanidade” (BONENTE, 2014, p.275) e as expressões
do seu desenvolvimento (desigual e combinado) como “defeitos”, “desconexões” ou mesmo
“atrasos” na perspectiva de um “subdesenvolvimento” que necessita ser superado pela
integração ao desenvolvimento capitalista. Sobre esse tema, Osorio (2014, p.183) nos diz que
“[…] são duas caras de um único processo: a expansão do capitalismo como sistema mundial,
que ao longo de sua história gera regiões e nações diferenciadas do ponto de vista da capacidade
de se apropriar de valor [...] e outras de ser despojadas de valor […]”.
Dentro de uma concepção de desenvolvimento vinculada à teoria clássica do
imperialismo, temos a compreensão de que “a própria acumulação de capital produz
90

desenvolvimento e subdesenvolvimento como momentos mutuamente determinantes do


movimento desigual e combinado do capital”. Portanto, não é que exista “menos capitalismo”
e “mais capitalismo”, mas são configurações diferenciadas do (e no) capitalismo que implica
constantemente em mecanismos de dependência em uma combinação específica de “relações
de produção pré-capitalistas, semi e capitalistas”. Nesse sentido, não se trata de uma natureza
específica do capitalismo nos países dependentes, mas de graus diferenciados de
desenvolvimento nessa combinação. (MANDEL, 1982, p.58). Admitir esse “desnível” não
significa estabelecer qualquer dualismo entre desenvolvidos-subdesenvolvidos, mas ter a
clareza das relações de dominação que se estabelecem, no âmbito de uma divisão internacional
do trabalho, entre potências imperialistas e aquelas que estão sob sua dominação direta ou sob
sua zona de influência.
Esse “desnível combinado” de desenvolvimento pode ser observado, inclusive, na
relação entre a acumulação primitiva do capital e a acumulação de capital através da produção
de mais-valia que, segundo Mandel (1982, p.30), coexistem, não sendo apenas fases sucessivas,
mas processos convergentes, possuindo uma importância considerável nos países tidos como
“em desenvolvimento”. “Em geral, nessas áreas, o processo permanece ainda, quantitativa e
qualitativamente, mais decisivo para a estrutura social e o desenvolvimento econômico do que
a criação de mais-valia no decorrer do processo de produção”. Essa acumulação primitiva,
atualmente, em situação bastante distinta que na gênese do modo de produção capitalista, ganha
sua dinâmica particular de seu caráter monopolista.
Em consonância com esta concepção, sinalizamos a crítica a ideologia
desenvolvimentista capitaneada na América Latina pela Comissão Econômica para a América
Latina das Nações Unidas (Cepal)36 que ascende com maior força ao decorrer dos anos 1950

36
“[…] agência de difusão da teoria do desenvolvimento surgida nos Estados Unidos e na Europa ao final da
Segunda Guerra Mundial. Essa teoria tinha, então, um propósito definido: responder à inquietude e à
inconformidade manifestadas pelas novas nações que emergiam para a vida independente, a partir dos processos
de descolonização, ao se darem conta das enormes desigualdades que caracterizavam as relações econômicas
internacionais. […] trata-se essencialmente de construir um conceito de desenvolvimento econômico a partir da
ideia de que este corresponde ao desdobramento do aparato produtivo em função da conhecida classificação em
três setores: primário, secundário e terciário. […] toma-se o processo de desenvolvimento econômico ocorrido nos
países capitalistas avançados como um fenômeno de ordem geral e sustenta-se que a posição que esses países
ocupam no contexto internacional corresponde ao estágio superior de um continuum evolutivo. As diferentes
economias que integram o sistema internacional se situariam em fases inferiores do mesmo processo, enquadradas
em um esquema dual: desenvolvimento-subdesenvolvimento, que seria substituído posteriormente por outro mais
sofisticado. […] a Cepal, ao ser constituída, vincula-se à realidade interna da América Latina e expressa as
contradições de classe que a caracterizam, inclusive as contradições interburguesas. […] Isso fará com que a Cepal,
partindo da teoria do desenvolvimento nos termos em que havia sido formulada nos grandes centros, introduza
nela as mudanças que representarão sua contribuição própria, original, e que farão do desenvolvimentismo latino-
americano um produto em si, e não uma simples cópia da teoria do desenvolvimento” (MARINI, 2010, p.104-
107).
91

em países como o Brasil, a Argentina, o Chile, o Uruguai e o México, tendo como importante
contribuição a “crítica à teoria clássica do comércio internacional”37. Essa comissão, que teve
dentre seus intelectuais o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, com “formação,
em geral, keynesiana” e “um domínio apreciável de economia política clássica”, influenciou
ativamente na política econômica governamental do período, tendo como um de seus propósitos
subsidiar processos de modernização através de “políticas de desenvolvimento regional” como
forma de enfrentar o famigerado subdesenvolvimento na América Latina. (MARINI, 2010).
Assim, oferecendo respostas paradoxais às das premissas do pensamento cepalino, que
“não considerava desenvolvimento e subdesenvolvimento como fenômenos qualitativamente
distintos, marcados por antagonismos e complementaridade, […] e sim como expressões
quantitativamente diferenciadas do processo histórico de acumulação de capital”, a realidade
latino-americana, particularmente a partir da década de 1960, demonstrou os efeitos perversos,
de crise e estagnação, promovidos pelo próprio desenvolvimento capitalista e do seu processo
de industrialização, aprofundando a dependência. Segundo Marini (2010, p.109-111), “isso não
poderia deixar de repercutir profundamente nos círculos da Cepal, dando lugar a uma crise
teórica de amplas proporções”.
Tais efeitos dão-se em decorrência de um movimento fundamentalmente dialético que
(re)constitui o fenômeno da dependência como marca estrutural do padrão internacional de
reprodução capitalista. Isto tendo em vista que o desenvolvimento da América Latina, a partir
do século XVI, ocorre em consonância com a dinâmica do capitalismo internacional,

37
“Baseada no princípio das vantagens comparativas, essa teoria postula que cada país deve se especializar na
produção de bens nos quais possa atingir maior produtividade […]. Se for seguido, esse princípio assegurará ao
país condições privilegiadas para concorrer no mercado mundial […]. A Cepal dirá que, no mundo concreto, isso
não ocorre dessa maneira. Por um lado, demonstrará empiricamente que, a partir de 1870, observa-se no comércio
internacional uma tendência permanente à deterioração dos termos de intercâmbio, em detrimento dos países
exportadores de produtos primários. Por outro lado, afirmará que essa tendência propicia transferência de renda –
na realidade, transferência de valor, conceito que a Cepal não utiliza com correção – que implicam que os países
subdesenvolvidos, exportadores desses bens, sejam submetidos a uma sangria constante de riqueza em favor dos
mais desenvolvidos, ou seja, a uma descapitalização […]”. Para Cepal, isso “se deve ao fato de que o mercado
mundial confronta países industrializados com países de economia primário-exportadora. Estes últimos, por não
desenvolverem seu setor industrial ou manufatureiro, não estão habilitados a produzir tecnologias e meios de
capital capazes de elevar a produtividade do trabalho”. Daí a preocupação cepalina com o processo de
industrialização, ou seja, expansão do setor secundário, como forma de fazer frente a tal “impasse” do
subdesenvolvimento, viabilizando a oferta de empregos, elevação da produtividade, o combate a força de trabalho
excedente no setor primário e terciário e, consequentemente, os baixos salários que “freiam o progresso técnico e,
simultaneamente, não permitem a expansão e dinamização do mercado interno. […] A verdade é que, captando
corretamente o fenômeno empírico da deterioração dos termos de intercâmbio, a Cepal o interpretava erroneamente:
mais cedo ou mais tarde, o aumento da produtividade e a consequente redução dos custos devem ser transferidos
aos preços […] a referência à questão da remuneração da força de trabalho representou uma intuição formidável,
ainda que mal estabelecida, posto que não se tratava simplesmente de uma consequência da baixa produtividade
[…]. As limitações do pensamento da Cepal são um efeito de seu vínculo umbilical com a teoria do
desenvolvimento, além de representarem um custo derivado da posição de classe a partir da qual a instituição
realizou suas colocações”. (Ibid., p.107-108).
92

contribuindo com a ampliação do fluxo de mercadorias e dos meios de pagamento,


possibilitando a criação da grande indústria nos países centrais.

A revolução industrial […] corresponde na América Latina à independência política


[…]. os novos países se articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função
dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca
de manufaturas de consumo e […] de dívidas. É a partir desse momento que as
relações da América Latina com os centros europeus se inserem em uma estrutura
definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do
desenvolvimento posterior da região. Em outro termos, é a partir de então que se
configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações
formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da
dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do
que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das
relações de produção nela envolvida. (MARINI, 2011, p.134-135).

Mesmo que a conformação da dependência tenha como antecedente central a


colonização, para Marini (2011, p.136-137), trata-se de situações distintas, heterogêneas.
Aquela dá-se sobretudo no século XVIII, com o “descobrimento de ouro brasileiro” e o “auge
manufatureiro inglês”, mas se realizará plenamente somente ao decorrer do século XIX, pós-
independência (formal) política das ex-colonias. Assim, “a criação da grande indústria moderna
seria fortemente obstaculizada se não houvesse contado com os países dependentes e tido que
se realizar sobre uma base estritamente nacional”, tendo esses países o potencial de “criar uma
oferta mundial de alimentos” e de contribuir para a “formação de um mercado de matérias-
primas”.
O aprofundamento da dependência é, portanto, expressão do acirramento da contradição
entre valor de uso e valor de troca das mercadorias que “dentro da estrutura da economia
capitalista mundial [...] exprime-se no fato de que a dependência ampliada do imperialismo em
relação às matérias-primas exportadas [...] é acompanhada por um declínio relativo nos preços
pagos por essas matérias-primas e por um declínio relativo em seu valor”. (MANDEL, 1982,
p.46). Esse processo exigiu um maior freio na divisão social do trabalho, refletindo em uma
tecnologia “retardatária” em meio ao predomínio da economia agrícola nos países dependentes,
“bloqueando qualquer avanço sistemático da industrialização e reforçando e perpetuando o
subdesenvolvimento.” (MANDEL, 1982, p.58-59).
Esse contexto se tornou fundamental diante do crescimento da classe trabalhadora, da
elevação da sua produtividade, para além da simples exploração da força de trabalho, e do
consequente deslocamento do eixo da acumulação do capital “da produção de mais-valia
93

absoluta para a de mais-valia relativa” 38 , ou seja, viabilizou uma mudança qualitativa do


capitalismo especialmente nos países imperialistas. Isto, segundo Marini (2011), dá-se com
base na superexploração do trabalho.

[…] os três mecanismos identificados – a intensificação do trabalho, a prolongação


da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário
para repor sua força de trabalho – configuram um modo de produção fundado
exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento da sua
capacidade produtiva. Isso é condizente com o baixo nível de desenvolvimento das
forças produtivas na economia latino-americana, mas também com os tipos de
atividades que ali realizam. […] nessas circunstâncias, a atividade produtiva baseia-
se sobretudo no uso extensivo e intensivo da força de trabalho: isso permite baixar a
composição-valor do capital, o que, aliado à intensificação do grau de exploração do
trabalho, faz com que se elevem simultaneamente as taxas de mais-valia e de lucro.
[…] são negadas ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua
força de trabalho […]. Em termos capitalistas, esses mecanismos […] significam que
o trabalho é remunerado abaixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma
superexploração do trabalho. (MARINI, 2011, p.149-150).

Já Mandel (1982, p.128), ao tratar desse tema, reforça os mecanismos das classes
dominantes em transferir os custos de reprodução da força de trabalho para os próprios
trabalhadores dos países dependentes, mas não só. Vejamos: “Em 1968, 10 milhões de
assalariados nos Estados Unidos ganhavam menos de 1,6 dólar por hora e 3,5 milhões
ganhavam menos de 1 dólar por hora, enquanto o salário médio na indústria de transformação
era de 3 dólares por hora e na construção chegava a 4,4 dólares.”. Ou seja, para o autor, esse
fenômeno, denominado por ele de superexploração do “subproletariado”, extrapola os
territórios dos países em condição de dependência, muito embora ressalte o seguinte:

A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países
semicoloniais, dependentes, do que nos países imperialistas indubitavelmente
possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos mundiais – o que explica,
em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se
mais lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial.
[…] Em resultado, é travada a concentração de capital, impedida a expansão da
produção, promovido o escoamento de capital para esferas não industriais e
improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e
subempregados. Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na
alegada insuficiência da renda nacional, acarretando uma taxa insuficiente de
poupanças. (MANDEL, 1982, p.45).

Dessa forma, a integração da América Latina ao capitalismo dá-se mediante a


reprodução de um ciclo de dependência com diversas peculiaridades em relação às economias

38
“A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta; a mais-valia
que, ao contrário, decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os
dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa” (MARX, 1983, p.251).
94

capitalistas imperialistas, funcionando como instrumentos para incrementar a mais-valia e


compensar a tendência da queda da taxa de lucro mediante a troca (e produção) desigual 39 e a
exportação de capitais entre as nações conformando a divisão internacional do trabalho que
assume um contorno preponderante no capitalismo monopolista.
Contudo, esse processo, para Mandel (1982, p.59), “não é simples exceção às tendências
mais gerais do capital, uma vez que podemos encontrá-lo em funcionamento nos próprios países
industrializados, nas chamadas 'colônias internas'”. Basta observarmos a configuração regional
dos países industriais do século XIX e do início do século XX “os mesmos elementos de troca
desigual, diferentes níveis de produtividade, subindustrialização, bloqueio da acumulação de
capitais – em outras palavras, a justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento, que
constitui a marca registrada da estrutura da economia mundial na era do imperialismo”. Em
outros termos, lembremos também das particularidades do capitalismo na Rússia, apresentadas
por Lênin (1982), e sua similitude com situação de países latino-americanos.
Aqui lembramos que a necessidade do mercado externo para um país no capitalismo
está relacionada ao fato desse mesmo sistema resultar “de uma circulação de mercadorias
largamente desenvolvida, que ultrapassa os limites de um país. Um país capitalista sem
comércio exterior é impensável – e, aliás, não existe”, assim como a empresa capitalista restrita
aos limites da cidade, da região e do país. Diante dessa constatação, Lênin (1982, p.30-31), na
sua crítica aos “economistas populistas”, reforça a concepção de que a “necessidade do mercado
externo não prova a inconsistência do capitalismo [...]. É precisamente o contrário. Essa
necessidade revela claramente o histórico papel progressista [e sombrio] do capitalismo, que
destrói o isolamento e o particularismo [...] dos antigos sistemas econômicos, reunindo todos
os países do mundo numa só totalidade econômica.”. Nessa perspectiva, não é que exista um
mercado externo em decorrência atrofiamento do interno, ou vice-versa, pois “se o capitalismo
tem a necessidade de um mercado externo, isso não deriva da sua impossibilidade de realizar o
produto no mercado interno: resulta da impossibilidade de repetir os mesmos processos de
produção em proporções idênticas e sob as condições invariáveis […].” (LÊNIN, 1982, p.370).
Na era em que o monopólio se torna “lei geral do desenvolvimento capitalista”,
predominando em detrimento a livre concorrência, como expressão do movimento de

39
“A troca de mercadorias produzidas em condições de mais alta produtividade do trabalho por mercadorias
produzidas em condições de mais baixa produtividade do trabalho era uma troca desigual; era uma troca de menos
trabalho por mais trabalho, que inevitavelmente conduziu a um escoamento, a um fluxo para fora de valor e capital
desses países, em beneficio da Europa ocidental. A existência de grandes reservar de trabalho barato e terra nesses
países logicamente resultou numa acumulação de capital com uma composição orgânica de capital mais baixa do
que nos primeiros países a se industrializarem.” (MANDEL, 1982, p.35).
95

concentração e centralização do capital, a retomada da política (neo)colonial, sob o domínio,


agora, do capital financeiro e dos representantes da oligarquia financeira, “se traduz na luta das
grandes potências pela partilha econômica e política do mundo”, originando “abundantes
formas transitórias de dependência estatal” que vão desde os grupos de países que possuem
colônias, a exemplo do imperialismo inglês, como também os que se configuram como colônias
às “variadas formas de países dependentes que, de um ponto de vista formal, são politicamente
independentes, mas que na realidade se encontram enredados nas malhas da dependência
financeira e diplomática”. É o caso de países latino-americanos. O que na verdade ocorre é que
a ampliação da esfera de dominação sobre novos territórios torna-se expressão fundamental do
desenvolvimento do “capitalismo em profundidade”. (LÊNIN, 2012, p.119).
O excedente de capital, potencializado com os monopólios e gerado à “custa de uma
vida de subalimentação e de miséria das massas populares”, demanda constantemente novos
mercados e territórios de escoamento passíveis e dependentes de empréstimos, de importação
de tecnologia e demais mercadorias, em troca de outros serviços, concessões, tratados,
mudanças em políticas alfandegárias, construção de ferrovias e/ou portos, etc. Nesses acordos
internacionais, “é muito frequente que […] se estipule que parte do empréstimo concedido seja
gasto em compras no país credor, em especial de armamentos, barcos etc.”. Essa dinâmica faz
com que “quase todo o resto do mundo” exerça, “de uma forma ou de outra, funções de devedor
e tributário” dos países “banqueiros internacionais”. Daí o papel que a exportação de capital
desempenha não apenas como forma de estimular a exportação de mercadorias como também
na “criação da rede internacional de dependências e de relações do capital financeiro”. Sobre
isto, basta lembrar que a construção de ferrovias no Brasil realizou-se, em boa parte, com
capitais franceses, britânicos, belgas e alemães. (LÊNIN, 2012, p.91-97).

[…] o desenvolvimento desigual e a subalimentação das massas são as condições e as


premissas básicas e inevitáveis deste modo de produção. Enquanto o capitalismo for
capitalismo, o excedente de capital não é consagrado à elevação do nível de vida das
massas do país, pois isso significaria a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao
aumento desses lucros através da exportação de capitais para o estrangeiro, para os
países atrasados. Nestes, o lucro é em geral elevado, pois os capitais são escassos, o
preço da terra e os salários, relativamente baixos, e as matérias-primas, baratas. A
possibilidade da exportação de capitais é determinada pelo fato de uma série de países
atrasados já terem sido incorporados na circulação do capitalismo mundial; de terem
sido aí construídas as principais ferrovias ou estarem em vias de construção; de
estarem asseguradas as condições elementares para o desenvolvimento da indústria
etc. A necessidade da exportação de capitais se deve ao fato de o capitalismo ‘ter
amadurecido excessivamente’ em alguns países, e o capital (dado o insuficiente
desenvolvimento da agricultura e a miséria das massas) carecer de campo para sua
colocação ‘lucrativa’. (LÊNIN, 2012, p.94).
96

Para Marini (2011), dentro dessa “rede internacional de dependência”, tem predominado
na economia da região latino-americana sua condição de oferta mundial de alimentos e
matérias-primas mediante a “deterioração dos termos de troca” e depreciação dos bens
primários, viabilizando não apenas o incremento da produtividade como também taxas de mais-
valia cada vez mais elevadas. Atrofia do mercado interno, divisão do trabalho interrompida ou
estagnada, tecnologia retardatária, economia predominantemente agrícola - portanto, o peso da
questão agrária e do atraso -, enorme exército industrial de reserva, industrialização com
maquinaria obsoleta, permanente centralidade de exportação de matérias-primas, “transferência
constante de valor de uma zona para outra pela deterioração dos termos comerciais”, etc. Assim,
é instituída uma dificuldade competitiva estrutural nos países dependentes. (MANDEL, 1982,
p.260-261). Afinal, “na alvorada do capitalismo, o desenvolvimento da indústria nas cidades
fabris é acompanhado pela destruição da indústria nos 'países dependentes' […], bloqueando
qualquer avanço sistemático da industrialização e reforçando e perpetuando o
subdesenvolvimento”. (Idem, p.58-59).
Tal condição tem relação direta com medidas internacionais voltadas para amenizar os
efeitos da tendência a queda da taxa de lucro em um momento de predomínio, nos países
centrais, do aumento da composição orgânica do capital, da capacidade produtiva do trabalho
e da extração de mais-valia relativa que, por um lado, possibilita, mesmo que
momentaneamente, a obtenção superior de mais-valia em relação aos seus concorrentes, mas,
por outro, se desdobra no barateamento das mercadorias e na desvalorização da força de
trabalho em relação ao capital constante (que inclui matérias-primas), especialmente diante da
tendência a generalização das condições técnicas que permitiram o respectivo aumento da
produtividade. Assim, em tais condições, um importante mecanismo utilizado por parte dos
capitalistas é exatamente a alteração, redução, do valor dos bens necessários à reprodução da
força de trabalho como também uma “baixa paralela no valor do capital constante”.
É, portanto, “mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no
mercado internacional que a América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da
produção capitalista nos países industriais”, mas também contribui para o enfrentamento de
“obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão”
(MARINI, 2011, p.141-142). Isto, como já sinalizamos, sob condições de reprodução de
acumulação marcada, além da “superexploração da força de trabalho”, pela formação de um
mercado interno débil e estratificado40 que impediu o acesso ao “consumo popular”, ou seja,

40
“A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia
não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do mercado interno, que também é uma diferenciação de
97

não se constituiu sob a base do consumo individual do trabalhador em favor da exportação para
o mercado mundial.
Vale lembrar aqui que “o problema do mercado interno como problema particular,
autônomo, independente da questão referente ao grau de desenvolvimento do capitalismo,
simplesmente não existe” (LÊNIN, 1982, p.32). Isto porque, ao falarmos de mercado interno,
estamos nos referindo a uma contradição que compõe a própria natureza do capitalismo.

Trata-se de uma verdadeira ‘produção da produção’, uma ampliação da produção sem


uma ampliação correspondente do consumo. [...] É precisamente essa ampliação da
produção sem a respectiva ampliação do consumo que corresponde à missão histórica
e à sua estrutura social específica: a primeira consiste em desenvolver as forças
produtivas da sociedade e a segunda exclui a massa da população do usufruto das
conquistas técnicas. Há uma inequívoca contradição entre a tendência ilimitada à
ampliação da produção [...] e o consumo limitado das massas populares [...]. os artigos
de consumo desempenham, na formação do mercado interno, um papel menor que os
meios de produção […]. A contradição que existe entre a tendência ao ilimitado
crescimento da produção e o consumo limitado não é a única do capitalismo, que só
pode existir e se desenvolver em meio a contradições. Elas, aliás, atestam o caráter
historicamente transitório do capitalismo [...]. (LÊNIN, 1982, p.25-26).

Noutros termos, não é na realização da mais-valia que existe a dificuldade, mas em todo
o processo de realização do produto na sociedade capitalista. Afinal, “não se pode explicar o
‘consumo’ se não se compreende o processo de reprodução da totalidade do capital social e da
compensação dos componentes isolados do produto social” (LÊNIN, 1982, p.29).
Esses aspectos incidem particularmente sobre o processo de industrialização no
território latino-americano, fazendo com que o desenvolvimento industrial nos países
dependentes (a exemplo da Argentina, México e Brasil) não tenha promovido uma mudança
qualitativa, permanecendo a indústria como uma atividade subordinada à produção e
exportação de bens primários. “É apenas quando a crise da economia capitalista internacional,
correspondente ao período compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, limita
a acumulação baseada na produção para o mercado externo que o eixo da acumulação se desloca
para a indústria, dando origem à moderna economia industrial que prevalece na região”. Em
tais circunstâncias, para Marini (2011, p.159-165), a industrialização latino-americana dá-se
sobre bases diferenciadas de outras economias capitalistas, comprometendo o aumento da
capacidade produtiva do trabalho, sendo “parcialmente neutralizado pela ampliação do
consumo” de produtos manufaturados dos setores médios e permanente restrição do mercado

esferas de circulação: enquanto a esfera 'baixa', onde se encontram os trabalhadores – que o sistema se esforça por
restringir-, se baseia na produção interna, a esfera 'alta' de circulação, própria dos não trabalhadores – que é aquela
que o sistema tende a ampliar-, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação”
(MARINI, 2011, p.157-158).
98

interno, desencadeando-se com baixo nível tecnológico em função das exigências externas;
recurso à tecnologia estrangeira, destinado a elevar a capacidade produtiva do trabalho, mesmo
que lentamente; aumento da massa de valor em relação a taxa de mais-valia; e com maior
exploração do trabalhador. “Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na
alegada insuficiência da renda nacional, acarretando uma taxa insuficiente de poupanças.”
(MANDEL, 1982, p.45).

A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países
semicoloniais, dependentes, do que nos países imperialistas indubitavelmente
possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos mundiais – o que explica,
em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se
mais lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial.
[…] Em resultado, é travada a concentração de capital, impedida a expansão da
produção, promovido o escoamento de capital para esferas não industriais e
improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e
subempregados. (MANDEL, 1982, p.45).

Contudo, é importante lembrar que a hegemonia imperialista, mediante a maturação do


desenvolvimento capitalista e de suas contradições, demonstra que os mecanismos de
acumulação e exploração do trabalho não operam nas mesmas condições interna e externamente
aos territórios nacionais, mesmo que as particularidades das formações sociais persistam. Afinal,
“o monopólio, uma vez constituído e controlando bilhões, penetra de maneira absolutamente
inevitável em todos os aspectos da vida social, independentemente do regime político e de
qualquer outra ‘particularidade’”, agravando “o caos próprios de toda produção capitalista em
seu conjunto” e, consequentemente, enfraquecendo mecanismos de contratendências e controle
capitalista. Em outras palavras, “os progressos extremamente rápidos da técnica trazem consigo
cada vez mais elementos de desproporção entre as diferentes partes da economia nacional,
elementos de caos e de crise”. (LÊNIN, 2012, p.51-87). Ainda nos termos do mesmo autor:

Dada a própria natureza o capitalismo, esse processo de transformação não pode


ocorrer de outro modo senão em meio a uma série de desigualdades e desproporções:
aos períodos de prosperidade sucedem os de crise, o desenvolvimento de um ramo
industrial provoca o declínio de outro, o progresso da agricultura afeta aspectos da
economia rural que variam segundo as regiões, o desenvolvimento do comércio e da
indústria supera o da agricultura etc. Boa parte dos erros cometidos pelos escritores
populistas decorre do fato de eles tentarem provar que esse desenvolvimento
desproporcional, aleatório, aos saltos, não é desenvolvimento. (LÊNIN, 1982, p.373).

Daí a importância fundamental do Estado que, nas economias dependentes, apresenta


particularidades e, ao mesmo tempo, redefinições de fissuras próprias da natureza do Estado
capitalista, o que difere crucialmente da concepção de Estado presente no pensamento cepalino,
99

desenvolvimentista, como uma instância fundamental para enfrentar desigualdades regionais


através da “ação regional”, convertendo os casos do Mezzogiorno, na Itália, e do Vale do
Tennessee, nos EUA, “em modelos de ação regional em países desenvolvidos e exemplos de
políticas de desenvolvimento regional para países subdesenvolvidos”. (VIEIRA, 2006, p.147-
148).
Na verdade, de acordo com Lênin (2012, p.89), “o predomínio do capital financeiro
sobre todas as demais formas de capital implica o predomínio do rentista e da oligarquia
financeira; implica uma situação privilegiada de uns poucos Estados financeiramente
‘poderosos’ em relação a todos os restantes”. Tais circunstâncias refletem sobre as classes
sociais na esfera local/regional e seu grau de subordinação e referência com o imperialismo,
não excluindo nessa relação os conflitos, inclusive, entre as frações da mesma classe. No caso
das burguesias, enquanto “sócios minoritários do imperialismo” (MANDEL, 1982). Em geral,
o que observamos é uma contínua associação das burguesias locais às internacionais sob o
recurso do que Sodré (1984) denominou de “ideologia do colonialismo” 41 . Mandel (1982,
p.245-246) também nos oferece uma importante contribuição sobre esse tema:

As burguesias coloniais tentaram, não sem sucesso, aumentar sua proporção de mais-
valia produzida pelos operários e camponeses pobres, em detrimento da proporção
tomada pelas empresas e Estados imperialista. A transição realizada pelo imperialismo,
do controle direto para o controle indireto dos países subdesenvolvidos, com
generalização da independência política, possibilitou às classes governantes nativas
financiarem aos menos parte dos custos indiretos da produção de mais-valia que antes
tinham de ser cobertos pelo sobreproduto não capitalista apropriado por elas, a partir
da própria mais-valia – em outras palavras, alguns desses custos foram transferidos
para o capital imperialista. […] A estratégia mundial das principais empresas
multinacionais inclui um interesse incontestável em dominar os limitados mercados
internos das semicolônias […]. Esse processo tende a privar a chamada burguesia
'nacional' de sua preponderância na indústria manufatureira […] combinando o capital
nativo e estrangeiro, privado e público, torna-se um dos traços mais importantes do
capitalismo tardio, ou da fase neocolonial do imperialismo.

Nessa ótica, em um país de capitalismo dependente, todo projeto político de contestação

41
“Através da ideologia do colonialismo, a camada culta dos povos oriundos da fase colonial estrita é ganha, -
preparada que está pela sua condição de classe, - para aceitar a subordinação econômica, atribuindo-a a fatores
não materiais: superioridade de raça, superioridade de clima, superioridade de situação geográfica, que
predestinam as novas metrópoles. […] A transplantação cultural, isto é, a imitação, a cópia, a adoção servil de
modelos externos, no campo político como no campo artístico, deriva de tudo isso […] ao mesmo tempo que
justifica a supremacia de nações colonizadoras, justifica, internamente, a supremacia da classe ou das classes que
se beneficiam da subordinação, associando-se às forças econômicas externas que a impõem. Um povo começa a
ter o direito de repudiar a ideologia do colonialismo quando […] a sua sociedade não define como predominante,
ou absoluta em seu domínio, a classe interessada na subordinação econômica, quando as forças econômicas
internas passam a exigir um lugar ao sol, passam a disputar uma posição. A opção pela ideologia do colonialismo
só então é um ato de vontade – e quando isto acontece, tal ideologia entra em crise e começa a desmoralizar-se”
(SODRÉ, 1984, p.08-09).
100

a hegemonia vigente “deve necessariamente assumir conotações anti-imperialistas e, ao mesmo


tempo, anticapitalista e popular.” (OSORIO, 2014, p.206-207). Esse tema, inclusive, tem um
peso histórico no seio das diversas organizações políticas de trabalhadores em realidades como
a brasileira, influenciando desde o debate de tática e estratégia às diferentes análises da
realidade do país.
Por ora, observamos que esse processo de “associação imperialista”, combinado ao
acirramento das contradições capitalistas e a “debilidade produtiva”, explicita não apenas um
maior peso antidemocrático e autoritário do Estado, como o rigor da relação orgânica entre a
esfera da economia e da política.
Nessa ótica, para Ianni (1981, p.79), adotando o caso da realidade brasileira como
espelho, é possível entender que “a ditadura militar foi levada a criar condições jurídico-
políticas e econômicas sob as quais a burguesia conseguiu aumentar a taxa e a massa de mais-
valia. Criou as condições sob as quais a mais-valia potencial […] se realizasse na mais-valia
extraordinária […]” 42. Isto com base: em uma política de rebaixamento e estagnação salarial
da grande maioria das categorias assalariadas sob alegação do controle inflacionário; no
decréscimo do salário-mínimo real médio; em medidas de maior controle sob o trabalho (a
exemplo da lei “antigreve”); na intensificação da velocidade das máquinas, da divisão do
trabalho, da produtividade e da composição orgânica do capital; na preservação de setores
médios, tecnocratas, na reconfiguração do mercado interno para indústria de bens de consumo
duráveis; na intensificação e generalização da “indústria cultural”; etc.
Tudo isso em nome da “modernização”, do “desenvolvimento” e da “racionalização”
que, na verdade, permitiram, por um lado, um acréscimo nas taxas de expropriação (direta e
indireta) do proletariado urbano e rural, o desenvolvimento (intensivo e extensivo) do
capitalismo no campo e o favorecimento do capital monopolista organizado em empresas
imperialistas, privadas nacionais e estatais. Por outro lado, possibilitou também o
desenvolvimento do proletariado como força produtiva e, contraditoriamente, a “repolitização”
da classe operária e de suas frações.

Durante os anos dos governos militares, desenvolveu-se a pauperização absoluta, isto


é, o empobrecimento do operário em face dos índices dos seus ganhos em períodos

42
Tratar-se de processo de superexploração e empobrecimento dos operários a partir de 1964, caracterizado por
Ianni (1981) a partir dos seguintes aspectos: rebaixamento vultoso do salário real; perda acentuada do poder de
compra para o conjunto das categorias trabalhadoras; escassez de recursos para alimentação, vestuário, habitação,
saúde, educação, transporte etc.; crescimento de doenças/mortalidade; adoção de mecanismos como hora extra,
contrato por tarefa, intensificação e extensão da jornada de trabalho; e o consequente esgotamento físico. Tudo
isso para garantir um salto na concentração e centralização do capital nesse período de “ditadura do grande capital”,
conforme o próprio autor.
101

anteriores. Ao mesmo tempo em que cresceram a concentração e a centralização do


capital monopolista, em altíssimas proporções, tanto decresceu o nível de ganhos do
operário, em comparação com todas as outras classes sociais, como decresceu o
salário real do operário com relação a seus ganhos anteriores. A superexploração da
classe operária surge no cotidiano da vida do trabalhador em termos de escassez, ou
precariedade, de recursos para alimentação, vestuário, habitação, saúde, educação,
transporte e outros elementos que entram na composição das condições sociais de
existência de classe. Ao lado do excesso de trabalho, e da baixa remuneração, surgem
o cansaço, o esgotamento de energias, a doença. Na base de tudo, […] estão a jornada
de trabalho muito intensa ou muito extensa. […] Os artifícios da hora extra, do
contrato por tarefa ou empreita, e outras modalidades de superexploração da força de
trabalho operária, fazem parte intrínseca das condições de produção sob as quais a
classe operária vive cotidianamente. Desde 64, essas condições se tornaram ainda
mais duras, devido à política salarial, que foi orientada de forma a propiciar a
produção de uma taxa extraordinária de mais-valia. Por isso é que os operários foram
obrigados a trabalhar mais, muito mais, para obter a mesma quantidade de alimentos.
[…] A forma pela qual o Estado favoreceu a acumulação monopolista acarretou tanto
o desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção como a crescente
subordinação real do trabalho ao capital. (IANNI, 1981, p.81-82).

De acordo com o autor, o que houve, portanto, no Brasil pós-64, foi a ascensão de um
período em que a política burguesa ditatorial provoca uma maior produção de mais-valia
absoluta, impactando consideravelmente nas condições de vida dos trabalhadores expressas,
por exemplo, pelo alto índice de mortalidade infantil nas décadas de 1960 e 1970 como também
pelo crescimento migratório “local, estadual, regional e nacional de trabalhadores e seus
familiares”. (IANNI, 1981, p.88).
Eis um exemplo de redefinição da articulação entre pauperização relativa e absoluta
como resultado da acumulação de contradições e intensificação de tendências capitalistas, tais
como a ampliação da superpopulação relativa, concentração de renda, intensidade do trabalho
e das jornadas de trabalho, fazendo com que, nas palavras de Osório (2014), “as dimensões da
barbárie […] tendam a prevalecer no capitalismo dependente”. Isto mesmo que “esse processo
de expansão da 'camada de lázaros do proletariado' […] nada” tenha “de original”, a exemplo
da própria realidade inglesa na primeira metade do século XIX que “teve como resultado […]
uma rápida e trágica proliferação da criminalidade”, encontrando como saída “o crescimento
da intensidade das migrações para os EUA e para Austrália”. (GUIMARÃES, 2008, p.32). O
que expressa, por outro lado, um quadro geral de conflitos e fraturas sociais, latentes e
manifestas, que, mesmo diante de circunstâncias adversas para a organização sindical, podem
potencializar a luta de classes, requisitando por parte do Estado uma maior presença na função
de manutenção da hegemonia burguesa através do uso mais recorrente de mecanismos
coercitivos.

Evidentemente, a pobreza brasileira, como a da quase totalidade dos países latino-


americanos, atinge proporções excessivas, e esse é o alto preço cobrado aos nossos
102

países pelas peculiaridades do estilo de crescimento capitalista que nos foi imposto.
Mas o fenômeno dos excedentes relativos da população não é um fato original de
nosso país. Durante toda a história dos países latino-americanos […], o produto
excedente do nosso trabalho foi subdividido entre uma sequência de metrópoles
estrangeiras e as oligarquias agrárias escravocratas e pós-escravocratas. Essas
oligarquias, por toda uma fase em que exerceram o absoluto domínio interno da
economia e da sociedade, empregaram todos os meios ao seu alcance para manter
rigidamente em suas mãos o controle da propriedade e do uso da terra, e para impedir
o acesso das classes trabalhadoras a quaisquer dos outros meios de produção. A
apropriação ultraconcentrada da renda nacional (deduzida a parte evadida para o
exterior), diferentemente do que aconteceu nos países em que a propriedade da terra
foi subdividida (como nos Estados Unidos), foi obtida à custa de métodos de
acumulação de capital (pré-capitalistas e capitalistas) fortemente espoliativos, que
exigiram a continuidade histórica de regimes políticos apoiados no arbítrio.
(GUIMARÃES, 2008, p.32-33).

Daí a dificuldade em “gerar o sentido de comunidade” por parte do Estado nesses países
como também o forte vínculo entre as pautas democráticas e populares que, mesmo não sendo
“essencialmente” ou “classicamente” transgressoras, podem tomar outra qualidade na
particularidade latino-americana. Aqueles que se propõem a analisar e atuar sobre essa realidade,
certamente precisam levar em consideração essas condições que demonstram o quanto as
desigualdades regionais compõem estruturalmente a questão social e, consequentemente, a
dinâmica do capital. Como vimos, é inegável que o desenvolvimento capitalista e o crescimento
da divisão social do trabalho ampliam e intensificam a diferenciação regional que se expressa
como uma “divisão territorial do trabalho” pautada na “especialização de certas regiões na
produção [...].” (LÊNIN, 1982, p.275).
Finalmente, isto pode explicar o fato de que a generalização da lei geral da acumulação
capitalista, seja pela exploração extensiva ou intensiva, sobrevive impondo “regras iguais para
realidades desiguais”, confrontando “economias onde se trabalha 12 horas por 20 centavos a
hora com outras em que se trabalha 7 horas com remuneração de 20 dólares por hora” na
tentativa de “unificar as realidades mais díspares”. Ao contrário, “o que a prática demonstra é
que as mutações decorrentes da globalização”, que trataremos mais adiante, “agravam cada vez
mais a questão social” na sua dimensão regional. Isto da mesma forma com que o
desenvolvimento econômico, assim como o desenvolvimento regional, não significa
desenvolvimento humano. Afinal, a dinâmica capitalista não é pautada pelas necessidades
humanas. É oportuno lembrar que “seu objetivo fundamental não é o pleno desenvolvimento
humano, mas sim, a reprodução do capital”. (TAVARES, 2001, s/p).
É importante ressaltar, contudo, que existe uma verdadeira disputa (intra e interclasses)
de projetos e modelos de desenvolvimento de sociedade, respaldadas em diversas vertentes
teóricas, que apontam, por um lado, para o aperfeiçoamento do capitalismo na busca de sanar
103

suas crises e, por outro, para a necessidade de uma transição necessária para a superação da
sociabilidade do capital. Isto, levando em consideração que “a transformação da propriedade
privada parcelada, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista”,
promovido pelo desenvolvimento do projeto burguês de sociedade, é “um processo […] mais
longo, duro e difícil do que a transformação da propriedade capitalista, […] fundada numa
organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da expropriação da massa
do povo por poucos usurpadores; aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela
massa do povo.” (MARX, 1984, p.294).
A questão central não está na natureza do desenvolvimento das forças produtivas por si
só. Na Rússia, por exemplo, “a metrópole da civilização socialista nascente” trabalhava-se
“febrilmente para desenvolver sua indústria”, sendo um dos sonhos daqueles que encampavam
a revolução popular a eletrificação do país. (MARIÁTEGUI, 2010, p.215-216). No entanto,
identificar essa diferenciação na vinculação dos “projetos de desenvolvimento” a projetos
antagônicos de sociedade, de classe, não se trata de uma tarefa fácil em meio a discursos
naturalizados e ideologizados pelos setores dominantes em prol do “desenvolvimento
econômico”, “desenvolvimento social”, “desenvolvimento sustentável”, “desenvolvimento
regional”, que, supostamente, é para todos.
Esse debate, caso queiramos entender os meandros que configuram a realidade do
Nordeste brasileiro dos anos 2000, priorizada em nossa pesquisa, não pode ser feito sem
considerar que o capitalismo, pela sua própria natureza, carrega consigo a capacidade de
destruir o “espírito estreito e provinciano”, possibilitando a mobilidade através das migrações,
ultrapassando as determinações locais, fragilizando laços de dependência pessoal do sistema de
pagamento em trabalho. Porém, isso ocorre sob profundas contradições sociais que lhe são
inerentes, criando e recriando desníveis e desigualdades sociais que (re)configuram as mais
diversas regiões. “Assim, o capitalismo criou, nas regiões periféricas, uma nova forma de
‘combinação da agricultura com os ofícios’, ou seja, a combinação do trabalho assalariado
agrícola e não agrícola. Essa combinação só é viável em larga escala na fase superior do
capitalismo […]. Os preços do trabalho experimentam fortes variações, que, naturalmente,
provocam múltiplas violações de contratos.” (LÊNIN, 2012, p.156-157).
Desse modo, mesmo que o capital, cada vez mais internacionalizado, não tenha pátria e
que, para ele, não exista fronteiras, contraditoriamente, a perpetuação da propriedade privada e
da acumulação de riquezas, cada vez mais privada, demanda delimitações territoriais,
invisibilizando a luta de classes através de construções ideológicas pautadas em oposições entre
países, regiões e Estados: “num lugar [...] ele [o capital] faz progredir um ramo da economia
104

[...]; noutra região, impulsiona outro ramo etc. […]. A formação de ramos especializados na
agricultura comercial torna as crises capitalistas e a superprodução possíveis e inevitáveis, mas
elas [...] dão um impulso ainda mais vigoroso à produção mundial e à socialização do trabalho”.
(LÊNIN, 1982, p.204-206).
Com isso, percebemos que, ao contrário do propalado discurso da globalização como
suposta homogeneização, a região e suas fronteiras, como resultado da lei do desenvolvimento
desigual e combinado, compondo a divisão nacional, regional e internacional do trabalho, não
desapareceram. Basta observarmos o papel, ontem e hoje, das desigualdades regionais na
formação social do Brasil. Estas continuam sendo nosso fio condutor a fim de alçarmos passos
mais largos na pesquisa, dando continuidade ao caminho percorrido até então.
105

CAPÍTULO 2

2. ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA CONFIGURAÇÃO REGIONAL DA


REALIDADE BRASILEIRA

Volto hoje às minhas criaturas,


aos rudes homens do cangaço,
às mulheres, aos sertanejos castigados,
às terras tostadas de sol e tintas de sangue,
ao mundo fabuloso do meu romance,
já no meio do caminho.

Jose Lins do Rego

Seguindo os passos necessários para entender as principais circunstâncias e condições


determinantes para a configuração da questão social no Nordeste hoje, retomamos o que, no
nosso entendimento, é medular para tal compreensão: o particular dinamismo do
desenvolvimento desigual e combinado na realidade brasileira ou, em outras palavras, a
particularidade do complexo arcaico/atraso e moderno/progresso. Esta tem complexificado a
articulação daquilo que, para Florestan Fernandes ([1975] 2006), integra o padrão de dominação
burguesa na nossa formação social: a relação entre o “desenvolvimento desigual interno” e a
“dominação imperialista externa”, recompondo as desigualdades regionais que, a despeito de
serem componentes da própria natureza capitalista, apresentam uma tônica diferenciada nos
países dependentes, tal como já apresentamos no capítulo anterior.
A busca de situar o Brasil em tal dinâmica leva-nos necessariamente a considerar as
relações sociais internas e externas que viabilizaram tal formação, conectada a uma forma
específica de integração ao mercado mundial. Esse ponto de partida, ao tempo em que faz
menção à esfera nacional e a condição de dependência não implica desconsiderar que as
desigualdades regionais, ora mais graves, ora mais tênues, componham outros diversos
contextos que serviram para muitos dos nossos intérpretes construírem uma Imagem do Brasil
(COUTINHO, [1990] 2011) através de analogias a processos vivenciados em outras regiões, a
exemplo da questão meridional do contexto do Risorgimento italiano (GRAMSCI, [1932]
2002), motivo de diversas polêmicas e controvérsias. Além dos demais casos de países situados
ao Sul da Europa que se inserem em tal continente, no bloco europeu, de forma periférica e
consideravelmente desigual. Tudo isso, no fim das contas, demonstra o quanto o regional é
universal como também o quanto o atraso é moderno em um movimento de verdadeira
modernização do atraso, pondo em questão a capacidade civilizatória do capitalismo
106

contemporâneo, o que trataremos mais adiante.


Inspirados naqueles “indivíduos inconformados, possuídos por uma força interior que os
leva a romper com uma existência mesquinha e a buscar um sentido autêntico” para suas vidas,
como se refere Carlos Nelson Coutinho (2011, p.145) a Graciliano Ramos, nos orientaremos, a
partir de então, naquilo que o regional possa revelar “o que é comum a toda a sociedade
brasileira, o que é ‘universal’. Mas não um universal abstrato e absoluto, pretensamente válido
em qualquer circunstância”, trata-se da busca incessante pela “universalidade concreta, que se
alimenta e vive da singularidade, da temporalidade social e histórica.” (Ib. p.141). É, portanto,
a partir dessa universalidade que procuraremos os fundamentos e a história da questão regional
no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Afinal, em concordância com Samir Amin (apud
GORENDER, 1980, p.58), “estamos certos de que se comete um erro fundamental cada vez
que se estuda um fenômeno particular de alguma parte do Terceiro Mundo procurando sua
‘causa’ no próprio Terceiro Mundo, em vez de situá-la na dialética do sistema mundial”.
Convencidos também de que é inviável o entendimento sobre a marca regional das
desigualdades sociais no Brasil sem levar em consideração o que tem particularizado o
desenvolvimento desigual capitalista e a configuração das classes sociais nesta realidade,
partiremos aqui de uma breve caracterização dos aspectos que conformam o amálgama entre
moderno e atraso, atravessando e conformando com certo “requinte” a trama arcaica (e moderna)
do poder burguês. Caso contrário, cair em simplificações de um “universal abstrato e absoluto”
seria um caminho tentador, mas, malgrado sua comodidade, nos distanciaria de conhecer as
reais determinações do objeto da pesquisa em questão.
Assim, buscaremos aqui o apoio no legado que nos foi deixado por parte de importantes
intérpretes do Brasil, priorizando, diante de tantas polêmicas (algumas em aberto até hoje), os
pontos em comum e mais centrais que condicionaram o destino da Nação ao neocolonialismo.
(FERNANDES, 2008). Dentre outros pensadores, priorizamos o diálogo com aqueles que nos
ajudam a entender essa realidade e seus “efeitos sobre o estilo de vida das populações do campo
ou sobre o desenvolvimento econômico regional” fora do circuito de “interpretações dualistas
rígidas” (Ibid., p.64), para assim entender porque o “nordestino tinha [e tem] que voltar à sua
realidade, à realidade maior que a história do mundo [...]” 43.

43
Texto extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira" de José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1997, p. 33.
Disponível em: <http://www.releituras.com/jlinsrego_docefranca_imp.asp>. Acesso em: 21. nov. 2017.
107

2.1. Desenvolvimento desigual na conformação da sociedade de classes no Brasil

A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado
noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos
assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala.
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio
da travessia. (ROSA, [1956] 2001, p.80).

No trecho acima, o personagem de Riobaldo, jagunço protagonista do romance Grande


Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, nos faz refletir, através das suas poucas e simples
palavras, algo que para nós é de fundamental importância ao pensar o Brasil, mesmo sem
supostamente qualquer intencionalidade por parte do autor do romance e do personagem para
tal pensamento.
A primeira reflexão volta-se para o reforço sobre a concepção de que o regional,
mesmo quando nos parece ser apenas uma parte ou se referir estritamente ao local, tal como o
enredo da referida obra literária, é também universal, ou seja, traz consigo aspectos que dizem
respeito a algo que vai muito além da região, do lugar, no caso, do sertão onde se encontra o
jagunço que ousou pronunciar tais palavras acerca de si, mas também do mundo e da
humanidade. Lembramos o que nos disse Carlos Nelson Coutinho ([1990] 2011, p.141), ao se
retratar a outro grande escritor brasileiro, Graciliano Ramos, que no “regional” lhe interessava
“apenas o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é ‘universal’.
Analogicamente, fazemos aqui a referência ao surgimento do Brasil como nação que
através da colonização tornou-se síntese do que lhe foi particular, ou seja, de um sistema
colonial pautado na escravatura no “Novo Mundo”, mas também do que lhe foi universal pelo
mesmo processo: a inserção ao mercado mundial no contexto de expansão mercantil do
capitalismo. Assim, os fatores externos advindos do momento em que a Europa Ocidental era
o centro dinâmico e se erodia o feudalismo, com o avanço do contraditório processo de
acumulação primitiva do capital, só foram viáveis, de acordo com Ianni (1980, p.158), porque
foram constituídas formações sociais particulares, articuladas internamente, “com seus centros
de poder, princípios e procedimentos de mando e execução, técnicas de controle e repressão”.
A natureza dessas formações e de seu(s) respectivo(s) modo(s) de produção, em especial
do sistema colonial brasileiro, foi (e ainda continua sendo) alvo de muitas polêmicas e
controvérsias históricas, teóricas e políticas, especialmente no seio da tradição marxista44, que

44
Dentre a ampla literatura que apresenta a diversidade no trato sobre as bases da formação social brasileira,
ressaltamos, inicialmente, a concepção de Octávio Ianni (1980, p.159). Para ele, as principais implicações
históricas e teóricas da problemática em torno do entendimento do período colonial se expressam nas categorias
108

não nos cabe aqui se debruçar, muito embora tenham sido de fundamental importância para o
entendimento por parte das gerações presentes sobre o padrão de dominação burguesa no Brasil.
Por ora, o que se deve destacar é que tais discussões possuíram e ainda possuem, entre os seus
desdobramentos, sérias implicações políticas no seio das organizações vinculadas às classes
subalternas, com influência direta das orientações das Internacionais Comunistas45. Malgrado

formação social e modo de produção Também para Jacob Gorender (1980, p.60) é possível identificar a
centralidade que assume esta categoria na análise do “Brasil Colonial”, já que “na realidade histórica fatual, o
modo de produção capitalista em nenhuma parte se estabeleceu no vazio e em estado puro, porém teve de se
defrontar e coexistir com outros modos de produção. Alguns deles se lhe tornaram subsidiários ou foram mesmo
por ele recriados, enquanto não conseguiu reorganizar suas forças produtivas à maneira capitalista”. Para esse
autor, o sistema colonial foi a acumulação primitiva de capitais no interior do Modo de Produção Escravista
Colonial que se diferenciou regionalmente. Já para Nelson Werneck Sodré (1980, p.135-136), uma das
particularidades do Brasil era o fato de ter ocorrido uma verdadeira “transplantação”, que diz respeito ao processo
vivido pela sociedade brasileira “dos primeiros tempos da chamada colonização”. Transplantação esta nascida dos
“elementos humanos africanos e europeus [...]. Os alicerces da sociedade brasileira, pois, foram importados,
transplantados”. Ianni (1980, p.158) já caracteriza o período colonial a partir da concepção de Formação Social
Escravista que teria sido o “modo de ser” da sociedade brasileira naquela época. Nas palavras do próprio autor,
era “uma sociedade organizada com base no trabalho escravo [...] na qual o escravo e o senhor pertenciam a duas
castas distintas; sociedade essa cujas estruturas de dominação política e apropriação econômica estavam
determinadas pelas exigências da produção de mais-valia absoluta. Nessas formações sociais, as unidades
produtivas – como os engenhos de açúcar no Nordeste [...] – estavam organizadas de maneira a produzir e
reproduzir, ou criar e recriar, o escravo e o senhor, a mais-valia absoluta, acultura do senhor (da casa-grande), a
cultura do escravo (da senzala), as técnicas de controle, repressão e tortura, as doutrinas jurídicas, religiosas ou de
cunho ‘darwinista’ sobre as desigualdades raciais e outros elementos. [...] Assim, a formação social escravista era
uma sociedade bastante articulada internamente, motivo por que ela pode resistir algum tempo às contradições
‘externas’; ou às contradições internas pouco desenvolvidas.”. Em uma análise mais recente sobre esse período,
Carlos Nelson Coutinho ([1990] 2011, p.39-40) nos diz o seguinte: “[...] assumo como hipótese a de que se tratava
de um modo de produção escravista (de resto, o adjetivo colonial não me parece caracterizar o modo de produção,
no sentido de atribuir-lhe novas leis, mas indica precisamente o seu vínculo de subordinação formal ao capital
internacional [...]). É o elemento escravista que fornece a marca determinante da formação econômico-social. Ele
interfere, por um lado, na produtividade econômica do sistema, que se mantém estacionária (ao contrário do que
ocorreria no feudalismo), com todas as consequências que disso resultam para a criação ulterior de um mercado
interno e, portanto, para a forma ‘prussiana’ que prevaleceria quando da transição para o capitalismo. E, por outro
lado, vale ressaltar a marca escravista sobre a estrutura de classes: a degradação do trabalho manual, que é muito
mais intensiva no escravismo do que no feudalismo [...]”. Por fim, sinalizamos outro ponto de vista a mais nesse
amplo e diverso debate que certamente não teremos como melhor desenvolver neste trabalho. Remetemo-nos à
concepção, também mais recente, de Antônio Carlos Mazzeo (1995, p.07-08). Para este autor, poderíamos
considerar o Sistema Colonial como a primeira fase do capitalismo. Assim sendo, “o regime de capitanias consistia
numa grande empresa de tipo mercantil e os donatários como primeiros burgueses”. Em resumo: “[...] a produção
escravista instalada na América e, portanto, no Brasil, não se constitui em um modo de produção distinto do
capitalista, mas, ao contrário, estrutura-se como um tipo específico de capitalismo. Um capitalismo de extração
colonial e escravista que objetiva o mercado externo, grandes lucros e, fundamentalmente, que utiliza a mais-valia
que expropria do escravo para investir na produção açucareira e agrária, em geral.” (MAZZEO, 1995, p.11).
Sabemos da importância de outros tantos “Interpretes do Brasil”, tal como Darcy Ribeiro, Antônio Cândido,
Florestan Fernandes e Caio Prado Junior, e da grandeza de suas contribuições para o debate em questão. Porém,
ratificando os limites deste trabalho, optamos por buscar um diálogo mais direto com parte desses pensadores, a
exemplo de Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., no corpo do texto, pois consideramos de maior referência e
contribuição para o que priorizamos em nossa tese.
45
Lembramos que o desenrolar desse debate em torno da configuração do sistema colonial e do capitalismo no
Brasil, buscava, na verdade, desvelar o entendimento sobre a natureza das classes sociais no país e o caráter da
nossa revolução burguesa. Isso significava, portanto, uma disputa férrea de narrativas e de rumos do país. Não se
tratava de uma questão acadêmica, mas fundamentalmente política. Intentava-se não apenas conhecer melhor
nossa formação social, mas entendê-la para transformá-la. Do ponto de vista das organizações das classes
trabalhadoras, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) exerceu importante papel no século XX e é dentro dele que
parte desses autores desenvolveram suas principais contribuições, incidindo sobre as suas disputas internas,
109

as divergências, tem-se como acúmulo desse legado, primeiro, o entendimento de que “de
qualquer maneira, desde o princípio as sociedades do Novo Mundo estão atadas à economia
mundial [...]” (IANNI, 1980, p.162), viabilizando, por meios coloniais o processo de
acumulação originária de capitais, “onde as colônias exercem um papel fundamental,
constituindo-se em poderosas alavancas de concentração de capitais” (MAZZEO, 1995, p.06);
segundo, a concepção de que o desenvolvimento capitalista nessas terras não se deu (nem se
dará) tal como nos outros países, especialmente naqueles que conheceram a via clássica de tal
desenvolvimento, como Inglaterra e França (TROSTKY, [1930] 1977). 46
Contudo, nos
deteremos a este tema mais adiante.

inclusive de direção política. Parte dessas elaborações expressavam a forte influência da Terceira Internacional
Comunista que, de acordo com Coutinho (2011, p.223), “de modo extremamente esquemático, poderíamos resumir
assim essa "imagem" pecebista: segundo ela, o Brasil continuaria a ser um país ‘atrasado’, semicolonial e
semifeudal, bloqueado cm seu pleno desenvolvimento para o capitalismo pela presença do latifúndio e da
dominação imperialista. Em consequência, careceríamos ainda de uma ‘revolução democrático-burguesa’, que
deveria ser feita com a participação de uma ‘burguesia nacional’ supostamente anti-imperialista e antifeudal”.
Contudo, é importante ressaltar os embates existentes dentro desse “campo pecebista” expressos, por exemplo,
nos posicionamentos de Caio Prado Junior. Ao tentar encontrar o sentido da colonização brasileira no contexto de
expansão capitalista, Prado Jr. nos aponta pistas importantes para pensarmos o país a partir do movimento da
história em que o “velho” se reatualiza no “novo” e onde este “novo” também se faz “velho”. Nesse caminho, o
autor alude os aspectos que configuram os setores “orgânico” e “inorgânico” na sociedade brasileira como
mediações para entender a configuração da economia e das classes sociais e sua influência na Revolução Brasileira,
a ser arquitetada e empreendida pelas classes populares, não pela burguesia. Aí o autor pode ser considerado
heterodoxo em sua análise. Certamente não seria possível contemplar neste trabalho a grandiosidade do conjunto
da obra de Caio Prado Jr. que, já na década de 1930, mediante a dificuldade encontrada no acesso a dados,
estatísticas e demais edições, inclusive de clássicos da tradição marxista, conseguiu construir uma análise profunda,
que foge do dogmatismo. Por outro lado, nota-se também que Caio Prado foi um homem do seu tempo, sofrendo
influências do pensamento que predominava, por exemplo, nas Ciências Sociais na primeira metade do século XX,
perceptível no trato de alguns temas como o da questão racial. Porém, este aspecto não reduz a relevância de sua
obra e a necessidade de atualizá-la a partir do diálogo com outros pensadores, clássicos e contemporâneos e com
a própria realidade brasileira. Cabe dizer que antes mesmo da publicação de Formação do Brasil Contemporâneo
(1942), Caio Prado, em 1933, na primeira versão do livro Evolução Política do Brasil, utiliza de forma inédita no
Brasil a ideia de classes sociais como conceito para analisar os movimentos sociais e políticos ao longo da história
brasileira. De forma inovadora, Prado procura demonstrar os distintos interesses e os conflitos entre as classes nos
diferentes contextos desta história, com destaque para as classes populares e/ou setores inorgânicos. (REIS, 1999).
Eventos como a Balaiada, Cabanada e a Revolta Praieira são citados como exemplos de resistência ao mesmo
tempo que indicam a incipiente participação direta desses setores nos eventos políticos do país.
46
A concepção sobre o papel das colônias no desenvolvimento capitalista, especialmente dentro do processo de
acumulação primitiva (MARX, [1867] 1984), ou seja, de intensa expropriação e exploração da força de trabalho,
necessário para viabilizar a acumulação de capital e concentração de riquezas sobre a qual o “novo mundo” iria se
abancar, foi fundamental para o entendimento acerca do “modo de ser” capitalista e da sua necessidade nata de se
expandir e universalizar. Sobre esse processo, Eduardo Galeano ([1971] 2008, p.41) nos oferece a seguinte
caracterização acerca do papel da América Latina em tal desenvolvimento: “Os metais arrebatados aos novos
domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até mesmo dizer que o tornaram possível.
Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas, que Alexandre Magno despejou sobre o mundo helênico,
poderiam se comparar com a magnitude dessa formidável contribuição da América para o progresso alheio.”. E
acrescenta: “[...] a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em razão das
necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos
foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que o valor das importações, compostas de
escravos, sal e artigos de luxo. [...]. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado
interno do capitalismo que emergia. [...]. No fim das contas, tampouco em nosso tempo a existência dos centros
ricos do capitalismo pode explicar-se sem a existência das periferias pobres e submetidas: umas e outras integram
o mesmo sistema.” (GALEANO, 2008, p.48-49).
110

Em síntese, corroboramos com a compreensão de Coutinho ([1990] 2011, p.37-38)


quando nos diz que o objetivo central do colonialismo no predomínio do capital mercantil “[...]
consistia em extorquir valores de uso produzidos pelas economias não capitalistas dos povos
colonizados, com a finalidade de transformá-los em valores de troca no mercado internacional”.
Esse processo levou, com o passar dos tempos, a uma alteração das bases econômicas e sociais
do modo de produção interno num sentido propriamente capitalista ou, nas palavras de
Florestan Fernandes ([1975] 2006), viabilizou a passagem da Organização Social Escravocrata
e Servil (OSES) para a Ordem Social Competitiva (OSC), já que, para ele, ocorreram alguns
períodos mais centrais que marcam a história do Brasil, quais sejam: “Colonial” (1500-1822),
“Neocolonial” (1822-1888), “Imperialismo restrito” (1889-1964) e “Imperialismo total” (1964
aos nossos dias), tendo tido com maior precisão a conformação do Estado Nacional entre o
período de 1822 e 1964, momento em que se consolida a OSC. Esse processo é marcado por
transições conciliadas ou, em outros termos, por “transformações pelo alto”, a exemplo da
própria “Independência” como também da “Abolição da Escravidão”, que, mesmo contendo
aspectos de resistência e reflexo das lutas sociais, mais representou um processo dos brancos
para os brancos, não sendo um projeto da população negra, segundo Fernandes (2006).
Ainda sobre a concepção do “Brasil Colônia”, chamamos a atenção novamente ao que
Coutinho (2011) nos alerta: é preciso ter os devidos cuidados àquelas noções, mesmo no campo
marxista, que dizem ser capitalista desde o princípio nosso sistema colonial, associando os
“primeiros burgueses” aos “donatários que receberam do rei a concessão” das capitanias
hereditárias, tal como nos apresenta Mazzeo (1995, p.07); os “latifundiários escravocratas do
Império” aos “grandes burgueses nacionais”, tal como sinaliza Prado Jr. ([1933], 2012); e as
formas predominantes de expropriação colonial à natureza empresarial e mercantil, por vezes
fazendo transparecer a ideia do Brasil como mero resultado do prolongamento da vida europeia.
O complexo, nessas análises, é entender como a grande empresa colonizadora possuía no lucro
um eixo fundamental. O interesse comercial, já em marcha, guardava a possibilidade de realizar
o excedente. Os escravos produziam mercadorias, mesmo sendo escravos.
Tais pontos de vista podem representar, para Coutinho (2011), o uso com pouco rigor
ou mesmo o desconhecimento de forma mais aprofundada, dada as circunstâncias de cada época
em que foram elaboradas, de noções referentes ao arcabouço marxiano. Fernandes (2011,
p.128-129), a esse respeito, também situa sua crítica: “parece que a tendência a focalizar a
unidade de produção escravista como ‘empresa capitalista’ é tão falaciosa quanto a tendência
oposta, de projetar o feudalismo na estrutura da sociedade brasileira.”.
111

Assim, as concepções sobre as quais Coutinho (2011) e Fernandes (2011) direcionam


suas críticas, mesmo que ambos considerem as contribuições de pensadores como Caio Prado
Junior centrais para a interpretação marxista do Brasil, podem refletir o equívoco em dar
prioridade à esfera da circulação em detrimento da produção, superdimensionando as relações
comerciais, na caracterização da formação social predominante, extraindo, a partir daí, uma
síntese geral da economia brasileira. Em alguns trabalhos, ainda segundo Coutinho (2011,
p.203), “por exemplo, tem pouco peso o conceito de ‘modo de produção’, o que [...] leva por
vezes a confundir, na análise da Colônia e do Império, o predomínio inequívoco de relações
mercantis com a existência de um sistema capitalista (ainda que ‘incompleto’), erro derivado
da prioridade metodológica” atribuída à “esfera da circulação em detrimento da esfera da
produção”.
Contudo, há algo nessa polêmica que é preciso lembrar: primeiro, o Brasil refletido, por
exemplo, por Caio Prado, a partir dos anos 30, não é o mesmo dos anos 60 analisado por
Florestan Fernandes e outros; segundo, foi importante a atenção de Prado Jr. a outros setores
estratégicos e dinâmicos da economia (orgânicos e inorgânicos 47), inclusive sua preocupação
em debruçar-se sobre a revolução tecnológica, além do quão fundamental foi revelar a
centralidade do tripé latifúndio-monocultura-trabalho escravo, o que se relaciona amplamente
à esfera da produção; terceiro, a constatação de que a bibliografia - marxiana, marxista, dentre
outras - a qual Carlos Nelson Coutinho teve acesso jamais seria a mesma do tempo de Caio
Prado Jr. O central é que, apesar disso, este pensador não vacilou no método, produzindo
contribuições impares para uma interpretação marxista do Brasil.
Ademais, é importante lembrar as próprias palavras de Marx que, em meados do século
XIX, “já havia assinalado o caráter ‘anômalo’ e ‘formalmente burguês’ da formação social
escravista nas Américas e Antilhas”. Vejamos:

A escravidão dos negros – uma escravidão puramente industrial – que, em todo caso,
desaparece com o desenvolvimento da sociedade burguesa e é com ela incompatível,
pressupõe o trabalho assalariado, e se outros Estados livres, com trabalho assalariado,
não existissem ao lado de tal escravidão, mas a isolassem, imediatamente todas as
condições sociais nos Estados escravistas se converteriam em formas pré-civilizadas.
(MARX, [1939] 2011, p.249-250).

47
Sobre esse tema, durante o doutorado tivemos a oportunidade de aprofundar nossa leitura e desenvolver algumas
reflexões introdutórias, brevemente apresentadas no artigo intitulado Setores orgânico e inorgânico na formação
social brasileira em Caio Prado Jr. Disponível em: < http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/27844>.
112

É, portanto, sob esse movimento histórico que se consolidam as bases da formação


social brasileira que, segundo Prado Júnior (2008, p.10), foi particularizada por intermédio do
processo de colonização. Para o pensador-militante, “naquele passado se constituíram os
fundamentos da nacionalidade […] constituída na base de elementos próprios”. A colonização
foi, nesse sentido, a expressão de uma “nova ordem que é a do mundo moderno”, tal como já
apresentamos no capítulo anterior. Daí nasce o Brasil: nação voltada para fora, nucleado no
exterior, como uma vasta empresa colonial tendo como base três principais pilares – a grande
propriedade (plantation), a monocultura e o trabalho escravo. (PRADO JR., 2008),
confirmando a centralidade da produção nesse processo para a acumulação originária do capital
nos países centrais.
Já para Gorender (1982, p.09), o embrião da acumulação de capitais no país se processou
por intermédio do “escravismo colonial […] tendo este como a fonte da própria acumulação”.
Teria sido, então, o sistema colonial o processo de acumulação primitiva de capitais no interior
do modo de produção escravista colonial? Sem adensar tal discussão, para além do que é
permitido neste trabalho, retomemos o trecho do romance em destaque no início do presente
item para, assim, apresentarmos uma segunda reflexão extraída por nós.
O segundo ponto (ou segunda reflexão) que gostaríamos de destacar a partir das
palavras do jagunço Riobaldo do referido romance, dando continuidade à analogia aqui
proposta, diz respeito a pensar nossa existência como um movimento: às vezes, aos olhos dos
homens (e das mulheres) comuns em uma determinada época, a história parece se repetir, mas
o seu próprio movimento sempre pode empurrá-la “noutro galho” não predestinadamente
escolhido, podendo, inclusive, até quebrar-se. Aqui fazemos novamente a relação com o
processo em que se deu o desenvolvimento capitalista no Brasil e, em especial, os momentos
de transição e consolidação do padrão burguês de dominação (interno e externo).
Ao contrário dos que enquadram as formações sociais modernas em uma lógica
escalonada, constituídas por sucessivas etapas, fadadas a se repetirem, a história das diversas
formações capitalistas até hoje existentes demonstram a força do caráter desigual, embora
combinado, das relações sociais, fazendo com que muito daquilo que “deveria ser” não se
concretize tal e qual, como já problematizamos no capítulo anterior.
O próprio Trotsky (1977, p.24-25), ao analisar as particularidades do desenvolvimento
do capitalismo na Rússia, critica a concepção de “repetição dos ciclos históricos” (ou etapas),
sinalizando tratar-se, na verdade, de uma formação histórica fruto de uma combinação original.
Isso não nega o fato de um país “atrasado” assimilar “as conquistas materiais e ideológicas dos
países adiantados”. Por conseguinte, isto também não significa que “siga servilmente estes
113

países, reproduzindo todas as etapas de seu passado […]. O desenvolvimento de uma nação
historicamente atrasada conduz [...] a uma combinação original das diversas fases do processus
histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado.”
Daí o entendimento, já apresentado nas páginas anteriores, de que não há etapas bem definidas
de desenvolvimento pelas quais cada formação social deva passar, inevitavelmente ou
predestinadamente. Essa constatação contribuiu de forma decisiva para compreender, por
exemplo, o por que foi viável na história da Rússia (semi-feudal) uma revolução popular
socialista, além da existência de formas de sociedade tão distintas sob o mesmo modo de
produção.
Aqui chamamos a atenção para um aspecto que demonstra a veracidade dessa
constatação: a questão da transição. Sobre este tema, novamente teremos outras tantas
interpretações, mesmo na perspectiva marxista, que se complementam ou se conflitam. 48 Isto,
muito embora, haja uma concepção prevalente: “[...] a ideia de que o Brasil transitou para a

48
A literatura marxista disponível que trate sobre a questão da transição de um sistema de relações sociais de
produção ou, em outras palavras, de um modo de produção para outro, é vasta. Dentre os pensadores que se
destacaram no esforço de desenvolver uma análise a partir da realidade brasileira, encontra-se Sodré (1980, p.147)
e sua tese da “regressão feudal”, ou seja, da existência em algum momento da história do Brasil de uma passagem
de relações de produção escravistas a feudais. Como expressões de um “feudalismo não codificado”, o autor
apresenta as seguintes: “[...] as lutas de famílias, o direito dos seus moradores, as formas patológicas que
proliferaram em disfarces como o do banditismo endêmico, da arregimentação das forças paramilitares nas grandes
fazendas, dos currais eleitorais que constituíram o fundo de pano da chamada ‘política dos governadores’, do
fanatismo religioso e das manifestações de rebeldia a que deu lugar, como heréticas.”. Esses aspectos, para Sodré
(1980), muito se associavam à temática medieval e estariam presentes com maior força em algumas regiões do
Brasil, subsidiando, inclusive, alguns dos principais enredos da literatura brasileira: “[...] a mulher que se disfarça
em homem para combater ou exercer vingança, os amores contrariados pela rivalidade familiar, as gestas de bandos
armados varrendo os sertões. No fundo do amplíssimo painel das guerrilhas narradas em Grande Sertão: Veredas
está o latifúndio feudal, em seu esplendor.”. Frente a tais evidências, de acordo com o autor, teria existido no Brasil
tanto o escravismo, “e passagem ao feudalismo, quanto feudalismo, e passagem ao capitalismo. Esta sequência
[...] decorre da análise do particular brasileiro, e não de simples adoção de uma fórmula, como se fora universal e
obrigatória.” (SODRÉ, 1980, p.149). Nessa perspectiva, o monopólio da terra seria a expressão central de uma
forma particular de relação feudal. Ainda para Sodré (1980, p.156), a transição entre tal forma particular e o modo
de produção capitalista no Brasil deu-se sem uma ruptura revolucionária, o que muito se assemelha, para ele e
outros autores, ao exemplo da chamada via-prussiana elaborada nas análises de Lênin ([1982] 1899) sobre o
desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Nas palavras do próprio pensador-militante, “os recursos às formas
ditatoriais e aos regimes fascistas são recursos de que se vale a burguesia, pressionada pelo imperialismo, para
assegurar a via prussiana e a exploração cômoda e pacífica da força de trabalho: o Estado Novo como a ‘redentora’
são exemplos dessa acomodação com o atraso [...]. De qualquer forma, completar as tarefas peculiares à revolução
burguesa e no Brasil ainda não alcançadas pelas próprias características de que esta se tem revestido, é
indispensável.”. Esse processo é caracterizado por Mazzeo (1995, p.21) como “via-prussiano-colonial do
capitalismo brasileiro”, constituído por episódios que podem ser associados, para o autor, a um “bonapartismo-
colonial”: “A não-ruptura com a estrutura de produção escravista e exportadora confirmará a dimensão colonial
da economia brasileira [...]. Daí denominarmos o caminho brasileiro para o capitalismo de ‘via prussiano-colonial’.”
(MAZZEO, 1995, p.22). Nesse sentido, o caráter da revolução de 1930 representaria um redimensionamento do
capitalismo brasileiro, não se desvinculando do caminho autocrático e da “via prussiano-colonial”, mas
reafirmando-o. Já para Coutinho (2008), que também se remete a nossa via-prussiana, os momentos de transição
no Brasil são caracterizados pelas transformações pelo alto que configuram a nossa “revolução passiva”, uma
analogia que o autor faz com as análises de Antônio Gramsci sobre a realidade italiana.
114

modernidade capitalista através de uma via não clássica (e não de uma revolução jacobina,
desencadeada de baixo para cima) [...].” (COUTINHO, 2011, p.248).
O fato é que, mesmo diante de todas as desconformidades, o “agente organizador” da
acumulação capitalista não deixou de ser a burguesia associada ao grande capital (IANNI, 2004)
e destituída de um projeto político de orientação democrática e de soberania nacional, mediante
arranjos de cúpula com setores oligárquicos, sem por isso realizar uma “revolução democrático-
burguesa” ou de “libertação nacional” (IAMAMOTO, 2007, p.132). Em outras palavras, a
dinâmica do capital por aqui foi realizada “por meio de mecanismos ainda não essencialmente
capitalistas” (GORENDER, 1982), não tendo como “meio ambiente original”, de transição, o
definhamento do feudalismo, ao contrário da Europa.
Tal como já sinalizamos no capítulo anterior e aqui retomamos a partir de outros autores,
para Coutinho (2011), dois conceitos são centrais na literatura marxista para caracterizar a via
não-clássica e os processos de modernização conservadora 49 no Brasil: a “Via Prussiana”,
elaborada por Lênin, presente especialmente no Programa agrário da social-democracia de
1907, e a “Revolução Passiva”, de Antônio Gramsci, concepção concebida a partir de sua
análise em torno do processo de modernização e unificação do Estado italiano, contexto
também conhecido como Risorgimento. 50
Essas realidades, tal como os exemplos da
Alemanha, Japão e Estados Unidos, revelam a força e universalidade do desigual e combinado
no desenvolvimento capitalista, embora longe da condição de dependência que aprofunda tais

49
A terminologia “modernização conservadora” tem sido utilizada recorrentemente por vários autores brasileiros
para expressar uma das principais características da nossa formação social: a permanente relação entre arcaico e
moderno como também os diversos episódios de transformações pelo alto sob os quais compõem o processo de
modernização capitalista no Brasil. Todavia, é importante fazer a ressalva de que se trata de um conceito acadêmico
elaborado pelo sociólogo norte-americano Barrington Moore Jr. “Ele distingue entre diferentes caminhos de
trânsito para a modernidade, um que leva à criação de sociedades liberal-democráticas, outro que leva a formações
de tipo autoritário e mesmo fascista. Embora não cite nem Lenin nem Gramsci, Moore distingue os dois caminhos
valendo-se de determinações análogas àquelas apontadas pelos dois marxistas, ou seja, entre outras, a conservação
de várias características da propriedade fundiária pré-capitalista e, consequentemente, do poder dos latifundiários,
o que resulta do fato de que a ‘moderna’ burguesia industrial prefere conciliar com o atraso a aliar-se às classes
populares.” (COUTINHO, [2000] 2008, p.109).
50
Novamente nos respaldando em Coutinho ([1990] 2011, p.205), consideramos válida a seguinte observação
sobre a concepção de via clássica e de via prussiana: “São aqui indicadas duas vias principais, que Lenin chamaria
de "americana" (ou "clássica”) e de "prussiana". A via "clássica" implica uma radical transformação da estrutura
agrária: a antiga propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração camponesa. Nesse
caso, não só desaparecem as relações de trabalho pré-capitalistas, fundadas na coerção extraeconômica sobre o
trabalhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já que são eliminadas as formas econômicas
em que ela se apoiava e de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução como classe. Diverso é o caso da
"via prussiana": aqui a velha propriedade rural, conservando sua grande dimensão, vai se tornando
progressivamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de formas de trabalho fundadas na
coerção extraeconômica, em vínculos de dependência ou subordinação que se situam fora das relações
"impessoais" do mercado, e que vão desde a violência aberta até a intromissão na vida privada do trabalhador. É
evidente que isso permite a conservação (ou mesmo o fortalecimento) do poder político do velho tipo de
proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da nova ordem capitalista”.
115

características. Vejamos o que Lênin (apud COUTINHO, 2011, p.204) também nos diz sobre
esse tema tomando como referência as formas de propriedade agrária e como se deu a relação
entre o velho e o novo para a conformação do padrão de (re)produção capitalista nas diferentes
formações sociais:

Marx já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção capitalista
encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde ao capitalismo. O
próprio capitalismo cria para si as formas correspondentes de relações agrárias,
partindo das velhas formas de posse da terra [...]. Na Alemanha, a transformação das
formas medievais de propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo a
via reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propriedades feudais, que se foram
transformando lentamente em fazendas de Junkers [...]. Nos Estados Unidos, a
transformação foi violenta [...]. As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a
grande propriedade agrária feudal se converteu em pequena propriedade burguesa.

Já a “transição brasileira”, nosso processo modernizador, nossa via não-clássica,


segundo Caio Prado (apud COUTINHO, [1990] 2011, p.205), apresenta-se de forma distinta,
“pois na base e na origem de nossa estrutura agrária não encontramos [...] uma economia
camponesa, e sim a grande exploração rural que se perpetuou desde os inícios da colonização
brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema capitalista de produção”. Tal compreensão
vai de encontro ao “modelo interpretativo dominante na Terceira Internacional e no Partido
Comunista Brasileiro (pelo menos a partir de 1930)”, tendo em vista que entra em choque com
as concepções que insistiam na existência em nosso país da condição feudal ou semifeudal e,
por isso, da necessidade da reforma agrária e da revolução democrático-burguesa para a
consolidação de sua modernização, do capitalismo em terras brasileiras. Este, como vimos,
desenvolveu-se sem demandar tais transformações, expressando traços peculiares em nossa
formação social sobre os quais diversos intérpretes irão se debruçar, além do próprio Caio Prado
Junior.
Florestan Fernandes ([1975] 2006), outro importante pensador-militante, por exemplo,
revela através de seus estudos sobre a revolução burguesa no Brasil que o país fez a “passagem”
para o presente capitalista a partir de uma formação econômico-social que não era
essencialmente capitalista. Isso quer dizer que, nas palavras do próprio autor, “[...] o arcaico e
o moderno nem sempre entram em choque decisivo, que termine com a eliminação das
estruturas repudiadas; estabelecem-se várias espécies de fusões e de composições, que
traduzem os diferentes graus de identificação dos homens com a herança tradicional e com a
modernização.” (FERNANDES, [1968] 2008, p.53). Ou seja:
116

A ordem social competitiva origina-se e floresce, no mundo criado pela ‘expansão da


civilização ocidental moderna’, como um produto tardio, nascido da desintegração de
estruturas sociais formadas nos períodos iniciais da colonização. [...] No Brasil, por
exemplo, a estrutura de transição foi a antiga ordem senhorial e escravista, montada
através da colonização, mas diferenciada e reintegrada para adaptar-se à emancipação
política e à implantação de um Estado nacional, e à consequente burocratização da
dominação patrimonialista, pela qual os estamentos senhoriais privilegiaram sua
condição econômica, social e política, monopolizando o poder. (Ibid., p.52-53).

Portanto, o entendimento sobre a idiossincrasia da “não classicidade brasileira” e do


caráter tardio do nosso desenvolvimento capitalista também deve levar em consideração fatores
externos, para além dos internos, ou seja, a articulação permanente entre o desenvolvimento
desigual interno e a dominação imperialista externa, própria da condição de dependência
(FERNANDES, 2006, p.410). É nessa perspectiva que Lênin (1982) em O Desenvolvimento do
Capitalismo na Rússia está preocupado em entender, dentre outros aspectos, o modo de
“resolução” da questão agrária em seu país e Florestan (2006) na obra A Revolução Burguesa
no Brasil canaliza sua atenção para analisar a peculiaridade da nossa revolução burguesa sem
perder de vista sua inserção no movimento do capital para além do Brasil. Diante disso, este
autor nos oferece uma valiosa síntese:

Ao concretizar-se, a Revolução Burguesa transcende seu modelo histórico – não só


porque está superado. Mas, ainda, porque os países capitalistas retardatários possuem
certas peculiaridades e se defrontam com um novo tipo de capitalismo no plano
mundial. A burguesia nunca é sempre a mesma, através da história. No caso brasileiro,
a burguesia se moldou sob o tipo de capitalismo competitivo que nasceu da
confluência da economia de exportação (de origens coloniais e neocoloniais) com a
expansão do mercado interno e da produção industrial para esse mercado [...].
(FERNANDES, 2006, p.258).

À propósito, recorremos a outro importante pensador brasileiro que nos afirma,


novamente, o imperativo da relação entre universal e particular. Vejamos:

Nem toda revolução burguesa, naturalmente, pode apresentar episódios com o da


queda da Bastilha. Toda revolução burguesa, entretanto, qualquer que seja a
diversidade que apresente em relação a modelos empíricos, acontece,
independentemente de tempo e espaço, quando determinadas relações passam a
dominantes. [...] Marx dizia, a propósito de conceituações, que nem todo negro é
escravo e nem todo dinheiro é capital. Os leitores sabem que o capital é uma relação
e não uma coisa. Quando o salário se torna a forma normal de compra da força de
trabalho, existe capitalismo. Sua lei fundamental [...] é a mais-valia. (SODRÉ, 1980,
p.150-151).

Dessa forma, o solo propício para a consolidação no país das relações capitalistas de
(re)produção dá-se, especialmente, a partir da década de 1930, mesmo que para isso
acontecimentos anteriores ao próprio século XX tenham sido também fundamentais. Estamos
117

falando de uma sociedade na qual a transição capitalista ocorre sem profundas alterações na
estrutura social, especialmente agrária. “Em lugar de uma ‘autêntica’ revolução, ‘debaixo para
cima’, realizam-se arranjos de cúpula, ‘de cima para baixo’.” (IANNI, 2004, p.231), o que, para
Coutinho (2011, p.214), poderíamos associar a concepção de “revolução-restauração” presente
na obra de Antônio Gramsci quando se refere aos processos, já sinalizados por nós, de
transformação pelo alto, “pretendendo com isso indicar que o momento ‘restaurador’ ou
‘conservador’ desse tipo de transformação não impede que através dela ocorram também
modificações efetivas na ordem social.”. Novamente, trata-se de um fator histórico em que,
apesar de possuir uma tônica mais forte em certos países, não são a estes um privilégio, ou
melhor, uma excepcionalidade.
Essa condição é, portanto, central para entendermos a natureza das classes sociais (e de
suas frações) e sua relação com o desenvolvimento desigual, o que foi decisivo na construção
de alianças e dos processos de transição, desde o exemplo russo, daquelas feitas entre os
proprietários nobres, a burguesia e o clero progressista, em que “os burgueses liberais, pondo
de lado a sua opinião sobre ortodoxia, julgavam que, para a conservação da ordem, seria
necessário tanto uma aliança com a Igreja como com a Monarquia” (TROTSKY, 1977, p.165),
ao caso brasileiro, mais precisamente aquelas em que a “burguesia mostrou as verdadeiras
entranhas, reagindo de maneira predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da
melhor tradição do mandonismo oligárquico [...].” (FERNANDES, 2006, p.242). Tais
exemplos demonstram, em semelhantes, embora tão distintas, realidades, o quanto a “burguesia
mantém múltiplas polarizações com as estruturas econômicas, sociais e políticas do país”. E
mais:

Ela não assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade


[...]. Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e para ela era
vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade
brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do ‘atraso’ quanto do
‘adiantamento’ das populações. Por isso, não era apenas a hegemonia oligárquica que
diluía o impacto inovador da dominação burguesa [no Brasil]. A própria burguesia
como um todo (incluindo-se nela as oligarquias) se ajustara à situação segundo uma
linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual
e a composição a uma modernização impetuosa, intransigente e avassaladora. No
mais, ela florescia num meio em que a desagregação social caminhava
espontaneamente, pois a Abolição e a universalização do trabalho livre levaram a
descolonização ao âmago da economia e da sociedade [...] sua ansiedade política ia
mais na direção de amortecer a mudança social espontânea que no rumo oposto, de
aprofundá-la e de estendê-la às zonas rurais e urbanas mais ou menos ‘retrógradas’ e
estáveis. (FERNANDES, 2006, p.240-241).
118

Diante disso, voltamos ao trecho do romance presente no início deste capítulo para
apresentarmos uma terceira e última reflexão que ainda pode nos remeter, analogicamente, às
palavras ditas pelo jagunço: trata-se de uma caracterização que, para nós, atravessa e constitui
os demais elementos apontados até então sobre o desenvolvimento desigual e a conformação
das classes sociais no Brasil. Referimo-nos aquilo que, assim como o personagem Riobaldo de
Grande Sertão Veredas, ficamos sabendo “para de lá de tantos assombros”, pois, tal como no
Mito da Alegoria da Caverna, ás vezes, a realidade é para nós como um quarto escuro que “só
no último derradeiro é que clareiam a sala”. Continuando nas palavras do jagunço, “digo: o real
não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. (ROSA,
[1956] 2001, p.80). Mas o que isso quer dizer? Em que ponto se quer chegar?
A realidade nos revela que, indo para além do factual e da aparência, do simples ao
complexo, é possível se aproximar de um concreto pensado que nos possibilita entender a
dinâmica histórica do desenvolvimento desigual e combinado da humanidade e, mais
precisamente, do capitalismo brasileiro nas suas diversas expressões. Afinal, “qualquer
exposição histórica tem o direito de pretender que se lhe reconheça objetivamente quando [...]
ela reproduz a ligação interna deles à base do desenvolvimento real das relações sociais. A razão
íntima de ser do processo que então se desvenda é [...] a melhor verificação da objetividade da
exposição.” (TROTSKY, 1977, p.382).
Dessa forma, o que nos parece “desenvolvimento” é “subdesenvolvimento”;
“modernização” é “conservação”, e vice-versa. Isso nos faz lembrar a velha, porém atual, frase
de Tancredi do romance italiano “O Leopardo”, escrito por Tomasi di Lampedusa, a nos dizer
que “algo deve mudar para que tudo continue como está” ou que “tudo deve mudar para que
tudo fique como está”. Em outras palavras, trata-se da nossa modernização que viabiliza a
constituição do “padrão compósito e articulado da hegemonia burguesa” no Brasil.
(FERNANDES, 2006, p.416). Esse aspecto, no nosso entendimento, é fundamental para a
análise da realidade brasileira para além do dualismo e determinismo, revelando como o
capitalismo articula permanentemente aspectos considerados “avançados” e “retrógrados” do
ponto de vista do desenvolvimento social sobre o qual tratamos no primeiro capítulo.
Recorremos novamente às palavras de Sodré (1980, p.143) quando nos diz: “Está claro,
e aqui entra a relação entre o universal e o particular, que, adiante, quando o capitalismo triunfa
no ocidente europeu, põe a seu serviço uma variadíssima constelação de formas de produção
não-capitalistas”. Sobre isso, alguns dos intérpretes brasileiros sinalizam um diálogo com Rosa
Luxemburgo, mais precisamente com seu trabalho A Acumulação do Capital (1913), onde
mostra como o capitalismo se vale das relações que não são tipicamente capitalistas. Para
119

Gorender (1980, p.56), por exemplo, Rosa “não conseguiu explicar a reprodução ampliada do
capital senão pela realização necessária de uma parte da mais-valia num ambiente não-
capitalista, erigindo, dessa maneira, o intercâmbio com modos de produção não-capitalistas em
fator estrutural indispensável à própria existência do modo de produção capitalista”. Tal
condição nos é extremamente válida até hoje não apenas para melhor compreendermos nossa
constituição no passado, mas para entendermos os avanços e retrocessos do nosso presente, por
exemplo, em relação às desigualdades regionais na recente realidade brasileira, aspecto
propulsor do nosso trabalho de pesquisa.
É, portanto, com base nesse lastro - central para o entendimento do capitalismo
brasileiro, de suas classes e frações, da natureza do Estado, da democracia como também das
desigualdades regionais - que nos deteremos de forma mais precisa a partir de então. Isto,
sabendo que não será no início ou no término deste trabalho suas principais revelações e
contribuições, mas no seu desenrolar, “no meio da travessia”. O intuito é que não percamos,
nesse meio, o “fio da meada”.

2.2. A modernização dependente no capitalismo tardio brasileiro

Fazendo jus aos ensinamentos de Florestan Fernandes ([1968] 2008), lembramos as


seguintes palavras que certamente nos ajudam a dar um passo adiante no entendimento da
centralidade da relação orgânica entre atraso e moderno no Brasil como demonstração máxima
da força e materialidade do desenvolvimento desigual e combinado, conformando por aqui a
nossa modernização dependente no capitalismo tardio:

[…] a articulação de formas de produção heterogêneas e anacrônicas entre si preenche


a função de calibrar o emprego dos fatores econômicos segundo uma linha de
rendimento máximo explorando-se em limites extremos o único fator constantemente
abundante, que é o trabalho – em bases anticapitalistas, semicapitalistas ou capitalistas.
[...] A exploração dessas formas, e sua combinação com outras, mais ou menos
modernas e até ultramodernas, fazem parte do ‘cálculo capitalista’ do agente
econômico privilegiado. (FERNANDES, 2008, p.60-61).

Essa característica evidencia-se com maior grau nos países dependentes (nos processos
de transição, na constituição das classes sociais, das formas de propriedade e de exploração da
força de trabalho, nos valores morais e éticos etc.) e em determinadas regiões onde o peso e a
funcionalidade do atraso tornam-se mais potente, tal como é também a marca das desigualdades
120

regionais e, portanto, da questão regional.


Tal constatação é fruto do legado marxista, já brevemente exposto no Capítulo 1. Aqui
ressaltamos novamente as palavras de Trotsky ([1930] 1977, p.24-25) quando nos diz que,
apesar da “desigualdade de ritmos”, vinculada ao “desenvolvimento combinado”, ser uma lei
universal, a “mais geral do processos histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade
nos destinos dos países atrasados”, dependentes, “sob o chicote das necessidades externas”,
vendo-se na “contingência de avançar aos saltos”. Para Florestan ([1968] 2008, p.79), trata-se
de economias capitalistas atravessadas pela heteronomia, articulando de maneira peculiar as
estruturas arcaicas e modernas. Estas “apresentam intenso crescimento ‘desordenado’ e se
impõem às primeiras como centros hegemônicos da economia nacional.”.
É importante destacar, novamente, que o atraso histórico das economias dependentes
não significa ausência ou mesmo certa deficiência no desenvolvimento capitalista. Ao contrário,
tais economias constituem, “através de suas diversas variantes, o que se poderia entender como
manifestação normal daquele tipo, nas condições que deram origem e mantiveram o capitalismo
dependente.” (FERNANDES, [1968] 2008, p.51). Por isso, a combinação entre arcaico e
moderno pode causar efeitos em determinadas formações sociais bastante distintivos,
desbancando qualquer propensão a uma análise linear da história. Isto mesmo que tais aspectos
sejam utilizados equivocadamente como subsídios para análises dualistas sustentadas, por
exemplo, em conceitos como o de “subdesenvolvimento”, associado a uma “formação
histórico-econômica singular”, constituída por dois polos opostos – o atrasado e o moderno.
Esta ótica, conforme Oliveira (2013, p.32), “não se sustenta como singularidade”, pois “esse
tipo de dualidade é encontrável não apenas em quase todos os sistemas, como em quase todos
os períodos”. Daí ser meramente formal a oposição entre o arcaico e o moderno. Na verdade, o
que existe é uma verdadeira “simbiose […] uma unidade de contrários, em que o chamado
'moderno' cresce e se alimenta da existência do 'atrasado’”.
Oliveira (2013, p.33) ainda reforça o que já vimos no início deste item: “as economias
pré-industriais da América Latina foram criadas pela expansão do capitalismo mundial, como
uma reserva de acumulação primitiva do sistema global”, o que deslegitima a concepção
daqueles que acreditam na existência de um “subdesenvolvimento” que necessita ser superado
por intermédio do próprio desenvolvimento capitalista, quando este, na verdade, com seu
caráter profundamente desigual, aprofunda a dependência e as desigualdades regionais. É
preciso lembrar que “a própria acumulação de capital produz desenvolvimento e
subdesenvolvimento como momentos mutuamente determinantes do movimento desigual e
121

combinado do capital” (MANDEL, 1982, p.58). 51 Portanto, não é que exista “menos
capitalismo” e “mais capitalismo” ou mesmo uma incompletude do capitalismo em
determinadas regiões, mas configurações diferenciadas do próprio capitalismo.
Diante desse entendimento, é inevitável não lembrar da frase de José Lins do Rego
quando nos diz que "o pior não é morrer de fome num deserto: é não ter o que comer na Terra
Prometida.". Essa consideração nos possibilita refletir sobre o quanto a articulação necessária
entre o atraso e o moderno é própria do modo de ser capitalista. Trata-se de uma relação com
dois pesos e duas medidas cuja funcionalidade do atraso para a conservação e o aprofundamento
do “embrutecimento cultural”, mesmo diante de tanta modernidade, torna-se cada vez maior
em detrimento do potencial civilizatório, pondo na ordem do dia a opção entre socialismo ou
barbárie.
Por conseguinte, a compreensão sobre essa necessária articulação como um requisito do
capitalismo dependente leva-nos a outra importante concepção que, apesar de considerar o
“subdesenvolvimento” como condição efetivamente existente, o trata longe de qualquer
dualismo. Para Florestan Fernandes ([1968] 2008, p.54), a sociedade capitalista
subdesenvolvida não é “uma redução patológica daquele tipo social, considerado em
determinado estágio do seu desenvolvimento”. O subdesenvolvimento e seu regime de classes,
nesse sentido, só podem ser explicados pelas condições de dependência de uma civilização
nucleada no exterior. Resumidamente:

O subdesenvolvimento engendra, através do capitalismo dependente, interesses


econômicos e vínculos morais que lançam suas raízes nas conexões da organização
econômica e social das sociedades subdesenvolvidas com as sociedades avançadas.
[...] Sem dúvida, o subdesenvolvimento é um negócio, para os que tiram proveito dele
através do capitalismo dependente (dentro ou fora da ‘sociedade subdesenvolvida’).
[...] onde ele surge e se mantém, não é mera cópia frustrada de algo maior nem uma
fatalidade. (FERNANDES, [1968] 2008, p. 54).

As expressões de Florestan Fernandes nos remetem a uma importante ponderação sobre


o processo de modernização conservadora no Brasil: embora prevaleça o conservantismo

51
É válido destacar a proximidade e discordâncias dessa análise de Ernest Mandel com aquela feita por André
Gunder Frank. Observemos o que o próprio Mandel nos fala sobre isso: “Em última instância, o problema da ‘troca
desigual’ traz de volta a questão da estrutura social diferente dos países subdesenvolvidos. [...] Também
concordamos com a tese básica de André Gunder Frank sobre essa questão: o próprio desenvolvimento do
capitalismo produz a justaposição do ‘superdesenvolvimento’ das metrópoles e do ‘subdesenvolvimento’ das
colônias e semicolônias. Nossas diferenças com Frank originam-se de sua análise dos mecanismos que permitem
a dependência dos países subdesenvolvidos: ele os vê na natureza capitalista da economia dessas colônias e
semicolônias (que confunde com subordinação ao mercado mundial capitalista); nós os vemos na combinação
específica de relações de produção pré-capitalistas, semicapitalistas e capitalistas, que caracteriza a estrutura social
desses países.” (MANDEL, 1982, p.258). Em outras palavras, Mandel atenta que não se pode deslocar a
centralidade da análise da produção para a distribuição.
122

cultural, fazendo com que as mudanças não se reflitam, duradouramente, a não ser pela
“substituição das polarizações dos vínculos [e formas] de heteronomia [...] crescentemente mais
complexas, envolventes e eficazes”, o desenvolvimento capitalista no país não pode ser
examinado como a mera reprodução do seu passado. Basta observar os “diferentes colapsos do
velho ou do novo colonialismo e do imperialismo econômico [que] não conduziram senão a
formas de heteronomia”. (FERNANDES, 2008, p.56). Caso contrário, estaríamos fraturando
em cheio a perspectiva crítica e dialética que procuramos nos orientar.
Assim, atentar para os ensinamentos de Marx ([1858] 2008) em relação a anatomia do
macaco, pensando na “forma clássica” como a mais desenvolvida e termos esta como parâmetro
para pensar outras formas, inclusive a “anatomia do caso brasileiro”, implica levarmos em
consideração os fundamentos que constituíram durante um longo tempo tal formação social
como também suas transformações em curso até nossos dias. Nesse sentido, Coutinho (2011)
expressa em toda a sua obra um valoroso esforço para que a “Imagem do Brasil” na tradição
marxista não minimize os aspectos políticos em detrimento dos econômicos, o que fez com que
o autor travasse uma dura, porém, generosa avaliação no diálogo com outros intérpretes. 52

Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil conhece uma trajetória que leva de
uma situação de completa debilidade (ou mesmo ausência) de sociedade civil até outra
situação, a apresente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais
complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória é expressão do
progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias transversas, na era do capitalismo
industrial. (COUTINHO, [1990] 2011, p.18-19).

52
Dentre as ponderações feitas por Coutinho (2011, p.214) no diálogo com outros intérpretes brasileiros marxistas,
destacamos aquelas voltadas, por exemplo, a Caio Prado Junior, sua ênfase na conservação e tendência a
“minimizar e subestimar os elementos de ‘modernização’ que eles [os processos de transição] também trouxeram
consigo”, sem desconsiderar, entretanto, que as categorias marxistas que esse grande pensador comunista
“dispunha – e muitas das que inventou – permitiram-lhe chegar, na maioria dos casos, a análises lúcidas, fecundas
e quase sempre justas.” (2011, p.214). Segundo o autor, “[...] pode- se constatar que, na análise do nosso presente,
Caio Prado se aproxima em muitos pontos do ‘estagnacionismo’ contido em tal paradigma: o desenvolvimento
brasileiro, sua passagem definitiva para a ‘modernidade’, estaria bloqueado pelo ‘atraso’, seja nas relações
agrárias, seja no setor industrial, um ‘atraso’ proveniente, pensa ele, da limitação estrutural do mercado interno e
da dependência ao imperialismo. E, além dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa convergência objetiva
entre o Caio Prado tardio e os teóricos do ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’, como André Gunder Frank
e Ruy Mauro Marini, o que levou a um mal-entendido no plano político: A revolução brasileira, publicado cm
1966, terminou por alimentar a ideologia da ultraesquerda no Brasil, a qual se baseava na falsa alternativa entre
‘socialismo já’' ou ‘ditadura fascista com estagnação econômica’. Essa alternativa não está absolutamente presente
no livro de Caio Prado; mas a sua visão do Brasil como estruturalmente atrasado e estagnado podia contribuir
objetivamente para alimentá-la, como de fato ocorreu. Finalmente, cabe observar que essa visão ‘atrasada’ parece
ser responsável pela insuficiente formulação da questão da democracia política nas análises do historiador paulista.
Se o Brasil é plenamente capitalista, mas chegou a essa situação através de processos de transição que configuram
uma ordem social excludente e autoritária - como nos ensina Caio Prado -, então a principal tarefa histórica que se
coloca hoje ao nosso povo, ou seja, o conteúdo da ‘revolução brasileira’, consiste cm inverter essa tendência
‘prussiana’, por meio da consolidação daquilo que, em sua obra de 1933, o historiador chamava de ‘estrutura
política democrática e popular’, agora tomada possível pela emergência de novas condições objetivas e
subjetivas.”. (COUTINHO, 2011, p.217-218).
123

Isso quer dizer que a caracterização do Brasil desde a época colonial deve levar em
consideração as mudanças, por exemplo, no âmbito da “sociedade civil” que, segundo Coutinho
(2011, p.19), praticamente inexistia no sistema de produção escravista, afinal, não havia
parlamento, partidos políticos, sistema de educação, direito de expressar ideias e publicizá-las
através de livros e jornais, intelectuais para além daqueles “diretamente ligados à administração
colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja”. Assim, apesar da marca da “manobra pelo alto”,
dos “golpes palacianos” ou simplesmente das “mudanças pelo alto” expressas em episódios
como o da Independência e Proclamação da República, é preciso validar que, quando o
“capitalismo vai se tornando o modo de produção dominante também nas relações internas”, há
o importante surgimento de novas classes e camadas sociais no cenário político do país, “ainda
que continue atrasada e fortemente marcada por restos pré-capitalistas [...].” (COUTINHO,
2011, p.23).
Essa ponderação é fundamental para não cairmos numa postura fatalista ou mesmo, de
alguma forma, determinista ao avaliarmos, mais adiante, o peso do atraso nas transformações
mais recentes da realidade brasileira. É certo que hoje, apesar de tantos retrocessos,
encontramos milhões de pessoas que entenderam que é possível viver em melhores condições,
irem às ruas e se manifestarem de várias formas. Tais mediações são centrais também para nos
precavermos diante de análises que, dando ênfase às recentes mudanças em relação à
conservação histórica, de um lado, propagandeiam o peso do “Brasil potência” como uma
“nação emergente” e, de outro, referendam a tese do subimperialismo, descolando o
“subdesenvolvimento” a sua existência historicamente condicionada. Vale lembrar que esta
condição – “subdesenvolvida” - não é mero produto do atraso que o crescimento econômico
mais acelerado possa superar, tal como já trabalhamos no capítulo anterior. Sobre isto,
recorremos novamente a Mandel (1982, p.263-264) quando ainda na segunda metade do século
XX nos sinaliza o seguinte:

O progresso relativo da industrialização em países como o Brasil (induzido pelo


capital estrangeiro) [...] é inegável. Seu ímpeto terminou gerando um capital
financeiro autônomo nesses países, ativo não apenas internamente, mas até mesmo
internacionalmente, com certo grau de independência do imperialismo ocidental,
apesar de sua íntima associação política e militar com este último. Esse fenômeno se
fez acompanhar, de modo típico, por certo desenvolvimento da indústria pesada
(siderurgia, petroquímica). Mas não é correto falar de “subimperialismo” nesses
casos. O surgimento do capital financeiro é apenas uma das muitas características que
devem estar presentes para que exista uma estrutura imperialista propriamente dita. A
maioria desses outros elementos está completamente ausente no Brasil [...] e
continuará ausente enquanto esses países forem capitalistas, por causa da limitação do
mercado interno, do atraso do setor agrícola nativo, do entrelaçamento dos interesses
financeiros, industriais e tecnocratas com os dos proprietários de terra, dos agiotas,
dos intermediários e das sociedades anônimas estrangeiras.
124

Embora esse assunto retorne mais adiante às nossas discussões para subsidiar a análise
mais contemporânea do desenvolvimento desigual e combinado e, portanto, da questão
regional, por ora, é importante destacá-lo no intuito de lembrarmos os aspectos estruturais e
conjunturais que incidem permanentemente na dialética entre mudança e conservação no
capitalismo. Para tanto, o entendimento sobre a realidade brasileira sem a mediação central da
sua condição de dependência certamente nos levaria a um emaranhado no caminho da pesquisa
em que nem mesmo no meio da travessia o real estaria presente. Afinal, “uma sociedade seria
subdesenvolvida não por ser pobre e economicamente atrasada” (SINGER, 2008, p.13), mas
por compor com o sistema capitalista de forma desigual e combinada na sua condição de
dependência que, inclusive, se difere de muitas outras composições também dependentes.
Nesses caminhos e descaminhos que integram o Brasil ao padrão de acumulação
capitalista, implicando o universal e o particular (GORENDER, 1980, p.65), quais são,
portanto, as bases elementares que, combinadas, sustentam o modo particular e atual de
desenvolvimento desigual no país diante da consolidação, de fato, dos processos de transição,
mesmo que pelo alto, e da revolução burguesa, mesmo que sem rupturas e pela via da
autocracia burguesa (FLORESTAN, 2006)? Em outras palavras, quais os aspectos centrais que
conformam nossa “especificidade particular” (OLIVEIRA, 2013)? As motivações a tais
questões não são novas, mas constituem um verdadeiro motor, no presente e no passado, na
vida daqueles que não estavam (ou estão) em busca apenas de interpretarem o mundo de
diferentes maneiras, mas também de transformá-lo (MARX; ENGELS, [1846] 1998). No caso
brasileiro, como resultado, temos uma gama de contribuições que buscaram as respostas, da
direita à esquerda, diante de tantas questões em momentos históricos distintos, contudo, como
diria Coutinho (2011, p.239), a tarefa coletiva de elaborar uma “Imagem do Brasil”, tendo, no
caso, como base o marxismo, “é uma tarefa sempre em aberto”.
“Que espécie de estímulo é necessário para perturbar uma forma determinada de
justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento, guia-la numa direção diferente ou
revolucioná-la?”. Já se perguntava Mandel (1982). Tomando tal questionamento para nosso
contexto, a identificação desse “estímulo” para guiar a realidade numa outra direção demanda
necessariamente o entendimento sobre como tem se configurado a “justaposição de
desenvolvimento e subdesenvolvimento” no Brasil e em suas regiões. Para tanto, já nos ensinou
o autor, “devem ser consideradas todas as variáveis básicas” do modo de produção capitalista.

Sobretudo, é preciso não esquecer que a exploração de regiões [...] e dos ramos de
produção tecnologicamente menos desenvolvidos não se limitam a suceder-se
125

temporalmente como fontes principais de superlucros, mas que, além disso, coexistem
lado a lado em cada uma das três fases do modo de produção capitalista. Uma
clarificação dessas combinações torna-se indispensável para uma compreensão do
capitalismo tardio. (MANDEL, 1982, p.72-73).

Grandes extensões de terras destinadas a produção agrícola para exportação;


“diferenciação crescente de classes e um mercado interno estagnado da ‘classe média’ para
baixo”; “subemprego e desemprego cada vez maiores”; “desperdício de recursos produtivos”;
“crescente dependência da tecnologia importada, usada muitas vezes de maneira irresponsável
e negligente em relação à consequências ambientais”; “dependência crescente das exportações
imperialistas de alimentos [...] monetarizada no mercado” mundial “ através de altos preços,
causados pela restrição artificial da oferta, quando necessário”; “impossibilidade de plena
industrialização”; aumento constante das “diferenças regionais de desenvolvimento,
industrialização e produtividade”; “situação de crise social permanente”; dentre outros aspectos
apontados por Mandel (1982, p.264) na caracterização da dependência no capitalismo tardio,
podem também resumir a nossa condição de dependência no passado e no presente?
Para não cairmos na busca incessante de uma “natureza específica do capitalismo neste
país” ou em uma frustrada tentativa de “estabelecer legalidade própria” (GORENDER, 1980,
p.58) ao invés de tentar contemplar nas nossas análises a “combinação específica de relações
de produção pré-capitalistas, semicapitalistas e capitalistas” (MANDEL, 1982, p.258), Lênin
(1982, p.375), ao identificar as particularidades do desenvolvimento (desigual) capitalista na
Rússia, nos oferece algumas boas pistas para nossas respostas, tal como já apresentamos no
capítulo anterior.
Certos de que, apesar de tantas diferenças, desde a realidade russa àquelas do próprio
continente latino-americano, é no desenvolvimento desigual e “duplamente contraditório”, que
atravessa não apenas o Brasil, que estão os determinantes de uma “especificidade nas
contradições humanas e sociais” (COUTINHO, 2011, p.163) e, portanto, da nossa “justaposição
de desenvolvimento e subdesenvolvimento” que (re)produz o peso do “atraso” ou da
conservação sem com isso anular a possibilidade da mudança.
Em busca das combinações que constituíram e viabilizaram até hoje o Brasil como
nação, é possível identificar nas análises dos principais intérpretes e construtores da “Imagem
do Brasil” (COUTINHO, 2011) o que há de mais comum na nossa modernização dependente:
a relação entre o monopólio da terra e o capital, o que para José de Souza Martins (1994)
representa a “aliança do atraso”, ou seja, quando o que há de mais sofisticado sobrevive do que
há de mais retrógrado.
126

Ao contrário do que ocorreu em outros países, inclusive naqueles onde também não
houve uma transição clássica para o capitalismo, permitindo, por exemplo, a completa
transformação da estrutura agrária e das relações sociais pré-capitalistas “fundadas na coerção
extraeconômica sobre o trabalhador” e na “velha classe rural dominante”, no Brasil, torna-se
peculiar a adaptação da grande exploração rural escravista, herdada da Colônia, ao capitalismo
que conserva a grande propriedade como também os traços servis nas relações de trabalho.
Desse modo, como já vimos, “[...] o que no Brasil se adaptou ‘conservadoramente’ ao
capitalismo não foi o domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifúndio peculiar:
uma exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada desde as origens para a produção de
valores de troca para o mercado externo) e fundada em relações escravistas de trabalho.”
(COUTINHO, [1990] 2011, p.205-206).
Podemos estabelecer uma relação entre o peso agrário do desenvolvimento capitalista
no Brasil com outras realidades, a exemplo da Rússia. Porém, esse peso constitui-se de forma
bastante diferenciada. Basta observarmos as palavras de Lênin ([1899] 1982, p.203-204) ao
tratar do desenvolvimento do capitalismo russo e o papel do que ele vai denominar de
“capitalismo agrário” na época:

[...] o capitalismo agrário é, na Rússia, uma força progressista notável. [...] O


capitalismo rompeu, pela primeira vez, com o caráter restrito de classe da posse da
terra, transformando esta em mercadoria. [...] o capitalismo agrário sacudiu pela
primeira vez a estagnação secular da nossa agricultura, de um imenso impulso à
transformação da sua técnica, ao desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
social.

Diferentemente dessa realidade onde, de fato, existiu o campesinato e relações


tipicamente feudais, o processo de generalização das relações capitalistas por lá demandou uma
“desintegração do campesinato”, a formação da “burguesia camponesa” e, como consequência,
a criação de um mercado interno que incorporou frações das classes subalternas, fruto dessa
desintegração, inclusive o próprio “proletário rural” que, mesmo “consumindo menos que o
camponês médio, e consumindo produtos de má qualidade”, passou a comprar mais. (LÊNIN,
[1899] 1982, p.118).
O caso brasileiro desdobrou-se de forma bem diferente. Para termos uma ideia da nossa
“peculiaridade”, basta folhearmos algumas obras literárias do nosso modernismo cujo cenário
comum se remete ao início do século XX e, não por acaso, às regiões onde o peso do atraso
possui menos disfarces, a exemplo do Nordeste brasileiro.
127

“Que valeria aquela vida de usina, vendo tanta gente morrer e a fome andando pelo meio
do povo, com mais impiedade que pela casa de Jesuíno?”. Eis a indagação que se apresenta ao
leitor do romance Menino de Engenho de José Lins do Rego ([1932] 2012, p.345) revelando o
quadro de decadência do Nordeste canavieiro, centrado no Engenho, dando lugar a moderna
Usina que “não permitia que o povo ocupasse um pedaço de terra que fosse boa de cana”.
(REGO, 2012, p. 102).
Em outra obra, Vidas Secas, de Graciliano Ramos ([1938] 1982), é possível observar o
mesmo contexto sob outra percepção:

Sinhá Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-


se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No
dia seguinte, Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações
de sinhá Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a
explicação habitual: a diferença era proveniente de juros. [...] Não se conformou:
devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que ele era bruto,
mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se
descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco,
entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como
negro e nunca arranjar carta de alforria! (Ibid., p. 93).

De fato, a literatura brasileira da época já escancarava a base primeira da nossa


“justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento”: a questão agrária como interface
da questão social, sendo decisivo tal entendimento para a compreensão das formas históricas
assumidas pelas relações de produção e reprodução do capital - a configuração e natureza das
classes sociais, da exploração (e expropriação) do trabalho e do Estado “mediante os interesses
de classes vinculados à propriedade territorial na composição política do poder interferindo nas
grandes transformações operadas na vida da nação”. (IAMAMOTO, 2007, p.136). Tais
condições revelam o caráter híbrido das relações capitalistas no país, tendo como principal
expressão o pauperismo no campo e nas cidades53 “como entrecruzamento de concentração de

53 “Com o desenvolvimento do capitalismo no campo e o domínio do capital sobre a agricultura daí resultante, a
demanda de trabalho sofre na economia agrícola uma diminuição relativa e, depois, uma diminuição absoluta, à
medida que o capital se acumula. Uma parte da população do campo, arruinada pela concorrência e pela espoliação,
bem como a parte deslocada pelo progresso técnico, 'está sempre a ponto de se converter em população urbana ou
manufatureira e à espera que ocorram circunstâncias que favoreçam essa conversão'. Para a cidade, já que a piora
das condições de vida no campo não lhes permite mais ali permanecer, vão, ao lado dos mais aptos, também os
mais pobres, aqueles que 'já puseram um pé na lama do pauperismo'. As correntes migratórias normalmente afluem
em ritmo lento, mas – é Marx quem diz – há 'momentos excepcionais em que os seus canais de descarga se abrem
ao máximo'. Nesses momentos a superpopulação relativa ou o aumento excessivo do exército de reserva do
trabalho atinge proporções extraordinárias ou mesmo alarmantes, porque muitos dos migrantes não conseguem
ingressar no mercado de trabalho e seu padrão de vida cai abaixo dos níveis de subsistência. O pauperismo cresce:
'sua produção está compreendida na produção da superpopulação relativa, sua necessidade, na necessidade
daquela; o pauperismo forma, com a superpopulação relativa, uma condição de existência da riqueza capitalista'.”
(GUIMARÃES, 2008, p.26).
128

propriedade e de concentração de renda (entrecruzamento que envolve, naturalmente, a


concentração de poder político)” (NETTO, 2008, p.14).
Para Coutinho (2011), referindo-se mais precisamente a Graciliano Ramos e ao romance
mais acima citado, o enredo que envolve o personagem principal, Fabiano, é fruto do “caráter
retrógrado e improdutivo da nossa estrutura agrária, inteiramente inadequada para propiciar um
nível de vida até mesmo medíocre aos trabalhadores rurais brasileiros”. Diferentemente de
muitos países.

Obstaculizando o avanço das forças produtivas e dispersando os camponeses, o


latifúndio – o monopólio da terra – torna-se a causa da exploração e da miséria no
campo brasileiro; é o latifúndio – e não a seca, que só tem efeitos catastróficos por
causa da estrutura social de dominação da natureza, que tem no monopólio da terra a
sua peça central – que encarna o ‘mundo convencional e vazio’ que impede Fabiano
de levar uma vida autêntica e humana. (COUTINHO, 2011, p.177).

Para o autor, as obras literárias que compõem o romance nordestino expressam,


finalmente, “um grande protesto [...] contra o modo ‘prussiano’ de modernizar o país”. Retratam,
portanto, os problemas não apenas do sertão nordestino, das classes subalternas nordestinas ou
de uma região em si, mas a problemática do povo e da nação brasileira que tem por base a
devastação e a degradação humana provocada pelo latifúndio que se perpetua na conversão do
velho engenho em usina moderna. (COUTINHO, 2011, p.25). Por que foi e continua sendo
assim? Simplesmente para viabilizar e sustentar o emergente padrão de acumulação do capital
que, diante das circunstâncias encontradas, sofreu certas adequações a fim de evitar rupturas
que inviabilizasse a nossa modernização dependente. Tudo isso possibilitou, mesmo dentro de
um desenvolvimento tardio, o estabelecimento de combinações avançadas do ponto de vista do
grau de exploração e expropriação da força de trabalho exigido pelo capitalismo, inclusive, na
sua fase mais recente.
O complexo econômico periférico do capitalismo brasileiro demonstra o quanto a lei do
valor e os ensinamentos da Crítica da Economia Política são operantes - mesmo com tônicas e
variações - no nosso tempo e em um contexto histórico um tanto diferenciado daquele em que
Karl Marx se apoiou.
O peso da questão agrária é estruturalmente relevante na constituição de um modus
operandi das relações de trabalho, de produção e reprodução social da formação brasileira,
constituindo um circuito pautado centralmente em condições de exploração extraordinária da
força de trabalho, na concentração de renda e de poder. Por que e como? Tais perguntas
encontrarão suas respostas, ou ao menos suas sinalizações, no processo de constituição da
129

sociedade urbano-industrial e na sua relação orgânica com o padrão de acumulação no campo


brasileiro, momento em que se tornam mais explícitas as mudanças frente à conservação.
Contudo, tais alterações não anulam a “devastação e a degradação humana” sobre a qual
Coutinho (2011) nos fala, agora não mais provocada pelo latifúndio em si, mas por sua aliança
com o capital. Como ilustração, vejamos um trecho de outro importante romance nordestino:

Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo
os sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas. [...] Angustiado, Chico Bento
apalpava os bolsos... nem um triste vintém azinhavrado... [...] O vaqueiro saiu com a
rede, resoluto: - Vou ali naquela bodega, ver se dou um jeito... Voltou mais tarde, sem
a rede, trazendo uma rapadura e um litro de farinha. [...] Faminta, a meninada avançou
[...]. De manhã cedo, Mocinha foi ao Castro, ver se arranjava algum serviço, uma
lavagem de roupa, qualquer coisa que lhe desse para ganhar uns vinténs. [...]
Duramente Chico Bento trabalhou todo o dia no serviço da barragem, sentindo acabar
o fôlego. Só de longe em longe parava para descansar o pobre peito cansado e os
músculos vadios. E o almoço, ao meio-dia, onde, junto ao pirão, um naco de carne
cheiroso emergia, mal o soergueu e animou. [...] já era tão antiga, tão bem instalada a
sua fome, para fugir assim, diante do primeiro prato de feijão, da primeira lasca de
carne!.. E até lhe amargou o gosto daquela carne, lembrando-se de que Cordulina, a
essa hora, engolia talvez um triste resto de farinha, e junto dela, devorada a magra
ração, os meninos choravam... Mas, à tarde, quando sentiu tinir no bolso o jornal
ganho, um novo sentimento o animou. Tinha finalmente algum dinheiro - só dois
níqueis, é bem verdade! – mas dinheiro ganho com seu esforço, com os calangros dos
seus braços, e que o auxiliaria a alimentar a filharada esfomeada... [...]. Ele trazia um
pão, rapadura e um pouco de café. E o alvoroço da meninada que o acolheu, e lhe
arrebatou as compras, bem lhe pagou as tristes horas do dia, curvado sobre a pá, em
tempo de morrer de calor e cansaço... (QUEIROZ, [1930] 1937, p.20-46).

Mais uma vez o cenário tipicamente regionalista, no caso, de O Quinze de Raquel de


Queiroz, nos revela traços do novo que já nasce tão velho em pleno século XX. O contexto de
fome, das migrações e de formas degradantes de exploração e expropriação do trabalhador
sertanejo representado por episódios como esse retratado pela escritora cearense, refere-se, na
verdade, ao processo que constitui nossa acumulação primitiva, viabilizando a ascensão da
economia urbano-industrial como também as próprias condições para reprodução da expansão
capitalista a partir desse momento.
Alguns dos aspectos retratados sofrerão modificações ao passar do tempo, mas outros
se perpetuarão até os nossos dias, compondo a configuração do capitalismo dependente
brasileiro. Tal condição – de dependência -, na verdade, aprimorou-se e aprofundou-se com a
consolidação e espraiamento da acumulação do capital por aqui. Diante dessa “transição” para
a ascensão industrial na primeira metade do século XX, vale lembrar novamente da importância
de levar em consideração fatores internos e externos. Sobre estes, observemos a seguinte
problematização:
130

Que fatores podem causar uma modificação abrupta das diferenças em níveis de
produtividade? [...] A exemplo da questão das fontes de superlucro no modo de
produção capitalista, esses problemas tampouco podem ser solucionados com uma
única fórmula. Também nesse caso devem ser consideradas todas as variáveis básicas
desse modo de produção. Sobretudo, é preciso não esquecer que a exploração de
regiões agrícolas, a exploração de colônias e semicolônias e a exploração dos ramos
de produção tecnologicamente menos desenvolvidos não se limitam a suceder-se
temporalmente como fontes principais de superlucros, mas que, além disso, coexistem
lado a lado em cada uma das três fases do modo de produção capitalista. Uma
clarificação dessas combinações torna-se indispensável para uma compreensão do
capitalismo tardio. (MANDEL, 1982, p.72-73).

E é exatamente a combinação entre a expansão de um enorme contingente de mão-de-


obra, o permanente monopólio da terra 54, formas de exploração do trabalho extraeconômicas
(semi ou pré-capitalistas) e a remuneração (monetária e não-monetária) bem abaixo do valor da
reprodução da força de trabalho, refletindo num baixíssimo padrão de vida do produtor direto,
mesmo com o aumento da produtividade do trabalho, o núcleo central da dinâmica capitalista
no Brasil, sob a interferência direta do Estado que subsidia toda a infraestrutura de sustentação
dessa combinação, socializando parte dos custos da reprodução da força de trabalho. Essa
dinâmica subsidiaria uma espécie de “superexploração do subproletariado”, fenômeno que,
segundo Mandel (1982, p.128), não atinge apenas os países dependentes. Daí a importância em
situar também a política de Assistência Social e demais políticas sociais via Estado, o que a
nosso ver será um aspecto central para revelar as conexões entre essa dinâmica e o Brasil
contemporâneo. Afinal:

De um lado, as flutuações em seu nível de emprego são muito maiores do que no caso
dos trabalhadores “estáveis”, “chefes de família”. De outro, recebem muito menos por
sua força de trabalho, uma vez que a burguesia cinicamente pressupõe que sua renda
seja apenas um “complemento” ao “orçamento familiar”. Muitas vezes seus salários
se mostram inadequados até mesmo para a reconstrução física de sua força de trabalho,
de maneira que, para garantir a custo a sobrevivência, são obrigados a recorrer à
beneficência, ao seguro social, á busca “ilegal” de recursos, e assim por diante. Dessa
forma, parte dos custos de reprodução de sua força de trabalho é “socializado”.
(MANDEL, 1982, p.128)

Voltando ao “problema agrário”, deve-se dizer que a sua “solução” se deu por aqui de
forma bem distinta de outros países, não demandando, por exemplo, ampliação do consumo
dos trabalhadores rurais nem diversificação da produção. Isso refletiu também na indústria e

54 O monopólio da terra no país tem sido palco para enredos da vida real tão bem anunciados por Sodré (1980,
p.155) no século passado e que continuam tão presentes, fazendo-nos perceber o quanto o “[...] Brasil arcaico nos
cerca de todos os lados; o latifúndio persiste, resiste, abalado, mas sobrevivendo a tudo. As alterações agrárias
processam-se pela duríssima via prussiana: todos os dias estamos assistindo a episódios, choques e escândalos
dessa via tortuosa, que inflige sofrimento e miséria às massas camponesas, mantidas em secular atraso, ainda nos
primeiros esforços de organização e nas primeiras luzes da tomada de consciência.”.
131

nas cidades, com o avançar do processo de urbanização, tal como veremos mais adiante,
expressando como, de fato, algumas características não ficaram presas no tempo do sistema
colonial, onde as “classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as
economias internas, nem elevar os níveis técnicos e culturais da população”. O que de fato
ocorria era uma funcionalidade da imensa miséria no campo e na cidade, “tão lucrativa do ponto
de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de
consumo.” (GALEANO, 2008, p.49).
Segundo Oliveira ([1972] 2003, p.43), trata-se na verdade de um “complexo de soluções
cujo denominador comum reside na permanente expansão horizontal da ocupação com
baixíssimos coeficientes de capitalização e até sem nenhuma capitalização prévia: numa palavra,
opera com uma sorte de ‘acumulação primitiva’.”. Este conceito, elaborado por Marx ao retratar
o processo de expropriação dos camponeses como condição precípua para a acumulação
capitalista, para o autor, deve ser repensando levando em consideração os “nossos fins” e, desse
modo, algumas peculiaridades nossas, tais como o fato de não ter ocorrido um processo de
expropriação da propriedade, mas do “excedente que se forma pela posse transitória da terra”
por intermédio, por exemplo, da figura do “parceiro” ou “morador”. Este, ao receber uma
parcela da terra cedida temporariamente pelo proprietário, ocupa, trabalha e cultiva a terra tanto
nas lavouras temporárias (de sua subsistência) como nas permanentes (comerciais) ou pastagens,
do proprietário, e em troca tem como pagamento da sua força de trabalho parte da produção,
sua moradia e comida. “Há, portanto, uma transferência de ‘trabalho morto’, de acumulação,
para o valor das culturas ou atividades do proprietário, ao passo que a subtração de valor que
se opera para o produtor direto reflete-se no preço dos produtos de sua lavoura, rebaixando-os.”
(OLIVEIRA, 2003, p.43).
Eis as circunstâncias centrais para se forjar um “proletariado rural” no Brasil, servindo
tanto às culturas comerciais como as de subsistência, tanto ao mercado interno como externo.
Tais condições, vale lembrar, estão conectadas com o processo de gênese da questão agrária no
capitalismo caracterizada por Marx ([1867]1984, p.282) através da “intermitente e sempre
renovada expropriação e expulsão do povo do campo”, fornecendo “à indústria urbana mais e
mais massas de proletários”. Esse processo confunde-se com a necessária criação do mercado
interno em cada país, mesmo que com todas as particularidades desse mercado no Brasil.55

55
“A expropriação e a expulsão de parte do povo do campo liberam, com os trabalhadores, não apenas seus meios
de subsistência e seu material de trabalho para o capital industrial, mas criam também o mercado interno. […]
Essas matérias-primas e esses meios de subsistência tornaram-se agora mercadorias; o grande arrendatário as
vende e nas manufaturas encontra ele seu mercado...” (MARX,1984, p.283-284).
132

Portanto, é possível repensar o processo de acumulação primitiva enquanto fenômeno


estrutural, presente não apenas na gênese do capitalismo, fruto de uma combinação permanente
entre a grande oferta de mão-de-obra e de terras. Afinal, “em certas condições específicas,
principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação
primitiva é estrutural [...].” (OLIVEIRA, 2003, p.43). Em outras palavras, o próprio Marx (1984,
p.295) já nos sinaliza tal condição quando nos diz, observando o contexto de sua época, o
seguinte: “Na Europa ocidental, [...] o processo de acumulação primitiva está mais ou menos
completado. [...] As coisas são bem outras nas colônias. O regime capitalista choca-se lá por
toda parte contra a barreira do produtor [...]. A contradição desses dois sistemas econômicos
diametricamente opostos afirma-se aqui praticamente na luta entre eles.”.
Por isso, esse processo de acumulação originária do capital se depara em realidades
como a brasileira, com passado colonial, com maiores impasses ligados a forma particular de
desenvolvimento desigual como o próprio “fato de existir um fluxo constante de renda para o
exterior”, tal como nos lembra Sodré (1980, p.151-152). E acrescenta: “a acumulação primitiva,
nos casos de economia colonial como nos casos de economia dependente [...] não pode ser [...]
compreendida quando não vista como particular de um processo que Marx [...] apreciou no
nível universal. [...] No Brasil, essa etapa [...] está ocorrendo ainda hoje.”. É nesse sentido que
Fernandes ([1968] 2008, p.181), ao tratar do capitalismo agrário e da formação da sociedade de
classes no Brasil, nos diz que “privado de outras fontes de expropriação de riquezas, o Brasil
dependeu e ainda depende da economia agrária como recurso ou técnica de acumulação
originária de capital.”.
Esse modelo permite o crescimento industrial e agrícola, a elevação de produtividade e
o surgimento do operariado urbano e rural, pós-1930, sem que haja concomitante a esse
processo o aumento dos custos da produção agrícola em relação á industrial. O custo de
reprodução da força de trabalho urbana tem, portanto, relação direta com o peso do exército
industrial de reserva, avolumado diante da ausência de uma reforma agrária, do monopólio da
terra e de melhores condições de vida e trabalho no campo, onde há um maior peso da
combinação de formas capitalistas e não-capitalistas, arcaicas e modernas, que,
consequentemente, influencia num constante rebaixamento tanto do custo da reprodução da
força de trabalho como da própria produção de alimentos. A redução do custo real da
alimentação (determinado pelo custo de reprodução da força de trabalho rural) com a produção
de excedentes alimentícios, por fim, rebate no rebaixamento também do custo da reprodução
da força de trabalho na cidade e dos salários dos trabalhadores urbanos.
Diante desse contexto, Francisco de Oliveira (2003, p.47) chamará atenção novamente
133

para a nossa “especificidade particular” expressa, por exemplo, no fato da indústria no país,
como tal, não demandar o “mercado rural como consumidor”, diferentemente de outros países
como a própria Rússia. Esse quadro “nada tem a ver com a oposição formal de quaisquer setores
‘atrasado’ e ‘moderno’ [...] por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética”.
Daí a completa funcionalidade do atraso atraindo para si a força da pauperização absoluta,
mesmo que combinada com a relativa. Esse processo é explicado por Martins (1994, p.70-80)
com outras palavras:

Ao contrário do que ocorria com o modelo clássico da relação entre terra e capital, em
que a terra (e a renda territorial, isto é, o preço da terra) é reconhecida como entrave
à circulação e reprodução do capital, no modelo brasileiro o empecilho à reprodução
capitalista do capital na agricultura não foi removido por uma reforma agrária, mas
pelos incentivos fiscais. O empresário pagava pela terra, mesmo quando terra sem
documentação lícita e portanto produto de grilagem, isto é, de formas ilícitas de
aquisição. Em compensação, recebia gratuitamente, sob a forma de incentivo fiscal, o
capital de que necessitava para tornar a terra produtiva. O modelo brasileiro inverteu
o modelo clássico. Nesse sentido, reforçou politicamente a irracionalidade da
propriedade fundiária no desenvolvimento capitalista, reforçando, consequentemente,
o sistema oligárquico nela apoiado. Com a diferença, porém, de que a injeção de
dinheiro no sistema de propriedade modernizou parcialmente o mundo do latifúndio,
sem eliminá-lo [...].

De fato, os contornos do desenvolvimento desigual por aqui possibilitaram uma


combinação peculiar entre formas capitalistas e pré-capitalistas. Estas, antes de serem
obstáculos, tornaram-se verdadeiras alavancas para o desenvolvimento capitalista, expressas,
por excelência, nas relações de trabalho que tencionam aos “baixos padrões de vida dos
trabalhadores, e pois ao reduzido custo da mão de obra que emprega [o ‘negócio’ da
agricultura]”, já nos disse Caio Prado Jr. ([1966] 2004).
Nessa simbiose, tal como nos apresenta Mazzeo (1995, p.09), o capitalismo “apropria-
se das formas de trabalho e de produção dos modos de produção que antecederam [...] formas
de apropriação de mais-valia que não as tipicamente de conteúdo capitalista”, incorporando-as
em sua estrutura “dando a essas formas pré-capitalistas conteúdo capitalista”. Em virtude dessas
circunstâncias, o modo de resolução da questão agrária no Brasil operou-se onde “o velho
latifúndio se tornou capitalista sem perder muitas de suas velhas características, em particular
o uso e o abuso de formas de ‘coerção extraeconômica’ sobre o trabalhador.” (COUTINHO,
2011, p.232). Frente a isso, a necessidade de observamos as conexões entre tais aspectos e a
realidade brasileira dos anos 2000, na qual se encontra o sentido do desdobramento desta
pesquisa, nos questionamos sobre o que teria, portanto, ocorrido no recente contexto brasileiro
que o conecta (e desconecta) dessa lógica de ser tendencial da formação social brasileira? Teria
ocorrido, como em poucos momentos da história do Brasil, a redução das desigualdades como
134

alavanca para o desenvolvimento econômico? Ou apenas a redução temporária da pobreza com


a reprodução da desigualdade? Houve alguma alteração da questão agrária? E na relação
arcaico-moderno? Fiquemos com essas questões e façamos tal como o personagem principal
do romance de Guimarães Rosa ([1956] 2001, p.31): “para pensar longe”, ser como um cão
mestre – se alguém solta uma ideia ligeira, rastreemos “por fundo de todos os matos, amém!”.
Por ora, é importante notar que, tanto ontem como hoje, as circunstâncias prevalentes
não são ancoradas apenas nas relações internas. Lembremos novamente o quanto a “agricultura,
nesse modelo, [...] tem uma contribuição importante na compatibilização do processo de
acumulação global da economia.” (MANDEL, 1982, p.47). Afinal, com toda a modernização,
não deixamos de ser um país agroexportador e dependente. (Basta observarmos o papel do
agronegócio nos últimos anos). Esse traço recai ainda mais sobre o rebaixamento de matérias-
primas e alimentos, tendo em vista que, no âmbito da economia mundial, “a contradição entre
o valor de uso e o valor de troca das mercadorias exprime-se no fato de que a dependência
ampliada do imperialismo em relação às matérias-primas exportadas pelos países coloniais é
acompanhada por um declínio relativo nos preços pagos por essas matérias-primas e por um
declínio relativo em seu valor”. (MANDEL, 1982, p.46). Recordemos também o papel da troca
desigual e dos superlucros trabalhados no Capítulo 1 que, apesar de sofrer alterações frente a
ascensão do capitalismo monopolista, perpetuam a sua marca histórica. Estaríamos
presenciando mudanças de forma, não do conteúdo do subdesenvolvimento? Eis o que nos diz
Mandel (1982, p.259):

[...] em última instância, a transferência de valor não está vinculada a nenhum tipo
específico de produção material, nem a nenhum grau específico de industrialização,
mas à diferença entre os respectivos graus de acumulação de capital, de produtividade
do trabalho e de taxa de mais-valia. Só se houvesse uma homogeneização geral da
produção capitalista em escala mundial é que as fontes de superlucros secariam. Sem
essa homogeneização, tudo o que muda é a forma do subdesenvolvimento, não o seu
conteúdo.

Dando continuidade a caracterização do circuito de acumulação capitalista no Brasil


enquanto modernização dependente, é preciso ressaltar ainda um importante aspecto:
considerando que o preço da força de trabalho urbana também diz respeito ao custo de bens e
serviços propriamente urbanos, estes são demandados, sobretudo, em um momento virtuoso de
industrialização e de aceleração de crescimento, por exemplo, a partir da década de 1950,
enquanto trabalho socialmente necessário para a reprodução das condições de sobrevivência
capitalista. Contudo, além do cenário de considerável desprovimento por parte das cidades
brasileiras em relação a tais serviços, especialmente nas regiões mais pobres, estes, por outro
135

lado, também não podem, nem devem, se constituírem com uma intensidade simultânea de
capitalização “sob pena de concorrerem com a indústria propriamente dita pelos escassos
fundos disponíveis para a acumulação capitalística” (OLIVEIRA, 2003, p.56). Vale destacar
que o proletário rural é também elo fundamental dessa engenharia toda.
Essa condição interfere diretamente na divisão do trabalho, mais precisamente na sua
interdição ou estagnação, implicando, por conseguinte, em uma economia pautada centralmente
em produtos primários e em uma tecnologia retardatária, “bloqueando qualquer avanço
sistemático da industrialização e reforçando e perpetuando o subdesenvolvimento”. “Por esse
motivo Marx afirmou expressamente que, na alvorada do capitalismo, o desenvolvimento da
indústria nas cidades fabris é acompanhado pela destruição da indústria nos 'países dependentes'”
(MANDEL, 1984, p.58-59). Em outras palavras, a menor rotação de capital nos países centrais
implica em uma maior rotação nos países dependentes tal como uma menor composição
orgânica do capital nos primeiros, demanda uma realização mais rápida da mercadoria nos
segundos, conformando da divisão internacional do trabalho.
Assim, o tão detestável “inchaço do setor de serviços”, ao contrário daqueles que o trata
como uma disfunção no esquema econômico entre setores “primário, secundário e terciário” -
conforme “modelo de Clark” (Ibid.) - é também funcional a expansão capitalista no Brasil.
Afinal, diante de um crescimento industrial com uma “base de acumulação capitalista
razoavelmente pobre”, há exigência do apoio de serviços urbanos como parte da divisão social
de trabalho da fábrica em si. “Tal contradição é resolvida mediante o crescimento não-
capitalístico do setor Terciário” que possa subsidiar uma redução do custo da força de trabalho
e de sua reprodução no contexto urbano, sinaliza Oliveira (2003, p.57). Portanto:

[...] os serviços realizados a base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis
baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte
capitalista, uma fração do seu valor, “mais-valia” em síntese. Não é estranha a
simbiose entre “moderna” agricultura de frutas, hortaliças e outros produtos de granja
com o comércio ambulante? [...] Esses tipos de serviços, longe de serem excrescência
e apenas depósito do “exército industrial de reserva”, são adequados para o processo
da acumulação global e da expansão capitalista e, por seu lado, reforçam a tendência
à concentração de renda. (OLIVEIRA, 2003, p.57-58).

Daí se perguntar: por que, apesar de tanto desenvolvimento e crescimento


econômico, ainda há a plena compatibilidade entre o moderno agronegócio e a figura dos
atravessadores? Por que não temos nas cidades, muito menos no campo, infraestrutura coletiva
no âmbito dos serviços suficiente para que não se dependa tanto do trabalho doméstico familiar
e do transporte particular? O circuito da dependência e o “círculo vicioso do
136

subdesenvolvimento” 56
explicitam que mais vale empregadas domésticas recebendo
baixíssimos salários, mulheres e homens realizando constantemente o trabalho não pago
necessário a sua reprodução em cidades intrafegáveis que um dispêndio de recursos destinados
a estruturas coletivas que não propiciam lucro suficiente com o rebaixamento da força de
trabalho urbana que depende desses mesmos serviços abundantes e degradados e boa parte
dessa força de trabalho não pode ao menos consumir tais serviços demandados.

Trata-se de uma verdadeira “produção da produção”, uma ampliação da produção sem


uma ampliação correspondente do consumo. [...] uma contradição que corresponde à
própria natureza do capitalismo [...]. É precisamente essa ampliação da produção sem
a respectiva ampliação do consumo que corresponde à missão histórica e à sua
estrutura social específica: a primeira consiste em desenvolver as forças produtivas da
sociedade e a segunda exclui a massa da população do usufruto das conquistas
técnicas. Há uma inequívoca contradição entre a tendência ilimitada à ampliação da
produção [...] e o consumo limitado das massas populares [...]. (LÊNIN, [1899] 1982,
p.25)

É, então, desse importante circuito que sobrevive o capital por aqui, perpetuando, com
o crescimento industrial, as formas arcaicas de produção especialmente no campo. Isso seria
inviável sem as elevadas desigualdades regionais, inclusive entre urbano e rural, como também
a agigantada concentração de renda da economia brasileira. Por isso tanto empenho por parte
do Estado e das classes que o controlam em deslegitimar e atacar os direitos trabalhistas
particularmente dos trabalhadores rurais que tiveram, por exemplo, a garantia da previdência
social muito tardiamente, sendo até hoje ameaçadas. 57
Em resumo, esse “modelo permite a diferenciação produtiva e de produtividade” através
da elevada exploração de trabalhadores com base na “manutenção de baixíssimos padrões do
custo de reprodução da força de trabalho e portanto do nível de vida da massa trabalhadora
rural”. (OLIVEIRA, 2003, p.45). Trata-se, assim, de um complexo arcaico-moderno
dialeticamente pautado pelo desenvolvimento tardio, pela modernização dependente e

56 “A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países semicoloniais, dependentes,
do que nos países imperialistas indubitavelmente possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos
mundiais – o que explica, em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se mais
lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial […]. Em resultado, é travada a
concentração de capital, impedida a expansão da produção, promovido o escoamento de capital para esferas não
industriais e improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e subempregados.
Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na alegada insuficiência da renda nacional,
acarretando uma taxa insuficiente de poupanças” (MANDEL, 1984, p.45).
57
“Após a aprovação da reforma trabalhista na Câmara dos Deputados, a bancada ruralista na Casa, com apoio do
governo Temer, pretende discutir agora legislação específica para os trabalhadores rurais. O Projeto de
Lei 6.442/2016 [...] suspende a aplicação da CLT aos trabalhadores do campo e pretende limitar a atuação
da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho”. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2017/05/02/reforma-trabalhista-rural-quer-acabar-ate-com-salario-do-
trabalhador-do-campo/>. Acesso em: 12. nov. 2017.
137

acumulação primitiva estrutural. O imperativo desse complexo incidirá sobre a divisão regional
do trabalho, a configuração do Estado brasileiro e suas formas predominantes de enfrentamento
a questão social na sua dimensão regional no contexto do capitalismo monopolista, do
desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Assunto este que nos deteremos nos próximos itens
como um passo a mais no exercício de pensar longe, sem, no entanto, perder o tino para o
terreno fértil da realidade, em seu movimento que também nos move junto. Continuemos, então,
nesse afina e desafina em busca da “verdade maior”, mesmo que imperfeita, parcial e inacabada,
mas que responda aos objetivos da tese aqui elencada por nós desde o início.

2.3. Estado brasileiro, questão social e o Nordeste na era monopolista

“A problemática brasileira de nosso tempo se centraliza […] em torno do


‘desenvolvimento’”. Essas palavras, escritas por Caio Prado Júnior em História e
Desenvolvimento, de 1972, poderiam muito bem servir para expressar a realidade de um país
que já ultrapassou a primeira década dos anos 2000 e que ainda carrega o peso da questão do
desenvolvimento, trabalhada na opinião pública quase como uma extensão do famigerado
“crescimento econômico”, “condição precípua para assegurar ao país e à generalidade de seu
povo o […] bem-estar material e moral que a civilização e cultura modernas são capazes de
proporcionar. Isto se encontra na consciência de toda a geração de nosso tempo”, enfatiza o
autor (PRADO, 1972, p.17).
Algumas décadas antes, José Lins do Rego ([1932] 2012) descrevia, através do romance
Menino de Engenho, a passagem do engenho para a grande usina, junto a isso as transformações
nas relações cotidianas, no trabalho, na configuração do espaço e nas expectativas da população
frente ao tão sonhado desenvolvimento diante do súbito crescimento econômico via
industrialização. Esta associada diretamente a maiores oportunidades para aqueles que
carregavam consigo um desejo, “uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar! [...], [de]
penetrar num vasto campo luminoso onde tudo fosse beleza, e harmonia, e sossego [...]. Mas o
cansaço [...] amolentava. Recordando a labuta do dia [...] da eterna luta com o sol, com a fome,
com a natureza.” (QUEIROZ, [1930] 1937, s/p). Vejamos como esse processo é retratado pelo
escritor:

Só o dr. Luís olhava para tudo aquilo, medindo, avaliando, comparando. Falavam-lhe
138

das maravilhas da fabricação, que seria a outra usina naquele ano. Seiscentas toneladas
de cana, dando oitocentos sacos de açúcar por dia. De fato, se fosse verdade, aquela
gente nunca mais saberia o que era dificuldade. [...] Tinha orgulho da fábrica que, em
breve, seria tão forte e poderosa como uma Tiúma. Se o Vertente fosse de maior curso
teria energia para eletrificar os seus aparelhos, teria força de graça para mover as
turbinas, arrastar os ternos de moenda, esmagar cana, como a Tiúma fazia, sem gastar
um pau de lenha. [...] A verdade era que tirara a família daquela miséria de moer cana
em bangüê, dando aos seus uma oportunidade de subirem de vida. [...] Fizera a Bom
Jesus e contara com o pessoal para as reformas. Mas iriam ver o que era uma usina
perfeita. (REGO, [1932] 2012, p.211-214).

De fato, o crescimento econômico industrial trouxe consigo enorme possibilidade de


mudanças na sociedade e, efetivamente operou-as, ao menos em parte ou nos limites possíveis
da nossa modernização dependente. “Ora, entre os anos 1939 e 1969, a participação do produto
do [setor] Secundário no produto líquido passa de 19% para quase 30%, enquanto a força de
trabalho no setor vai de 10% a 18%.” (OLIVEIRA, 2003, p.55). Tratava-se do processo
impulsionador da socialização do trabalho pelo capitalismo que, para Lênin ([1899] 1982,
p.375), em sua análise sobre o desenvolvimento do capital na Rússia, se manifesta através de
mudanças não apenas na natureza do trabalho, mas na própria “estatura moral da população”.
Afinal, a natureza desigual da economia, “a transformação dos métodos de produção, a enorme
concentração da produção, o deperecimento de todas as formas de dependência pessoal e de
patriarcalismo [...], a mobilidade da população, a influência dos grandes centros industriais –
tudo isso só pode levar à mudança profunda do caráter mesmo dos produtores [...]”. Contudo,
a história demonstra que esse processo é limitado pelo próprio desenvolvimento capitalista que
combina patriarcado e colonialismo com as mais sofisticadas formas de produção da vida em
sociedade.
Assim, por um lado, podemos estabelecer todo sentido entre as palavras de Lênin ([1899]
1982) e as transformações sofridas no Brasil desde a metade do último século até hoje,
especialmente em regiões com maior peso do “atraso” como o Nordeste, fazendo, por exemplo,
com que, através de políticas sociais, mesmo que ainda limitadas e insuficientes, parte de uma
geração tenha mais expectativas para o futuro, rompendo com um cotidiano pautado
unicamente pelos ciclos interrompidos de estudos, trabalho precoce, falta de água etc. 58 Na
realidade mais recente dos anos 2000, sobre a qual está voltada com maior centralidade nossa
pesquisa, esse traço é marcante, o que incidiu inclusive nos fluxos migratórios. Essa realidade,
em certa medida, pode nos servir de exemplo sobre como, contraditoriamente, um maior

58
Sobre isso, ver a reportagem intitulada “Rompendo ciclos: a nova cara do sertão. A juventude do interior
nordestino interrompe ciclo de pouco estudo e trabalho precoce”, publicada no Jornal Brasil de Fato, 2017.
Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2017/10/31/rompendo-ciclos-a-nova-cara-do-sertao/>. Acesso
em: 11.nov.2017.
139

desenvolvimento das relações capitalistas e espraiamento do trabalho assalariado pode refletir


um fenômeno progressista. Agora, saber se essas regiões se tornaram efetivamente menos
dependentes e “atrasadas” e até que medida tais mudanças são duradouras, propícias a serem
impulsionadas a um salto histórico regressivo ou progressivo é uma questão que, por enquanto,
ficaria apenas à mercê do arbítrio de quem escreve estas linhas. Por isso, deixaremos para ser
tratado ulteriormente.
Por ora, lembramos que no Brasil o capitalismo apenas se tornou um modo de produção
hegemonicamente operante quando entrou em contradição com a formação social pautada no
trabalho escravo e, tal como nos sinaliza Martins (1994, p.55), “anunciava a possibilidade de
transformações sociais, de superação dos bloqueios sociais e econômicos a que suas
virtualidades se manifestassem numa realidade social transformada e nova.”. Essa contradição
foi curiosamente gerada pela acumulação de capital através do próprio trabalho escravo. Daí a
abolição da escravatura. Tudo isso é parte do processo de promoção do “desenvolvimento das
condições para que a reprodução do capital passasse a ocorrer de modo capitalista” (MARTINS,
1994, p.53), representando um fenômeno progressista na sociedade brasileira diante do quadro
que se tinha até então. Daí a necessidade de compreendermos as devidas diferenças entre
“dominação senhorial” e burguesa no Brasil.
Contudo, esse fôlego progressista foi mais curto por aqui, tendo em vista que esse
processo se desenvolve por intermédio da personificação do capital e de suas necessidades de
reprodução nos próprios fazendeiros, constituindo a nossa “via histórica”. À diferença de países
como a Inglaterra, onde em determinado momento os senhores de terra se somaram aos
arrendatários, no Brasil, os senhores escravocratas se aliaram prontamente a burguesia.
Posteriormente, com a “revolução gloriosa”, estabeleceu-se um compromisso entre os nobres
proprietários fundiários e a burguesia. Portanto, por aqui, como já vimos, o peso da questão
agrária foi um dos aspectos centrais que desfavoreceu as “alianças progressistas” e “opções
liberalizantes” (MARTINS, 1994, p.77). Em outras palavras, “aqui, a burguesia se ligou às
antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. [...] Em
suma, o capitalismo brasileiro [...] contribuiu para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição
dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada.” (COUTINHO, 2011, p.144).
Eis a capacidade, não apenas em terras brasileiras - embora nestas de forma peculiar e
quiçá prematura em relação a outras realidades - de uma plena apropriação do “patriarcalismo”,
ao qual Lênin (1982) se refere, pelo capitalismo, constituindo a nossa modernização dependente
que não pode se sobrepor aos limites da nossa “originalidade”, já que “a expansão do
capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações
140

arcaicas no novo”. (OLIVEIRA, 2003, p.60). Daí a relação orgânica entre essa “originalidade”
e a própria forma com que a lei do valor opera no mercado mundial via desenvolvimento
desigual e combinado.
Lembremos que tal “originalidade” está, portanto, em sintonia com aquilo que Mandel
(1982, p.260) caracterizou como acumulação de capital nas “semicolônias” enquanto uma
“acumulação específica” de capital industrial “saindo da esfera das matérias-primas para a
indústria manufatureira, mas permanecendo em média um ou dois estágios atrás em termos da
tecnologia ou do tipo de industrialização predominante nas metrópoles”. Isso em consequência
do “pequeno mercado interno, do enorme exército industrial de reserva e da tendência à
industrialização com maquinaria obsoleta [...]”. Essa dinâmica torna a dificuldade competitiva
da indústria em países como o Brasil algo estrutural, sendo a exportação de matérias-primas
permanentemente central para suas economias mediante a tendência da queda “ao preço de
produção das matérias-primas produzidas nas metrópoles com a mais moderna tecnologia”,
obrigando-os a “importarem das metrópoles um volume cada vez maior de maquinaria cara e
de peças de reposição ainda mais caras, a fim de conseguir promover sua industrialização”.
Em decorrência disso, ainda nos termos de Mandel (1982, p.261), há uma “transferência
constante de valor de uma zona para outra pela deterioração dos termos comerciais”, tal como
apresentamos brevemente no capítulo anterior. Todavia, em alguns contextos, especialmente
nos de crise internacional, há nova alta nos preços das mercadorias primárias, possibilitando às
burguesias desses países “melhorar sua situação de sócios minoritários do imperialismo”.
Desse modo, a questão desde o princípio já se mostra com evidencia: o problema do
desenvolvimento não é a ausência de riquezas e de crescimento econômico, ao contrário. A qual
projeto de desenvolvimento esse crescimento econômico tem servido? Existe um elemento de
fundamental importância para os desdobramentos desta questão: a concepção sobre a natureza
das classes sociais e do Estado capitalista por aqui no período de consolidação e adensamento
do capitalismo, o que trabalharemos mais adiante. Por ora, antecipamos, nos termos de
Coutinho (2011, p.251), algo que, apesar de sua irrefutabilidade, não custa nada lembrar: “[...]
não é em nome da modernidade, ou da construção da nacionalidade, que o Estado brasileiro
interferiu durante tanto tempo na esfera da economia: ao contrário, o fez para garantir os
interesses de determinadas classes e frações de classe”.
No fim das contas, de acordo com Martins (1994, p.53), “é a modalidade de crescimento
econômico o que, na verdade, bloqueia o desenvolvimento social e político da sociedade
brasileira”, necessário para uma vida “autêntica e humana”, como nos fala Coutinho (2011).
Por isso, aquela expectativa refletida nas personagens da obra do escritor paraibano diante da
141

chegada da usina, no trecho mencionado, apresenta uma íntima relação com as possibilidades
de frustração dessas mesmas personagens em meio ao nascente cenário do capitalismo tardio.
Vejamos:

O povo pobre reclamava a vida. Tivera que botar para fora muita gente viciada com
os tempos do velho José Paulino. Queriam ficar na propriedade, desfrutar as terras e
fugir das obrigações. [...] Em bangüê podia ser, mas usina não podia mais agüentar
morador com regalias. A terra era pouco para cana. [...] Do contrário teria que estragar
o seu trabalho se fosse amolecer o coração. Havia muita diferença dum coração de
senhor de engenho para um coração de usineiro. Em Recife, quando se encontrava
com os colegas, eles só falavam de grandeza, de compras de engenho, de zona, de
fornecedores. Conversa de usineiro era de um tom diferente. (REGO, 2012, p. 214-
215).

Guardadas as devidas proporções em relação ao romance, é possível entender que,


quando se fala em “fugir das obrigações” e no “morador com regalias” referindo-se ao
trabalhador que transita de relações típicas do engenho, regidas pela dependência pessoal,
àquelas industriais, orientadas pela complexificação da divisão social do trabalho, na verdade
ilustram os recursos ideológicos das classes dominantes necessários para legitimar a “nova era”,
o novo ritmo e as novas relações de trabalho exigidas pela indústria. Estas contêm uma
dimensão progressista, porém, sufocada pelos próprios mecanismos que tornaram viável a
ascensão e consolidação desse modo de produção no Brasil, tal como já destacamos. É preciso
lembrar que isso ocorre quando, nos países centrais, a relação entre a “burguesia com a cultura
ilustrada de que se valera no seu período revolucionário” (NETTO; BRAZ, 2007, p.19) já havia
se alterada profundamente ao tempo em que o padrão de acumulação capitalista consolida, de
fato, suas bases, tornando-se um modo de vida comum, regional e universal. A burguesia
brasileira teria surgido tarde demais para ser democrática? Na verdade, entendemos que o centro
da questão é outro, já que são as relações sociais de produção que levam à formação de
determinado tipo de burguesia e daí suas ideias. O que caracteriza o Brasil é exatamente o
desenvolvimento daquelas relações que acabaram por criar uma burguesia geneticamente
antidemocrática. Pensar diferente disso pode ser pura quimera.
Nessa nova dinâmica, “não é o trabalhador quem emprega os meios de trabalho, mas os
meios de trabalho o trabalhador, de forma que, quanto mais elevada a força produtiva do
trabalho, tanto maior a pressão do trabalhador sobre seus meios de ocupação e tanto mais
precária, portanto, sua condição de existência” (MARX, [1867] 1984, p.209). Dessa maneira, a
frustração sobre a qual falamos em relação aos personagens da referida literatura, agora
presentes fortemente na vida real, torna-se regra, não exceção. Por isso, Florestan Fernandes
([1968] 2008) deu tanta ênfase a um segmento social continuamente presente durante todo o
142

processo de modernização capitalista no Brasil, incidindo decisivamente na configuração de


suas classes subalternas. Referimo-nos aos condenados do sistema, expressão também do
desenvolvimento desigual interregional.

A migração para outras regiões, em busca do assalariamento nas ocupações


tradicionais; a tentativa de penetrar no mundo urbano, de classificar-se dentro dele e
de ter acesso a seus privilégios; a identificação positiva com a proletarização, vista
como ascensão social e também como um privilégio; a superestimação do estilo de
vida operário etc. – são os mecanismos pelos quais se concretiza a conciliação dos
“condenados do sistema” com sua ordem socioeconômica. [...] O homem rústico,
socializado para a vida moderna (em condições rurais ou urbanas), passa a pertencer
à sociedade de classes e deixa de ser um risco de violência explosiva em potencial.
[...] Nesse plano, a solução “dentro da ordem” só poderia vir de uma aceleração
substancial do desenvolvimento econômico. (FERNANDES, [1968] 2008, p.73).

No Brasil, “a liberdade de ser desigual, ao invés da clássica concepção que associou


liberdade e igualdade”, segundo Martins (1994, p.78), imperou de forma muito precisa. Essa
característica universal ao capitalismo, como já vimos, aprofundada e particularizada em
sociedades dependentes, revela o caráter integrador e ao mesmo tempo desintegrador de regiões
nesse sistema. Por isso, nas palavras do próprio Florestan ([1968] 2008, p.61), olhando para o
Brasil, “estruturas econômicas em diferentes estágios de desenvolvimento não só podem ser
combinadas organicamente e articuladas no sistema econômico global. Sob o capitalismo
dependente, a persistência de formas arcaicas não é uma função secundária e suplementar.”.
Isso significa que a dinâmica de industrialização avançou no Brasil utilizando-se
permanentemente de técnicas de formação de excedente econômico que, em outras realidades,
foram (ou/e são) exploradas apenas temporariamente. Tais mecanismos “convertem-se em
formas normais do ajustamento econômico às exigências da situação histórico-social”
(FERNANDES, 2008, p.74), sendo sustentados e legitimados por uma organização social e
política que inviabiliza a realização de uma “revolução democrático-burguesa”. Assim, de
acordo com Coutinho (2011, p.143), “a nossa burguesia jamais chegou a tentar a criação do
citoyen [...] ou da comunidade humana autêntica (na qual os interesses individuais e os
interesses coletivos formam uma totalidade orgânica)”.
Diante disso, “[...] qual seria, então, propriamente a vantagem dessa civilização
capitalista, com sua miséria e sua degradação das massas em comparação com a barbárie?”. Já
se questionava Marx (1984, p.211) e muitos outros que o decorreram e viram, cada um a seu
modo e a seu tempo, a desenvoltura do capitalismo, evidenciando permanentemente algo que é
motivo de polêmicas por parte de muitos analistas frente as transformações contemporâneas: a
existência do caráter civilizatório da modernidade, entendendo a industrialização também como
143

aspecto dinamizador das forças produtivas e do desenvolvimento econômico, que pode se


desenvolver, especialmente em um contexto semicolonial, em oposição ao imperialismo,
acirrando as contradições capitalistas no destino de uma ruptura e alteração do modo de
produção vigente59. Isto, ao contrário do que efetivamente ocorreu, especialmente nas nações
dependentes como o Brasil: a completa associação e integração ao capitalismo mundial.

Como a industrialização poderia vir a ser tentada segundo modo socialista de


organização de produção, o capitalismo internacional redefiniu a sua política com
relação ao Brasil, assim como o fez com referência a outras nações, para que o seu
progresso não fosse nem naquela direção nem vinculado a certas frações ascendentes
do capitalismo mundial (IANNI, 1965, p.93)

Longe da intenção de referendar uma causalidade reducionista, sabemos que o valor da


força de trabalho, em diversos países e épocas históricas, não é uma grandeza constante, mas
variável, tal como outras tantas, não dependendo de uma arquitetura capitalista infalível e
equilibrada que articula desigualmente as regiões. Sob esse terreno histórico, torna-se
fundamental ressaltar que,

dada a natureza imanente do capital [...] como a 'contradição viva', cada tendência
principal desse sistema [...] só se faz inteligível se levamos plenamente em conta a
contratendência específica à qual aquela está objetivamente ligada. [...] Assim, a
tendência do capital ao monopólio é contrabalançada pela concorrência; igualmente,
a centralização pela fragmentação, a internacionalização pelos particularismos
nacionais e regionais, o equilíbrio pela quebra do equilíbrio etc. (MÉSZÁROS, 2002,
p.653).

59
“Na tradição de Caio Prado Jr. e de Celso Furtado, acostumamo-nos a pensar na expansão do café como espécie
de expansão da missão civilizadora do capital. Mas a adoção de uma solução via imigração européia para a questão
da mão-de-obra na expansão do café implica a primeira e mais determinante segmentação do mercado de trabalho
que estrutura a moderna economia brasileira. […] E essa cisão reforça-se pelo aspecto étnico: introduz-se uma
competição no mundo do trabalho pelos postos mais baixos, antes reservados apenas aos negros, agora disputados
entre brancos imigrantes e negros […]. Para se ser progressista, e ver na adoção do trabalho livre a superioridade
sobre o trabalho escravo, fez-se silêncio sobre a discriminação étnica que a imigração introduzia na estruturação
do mercado de trabalho da região em expansão capitalista, com pretensões de dominação. Tardiamente, essa
discriminação étnica aparecerá na forma do separatismo dos ricos, versão ainda soft da limpeza étnica que os
atentados dos grupos de skinheads neonazistas da Zona Leste da capital de São Paulo, contra rádios que fazem
programas nordestinos, expressam dramaticamente. De outro lado, acostumamo-nos também ao decadentismo que
impregna a história das regiões, ao ponto de fazê-las desaparecer, para restar, apenas, a missão civilizadora do café.
A força da demiurgia de Caio Prado e Celso Furtado levou a obscurecer um período que não foi só de decadência
[…]. Desde a segunda metade do século XIX, a indústria têxtil começou a expandir-se no Brasil […]. Segue-se
daí, depois da recuperação do lugar da produção norte-americano nesse mercado, um esforço de industrialização,
que se dá em todo o país, de alto a baixo. […] O processo desenvolvido foi, pois, de concorrência entre capitais, e
o que foi capital, para ornamentar com uma frase de efeito, foi a organização da concorrência. Não se tratou de
autoorganização da concorrência, ou auto-regulamentação do capital, como nunca pode se tratar. Aqui entra o
papel do Estado, de forma forte. […] Eis a segunda fonte da acumulação primitiva que alimentou a expansão
cafeicultora, um mistério que nem Caio Prado nem Furtado explicaram: de onde saíram os recursos de capital do
café? Dele mesmo? Mas como capital faz capital antes de ser capital? Pela acumulação primitiva: de um lado o
Rio, com o comércio de escravos, de outro as fontes fiscais, drenando recursos das províncias superavitárias para
as deficitárias. […] o Estado tanto subsidiava o café e obstaculizava a acumulação de capital em outros setores,
quanto organizava a concorrência, impedindo a expansão de outros segmentos.”. (OLIVEIRA, 1993, p.48-50).
144

Isso nos põe a necessidade de impetrar a dimensão política para o nosso diálogo,
entendendo que sob as relações sociais que constituem o capital e a exploração do trabalho
opera a luta de classes, a relação “das forças dos combatentes.” (MANDEL, 1982, p.105). Tal
vinculação, contudo, “não é uma grandeza matemática, suscetível de cálculo a priori. Quando
se altera o equilíbrio do velho regime, a nova relação de forças só se pode estabelecer como
resultado de sua computação recíproca na luta.” (TROTSKY, 1977, p.190).

Eis por que a tendência no sentido da eliminação da luta entre o comprador e o


vendedor da mercadoria força de trabalho na determinação do preço dessa mercadoria
deve culminar, em última análise, numa limitação decisiva ou mesmo na abolição de
liberdades democráticas fundamentais, isto é, no sistema coercitivo de um “Estado
forte”. (MANDEL, 1982, p.169).

E é, portanto, nessa conexão entre trabalho e capital que a consolidação no poder e a


garantia da hegemonia burguesa deram-se mediante a exploração desenfreada da classe
trabalhadora, por mecanismos que viabilizam a mais-valia absoluta e relativa, combinada “com
duas táticas calculistas por parte do patronato: a do paternalismo e a da repressão.”
(GORENDER, 1982, p.49). Embora carreguemos esta marca até os nossos dias, isso será
expresso particularmente durante todo o século XX, especialmente com os períodos ditatoriais,
intervalo que marcou o início da era do capitalismo tardio, onde o “poder coercitivo do Estado
burguês intervém na economia de maneira cada vez mais direta, tanto para assegurar a coleta
regular dos superlucros do monopólio no exterior, como para garantir as condições da
acumulação regular do capital em sua pátria.” (MANDEL, 1982, p.220).
Dessa forma, é preciso entender o seguinte:

Os operários urbanos, os operários rurais e os camponeses [...], além de empregados


e funcionários, estão sendo explorados pelo capital imperialista. E isso refaz, acentua
e alarga as contradições de classes, na cidade e no campo, no âmbito local, regional e
nacional. Por outro lado, as classes dominantes nativas, diretamente ou por intermédio
de sua tecnocracia civil e militar, sempre buscam a colaboração e o comando do
imperialismo, toda vez que as condições de classes colocam em causa a forma e o
âmbito da dominação vigente (IANNI, 2004, p.241).

E é nesse alargamento das contradições de classe que a história do capitalismo brasileiro


tem se constituído, nos termos de Sodré (1980, p.154), avançando devagar, aproveitando as
“brechas para avanços mais rápidos”, compondo “com as relações políticas mais atrasadas e as
econômicas que as asseguram, manobra, recua, compõe-se”. Nesse ambiente, gera-se uma
burguesia que “prefere transigir a lutar [...] que não ousa apoiar-se nas forças populares senão
145

episodicamente, que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia mais
a pressão proletária.”. Há o recurso ao reforço do “favor” como importante mediação nas
relações sociais, recompondo capitalisticamente os vínculos de dependência pessoal.
Conforma-se, portanto, a hegemonia burguesa, de acordo com Coutinho (2011, p.43),
tendo como base um “modo de relacionamento autoritário (mesmo quando paternalista) e
antiliberal. É essa dialética de adequação e inadequação que [...] altera-se com a passagem [da
subordinação formal] á subordinação real” do trabalho ao capital. Eis um solo fértil para edificar
uma democracia pautada pela restrição – “[...] de fato uma ‘democracia restrita’, aberta e
funcional só para os que têm acesso à dominação burguesa” (FERNANDES, [1975] 2006,
p.249) - e pelo predomínio do binômio autoritarismo e assistencialismo que interdita, e tenta a
todo custo invalidar, o papel mais diretivo das classes subalternas nos processos e momentos
decisórios do país. Para tanto, o caminho priorizado por parte dos setores burgueses no Brasil,
para Fernandes ([1975] 2006, p.250), foi o da “contrarrevolução prolongada”, consagrando esta
classe como uma “uma força social naturalmente ultraconservadora e reacionária.”. E ainda
acrescenta:

[...] as reservas de opressão e de repressão de uma sociedade de classes em formação


foram mobilizadas para solapá-la e para impedir que as massas populares
conquistassem, de fato, um espaço político próprio, ‘dentro da ordem’. Essa reação
não foi imediata; ela teve larga duração, indo do mandonismo, do paternalismo e do
ritualismo eleitoral à manipulação dos movimentos políticos populares, pelos
demagogos conservadores ou oportunistas e pelo condicionamento estatal do
sindicalismo. Só em um sentido aparente essas transformações indicam uma ‘crise do
poder oligárquico’. [...] Foi graças a ela [a consolidação conservadora da dominação
burguesa] que a oligarquia [...] logrou a possibilidade de plasmar a mentalidade
burguesa e, mais ainda, de determinar o próprio padrão de dominação burguesa.
Cedendo terreno ao radicalismo dos setores intermediários e à insatisfação dos
círculos industriais, ela praticamente ditou a solução dos conflitos a largo prazo, pois
não só resguardou seus interesses materiais ‘tradicionais’ ou ‘modernos’, apesar de
todas as mudanças, como transferiu para os demais parceiros o seu modo de ver e de
praticar tanto as regras quanto o estilo do jogo. (FERNANDES, 2006, p.245-246).

Tudo isso, nas palavras de Coutinho (2008, p.111), criou “este fato anômalo de que o
Brasil foi um Estado antes de ser uma nação”, o que nos dá pistas para entendermos o “por que”
do capitalismo brasileiro não viabilizar - muito menos abrir margem para que se viabilize - até
os nossos dias reformas sociais clássicas, de teor democrático e popular, tal como a reforma
agrária 60 , urbana e política, que, inclusive, foram viáveis em outros países capitalistas em

60
“Esse é o aspecto crucial do dilema rural brasileiro. A revolução do mundo agrário – mesmo em sentido
puramente capitalista e ‘dentro da ordem’ – não esbarra só na chamada ‘inação das elites econômicas, culturais e
políticas’. Ela é bloqueada por uma verdadeira muralha que nasce dos interesses dessas elites em manter o status
quo e dos interesses mais específicos dos setores privilegiados do meio rural, efetivamente empenhados na
reprodução social do trabalho que de todo não chega a transformar-se em mercadoria ou que somente chega a
146

outros momentos da história 61. Essas circunstâncias favoreceram a permanência de formas


extremas de desigualdades sociais que, por conseguinte, constituem, na expressão de Fernandes
([1968] 2008, p.187-189), “requisitos sine qua non para a reprodução social do trabalho não-
pago, semipago ou pago de modo ultradepreciado”. Como tocar nessas condições? Aqui
subscrevemos novamente as palavras do autor: “[...] seria o mesmo que destruir a viabilidade
de economias agrárias que não conseguem mercantilizar a força de trabalho, incorporando-se
totalmente ao mercado interno”.
Na verdade, como já vimos, essa foi a forma encontrada para que o país pudesse se
modernizar sem “sair dos trilhos” e, para isso, a condição de um Estado “antidemocrático” foi
de fundamental importância. Este, para Coutinho (2008, p.107), até a década de 1930 era
“extremamente forte, autoritário, em contraposição a uma sociedade civil débil, primitiva,
amorfa”, o que, conforme o autor, se aproximava da caracterização gramsciana de “formação
político-social de tipo ‘oriental’, na qual o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e
gelatinosa”. O contrário seria a formação social de tipo “ocidental”, onde “a organização da
cultura já não é algo diretamente subordinado ao Estado, mas resulta da própria trama complexa
e pluralista da sociedade civil” (COUTINHO, 2011, p.16).
De todo modo, o principal sujeito do processo de industrialização do país teria sido o
próprio Estado, fazendo com que de 1930 até os anos de ascensão no neoliberalismo no país “a

transformar-se numa mercadoria extremamente depreciada. Nessas condições, torna-se impossível qualquer
modalidade de revolução agrícola ou de ‘reforma agrária’ e, o que é pior, são os estratos ‘mais modernos’, ‘ativos’
e ‘influentes’ da economia agrária que encabeçam a cruzada contra qualquer mudança, que possa alterar a
‘estrutura da situação’ ou simplesmente ameaçar o seu poder de decisão e de dominação. Daí resultam modalidades
seletivas e refinadas de resistência à mudança, que são ‘racionais’ e ‘inteligentes’ em um sentido puramente
egoístico e particularista, mas que são sociopáticas do ponto de vista das camadas sociais prejudicadas, da eficácia
e universidade de um padrão capitalista dinâmico de desenvolvimento econômico e do equilíbrio de crescimento
da sociedade nacional como um todo. [...] O que lhes interessa, exclusivamente, é anular ou restringir ritmos
rápidos e incontroláveis de absorção das economias agrárias por formas de crescimento ou de desenvolvimento
especificamente capitalistas, que tolham ou anulem sua faculdade de sobrepor-se às funções ‘normais’ o mercado
interno e dos modos de produção. Por paradoxal que pareça, as ‘forças da ordem’ e de ‘defesa da paz social’
identificam-se, na realidade, com a sobrevivência indefinida de iniquidades econômicas, sociais e políticas que
são incompatíveis com o ‘capitalismo maduro’. [...] Em consequência, as massas rurais despossuídas estão entre
dois fogos: sofrem por perderem as poucas garantias sociais inerentes aos padrões de relações tradicionalistas e
paternalistas, em crise; e sofrem por não saberem como impor o respeito às garantias sociais inerentes aos padrões
de relações seculares e racionais, em emergência. [...] As economias agrárias se defrontam com um círculo vicioso,
do qual só poderão sair superando esse dilema: ou mediante soluções capitalistas, através da absorção do padrão
de desenvolvimento imperante no pólo urbano-industrial (alternativa da ‘revolução dentro da ordem’), ou mediante
soluções socialistas, absorvendo um novo padrão de desenvolvimento capaz de quebrar o impasse levantado pelas
funções desempenhadas pela desigualdades socioeconômica na perpetuação do status quo (alternativa da
‘revolução contra a ordem’). [...] Em sentido pleno, só a segunda é propriamente revolucionária [...]”.
(FERNANDES, [1968] 2008, p.187-189).
61
Tal como na América Latina, no Brasil “os projetos burgueses estiveram sempre divorciados do pacto
democrático […]. A democracia política, entre nós, ergue-se não a partir de componentes dos projetos burgueses,
mas contra eles”. Ou seja, mesmo diante da resistência das classes subalternas, caracterizada pela “dialética de
revolta e conformismo”, o modo de desenvolvimento capitalista no continente latinoamericano “não propiciou a
consolidação de uma tradição cultural democrática”. (NETTO, 1990, p.119-121).
147

fração preponderante no bloco de poder” tenha sido o capital industrial associado ao grande
capital internacional. (COUTINHO, 2008, p.113). As transformações desse período,
caracterizado pelo desenvolvimentismo em suas mais diversas vertentes, especialmente diante
da consagração da “autocracia burguesa” 62 e coroação do “imperialismo total” (FERNANDES,
[1975] 2006), valida o que nos disse Mandel (1982, p.262) ao tratar das frações burguesas nas
chamadas semicolônias: “[...] a penetração do capital imperialista na indústria manufatureira
das semicolônias e sua crescente fusão com o capital nativo da chamada 'burguesia nacional'
significam que uma proporção cada vez maior da propriedade do capital desses países cai nas
mãos das empresas imperialistas”. O que, para nós, nada mais é que o reforço da condição de
dependência. 63
Ainda sobre a burguesia brasileira e suas frações, concordamos com Ianni (1965, p.114-
115), ao afirmar o seguinte:

Não há dúvidas de que há contradições entre fracções da burguesia. E pode-se mesmo


falar numa luta contra a evasão do excedente econômico, o que implica em tensões
com o imperialismo. Mas essa luta, no caso brasileiro, não pode ganhar profundidade.
A disputa pela mais-valia, nos termos em que a coloca o desenvolvimentismo
“nacionalista”, é uma disputa pela apropriação do que não pertence mais ao
proletariado. Por isso, a posição da classe operária em face desse fenômeno só pode
ser tática.

Daí a existência de uma burguesia brasileira não significar a de uma “burguesia


nacional”. Esta, na verdade, segundo Ianni (1965, p.115), configurou-se mais como uma ficção
criada pela burguesia industrial, “como se o capital tivesse nacionalidade, no âmbito do
capitalismo”. Além disso, uma “burguesia nacional” pressupõe dois elementos indissociados
que, no entanto, são ausentes ao capitalismo brasileiro: uma “revolução democrático-burguesa”
orientada por um “projeto nacional-democrático” de desenvolvimento. Assim, em outras

62
A concepção de autocracia burguesa, para Florestan Fernandes, está vinculada a caracterização da forma
particular de dominação burguesa no Brasil, o que pode ser associada aquela feita por Trotsty ([1930] 1977): “[...]
a dominação burguesa se associava a procedimentos autocráticos, herdados do passado ou improvisados no
presente, e era quase neutra para a formação e a difusão de procedimentos democráticos alternativos, que deveriam
ser instituídos (na verdade, eles tinham existência legal e formal, mas eram socialmente inoperantes. [...]. Todavia,
as concepções liberais e republicanas, apesar de suas inconsistências e debilidades, tornavam essa autocracia social
e de fato um arranjo espúrio [...].” (FLORESTAN, 2006, p.243).
63
Aqui ressaltamos a concepção de dependência (ou heteronomia) também presente na obra de Fernandes ([1968]
2008, p.56). Sobre isso, ressaltamos o seguinte trecho: “[...] o regime de classes, numa sociedade capitalista
subdesenvolvida, possui como substrato material uma situação de mercado dependente e como suporte
sociocultural os recursos de uma civilização nucleada no exterior. No nível da situação de mercado, os mecanismos
da economia mundial operam de tal forma que as mudanças estruturais ou de conjuntura não se refletem,
duradouramente, na posição daquela sociedade, a não ser pela substituição das polarizações dos vínculos de
heteronomia. Isso é tão verdadeiro que os diferentes colapsos do velho ou do novo colonialismo e do imperialismo
econômico não conduziram senão a formas de heteronomia crescentemente mãos complexas, envolventes e
eficazes.”.
148

palavras, “por ter se limitada durante muito tempo a essa forma de representação ‘econômico-
corporativa’, a burguesia brasileira renunciou a elaborar [...] uma consciência ‘ético-política’,
com o que se tornou incapaz por muito tempo de formular um projeto nacional hegemônico.”
(COUTINHO, 2008, p.117). Eis, portanto, mais um aspecto, por um lado, destoante entre a
forma com que se desenvolveu o capitalismo por aqui e aquelas que envolve as burguesias
inglesa, francesa e até alemã; por outro, convergente com formações sociais que viveram a
“indigência filosófica” da burguesia de maneira muito mais genuína, a exemplo da Rússia.
(TROTSKY, 1977, p.169). No nosso caso, uma verdadeira “transplantação cultural”, tendo
como uma de suas expressões a “ideologia do colonialismo” promovida pelos setores
dominantes, tal como nos apresenta Sodré (1984).
Do lado diametricamente oposto, os trabalhadores rurais também não cabem dentro de
uma concepção que os associam a um segmento camponês historicamente conservador, tal
como foi em outros países. Afinal, já nos disse Martins (1994, p.77), a “história das lutas
camponesas desde o século XVIII [...] sugere que são eles importantes desestabilizadores da
ordem [...] tradicional, baseada na propriedade da terra, [...] justamente por isso, abrem
caminhos para a ação reformadora ou revolucionária de classes sociais dotadas de projetos
históricos mais abrangentes”, o que trataremos mais adiante.
O que se torna importante enfatizar, por ora, é a relação umbilical entre trabalhador rural
e operariado urbano, tal como entre a questão urbana e a questão agrária, ambas dimensões
centrais da questão social no país, compondo a face regional da nova era monopolista. Esta,
inclusive, com o aflorar e desenvolvimento da sociedade urbano-industrial no país, torna-se não
apenas mais complexa como também objeto de intervenção planejada por parte do Estado
brasileiro, o que, diante do objetivo da nossa pesquisa, será de fundamental importância um
entendimento mais aprofundado para que, mais adiante, possamos traçar um diálogo direto com
as ações e estratégias desenvolvidas no período priorizado na nossa pesquisa. Contudo,
buscaremos, antes, situarmos a configuração sócio histórica nordestina nesse contexto.
149

2.3.1. O Nordeste não nordestinado 64 na dialética nação-região: integração nacional e (nova)


divisão regional do trabalho.

Subitamente, Conceição teve uma ideia: - Por que vocês não vão para São Paulo? Diz
que lá é muito bom... Trabalho por toda parte, clima sadio... Podem até enriquecer...O
vaqueiro levantou os olhos, e concordou, pausadamente: - É... Pode ser... Boto tudo
nas suas mãos, minha comadre. o que eu quero é arribar. Pro Norte ou pro Sul... [...]
Chico Bento ajuntou: - Eu já tenho ouvido contar muita coisa boa do São Paulo. Terra
de dinheiro, de café, cheia de marinheiro... Conceição levantou-se, rebatendo o
vestido: - Pois então está dito: São Paulo! Vou tratar de obter as passagens. Quero ver
se daqui a alguns anos voltam ricos... [...] Eles já estavam na ponte, magros,
encolhidos, apertados uns contra os outros, num grupo miserável e cheio de medo.[...]
Chico Bento fitava o navio, escuro e enorme, com sua bandeira verde de bom agouro,
tremulando ao vento do Nordeste, o eterno sopro da seca. Sentia como que um ímã o
atraindo para aquele destino aventuroso, correndo para outras terras, sobre as costas
movediças do mar...[...] Iam para o desconhecido, para um barracão de emigrantes,
para uma escravidão de colonos... Iam para o destino, que os chamara de tão longe,
das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias
infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde
sempre há farinha e sempre há inverno... (QUEIROZ, 1937, s/p).

O trecho acima retrata um enredo fictício espelhado na história real de milhões de


mulheres e homens, guiados pela necessidade, caminhando junto com um novo ideário nacional
que faziam desses muitos nordestinos, antes de tudo, milhões de (cordiais) brasileiros 65 ,
construtores e construtoras do Brasil “moderno”. Trata-se de uma tendência que marcará o
século XX até os nossos dias, mesmo diante das muitas mudanças. Referimo-nos às migrações
inter-regionais, necessárias para a expansão capitalista no país e a configuração de uma (nova)
divisão regional do trabalho, que, como veremos, opera continuamente processos de
acumulação primitiva, fazendo, por exemplo, do fenômeno da seca algo com determinações
muito além das condições naturais e ecológicas, mas, junto ao adensamento da questão agrária
(em plena conexão com a nascente questão urbana), um verdadeiro motor das migrações,
recompondo o (novo) papel da região Nordeste para a “nova” engrenagem capitalista.
Esse processo demanda algo central que será base da modernização brasileira: a
refuncionalização do atraso que pesará distintamente em cada região, especialmente no
Nordeste, território que, combinado desigualmente às demais regiões, será uma verdadeira
reserva da superpopulação relativa no país, garantindo o baixo custo da força de trabalho,
mesmo com o aumento da produtividade. Já o Centro-Sul (ou Sudeste) passa a assumir a função

64
No título desse item, fazemos alusão ao poema de Patativa do Assaré intitulado “Nordestino, sim. Nordestinado,
não!
65
Trata-se de uma referência à música “Meu cordial brasileiro” do cantor e compositor cearense Belchior (in
memoriam).
150

de “região-centro”, constituindo sua hegemonia nas demais regiões. Em outras palavras, trata-
se do processo em que se opera a “substituição de uma economia nacional formada por várias
economias regionais para uma economia nacional localizada em diversas partes do território
nacional”. (OLIVEIRA, 1977, p.55-56). Aqui nos interessa saber que os efeitos da questão
social na sua dimensão regional são aprofundados junto com esse processo de consolidação do
capitalismo no país.
A prosperidade expressa entre os personagens do romance de Rego (2012, p.233), diante
da passagem do antigo engenho para a moderna usina, onde “seiscentas toneladas de cana
entravam nas suas esteiras e oitocentos sacos de açúcar saíam de suas turbinas”, convivia com
a realidade dos flagelos da seca que passava cada vez mais a ter um contorno de fenômeno
social, não natural, tão bem retratado por Raquel de Queiroz no trecho mais acima. Na verdade,
de acordo com Francisco de Oliveira (1981), esse cenário da primeira metade do século XX
expressa dois lados da mesma moeda, ou seja, dois importantes aspectos do desenvolvimento
desigual e combinado do capitalismo no Brasil, quais sejam:
Primeiro, tal como já sinalizamos antes, a coexistência de regiões tão distintas sem que
sejam “formações sociais singulares”, mas fruto do caráter diverso das leis da própria
reprodução do capital que reproduz internamente, entre as regiões do território nacional, a
condição de dependência. Sobre isso, lembramos as características que passa a ter o “complexo
econômico nordestino” sobre o qual Celso Furtado nos apresenta em Formação Econômica do
Brasil ([1959] 2003) frente a transmutação regional dos polos dinâmicos da economia e da
política brasileira, demonstrando que a lei do desenvolvimento desigual e combinado, de fato,
opera na realidade.

O processo de industrialização começou no Brasil concomitantemente em quase todas


as regiões. Foi no Nordeste que se instalaram, após a reforma tarifária de 1844, as
primeiras manufaturas têxteis modernas e ainda em 1910 o número de operários
têxteis dessa região se assemelhava ao de São Paulo. Entretanto, superada a primeira
etapa de ensaios, o processo de industrialização tendeu naturalmente a concentrar-se
numa região. A etapa decisiva de concentração ocorreu, aparentemente, durante a
Primeira Guerra Mundial, época em que teve lugar a primeira fase de aceleração do
desenvolvimento industrial. [...] Se se considera, não o número de operários, mas a
força motriz instalada [...], a participação do Nordeste diminuiu, entre 1940 e 1950,
de 15,9 para 12,9 por cento. Os dados da renda nacional parecem indicar que esse
processo de concentração se intensificou no pós-guerra. Com efeito, a participação de
São Paulo no produto industrial passou de 39,6 para 45,3 por cento, entre 1948 e 1955.
Durante o mesmo período a participação do Nordeste desceu de 16,3 para 9,6 por
cento. A consequência tem sido uma disparidade crescente nos níveis de renda
per capita. Em 1955, São Paulo [...] desfrutou de um produto 2,3 vezes maior que o
do Nordeste [...]. A renda per capita na região paulista era, por conseguinte, 4,7 vezes
mais alta que a da região nordestina. Essa disparidade de níveis de vida, que se
acentua atualmente entre os principais grupos de população do país, poderá dar
origem a sérias tensões regionais. Assim como na primeira metade do século XX
151

cresceu a consciência de interdependência econômica – à medida que se


articulavam as distintas regiões em torno do centro cafeeiro-industrial em rápida
expansão -, na segunda poderá aguçar-se o temor de que o crescimento intenso
de uma região é necessariamente a contrapartida da estagnação de outras.
(FURTADO, 2003, p.247-248, grifos nossos).

De acordo com Furtado (2003, p.67-71), há um atrofiamento da economia nordestina


expressa na transição da produção do açúcar para a pecuária-criatória, tendo como base a
economia de subsistência. Há, portanto, uma perda de importância relativa do setor de alta
produtividade, o declínio da produtividade do setor pecuário, a involução nas formas de divisão
e especialização do trabalho, um retrocesso às técnicas artesanais de produção e, em resumo,
um “lento processo de decadência da grande empresa açucareira que possivelmente foi, em sua
melhor época, o negócio colonial-agrícola mais rentável de todos os tempos”. Tudo isso quase
que como uma demanda frente a necessidade de integração nacional via industrialização e
urbanização que passa a ter como polo dinâmico a região Sudeste.
Segundo, para isso, a necessária atualização da relação moderno-arcaico expressa pela
passagem do “Nordeste açucareiro”, dos “barões”, para o “Nordeste algodoeiro-pecuário”, dos
“coronéis”, nas palavras de Francisco de Oliveira (1981). Essa passagem, como vimos,
implicou consideravelmente na retração da industrialização expressa na transformação do
antigo engenho para a moderna usina na zona açucareira. Retroage o próprio movimento da
reprodução do capital na região, descapitalizando a economia açucareira e recriando
internamente mecanismos que remetem ao processo de acumulação primitiva, a exemplo da
figura do “cambão” e demais formas não-monetárias de exploração do trabalho. 66

Não havendo mudanças quantitativas e qualitativas substanciais na composição


orgânica do capital, de um lado, não se gerou um novo proletariado; de outro,
mantendo-se atada à armadilha da recriação de mecanismos de acumulação primitiva,
os operários enfrentam-se também com a burguesia como se fossem camponeses. Essa
dupla determinação da situação da classe proletária do Nordeste açucareiro-têxtil a
levava a enfrentar a burguesia industrial em dois terrenos: no terreno das relações de
produção capitalistas, em que a reivindicação dos ganhos de produtividade
incorporadas aos salários reais não podia ser atendida, e no da reivindicação de terras
ou da eliminação das formas de trabalho, semicompulsório, das formas do ‘cambão’,
das formas de sobre-trabalho, que ponha em xeque a própria existência da burguesia
industrial. (OLIVEIRA, 1981, p.91).

66
A figura do “morador” também é interessante, embora menos emblemática em relação ao “cambão”,
trabalhadores das zonas canavieiras que não recebiam nada em dinheiro. A remuneração relacionava-se
exclusivamente ao uso da terra na safra e na entressafra. No caso do “morador”, em particular, o que chama atenção
é que a remuneração combinava formas monetárias com não-monetárias. O “morador” recebia uma remuneração
formal (monetária, com pagamento por tarefa) cujo quantum era sempre inferior à remuneração complementar
(não-monetária), representada pela “concessão” de um teto para morar e pela parcela da produção de gêneros
alimentícios que plantava e colhia para si nas terras do senhor.
152

Eis mais um exemplo da funcionalidade do atraso, especialmente no Nordeste. Haveria


tido alguma mudança em tal funcionalidade, na relação moderno-arcaico, no Brasil
contemporâneo frente as demandas atuais do capital e do último ciclo econômico, implicando
em crescimento econômico e no próprio fenômeno das migrações a partir da realidade
nordestina? Se sim, quais as reais motivações e causas? Em que medida essa mudança seria
estrutural ou apenas conjuntural? Responder a tais questões certamente nos demanda entender
a natureza da nossa integração nacional e a forma particular com que o capitalismo monopolista
se nacionalizou por aqui, constituindo uma divisão regional do trabalho, subordinada e
dialeticamente conectada com a divisão internacional do trabalho. Portanto, continuemos nessa
empreitada.
O que percebemos no contexto do século XX, aqui priorizado por nós, é que há, desse
modo, a interrupção de todo um processo de constituição e generalização de uma força de
trabalho assalariada como também de dissolução do “semicampesinato”, mantendo a estrutura
fundiária subjugada aos latifúndios e consolidado, de fato, a forma de ser do capitalismo
brasileiro que, não sendo singular, é particularmente universal.
Tudo isso sob a pressão internacional do capital inglês e norte-americano que desloca o
Nordeste “açucareiro” pela competição inter-imperialista, centrada na “disputa agora na
apropriação e controle da produção do açúcar no Caribe. Em outras palavras, a forma de
produção do valor da economia açucareira daquele ‘Nordeste’ não encontrava formas de
realização pela via do comércio internacional”. (OLIVEIRA, 1981, p.35). Somado a tais
67
determinantes, a integração nacional e, consequentemente, a nova divisão regional do
trabalho tornaram indispensável a fratura da economia regional e seus circuitos internos em
detrimento de uma “economia nacional regionalmente localizada” e hegemonizada pelo
Sudeste como polo industrial.
Esse contexto adensará a interdependência regional como também o aprofundamento da
questão agrária no Nordeste em decorrência do aprofundamento da questão urbana no Sudeste.
Não que essas duas dimensões da questão social não caminhem juntas internamente às próprias
regiões, mas são acentuadas de forma distinta em cada território, ou seja, são interligadas a

67 “As formas do capital, e seu controle por burguesias regionais, tornavam muito difícil, senão impossível, aquela
integração; é apenas quando surge uma forma do capital infinitamente superior às controladas pelas burguesias
regionais, no caso o capitalismo monopolista, que a integração ocorre; e essa integração é, em verdade, a
consumação do processo de ‘nacionalização’ do capital, isto é, a de predominância absoluta não apenas de sua
essência, a extração de mais-valia, mas de suas leis de movimento, a concentração e centralização do capital. Nisto
é que consiste a ‘nacionalização’ do capital, que não tem nada que ver com a nacionalidade dos seus proprietários;
contraditoriamente, essa ‘nacionalização’ somente se dá quando se está em presença de uma forma do capital, o
capitalismo monopolista, que tem forte presença de propriedade estrangeira”. (OLIVEIRA, 1977, p.3).
153

questão regional. Esta não pode ser entendida deslocada da divisão regional do trabalho opera
transferindo, à princípio, as atividades voltadas para a agricultura, que até certo momento
exercia o Sudeste, ao Nordeste e ao Sul, para, assim, ter como principal atividade econômica a
indústria. Essa cadeia de produção e reprodução do capital, combinada regionalmente, garante
a oferta a baixo custo de recursos naturais à industrialização nacional, acionando processos de
acumulação primitiva nas regiões, em especial no Nordeste. Como resultado dessa nova
dinâmica, Oliveira (1977, p.51-52), analisando o período de 1947 a 1968, acrescenta o seguinte:

No geral, as regiões referidas [Sul e Sudeste], a fim de pagarem os produtos


industrializados que compram do Sudeste, têm que buscar uma contrapartida de
junção de renda; este é um aspecto significativo do impacto da industrialização do
Sudeste sobre as outras regiões. [...]. A partir daí, a tendência é de que o Sul e o
Nordeste, em suas trocas com o Sudeste, tenham que vender mais produtos primários
para comprar produtos industrializados. Ora, é conhecida a deterioração dos termos
de troca nesse esquema em detrimento do Nordeste e do Sul.

Porém, entendendo que tanto as relações entre as regiões como as próprias regiões
mudam com um tempo, assim como o próprio capital necessita acionar novos mecanismos e
imprimir uma nova dinâmica como forma de sobrevivência às próprias crises cíclicas, o
desencadeamento e desenrolar do movimento competitivo entre as regiões demandará também
um crescimento econômico e uma industrialização, mesmo que tardia, no Nordeste, mediante
a transferência de empresas das regiões mais desenvolvidas para a menos desenvolvidas. Além
disso, “o crescimento industrial do Sudeste cria e amplia a fronteira agrícola, reproduzindo, nas
margens, formas de acumulação não inteiramente capitalísticas, das quais transfere excedente
que vai reforçar a capacidade de acumulação no próprio Sudeste.” (OLIVEIRA, 1977, p.72).
Como expressão desse desenvolvimento e de suas novas demandas, Oliveira (1977) sinaliza a
criação do Centro-Oeste e as próprias áreas nos arredores de São Paulo que passaram a cumprir
um importante papel na produção agrícola para subsidiar a indústria e a própria reprodução da
força de trabalho nascente: o proletariado urbano.
Há, portanto, a reprodução do movimento, já caracterizado por nós no capítulo anterior
quando tratamos da dependência e da troca desigual, que impulsiona a transferência de capitais
da região mais pobre para a mais rica, reproduzindo constantemente a questão regional em
maior proporção. Por isso, a intervenção planejada do Estado torna-se fundamental, tendo em
vista que a questão social na sua dimensão regional é constituída e publicizada também a partir
do acirramento dos conflitos de interesses antagônicos de classes. Nesse sentido, as regiões são
“espaços sócio-econômicos onde uma das formas do capital se sobrepõe às demais,
homogeneizando a ‘região’ exatamente pela sua predominância e pela consequente constituição
154

de classes sociais cuja hierarquia e poder são determinados pelo lugar e forma em que são
personas do capital e de sua contradição básica.” (OLIVEIRA, 1981, p.30).
Diante disso, toda a reconfiguração econômica da dinâmica regional sobre a qual
mencionamos materializou-se politicamente, ou seja, assumiu a forma também reconfigurada
de classes sociais (e suas frações) mediante a correlação de forças sociais vigente em uma
determinada época. Isso pode ser melhor evidenciado com as palavras de Oliveira (1981, p.31-
32) que nos diz o seguinte:

O ‘fechamento’ de uma região pelas suas classes dominantes requer, exige e somente
se dá, portanto, enquanto estas classes dominantes conseguem reproduzir a relação
social de dominação, ou mais claramente as relações de produção. E nessa reprodução,
obstaculizam e bloqueiam a penetração de formas diferenciadas de geração do valor
e de novas relações de produção. A ‘abertura’ da região e a consequente ‘integração’
nacional, no longo caminho até a dissolução completa das regiões, ocorre quando a
relação social não pode mais ser reproduzida, e por essa impossibilidade, percola a
perda de hegemonia das classes dominantes locais e sua substituição por outras, de
caráter nacional e internacional.

É por isso que Antônio Cândido é certeiro quando nos afirma que “o sertão é o mundo”,
referindo-se a obra de Guimarães Rosa, citada na introdução do nosso trabalho. O fato é que a
realidade que a nós nos parece local “está sempre governada, altamente determinada, pela
dinâmica da produção predominante na sociedade, no conjunto do subsistema econômico
brasileiro.”. (IANNI, 1981, p.127-128). Porém, a garantia de hegemonia implica em fazer com
que a aparência predomine e que o Nordeste continue sendo visto como Nordeste, a partir de
seu “exotismo”, de um lado, ressaltando as belezas nativas que se tonam cenário dos cartões
postais pra turista ver; de outro, reforçando a ideia do lugar dos esquecidos e dos condenados
pela seca, pobreza e pelo “subdesenvolvimento”. E é exatamente movido pela contestação a
essa imagem que fundamenta uma lógica de ser “Nordeste”, aparentemente cristalizada pelas
circunstâncias da própria natureza da região, que o artista canta: “Não! Você não me impediu
de ser feliz! Nunca jamais bateu a porta em meu nariz! Ninguém é gente! Nordeste é uma ficção!
Nordeste nunca houve! Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos
condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar!” 68.
Assim, ao contrário da aparência, as regiões são e estão em movimento. Sobre isso, vale
recorrer a história e ressaltar que o Nordeste - particularmente o território que hoje constitui os
estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas – já desempenhou um papel
central na colonização, funcionando como verdadeira base de sustentação da economia

68 Letra da música “Conheço o meu lugar” do cantor e compositor cearense Belchior (in memoriam).
155

açucareira, tanto que, na formação das primeiras concentrações demográficas da Colônia, Bahia
e Pernambuco tiveram destaque. Segundo Oliveira (2008, p.181), “a economia do açúcar
fundava-se na Colônia […] e no trabalho escravo, compulsório, […] e assim […] o capitalismo
mercantil criou como um dos pilares de sua acumulação primitiva”. Portanto, “dada a forma
particular do desenvolvimento capitalista no Brasil, quando a economia escravista produtora de
bens primários em sistema de plantation articulava-se à economia capitalista mundial em sua
fase mercantilista” (NOBRE, 2010, s/p), a questão social já se “manifestava de forma latente
no período colonial” (SILVA, 2008), assim como a questão agrária e a questão regional,
imbricadas, que aqui, tal como já mencionamos, tratamos como expressões daquela, ganhando
fôlego e novos contornos com o passar da história. Concordamos, então, com Oliveira (1993,
p.45) quando nos diz que “[…] no fundo da Questão Regional tipicamente brasileira jaz uma
questão agrária irresoluta, de par com a do mercado de força de trabalho. As duas formam uma
unidade inextricável, e suas gêneses são praticamente simultâneas em forma e fundo: a de uma
nova forma de produção de mercadorias”. O reconhecimento do Nordeste tem, portanto,
passado por modificações ao longo da história. “É possível constatar, sem recuar muito no
tempo, que o Nordeste como ‘região’ [...] somente é reconhecível a partir de meados do século
XIX [...]”. Há, pois, na história regional e nacional, vários “nordestes”. O território que hoje é
a Bahia, por exemplo, era como se fosse outra região, fechada sobre si mesma junto as
metrópoles coloniais. (OLIVEIRA, 1981, p.32).
Tal como já tratamos, esse movimento que se expressa na transformação do Nordeste
“açucareiro” para o Nordeste “algodoeiro-pecuário” diz respeito a uma reconfiguração da
correlação de forças sociais entre as classes não apenas da região, mas do Brasil e do contexto
internacional. Nesse processo, no âmbito das classes dominantes, sendo a região, “em suma, o
espaço onde se imbricam dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital, e, por
consequência uma forma especial da luta de classes [...]”, os agentes internos da região
Nordeste, os “coronéis”, passam a se conectarem mais diretamente com aqueles da região
Sudeste, “barões” do café. Essas classes dominantes locais “são absolutamente necessárias para
a ‘nacionalização’ do capital, sem o que o capital internacional não existiria senão como
abstração” (OLIVEIRA, 1981, p.29).
Vejamos a seguinte caracterização:

Enquanto o Nordeste “açucareiro” semiburguês tinha sua expansão cortada pela


simbiose dialética da constituição de outra ‘região’ com o capital internacional, um
outro Nordeste emergia gradualmente, submetido e reiterado pelas mesmas leis de
determinação de sua relação com o capital internacional: o Nordeste “algodoeiro-
156

pecuário”. [...] Não é sem razão que tanto o controle político da Nação começou a
escapar das mãos da burguesia açucareira do “velho” Nordeste, quanto o controle
político interno do ‘velho’ e do ‘novo’ Nordeste começou a passar às mãos da classe
latifundiária que comandava o processo produtivo algodoeiro-pecuário, reiterado pela
sua subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-
americano. A imagem do Nordeste, que as crônicas dos viajantes de fins do século
XVIII e princípios do século XIX descreveram em termos da opulência dos ‘barões’
do açúcar, [...] começou a ser substituída pela imagem do Nordeste dos latifúndios do
sertão, dos “coronéis”, imagem rústica, pobre, contrastando com as dos salões e saraus
do Nordeste ‘açucareiro’. Nesse rastro é que surge o Nordeste das secas. A
fundamentação do Estado unitário que prevaleceu por todo o Segundo Império e
continuou, República Velha adentro, sob a forma da coligação ‘café-com-leite’ residia
sobretudo na homogeneidade dos processos de reprodução do capital, na sua
subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-
americano: ‘coronéis’ do algodão, pecuária e “barões” do café e Estado oligárquico
são os agentes e a forma da estrutura do poder. (OLIVEIRA, 1981, p.35).

No sertão nordestino, a “imbricação latifúndio-minifúndio, comerciante-fazendeiro,


fazendeiro-exportador, não ocorreu em nenhum outro lugar […] com maior profundidade que
ali” (Id., 2008, p.183). Para Andrade (1998), na realidade sertaneja a escravidão não teve grande
repercussão econômica. Isso, no entanto, não elimina da história nordestina o forte traço de
subserviência nas relações entre as classes que foi, e continua sendo intermediado
fundamentalmente pela propriedade privada, mais precisamente, pelo domínio da terra.
A expansão da agricultura na região estabelece relações fundamentadas na submissão e
dependência pessoal com o proprietário, predominando relações de apadrinhamento, de troca
de favores, intermediada por valores como gratidão, respeito e fidelidade por parte do
trabalhador rural; ao contrário do estabelecimento do contrato formal e do assalariamento. A
família e a tradição perpassam o poder político e a relação entre as classes de forma fulcral e
singular, o que dará a região a marca e o exemplo mais típico da figura de domínio do “coronel”
e, por conseguinte, da estrutura de poder atravessada pelo fenômeno do “coronelismo”. (LEAL,
1997).
Segundo Neves (2004), essas relações sofrem fissuras em decorrência, principalmente
a partir da metade do século XIX, da ocupação de terras por uma agricultura comercial
intensificada tanto pela valorização mundial do algodão como pela valorização das terras como
bem econômico provocada pela Lei de Terras de 1850. Na produção de algodão, logo após a
colheita, era comum soltar o gado para comer os “restolhos” da plantação (palha do milho e
rama do algodão), o que acabava servindo de ração suplementar para o rebanho, nos meses mais
secos. Em troca desses “restolhos”, os proprietários passavam a conceder pequenas parcelas de
terra aos “moradores” de suas propriedades. Ao passo que o algodão foi adquirindo maior valor
comercial, os proprietários começaram a exigir pelo pagamento da terra, também, uma parte do
157

produto, ou seja, uma parte da produção mais comum, no caso, milho e feijão 69.

[…] a proteção paternalista, devido à dimensão da população que a demandava,


tornou-se insuficiente, deixando sem alternativas de sobrevivência uma população de
centenas de milhares de pessoas [...]. O ‘dever de proteção’, parte integrante da
reciprocidade desigual das relações paternalistas, passa a ser exercido pelo Estado, na
impossibilidade de o exercerem os próprios proprietários. (NEVES, 2004, p.81).

A insuficiência da proteção paternalista e as demais transformações na economia


fomentaram péssimas condições de vida aos trabalhadores rurais, inclusive com a grande
escassez de alimentos, durante, principalmente, o início do século XX. Essa situação fez com
que milhares de famílias famintas migrassem para as cidades em busca de melhores condições
de vida, incidindo diretamente no acirramento dos conflitos sociais70. A maior expressão desse
processo passou a ser o intenso êxodo rural e a carestia que consagra a seca e seus “flagelos”
como um fenômeno social e expressão do aprofundamento da questão social, por exemplo no
Ceará, passando a demandar uma ação mais incisiva por parte do Estado. “Daí porque, a partir
de 1915, os retirantes transformaram-se em ‘flagelados’ (NEVES, 2004, p.89).
A ambigüidade estrutural da luta de classes que se conformava desdobra em um nascente
“movimento pendular da violência no Nordeste algodoeiro-pecuário” (OLIVEIRA, 2008, p.172)
tendo como expressão o fenômeno do “banditismo” representado pelas figuras dos cangaceiros
e jagunços. Isso tendo em vista que a população subalternizada passava a ter a compreensão de
que “as ações coletivas, rápidas e violentas, produziam um efeito imediato quando a proteção
não aparecia [...] enfim, a multidão formada pelos retirantes famintos, fundamentada em um
profundo senso de justiça, consegue repor alguns elementos da ordem paternalista que
lentamente se desestruturava” (NEVES, 2004, p.90). Por outro lado, é um contexto em que
emergem experiências importantes de luta pela terra, a exemplo do Caldeirão de Santa Cruz do
Deserto (1926-1937), na região do Cariri cearense, que “constitui, ainda hoje, um símbolo da

69
Dessa forma, “a chamada vocação agrícola para a produção do algodão está vinculada ao aumento de massa de
trabalhadores camponeses, privados da terra ou da possibilidade de acesso livre a esta, uma vez que a Lei de Terras
de 1850 colocou uma série de restrições à ocupação e apropriação de terras pelos trabalhadores livres.
Diferentemente da pecuária, a agricultura fixa e adensa demograficamente a população, que só tem como saída de
trabalho e sobrevivência colocar-se agregado, como trabalhadores sujeitos aos proprietários das terras”
(BARREIRA apud DINIZ, 2008, p.43).
70
“Através de invasões coordenadas, ameaças, ocupações de prédios e, em último caso, saques dos mercados de
alimentos, conseguiam realizar uma intensa pressão sobre as autoridades, sobre chefes de obras e sobre a população
das cidades, o que resultava, na maioria dos casos, numa tensa e silenciosa negociação em que se conseguia uma
distribuição de alimentos, um alistamento para uma obra, uma promessa [...]. Conflitos desencadeados pela
presença das multidões ameaçando os mercados das cidades interioranas e os barracões de abastecimento das obras
do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – antigo IFOCS) aconteceram em todo o estado.
As cidades, pouco a pouco, ganham uma população extra de famintos que a caridade particular não consegue
sequer avaliar” (NEVES, 2004, p.90-93).
158

resistência do trabalhador rural à violência permanente de uma sociedade baseada na extrema


concentração da propriedade fundiária e na desigual distribuição das riquezas”. (MARTINS,
2003, p.211).

A luta de classe, nesse contexto, assume formas também clássicas: serão os ‘rebeldes
primitivos’ [...] que tentarão opor-se a esse círculo de ferro, com debilidade própria
desses movimentos, estruturalmente determinada pelo caráter ambíguo de sua posição
dentro do contexto latifúndio-minifúndio: eles ainda não estão completamente
expropriados dos meios e instrumentos de produção; o que se lhes expropria é o
produto, não sua força-de-trabalho. [...] Nasce dessa ambiguidade o próprio
movimento pendular da violência no ‘Nordeste’ algodoeiro-pecuário: cangaceiros e
jagunços ora estão contra, ora a favor dos ‘coronéis’, ora punem, ora defendem
meeiros e pequenos sitiantes. Essa ambiguidade estrutural da luta de classes no
Nordeste algodoeiro-pecuário marcará no futuro o próprio movimento de explosão da
pax agrariae nordestina: as Ligas Camponesas reivindicarão inicialmente o direito à
terra, a extinção do ‘cambão’; será a dialética própria da estrutura íntima do latifúndio-
minifúndio, que não pode resolver uma das pontas do dilema sem afetar a outra, que
levará o movimento camponês do Nordeste [...] para além das suas iniciais
reivindicações. (OLIVEIRA, 1981, p.50).

As características desse contexto, particularmente no âmbito da luta de classes,


evidenciam sua heterodoxia que também pode ser entendida como manifestação do
desenvolvimento desigual e combinado, tal como ocorreu, guardadas as devidas proporções,
em realidades, como aquelas que apresentamos no primeiro capítulo, que não tiveram a
constituição de um padrão capitalista “clássico”. Teríamos no Brasil a constituição de uma nova
especificidade das classes sociais? Vejamos a resposta dada por Francisco de Oliveira (1981,
p.81) que, no nosso entendimento, se traduz em uma crítica ao dogmatismo e também em uma
adesão à perspectiva heterodoxa:

[...] se na ‘região’ industrial começa a aparecer de um lado uma burguesia industrial


e de outro um proletariado urbano, nas outras ‘regiões’, e especificamente no
Nordeste, o conflito de classes tomará a mesma forma; sua própria subordinação criará
as mesmas classes, e estas aparecerão como agentes e atores políticos, como na
‘região’ industrial; esse mecanismo levaria à suposição de que as diferenças que
surgem serão apenas de grau, isto é, existirá nas outras regiões uma burguesia mais
fraca e um proletariado mais débil, menos organizado, menos combativo. Um
mecanismo desse tipo que, reconheça-se, foi de certa forma muito incentivado por
uma classe de marxismo vulgar, está longe de corresponder e de utilizar o método
dialético em toda sua riqueza; mais radicalmente, está longe de ser dialético.

Tais aspectos demonstram o quanto é hibrida e diversa a formação das classes sociais
no Brasil e em suas regiões, tendo como exemplo disso a forma como se constituiu o
proletariado rural como também a burguesia agrária no Nordeste. Ao mesmo tempo, avançava,
primeira metade do século XX, nos centros urbanos dos principais estados, o processo de
estabelecimento de indústrias, como as do ramo têxtil, que possibilitou o ingresso de grupos
159

empresariais na região. A intensa exploração do trabalho assalariado com o cumprimento de


uma longa jornada de trabalho em condições insalubres impulsiona a organização dos
trabalhadores que fundam diversos sindicatos e partidos. A insurgência de movimentos de
contestação, também influenciados pelos movimentos de carestia, tem relevância nesse período
junto a contínuas greves. Diante esse cenário, a oligarquia vigente, em aliança com o nascente
empresariado e com os setores mais conservadores da Igreja Católica, passa a intervir junto ao
Estado como forma de acionar mecanismos de controle social e combate à influência socialista
e comunista.
Todo esse processo ocorre no momento em que o “fenômeno climático da seca” se
transforma em “fenômeno social complexo”, constitutivo da história do semiárido nordestino
71
e da conformação da questão social na região que o Estado brasileiro não poderá mais ignorar.
Trata-se de um período em que as mudanças na estrutura fundiária e nas relações sociais que a
sustentam, trazidas pela inserção da economia nordestina na divisão do trabalho, “sobretudo,
quando se insere no mercado mundial a partir da produção de algodão” (NOBRE, 2010, s/p) e
da forte industrialização nos centros urbanos, não deixavam espaços para a manutenção da
antiga ordem econômica sertaneja. As transformações desse período desdobraram-se em
consequências nas relações econômicas, atrelando o problema da “seca” diretamente ao da
“cerca”. 72

71
“Durante dezenas de anos, ele [o 'problema nordestino'] foi apresentado pelos políticos e técnicos como um
produto das secas periódicas, inevitáveis. Com o correr dos anos, as secas se transformaram no fulcro da questão.
Instituições e recursos governamentais foram organizados e canalizados continuamente para a região, a fim de
contornarem-se os efeitos indesejáveis da 'calamidade natural'. Entretanto, com a recolocação do problema em
bases mais científicas, a questão começou a mudar de significado. À medida que se expandia o capitalismo
industrial no Brasil e que a reintegração do Nordeste se colocava em termos mais objetivos para toda a nação,
ganhou bases científicas a análise do problema. Pouco a pouco, revelou-se que havia uma espécie de ilusão
semântica na interpretação do Nordeste. A manipulação ideológica dos fenômenos ligados às secas, pelos
latifundiários e políticos, havia conseguido canalizar para a região recursos de vulto, para manter a estrutura
econômico-social vigente, sobre a qual as secas seriam e serão sempre catastróficas. A questão, pois, não é apenas
fazer açudes e irrigar, mas ‘organizar e fortalecer a economia no sentido de distribuir na região as reservas
econômicas […]'. Por isso, 'é inútil tratar do Nordeste sem enfrentar os problemas econômicos fundamentais
envolvidos'. Já se reconhecia que as condições naturais adversas eram adversas ao tipo pré-capitalista de
distribuição da renda e organização social da produção” (IANNI, 1965, p.77-78).
72
“A meu ver, a fome que o Nordeste está atravessando […] é mais fenômeno de ordem social do que natural.
Mais do que a seca, o que acarreta esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva
do sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite possuir nenhuma reserva para enfrentar
as épocas difíceis […]. A meu ver, a causa essencial, central, contra a qual temos de lutar todos, é o regime
inadequado da estrutura agrária da região, o regime impróprio com o grande latifundiarismo, ao lado do
minifundiarismo, reinantes no Nordeste do Brasil. […] o latifúndio é o irmão siamês do arcaísmo técnico. Nessas
áreas latifundiárias, se pratica uma agricultura primária, uma proto-agricultura, sem assistência técnica, sem
adubação, sem seleção de sementes, sem a mecanização, e pelos processos mais rudimentares, exaurindo a força
do pobre sertanejo para produzir menos do que o suficiente para matar sua fome. O latifúndio nessa região é
representado pelo fato estatístico significativo de que, de 1940 a 1950, […] este tamanho aumentou e vem
aumentando de tal forma que, hoje, no Nordeste, apenas 20% dos habitantes das regiões rurais possuem terra; 80%
trabalham como arrendatários, como parceiros ou como colonos, porque a terra é monopolizada por pequeno
grupo.”. (CASTRO, 1956, s/p).
160

Com o declínio da produção de algodão, as estreitas relações entre os proprietários e o


Estado permitiram, via política de créditos e incentivos fiscais, que os latifundiários
encontrassem outra forma de organização da produção, modernizando as grandes propriedades
e intensificando a pecuária com a criação extensiva. Essas políticas modernizantes foram
decisivas para as mudanças nas relações de trabalho no sertão, desde a mudança no regime de
parceria até a introdução do assalariamento. Com isso, o produtor que se assalariou ficou no
limbo: sem as garantias trabalhistas legais destinadas aos trabalhadores urbanos e sem o direito
aos benefícios criados na terra do patrão, o que agravou os problemas da estrutura fundiária,
forçando condições adversas para os trabalhadores rurais.
Assim, a construção do tecido social na região é caracterizada por relações sociais
próprias de um modelo de produção que promove níveis cada vez maiores de concentração de
renda e terra. Isso decorre em medidas incongruentes a ação do Estado, via políticas públicas,
que carrega em si o forte caráter da “modernização conservadora”. Tais medidas, que serão
melhor trabalhadas no próximo item, tomam maior vigor com a ascensão da industrialização
em território nacional.
Esse contexto fomentou uma concentração territorial de novo tipo da riqueza produzida
no país, intensificando a divisão interregional do trabalho que sujeitou regiões como o Nordeste
a deslocar mão-de-obra para outros estados em um movimento migratório também do campo à
cidade73 como forma de regulação da economia, da oferta da força de trabalho, em território
nacional, tal como já sinalizamos. Porém, para Facó (1963, p.31-32), esse fenômeno também
representou “na prática uma rutura com o latifúndio, um sério desfalque para ele. […] a
emigração em massa de trabalhadores rurais do Nordeste […] tinha o valor de uma tomada de
consciência de sua situação anterior. Viam que podiam livrar-se do punho de ferro do
latifundiário [...]”. Ou seja, para o autor, esse processo refletiu também em uma reação por parte
dos trabalhadores a condição servil e degradante em que viviam, de completa submissão ao
latifundiário e de expropriação do trabalho excedente e necessário por mecanismos dos mais
rudimentares de exploração da força de trabalho, o que nos faz lembrar de um conhecido trecho
do poema de Bertold Brecht (1949) que enfaticamente anuncia: “De agora em diante temeremos
mais a miséria que a morte”. Eis a perspectiva que se destacou entre os trabalhadores rurais na

73
Essa realidade foi interpretada por diversos vieses. Dentre estes, aquele em que um dos principais pensadores
foi Celso Furtado, tal como nos apresenta Oliveira (1993, p. 44-45): “A rigor, ele percebe a Questão Regional em
termos de um diagnóstico, o qual foi a base da criação da SUDENE, com todos seus explosivos ingredientes, mas
inverte a equação: a migração de nordestinos estaria fazendo baixar o salário real dos trabalhadores da nova
industrialização no Centro-Sul, considerada como ameaça à unidade nacional, ao invés de solução para a questão
da mão-de-obra, clássico componente, desde o século XIX, da Questão Regional!”.
161

leitura de Facó (1963).

Embora pareça paradoxal, a rutura da estagnação se inicia com o êxodo em massa de


emigrantes nordestinos, inicialmente para a Amazônia, mais tarde para São Paulo. […]
A emigração em larga escala se inicia com a grande seca de 1877 a 1879, a qual deixou
memória em toda a região, até os dias de hoje. […] Estima-se que, num só ano, em
1878, a população deslocada do interior do Ceará totalizou 120.000 pessoas, quando
a população total da província era de pouco mais de 800.000 habitantes. Os deslocados
– em geral, vaqueiros, moradores, pequenos proprietários – em parte conseguem
embarcar para fora do estado […], em parte morrem de fome e enfermidades nos
subúrbios de Fortaleza ou nos caminhos dos sertões […]. Um grande número voltava
ao Ceará, sobretudo nas épocas de queda do preço da borracha. Os latifundiários
nordestinos, nos anos de chuvas normais, facilitavam esse regresso […]. Era o que
precisamente queriam os latifundiários cearenses: que em condições “normais” lhes
sobrasse a mão-de-obra dos que não tinham terra, dos que eram obrigados a vender
pela comida de um dia o fruto do trabalho de 12 horas no cabo da enxada. O próprio
Governo do Ceará, nos começos do século, mandava fornecer passagens para a volta
dos emigrantes. Mas o homem que voltava não era o mesmo. […] Cria-se no Nordeste
uma espécie de nomadismo permanente […]. A seca expulsa-os e congrega-os.
(FACÓ, 1963, p.29-36).

Inevitavelmente, a concentração de riquezas e sua apropriação privada representaram a


socialização do trabalho e a concentração, também territorial, da pobreza em regiões que vivem
o fenômeno do pauperismo de forma mais latente, refletindo alterações na composição interna
da superpopulação relativa – sobretudo com o adensamento de “segmentos inferiores do
proletariado, e deste para o lumpemproletariado” – e nas formas de extração de mais-valia
(GUIMARÃES, 2008). Sobre isso, vejamos o que Furtado ([1959] 2003, p.248-249) nos
apresenta:

A coexistência das duas regiões numa mesma economia tem consequências práticas
de grande importância. Assim, o fluxo de mão-de-obra da região de mais baixa
produtividade para a de mais alta, mesmo que não alcance grandes proporções
relativas, tenderá a pressionar sobre o nível de salário desta última, impedindo que os
mesmos acompanhem a elevação da produtividade. Essa baixa relativa do nível de
salários traduz-se em melhora relativa da rentabilidade média dos capitais invertidos.
Em consequência, os próprios capitais que se formam na região mais pobre tendem a
emigrar para a mais rica.

Esse movimento de concentração e centralização do capital em território nacional


adensará as desigualdades regionais. Estas, nesse momento, demandam o reconhecimento por
parte do Estado que assume gradativamente funções no âmbito da “estratégia do
desenvolvimento regional” mediante a emblemática criação de instituições de planejamento
regional voltadas para o necessário enfrentamento a questão regional. Tema que
aprofundaremos nas próximas páginas.
162

2.3.2. “Existirmos: a que será que se destina?” 74


: planejamento, desenvolvimentismo e
questão regional

Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores: - De que morreu


essa novilha, se não é da minha conta? Um dos homens levantou-se, com a faca
escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o
todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não
dar para os urubus. Chico Bento cuspiu longe, enojado: E vosmecês têm coragem de
comer isso? Me ripuna só de olhar... O outro explicou calmamente: - Faz dois dias
que a gente não bota um de-comer de panela na boca... Chico Bento alargou os braços,
num gesto de fraternidade: - Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação
salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou
lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!
Realmente a vaca já fedia, por causa da doença. Toda descarnada, formando um
grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la, lá de cima, lá da frieza
mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado executavam no ar grandes rondas
festivas, negrejando as asas pretas em espirais descendentes. E o bode sumiu-se todo...
Cordulina assustou-se: - Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta
que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se
perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haverá de deixar esses desgraçados
roerem osso podre... (QUEIROZ, [1930] 1937, s/p).

O trecho do romance acima retrata o cenário marcado por dois fenômenos, decisivos
não apenas para a construção ideológica de uma imagem do Nordeste e do nordestino, mas
também causas mais emblemáticas, vinculadas a outras, sob as quais se legitimarão as algumas
inciativas estatais. Referimo-nos a seca e a fome no sertão nordestino do início do século XX,
período em que novas estratégias, voltadas para o enfrentamento da questão social no Nordeste,
começam a ser implementadas por parte do Estado. Essas ações serão direcionadas ao processo
de “integração nacional” ou, em outras palavras, de expansão intensiva e extensiva do capital
na realidade nacional.
A consolidação do “imperialismo total”, nas palavras de Florestan Fernandes ([1973]
2009), ou o avanço da expansão do capitalismo monopolista e de suas contradições no âmbito
do seu desenvolvimento desigual e combinado que se expressa no território, nacional e
regionalmente, exigiu alguns mecanismos prioritários por parte do Estado na tentativa de
combater supostos desequilíbrios regionais. Mecanismos estes necessários inclusive para
viabilizar tal consolidação via integração nacional diante da decadência da burguesia industrial,
do declínio do pacto populista, da penetração de grupo econômicos e mercadorias produzidas
no Centro-Sul e no Nordeste, da destruição da economia regional promovendo uma
superacumulação e do adensamento das forças populares no Nordeste ameaçando a hegemonia

74
Trecho retirado da música “Cajuína” do compositor e cantor baiano Caetano Veloso.
163

burguesa nacional, o que se tornou central para a consagração no discurso oficial do território
nordestino como “região problema”.
Esse quadro compõe o desenho da hegemonia do capitalismo monopolista brasileiro sob
a ideologia desenvolvimentista na qual o “desenvolvimento econômico surge como redenção
nacional”. Assim, dialogando com o que já apresentamos no Capítulo 1 sobre esse tema,
reforçamos o seguinte:

O desenvolvimentismo se apresenta como se bastasse a industrialização para resolver


todos os males da Nação. Tudo o mais viria em decorrência dela. Ignora que não é à
exportação por si só, nem ao tipo de produto que a compõe, que cabe a
responsabilidade pelo subdesenvolvimento, mas sim às relações sociais que
engendram a forma de organização da sua produção. [...] Sua atenção totalmente
centrada no desenvolvimento, mantendo intocada a ordem vigente, mostra bem a sua
dimensão de ideologia dominante e indica a sua constituição por forças ascendentes
dentro do esquema de domínio em vigor. [...] Sabemos que é próprio do sistema
capitalista necessitar da expansão para preservar-se. [...] No campo dos países
subdesenvolvidos, no entanto, a ideologia desenvolvimentista faz com que esta
clareza fique cada vez mais distante. (CARDOSO, 1978, p.412).

Portanto, uma marca da política de desenvolvimento regional no Brasil,


desenvolvimentista, é ter sido centrada historicamente em uma concepção de Estado
aparentemente acima dos interesses de classes com função reguladora que supostamente teria a
capacidade de corrigir tendências do mercado como o acesso restrito a determinadas regiões
“aos dividendos da civilização urbano industrial […] limitando o usufruto de emprego e renda
para a maioria da população”. Todavia, a constatação é que, por exemplo, “as carências hídricas
decorrem do padrão de exploração e desenvolvimento” e têm servido “como mediação para o
florescimento da ‘indústria da seca’, […] um modo das elites regionais participarem
materialmente do jogo das forças no interior da classe dominante”. (BARBOSA, 2012, p.38-
42).
Outro aspecto importante acerca da política desenvolvimentista, é que, sendo atrelada a
ideologia desenvolvimentista, concebe o atraso como um problema a ser superado,
supostamente oposto ao desenvolvimento capitalista. 75 Como se este se remetesse somente ao
seu potencial civilizatório. Daí a crítica de Francisco de Oliveira (1981, p.17) sobre o peso do

75
Para melhor entendermos a concepção de atraso que predominava nesse período, recorremos às palavras de
Miriam Limoeiro Cardoso (1978, p.414). Para ela, segundo a ideologia desenvolvimentista, “o atraso do país e a
pobreza de seu povo são devidos às forças políticas tradicionais, apegadas ao passado; o desenvolvimentismo,
porém, surge como mensagem de forças novas, progressistas, que restabelecerão a justiça, promovendo a
prosperidade – estritamente dentro da ordem. [...] As gritantes desigualdades entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos passam a ser meras questões de atraso que uma administração laboriosa pode corrigir,
acelerando o ritmo do crescimento. As enormes diferenças entre regiões, entre setores econômicos ou entre grupos
sociais ricos e pobres e as tensões que derivam delas são percebidas, sim, mas são tratadas como sendo apenas
resultantes de ações cuja orientação política se discute.”.
164

grande capital internacional no Nordeste quanto ao seu papel civilizatório que, ao contrário do
que propalava, representou, na verdade, opressão e negação de futuro. Contudo, é interessante
observar que tais políticas, na luta contra as forças do atraso, retrógradas, carregam contradições
que acabavam por torná-las, em meio a nossa “especificidade particular”, progressistas. Isso
tendo em vista que a reprodução de tais forças era também o que garantia a reprodução do
capital nas regiões, particularmente no Nordeste, tal como vimos no item anterior. Esse traço
será motivo de conflitos de classes que atravessarão essas políticas, expressos, por exemplo,
com maior força logo em que a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)
é criada.

[…] a criação da SUDENE, em 1959, colocou em termos totalmente diversos toda a


interpretação dos problemas econômico-sociais e humanos na região nordestina.
Houve um momento do processo do desenvolvimento econômico do Brasil em que
foi necessário reorientar a política do governo, impondo-se o desmascaramento das
interpretações tradicionais sobre as relações entre a miséria e a falta de chuvas naquela
região. […] produzindo a criação de órgãos e instrumentos destinados a estimular a
expansão e a diversificação das atividades produtivas. […] Agora os governantes
estão empenhados em programas setoriais, regionais ou mesmo globais de
desenvolvimento. Estimulado pelas tensões internas e externas do sistema, o Estado
assumiu funções mais amplas, destinadas a dinamizar e orientar as expansões das
forças produtivas. […] Desta forma os problemas são retomados com uma nova
mentalidade, sem reduzi-los à variável única, incontrolada e às vezes fictícia da seca.
[…] O combate às secas reais ou ilusórias, a proteção do seringueiro […] ou do
caboclo às margens do São Francisco […] estão em certo grau voltados para a
aceleração e controle do desenvolvimento econômico nacional. Note-se, também para
o controle das tendências de expansão das forças produtivas (IANNI, 1965, p.46-57).

De acordo com Vieira (2006, p.150-151), mesmo com “resistência por parte da
oligarquia rural nordestina” tendo em vista a “necessidade de manter o Estado no Nordeste
capturado” pelo “bloco regional”, as ações do poder público que marcam esse período,
especialmente a partir de 1950, representam não apenas o esforço em impulsionar o
desenvolvimento nacional e regional via industrialização como a conformação de uma “nova
aliança, um novo bloco histórico, que assumirá, com muitos conflitos, é claro - o Golpe de 1964
é o corolário deles, - a direção das políticas de Estado no Brasil”. Para o autor, trata-se de uma
“aliança estrutural” dirigida pela “burguesia industrial do Sudeste, o grande capital externo, o
Estado, que já vinha cumprindo funções econômicas essenciais, e incluirá também os grandes
proprietários de terra, inclusive os nordestinos” 76.

76
A política de “desenvolvimento regional” do regime militar favoreceu os grandes proprietários que, com o acesso
a recursos financeiros, cercam suas propriedades, dotando-as de benfeitorias, a exemplo de açudes privados. Esta
situação reforçou as péssimas condições de vida no campo que contribuiu para intensificar o êxodo de um grande
contingente de pessoas para os centros urbanos de outras regiões do país, a exemplo do Centro-sul, entre as décadas
de 1950 a 1980. Por outro lado, contraditoriamente, com a multiplicação de programas de “desenvolvimento do
165

A SUDENE, procurando resolver “por cima” a transformação econômica regional que


não foi lograda nos anos 60, conformou-se ao velho papel de “regaço materno na terra
madrasta”. Mais tarde, a ditadura já em decomposição, o “pacote de abril” do general
Geisel restaurou uma super-representação política das elites nordestinas como fiel
guardiã da ordem conservadora. […] Em outras palavras, a restauração da
“naturalidade” da opressão no Nordeste, quando, de forma maniqueísta, não se pensa
a recíproca influência entre sociedade e natureza na determinação do “Nordeste
enquanto problema nacional”, é hoje o mecanismo mais eficaz a perpetuar os velhos,
mas renovados, arranjos de poder (DÓRIA, 2007, p.285-286)

Eis mais um exemplo na nossa história de revolução passiva no movimento que é


restaurador, mas, ao mesmo tempo, modernizador. A partir desse “pacto”, ganha força políticas
de modernização da agricultura que criam e reproduzem impasses para a realidade da reforma
agrária, reivindicação central de movimentos populares do período, como as Ligas Camponesas,
que representaram, por um lado, grande ameaça entre os governantes e setores dominantes e,
por outro, “do lado dos setores democráticos da sociedade nascia grande esperança de que os
nordestinos, em especial os sertanejos, fossem capazes de tomar o destino histórico em suas
próprias mãos…” (Ibid., p.280).
Nesse sentido, as pretensões desenvolvimentistas não atuaram, em suma, no sentido de
“promover uma integração antes inexistente, mas sim no de tornar mais proveitoso um vínculo
já estabelecido, fortalecendo-o ao criar condições para que a principalidade de sua efetivação
passe a ser através de um novo setor produtivo, mais capaz de se autopropulsionar e de produzir
efeitos positivos em outros setores”. (CARDOSO, 1978, p.410-411). Em outras palavras, a
lógica acabou sendo a de impulsionar aquela integração nacional sobre a qual retratamos no
item anterior: de reprodução do “subdesenvolvimento” (e da dependência inter-regional),
garantindo a expansão capitalista, a recomposição do capital, a nova divisão regional do
trabalho 77 e, consequentemente, a refuncionalização dos papéis de cada região para o “novo
projeto nacional”. No caso do Nordeste, sua condição de reserva do exército industrial torna-se

Nordeste”, crescem “também as possibilidades de trabalho, distribuição de alimentos e assistência médica, temas
centrais nas lutas dos retirantes e dos sindicatos de trabalhadores rurais” (NEVES, 2004, p.95). Dessa forma, a
estratégia de “combate à seca” e de “fixar o homem no campo” das políticas desenvolvimentistas, com o objetivo
de manter o controle e poder dos “clãs políticos familiares” (NOBRE, 2010), possibilitaram também, segundo o
autor, que “os canteiros de obras em cidades do interior” passassem “a atrair os retirantes, redirecionando os fluxos
migratórios” (NEVES, 2004).
77
“[...] o processo em causa é o da substituição de uma economia nacional formada por várias economias regionais
para uma economia nacional localizada em diversas partes do território nacional. [...] significa precisamente que
é o crescimento industrial da região Sudeste que está formando ou reformando a distribuição espacial das
atividades econômicas no território do País. [...] tem-se a partir daqui a criação de uma economia nacional
regionalmente localizada. A divisão social do trabalho ao nível de cada região, isoladamente considerada, será
função do tipo e natureza das ligações que ela mantiver com a região líder [...] a divisão social do trabalho não é
o reflexo de um mercado regional ou vice-versa.” (OLIVEIRA, 1977, p.55-56).
166

cada vez mais precisa.


Ao contrário do que existia antes, quando as economias regionais se ligavam ao exterior,
ao capital internacional, quase que como num circuito interno, agora, “uma das ‘regiões’
assume o comando do processo de expansão do capitalismo, voltado [...] sobretudo à realização
interna do valor”. Daí a necessidade de entender os movimentos migratórios internos, que se
intensificam no pós-guerra, como expressão desse processo, transformando “uma ‘população
para as regiões’ em uma ‘população para a nação’. Restava [...] submeter o próprio capital das
outras ‘regiões’ às leis de reprodução e às suas formas, que passavam a ser predominantes na
‘região’ que assumiu o controle do processo de industrialização”, no caso, o Sudeste ou, como
era denominado antes, o Centro-Sul. (OLIVEIRA, 1981, p.77).

Esse movimento dialético destrói para concentrar, e capta o excedente das outras
regiões para centralizar o capital. O resultado é que, em sua etapa inicial, a quebra das
barreiras inter-regionais, a expansão do sistema de transportes facilitando a circulação
nacional das mercadorias, produzidas agora no centro de gravidade da expansão do
sistema, são em si mesmas tantas outras formas do movimento de concentração; e a
exportação de capitais das regiões em estagnação são a forma do movimento de
centralização. Aparentemente, pois, sucede de início uma destruição das economias
‘regionais’, mas essa destruição não é senão uma das formas da expansão do sistema
em escala nacional. (OLIVEIRA, 1981, p.76).

Mais um exemplo de como o “problema regional” não se configura devido à ausência


de um crescimento econômico. Assim, é importante ressaltar, de acordo com Fernandes ([1968]
2008, p.186), que essa integração não representará o fim das desigualdades regionais e da
concentração de renda, poder e riquezas em um país que pudesse dar um passo a frente em sua
soberania nacional, mas um “caminho penoso, que passa pela crise da economia agrária, sua
desagregação e lenta reorganização, e se concretiza através das migrações internas”.
Do ponto de vista das classes subalternas, particularmente nordestinas, unem-se nesse
processo “a fuga do meio rural, a desagregação de formas mais ou menos arcaicas de economia
agrária e os dramas coletivos nas áreas de concentração demográfica com as reais ou falsas
esperanças de conquista de um lugar dignificante na torrente histórica.”. Acirram-se, desse
modo, os conflitos entre as regiões que passam a compor de forma mais orgânica um
movimento pendular e contraditório de estagnação e crescimento entre as regiões, impulso e
resultado da relação arcaico-moderno que conforma o capitalismo brasileiro. Sobre isso,
vejamos o que ainda nos diz Oliveira (1977, p.72).

O processo de redivisão, partindo da indústria do Sudeste, é amplo e atinge todas as


regiões. Transfere e repassa tarefas agropecuárias para outras regiões, tais como o
Nordeste e o Sul, cria uma outra região, como o Centro-Oeste, destrói numa primeira
167

etapa ou reduz o crescimento da indústria no Sul e no Nordeste; apenas o Norte


mantém-se relativamente imune aos seus efeitos, em virtude da inexistência de uma
infra-estrutura de transporte que viabilize a integração (esse isolamento começou a ser
rompido com a Belém-Brasília). O crescimento industrial do Sudeste cria e amplia a
fronteira agrícola, reproduzindo, nas margens, formas de acumulação não
inteiramente capitalísticas, das quais transfere excedente que vai reforçar a capacidade
de acumulação no próprio Sudeste.

Esse movimento de estagnação e crescimento entre as regiões, visível na transformação


do “Nordeste açucareiro” em “Nordeste algodoeiro-pecuário”, implicou tendencialmente na
dissolução das circularidades específicas do processo de reprodução das economias regionais,
na destruição dos capitais no Nordeste e na sua decorrente dificuldade de competir frente ao
freio na industrialização da região, sua baixa produtividade, impulso às atividades agrícolas e a
transferência de excedente para outras regiões. Essa tendência na nova divisão regional do
trabalho demonstra uma característica central do movimento do capital: a criação com a
destruição, vice-versa. Tudo isso, como vimos no item anterior, exigiu a recomposição de
relações de trabalho com maior exploração que viabilizassem a criação de uma superpopulação
relativa e a produção de alimentos para a reprodução da massa urbana a baixo curto. 78 Os
efeitos desse processo reafirmam o caráter anárquico da produção capitalista que se expressa
territorialmente no aprofundamento das desigualdades regionais.

No fim da década de 50, o problema foi percebido como um alargamento das


disparidades principalmente entre a região Sudeste – chamada Centro-Sul nos termos
de então – e o Nordeste, motivado, de um lado, pelo crescimento industrial do Sudeste
e, de outro, pela perda de capacidade de competição das atividades eminentemente
exportadoras do Nordeste, havendo, no entanto, uma curiosa alimentação do
crescimento do Sudeste pelos excedentes gerados no Nordeste. Esta era a tese contida
em documentos como ‘Uma política de desenvolvimento para o Nordeste’, sobre a
qual desenhou-se toda uma estratégia de resolução do ‘problema regional’ de então.
(OLIVEIRA, 1977, p.41).

Chamamos a atenção para a importância em situar o Estado enquanto esfera que, em


meio as contradições próprias da sociabilidade capitalista, viabiliza condições para o
“desenvolvimento nacional e regional”. Daí a necessidade mais planejada da ação estatal, tendo

78
A partir dos estudos desenvolvidos por Oliveira (1977, p.47), no período de 1947 a 1968 houve um aumento da
participação da indústria em detrimento da agricultura, especialmente no Sudeste. De acordo com o autor, “[...] a
renda gerada pela indústria daquela região [Sudeste], que, em 1947, representava 19,4% da renda interna total da
região, passa a representar, em 1968, 31,5%. Em compensação, para o Nordeste o quadro não se altera (10,6%), e
para o Sul o crescimento é pequeno: 13,3% em 1947 contra 15,2% em 1968.”. Concomitantemente, ocorreu a
queda da participação do comércio, dos transportes e da comunicação, representando uma baixa capitalização do
setor de serviços no Brasil dessa época. Tudo isso parte do processo de redefinição do desenvolvimento inter-
regional no país que, inclusive, impulsiona a criação da região Centro-Oeste. Esta, sendo, “evidentemente, uma
criação do Sudeste, e, apenas no que se refere ao seu setor agrícola, pode ser considerada como uma ‘reserva de
acumulação primitiva’ para a expansão do sistema [...]” (OLIVEIRA, 1977, p.74).
168

em vista que o Estado, ao contrário das ideias liberais, nas suas mais diversas vertentes, não é
mero regulador, mas verdadeiro promotor de processos de acumulação, especialmente em
formações sociais como a brasileira. Afinal, a nova divisão do trabalho demandava uma
intervenção mais técnica e planejada para comandar o trabalho produtivo, garantindo a criação
e hegemonia de um “novo centro dinâmico, ainda que secundário, dentro do sistema em
expansão” como também “a formação de mão-de-obra qualificada para a indústria” que “passa
a definir toda a preocupação desenvolvimentista com a política educacional. Isto é, trata-se de
uma educação que tem por finalidade adequar as novas gerações ao projeto de desenvolvimento
em curso [...]” (CARDOSO, 1978, p.426-428).
Assim, o tema do desenvolvimento na realidade brasileira, enquanto “um processo de
acumulação privada de capital” que “envolve capital, força de trabalho, tecnologia e divisão
social do trabalho, como forças produtivas principais” (IANNI, 1979, p.06), é atravessado pela
emblemática política voltada para o desenvolvimento e planejamento regional 79, respaldada
predominantemente na ideologia desenvolvimentista que, tal como vimos, reforça a
necessidade da superação do “subdesenvolvimento” 80 , encobrindo o “caráter produtivo do
atraso” e a disparidade regional como um “modo de ser classe dominante” (BARBOSA, 2012,
p.42).

79
“A ação ‘planejada’ do Estado [...] ocorre somente quando a luta de classes chega a um ponto de ruptura, em
que não apenas a estrutura existente não tem mais condições de continuar a reproduzir-se, como se vê seriamente
ameaçada pela emergência política dos agentes que lhes são contrários. Não é a estagnação que força ao
planejamento, nem apenas a situação de miséria das massas camponesas e trabalhadoras do ‘Nordeste’ algodoeiro-
pecuário [...] no Nordeste como um todo, essa estagnação refletia sobretudo a submissão da burguesia industrial
aos interesses da oligarquia agrária algodoeira-pecuária e portanto a dinâmica dessa oligarquia, sua expansão.
Quanto à miséria, essa era e é secular; o que existiu de novo em tal miséria, transformando o conflito de classes
[...], é sua politização: é sua insolubilidade nos mesmos termos de reprodução da estrutura produtiva do ‘Nordeste”
algodoeiro-pecuário’.” (OLIVEIRA, 1981, p.52).
80
“No país ‘subdesenvolvido’, a industrialização é simultaneamente um processo de ruptura com o presente. […]
Em alguns casos, a ruptura é total, como ocorre nas nações que optam pelo desenvolvimento segundo o modo
socialista de organização da produção. […] implica na negação plena do presente, isto é, do modo capitalista de
produção, em sua forma colonial, semicolonial ou realizada. Em outros casos dá-se apenas uma interrupção
ocasional, uma quebra transitória daquelas relações da nação consigo mesma e com o exterior. É o que está
acontecendo com o Brasil. O desenvolvimentismo é a ideologia dessa ruptura parcial, frustra, das nações que
optam pelo desenvolvimento capitalista. Implica numa concepção abstrata da história, em que as contradições
essenciais do sistema submergem nas soluções verbais da ideologia burguesa. A industrialização de tipo capitalista,
como ocorre no Brasil, produziu-se com o desenvolvimentismo, que é seu ingrediente ideológico fundamental.
Nacionalista ou associado ao capital externo, esse desenvolvimentismo faz parte da corrente de ideias característica
dessa etapa de transição do sistema econômico social nacional. […] exprime a conversão do poder econômico da
burguesia industrial em poder político […]. O Estado patrimonial se converte em Estado burguês. Nessa concepção,
desenvolvimento significa industrialização.” (IANNI, 1965, p.107-108). Já nas palavras de Marini (2010, p.110-
111), “o desenvolvimentismo foi a ideologia da burguesia industrial latino-americana, especialmente daquela que
[…] tratava de ampliar seu espaço às custas desta última, recorrendo, para isso, à aliança com o proletariado
industrial e com a classe média assalariada. […], mediante a crítica ao esquema tradicional de divisão internacional
do trabalho, exigia dos grandes centros capitalistas o estabelecimento de um novo tipo de relação. No entanto,
apesar de rechaçar o modelo primário-exportador e de abrir fogo contra a velha classe dominante, relutava em
apresentar a reforma agrária como premissa do modelo industrial [...]”.
169

Essa política, na verdade, obtém relevo antes mesmo dos anos 1950, a partir dos anos
1930 81 , tendo como eixo central a acumulação de capital associada ao processo de
industrialização mediante as metamorfoses do “capital agrícola” (em capital industrial sob a
mediação do capital comercial e do capital financeiro), ainda expressão da complexificação de
“uma nova nação que se esboça no seio do empreendimento comercial inaugurado pelos
portugueses” na colonização. (PRADO JR, 1972, p.30).
Vale lembrar que o período de reintegração da economia nacional ao sistema
internacional em que a industrialização começou a preponderar envolve “não apenas novas
técnicas de evasão do excedente econômico como também a transformação do Brasil numa
nação ‘associada’ do capitalismo internacional. Em outras palavras, ao mesmo tempo realiza-
se e frustra-se a revolução burguesa no Brasil” (IANNI, 1965, p.41-42).
É, portanto, de um processo que não se restringe ao âmbito interno, mas implica também
“numa política de controle e incentivos que opera também na faixa das relações externas do
Brasil […]. Daí a necessidade de medidas de disciplina do câmbio, conjugadas com uma
política aduaneira destinada ao máximo aproveitamento da capacidade de importação” (Ibid.,
p.19). As forças produtivas passam a ter “novos canais de expressão” em uma fase de
desenvolvimento com a orientação de dinamizar e diversificar as atividades produtivas.

Trata-se de desenvolvimento porque a estrutura econômica se encontra em


modificação e os instrumentos criados se destinam exatamente a acelerar e ampliar a
transformação estrutural. Neste caso, trata-se de uma orientação tipicamente
capitalista, decidida a instaurar e fazer difundir-se uma racionalidade diversa da
patrimonial. […] Todavia, enquanto se preservam os segmentos coloniais do sistema
econômico-social brasileiro, muitas soluções serão de tipo tradicional. […] o
desenvolvimento equilibrado se impõe como um alvo permanente no jogo das forças
políticas em luta pelo excedente e as formas mais produtivas do capital. (IANNI, 1965,
p.52-56).

Para Florestan Fernandes (1978, p.11), é um contexto “de oscilação mais agudo na
transição para o capitalismo monopolista”, quando os setores burgueses do país “ainda
pensavam articular o tipo de imperialismo emergente no após-guerra [...] às estruturas de poder
consolidadas através de uma economia basicamente exportadora e às velhas ilusões de que os
dinamismos do sistema capitalista mundial deixariam espaço para as revoluções burguesas em
atraso.”. Nas palavras de Francisco de Oliveira (2013, p.61), trata-se de um período que contêm
alguma “especificidade particular”, onde “a história e o processo da economia brasileira podem

81
“A Revolução de 30 amplifica a unificação do mercado, derruba as fronteiras estaduais, criando o espaço para a
circulação ampliada das mercadorias, o que significa imenso reforço à acumulação de capital, pelo aumento da
velocidade da sua circulação, pela mais rápida metamorfose da forma-mercadoria para a forma-dinheiro e, desta,
novamente para a forma capital-dinheiro” (OLIVEIRA, 1993, p. 51-52).
170

ser entendidos, de modo geral, como a da expansão de uma economia capitalista [...] mas essa
expansão não repete nem reproduz ipis litteris o modelo clássico do capitalismo nos países mais
desenvolvidos, nem a estrutura que é o seu resultado”.

[...] emerge a revolução burguesa no Brasil. O populismo será sua forma política, e
essa é uma das ‘especificidades particulares’ da expansão do sistema. Ao contrário da
revolução burguesa ‘clássica’, a mudança das classes proprietárias rurais pelas novas
classes burguesas empresário-industriais não exigirá, no Brasil, uma ruptura total do
sistema, não apenas por razões genéticas, mas por razões estruturais. Aqui, passa-se
uma crise nas relações externas com o resto do sistema, enquanto no modelo ‘clássico’
a crise é na totalidade da economia e da sociedade. (OLIVEIRA, 2013, p.63).

Lembramos da importância central do Estado, especialmente na dinamização das forças


produtivas como uma “alavanca” para o desenvolvimento e a integração nacional, criando
estímulos à reprodução capitalista, fazendo com que “as tendências reais” tornem “obsoleta a
concepção liberal sobre as relações do governo com o mundo da produção”. Isto
particularmente no século XX, contexto em que o “Estado foi levado a assumir e ampliar as
suas funções, tomando decisões que o colocaram no centro da política econômica nacional”,
participando diretamente da fase monopólica do desenvolvimento capitalista82, de “luta pela
apropriação do excedente econômico” e “controle da expansão das forças produtivas” (IANNI,
1965, p.03-05). O Estado, portanto, ao contrário do que propaga a ideologia (neo)liberal,
especialmente no Brasil, não é, nem foi, um mero “mediador nas condições concretas da
expansão capitalista no Centro-Sul do Brasil, mas, ao contrário, o núcleo da contradição; e
portanto sobre ele, sobre sua forma, sobre sua direção, dirigiam-se”, e ainda dirigem-se, os
embates entre as classes sociais e suas frações (OLIVEIRA, 1981,p.88). Entendendo que tais
embates se configuram também regionalmente, a presença do Estado no Nordeste foi de
fundamental importância para descapitalizar a economia da região em favor do centro da
acumulação também localizado regionalmente.
De acordo com Oliveira (1981, p.87), o Estado, nesse sentido, adentra a esfera produtiva
impulsionando “uma espécie de acumulação primitiva cujos frutos, sem lugar a dúvidas, vão
parar nas mãos da burguesia industrial”. Para respaldar tal afirmação, o autor nos oferece como

82
“São a concentração e a centralização do capital que governam parcela dos instrumentos e medidas postos em
prática pelo Estado […]. A concentração é um processo que consiste no aumento do capital das unidades
empresariais, pela capitalização da mais-valia ali produzida. Ao passo que a centralização é um processo através
do qual se realiza a reunião de capitais individuais diversos em um só. São duas tendências fundamentais na
acumulação capitalista. […] À medida que se acelera a concentração de capital, desenvolve-se a centralização, isto
é, a absorção de empresas menores. Inversamente, a integração de empresas impulsiona a concentração de capital.
Mas esses processos não se dão apenas internamente. Eles ocorrem simultaneamente no interior da nação e no
âmbito do sistema capitalista mundial, o que cria problemas especiais quando se trata de por em prática políticas
de desenvolvimento.” (IANNI, 1965, p.22)
171

exemplo o papel da legislação trabalhista na primeira metade do século XX, associando a uma
das formas de realização por parte do Estado da tal “acumulação primitiva”. Vejamos o
exemplo dado:

[...] as ‘vantagens’ do proletariado ligado às empresas do Estado, ou as ‘vantagens’


de certas porções do operariado localizado nas atividades do transporte (ferroviários,
portuários, etc.), não afetavam na verdade a acumulação que o Estado transferia para
a burguesia industrial. As empresas do Estado nessa fase são sobretudo agentes da
divisão técnica do Trabalho; em outras palavras: mediante a captura de impostos o
Estado, pelas suas empresas, realizava apenas a transformação material. (OLIVEIRA,
1981, p.87).

Isto sob a representação de presidentes, como Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros,


que “aparecem com todo o vigor e todas as debilidades das ideologias que encarnam”
(FERNANDES, 1978, p.11).

O populismo é a larga operação dessa adequação, que começa por estabelecer a forma
da junção do “arcaico” e do “novo”, corporativista como se tem assinalado, cujo
epicentro será a fundação de novas fontes internas da acumulação. A legislação
trabalhista criará as condições para isso. [...] Como contrapartida, a legislação
trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um modo de
“acumulação primitiva” extremamente adequado para a expansão global. Esse “pacto
estrutural” preservará modos de acumulação distintos entre os setores da economia,
mas de nenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino. [...] as formas
nitidamente capitalistas de produção não penetram totalmente na área rural, mas, bem
ao contrário, contribuem para a reprodução tipicamente não-capitalista. Assim, dá-se
uma primeira “especificidade particular” do modelo brasileiro, pois, ao contrário do
“clássico”, sua progressão não requer a destruição completa do antigo modo de
acumulação. Uma segunda “especificidade particular” é a que se reflete na
estruturação da economia industrial-urbana, particularmente nas proporções da
participação do Secundário e do Terciário na estrutura do emprego [...]. As
instituições do período pós-anos 1930, entre as quais a legislação do trabalho destaca-
se como peça-chave, destinam-se a “expulsar” o custo de reprodução da força de
trabalho de dentro das empresas industriais [...] para fora: o salário mínimo será a
obrigação máxima da empresa, que dedicará toda a sua potencialidade de acumulação
às tarefas do crescimento da produção propriamente dita (OLIVEIRA, 2013, p.65)

Daí a contradição central do Estado no processo de desenvolvimento econômico


nacional: de um lado, criar reserva de mercado (e reduzir a concorrência estrangeira), estimular
mercado interno e preservá-lo das pressões do capital internacional, evitando a evasão do
excedente econômico; de outro, incentivar internamente a concentração e a centralização do
capital. O mercado interno configura-se como derivado do mercado externo, conformando uma
“dualidade de setores ou sistemas econômicos imbricados um no outro: um, o tradicional,
centrado na produção de gêneros primários destinados à exportação; o outro […] que se volta
para o mercado interno, e tem por base essencial a indústria” (PRADO JR, 1972, p.85). Tudo
isso em meio a níveis diferenciados das relações de classe vigentes antes de 1930 que constituiu
172

um verdadeiro marco histórico entre um “Brasil rural-colonial” a um “Brasil urbano-industrial”,


com “profundas transformações no Estado brasileiro, enquanto estrutura de poder e organização
burocrática” (IANNI, 1979, p.04).

[...] a intervenção na vida econômica assume muitas vezes o caráter de um monopólio


ou tendência para o monopólio do capital financeiro, que é a manifestação mais
abstrata e independente do capital. Através de medidas fiscais, cambiais e monetárias,
o Estado amplia e refina a sua capacidade de controle sobre as possibilidades e
poupança e investimento, revelando a sua tendência monopolística. Mas essa
tendência não implica na constituição de um capitalismo de Estado […]. As medidas
governamentais são inevitáveis, para que as forças do mercado […] possam
concretizar-se da melhor forma possível, em consonância com a preservação e
progresso do sistema. […] Em suma, no âmbito do processo de acumulação de capital,
originado com o desenvolvimento, o Estado surge como uma mediação. É o próprio
capital, nacional e estrangeiro, que mediatiza o Estado, para que se constitua a
configuração indispensável à própria manifestação. […] Quando as forças produtivas
e as relações de apropriação ou as relações de produção entrem em dissonância, o
Estado ganha novas tarefas e se impõe em outras esferas da vida […]. O que ocorre é
que o Estado, como instituição fundamental do sistema social global, está na base e
na cúpula do sistema de apropriação e dominação (Id., 1965, p.15-55).

Como exemplo, Ianni (1965, p.18) cita as inciativas em torno do programa de


desenvolvimento formulado pelo “Grupo Misto BNDE-CEPAL, para o período de 1955-62 e
que serviu de base ao Programa de Metas, aplicado em 1956-60”, como também a criação de
instituições voltadas para o desenvolvimento da economia nacional, como o Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico, em 1952. Nesse contexto, a política alfandegária também
torna-se elemento de sustentação da política econômica nacional, sendo “peça básica” dos
mecanismos como aqueles que propiciam a substituição das importações.

E todo esse processo, extremamente complexo, exprime-se de maneira nítida nos


mecanismos de defesa da cafeicultura, em maior escala, e do açúcar, da borracha, do
cacau, do mate, do pinho, do sal em escala reduzida. É a transformação do capital que
está em curso, mas circunscrevendo-se ao mercado interno. Reduz-se a fuga do
excedente econômico, através da qual o capital agrícola do Brasil se transforma em
capital industrial no exterior, de conformidade com as tendências universais dos
processos de concentração e centralização. Estava em andamento a industrialização.
[…] Como a revolução burguesa em andamento não se havia apoiado numa ruptura
com o imperialismo, a luta contra este foi conduzida por meio de ambiguidades, que
parecem contraditórias à análise apressada (Ibid., p.66).

Porém, “a posição dominante e decisiva que o capital internacional ocupa na economia


brasileira, tende permanentemente a reconduzi-la para anterior situação centrada na função
exportadora”. Afinal, “a remuneração daquele capital, que representa pagamentos no exterior,
somente pode ser satisfeita com a contrapartida de exportações”, fonte implacável de divisas
que o país conta para fazer frente àqueles pagamentos (PRADO JR, 1972, p.83). Cresce,
173

portanto, a participação do capitalismo internacional na economia brasileira na medida em que


avança o imperialismo, em termos mundiais, representando, ao mesmo tempo, a consolidação
e integração ao capitalismo monopolista, em condições de dependência, constituindo um
“embaraço crescente à transformação” da economia brasileira e à sua libertação do passado
colonial. “Passado este que embora sob forma diferente e mais complexa, continua a mantê-la
enquadrada num sistema em que ela figura como setor e elemento periférico e dependente. […]
voltada essencial e fundamentalmente para interesses estranhos” aos do povo brasileiro,
incompatíveis com esse sistema. (Ibid., p.84).
Isso sob o desempenho de funções decisivas do Estado burguês no Brasil, em formação
no século XX83, especialmente via política econômica governamental que, de acordo com Ianni
(1979, p.307-308), desde 1930, indica uma oscilação entre duas tendências principais e
coexistentes em um movimento pendular que, na nossa concepção, expressa a defesa de um
“projeto de desenvolvimento” que melhor contemple os interesses dos diferentes setores e
frações burguesas nesse contexto: uma (tendência), “denominada estratégia de
desenvolvimento nacionalista, predominou nos anos 1930-45, 1951-54 e 1961-64”, tendo como
pressuposto um projeto de “capitalismo nacional”; “a outra, que pode ser chamada estratégia
de desenvolvimento dependente, predominou nos anos de 1946-50, 1955-60 e 1964-70”, tendo
como pressuposto o “projeto de capitalismo dependente” como alternativa para o progresso
econômico e social mediante reconhecimento e legitimidade da interdependência entre as
nações sob hegemonia norte-americana. Todavia, esse processo não se dá sem embates políticos
de projetos que pautam o desenvolvimento em perspectivas distintas e, em alguns casos,
antagônicas.

Algumas vezes […] esse movimento pendular parece ter sido perturbado pela
manifestação de uma terceira tendência. De fato, houve grupos políticos –
principalmente de esquerda – que defendiam a participação aberta do Estado nas
atividades econômicas. A luta contra o imperialismo (para esses grupos) era parte da
mesma luta pela nacionalização e estatização de empresas estrangeiras; ou filiais e
associadas de empresas multinacionais. Além disso, eles preconizavam a crescente
participação do Estado nas atividades produtivas, como empresário, no estilo da
Petrobras. Assim, pouco a pouco configurou-se uma estratégia de desenvolvimento
socialista, paralelamente às outras. Mas os representantes dessa estratégia nunca
chegaram a controlar centros de decisão, sobre política econômica governamental. […]
No conjunto dos anos 1930-70, entretanto, predominou a estratégia de
desenvolvimento dependente. Nem o projeto de capitalismo nacional, nem o projeto

83
“Costuma-se dizer que foi a partir de 1930 que ingressamos na ‘modernidade’, mas me parece mais preciso dizer
que o movimento liderado por Getúlio Vargas contribuiu para consolidar definitivamente a transição do Brasil
para o capitalismo. Depois da Abolição e da proclamação da República, o Brasil já era uma sociedade capitalista,
com um Estado burguês; mas é depois de 1930 que se dá efetivamente a consolidação e generalização das relações
capitalistas em nosso país, inclusive com a expansão daquilo que Marx considerava o ‘modo de produção
especificamente capitalista’, ou seja, a indústria” (COUTINHO, 2008, p.112).
174

de desenvolvimento socialista chegaram a impor-se. Ao contrário, eles existiram


muito mais em nível ideológico (Ibid., p.308-309).

Lembramos que, tal como nos sinaliza Marini (2014), a condição de dependência do
Brasil acentua, na sua reprodução capitalista, características como a superexploração da força
de trabalho, como ocorre em outras nações do continente latinoamericano, gerando “processos
produtivos que tendencialmente ignoram as necessidades da maioria da população trabalhadora,
direcionando a produção para mercados estrangeiros e/ou para estreitas camadas sociais que
conformam os reduzidos […] mercados internos, gerados em meio à aguda concentração da
riqueza”. Essas circunstâncias promovem, diante da expansão limitada da estrutura produtiva
nacional, além de mecanismos de intensificação da exploração e expropriação do trabalho, a
redução da incorporação da massa trabalhadora, consequentemente, o aumento de modalidades
de subemprego e desemprego, acirrando às desigualdades sociais e à concentração de renda que
afetam diretamente as condições materiais e subjetivas das classes e suas frações. “Tudo isso
tende a criar condições para potencializar os enfrentamentos sociais e a luta de classes”
(OSORIO, 2014, p.208-209).
Nesse complexo e particular cenário, ganha espaço, por um lado, a presença de uma
“forma corporativista de Estado”, sob a marca da autocracia burguesa, conjugada a um “deficit
de cidadania”; por outro, o significativo caráter popular, na constituição das classes
trabalhadoras, e democrático, nas suas reivindicações, formas de luta e organização política
(COUTINHO, 2008). Essa constatação, portanto, apenas pode ser feita se transviarmos a
ideologia do desenvolvimento, afinal de contas, “qualquer que seja a verbiagem ou o discurso,
a opção conservadora leva implícita e exige, a partir dos interesses burgueses internos e externos,
uma forma de acumulação capitalista impiedosa, que aprofunda as desigualdades econômicas
e reforça os privilégios dos poderosos, nacionais e estrangeiros”, além de fortalecer uma
prolongada contra-revolução (FERNANDES, 1978, p.13).

Em nome do ‘desenvolvimento econômico acelerado’, ampliou-se e aprofundou-se,


portanto, a incorporação da economia nacional e das estruturas nacionais de poder à
economia capitalista mundial e às estruturas capitalistas internacionais de poder. Um
capítulo na história econômica do Brasil se encerrou; e, com ele, foi arquivado o ideal
de uma revolução nacional democrático-burguesa.

Nesse movimento, é consagrada a aliança do grande capital financeiro com o Estado


nacional sob o regime da “autocracia burguesa” (FERNANDES, 2006), promovendo uma
“permanente privação dos direitos sociais, trabalhistas e políticos” aos trabalhadores urbanos e
rurais, “aprofundando sua exclusão do bloco do poder e dos pactos políticos” (IAMAMOTO,
175

2007, p.131-132). Isso nos diz que “o liberalismo no Brasil não se constrói sobre a
universalidade da figura de cidadão”, ou mesmo da democracia; não “exige a defesa implacável
dos direitos do cidadão”. (FERNANDES, 2006, p.46-47).
Dessa forma, assim como tais tendências põem em xeque “mais de um século de
promessas de eliminação […] da desigualdade por meio […] de desenvolvimento socialmente
viável em todo o mundo”, também demonstram o quanto as contradições desse
desenvolvimento tomam formas particulares, internamente e externamente aos territórios
nacionais, agudizando a divisão regional do trabalho e as desigualdades regionais. Estas, vale
lembrar, “não apenas entre o 'norte desenvolvido' e o 'sul subdesenvolvido', mas também no
interior dos países capitalisticamente mais avançados” (HARVEY, 2014, p.186).
Em meio a dialética entre modernização e conservadorismo, “internacionalização” e
“particularismos nacionais e regionais”, central no desenvolvimento capitalista no Brasil, tal
como nos diz Oliveira (2003) na sua crítica a razão dualista, é importante destacar que na
formação sócio-histórica brasileira um aspecto tem sido permanentemente pulsante: a questão
regional ou, em outras palavras a questão social na sua dimensão regional, resultante das
contradições do modo de produção capitalista, “sinal de uma redefinição da divisão regional do
trabalho no conjunto do território nacional” (Id., 2008, p.163).
Como expressão dessa questão, mesmo diante da tendência apresentada por Mandel
(1982, p.104) - onde a “queda no salário real torna o trabalhador mais passivo e indiferente,
assim como, em termos objetivos, o enfraquece psicológica e fisicamente, pelo menos em parte
[...]” -, existe um vasto enredo da vida real centrado em um conjunto de experiências de
protestos e lutas populares que, por vezes, equivocadamente não foram, nem são, incorporadas
nas “narrativas nacionais” com uma nítida intenção por parte dos setores dominantes de isolá-
las e pejorativamente associá-las ao fanatismo e banditismo. Isto é demonstrado na importante
obra de Rui Facó (1963, p.15-16) ao fazer alusão e desconstruir a concepção hegemônica dos
fenômenos do cangaceirismo e do messianismo vividos especialmente no Nordeste no fim do
século XIX e da primeira metade do século XX.

Que foram Canudos, Juazeiro, o Contestado, Caldeirão, Pau de Colher, Pedra Bonita,
que precedeu a todos, com traços mais ou menos idênticos , ao lado do cangaceirismo,
que se prolongou até os fins da década de 30? Para nossa história têm sido encarados
como fenômenos extra-históricos. “Banditismo”, “fanatismo” são expressões que os
resumem, eliminando-os dos acontecimentos que fazem parte da nossa evolução
nacional, de nossa integração como Nação […]. Mas, seriam simples criminosos esses
milhares, dezenas de milhares de pobres do campo que se rebelavam nos sertões,
durante um tão largo período de nossa história? Seriam apenas os “retardatários” da
civilização, como os qualificava Euclides da Cunha? Evidentemente, não. […] Hoje,
compreendemos e sentimos que eles eram […] o protesto contra uma ordem de coisas
176

ultrapassada e que deveria desaparecer.

A base e as circunstâncias objetivas dessas expressões da questão social no Nordeste,


atravessadas pelo monopólio da terra, sinalizam a “forma de ser” capitalista não apenas da
região, mas do país, que generalizou o modo de produção por meio da industrialização sem, no
entanto, destituir-se do peso agrário-exportador84 mediante a superexploração e a associação
entre capital nacional e estrangeiro, entravando “brutalmente o crescimento das forças
produtivas” e obstaculizando “nosso pleno” e soberano “desenvolvimento econômico, social,
político e cultural” (Ibid.). Isto, ao contrário do que muitos atestaram (e continuam atestando)
sob o invólucro da marcha do desenvolvimento e crescimento econômico, não seria possível
nos marcos do pleno desenvolvimento desigual e combinado capitalista em que o Brasil e suas
regiões são partícipes, não se tratando de uma suposta ausência, deformação ou atraso desse
desenvolvimento, mas de uma forma necessariamente particular de inserção. “Daí, por exemplo,
o liberalismo das elites nacionais, numa ordem social acentuadamente patrimonial; ou o
racismo, num país de mestiçagem intensa” (IANNI, 1965, p.65). Em outras palavras, “o Brasil
de hoje, apesar de tudo de novo e propriamente contemporâneo […] ainda se acha intimamente
entrelaçado com o seu passado” (PRADO JR, 1972, p.18).

[...] mesmo uma esfera estratégica, como a do crescimento econômico, não possui
poder para alterar as demais esferas, se a intervenção assumir um caráter concentrado
e unilateral. [...] Os povos que tentam essa saída e persistem nela, mesmo depois de
descobrirem suas limitações, o fazem porque não possuem outros meios para forçar a
melhoria do seu ‘destino histórico’ na civilização a que pertencem. No fundo, trata-se
de uma saída cega e desesperada, tão irracional e improdutiva quanto seria combater
a raiva mordendo-se o cão que a transmitisse. No entanto, convém ressaltar,
igualmente, que a superação do impasse não poderia resultar na mera ‘vontade
esclarecida’ [...]. Um povo pode contar com elites capazes de fazer diagnósticos
precisos e completos de sua situação histórica, em seus diversos desdobramentos. Mas,
se essas elites não tiverem coragem e decisão de levar o diagnóstico à prática ou se
não receberem suficiente apoio coletivo, nada se alterará fundamentalmente. O Brasil
não possui elites desse tipo; e, de outro lado, as próprias massas ainda não se projetam
no cenário histórico, como atores do drama e fatores humanos de mudanças sociais
conscientemente desejadas em escala coletiva. Não obstante, se realizasse as duas
condições indicadas, ainda assim a ‘vontade esclarecida’ pouco significaria em si
mesma. O esclarecimento só se converte num elemento construtivo da situação
quando ele envolve e conduz a transformação de caráter global. (FERNANDES,
p.156-157).

84
“[…] o processo de industrialização no Brasil esteve, desde o início, vinculado aos capitais produzidos pelo setor
agrário exportador; tanto os capitais nacionais, investidos diretamente, como as cambiais imprescindíveis à
importação de equipamentos, matérias-primas e técnica essenciais à industrialização dependem dele” (IANNI,
1965, p.64-65).
177

Essa “trama”, que se conforma regionalmente, dar lugar histórico e central ao Nordeste.
Ou seja, como expressão do processo particular de transição e consolidação do capitalismo
monopolista no Brasil, que passa a ter o “Centro-sul” como polo dinâmico do desenvolvimento
econômico nacional, a questão regional toma relevo e raízes diferenciadas, tendo o Nordeste
grande peso 85
. Tal questão tornou-se pública e objeto de intervenção do Estado com suas
políticas de desenvolvimento regional ao tempo em que a “região de mais antiga colonização
passou a ser objeto de atenção nacional” como “região problema” (DÓRIA, 2007, p.271). Isto
não apenas devido ao alto índice de desigualdade e pauperismo como também por ser cenário
de insurgência popular, especialmente diante da possibilidade real de aliança entre os setores
da classe trabalhadora com a influência do operariado nascente, que poderia apontar
formulações dos problemas regionais por outra ótica na perspectiva de superar os limites do
status quo.
Afinal, é preciso lembrar que “foram as lutas sociais que romperam o domínio privado
nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública,
exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a legalização de direitos e deveres
dos sujeitos sociais envolvidos” (IAMAMOTO, 2001, p.17). Estes, porém, passaram (e ainda
passam) por um processo violento de criminalização em meio a permanente coexistência da
repressão e do assistencialismo, gerenciados por parte dos setores dominantes na manutenção
da hegemonia burguesa.
O coroamento desse processo deu-se exatamente durante a ditadura militar na década
de 1960, quando através da ideologia que atribuía ao Nordeste a natureza de região perigosa, a
repressão aos trabalhadores rurais organizados agudizou-se. A ideia difundida era que o país
estava na iminência de uma verdadeira revolução no Nordeste, tendo como referência a
revolução cubana. Isto em virtude da experiência de movimentos como o das Ligas
Camponesas. “Foi assim que o imperialismo e a burguesia, no Brasil, decidiram transformar o
Nordeste numa questão política, militar e policial prioritária” (IANNI, 1981, p.112) com a
finalidade de acabar com todas as experiências democráticas que emergiam na região, a
exemplo da ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários no campo, além dos avanços

85
“No Nordeste, a situação agravou-se quando, na segunda metade do século XIX, o centro de gravidade
econômica se foi transferindo gradativamente para o Sul, mais desenvolvido do ponto-de-vista capitalista. O
Nordeste, com seus arraigados remanescentes feudais e acentuada debilidade técnica, foi perdendo terreno em
todos os domínios. A valorização do café atraía para o Sul a mão-de-obra disponível no Nordeste, tanto de escravos
como de trabalhadores livres. Enquanto isso, era o Sul que recebia a totalidade dos imigrantes europeus que, nos
fins do século, vieram modificar a fisionomia econômica e social da fazenda paulista” (FACÓ, 1963, p.17).
178

na democracia em termos meramente eleitorais. E isso já era muito para as elites do nosso país,
tal como podemos observar no seguinte trecho:

Pela primeira vez na história da região, em tal escala, o povo estava elegendo
vereadores, deputados, prefeitos e governadores que estavam cumprindo os seus
compromissos políticos com os eleitores. Os trabalhadores do campo começaram a
ver os seus direitos trabalhistas respeitados; podiam fazer política; participar de ligas,
sindicatos, comícios, greves, sem que os usineiros, ou os seus prepostos,
manipulassem a Polícia para reprimi-los; os casos de violência privada estavam sendo
denunciados, apurados. Pouco a pouco, o trabalhador começava a sentir-se cidadão,
com direito a votar, ver o seu voto respeitado, ter os seus direitos trabalhistas
garantidos e assim por diante. Em Pernambuco, o Governador ouvia o trabalhador e
atendia o seu reclamo. O humilhado e ofendido do mundo rural começava a sentir-se
pessoa, gente, cidadão. [...] É claro: o que estava acontecendo era revolucionário. [...]
em 1961-64 a sociedade brasileira conheceu uma riqueza política poucas vezes havida
anteriormente. [...] Sob vários aspectos, portanto, o que estava acontecendo no
Nordeste dizia respeito ao que estava acontecendo e podia acontecer no Brasil. [...] A
verdade é que a grande burguesia monopolista (com base no imperialismo e apoiada
em forças reacionárias internas, inclusive a burocracia civil e militar) estava
manipulando o caso do Nordeste, a ‘inquietação social’ na região nordestina [...], a
mobilização de trabalhadores rurais em ligas e sindicatos, etc., como um pretexto para
derrubar o Governo do Presidente Goulart. Ao mesmo tempo em que buscava reverter
o processo democrático do Nordeste, essa aliança de interesses reacionários buscava
reverter o processo democrático no Brasil. (IANNI, 1981, p.115-116).

Para o atual tempo histórico, é inevitável não associar tais características que sucederam
ao Golpe de 1964, guardadas as devidas proporções, aquelas da década anterior ao atual Golpe
em que o país vive desde 2016. Porém, deixemos esse debate para mais adiante.
Voltando às principais estratégias de enfrentamento a questão regional, podemos situar,
mesmo que tardia, uma nova política de desenvolvimento para o Nordeste com base na
industrialização da região. Para os idealizadores dessa política, certamente o que estaria em
questão seria o enfrentamento às formas de perpetuação de relações não-capitalistas na
agricultura, como se assim fosse possível eliminar tais relações daquelas tipicamente
capitalistas em nossa formação social onde há a reprodução e criação de uma “larga ‘periferia’
onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma e meio de
sustentação e alimentação do crescimento dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que
são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema.”
(OLIVEIRA, 2013, p.69). Em outras palavras, a superação desse tipo de relações seria como
romper com a dependência da dependência, já que “a integração ao mercado interno significa
tornar a região que se integra ‘dependente’ da economia do Sudeste, isto é, as vantagens da
industrialização desequilibram a economia ‘normal’ da região e impõem uma nova divisão do
trabalho em função do Sudeste.” (OLIVEIRA, 1977, p.52).
179

Por outro lado, esse desequilíbrio regional, expressando também conflito de classes,
“[...] que aparece sob as roupagens de conflitos regionais [...] chegará a uma exacerbação cujo
resultado mais imediato é a intervenção ‘planejada’ do Estado no Nordeste, ou a SUDENE”
(OLIVEIRA, 1981, p.113), tal como já mencionamos. Esse órgão estatal foi um dos mais
memoráveis desse tipo de intervenção no Nordeste e sua história representa exatamente o
direcionamento hegemônico que as políticas dessa natureza tiveram no período
desenvolvimentista.
Antes de tudo, é importante ressaltar que, ao contrário de muitas análises críticas à
experiência da SUDENE, ela não pode ser resumida como uma “farsa”. A história dessa
instituição foi marcada por ambiguidades e embates entre as forças e aspirações populares e
aquelas do grande capital monopolista que procuravam socorrer os interesses das elites locais
do “velho Nordeste dos ‘coronéis’ e da burguesia açucareira, convocando as forças da burguesia
internacional-associada e do imperialismo para liquidar as classes populares” (OLIVEIRA,
1981, p.15). Caso estas forças não tivessem ganho, certamente teríamos um outro Nordeste e
um outro Brasil. De toda forma, há que considerar a SUDENE como “um empreendimento de
uma audácia inédita na história nacional” (OLIVEIRA, 1981, p.18) que de alguma forma
enfrentou resistências, inclusive das “elites nordestinas temerosas da perda de privilégios” que
atacavam a figura de Celso Furtado e viam sua defesa à reforma agrária como ameaçadora,
abrindo margem para a subversão associada aos movimentos camponeses da época.
(FURTADO, 2009, p.12).
Para Furtado ([1959] 2003, p.249-251), a saída para a questão regional seria uma nova
forma de integração da economia nacional, “distinta da simples articulação que se processou na
primeira metade do século” XX. Isto tendo em vista que essa articulação significou,
simplesmente, desviar para os mercados da região cafeeira-industrial produtos que antes se
colocavam no exterior. Um processo de efetiva integração, para o autor, teria de orientar-se no
sentido do aproveitamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia
nacional. E acrescenta:

À medida que se chegar a captar a essência desse problema, se irão eliminando certas
suspeitas como essa de que o rápido desenvolvimento de uma região tem como
contrapartida necessária o entorpecimento do desenvolvimento de outras. A
decadência da região nordestina é um fenômeno secular, muito anterior ao
processo de industrialização do sul do Brasil. A causa [‘atraso, peso da questão
agrária, do monocultivo’] básica daquela decadência está na incapacidade do
sistema para superar as formas de produção e utilização dos recursos
estruturados na época colonial. A articulação com a região sul, através de
cartelização da economia açucareira, prolongou a vida do velho sistema cuja
decadência se iniciou no século XVII, pois contribuiu para preservar as velhas
180

estruturas monoprodutoras. O sistema de monocultura é, por natureza,


antagônico a todo processo de industrialização. [Será? A consolidação do
agronegócio no Brasil nos diz outra coisa]. [...] a monocultura só é compatível com
um alto nível de renda per capita quando a densidade demográfica é
relativamente baixa. Ali onde é elevada essa densidade - o que ocorre na faixa
úmida do Nordeste – a monocultura impossibilita alcançar formas superiores de
organização da produção. Com efeito, nas regiões densamente povoadas uma
elevada densidade de capital por homem – condição básica para o aumento de
produtividade – só se consegue com a industrialização. Ora, a industrialização vem
sempre acompanhada de rápida urbanização, que só pode se efetivar se o setor agrícola
responde com uma oferta adequada de alimentos. Se a totalidade das boas terras
agrícolas está concentrada em um sistema ancilosado de monocultura, a maior
procura de alimentos terá de ser atendida com importações. No caso do Nordeste,
a maior procura urbana tende a ser satisfeita com alimentos importados da
região Sul, o que contribui para agravar a disparidade entre salário nominal e
produtividade em prejuízo da região mais pobre. Por maior que seja a vantagem
relativa da produção do açúcar no Nordeste, é necessário ter em conta que a
mesma ocupa uma pequena parte da população e que a industrialização será
impraticável se as populações urbanas dependerem, para alimentar-se, de
gêneros parcialmente provenientes do sul do país. Tratando-se de regiões
integradas num mesmo sistema monetário, o que determina a rentabilidade
industrial é a relação entre a produtividade por operário e o salário monetário
pago a este. Ora, como o salário monetário está condicionado pelos preços dos
alimentos, a vantagem que tem o Nordeste de ‘mão-de-obra barata’ é tanto
menor quanto menos adequada é a oferta de alimentos produzidos na própria
região. – Grifos nossos

Mesmo com o teor progressista, com o objetivo de combater as desigualdades regionais


e com a diversidade de opiniões e concepções em disputa em torno da SUDENE, ela acaba
tornando-se “um mecanismo de destruição acelerada da própria economia ‘regional’
nordestina”, promovendo a expansão capitalista no Nordeste via hegemonia da burguesia do
Centro-Sul expressa na tendência das empresas ou grupo de empresas que já são principais no
Brasil serem principais no Nordeste. A intervenção “planejada” do Estado dá-se, portanto,
através do deslocamento de “esquemas de reprodução próprios da economia do Nordeste por
outros que têm sua matriz noutro contexto de acumulação”. Desse modo, o “planejamento” age
conduzindo a mais-valia captada pelo Estado através de imposto em capital a favor da “grande
burguesia do Centro-Sul.” (OLIVEIRA, 1981, p.113). Ou, em outras palavras: “[....] o Estado
descapitaliza a economia do Nordeste em favor do centro da acumulação. Mesmo em 1953,
quando se cria o Banco do Nordeste do Brasil, apontado agora por muitos como precursor da
SUDENE, a intervenção do Estado fica muito aquém de sua própria atuação num caso como o
do BNDE [...]” (OLIVEIRA, 1981, p.94).
Daí a importância do Estado que promove a industrialização do Nordeste, sob a égide
da SUDENE, e que, “em si mesmo, é a síntese dialética dos processos de concentração e
centralização do capital, que o promove”. (OLIVEIRA, 1977, p.03-04). Trata-se de um
processo de industrialização “tardia do tardio”, se assim podemos nos referir fazendo uma
181

comparação do Nordeste em relação ao Brasil como uma região dependente de uma nação
dependente. A expansão capitalista no Nordeste, uma região com baixa capitalização, foi, dessa
maneira, uma demanda do capital monopolista. Em suma, a necessidade maior era “manter
elevada a remuneração do capital no país, penetrando um espaço periférico, que é aquele que,
por ser virgem de práticas monopolísticas, oferece as maiores oportunidades de elevar a
remuneração do capital [...]”. (OLIVEIRA, 1977, p.72).
Isso significa que o custo da reprodução da força de trabalho continuará baixa mesmo
com o aumento da produtividade 86; as mercadorias produzidas na região continuarão sofrendo
a deterioração dos termos de troca, abastecendo a nova classe assalariada urbana em ascensão
especialmente no Sudeste e garantindo a oferta de recursos naturais à industrialização nacional
em uma espécie de acumulação primitiva; que o enorme exército industrial de reserva
continuará vivo legitimando relações de trabalho híbridas, monetárias e não-monetárias,
capitalistas e não-capitalistas, recompondo a divisão regional do trabalho e o complexo arcaico-
moderno com um maior peso no Nordeste. 87 Este continua tendo como um de suas principais
expressões o fenômeno da seca.
Diante disso, para Nobre (2010, p.05-06), foram quatro principais as formas de
enfrentamento às consequências das secas por parte do Estado:

1) “Controlar os flagelos”, mantendo-os “isolados na periferia da cidade, em estruturas


precárias de cercados [...] e sob severa vigilância. [...] tais locais de contenção dos
flagelos da seca passaram a ser chamados de ‘campos de concentração’ [...] depositário
de força de trabalho barata que era usada em obras públicas e de particulares.”.

86
Lênin (1982, p.147), a partir da realidade russa, nos oferece a seguinte contribuição: “Ora, é notório que os
baixos salários constituem um dos maiores obstáculos à introdução de máquinas. Os fatos nos mostram
efetivamente que o amplo movimento no sentido de transformação da técnica agrícola só teve início no período
de desenvolvimento da economia mercantil e do capitalismo que se seguiu à reforma. A concorrência criada pelo
capitalismo e a dependência do agricultor em relação ao mercado mundial tornaram a transformação da técnica
uma necessidade [...]”. Talvez aqui possamos dialogar com a formação regional brasileira que apresenta uma nítida
distinção entre o valor da força de trabalho, sendo as regiões com menor valor aquelas que também possuem um
menor índice de desenvolvimento tecnológico. Essa relação também pode ser observada entre o Brasil e outros
países na constituição das relações de dependência. Outro aspecto que nos faz lembrar essa citação é o
desenvolvimento da técnica nas civilizações pré-colombianas que, porém, não tomou fôlego em um “amplo
movimento”, ao contrário. Assim, a baixa produtividade e composição orgânica do capital está completamente
articulada com a reconstrução do exército industrial de reserva.
87
“Mesmo quando há algum aumento de salário real, fica muitíssimo abaixo do crescimento, às vezes notáveis, da
‘produtividade’. Ao comparar dados relativos aos anos 1948-68, podemos constatar que o ‘aumento da
produtividade agrícola da mão-de-obra no Nordeste superou o da agricultura do País’. E ao tomar a evolução dos
salários em 1959-68, pode-se constatar que ‘os salários agrícolas reais expandiram-se um pouco no nordeste na
década de 60, mas esse aumento foi de magnitude menor do que o aumento da renda interna por pessoa da força
de trabalho agrícola’. Ocorre que o trabalhador rural, assalariado ou não, ficou ainda mais à mercê do empresário,
fazendeiro latifundiário, empreiteiro de mão-de-obra, comerciante, usuário, banqueiro e outros beneficiários da
mais-valia.” (IANNI, 1981, p.120-121).
182

Lembremos que nesse período a região era considerada “região-problema” também em


decorrência da emergência dos conflitos sociais e da organização e luta dos
trabalhadores rurais. Sobre isso, é importante ressaltar o seguinte:

Desde que as ligas camponesas foram simplesmente suprimidas, que os sindicatos


rurais foram submetidos à intervenção pelo Ministério do Trabalho, que membros das
diretorias das ligas e sindicatos foram perseguidos, presos, processados, mortos ou
sumidos; desde que muita foi a repressão sofrida e padecida pelo proletariado e pelo
campesinato; desde que se abateu a ditadura sobre as classes subalternas do Nordeste
(talvez com maior brutalidade do que em outras áreas do País), poucas foram as
condições políticas que restaram para reivindicar e protestar. Mesmo assim, os
canavieiros, os operários da cana realizam uma greve de amplas proporções. (IANNI,
1981, p.124).

2) Estímulos a migrações para o trabalho nos cafezais do Centro-Sul, e na extração de


do látex nos seringais da Amazônia, recrutamento por parte de empreiteiras envolvidas
na construção da transamazônica 88;

3) Medidas de contenção das migrações do sertão para as cidades com a “criação de


órgãos públicos voltados para a chamada ‘solução hidráulica’. Esta consistia no
direcionamento da força de trabalho dos retirantes da seca para a construção de açudes,
através das chamadas ‘frentes de serviço’.” (NOBRE, 2010, p.07). Para Oliveira (1981,
p.55), esses episódios da história do Nordeste expressam formas típicas da acumulação
primitiva do capital sobre a qual Marx ([1867]1984) descreve em O Capital. Isso tendo
em vista que o pagamento da mão-de-obra empregada pelo Estado para a implantação
de benfeitorias, muitas vezes em grandes propriedades; a construção de estradas, açudes
e barragens “dava-se, na maioria das vezes, sob a forma de espécie, isto é, fornecendo-
se os alimentos – farinha, feijão e a indefectível carne-seca, esta nem sempre presente -
; os resultados desse trabalho concretizavam-se nas barragens feitas nas propriedades
dos grandes fazendeiros e nas estradas, às vezes estradas privadas no interior dos
grandes latifúndios”. Nesse contexto, cresce o discurso em prol da unidade nacional

88
“A principal providência tomada pelos governantes, a pretexto de fazer face aos problemas sociais ‘criados pela
seca’, foi propor o Programa de Integração Nacional, PIN [...], com o fim de construir as rodovias Transamazônica,
Cuiabá-Santarém e outras, lançando mão da força de trabalho ‘excedente’ no Nordeste. Ao combinar a atuação do
PIN com o INCRA [...], os governantes estavam, mais uma vez, lançando mão do poder discricionário da ditadura
para manipular os recursos financeiros federais e trabalhadores desempregados e subempregados do Nordeste a
fim de favorecer os negócios da grande empresa privada nacional e estrangeira. Sob a alegação de que se tratava
de construir estradas e desenvolver a colonização oficial e particular na Amazônia, estavam atuando no sentido de
preservar as relações de produção, as estruturas de poder e a estrutura fundiária no Nordeste. E mais uma vez
alguns contingentes nordestinos do exército industrial de reserva iam servir aos desenvolvimentos da acumulação
capitalista. Ao longo das últimas décadas, e não só em algumas ocasiões, os trabalhadores rurais e urbanos do
Nordeste têm sido o principal contingente de reserva da força de trabalho, com o qual a burguesia tem contado
para desenvolver e diversificar a expansão do capital”. (IANNI, 1981, p.119).
183

para enfrentar a questão regional também via concessão de créditos e lançamento de


programas de desenvolvimento. Antigas instituições, como a Inspetoria de Obras Contra
as Secas (IOCS), de 1909, que passa a se chamar de Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (DNOCS), em 1945, representaram um “esforço racionalizador” por
parte do Estado, avançando-se “muito no conhecimento físico do Nordeste semi-árido,
de suas potencialidades e limites [...]. Não se avançou nada, porém, em termos do
entendimento e desvendamento de sua estrutura socioeconômica [...]” (OLIVEIRA,
1981, p.51). Em suma, acabaram por beneficiar proprietários rurais e o “controle
político na distribuição de alimentos e vagas para o alistamento”, conformando a
conhecida “indústria da seca” 89. Assim, a “forma de financiamento chegou a constituir-
se em outro pilar da força e do poder político dos ‘coronéis’, da oligarquia algodoeira-
pecuária” (OLIVEIRA, 1981, p.55), representando, além de um reforço da estrutura
arcaica, uma verdadeira captura do DNOCS e das demais instituições estatais pela
90
oligarquia e elites locais. Esse processo estava plenamente articulado em âmbito
nacional. Segundo Martins (1994, p.59), as inovações do governo de Juscelino
Kubitschek carregam as seguintes características:

[...] se basearam numa espécie de duplicação da máquina do Estado, mediante a


criação de grupos executivos (como o GEIA – Grupo Executivo da Indústria
Automobilística) e de agências de fomento (como a SUDENE – Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste). Neste último caso, em particular, a conciliação entre
os interesses dos grupos clientelistas e oligárquicos do Nordeste e os interesses
modernizadores, supostamente dos empresários do Sudeste, fica mais do que evidente.
O governo Kubitschek não suprimiu arcaicas agências de clientelismo político como
o DNOCS. Com isso podia assegurar apoio político para o seu projeto de
desenvolvimento econômico e de modernização da sociedade brasileira, supondo que
as elites regionais e oligárquicas, beneficiárias do atraso e por ele responsáveis,
legitimariam seu projeto modernizador.

89
“Mais importante nisso tudo, e aí estava a verdadeira subversão que convulsionaria o País nos anos seguintes,
era a tomada de consciência por importantes setores das elites [...] de que a questão da miséria era uma questão
política. Não era a seca, propriamente, como se dizia desde o século XIX, que respondia pela pobreza dos
trabalhadores rurais nordestinos. Era o uso político da seca como pretexto para obtenção de recursos financeiros
do governo federal que, no fim, não iam aliviar a miséria dos pobres, mas revigorar a máquina do clientelismo
político dos ricos. Uma situação que só poderia ser resolvida com uma revolução, como entendiam e temiam alguns
dos próprios setores das elites. Ou então com reformas sociais.” (MARTINS, 1994, p.67).
90 “As ‘emergências’ criaram outra forma de enriquecimento e de reforço da oligarquia: não apenas os eleitores
reais dos ‘coronéis’ tinham prioridade para engajamento nas frentes de trabalho, como os eleitores-trabalhadores-
fantasmas pululavam. Obras-fantasmas e trabalhadores, ‘cassacos’ -fantasmas, povoavam as frentes de trabalho
das secas.” (p.55). Oligarquia do Estado do Ceará – DNOCS, o mais “encarniçadamente oligárquico”. (p.55). “O
algodão reunir-se-á com a pecuária e a carnaúba para transformar o Ceará num vasto algodoal segmentado em
milhares de pequenas plantações, e imbricação latifúndio-minifúndio, comerciante-fazendeiro, fazendeiro-
exportador, não ocorreu em nenhum outro lugar do Nordeste com maior profundidade que ali. As primeiras
grandes obras da IFOCS e do DNOCS foram no Ceará, e daí por diante o controle desse organismo estatal, sua
captura pela oligarquia algodoeira-pecuária, aprofundou-se e tornou-se completamente indistinta a linha divisória
entre DNOCS e a mesma oligarquia. Falar de DNOCS no Ceará, era o mesmo que falar da oligarquia e vice-versa.”
(OLIVEIRA, 1981, p.56).
184

4) Criação de instituições voltadas para a assistência aos “flagelados” da seca. Estas


tinham, no entanto, associação direta com a polícia, referendando a velha e necessária
combinação entre repressão e assistência na garantia de hegemonia. Nobre (2010)
apresenta como exemplo o Serviço de Socorro e Assistência às Vítimas da Seca
(SSAVS) e o Serviço Social do Estado (SSE), além de ações de combate a mendicância,
de profissionalização e “higienização” da cidade. É nesse mesmo contexto que é criada
a Fundação do Serviço Social do Estado do Ceará.

Ou seja, no fim das contas o “problema regional” diz respeito as condições


socioeconômicas, a exploração dos camponeses pelos grandes fazendeiros, o latifúndio, etc...
Tudo que essas instituições acabaram não mudando estruturalmente, mas na verdade foram
incorporadas a lógica de dominação, favorecendo as elites locais e a oligarquia regional. Por
isso, Ianni (1981, p.117) enfatiza que “os problemas sociais das classes subalternas foram
agravados pelas políticas adotadas, ou retomadas, para fazer face aos desafios do Nordeste”. E
ainda acrescenta:

As atividades da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), Banco


do Nordeste do Brasil (BNB), Instituto do Açucar e do Alcool (IAA), Grupo
Executivo da Racionalização da Agroindustria Açucareira do Nordeste (GERAN),
Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (Polonordeste),
Programa Especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi-Árida do Nordeste
(Projeto Sertanejo), Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à
Agroindustria do Norte e Nordeste (Proterra), Programa Especial para o Vale do São
Francisco (Provale), Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS) e
mais o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), entre outros
órgãos federais, regionais, estaduais e municipais, não melhoraram as condições de
vida e trabalho dos camponeses e assalariados na agricultura, pecuária, agroindústria
e outras atividades. Ao contrário, as condições de vida e trabalho de todos esses
trabalhadores pioraram. Os governantes recriaram as condições de exploração
prevalecentes no Nordeste antes de 1960, condições essas agravadas pela repressão
política, policial. A burguesia atuante na região, e não só na agroindústria canavieira,
teve as mãos livres para atuar contra os interesses de moradores, corumbás,
clandestinos, peões, parceiros, arrendatários, assalariados e camponeses de vários
tipos. O aparelho estatal favoreceu o retorno da superexploração dos trabalhadores
rurais e urbanos, superexploração essa agravada pela aliança direta, clara e brutal do
capital monopolista com o Estado. Mais uma vez, o capital reconquistava o Nordeste
de forma ampla. (IANNI, 1981, p.117).

Definitivamente o tão proclamado desenvolvimento (regional e nacional) não priorizou


o crescimento para a distribuição de renda e terra, fortalecendo o mercado interno, e as
necessidades mais gerais do povo, o que aconteceu foi “a exportação de capitais da região mais
pobre para a região mais rica, […] sem a intervenção do […] mercado de capitais e nem sequer
185

do mercado de crédito. […] com a própria expansão da circulação de mercadorias, São Paulo
vence, domina, mas não hegemoniza. Porque seu mecanismo de dominação é o mercado, e este
é insuficiente para forjar a hegemonia” (OLIVEIRA, 1993, p.52). Para o autor, “a Questão
Regional há muito deixou de ser considerada uma questão nacional”.

Depois da derrota, em 1964, das forças sociais e políticas às quais deveu seu
nascimento e seu auge, a SUDENE — o último grande esforço e momento de sua
importância nacional — prosseguiu num êxito administrativo que, ironicamente, iria
marcar mais fundo seu fracasso político. Na ditadura, a Questão Regional, enquanto
tal, deixou de existir e foi rebaixada a planos administrativos […]. Entre um regime
carente de legitimidade e políticos faltos de representatividade, os planos regionais
foram abastardados como moeda de troca que, de um lado, ajudava a manter a fachada
das instituições representativas e, de outro, a fazer de conta que o regime era racional,
para lograr empréstimos e financiamentos dos Bancos Mundial e Interamericano de
Desenvolvimento. Assim, a ditadura obtinha recursos externos para financiar a
expansão capitalista […] com a moeda podre do novo clientelismo, com o álibi da
promoção da desconcentração da renda na região mais miserável do país. Mas não se
tratava de pacto, nem de negócios de ingênuos: o que estava em operação de todos os
lados — Bancos Mundial e Interamericano incluídos — era salgar a terra do Nordeste,
para matar a erva daninha da subversão social. O sucesso da SUDENE sob a ditadura
foi enorme, mas o Nordeste transformou-se num gueto de nordestinos. (Ibid., p.43-
44).

Diante disso, o fato é que a coexistência de uma modernização em meio a fome que
continua assolando em maior grau e medida algumas regiões como o Nordeste brasileiro não
diz respeito fundamentalmente a incompetência da gestão pública. A pobreza e a fome são
aspectos determinantes para o rebaixamento salarial. Como nos apresenta Ianni (1981, p.124),
a pobreza no campo “tem sua fundamentação principal, mais que na ecologia regional, na
natureza e intensidade das relações sociais que pressionam o pequeno produtor” (parceiro,
morador, assalariado etc) para “extrair o máximo possível de seus excedentes monetários e de
suas forças físicas, em benefício de grupos e classes sociais que monopolizam o capital e a
terra.”. É exatamente em virtude dessa fundamentação que, para o autor, a pauperização relativa
e absoluta ocorreu em escala acentuada desde 1964, “[...]quando a burguesia transforma a
repressão política, o planejamento governamental, a política salarial, a política sindical e outras
atuações do poder estatal em técnicas de controle, subordinação e superexploração das classes
assalariadas [...].” (IANNI, 1981, p.79).
O empobrecimento da população trabalhadora, portanto, caminhou junto a extração da
mais-valia extraordinária 91
no período da ditadura (do grande capital), fazendo com que o

91
“A ditadura militar foi levada a criar condições jurídico-políticas e econômicas sob as quais a burguesia
conseguiu aumentar a taxa e a massa de mais-valia. Criou as condições sob as quais a mais valia potencial, que o
subsistema econômico brasileiro poderia produzir, se realizasse na mais-valia extraordinária, que a burguesia
passou a acumular” (IANNI, 1981, p.79). Contraditoriamente, somado a proletarização do campo, “todo o peso da
186

crescimento da taxa de expropriação tenha viabilizado o “milagre brasileiro”. Este quadro pode
nos apresentar vários elementos consonantes e dissonantes com a particularidade do ciclo
econômico e político dos anos 2000 diante de um crescimento econômico concomitante a
redução da pobreza via programas de transferência de renda, com maior tônica na região
Nordeste, além do aumento real do salário-mínimo. Em ambos os cenários, o contexto
internacional, a (re)combinação entre as formas de exploração da força de trabalho (mais-valia
absoluta e/ou relativa e a consequente pauperização absoluta e/ou relativa) e a capacidade
organizativa das classes sociais são aspectos decisivos.
Como podemos observar, com o golpe de 1964 a questão regional se agravou, tendo em
vista que foi exatamente no Nordeste, “região do país que havia acumulado maior atraso social”,
que “as consequências do golpe foram mais graves” (FURTADO, 2009, p.19). A partir daí as
políticas voltadas para o desenvolvimento do Nordeste, na verdade, ficaram cada vez mais
alinhadas com a necessidade de “reconquista” do Nordeste pelo capital de forma ampla. (IANNI,
1981, p.117).
O aprofundamento da questão social no Nordeste continuou caminhando junto ao
reforço ideológico do “nordestino nordestinado” e do Nordeste como uma “região castigada
pela natureza”, que toma novo fôlego especialmente a partir da seca de 1970. Assim, de “região
‘perigosa’, que ‘ameaçava’ o Estado burguês, passava a ser considerada como uma paisagem
de ‘inclemência do tempo’ [...] com ‘multidões famintas angustiadas’ [...]. Diante da miséria a
que o capital submete operários rurais e camponeses, os governantes fazem literatura, imaginam
que os muitos severinos e severinas enganam-se com palavras.” (IANNI, 1981, p.118). Já do
ponto de vista do Estado, há uma substituição da retórica política antiga (regionalismo,
municipalismo, etc) pela tecnocrática, do planejamento. Isto muito devido ao relativo
enfraquecimento do coronelismo e das mediações políticas tradicionais em virtude do
crescimento da exploração da força de trabalho operária e camponesa ao mesmo tempo em que
ganhavam espaço político e econômico os grandes negócios, no campo e na cidade.

A burguesia dominante na região e no país, ou os seus ideólogos mais ou menos


notáveis, sempre imaginam que o Nordeste é uma região castigada pela natureza; ou
perigosa; ou exótica. De qualquer forma, o exotismo perpassa toda ideologia
dominante sobre a região. O próprio ‘perigo’ que o Nordeste teria representado para
o estado Burguês, em 1961-64, teria algo que ver com a ‘natureza’ estranha, diversa,
insólita do lugar, das gentes do lugar. Manter o Nordeste ‘Nordeste’, flagelado,
exótico ou mesmo como ameaça, é o preço que as classes dominantes julgam razoável

ditadura, desde 64, ao mesmo tempo em que acentuou a exploração da força de trabalho, provocou a repolitização
dessas classes, dos trabalhadores assalariados do campo e da cidade, dos produtores autônomos. [...] As greves
dos trabalhadores da agroindústria canavieira, em 79 e 80, são expressões desse processo político de profunda
significação para o Nordeste e o Brasil.” (IANNI, 1981, p.128-129).
187

pagar para garantir as condições de dominação e exploração das classes subalternas


da região. O colorido regional garante as divisões que garantem o poder das classes
dominantes, sejam quais forem os governantes da ocasião, civis, militares ou militares
em trajes civis [...]. Os governantes continuam prisioneiros de uma ideologia que,
define o Nordeste como uma mescla de região castigada pela natureza, perigosa e
exótica. Ao empenhar-se em fazer de conta que estão mudando alguma coisa, para
que nada mude, as classes dominantes e os seus funcionários acabam por perder de
vista os movimentos e as modificações reais da sociedade. (IANNI, 1981, p.127-129).

Como podemos perceber, a questão regional não teve resolubilidade. Assim como
Correia (1988, p.60-61), consideramos que “o avanço das relações capitalistas provoca
transformações nas características da questão regional, em suas exterioridades, mas, em vez de
eliminá-la, ele agrava, aprofunda a questão”. A partir desse entendimento, “a questão regional
persiste [...] e coexiste com a questão nacional”. Ou, em outros termos, a “questão nordestina é
regional e nacional”, hoje mais ainda.
Assim, tal como no Brasil, no Nordeste, com maior peso, a base da questão regional
continua tendo como um dos principais aspectos a questão agrária, fundiária, o monopólio da
terra. Este, mesmo diante das novas relações sociais em permanente formação na agricultura
com a inserção do trabalho assalariado e as contínuas migrações, não deixou de existir com a
modernização, ao contrário. Sobre isso, é importante ressaltar o que alguns autores apontam
como contradições presentes no movimento migratório de trabalhadores tendo em vista que
pode representar também, por outro lado, a possibilidade de romper com as determinações
locais.
Contudo, não há como negar os determinantes centrais para esse movimento migratório
que perdurou, mesmo em outro grau e medida, no Brasil contemporâneo: o fortalecimento da
aliança do atraso, sobre a qual nos fala Martins (1994, p.92), como sendo aquela “aliança
estruturalmente básica entre capital e terra”, debilitando a força dos movimentos populares,
especialmente do campo. “Essa aliança enfraqueceu a sensibilidade de amplos setores da
sociedade brasileira, basicamente porque anulou a vulnerabilidade política das classes
dominantes ao anular a possibilidade de um conflito de interesses tão radical quanto o que
poderia existir no conflito entre racionalidade do capital e a irracionalidade da propriedade
fundiária”. E foi exatamente a permanente capacidade de recompor essa aliança entre os
diferentes setores, segmentos e frações das classes dominantes no Brasil, associadas aos
interesses imperialistas, que tem sido tão penosa a trajetória de conquistas de direitos sociais
das classes populares da cidade e especialmente do campo, onde tão tardiamente foram
implementadas leis trabalhistas e a reforma agrária continua sendo uma possibilidade remota.
Basta atentarmos para as atuais mudanças na legislação trabalhista diante da última “reforma”
que demonstrou o quanto a tal aliança continua com vigor, recompondo a questão agrária
188

regionalmente. Isto reforça a contribuição que nos traz Oliveira (1993, p.50) quando nos diz
que a “questão regional é, basicamente, a história da resolução da questão do mercado de força
de trabalho, a qual vai ter consequências sobre a irresolução da questão agrária”.
O que, então, a história nos ensina é que o movimento de concentração e centralização
do capital por aqui apresentou e continua apresentando como saída para suas crises a expansão
capitalistas nas áreas menos monopolísticas e capitalizadas, onde o peso do atraso de destaca
como é a região Nordeste. Isso se expressa através de momentos onde há um súbito crescimento
econômico nordestino no compasso da estagnação de outras regiões. É o que podemos, por
exemplo, observar durante os anos 2000.
Porém, outro grande aprendizado tem sido identificar e entender que essa saída é, por
outro lado, uma tendência esgotada. Afinal, a questão regional, assim como a questão social, é
insuprimível nos marcos da hegemonia capitalista, pois trata-se de uma economia que “articula
estruturas arcaicas e modernas, na qual essas últimas apresentam intenso crescimento
‘desordenado’ e se impõem às primeiras como centros hegemônicos da economia nacional.”
(FERNANDES, [1968] 2008, p.79). Em outras palavras:

Tratando-se de espaços econômicos que nasceram ou foram insertados na divisão


internacional do trabalho do capitalismo mercantil como reservas e produtores de
acumulação primitiva e que, posteriormente, continuaram subjugados à divisão
internacional do trabalho do capitalismo imperialista, a existência de ‘regiões’, no
sentido aqui considerado, é de uma evidência histórica irrefutável. (OLIVEIRA, 1977,
p.28)

Não à toa que desde o Golpe de 2016 os vetores e números têm tomado outro contorno,
especialmente para o Nordeste. Frente a isso, lembramos da sinalização feita por Coutinho
(2011, p.141-142) sobre como a crise da sociedade brasileira durante o século XX tem no
Nordeste “cores mais vivas e intensas” em relação as demais regiões do país, condenando os
que “lutavam por uma nova comunidade à solidão e à incompreensão. De certo modo, na
medida em que aí as contradições eram mais ‘clássicas’ (no sentido de Marx), o Nordeste era a
região mais típica do Brasil; a sua crise expressava, em toda a sua crueza, a crise do conjunto
do país”.
Essa constatação implica em outra: a de que a “saída” para a questão regional está
fundida com aquela voltada para a questão nacional e ambas constituídas pela questão social na
sociedade capitalista. A história já nos demonstrou que esta “saída” não está em uma suposta
ausência de integração nacional ou na falta de crescimento econômico, mas sob quais bases,
qual projeto de nação, se constitui o desenvolvimento que sustenta tanto a integração quanto o
189

crescimento. E foi olhando para os ensinamentos da própria história, para a trajetória das
iniciativas em torno do planejamento e desenvolvimento regional no Brasil do século XX, que
Furtado (2004, s/p) demonstra sua lucidez através das seguintes palavras:

[...] qualquer que seja o exercício analítico, a dimensão política do processo de


desenvolvimento é incontornável. A história nos demonstra que o avanço social dos
países que lideram esse processo não foi fruto de uma evolução automática e inercial,
mas de pressões políticas da população. São estas que definem o perfil de uma
sociedade [...]. Em outras palavras, só haverá verdadeiro desenvolvimento – que não
se deve confundir com “crescimento econômico”, no mais das vezes resultado de mera
modernização das elites – ali onde existir um projeto social subjacente. É só quando
prevalecerem as forças que lutam pela efetiva melhoria das condições de vida da
população que o crescimento se transforma em desenvolvimento.

O que nos resta, diante dos elementos apresentados até então, é seguirmos a nossa saga
em recompor os fios que ligam o passado ao presente, constituindo a dialética arcaico-moderno,
entre permanências e mudanças, para, assim, chegarmos às constatações da nossa tese sobre as
inflexões ocorridas na questão social, tanto na sua dimensão econômica como política, no
Nordeste dos anos 2000. Isso implicará tecermos ainda, nessa colcha de retalhos que é a
formação social brasileira e nordestina, os fios que constituíram (e constituem) o neoliberalismo
e as “novidades” do nosso tempo. E é exatamente este tempo que nos motiva a retomarmos a
pergunta que intitula o presente item para, então, finalizarmos por aqui e adentrarmos o último
capítulo. Seja enquanto nação ou como brasileiros, seja enquanto região ou como nordestinos,
“existirmos: a que será que se destina?”.
190

CAPÍTULO 3

3. O NORDESTE BRASILEIRO NO PADRÃO DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA


VIGENTE

A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste com cores


mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. [...]
De certo modo, na medida em que aí as contradições eram mais ‘clássicas’
(no sentido de Marx), o Nordeste era a região mais típica do Brasil;
a sua crise expressava, em toda a sua crueza,
a crise do conjunto do país.

Carlos Nelson Coutinho

Tal como a Usina no romance de Rego (2012, p.189), que reproduz permanentemente o
novo no velho, não se contentando nunca e sempre pedindo mais terra; engolindo não só a cana,
mas tudo que via pela frente, a dinâmica capitalista, sob vigência da lei da concorrência, ao
mesmo tempo em que demanda cada vez mais adentrar outros territórios, em um permanente
descontentamento, (re)estabelece também com mais afinco as fronteiras regionais. Esse
processo recompõe continuamente a questão regional, sob a lógica desigual e combinada,
mesmo que recombinando novos aspectos em sua constituição e manifestações.
Harvey (2013, p.527) explicita a importância da relação entre tempo e espaço na
produção e circulação capitalista, buscando nas próprias palavras de Marx a sinalização de um
permanente esforço do capital em superar todas as barreiras espaciais. Isto, contudo, se dá
mediante a produção de “configurações espaciais fixas e imóveis” através, por exemplo, de
estruturação de sistemas de transporte e comunicação, fruto do desenvolvimento das forças
produtivas. (HARVEY, 2005, p.145). Assim, a mais-valia (ou o mais-valor) deve ser produzida
e realizada em um período de tempo socialmente necessário, dadas as circunstâncias históricas
de cada época. “Se é necessário tempo para superar o espaço, o mais-valor deve também ser
produzido e realizado dentro de um determinado domínio geográfico”. Eis a base para o que o
autor denomina de “desenvolvimento geográfico desigual no capitalismo” (HARVEY, 2013).
Trata-se mesmo de uma consequência prática do desenvolvimento desigual e combinado.
Na busca de superar as fronteiras de tempo, espaço e de “distinções regionais”, o
desenvolvimento capitalista estabelece outras tantas barreiras espaciais e diferenciações
geográficas. Fruto desse processo, ocorre a “regionalização das lutas de classes e entre facções”
191

como também o adensamento da questão social na sua dimensão regional, expressa pela
intensificação da divisão internacional do trabalho, da exploração do trabalho por intermédio
da “reestruturação territorial e produtiva” (que afeta decisivamente as condições econômicas,
políticas e ideológicas dos/as trabalhadores/as) e dos diversos conflitos de base territorial que
promovem uma onda migratória cada vez mais pulsante nos dias de hoje 92 . Diante dessa
realidade, é importante atentar o seguinte:

A tensão entre a livre mobilidade geográfica e os processos organizados de reprodução


dentro de um território limitado existem tanto para os capitalistas quanto para os
trabalhadores. Como essa tensão se resolve para um e outro depende, decisivamente,
da condição da luta de classes entre eles. [...] As contradições internas do capitalismo
se expressam mediante a formação e a reformulação incessantes das paisagens
geográficas. Essa é a música pela qual a geografia histórica do capitalismo deve
dançar sem cessar. (HARVEY, 2005, p.149-150)

Esse processo ocorre contraditoriamente no período identificado por Chesnais (1996)


de mundialização do capital. Este, segundo Iamamoto (2007, p.21), “expande sua face
financeira integrando grupos industriais associados às instituições financeiras que passam a
comandar o conjunto da acumulação”. Trata-se da maturação do circuito intrínseco ao padrão
de acumulação capitalista, já analisado por Marx (1983, p.263-266) desde o século XIX,
apresentando como centro o chamado capital portador de juros: “primeiro, o dinheiro é
transformado em meios de produção; o processo de produção transforma-o em mercadoria;
mediante a venda da mercadoria é retransformado em dinheiro e nessa forma retorna às mãos
do capitalista, que no início adiantara o capital em forma monetária”. Porém, no caso do capital
portador de juros, este processo de “retorno” e “entrega” é fruto de uma transação jurídica entre
o proprietário do capital e outra pessoa em que “tudo o que ocorre de permeio é apagado”. Eis
a peculiaridade do valor de uso da mercadoria dinheiro: pelo seu consumo, “seu valor e seu
valor de uso não só são conservados, mas multiplicados”. Em suma, o dinheiro, como capital,
tem como valor de uso produzir lucro.
Sob influência das transformações mundiais que marcam a transição entre o século XX
e XXI, o fim do Bloco Soviético e o desencadeamento de uma crise sem proporções - em um
“continuum depressivo, que exibe as características de uma crise cumulativa, endêmica, mais
ou menos permanente e crônica, com a perspectiva última de uma crise estrutural cada vez mais
profunda e acentuada” (MÉSZÁROS, 2002, p.697) -, cria-se um ambiente propício no país para

92
Em relação as migrações internacionais, de acordo com a ONU, o mundo possui atualmente cerca de 232
milhões de migrantes, o que corresponde a 3,2% da população. Disponível em: <www.nacoesunidas.org>. Acesso
em: 15 set. 2015.
192

o avanço de formas inovadoras de expansão do capital.

[...] decerto muito diferente do período 'fordista', mas também do período inicial da
época imperialista, um século atrás. Pois, embora tenham ressurgido alguns dos
aspectos característicos daquela época (extrema centralização e concentração do
capital, interpenetração das finanças e da indústria etc.), o sentido e o conteúdo da
acumulação de capital e dos seus resultados são bem diferentes: o capitalismo parece
ter triunfado e parece dominar todo o planeta, mas os dirigentes políticos, industriais
e financeiros dos países do G7 cuidam de se apresentarem como portadores de uma
missão histórica de progresso social […]. O estilo de acumulação é dado pelas novas
formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (os fundos mútuos e
fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da esfera
financeira. Seu veículo são os títulos e sua obsessão, a rentabilidade aliada à 'liquidez',
da qual Keynes denunciara o caráter 'anti-social', isto é, antiético ao investimento de
longo prazo. Não é mais um Henry Ford ou um Carnegie, e sim o administrador
praticamente anônimo […] de um fundo de pensão com ativos financeiros de várias
dezenas de bilhões de dólares, quem personifica o 'novo capitalismo' de fins do século
XX. É na produção que se cria riqueza […]. Mas é a esfera financeira que comanda,
cada vez mais, a repartição e a destinação social dessa riqueza (CHESNAIS, 1996,
p.14-15).

Trata-se também de um momento em que a relação entre Estado e sociedade passa por
uma série de redefinições sob a marca do neoliberalismo e do monitoramento dos países de
economia dependente pelas agências multilaterais. Para além de garantir, regular, a propriedade
e a exploração do trabalho, “o Estado capitalista precisa agora assumir um papel
intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente
o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala monumental”. Tal recondução
torna-se um pilar para a manutenção da “extrema perdularidade do sistema capitalista
contemporâneo” (MÉSZÁROS, 2002, p.700).
Nesse sentido, é importante ressaltar que a nova dinâmica do capital, com a tônica sob
as finanças, de acordo com Chesnais (1996), tem sustentação tanto no mecanismo de “inflação
do valor dos ativos” ou, em outras palavras, de “formação de capital fictício”, como também
no “serviço da dívida pública e as políticas monetárias”. Um mecanismo associado ao outro,
viabilizando as transferências efetivas de riqueza para a esfera financeira. E isso só é possível
pela permanente presença dos Estados Nacionais. Nesse quadro, os fatores de hierarquização
entre as nações e regiões são acentuados, ao mesmo tempo que redesenhados. “O abismo que
separa os países participantes, mesmo que marginalmente, da dominação econômica e política
do capital monetário rentista, daqueles que sofrem essa dominação, alargou-se ainda mais”
(Ibid., 1996, p.15-19).
Daí a importância de sinalizar a função cada vez mais ativa que assume o fundo público
- parcela significativa do trabalho necessário e da mais-valia socialmente produzida capitaneada
pelo aparato estatal – nas políticas macroeconômicas, valorizando capitais (através da dívida
193

pública) com a transferência de um montante considerável de recursos públicos sob a forma de


juros e amortização da dívida pública para a esfera financeira (SALVADOR, 2012). Tais
circunstâncias demonstram a vitalidade do pensamento marxiano, quando situa a dívida pública
como uma importante alavanca de expropriação, desde o processo clássico de acumulação
originária, e, como bem nos apresenta Behring (2012, p.157), “o crédito e a dívida pública vão
permanecer como elementos […] cada vez mais importantes do processo de reprodução social
ampliada, o que mostra que boa parcela dos eternos argumentos liberais, hoje neoliberais, sobre
o Estado foi e é falseamento ideológico”.
Conforme o documento “Os números da Dívida”, o valor do orçamento público
destinado à dívida pública e a sua amortização no Brasil, em 2012, correspondia a 47,19% de
todo o orçamento e equivalia a mais de 1 trilhão de reais. Já as informações divulgadas em
alguns jornais comerciais, em 2014, nos dizem que o montante da dívida cresceu em
aproximadamente 3,43%, o que corresponde a mais de 2 trilhões de reais93.
Esse processo vem provocando o aprofundamento das desigualdades econômicas,
sociais e regionais, na medida em que favorece a concentração social, regional e racial de renda,
prestígio e poder (IAMAMOTO, 2007). Concomitante a isto, combinando os “fundamentos
econômicos neoclássicos com atualizações da historiografia liberal”, o pensamento neoliberal
contemporâneo buscou nutrir o que parecia ter perdido força: a ideologia colonialista das
classes dominantes latino-americanas, retomando “as teorias de superioridade do colonizador
europeu” (KATZ, 2016, p.97).

Mas parece perfeitamente claro que os pregadores da inferioridade brasileira quanto


à possibilidade de explorarmos as nossas riquezas com os nossos próprios recursos e
em nosso próprio benefício, os que acreditam e proclamam que só podemos nos
desenvolver com a “ajuda” estrangeira, os que confiam apenas nos capitais externos
para fomentar o nosso progresso, são herdeiros diretos daqueles que pregavam a
superioridade racial, a superioridade climática, a superioridade geográfica, da parte
dos países dominantes. E a nossa consequente inferioridade. […] os que não acreditam
em povo, os que só confiam em elites […] os que não supõem condenados à perdição
econômica, os que se desalentam com os 'desatinos' do nacionalismo, são herdeiros
[…] dos que proclamavam a preguiça do brasileiro, a incapacidade do brasileiro, a
cobiça do brasileiro. Traços de classe, que pretendiam e pretendem generalizar a todo
um povo. (SODRÉ, 1984, p.10-11).

Há, portanto, a perpetuação da dependência, “uma vez que o funcionamento deste


sistema [...] se caracteriza pela prevalência da lei do desenvolvimento desigual”, podendo esta
tendência “se manifestar de maneira muito diversa nas diferentes partes do mundo, dependendo

93
Disponível em: <www.auditoriacidada.org.br>. Acesso em: 10.05.2015.
194

do nível [...] de desenvolvimento dos capitais nacionais, bem como da posição mais ou menos
dominante destes últimos no interior da estrutura do capital global” (MÉSZÁROS, 2002, p.653).
Com isso, os ajustes e as contrarreformas (BEHRING, 2008) implementadas no Brasil
com maior intensidade a partir da década de 1990 representam muito mais que “uma
programática econômica”, expressam uma redefinição mundial do campo político-institucional
e, em face da desigualdade crescente, “situa a figura do pobre no centro de políticas focalizadas
de assistência. Ocorre, então, um deslocamento da função assistencial, que se torna um
instrumento essencial de legitimação do Estado” (NETTO, 2007, p.150).

A “velha” questão social, conotada com o pauperismo, não foi equacionada e, menos
ainda, resolvida. E, de fato, temos novas problemáticas, seja pela magnitude que
adquiriram situações que antes não eram socialmente reconhecidas como
significativas (violência urbana, migrações involuntárias, conflitos étnicos e culturais,
opressão/exploração nas relações de gênero etc.), seja pela refuncionalização de
velhas práticas sociais agora submetidas à lógica contemporânea da acumulação e da
valorização (o trabalho escravo e semi-escravo, o tráfico humano, a prostituição, o
“turismo sexual” etc.), seja, enfim, pela emergência de fenômenos que, novos,
vinculam-se aos porões da globalização – as conseqüências da organização do crime
em escala planetária (Ibid., p.156).

As contradições, expressas na expoente questão social, são “neutralizadas” e


“naturalizadas” por intermédio de mecanismos que se renovam a cada período histórico: o
assistencialismo e a repressão, o paternalismo e a autocracia que, como já expomos, são marcas
do capitalismo, assumindo maior tônica em formações dependentes, tal como a sociedade
brasileira. Este quadro condiciona um novo formato para as políticas sociais, contínua
necessidade para a reprodução capitalista:

Estas devem, objetiva e subjetivamente, envolver e possibilitar a “inserção” da força


de trabalho no mundo das finanças, que, por serem 'bolsas' – são estas as políticas
sociais – viabilizam-se por intermédio de instrumentos creditícios e financeiros e são
operadas por grandes instituições bancário-financeiras. A modelagem dessas novas
mercadorias exige do Estado a redução das políticas sociais como equipamentos
públicos e sua transformação em “direitos monetarizados” operados nos mercados
bancário-financeiros, e não mais como ações do Estado executadas por um corpo de
servidores próprios. A formatação e a adequação das políticas sociais às finanças em
numerosos Estados do planeta tomam como modelo e ponto de partida a contra-
reforma da previdência social (GRANEMANN, 2007, p.58-59).

O toyotismo (ou acumulação flexível), iniciado mais precisamente no Japão na década


de 1970, além de afetar decisivamente as formas de organização econômica do trabalho,
também afeta o processo político e ideológico dos trabalhadores. Tais mudanças, desencadeadas
na década de 1990 no país, vêm produzindo uma constante expansão no desemprego, que atinge
o mundo em escala global, muito embora esse contexto tenha tido mudanças consideráveis no
195

Brasil durante os anos 2000, o que trataremos mais adiante.


Modalidades de subemprego, a intensificação da dupla jornada de trabalho das mulheres,
a utilização de mão de obra infantil e migrante, até mesmo trabalho em condições de
escravidão94, são, portanto, parte constitutiva das relações sociais hegemônicas, expressões da
permanente combinação entre arcaico e moderno por aqui. Diante desse fato, é possível
observar, dentre as reconfigurações da classe trabalhadora, uma processualidade contraditória
que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o
trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e exclui
os mais jovens e os mais velhos. Sem falar no “crescimento numérico do lumpemproletariado,
ou das classes perigosas, nos centros urbanos”, como parte da “deterioração das classes pobres”
que possivelmente conduziu não apenas no aumento da superpopulação relativa como na
“modificação pronunciada” da sua “composição interna” (GUIMARÃES, 2008, p.28-31). Isso
repercute diretamente sobre as condições de vida objetiva e subjetiva da classe, já que a forma
de produção flexibilizada procura a “adesão de fundo por parte dos trabalhadores”
(ANTUNES, 2003), internalizando o ideário do capital para si, ou seja, não acreditando em
nenhuma possibilidade para além dos marcos do capitalismo.
A reconfiguração do Estado, dos processos de trabalho e do padrão ideológico-científico
vigente 95 exige, portanto, cada vez mais um indivíduo estéril de solidariedade de classe e
apartado de projetos coletivos. Os reflexos desse contexto de agravamento das “tendências
contrapostas e contraditórias” do desenvolvimento capitalista incidem sobre a realidade
brasileira e nordestina especialmente nos últimos anos. Porém, para compreender os nexos
dessa relação na particularidade do território nacional, é preciso adentrarmos mais ainda nas
entranhas do padrão hegemônico de acumulação capitalista e de suas configurações mais
ousadas da nossa época que põem em cena novamente, com centralidade, o tema do
desenvolvimento. Este, em geral, associado às preocupações dos principais organismos
internacionais deste início de século. Dentre estas, a questão ambiental.
Porém, enganam-se os crentes na ideia de que o que está em jogo é fundamentalmente
uma motivação universal vinculada a valores humanitários e ao compromisso com futuras
gerações. Se assim fosse, o primeiro indicativo seria tomar medidas oficias de transformação

94
“Conforme a última estimativa da Campanha da CPT, De olho aberto para não virar escravo, ano 2014, o
número de pessoas que foram libertadas da situação análoga à escravidão corresponde a 1.752” (PLASSAT, 2014,
p.108).
95
Segundo Harvey (2010, p.19), “há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-
modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de 'compressão do
tempo-espaço' na organização do capitalismo […] A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de
todos os discursos universais são um marco do pensamento pós-moderno”.
196

radical do padrão de acumulação vigente. Na verdade, quase que como um lobo na pele de
cordeiro, o que efetivamente está em jogo por trás do discurso socioambiental hegemônico é a
preocupação com as condições favoráveis e necessárias para a perpetuação do desenvolvimento
capitalista nas atuais circunstâncias. Ou seja, a tentativa permanente é buscar uma resolução,
ou “antídoto”, para a uma contradição irremediável: a reprodução ampliada do capital, com
capacidade cada vez mais destrutiva em detrimento da criativa, e as condições ambientalmente
favoráveis para a humanidade se sustentar nesse modelo de sociedade.
Assim, buscando fugir das concepções catastróficas, fatalistas e/ou idealistas como
também daquelas engessadas no tempo, incapazes de fazer uma releitura e/ou considerar a
existência de novos aspectos no movimento da história, tentaremos neste momento esboçar uma
breve problematização acerca das principais questões em torno do desenvolvimento capitalista
contemporâneo. Sejam velhas questões ainda não resolvidas ou, ao menos, polêmicas, sejam
questões inovadoras a partir do que se tornou o desenvolvimento em nosso tempo. Este, do
ponto de vista da expansão das capacidades humanas, enquanto desenvolvimento social, tal
como mencionado no primeiro capítulo, definitivamente depara-se com contradições cada vez
mais adensadas pelo próprio crescimento econômico capitalista, ao contrário do que é tão
proclamado.
É exatamente diante desse processo que Martins (1994, p.52) recorre novamente a
constatação de que crescemos, sim, porém, sem o desenvolvimento esperado ou dando
prosseguimento aquele “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Por isso, em décadas atrás,
o autor já ressalta que, assim como a ênfase na palavra crescimento não é nova, a “ideia de
bloqueios econômicos, sociais e institucionais ao crescimento econômico do Brasil” também
não é recente. E, assim, faz a seguinte provocação:

Depois de trinta anos de captura do desenvolvimento pela ideologia do crescimento,


é no mínimo instigante que os acadêmicos venham a se pôr os mesmos problemas, a
reconhecer que três décadas de crescimento apenas repõem o tema e o problema
original: o não desenvolvimento no crescimento. Mudou a economia ou não mudamos
nós?

Tudo isso nos remete ao debate iniciado no Capítulo 1, agora, num diálogo mais direto
com o padrão de reprodução do capital mundializado, o que demanda levarmos em
consideração, nos limites do nosso trabalho, a diversidade de contribuições mesmo na tradição
marxista. Captá-las e canalizá-las para subsidiar nossa tese é um dos grandes esforços que
continua em curso.
197

3.1. Mundialização e regionalização: crise capitalista e neoliberalismo no Brasil

“Viver é muito perigoso... [...] Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o
concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”. Mesmo que
despretensiosamente, as palavras de Guimarães Rosa ([1956]1994, p.16), embebidas em
arcaísmo, fazendo alusão a realidade de um sertão remoto, embrenhado nas profundas terras
brasileiras, parecem mais retratar o “desafio e o fardo do” nosso “tempo histórico”,
parafraseando Mészáros (2007, p.58), que nos diz o seguinte:

a fracassada “modernização” do chamado “Terceiro Mundo”, em conformidade com


as prescrições propagadas durante décadas pelos países “capitalistas avançados”,
sublinha o fato de que um grande número de pessoas […] não poderiam ser levadas à
terra, há muito prometida, do milênio capitalista liberal. Assim, o capital só conseguiu
ajustar-se às pressões que emanam do fim de sua “ascendência histórica” voltando as
costas à sua própria fase progressista de desenvolvimento, abandonando inteiramente
o projeto capitalista liberal, a despeito de toda a mistificação ideológica autovantajosa
do contrário.

Estaríamos vivenciando uma época de verdadeira decadência do progresso e da


modernização tão pautadas pelo desenvolvimento capitalista ou mais uma fase, sob outros
patamares e novas exigências, de cadência desse desenvolvimento? O dilema civilização versus
barbárie teria chegado a seu ápice? Realmente, diríamos ao romancista se hoje estivesse entre
nós, que viver tem sido cada vez mais perigoso diante de um mundo em que os “homens do
capital” não se cansam em puxar o mundo para si e tentar consertar o já desconsertado sistema
e suas irremediáveis crises que se avolumam nesses tempos.
Antes de tudo, é sempre importante lembrar novamente que, esses dois processos
(civilização e barbárie), apesar de, em geral, serem tratados como oponentes, a história da
humanidade demonstra que são, na verdade, duas “faces da mesma moeda”. Uma ou outra face
torna-se mais forte a depender fundamentalmente (mas não unicamente) das necessidades
econômicas, tendo a luta de classes um papel decisivo.
É, portanto, sob tais circunstâncias que se desencadeia a crise histórica sem precedentes
que vivemos atualmente, cada vez mais profunda. “Como tal, essa crise afeta – pela primeira
vez na história – a totalidade da humanidade e, a fim de que a humanidade sobreviva, demanda
mudanças fundamentais no modo de controle do metabolismo social”. Para Mészáros (2007,
p.55-57), essa crise é expressão de uma generalização do modo de produção capitalista nos
últimos três séculos, generalização, portanto, da alienação em todas as esferas da vida humana,
198

que exigiu, especialmente no período mais recente, a superação de “barreiras que impediam o
desenvolvimento de novos componentes vitais”. “Reduzindo e degradando os seres humanos à
condição de meros ‘custos de produção’ como ‘força de trabalho necessária’ […]”.
A mundialização do capital, nessa ótica, é sinônimo do predomínio universal do modo
“de extração e apropriação do trabalho excedente como mais-valia”. Os setores dominantes,
que compõem a burguesia (e suas frações) internacionalmente articulada, dirigem o movimento
de acumulação capitalista, em tempos de agudização da luta de classes, atualiza e renova
dispositivos de coerção e exploração social, reproduzindo as relações sociais a semelhança de
suas ideias. No entanto, a crise revela o que Iasi (2009) vai subscrever de “hipocrisia
deliberada”, apresentando “um particular momento do processo ideológico, mais precisamente
aquele que se caracteriza pela perda da correspondência entre as ideias e as condições reais de
existência” (MARX; ENGELS, 2009). Esse processo tem se caracterizado pelo retorno
avassalador de um conservadorismo arraigado em todas as dimensões da vida humana. Assim,
estratégias como a intensificação da política de guerras, da indústria armamentista e aparatos
repressivos do Estado têm sido um forte aliado da classe dominante e dirigente na realidade de
crise capitalista que enfrentamos.
Já nas palavras de Mandel (1982, p.75-85), a crise capitalista, inclusive a que
vivenciamos no período mais recente, expõe com maior notoriedade as discrepâncias e
contradições que “derivam das leis internas do modo de produção capitalista, […] razão para a
inevitabilidade das oscilações conjunturais do capitalismo”. É importante destacar que tais
crises se dão não por falta de competência ou de vontade política dos governantes, mas em
decorrência do “andamento cíclico do modo de produção capitalista ocasionado pela
concorrência” que se manifesta “pela expansão e contração sucessivas da produção de
mercadorias, e consequentemente da produção de mais-valia”.

Corresponde a isso um movimento cíclico adicional de expansão e contração na


realização de mais-valia e na acumulação de capital. Em termos de ritmo, volume e
proporções, a realização de mais-valia e a acumulação de capital não são inteiramente
idênticas entre si, e tampouco são iguais à produção de mais-valia; as discrepâncias
entre esta última e a realização, e entre a realização da mais-valia e a acumulação de
capital, proporcionam a explicação das crises capitalistas de superprodução. […]
Numa fase de expansão, os períodos cíclicos de prosperidade serão mais longos e mais
intensos, e mais curtas e mais superficiais as crises cíclicas de superprodução.
Inversamente, nas fases de longa onda, em que prevalece uma tendência à estagnação,
os períodos de prosperidade serão menos febris e mais passageiros, enquanto os
períodos das crises cíclicas de superprodução serão mais longos e mais profundos.

O tempo de rotação de capital; a reprodução ampliada do capital; a busca permanente


dos superlucros; as tendências em diminuir os custos da produção, baratear o valor das
199

mercadorias, elevar a composição orgânica do capital, despencar a taxa de lucros, desvalorizar


capitais, aumentar a superpopulação relativa; o subconsumo das classes trabalhadoras; etc, são
aspectos que compõem o modus operandi capitalista, inclusive nas suas crises. É importante,
porém, destacar, novamente, que tais aspectos não se configuram de forma homogênea
territorialmente ou geograficamente, mas afirmando as desigualdades regionais e a dependência
entre os países com baixa composição orgânica, maior massa de valor (de mais-valia),
drenagem de mais-valia, elevada oferta de mão de obra mediante notório exército de reserva
industrial, oferta de matérias-primas com um custo bem abaixo, etc.

[…] a expansão geográfica do capitalismo que está na base de boa parte da atividade
imperialista é bastante útil para a estabilização do sistema precisamente por criar
demanda tanto de bens de investimento como de bens de consumo alhures. Podem
com efeito surgir desequilíbrios entre setores e regiões, bem como ser produzidos
ciclos de negócios e recessões localizadas. Mas também é possível acumular diante
de uma demanda efetiva em estagnação se os custos dos insumos (terra, matérias-
primas, insumos intermediários, força de trabalho) sofrerem um declínio acentuado.
Logo, o acesso a insumos mais baratos é tão importante quanto o acesso a mercados
em ampliação na manutenção de oportunidades lucrativas. […] O capital também
pode se apropriar de “reservas latentes” de um campesinato ou, por extensão,
mobilizar mão de obra barata de colônias e outros ambientes externos. Se isso não der
certo, o capitalismo pode […] induzir ao desemprego, criando assim, diretamente, um
exército industrial de reserva […] exercer uma pressão de baixa sobre as taxas de
salário e abrir assim novas oportunidades de emprego lucrativo do capital (HARVEY,
2014, p.117)

Esse contexto nos remete a uma característica central que configura as relações de
trabalho em sociedades como a brasileira: a dupla exploração da força de trabalho. Isso significa
que o operário e o camponês são expropriados de modo a garantir tanto os interesses dos setores
dominantes “internos” (representantes do capital privado brasileiro) como os dos setores
estrangeiros (representantes da grande burguesia internacional), “com os quais aqueles se
acham articulados”. Tal aspecto, a nosso ver, é reproduzido internamente entre as regiões
brasileiras, compondo o novo, e já velho, enredo onde “a mesma nação industrializada, moderna,
conta com situações sociais, políticas e culturais desencontradas.” (IANNI, 1989, p.154). A
transformação do Brasil em potência continua, portanto, sendo acompanhada por uma
modernização econômica que pouco reverbera em uma modernização, de fato, da sociedade
como um todo. E isto, como já vimos, está para além da insistente herança oligárquica e
patrimonial que se reedita nesses tempos.
Esse grau de heterogeneidade, distorção e desigualdades territoriais destacam-se
especialmente diante da vigência do imperialismo, vivo e operante, tendo o neocolonialismo e
a troca desigual como uma de suas expressões (MANDEL, 1982). Afinal, “a acumulação
200

interminável do capital requer a acumulação interminável de poder político” e essa


centralização de poder continua tendo como uma de suas expressões o domínio territorial.
Assim, “após mais de um século de promessas de eliminação […] da desigualdade”, inclusive
via políticas de “crescimento econômico” e de natureza desenvolvimentista que buscaram
“assegurar as condições do desenvolvimento socialmente viável em todo o mundo, verificou-
se que a realidade” continua sendo marcada por uma crescente desigualdade, “não apenas entre
o 'norte desenvolvido' e o 'sul subdesenvolvido', mas também no interior dos países
capitalisticamente mais avançados” (MÉSZÁROS, 2007, p.186). Diante disso, corroboramos
as palavras de Ianni (1989, p.154), quando nos diz o seguinte:

A mesma fábrica do progresso fabrica a questão social. [...] Os mesmos ‘indicadores


econômicos’ da modernização alimentam-se dos ‘indicadores sociais’ da ‘sociedade
primitiva’. Os setores sociais ‘participantes’ têm uma base na exploração dos
‘excluídos’. Em outros termos, a mesma sociedade que fabrica a prosperidade
econômica fabrica as desigualdades que constituem a questão social.

Dentro desse quadro, aproveitando-se dessas desigualdades, há um mecanismo que


Harvey (2014, p.118-121) aponta como decisivo para compreender a tônica e as formas
privilegiadas encontradas pelo desenvolvimento capitalista no período mais recente. Em busca
de travar um diálogo com o processo de expropriação originário do capitalismo, caracterizado
por Marx como acumulação primitiva do capital96, tal como já vimos nos capítulos anteriores,
o geógrafo, de forma inusitada, parte da compreensão de que este não foi um processo preso ao
tempo, abrindo margem para o desenvolvimento capitalista e desaparecendo com sua
reprodução ampliada. Na verdade, para ele, trata-se de um processo permanentemente vivo e
pulsante, mesmo que transmutado, constituindo “uma importante e contínua força na geografia
histórica da acumulação do capital por meio do imperialismo”. Esta seria, nessa interpretação,
uma poderosa alavanca para contornar pressões das crises de “sobreacumulação”. Por isso, “a
‘relação orgânica’ entre reprodução expandida, de um lado, e os processos muitas vezes violento
de espoliação, do outro […]”. Estes processos, não sendo apenas “primitivos”, mas

96
“Estão aí a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão
de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de
propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação da
força de trabalho e a supressão de formas alternativas de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais
e imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação,
particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de
crédito como meios radicais de acumulação primitiva. O Estado, com seu monopólio da violência e suas definições
da legalidade, tem papel crucial no apoio e promoção desses processos, havendo […] consideráveis provas de que
a transição para o desenvolvimento capitalista dependeu e continua a depender de maneira vital do agir do Estado
[…].” (HARVEY, 2014, p.121).
201

extremamente atuais e “sofisticados”, compõem um mecanismo central de expropriação –


articulado permanentemente com a exploração - na contemporaneidade do capital, o que, nas
palavras de Harvey (2014), se configura enquanto “acumulação por espoliação”.

Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem


fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A
expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem
se acelerado em países como o México e a índia nas três últimas décadas; muitos
recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com frequência por
insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas
alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos EUA, mercadorias de fabricação
caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm
sido privatizadas. O agronegócio substituiu a agropecuária familiar. E a escravidão
não desapareceu (particularmente no comércio sexual). (HARVEY, 2014, p.118-121).

Nessa ótica, com todas as ponderações que possamos fazer sobre o significado histórico
que particularizou o processo de acumulação primitiva (originária) 97, a proposta de análise
apresentada por Harvey (2014) traz consigo uma analogia com esse processo para dizer que
vivenciamos um momento histórico de atualização e aprimoramento de mecanismos de
expropriação violenta dos trabalhadores, de cerceamento de liberdades democráticas,
degradação, predação, fraude e roubo, bastante comuns, por exemplo, no sistema financeiro e
da política neoliberal de privatização que têm aberto novos terrenos de acumulação do capital.
Contudo, encontramos já em Mandel (1982) uma discussão que pode se assemelhar a
de Harvey (2014), muito embora com as devidas diferenças que certamente é possível
identificar nas palavras do próprio autor. Vejamos:

Até hoje, ao longo de toda história do capitalismo, processos de acumulação primitiva


de capital têm constantemente coexistido junto à forma predominante de acumulação
do capital, através da criação de valor no processo de produção. [...] Embora esse
processo de acumulação primitiva já pressuponha a existência do modo de produção
capitalista, ao contrário do processo histórico de acumulação primitiva de capital,
descrito por Marx, e embora seu papel nos países capitalistas já industrializados seja
insignificante, ele é, apesar disso, de importância considerável nos países coloniais e
semicoloniais – os chamados países ‘em desenvolvimento’. Em geral, nessas áreas, o
processo permanece ainda, quantitativa e qualitativamente, mais decisivo para a
estrutura social e o desenvolvimento econômico do que a criação de mais-valia no
decorrer do processo de produção. [...] A acumulação primitiva de capital, cujas
origens históricas remontam à gênese do modo de produção capitalista, ganhou sua
dinâmica particular precisamente de seu caráter monopolista [...]. A situação que

97
A questão central que particulariza historicamente a acumulação primitiva é o fato de ter sido um fenômeno
observado no estágio do capitalismo comercial, fundamental para a formação, durante três séculos, das condições
para o protagonismo do capital produtivo (industrial). Para isso ela serviu e durante o longo período de sua vigência
o protagonismo era do capital comercial e mercantil. Já na contemporaneidade o protagonismo é de um novo tipo
de capital surgido na etapa imperialista (o capital financeiro). É esse capital que domina no tempo presente, mesmo
onde as relações capitalistas ainda não se desenvolveram plenamente, como em alguns casos da periferia. Tal
ponderação, dentre outras, subsidiam as críticas por parte de outros autores à tese de Harvey (2014), o que não
teremos como contemplar neste trabalho, mesmo que consideremos importante sinalizar esse contraponto.
202

define processos de acumulação primitiva na atualidade é obviamente bastante diversa.


Eles se manifestam dentro da estrutura de um modo de produção capitalista e de um
mercado mundial capitalista já estabelecidos; estão, portanto, em constante
competição, ou permanente troca metabólica, com a produção capitalista já
estabelecida. [...] Em cada país ou em escala internacional, o capital exerce pressão
para fora, a partir do centro – em outras palavras, seus lugares históricos de origem –
para a periferia. Ele tenta continuamente estender-se a novos domínios, converter
setores de reprodução simples de mercadoria em novas esferas da produção capitalista
de mercadorias, suplantar, pela produção de mercadorias, os setores que até então só
produziam valores de uso. (MANDEL, 1982, p.30-31).

Diferenças a parte, a ênfase dada pelos autores a perpetuação de processo típicos da


acumulação primitiva do capital que, agora, coexistem com padrões de acumulação de um
capitalismo já desenvolvido, guardadas as devidas ponderações acerca do recorte histórico
sobre o qual Marx teceu a caracterização daquele processo originário, é fundamental para
entendermos como as transformações contemporâneas reconduzem e reafirmam a lei do
desenvolvimento desigual e combinado, superando barreiras regionais e, pela mesma dinâmica,
reforçando a divisão regional do trabalho e, nesta, o papel de algumas regiões em viabilizar a
superexploração do trabalho. Essas considerações são centrais para situar a questão regional no
Brasil em meio a ascensão do neoliberalismo, tal como o próprio Nordeste, assunto que
retomaremos mais adiante.
Por ora, é oportuno conceber que esse processo não se dá naturalmente, mas por meio
da coerção como também pelo consenso, tal como demanda a garantia de hegemonia. Por tais
motivos, Chesnais (2005, p.21) enfatiza que “a liberalização e a desregulamentação dos
movimentos de capitais tornaram totalmente permeável a fronteira entre o capitalismo ‘legal’,
senão ‘virtuoso’, o capitalismo ‘mafioso’”.

Estados ou territórios formalmente soberanos ou autônomos se viram limitados ao


lugar de paraísos jurídicos e fiscais. As empresas e os particulares afortunados podem
aí organizar a evasão do fisco e os fundos provenientes do comércio da droga e de
toda as atividades mafiosas utilizando desses ‘paraísos’ como base para as primeiras
etapas críticas da lavagem de dinheiro. […] Ao mesmo tempo, permitiu a detenção
de montantes suficientemente elevados de partes da dívida pública para que os
governos se tornassem seus ‘devedores’. […] Num mundo dominado pela finança, a
vida social em quase todas as suas determinações tende a submeter-se à influência do
que Marx designa como a forma mais forte de fetichismo. (CHESNAIS, 2005, p.21).

É importante observar, por exemplo, que o espraiamento e consolidação desses


processos imperialistas que caracterizam a “mundialização do capital” ocorreu e só foi
viabilizado em muitos países da América Latina posteriormente a períodos ditatoriais, a
exemplo do Brasil. Mais uma prova da dialética entre democracia e autoritarismo no projeto
moderno de desenvolvimento capitalista, implicando diretamente na pauperização relativa e
203

absoluta, sendo esta mais ocasional em períodos de crise e de governos ditatoriais, quando os
setores dominantes da sociedade transformam a repressão política, o planejamento
governamental, a política sindical e outras atuações estatais em técnicas de controle,
subordinação e exploração mais agressiva das classes assalariadas no campo e na cidade. Nesse
patamar, como já vimos, há uma alteração significativa dos níveis de pauperização relativa e
absoluta, o que viabiliza a “mais-valia extraordinária” sobre a qual se remete Ianni (1981),
inspirado no próprio Marx (1984).
Tudo isso conforma uma base onde, especialmente a partir da década de 1990, haverá a
introdução e o aprimoramento de novas formas de exploração (e expropriação), subsidiadas e
legitimadas pelas instituições do Estado que vão desde o patenteamento e licenciamento de
material genético, sementes e uso indiscriminado de agrotóxicos; a expropriação de terras e a
expansão do agronegócio; a biopirataria; a mercantilização de formas culturais e espaciais; a
especulação imobiliária; a privatização de bens e equipamentos públicos; a dívida pública e os
fundos de pensão; à regressão de estatutos e legislações sociais. Desse modo, “temos de
examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes
instituições do capital financeiro”, o que contribui para um aspecto já apresentado por Lênin
(2012, p.138) desde o início do século XX: “o crescimento extraordinário […] da camada dos
rentistas, ou seja, de indivíduos que vivem do 'corte de cupom', que não participam de nenhuma
empresa e cuja profissão é a ociosidade”.
Assim, à semelhança da usina que “tirara o rio, para fazer porcaria por cima dele” e
crescia os olhos “em tudo o que era do povo”, retratada por José Lins do Rego (2012, p.270)
naquele romance com o qual dialogamos no capítulo anterior, o rentismo, o processo de
financeirização do capital faz deste ainda mais devastador com consequências predatórias,
inclusive no âmbito das forças produtivas. Tal como no processo de formação do exército
industrial de reserva, “valiosos ativos são tirados de circulação e desvalorizados […] até que o
capital excedente faça uso deles a fim de dar nova vida à acumulação do capital”. Essa dinâmica
impõe “crises limitadas a um setor, a um território ou a todo um complexo territorial de
atividade capitalista”. (HARVEY, 2014, p.123-126). Como exemplo, temos a crise asiática do
final dos anos de 1990, a crise imobiliária dos EUA em 2008 e tantas outras noticiadas como
conflitos atípicos e supostamente motivados apenas por um descontrole em determinado setor
da economia ou estritamente por questões territoriais e culturais específicas a determinadas
regiões. E assim nos acostumamos a ver, entender e naturalizar os fatos mais comuns durante
as últimas décadas.
O Brasil contemporâneo é um cenário fértil que nos permite identificar alguns impactos
204

e reflexos da dinâmica vigente do desenvolvimento capitalista e de seus mecanismos renovados


e inovadores de exploração. Isto diante de uma onda conservadora na política institucional e
parlamentar que produziu mais um episódio da nossa “contra-revolução burguesa” (IANNI,
1981). Referimo-nos ao recente e fatídico golpe jurídico-midiático-parlamentar que revela o
apodrecimento do nosso sistema político, capturado pelo poder econômico via esquemas de
fraudes e lavagem de dinheiro; os limites da democracia burguesa; o caráter profundamente
antidemocrático das classes dominantes brasileiras; e uma clara tentativa de “recolocar o Brasil
na rota de influência e dominação dos Estados Unidos e criar condições para acelerar medidas
no campo econômico que possibilitem novas formas de ampliação da extração de valor”98.
Além disso, um conjunto de medidas conservadoras, antidemocráticas e antipopulares
são (re)tomadas, tais como: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 241/2016) ou “PEC do
Teto dos Gastos”, transformada em Emenda Constitucional nº 95/2016, que institui um novo
regime fiscal, limitando durante 20 anos o ritmo de crescimento dos gastos da União à taxa de
inflação, um retrocesso ainda maior nos direitos sociais, a exemplo da saúde, educação e
assistência social99; o Projeto de Lei da Terceirização 4330, aprovado no Congresso Nacional e
sancionado em março de 2017 (Lei nº 13.429) que, dentre outros itens, amplia as possibilidades
de subcontratação de empregados pelas empresas, inclusive para atividades-fim,
desregulamentando e precarizando ainda mais as condições de trabalho de “40 milhões de
trabalhadores”100; a Reforma Trabalhista sancionada em julho de 2017 (Lei nº 13.467) que
altera Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT), permitindo o avanço da flexibilização nas
relações de trabalho, gerando categorias como o trabalho intermitente, completo retrocesso nos
direitos trabalhistas conquistados durante o século XX; a Reforma da Previdência, que o atual
Congresso ainda não conseguiu aprovar, tendo como um dos objetivos o favorecimento ainda
maior dos fundos privados e o acréscimo da idade para aposentadoria, tornando-a ainda mais
difícil, especialmente para os trabalhadores rurais; a prioridade dada ao superávit primário e ao
controle inflacionário via congelamento salarial; a grave ameaça vivida pelos indígenas diante
do aumento de mais de 600%, de 2003 a 2014, de ocorrências de violência contra o seu
patrimônio para exploração ilegal de recursos naturais 101 ; a priorização de políticas de

98
Ver em: <https://brasildefato.com.br/2016/07/05/sem-marx-nos-nao-entendemos-o-mundo-em-que-vivemos-
afirma-professor-da-ufrj/>. Acesso em: 04.07.2016.
99
Uma análise sobre as consequenciais econômicas do Novo Regime Fiscal encontra-se disponível em:
<http://www.valor.com.br/politica/4740633/economistas-lancam-documento-com-criticas-pec-dos-gastos-
publicos>. Acesso em: 01.06.2018.
100 Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/geral/ricardo-antunes/>. Acesso em:
01.06.2018.
101
Ver em: <https://www.brasildefato.com.br/2016/06/21/em-terra-de-indio-a-mineracao-bate-a-
porta/?platform=hootsuite.>. Acesso em: 04.07.2016.
205

financiamento (e, portanto, endividamento) habitacional, alimentando a especulação


imobiliária, em detrimento de uma política habitacional efetivamente pública; a dependência
cada vez maior da exploração de commodities, como minério de ferro e produtos agrícolas, para
a economia nacional; o recuo ainda maior na política de desapropriação de terras para fins da
Reforma Agrária que teve um corte de 15,1% em 2015. Este mesmo ano também ficou marcado
como aquele com o maior número de assassinatos no campo desde 2004 e elevação da violência
na zona rural brasileira. Isto sem falar do “aumento de 16% do desmatamento da Amazônia
entre agosto de 2014 e julho de 2015, em comparação com o mesmo período anterior” e da
vigência do Projeto de Lei 654/2015 que visa enfraquecer ainda mais o processo do
licenciamento ambiental, favorecendo a bancada parlamentar que representa os setores da
mineração, ruralistas e empresários102.
Esse quadro representa mais um episódio de impasses, crises e entraves para o tão
proclamado desenvolvimento econômico. Caberia novamente aqui o questionamento em torno
do que, embora na aparência seja óbvio, na prática não é: Que desenvolvimento é esse? Para
quem? Para quê? Estaria o capitalismo fadado a um “circuito fechado” que promove constantes
repetições de um ciclo vicioso sobre o qual gerações passadas já viveram, mesmo que não da
mesma forma, quase que como a punição dada a Sísifo, personagem da mitologia grega,
condenado a carregar repetidamente uma pedra que sempre, antes de chegar ao topo da
montanha, rolaria novamente montanha a baixo por meio de uma força arrebatadora,
invalidando todo aquele esforço?
O fato é que o contexto atual contribui para o reforço de uma concepção de Estado em
que, por sua própria natureza, nos repele de qualquer ilusão social-democrata nos marcos da
sociedade pautada pelas necessidades do capital. Isso mesmo diante de períodos considerados
mais prósperos, tal como foi reconhecidamente a última década, o que não nos impede em fazer
as devidas diferenciações, considerando não apenas seus determinantes econômicos, mas as
possiblidades dadas na relação entre as forças sociais em fraturar aquele “circuito fechado”. E
é exatamente para fazer frente a tais possibilidades que o poder do Estado e de seus
representantes é com frequência usado para impor processos que, muitas vezes, contrariam os
próprios valores democráticos, tal como nos exemplifica Harvey (2014, p.123) no trecho a
seguir:

A regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente


da degradação tem envolvido a perda de direitos. A devolução de direitos comuns de

102
Ver em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3044-balanco-da-questao-agraria-
no-brasil-em-2015>. Acesso em: 04.07.2016.
206

propriedade obtidos graças a anos de dura luta de classes […] ao domínio privado tem
sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da
ortodoxia neoliberal. […] a acumulação por espoliação sai dessa condição clandestina
e se torna a forma dominante de acumulação com respeito à reprodução expandida
[…].

Percebemos, portanto, que o atual desenvolvimento do capitalismo não demanda apenas


a supressão de estruturas, relações, hábitos e valores incompatíveis com as demandas do tempo
presente, mas também uma “apropriação e cooptação de realizações culturais e sociais
preexistentes” que, mesmo não sendo essencialmente capitalistas, podem contribuir para
intensificar e aperfeiçoar mecanismos de acumulação do capital. “O resultado é muitas vezes
deixar vestígios de relações sociais pré-capitalistas na formação da classe trabalhadora, assim
como criar diferenciações geográficas, históricas e antropológicas no modo de definir a classe
trabalhadora”. A vigência de valores patriarcais e de mecanismos que viabilizam a mais-valia
extraordinária e a acumulação por espoliação em um “um processo de despossessão bárbara
numa escala sem paralelo na história”, são expressões disso, possuindo uma tônica diferenciada
em determinadas regiões. (HARVEY, 2014, p.122-133). No Nordeste brasileiro, por exemplo,
a expansão de modalidades de trabalho precário sob a configuração de arranjos produtivos
locais, dentre outros mecanismos de exploração, compõe a crônica cotidiana não apenas das
grandes cidades, recompondo a relação entre campo e cidade (MOTA, 2010).

A exemplo, em se tratando da região Nordeste, o Estado do Ceará tem sido apontado


como modelo de desenvolvimento. […] Essa nova política de desenvolvimento tem
atraído várias empresas para o Estado, registrando-se a presença de 200 empresas
instaladas nos últimos três anos e sendo pretensão expressa pelo governo trazer mais
200 nos próximos quatro anos […]. Dentre as empresas instaladas, escolhemos para
ilustrar a desigualdade como o Nordeste se insere na economia globalizada, uma
fábrica de confecção, a Kao-Lin, que faz parte de um complexo empresarial de um
grupo de investidores do Taiwan, e que se encontra em funcionamento no município
de Acarape […] A Kao-Lin contrata apenas a força de trabalho mais especializada
[…], enquanto para a montagem das peças subcontrata pessoal, mediante cooperativas,
que foram criadas por uma parceria entre Estado, Prefeituras Municipais e a referida
empresa. [...] Os membros da cooperativa são quase todos do sexo feminino,
moradoras da zona rural, na grande maioria sem experiência anterior de trabalho
industrial e, menos ainda, de trabalho cooperativo […]. Ora, seria uma absoluta
ingenuidade acreditar que um grupo de capitalistas sairia do Taiwan para vir melhorar
a vida do povo pobre do Ceará, especialmente quando sabemos que as costureiras do
interior foram priorizadas porque, segundo os próprios empresários, “são ótimas de
trabalhar, pois são bem passivas” […]. Os membros das cooperativas trabalham no
mínimo oito horas por dia, com apenas uma hora para o almoço, e um intervalo de
dez minutos pela manhã e à tarde. Sua renda varia a depender da quantidade de peças
produzidas. [...] dentre os valores recebidos, entre os anos de 1994 e 1996, o mais alto
foi de R$ 130,00. […] Para Lima, as cooperativas “criam emprego e renda em áreas
de baixa atração de investimentos como é o sertão nordestino; colocam no mercado
uma população tradicionalmente sem ocupação fixa, qualificam mão-de-obra para o
trabalho industrial, e mantêm nas pequenas cidades, uma população potencialmente
migrante para o Sudeste do país ou capitais regionais” (1998: 213). (TAVARES, 2001,
s/p)
207

Esse processo diz respeito a um movimento impulsionado pela política neoliberal que
cria bases e maior incentivo para a instalação de algumas empresas e indústrias em cidades
menores do interior nordestino, atraídas pela oferta abundante de força de trabalho como
também pelos baixos salários. Condições estas propícias para instituir relações de trabalho mais
flexíveis, tal como a subcontratação, e, portanto, elevar o poder competitivo dessas industrias
em relação à concorrência externa, a exemplo das empresas dos países asiáticos. (ARAÚJO,
2012).
Sobre a política de desenvolvimento regional, dentre outras ações voltadas ao
enfrentamento a questão regional no país, existe uma marca, apontada por muitos analistas,
própria dos anos 90, tendo em vista os desdobramentos do neoliberalismo, da reestruturação
produtiva e da financeirização do capital que influenciaram decididamente no agravamento das
desigualdades regionais. 103 Observemos a seguinte caracterização da política regional nessa
década:

No plano da política regional, a década de 1990 viu acontecer uma profunda


desarticulação da política e dos instrumentos vigentes para o desenvolvimento
regional. De um lado, as reformas institucionais em curso no nível nacional
preconizavam uma maior frustração do gasto público e uma agenda de redução do
aparato produtivo estatal. Neste sentido, foram asfixiadas e depois fechadas as
superintendências regionais de desenvolvimento – Sudene e Sudam. Os recursos
destinados constitucionalmente aos fundos de desenvolvimento regionais (FCO, FNO
e FNE2) passaram a ser constrangidos pela redução da base de recursos do imposto
sobre produtos industrializados (IPI) em função da expansão da parcela das
contribuições federais (que não precisam ser transferidas a estados e municípios) no
conjunto da carga tributária federal. [...] Resultou, nessa década, como fruto do
modelo de política macroeconômica adotado, baixas taxas de crescimento econômico
para o país como um todo. [...] Neste contexto econômico, o gasto público federal
(principalmente, o de investimento), um importante componente da demanda nas
regiões, foi substancialmente reduzido. [...] Os recursos de crédito do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), principal instrumento do governo
federal para financiamento da atividade produtiva, foram orientados, em grande
medida, para o financiamento da agenda de privatizações, de empreendimentos na
infraestrutura e serviços e, em pouca medida, na indústria de transformação. (NETO,
2014, p.73-74).

A prioridade dada ao capital especulativo e às medidas de privatizações junto ao


desmantelamento de vários órgãos tidos como de “promoção do desenvolvimento regional”,

103 “De fato, os primeiros anos da década de 90 revelaram dois fenômenos concomitantes no mundo
desenvolvido. O primeiro deles, o efeito de reequilíbrio regional negativo, isto é: estaria havendo uma redução
das disparidades entre regiões por conta de a recessão dos anos 90/93 ter impactado mais fortemente as áreas mais
prósperas e ricas dos países desenvolvidos, onde foi mais longe o processo de reestruturação produtiva com
consequências amplas e bastante graves sobre o desemprego e a desaceleração do crescimento. Isso teria
provocado uma convergência de rendas no plano inter-regional negativa, pois carreada pelas perdas das regiões
mais dinâmicas e não por ganhos acumulados juntos às mais atrasadas”. (LAVINAS, 1997, p.9-10).
208

reforçando a liderança da região Sudeste, mais precisamente de São Paulo, na captação e


expansão de segmentos de ponta, tais como microeletrônica e telecomunicações, demonstra,
para Araújo (2012, p.331), o quanto o projeto neoliberal interrompeu “a tendência à modesta
desconcentração que se vinha desenvolvendo no país” na direção das regiões menos
desenvolvidas. Em outras palavras, impôs uma força reconcentradora em termos regionais. A
estudiosa sobre o tema ainda ressalta:

No projeto neoliberal não há grande espaço para o Estado planejador nem para o
Estado produtor. As últimas décadas nos mostram que os dois, junto com o grande
capital privado (nacional e multinacional), foram os principais agentes das mudanças
[...]. O Projeto de Reconstrução Nacional ignora isso. [...]. Coloca a questão regional,
por exemplo, no capítulo das políticas sociais compensatórias, ao lado do seguro-
desemprego e das creches. Que espaços poderíamos, nesse contexto, esperar para o
planejamento regional? (ARAÚJO, 2012, p.23-24).

Como reflexo desse contexto, o Nordeste volta a perder posição na economia nacional,
sendo reduzido consideravelmente o peso desta região na indústria nacional, de 12% em 1990
para 8% em 1994. Dos considerados “centros urbanos dinâmicos” em termos de crescimento
industrial, o território nordestino abrigava apenas cerca de 15% dos quais 80% estavam nas
regiões Sudeste e Sul. Essa realidade tornou-se mais agravante frente ao reforço na seletividade
espacial dos investimentos via BNDES. Seletividade esta, inclusive no interior da própria
região, beneficiando estados como a Bahia. Assim, o novo dinamismo das áreas de fruticultura
irrigada, o mercado do pequeno excedente da agricultura de sequeiro e a crise do velho
complexo “gado-algodão-policultura”, que se estendia desde 1980, associada a queda de quase
pela metade da participação do Nordeste na pauta de exportações brasileiras, desdobraram-se
em um quadro de consequente estagnação nos indicadores econômicos da região em questão.
Foi diante desse cenário que Celso Furtado, em 1992, publicou o livro cujo título já explicitava
sua análise sobre as tendências da época: “Brasil: a construção interrompida”.
O resultado desse processo foi, sem dúvidas, o aprofundamento das diferenciações e
desigualdades regionais, tal como demonstra a publicação do IPEA (1997) intitulada
“Desigualdades Regionais: Indicadores Socioeconômicos nos Anos 90”. Observemos um dos
trechos da pesquisa:

O Nordeste, por exemplo, mostrou um quadro de grande estagnação na última década,


com a ressalva de ter-se beneficiado dos efeitos de escala do plano de estabilização
econômica. Não por acaso, a proporção de pobres, que entre 1990 e 1993 praticamente
não variou no Nordeste, situando-se em torno de 44% nas áreas urbanas e 49% nas
áreas rurais, cai em 1995 para 30 e 31%, respectivamente.21 Seu PIB pouco cresceu
entre 1985 e 1994. Se confrontarmos sua performance com as das demais regiões
brasileiras com base em indicadores de abertura econômica e participação no
209

comércio externo, são débeis os sinais de uma reação à altura dos desafios que se
colocam para a reversão de um quadro tão desfavorável. (LAVINAS, 1997, p.33).

Todo esse contexto teria reforçado o peso do atraso em detrimento uma modernização
de fato ou, nos termos da própria autora, “em lugar de buscar a modernização, ampliamos nosso
atraso.” (ARAÚJO, 2012, p.23). Este expresso, inclusive, no crescimento do fundamentalismo,
de formas de exploração sexual, de condições de trabalho degradantes e aviltantes, de
exploração predatória dos recursos naturais, da restrição de direitos humanos e sociais, mesmo
nos marcos da sociedade burguesa. A transformação de “reservas do 'mundo do trabalho' em
reservas do 'mundo do crime'” (GUIMARÃES, 2008), o aumento expressivo da criminalidade
e da criminalização, da violência e da repressão são aspectos que compõem essa “nova” face
da hegemonia do capital. O que isso nos demonstra? Aqui lembramos das questões que fizemos
no início deste item relativas ao dilema entre civilização e/ou barbárie, ensaiando alguns
possíveis caminhos que certamente nos levarão a outras tantas questões. Vamos aos pontos.
Mesmo que seja nesta sociedade que “pela primeira vez na história da humanidade, não
só a classe dominante, mas também a classe dominada abre uma perspectiva para toda a
humanidade”, sendo “a primeira classe social que exige, por sua própria natureza, a superação
radical da exploração do homem pelo homem” (MARX; ENGELS, 2009, p.10), é essa mesma
sociedade que carrega consigo um potencial de conter essa força social, não apenas pelo
tamanho e sofisticação de suas indumentárias repressivas, mas também por sua capacidade de
alienação dos sujeitos, de “dessubstancialização”, podendo representar uma inversão perversa
dos saltos progressivos.
Por enquanto, diante dos argumentos aqui postos, é possível observar que vivemos um
momento histórico em que o capitalismo demonstra cada vez mais o que de menos tem a
oferecer para a humanidade. Isso não significa que seu desenvolvimento e sua possibilidade
concreta de modernização esteja necessariamente em decadência; ao contrário, está em pleno
vapor e ainda mais complexo, porém, sob uma perda considerável do seu caráter civilizatório e
progressista e, por conseguinte, um rebaixamento necessário da defesa de valores democráticos
pelos próprios setores dominantes como uma alavanca para o padrão atual de acumulação. Eis
a gradativa decadência ideológica da burguesia que se aprofunda nesses tempos. “Por
conseguinte, os significados originais tanto de ‘liberdade’ quanto de ‘igualdade’ são
transformados em determinações abstratas que se sustentam de maneira circular […]”
(MÉSZÁROS, 2007, p.188). Daí a completa similaridade entre liberalismo e conservadorismo.
A gênese e o desenvolvimento do capitalismo “implicou episódios ferozes e com
210

frequência violentos, de destruição criativa”, mediante a dominação de classe. Foi esse mesmo
contexto que permitiu “a abolição das relações feudais, a liberação de energias” potencialmente
“criadoras, a abertura da sociedade a fortes correntes de mudança tecnológica e organizacional
e a superação de um mundo fundado na superstição e na ignorância, substituído por um mundo”
que teria o potencial de desenvolver as forças produtivas ao ponto de “libertar as pessoas dos
anseios e necessidades materiais”, de superar a escassez das condições de vida. (HARVEY,
2014). Esse processo compõe todo o legado do projeto de modernidade que aos poucos ficou
órfão do seu próprio criador. Referimo-nos aos setores burgueses.
Portanto, não dá pra avaliar o que há de positivo e negativo do capitalismo, percorrendo
os modos de produção existentes na história da humanidade, como se o mesmo pudesse
sobreviver apenas com um ou com o outro lado da moeda. Estamos falando de uma unidade
contraditória, de um complexo social que tem esferas constitutivas do seu modo de ser, às vezes
se expressando de maneira mais branda, outras vezes mais ofensiva. Assim, entendemos que,
se em algum momento a teoria marxiana e marxista avalia que é possível compreender a
acumulação primitiva como “uma etapa necessária, ainda que tenebrosa, pela qual teve de
passar a ordem social para chegar a uma condição na qual se tornassem possíveis tanto o
capitalismo como algum socialismo alternativo”, que abriu caminhos à reprodução expandida,
hoje temos formas de expropriação, alienação e acumulação que podem fazer ruir e destruir um
caminho já aberto. “A acumulação por espoliação pode ser aqui interpretada como o custo
necessário de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista”. Isto, portanto,
muito explica e caracteriza as práticas do imperialismo contemporâneo. É nesta mesma linha
de raciocínio que situamos as reflexões sobre a existência (ou não) de algo progressista na
expansão capitalista em territórios tradicionais, a exemplo do caso do imperialismo britânico
na Índia que, “diante da opção entre a mão de obra industrial e a volta ao empobrecimento rural,
muitas pessoas no âmbito do novo proletariado” pareciam “exprimir forte preferência por
aquela.” (HARVEY, 2014, p.128-135).
Certos de que Marx “não defendeu a perpetuação do status quo e, sem dúvida, não foi
favorável a nenhuma reversão a relações sociais e formas de produção pré-capitalistas”
(HARVEY, 2014, p.134), partindo da concepção do desenvolvimento capitalista como uma
“fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral”, portanto, não como algo
inexorável (BONENTE, 2014, p.02), entendemos que está no cerne não apenas da história do
Brasil, mas da própria lógica capitalista, que em períodos de intenso desenvolvimento
econômico, com aumento de forças produtivas, tendem a acirrar as contradições fundamentais
da sociedade. Afinal,
211

Essa 'alienação' […] só pode ser superada, evidentemente, dadas duas premissas
práticas. Para que ela se torne um poder 'insuportável', isto é, um poder contra o qual
se faça uma revolução, é necessário que tenha criado uma grande massa da
humanidade absolutamente 'destituída de propriedade' e ao mesmo tempo em
contradição com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um grande
aumento da força produtiva, um grau elevado do seu desenvolvimento – e, por outro
lado, esse desenvolvimento das forças produtivas […] é também uma premissa prática
absolutamente necessária, porque sem ele só a escassez se generaliza […] só com esse
desenvolvimento universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio
universal dos homens […] tornando todos eles dependentes das revoluções uns dos
outros […]. [Porém] no desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estágio
no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações
vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças de
destruição […] (MARX; ENGELS, 2009, p.50-56).

Dessa forma, o desenvolvimento das forças produtivas que viabilize, mesmo que
momentânea ou circunstancialmente, melhores condições de vida e trabalho, embora de forma
relativa, é muito mais suscetível para aprofundar as contradições e viabilizar as fissuras reais,
estruturais e sistêmicas que venham a favorecer um desenvolvimento social pautado nas
necessidades humanas, não nas do capital. Contudo, como podemos observar, o potencial atual
do desenvolvimento capitalista nos parece estar cada vez mais pautado na destruição, não na
criação, mesmo que essas sejam duas faces da mesma moeda. Se assim não fosse, o grau de
desenvolvimento das forças produtivas já alcançados na história da humanidade certamente já
poderia ter superado o estado de calamidade, enfermidade e degradação que boa parte da
população ainda é submetida, o que seria um completo inconveniente à dinâmica capitalista.
A reprodução ampliada do capital aponta, não só, para uma recomposição da classe
trabalhadora urbana e rural, como também para tendências históricas e imanentes a essa lógica,
como a reorganização e intensificação da luta de classes. Estas tendências tomam proporções
diferenciadas frente ao complexo sistema de financeirização e fetichismo do capital que se
integra à atual crise. Nesse caminho, a luta democrática adquire outro contorno e qualidade,
especialmente quando atrelada a outros projetos estratégicos de sociedade, sendo cada vez mais
uma das muitas trincheiras a serem enfrentadas pelos trabalhadores enquanto “questão geral da
resistência à acumulação por espoliação” (HARVEY, 2014, p.133). Isto tendo em vista que
“mesmo as escassas medidas de igualdade formal” estão sendo “com frequência consideradas
um luxo inacessível e anuladas sem cerimônia por práticas políticas corruptas e autoritárias, ou
ainda por intervenções ditatoriais realizadas abertamente.” (Idem, p.186).
Esse contexto põe grandes desafios para as resistências populares e organizações de
esquerda no atual quadro da luta de classes. Dentre esses, a necessidade de enfrentar uma leitura
economicista de desenvolvimento e suas contradições que associa de forma mecânica a
212

modernização capitalista a algo necessariamente favorável aos trabalhadores do ponto de vista


da luta de classes. Do mesmo modo, é também relevante distinguir os mais diversos sujeitos
que hoje são porta-vozes de um discurso anticapitalista, afinal, nem toda ação questionadora do
desenvolvimento capitalista, motivada muitas vezes em nome da tradição, é progressista. E isso
não é novidade do nosso tempo histórico.

Basta pensar no movimento das milícias norte-americanas, ou nos sentimentos anti-


migrantes em enclaves étnicos que combatem incursões 'externas' naquilo que julgam
ser direitos antigos e veneráveis à terra. Espreita o perigo de que uma política de
nostalgia pelo que se perdeu sobrepuje a busca de melhores maneiras de atender às
necessidades materiais de populações empobrecidas e reprimidas, de que a política
excludente do local assuma a primazia sobre a necessidade de construção de uma
globalização alternativa numa variedade de escalas geográficas, de que a reversão a
antigos padrões de relações sociais e de sistemas de produção venha a ser proposta
como solução num mundo que não parou no tempo. (HARVEY, 2014, p.144-145).

Torna-se oportuno lembrarmos o seguinte: mesmo que o desenvolvimento das forças


produtivas sob relações sociais de produção capitalista seja o próprio desenvolvimento
capitalista, o desenvolvimento de forças produtivas não existe à priori, mas sob determinadas
relações sociais que predominam em uma época. Portanto, reforçando o que já sinalizamos
anteriormente, não se trata de conceber o capitalismo como condição de existência do
desenvolvimento das forças produtivas. Já que o desenvolvimento capitalista não é inexorável
nem isento de conflitos e contradições, é, portanto, possível e necessário pautar um outro
projeto de desenvolvimento. Isto, inclusive, já faz parte de reivindicações históricas de
organizações representativas das classes trabalhadoras. É claro que isso demandará um conjunto
de mediações que possam dar conta de um processo de transição. Este não brotará abstratamente,
mas do solo do real.
Outro importante desafio é o da unidade das forças progressistas, populares e classistas.
O próprio padrão de acumulação capitalista já demonstra que, tal como há uma relação dialética
e orgânica entre a reprodução ampliada do capital e a acumulação primitiva, as lutas sociais que
não são diretamente pautadas pela mediação do trabalho adquirem uma outra qualidade e
importância, inclusive, para fortalecer aquelas. Afinal, exploração e expropriação caminham
juntas. Na busca dessa (re)conciliação, é preciso considerar experiências de lutas contra a
construção de grandes obras, na maioria das vezes envolvendo tenebrosas transações
financeiras e empresariais, com repercussões sociais e ambientais onerosas para os territórios e
populações locais, ribeirinhas, indígenas, rurais, dentre outros, em detrimento do fornecimento
de energia barata e não degradante que o desenvolvimento das forças produtivas poderia
plenamente oferecer. Como exemplo dessas lutas, salientamos a atuação do Movimento dos
213

Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil, particularmente nas regiões Norte e Nordeste, contra
os impactos da construção de hidrelétricas, tal como a de Belo Monte, e de outras grandes obras
com objetivos claramente destoantes daqueles defendidos pelas populações atingidas.
É, portanto, inconcebível adjetivar tais resistências como anti-modernas ou como
obstáculos ao desenvolvimento econômico, quando, na verdade, são experiência movidas pela
necessidade de um desenvolvimento social, de fato. “Ainda que esta seja uma batalha específica
num local particular e precise ser travada com recursos específicos, seu caráter geral de classe
é bastante claro, tanto quanto o é o ‘bárbaro’ processo de expropriação” (HARVEY, 2014,
p.145). Por isso, é importante reiterar a política como mediação fundamental para se conformar
estratégias dos diferentes sujeitos e classes, que na disputa de projetos antagônicos podem abrir
caminho para a construção de uma nova hegemonia.

3.1.1. Fragmentos da integração capitalista e as novas fronteiras regionais

Retomando o tema sobre o qual iniciamos este capítulo, ressaltamos o quanto é comum,
na caracterização das tendências contemporâneas do capitalismo, a utilização de algumas
“máximas” relativas a um contexto de globalização e mundialização, onde o caráter expansivo
do padrão de acumulação do capital assume dimensões que desafiam seus próprios limites.
Vivemos hoje em uma sociedade sem fronteiras, globalizada, desterritorializada, sem distinções
regionais? Ou, em outra perspectiva e com tom muito menos entusiasta, podemos dizer que a
financeirização intensificou o domínio do mercado internacional implicando na perda do poder
de decisão e interferência dos Estados nacionais nos territórios nacionais? Optar por uma ou
outra posição certamente não contribuiria para decifrarmos as contradições e captarmos os eixos
que compõem o movimento dialético entre universal e regional na realidade atual. Ao contrário,
tornaria o caminho ainda mais nebuloso, inclusive aquele que estamos percorrendo ao longo
deste trabalho com o objetivo de dar sustentação a nossa tese, tendo como base os argumentos
aqui expostos. Dentre estes, aqueles que reiteram a questão regional como dimensão da questão
social e, portanto, parte constitutiva da dinâmica de ser capitalista, particularmente na
contemporaneidade. Por isso, atentamos para o seguinte:

Em geral, se difunde a ideia de que a mundialização estaria desorganizando a


instituição estatal em aspectos essenciais, particularmente no que se refere à condição
de entidade soberana. […] são considerados três elementos para destacar este aspecto.
214

O primeiro se refere à criação de uma extensa e poderosa rede de movimentos do


capital financeiro e especulativo internacional que superaria a capacidade de controle
dos Estados nacionais. O segundo aponta para a presença de um número pequeno,
porém espraiado, de grandes conglomerados multinacionais, com filiais espalhadas
pelo mundo, que estariam tomando as decisões fundamentais sobre os rumos da
economia internacional. Por último, destaca-se a enorme ingerência por parte de
organismos financeiros internacionais […] com capacidade de ditar as políticas que
os Estados devem seguir […]. No fundo, o pressuposto implícito é que o capital
financeiro internacional, os conglomerados multinacionais e os organismos
financeiros internacionais não respondem a interesses nacionais. (OSORIO, 2014,
p.180-181).

Em contraponto, é certo que “a busca de mais-valia ao nível global faz com que a sede
primeira do impulso produtivo […] seja apátrida, extraterritorial, indiferente às realidades
locais […]”. Nessa perspectiva, “o poder das forças desencadeadas num lugar ultrapassa a
capacidade local de controlá-las, nas condições atuais de mundialidade e de suas repercussões
nacionais”. (SANTOS, 2006, p.170).
É exatamente no momento em que mais se agilizam, simplificam, integram,
desterritorializam, flexibilizam e universalizam as relações de produção e reprodução que, por
outro lado, se complexificam, fragmentam, territorializam, enrijecem e particularizam essas
mesmas relações. Assim, o que mais parece um jogo de confundir para esclarecer, trata-se do
acirramento das contradições de uma sociedade pautada na lógica de desenvolvimento das
forças produtivas para atender as necessidades do capital, de superlucros, produzindo e
aprofundando a segregação e as desigualdades sociais, regionais e territoriais. É por isso que a
flexibilização não significa menos rigidez na exploração e controle do trabalho 104 . A
universalização não corresponde a melhores condições de igualdade no acesso aos bens que
deveriam ser universais. A globalização não se desdobra no enfrentamento às fronteiras de
classe, etnia, raça, gênero, regionais e territoriais. A expansão e integração capitalista não
implica em um sistema mundial homogêneo, mas fundamentalmente heterogêneo.
O que, na verdade, tem ocorrido é um aumento exponencial do componente
internacional da divisão regional do trabalho junto a uma monopolização das técnicas e novas
tecnologias, geograficamente circunscritas, reforçando o que há de comum em todas as épocas:
“o novo não é difundido de maneira generalizada e total”. Nesse sentido, “os espaços assim
requalificados atendem sobretudo aos interesses dos atores hegemônicos da economia, da

104
“Na medida em que cada produção supõe necessidades específicas, o aprofundamento do capital, sua maior
densidade, sua mais alta composição orgânica, criam condições materiais sempre mais rígidas para o exercício do
trabalho vivo. Essa rigidez tanto se manifesta pela existência de novas técnicas convergentes, como pelas formas
de trabalho que esse meio técnico renovado acarreta. Fala-se muito em flexibilidade e flexibilização como aspectos
maiores da produção e do trabalho atuais, mas o que se dá, na verdade, é a ampliação da demanda de rigidez. Pode-
se, mesmo, dizer, sem risco de produzir um paradoxo, que a fluidez somente se alcança através da produção de
mais capital fixo, isto é, de mais rigidez. (SANTOS, 2006, p.169).
215

cultura e da política […]. A diferença […] vem da lógica global que acaba por se impor a todos
os territórios e a cada território como um todo. […] o meio geográfico tende a ser universal”.
(SANTOS, 2006, p. 160)
As necessidades de reconfiguração do tempo-espaço, sendo orientadas pelos
imperativos do capital, atuam no sentido de criar condições mais favoráveis para uma
acumulação em proporções cada vez maiores, diminuindo o tempo e o espaço necessário para
o processo direto da produção, “enquanto se alarga o espaço das outras instâncias da produção,
circulação, distribuição e consumo”.

Essa redução da área necessária à produção das mesmas quantidades havia sido
prevista por Marx, que a esse fenômeno chamou de "redução da arena". Graças aos
avanços da biotecnologia, da química, da organização, é possível produzir muito mais,
por unidade de tempo e de superfície. O processo de especialização, criando áreas
separadas onde a produção de certos produtos é mais vantajosa, aumenta a
necessidade de intercâmbio, que agora se vai dar em espaços mais vastos, fenômeno
a que o mesmo Marx intitulou "ampliação da área". Como se produzem, cada vez
mais, valores de troca, a especialização não tarda a ser seguida pela necessidade de
mais circulação. O papel desta, na transformação da produção e do espaço, torna-se
fundamental. Uma de suas consequências é, exatamente, o aprofundamento das
especializações produtivas, tendentes a convocar, outra vez, mais circulação. Esse
círculo vicioso - ou virtuoso? - depende da fluidez das redes e da flexibilidade dos
regulamentos. As possibilidades, técnicas e organizacionais, de transferir à distância
produtos e ordens, faz com que essas especializações produtivas sejam solidárias no
nível mundial. Alguns lugares tendem a tornar-se especializados, no campo como na
cidade, e essa especialização se deve mais às condições técnicas e sociais que aos
recursos naturais. […] Imaginando duas regiões com as mesmas virtualidades físicas,
aquela mais bem equipada cientificamente será capaz de oferecer uma melhor relação
entre investimento e produto, graças ao uso just-in-time dos recursos materiais e
humanos. Numa região desprovida de meios para conhecer, antecipadamente, os
movimentos da natureza, a mobilização dos mesmos recursos técnicos, científicos,
financeiros e organizacionais obterá uma resposta comparativamente mais medíocre.
[…] Uma nova dinâmica de diferenciação se instala no território. (SANTOS, 2006,
p.161-163).

Essa dinâmica influencia decididamente os territórios nacionais, reforçando condições


estruturais em que determinadas nações se sustentam no modo de produção capitalista. Sobre
isso, ressaltamos a situação dos países dependentes em relação às nações centrais que, ao
contrário do que é comumente difundido, as tendências contemporâneas não incidem sobre um
possível regresso nas divisões internacionais e demarcações de zonas geográficas a partir dos
fluxos de trabalho e capital. Portanto, não poderíamos falar do fim do imperialismo, muitos
menos de uma diluição das suas fronteiras hierárquicas entre nações imperialistas e dependentes.
Basta observarmos a recente onda de migrações que demonstram a forma violenta e degradante
de como as fronteiras regionais ainda são (re)estabelecidas. Nessa perspectiva, “centro e
periferia [...] são as duas caras de um único processo: a expansão do capitalismo como sistema
216

mundial, que ao longo de sua história gera regiões e nações diferenciadas do ponto de vista da
capacidade de se apropriar de valor (o centro) e outras de ser despojadas de valor (a periferia)”.
(OSÓRIO, 2014, p.182-1833). A mundialização do capital reconfigura em patamares mais
complexos a dependência e, consequentemente, o grau de menor soberania das nações nesta
condição em relação a outras.
Nesse sentido, de acordo com Osório (2014), é fundamental tanto para os grandes
capitais do mundo central como para os setores dominantes dos Estados dependentes o
fortalecimento da capacidade política estatal, o que vai de encontro com a ideia de que a
financeirização do capital demanda necessariamente o enfraquecimento, ou mesmo
definhamento, dos Estados-nação.

[…] os grandes atores políticos dessa etapa da mundialização são, portanto, os Estados
neo-oligarquizados, e não um capital financeiro “desterritorializado” […]. A
mundialização reproduz assim a contradição que atravessa o capital entre o âmbito
econômico e o âmbito político. A expansão econômica do capital, que busca apagar
as fronteiras, se vê limitada no terreno político pela presença do Estado-nação, que
fixa fronteiras. Mas este é apenas um aspecto da contradição. Ao mesmo tempo, a
mundialização capitalista somente pôde alcançar os níveis atuais, e somente poderá
seguir avançando, ao estar apoiada no Estado-nação, que poderá se redefinir,
ampliando, por exemplo, os espaços “nacionais” a serem controlados, mas que
manterá os traços essenciais que o definem como tal e, com isso, manterá as disputas
entre Estados capitalistas (Ibid., p.196-200).

Eis os argumentos que fazem Santos (2006) conceber como um dos aspectos centrais na
“era da globalização” a transformação dos territórios nacionais em espaço nacional da
economia internacional. Em tais condições, equivocadamente, “a noção de territorialidade é
posta em xeque e não falta quem fale em desterritorialização [...] atribuindo-lhe alguns
significados extremos, como o da supressão do espaço pelo tempo [...] ou o da emergência do
que chamam ‘não-lugar’ [...]” (SANTOS, 2006, p.163). Em outras palavras, há uma forte
tendência discursiva que reforça a concepção de que estaríamos vivendo hoje um capitalismo
sem fronteiras onde não caberia mais a ideia de região, sendo esta ultrapassada. Tal concepção
é alvo de severa crítica por parte de Milton Santos, enquadrando-a na vertente pós-moderna.
Observemos as próprias palavras do autor:

Da mesma forma, como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço, também se afirma,
nas mesmas condições, que a expansão do capital hegemônico em todo o planeta teria
eliminado as diferenciações regionais e, até mesmo, proibido de prosseguir pensando
que a região existe. Quanto a nós, ao contrário, pensamos que: em primeiro lugar, o
tempo acelerado, acentuando a diferenciação dos eventos, aumenta a diferenciação
dos lugares; em segundo lugar, já que o espaço se torna mundial, o ecúmeno se
redefine, com a extensão a todo ele do fenômeno de região. As regiões são o suporte
e a condição de relações globais que de outra forma não se realizariam. Agora,
217

exatamente, é que não se pode deixar de considerar a região, ainda que a


reconheçamos como um espaço de conveniência e mesmo que a chamemos por outro
nome. [...] Agora, neste mundo globalizado, com a ampliação da divisão internacional
do trabalho e o aumento exponencial do intercâmbio, dão-se, paralelamente, uma
aceleração do movimento e mudanças mais repetidas, na forma e no conteúdo das
regiões. Mas o que faz a região não é a longevidade do edifício, mas a coerência
funcional, que a distingue das outras entidades, vizinhas ou não. […] A região
continua a existir, mas com um nível de complexidade jamais visto pelo homem.
(SANTOS, 2006, p.165-166).

As regiões continuam existindo, porém, reconfiguradamente, até porque as demandas


do capital não são de mesma ordem daquelas de décadas atrás. Além disso, as configurações
desses “subespaços” são diversas, não sendo “igualmente capazes de rentabilizar uma
produção”. As ações hegemônicas privilegiam determinadas áreas, lugares, que se distinguem
“pela diferente capacidade de oferecer rentabilidade aos investimentos”105. Isso expressaria,
para o pensador brasileiro, a noção de “produtividade espacial ou produtividade geográfica”.
“Tal produtividade pode não ser duradoura, desde que outro lugar passe a oferecer àquele
produto melhores vantagens comparativas de localização”. (SANTOS, 2006, p.166).
Nessa ótica, é importante situar geograficamente as principais expressões, tendências e
contradições presentes no capitalismo que se acirram em nossos dias. As relações de
concorrência por atração da produção e de consumidores estabelecem determinados lugares
para se instalarem, que se especializam. A divisão internacional do trabalho também, fazendo
com que algumas regiões tenham traços muito mais fortes da presença da superpopulação
relativa ou do exército industrial de reserva. De acordo com Santos (2006, p.166-167), isso
fundamenta a noção de “exército de reserva de lugares” que ganha um novo significado com
uma divisão do trabalho mais profunda. Essa dinâmica, todavia, não cristaliza os territórios,
muito menos elimina a dialética universal-regional, ainda que também obedeçam a tendências
históricas. Basta observarmos as recentes alterações, não apenas de cunho geográfico, nas
regiões de expansão do agronegócio e/ou de conformação das chamadas “cidades médias”
(SPOSITO; SPOSITO; SOBARZO, 2006), reconfigurando a própria noção de campo e cidade.
Pode servir como exemplo também a crise de hegemonia que vive hoje o bloco de países que
conformam a União Europeia, representando um acirramento dos conflitos entre as frações
burguesas e a alteração na geopolítica internacional. “Nesse sentido, é lícito admitir que
vivemos em um mundo onde os lugares mostram uma tendência a um mais rápido

105
“Essa rentabilidade é maior ou menor, em virtude das condições locais de ordem técnica (equipamentos, infra-
estrutura, acessibilidade) e organizacional (leis locais, impostos, relações trabalhistas, tradição laborai). Essa
eficácia mercantil não é um dado absoluto do lugar, mas se refere a um determinado produto e não a um produto
qualquer. Seria uma outra forma de considerar a valorização do espaço, já analisada por A. C. Moraes & W. Costa
(1984).” (SANTOS, 2006, p.166).
218

envelhecimento (de um ponto de vista técnico e socioeconômico), com ritmos diversos e,


mesmo, inesperados, segundo regiões e países.”. (SANTOS, 2006, p.166).
Assim como na economia, na arquitetura, na política, na cultura, a lógica hegemônica
do fetichismo da mercadoria adentra também a (re)construção dos espaços, das regiões,
promovendo uma verdadeira “guerra dos lugares” que “ganha cores dramáticas quando está em
jogo o problema do emprego”. Afinal, “o dogma da competitividade não se impõe apenas à
economia, mas, também, à geografia” e outras tantas dimensões da vida humana nos marcos do
capital (SANTOS, 2006, p.167). Não cabendo, portanto, somente à esfera regional a
modificação de tendências hegemônicas.
Contraditoriamente, é preciso ressaltar o seguinte: é nesse mesmo marco histórico que
se expressam nas regiões e territórios os processos de resistências e disputas de hegemonia
motivados também por projetos políticos orientados pela construção de uma outra sociabilidade,
pautados na construção de bases de vida em comum, mediante a criação de normas de
convivência locais que acabam por, se não mudar, ao menos afetar, incomodar, as normas e
padrões nacionais e globais. Um exemplo são as experiências no Brasil de cooperação agrícola
nas áreas de atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). (PEREIRA,
2011).
Diante disso, Santos (2006, p.174) sinaliza que “pensar na construção de novas
horizontalidades” permitirá, “a partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho
que se anteponha à globalização perversa e nos aproxime da possibilidade de construir uma
outra globalização” e, portanto, outra integração regional.
Daí porque entender o traço regional como determinante e ao mesmo tempo expressão
do desenvolvimento desigual e combinado. A configuração desigual dos espaços, enquanto
produto do trabalho, dá-se pela intermitente relação entre esses mesmos espaços, ou, nas
palavras de Santos (2006, p.168-173), “subespaços”, não por uma suposta ausência de
integração ao desenvolvimento capitalista. Cada região é em relação as outras: “cada lugar, cada
subespaço, tanto se define por sua existência corpórea, quanto por sua existência relacional”.
De resto, é assim que as regiões existem e se diferenciam umas das outras. Nessa relação, é
importante observar que os impactos da mundialização do capital tornam-se mais expressivos
“naqueles países cuja inserção estrutural no movimento da economia internacional se deu mais
recentemente”.

As condições pós-1973 […] têm sido bem mais favoráveis a todo e qualquer país ou
complexo regional que deseje inserir-se no sistema capitalista global – o que explica
o rápido crescimento de territórios como Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul, bem
219

como de vários outros países e regiões recém-industrializados. Essa abertura de


oportunidade trouxe ondas de desindustrialização a boa parte do mundo capitalista
avançado (e mesmo para além dele […]), ao mesmo tempo em que tornou os países
recém-industrializados, tal como o fez a crise de 1997-1998, mais vulneráveis às
manobras do capital especulativo, da competição espaçotemporal e de ondas
adicionais de acumulação por espoliação. Eis como é construída e se exprime a
volatilidade do capitalismo internacional (HARVEY, 2014, p.128).

Diante dos aspectos, aqui brevemente apresentados, que interferem na dinâmica


regional (ou no desenvolvimento inter-regional) frente a crise capitalista vigente, situamos
novamente a realidade brasileira sobre a qual nos deteremos a partir de então. Esta também é
partícipe da reconfiguração de barreiras espaciais e distinções regionais, fazendo com que haja
uma recondução nos polos dinâmicos da economia regional, com a formação das “cidades
médias” e a “entrada em cena”, de forma mais contundente, de outras regiões, a exemplo do
“Centro-Oeste do agronegócio”. Esse quadro demonstra que a região Nordeste ainda se
configura como espaço que desempenha um papel historicamente central no âmbito da divisão
regional do trabalho e da especialização do trabalho coletivo expressa territorialmente. Isso
mesmo diante da relativa melhoria das condições de trabalho nesta região e da redução das
desigualdades regionais ao decorrer do ciclo de crescimento econômico dos anos 2000, tal como
apresentaremos mais adiante.
Assim, é oportuno retomar algumas reflexões que nos motivaram neste trabalho, tais
como: em que medida ocorreram, de fato, inflexões na questão regional brasileira a partir da
realidade nordestina na última década? Como podemos explicá-las? Ocorreram mudanças na
divisão inter-regional do trabalho semelhantes aquelas que Francisco de Oliveira (1977)
apontou entre as décadas de 1940 e 1960? É possível constatar alterações nas migrações de
trabalhadores entre as regiões, no centro dinâmico nacional (Sudeste em relação as outras
regiões), no mercado interno, no papel do Nordeste na divisão regional do trabalho, na
composição da superpopulação relativa, na (des)concentração industrial, nas formas
diferenciadas de crescimento econômico, na produtividade em relação ao pauperismo no
contexto nordestino? Ou assim como a década de 1990, o processo de reprodução das
desigualdades regionais continua “recheado de novos ingredientes, mas maduro de uma velha
certeza: permanecem as disparidades tanto do ponto de vista social, quanto econômico”
(LAVINAS, 1997, p.09)?
Certamente não temos a pretensão de responder a todas essas questões, não estaria ao
nosso alcance. O que, de fato, convenha seja promover uma síntese, repondo a nossa tese no
centro, a partir do encontro entre as ideias daqueles que já tanto contribuíram com o tema em
questão, os dados e os fatos da realidade recente. E que esse esforço demonstre sua validade
220

não apenas ao fim desse percurso, pois, tal como nos ensina o personagem de Grande Sertão
Veredas, muitas vezes atravessamos as coisas e no meio da travessia não vemos, só estávamos
“entretido[s] na ideias dos lugares de saída e de chegada” quando, na verdade, “o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. (ROSA,
[1956]1994, p.85). Enfrentemos, então, mais um passo nesta travessia.

3.2. O desenvolvimento possível sob a hegemonia neoliberal: da emergência a crise de um


novo ciclo brasileiro

Em meio à expansão da especulação e do capital financeiro em esfera mundial,


priorizando uma política monetária e cambial conservadora caracterizada pelas altas taxas de
juros em prol de um controle inflacionário e pela priorização do superávit primário, no período
mais recente, especialmente entre 2006 e 2010, houve um boom na economia brasileira com a
retomada do papel do Estado em impulsionar o crescimento econômico no país.
Torna-se inviável analisar esse contexto, suas particularidades, sem levarmos em
consideração, primeiro, os determinantes estruturais, conformando um ciclo capitalista
marcado pela crise internacional numa dinâmica desigual e combinada que, em certa medida,
favorece a economia brasileira; segundo, as diferenciações do projeto político em ascensão
nesse mesmo período, capitaneado por governos petistas e regidos pelo pacto social cuja força
dirigente constitui-se na “frente neodesenvolvimentista” (BOITO JR., 2012), fruto também da
crise ideológica do neoliberalismo que permitiu, por exemplo, a constituição de governos
populares em outros países da América Latina.
De acordo com Carvalho (2018, s/p), em meio a vários erros, dentre os acertos desses
governos, em especial do governo presidido por Lula, encontra-se um conjunto de ações
voltadas para a redução das desigualdades sociais, fazendo dessas ações um verdadeiro motor
para o desenvolvimento econômico. Em outras palavras, “trata-se de uma preocupação explícita
de atuação voltada para induzir o crescimento econômico e o nível de empregos, em que se
articula uma política industrial a uma política de valorização do salário mínimo e a adoção de
políticas sociais, com ênfase naquelas voltadas para a redução da pobreza” (BRETTAS, 2013,
p.265).
Além disso, o próprio entendimento de que “o mercado interno, em um país continental
como o nosso, tem um papel fundamental, que precisava redistribuir renda e fazer investimentos
221

públicos, investindo em infraestrutura física e social”. (CARVALHO, 2018, s/p). E é


exatamente de olho nesse potencial que, conforme os documentos governamentais 106 , o
crescimento econômico é pautado, expandindo e consolidando um mercado de consumo de
massa através da ampliação nos rendimentos das famílias, o que estimula o investimento. Este
“conduz a um aumento da produtividade e da competitividade, o que produz efeitos sobre o
poder aquisitivo das famílias e amplia suas possibilidades de consumo, e assim sucessivamente.
Trata-se da perspectiva de defesa de uma política expansionista, objetivando obter os ganhos
advindos do multiplicador keynesiano da renda”. (BRETTAS, 2013, p.255).
A contradições próprias desse período subsidiaram as análises de Singer (2015) que
acaba por afirmar que, de fato, é possível identificar nas medidas presentes na última década
uma “nítida inflexão desenvolvimentista”. O autor, resumidamente, caracteriza esse período,
do ponto de vista da economia, a partir de nove principais eixos, quais sejam:

Cálculos realizados à época da eleição presidencial mostravam que, para continuar as


reformas graduais do lulismo, era preciso que o PIB crescesse cerca de 5% ao ano. A
perda de velocidade eliminaria a margem necessária para combater a pobreza. Na
nova matriz econômica, política anticíclica adotada no primeiro mandato de Dilma,
destacam-se as seguintes ações: 1. REDUÇÃO DOS JUROS. [...] O Banco Central
minorou a taxa básica de juros de 12,5% para 7,25% ao ano entre agosto de 2011 e
abril de 2013, tendo a taxa Selic alcançado o valor mais baixo desde a sua criação em
1986. [...] 2. USO INTENSIVO DO BNDES. [...] O primeiro aporte, de 100 bilhões
de reais, havia ocorrido em 2009, mas teve expansão significativa no primeiro
mandato de Dilma, chegando a 400 bilhões de reais. [...] 3. APOSTA NA
REINDUSTRIALIZAÇÃO. [...] São medidas que vão da redução do IPI sobre bens
de investimento à ampliação do MEI (Microempreendedor individual). A proposta era
que o BNDES investisse quase 600 bilhões de reais na indústria até 2015. 4.
DESONERAÇÕES. [...] em 2014, a desoneração atingiria 42 setores e pouparia cerca
de 25 bilhões de reais anuais aos empresários [...]. Cumpre mencionar, também, a
desoneração do IPI e do PIS/Cofins sobre bens de investimento [...]. 5. PLANO PARA
INFRAESTRUTURA. Em agosto de 2012, é lançado o Programa de Investimentos
em Logística (PIL), pacote de concessões para estimular a inversão em rodovias e
ferrovias. A primeira fase do PIL previa aplicação de 133 bilhões de reais. 6.
REFORMA DO SETOR ELÉTRICO. Em setembro de 2012, é editada a Medida
Provisória 579, com o objetivo de baratear em 20% o preço da eletricidade,
reivindicação da indústria para reduzir os custos e ganhar competitividade em relação
aos importados. [...]. 7. DESVALORIZAÇÃO DO REAL. [...] A partir de fevereiro/
março de 2012, o BC agiu para desvalorizar a moeda [...], alcançado em maio de 2012,
numa queda de 19,52%. 8. CONTROLE DE CAPITAIS. Com o objetivo de impedir
que a entrada de dólares valorizasse o real, prejudicando a competitividade dos
produtos brasileiros, foram tomadas providências de controle sobre os fluxos de
capital estrangeiro [...]. 9. PROTEÇÃO AO PRODUTO NACIONAL. De modo a
favorecer a produção interna, em setembro de 2011 elevou-se em 30 pontos
percentuais o IPI sobre os veículos importados ou que tivessem menos de 65% de
conteúdo local. Em fevereiro de 2012, a Petrobras fechou acordo para alugar 26
navios-sondas a serem construídos no Brasil, com 55% a 65% de conteúdo nacional.
(SINGER, 2015, p.43-45).

106 Ver em Plano plurianual 2004-2007: mensagem presidencial. Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Brasília: MP, 2003.
222

Contudo, tal como nos atenta Brettas (2013, p.196), “o governo Lula, ao retomar a
política industrial, relegada pelo governo FHC, e reorientar a atuação estatal, deixa clara sua
preocupação em não apenas não romper com o capital, mas de fortalecê-lo. O faz, todavia, de
maneira diferente da que se definiu nos governos anteriores”. Assim, seria um grande equívoco
conceber os governos eleitos nos anos 2000 como mera continuidade da política neoliberal
inaugurada no país nos anos 1990. Isto, na avaliação de Boito Jr. (2012), se daria porque, ao
priorizar investimentos às empresas brasileiras, o governo acabou contrariando frações da
burguesia que mais ganharam com a política de FHC, ou seja, aquelas mais diretamente
afinadas com o imperialismo, priorizando os interesses da chamada “burguesia interna” no
bloco do poder.
Já para Sitcovsky (2010), as ações priorizadas pelos governos em questão,
particularmente aquelas que buscaram associar políticas de transferência de renda ao trabalho
precário, teriam encontrado maior oposição naquelas frações burguesas identificadas pelo autor
como “segmentos capitalistas atrasados ou periféricos”. Mara (2016) já aponta como principal
contradição gerada no seio do “pacto social” estabelecido nesse período a própria recomposição
da classe trabalhadora brasileira, o que permitiu, através das políticas de elevação dos níveis de
emprego e consumo, mudanças na composição da superpopulação relativa, um impacto do
aumento expressivo do número de greves, especialmente a partir de 2012, um consequente
descontentamento de setores da pequena burguesia brasileira e, posteriormente, da própria
burguesia dependente brasileira, fração que, segundo o autor, tinha sido mais beneficiada com
a política neodesenvolvimentista. Para alguns, como Castelo (2012, p.614), tratou-se, na
verdade, de uma nova fase do desenvolvimento capitalista inaugurada pelos governos do
Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como uma de suas principais marcas o retorno da
ideologia desenvolvimentista.
Diante de outros tantos pontos de vistas distintos e, na maioria das vezes, polêmicos
sobre o período priorizado na nossa pesquisa, desde os mais críticos aos mais otimistas, que
não teremos como contemplar na nossa pesquisa de tese, o fato é que a roda da economia
tomava um novo impulso com impactos regionais em meados dos anos 2000, tal como
caracteriza a passagem abaixo:

Os setores de “indústria e serviços” cujo investimento passaria de 314,3 bilhões de


2004 a 2007 para 627,1 bilhões de 2008 a 2011, os investimentos em infraestrutura
que passariam de 185,3 bilhões (excetuando os investimentos em habitação e recursos
hídricos) para 304,6 bilhões, e a construção residencial que passaria de 357 para 540
223

bilhões de reais. As forças motrizes de tais investimentos eram, como se pode prever,
as obras de infraestrutura previstas no Programa de Aceleração do Crescimento, o
crescimento das exportações, a ampliação do crédito ao consumo e a ampliação da
indústria pesada de bens de capital. (MARA, 2016, p.356).

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2010, p.18), houve uma
considerável retomada nos investimentos públicos especialmente a partir do ano de 2005,
totalizando cerca de R$ 300 bilhões até 2009, com destaque para a infraestrutura de petróleo e
gás, energia hidroelétrica e construção civil.

Nos anos 2000 […] constata-se que o movimento de recuperação na participação do


rendimento do trabalho na renda nacional sinaliza uma sintonia fina com a elevação
dos componentes de melhoria da situação geral dos trabalhadores. Noutras palavras,
há uma ampliação na taxa de ocupação em relação ao total da força de trabalho (isto
é, uma queda do desemprego) e na formalização dos empregos da mão de obra, com
a queda na pobreza absoluta […]. A participação do rendimento do trabalho na renda
nacional subiu 14,8% entre 2004 e 2010. Nesse mesmo período, o grau de
desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho foi reduzido em 10,7% […]
a maior expansão da quantitativa de ocupações ocorreu justamente no primeiro
decênio do século XXI, com saldo líquido 44% superior ao verificado no período de
1980 e 1990 […]. (POCHMANN, 2013, p.146-149).

É claro que todo esse processo não pode ser compreendido sem a decisiva interferência
das relações internacionais sobre a política interna com algumas destacadas ações no âmbito do
fortalecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul), da inserção do Brasil na Comunidade
dos Estados Latinoamericanos (CELAC) e na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL),
além da participação direta do país junto a algumas nações da Ásia, Europa Oriental e África
em iniciativas econômicas e políticas que podem representar uma possibilidade de interferência
na geopolítica internacional.
Além de certa recuperação do emprego, redução da informalidade, recomposição do
salário-mínimo e elevação do Produto Interno Bruto (PIB) que, em 2002, correspondia a 6,9%
e, em 2009, subiu para o montante de 9,3% (IPEA, 2010, p.18), algumas iniciativas no âmbito
das políticas, com viés mais focalizado e compensatório, de transferência de renda às famílias
que se encontram em situação de extrema pobreza ganharam bastante notoriedade, ocasionando
desdobramentos, a exemplo do alargamento da capacidade de consumo de segmentos mais
subalternizados da sociedade, através da inclusão bancária e creditícia. Sobre isso, vale destacar
que o Programa Bolsa Família, “com cobertura nacional de 1,15 milhão de famílias em outubro
de 2003, atingiu 12,37 milhões em dezembro de 2009”. Segundo Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS), o programa chegou a abranger quase 14 milhões de famílias
224

ao final do segundo governo Dilma Roussef. Isto, vale lembrar, com intermédio dos bancos,
que passa a ser indispensável.
Para Pochmann (2013, p.151), “com a complementação de renda pelas transferências, o
Brasil registra 18,7 milhões de pessoas com até um quarto de salário-mínimo mensal”. Tais
circunstâncias, para o autor, fizeram com que o quadro geral da pobreza no país
tendencialmente apresentasse uma redução de 30% desde 2003. Esse processo foi
acompanhado por outras medidas no campo das políticas sociais, como a implementação da
Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), desde 2004.
Esse cenário, tal como caracterizado até então, aparentemente nos leva a reflexão que
certamente muitos já fizeram, seja para afirmar ou refutar, sobre a possibilidade desse contexto
ter representado uma reedição da política desenvolvimentista no Brasil do século XX. Chegar
a esta conclusão, afirmativa, a nosso ver, nos traz equívocos e não nos permite entender o real
processo em curso. Isso tendo em vista que esse quadro geral possui um conjunto de
características que permite identificar a continuidade da hegemonia neoliberal, especialmente
na realidade mais atual de estagnação de crescimento, aumento do desemprego, avanço de
pautas conservadoras e ajuste fiscal com cortes orçamentários nas políticas sociais.
Alguns críticos a essa associação entre o nacional-desenvolvimentismo e a política
implementada nos anos 2000, utilizam-se de argumentos como a existência de um processo de
desindustrialização, a reprimarização da economia e a dominância financeira expressa em uma
maior rentabilidade dos bancos em relação as empresas no referido período, mesmo diante do
crescimento econômico propalado. Tais aspectos, para Gonçalves (2012), revelam um
verdadeiro fosso entre a década passada e a política desenvolvimentista. Nesta mesma fileira,
encontra-se Maranhão (2009, p.356), que nos chama a atenção para o seguinte:

[...] uma importante diferença entre o antigo ciclo ideológico desenvolvimentista e as


novas promessas do novo ciclo ideológico de desenvolvimento. Enquanto o primeiro
pretendia desenvolver estratégias de intervenção estatal que se adequadamente
redirecionadas poderiam trazer verdadeiras mudanças na histórica centralização da
propriedade e da renda no Brasil, o segundo carrega propostas que não permitem
qualquer transformação na estrutura da renda e da propriedade e por isso
impossibilitam qualquer ganho relativo para a classe trabalhadora.

André Singer (2015, p.54) defende a hipótese de que, ao longo do período que
predominou o “lulismo”, foram estruturadas “duas coalizões contrapostas”: a “rentista” e a
“produtivista”. Para o autor, a primeira “unificaria o capital financeiro e a classe média
tradicional”, enquanto a segunda seria “composta dos empresários industriais associados à
225

fração organizada da classe trabalhadora”. E acrescenta uma breve caracterização acerca dessas
coalizões:

Pairando sobre ambas, com o suporte do subproletariado, os governos lulistas fariam


uma constante arbitragem de acordo com a correlação de forças, ora dando ganho de
causa a uma, ora à concorrente. O programa rentista seria manter o Brasil alinhado ao
receituário neoliberal, bem como na órbita do grande capital internacional e da
liderança geopolítica dos Estados Unidos. Para a coalizão produtivista, a meta
primordial seria acelerar o ritmo de crescimento por meio de uma intervenção do
Estado que levasse à reindustrialização, permitindo tornar mais veloz a distribuição
de renda.

Já para Boito Jr (2012), de fato, a última década é caracterizada por um contexto em que
a correlação de forças políticas favoreceu a formação de uma “frente neodesenvolvimentista”
107
, gelatinosa e heterodoxa, que viabilizou governos de composição de classes em torno de um
projeto de desenvolvimento possível sob a hegemonia neoliberal, ou seja, que não rompeu com
o neoliberalismo, apesar de se diferenciar do projeto vigente nos anos 1990, não sendo
simplesmente sua mera continuidade. Nesta perspectiva, tomando como base as análises de
Alves (2013, s/p), podemos entender que, embora “o projeto burguês do
neodesenvolvimentismo” tenha nascido “no bojo da crise do neoliberalismo [...], ele não

107
“A frente política neodesenvolvimentista começou a se formar no decorrer da década de 1990. Na década
anterior, elementos de ordem econômica e política tornavam os principais instrumentos de luta política e social
recém criados pelas classes trabalhadoras – o PT, a CUT e o Movimentos dos Sem Terra (MST) – infensos a
qualquer aproximação política com o grande empresariado. [...] No início da década de 1990, contudo, a situação
mudou. A parte mais significativa da burguesia unificou-se em torno do programa neoliberal, o desemprego
aumentou muito e o movimento sindical e popular, com exceção do MST (COLETTI, 2002), entrou em refluxo
(BOITO, 1999). Na segunda metade da década de 1990, começaram a surgir sinais de mudança. Um setor da
grande burguesia interna, que também havia apoiado, ainda que de modo seletivo, o programa neoliberal foi
acumulando contradições com esse mesmo programa. Foi nesse quadro marcado, de um lado, por dificuldades
crescentes para o movimento sindical e popular e, de outro lado, pelo fato de um setor da burguesia começar a
rever suas posições frente a algumas das chamadas reformas orientadas para o mercado que se criaram as condições
para a construção de uma frente política que abarcasse setores das classes dominantes e das classes dominadas.
Essa frente, organizada, fundamentalmente, pelo PT chegou ao poder governamental em 2003 [...]. Não se tratava,
agora, de uma frente que se pudesse denominar populista e, ademais, tampouco o seu programa poderia ser
identificado com o programa do velho desenvolvimentismo. [...] Por que recorrer ao termo “desenvolvimentista”?
De maneira tentativa e inicial, diríamos que é porque esse é um programa de política econômica e social que busca
o crescimento econômico do capitalismo brasileiro com alguma transferência de renda, embora o faça sem romper
com os limites dados pelo modelo econômico neoliberal ainda vigente no país. Para buscar o crescimento
econômico, os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff lançaram mão de alguns elementos importantes de política
econômica e social que estavam ausentes nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Sem a pretensão de sermos
exaustivos, enumeraríamos a título inicial alguns elementos que têm sido destacados por parte da bibliografia: a)
políticas de recuperação do salário mínimo e de transferência de renda que aumentaram o poder aquisitivo das
camadas mais pobres, isto é, daqueles que apresentam maior propensão ao consumo; b) forte elevação da dotação
orçamentária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) para financiamento das grandes
empresas nacionais a uma taxa de juro favorecida ou subsidiada; c) política externa de apoio às grandes empresas
brasileiras ou instaladas no Brasil para exportação de mercadorias e de capitais (DALLA COSTA, 2012); d)
política econômica anticíclica – medidas para manter a demanda agregada nos momentos de crise econômica e e)
incremento do investimento estatal em infraestrutura. [...] E por que empregar o prefixo “neo”? Porque as
diferenças com o velho desenvolvimentismo do período 1930-1980 são significativas. O neodesenvolvimentismo
é o desenvolvimentismo da época do capitalismo neoliberal.” (BOITO JR., 2012, s/p).
226

poderia ser mera continuidade do projeto I (projeto neoliberal), oriundo da década de 1990, sob
pena de ir à ruína”.
Sob o semblante da afirmação periférica do “reformismo impotente”, o que houve,
segundo Arcary (2014), foi a construção das bases para um novo patamar de acumulação do
capital nas condições dadas pela crise estrutural, demandando com maior veemência a função
reguladora do Estado, investidor e financiador, “capaz de financiar e constituir grandes
corporações de capital privado nacional com a capacidade competitiva no mercado mundial”.
Daí a ênfase no papel do fundo público via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) e fundos de pensões de estatais, viabilizando grandes obras especialmente
através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). E foi exatamente pela via da
política de incentivos implementada pelos bancos, principalmente por meio do BNDES, mas
também da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, a exemplo do crédito imobiliário, que a
taxa média de crescimento foi de 4,2% do PIB, no período de 2004 a 2011. (BRETTAS, 2013).
Essa realidade tornou-se subsídio para a análise disposta abaixo sobre o processo de
financeirização no Brasil, reconfiguração e reforço do papel do Estado no desenvolvimento
capitalista durante esse período. Este, enquanto “sócio-proprietário de empreendimentos
privados”, nos demonstra, por um lado, o quanto está cada vez mais comprometido e regido
pela lógica da iniciativa privada e, por outro, a gravidade das dificuldades existentes em nosso
tempo histórico em defender os “interesses públicos” e o caráter universalizante das políticas
sociais, inseridas em um caminho de mercantilização próprio do circuito ditado pelo capital
portador de juros. Esse fato, em si, já demonstra uma “novidade” considerável em relação ao
período nacional-desenvolvimentista, determinando alterações substantivas na capacidade
gerencial do Estado108. Voltamos ao que nos diz a referida análise:

Nossa hipótese é a de que o comportamento destas instituições [BNDES e fundos de


pensão] e o imbricamento que produziram com o setor produtivo podem caracterizar
um processo de constituição endógena do capital financeiro no país. Até então, a
presença desta forma de ser do capital estaria presente em território nacional por meio
da atuação do capital estrangeiro, o qual teria se constituído desta maneira fora de
nossas fronteiras. Trata-se, entretanto, da formação por uma via não clássica, dada a
presença forte do vínculo com o Estado. Não que o Estado tenha, em algum momento,
ficado de fora, mas o grau de sua intervenção e participação, neste caso, assume

108
“Naquele tempo, o Estado geria a ‘coisa pública’ e, embora do ponto de vista mais geral, estivesse atuando na
defesa dos interesses capitalistas, suas atitudes não raras vezes contrariaram as demandas de capitalistas, vistos de
forma individual. Foi o caso, por exemplo, da criação da Petrobras que, a princípio, irritou muitos capitalistas que
criticaram o alto investimento público para a criação desta empresa, argumentando que seria muito mais barato
comprar barris de petróleo no mercado externo. Esta decisão viabilizou o fornecimento de insumos básicos a preços
subsidiados, além de um investimento em tecnologia de ponta que permitiu, posteriormente, a exploração em alto-
mar. A criação desta empresa foi um dos pontos altos de enfrentamento aos interesses imperialistas do período
nacional-desenvolvimentista, com fortes impactos sobre a produção nacional”. (BRETTAS, 2013, p.192-193).
227

proporções significativas. [...] O salto para a formação do capital financeiro não foi
diferente e a atuação de instituições do governo ou que possuem forte relação com o
governo, como os fundos de pensão, tiveram um papel fundamental. (BRETTAS,
2013, p.297-298).

É preciso, portanto, entender quais os setores da sociedade que efetivamente se


apropriaram da imensa parcela dos recursos públicos e das riquezas produzidas pelo maior
crescimento econômico na última década. Sobre isso, destacamos o papel do agronegócio e dos
grandes projetos subsidiados pelo BNDES que disponibilizou por volta de um terço do total
dos recursos “para somente dez grandes grupos econômicos privados em processo de
concentração e fusão” (POCHMANN, 2013, p.152). Isto tendo em vista que os investimentos
foram de aproximadamente R$35 bilhões em 2003 para mais de R$137 bilhões em 2009, sendo
a grande parcela destinada para o “grande capital interno”, viabilizando processos de
concentração e centralização do capital. (BRETTAS, 2013).

Assim, o Estado efetua, na verdade, um reposicionamento (e não uma retirada) no


setor produtivo, figurando entre os grandes proprietários nacionais, juntamente com
grupos tradicionais como Andrade Gutierrez, Camargo Correa, Odebrecht,
Votorantim, Bradesco/Vale, Gerdau, dentre outros. À participação do BNDESPar
podemos somar também, como sócios e patrocinadores destes grandes grupos, os
fundos de pensão dos funcionários de empresas públicas como Previ, Petros e Funcef.
(BRETTAS, 2013, p.192).

Ao se considerar as empresas estatais, “chega-se ao resultado de quase dois terços do


total dos recursos desembolsados pelo banco público para apenas doze grandes corporações
nacionais privadas e estatais”. Esse quadro revela explicitamente a necessidade de fortalecer as
“empresas nacionais líderes globais”, o que acaba implicando diretamente em poucas margens
de alteração da posição histórica do país na divisão internacional do trabalho, implicando no
aprofundamento da dependência e na perpetuação da sua lógica na esfera regional,
“fortalecendo setores exportadores de baixo valor agregado, ao passo em que os setores
industriais tradicionais seguiram perdendo posições”. (BRETTAS, 2013, p.194).
O Brasil assumiu cada vez mais um papel central na oferta internacional de commodities,
intensificando o agronegócio no país e reafirmando a reprimarização da pauta de exportações.
Além disso, a realidade mais recente aponta indícios de uma maior fragilidade nos governos
progressistas da América Latina, a exemplo da Argentina e da Venezuela, cada vez mais
tensionados pela política da ortodoxia neoliberal. Esse quadro tende a adensar uma política
internacional e econômica mais conservadora no Brasil, impondo cada vez mais uma gestão
dos recursos públicos subordinada às necessidades do capital internacional financeirizado,
228

como a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida com a permanência da política de
superávit primário, drenando recursos para financiar a acumulação capitalista, e a redução do
gasto social, com a manutenção da Lei de Responsabilidade Fiscal que cada vez mais onera a
classe trabalhadora. Esta torna-se muito mais severa com a aprovação do Novo Regime Fiscal
em 2016.
Tudo isso, segundo Pinto (2010), demonstra que, na verdade, o que houve foi, em termos
estruturais, certa continuidade da política industrial, fortalecida via BNDES e endividamento
do Estado, promovendo “um avanço de segmentos industriais intensivos em recursos naturais
e produtores de commodities, intensivo em capital, que tiveram como contrapartida a redução
absoluta e relativa de outros segmentos industriais” (PINTO, 2010, p. 165).
Brettas (2013) ainda atenta outra contradição central que torna ainda mais explícita os
setores que, de fato, mais ganharam nesse processo com formas cada vez mais sofisticadas de
apropriação do trabalho, não apenas excedente, mas necessário: os recursos utilizados para
viabilizar a acumulação capitalista, a concentração e centralização do capital, que deveriam ser
destinados ao trabalhador, a exemplo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Diante dessas constatações, é possível entender com mais propriedade os motivos que
viabilizaram a constituição de um pacto social neodesenvolvimentista na última década,
conformado por entidades representativas das diferentes frações de classes, a exemplo da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Esta começou a apresentar maior
descontentamento diante de medidas demandadas pelo capital, inviabilizadas pela própria
natureza desse pacto, que certamente não teria como respondê-las sem que isso não demandasse
maiores fissuras no projeto de desenvolvimento em curso naquele período. Um exemplo disso
foi a reforma trabalhista aprovada após o Golpe de 2016. Desse modo, medidas como a redução
ou isenção de impostos, em especial o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para uma
série de produtos, dentre outras ações, combinadas a políticas de redução do desemprego e
valorização do salário mínimo com impacto inclusive no Regime Geral de Previdência Social
(RGPS) e em benefícios como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), não apenas seriam
insuficientes para dar sustentação as exigências contemporâneas do capital, mas estariam na
contramão de tais requisitos.
Por isso, Carvalho (2018) aponta, dentre os erros das gestões dos governos do PT nesse
período, a ausência de ações que, de fato, pudessem ter promovido mudanças estruturais,
atrelando o crescimento econômico com o desenvolvimento social, a exemplo da diversificação
e sofisticação da estrutura produtiva, de forma a alterar a dependência ao “ciclo de
commodities”; do não “tocar nas rendas do topo” através de uma reforma tributária progressista
229

com tributação de lucros e dividendos, herança e patrimônio da mesma forma que a renda; da
ausência de grandes mudanças na política econômica como a taxa de juros elevada como
mecanismo de controle inflacionário, mantendo o real valorizado; da aposta em uma política de
incentivos ao setor industrial privado pautada a partir da “Agenda Fiesp” sob a ideologia
desenvolvimentista de que o desenvolvimento industrial a todo custo supostamente beneficiaria
a todos. Assim, segundo a autora, foi dado um “passo atrás” em relação a algumas medidas
progressistas desenvolvidas durante o Governo Lula e esse passo se tornou maior ainda a partir
de 2015, quando, para ela, realmente iniciou um processo de verdadeira reversão de todos
aqueles aspectos entendidos como ganhos nos anos 2000 do ponto de vista da classe
trabalhadora. Tal reversão é resultado de uma série de circunstâncias que anteciparam o ano de
2015, sintetizadas por Singer (2015, p.40-52) da seguinte forma:

Quando a refrega parecia ganha, abrindo caminho para horizontes rooseveltianos, o


poderoso Banco Central (BC) voltou a elevar a taxa Selic (abril de 2013) e, na prática,
devolveu ao mercado financeiro controle sobre parte fundamental da política
econômica. A decisão tornava manca a perspectiva de retomada do desenvolvimento
nacional e paralisava o avanço progressista quando ele soava irresistível. Perdido o
ponto de apoio que lhe permitia andar, a proposta desenvolvimentista para. [...]
Seguem-se dois anos penosos, em que o cerco a favor de reversão neoliberal completa
ganha cada vez maior adesão na burguesia, na classe média tradicional, em setores da
nova classe trabalhadora e até entre personalidades influentes sobre Dilma. [...] Eleita,
Dilma decide fazer o contrário do prometido e cumprir o que os promotores do cerco
exigiam desde o fim de 2012: um choque recessivo. [...] A perspectiva de acelerar o
lulismo acaba por produzir a pior recessão desde 1992, com desemprego em massa e
queda na renda dos trabalhadores. [...] O auge do ensaio desenvolvimentista
prenunciava, contudo, o seu rápido ocaso. [...] Usar a política monetária para segurar
a inflação — senha da direção neoliberal —, justo quando a redução de juros ao
tomador finalmente se completava, era simplesmente desmontar o recém-concluído.
[...] Em junho de 2013, o cerco rentista recebe inesperado reforço proveniente das
ruas. O caráter contraditório das manifestações de junho, iniciadas pela esquerda e
engrossadas pelo centro e pela direita de maneira inusitada, elevou a rejeição à
presidente, obrigando-a ceder mais alguns metros de terreno. [...] Ao reagir à onda de
protestos, Dilma propôs a responsabilidade fiscal como o primeiro dos cinco pactos
que deveriam reunificar a nação e, no final de julho de 2013, promoveu um corte 10
bilhões de reais no Orçamento de 2013 [...]. No começo de 2014, o gasto público foi
outra vez cortado, abandonando-se o projeto de lei que reduzia as dívidas de Estados
e municípios.

Nesse sentido, a afirmação que reconhece o aumento das condições de vida e trabalho
na última década, o que fez com que cerca de 87% dos reajustes salariais109 analisados pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (DIEESE) em 2011

109
“Na indústria, 90% das negociações registraram aumentos reais na data-base. Destacam-se os segmentos da
construção e mobiliário, indústria extrativa e indústria do papel, papelão e cortiça, que registraram aumentos reais
em todas as negociações neste ano. As atividades na indústria da alimentação, metalúrgica e gráfica apresentaram
percentuais de negociação com aumentos reais acima da média do setor. Os serviços obtiveram o menor índice,
cerca de 76%” (DIEESE, 2012 apud BRETTAS, 2013, p.276).
230

resultassem em aumentos reais dos salários - terceira maior proporção de unidades de


negociações com reajustes acima do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) desde
1996 -, contribuindo para dinamizar o movimento sindical110, não pode desconsiderar, por outro
lado, a permanência e consolidação do trabalho precário (DIEESE, 2012). Dessa forma,
Pochmann (2013, p.148-149), ressalta o seguinte:

A grande parte dos postos de trabalhos gerados concentrou-se na base da pirâmide


social, uma vez que 95% das vagas abertas tinham remuneração mensal de até 1,5
salário-mínimo. O que significou o saldo líquido de 2 milhões de ocupações abertas
por ano em média para o segmento de trabalhadores de salário de base. Nas faixas dos
trabalhadores sem remuneração e dos acima de três salários-mínimos mensais houve
destruição líquida de ocupações, de 108 mil e de quase 400 mil vagas em média por
ano, respectivamente. No segmento dos ocupados pertencentes à faixa de rendimento
de 1,5 a 3 salários-mínimos mensais houve geração média anual de 616 mil postos de
trabalho.

Ou seja, trata-se de um padrão de crescimento que requer uma força de trabalho com
rebaixamento do custo da sua reprodução, repercutindo não necessariamente em diminuição
salarial, sua elevação pode até ocorrer, contanto que não haja, concomitante a isto, uma
considerável melhoria e ampliação dos serviços públicos (saúde, educação, saneamento,
transporte, etc), o aumento da escolaridade e de remunerações acima do piso salarial. Isso
levando em consideração que, quando há o acesso a serviços públicos de qualidade, há um custo
maior para o capitalista e/ou para o Estado com a reprodução da força de trabalho, gerando uma
espécie de renda ou salário indireto. Para que isso não ocorra, unindo o útil ao agradável,
expande-se o capital para outros “nichos” e mercantiliza-se os serviços, obrigando os
trabalhadores a arcarem ainda mais os custos da sua própria reprodução, endividando-os111,

110
De acordo com Brettas (2012, p.277), Boito Jr. e Marcelino (2010) “afirmam que, embora o número de greves
seja menor do que o verificado em média nos anos 1990, existe um percentual maior de greves ofensivas, ou seja,
aquelas voltadas para novas conquistas, como aumento real de salário. Em outras palavras, o que marcou o
movimento grevista na última década do século passado, foram iniciativas voltadas para resistir às mudanças
impostas e defender direitos conquistados. Nos anos 2000 ao contrário, uma análise das greves entre 2004 e 2008
permite afirmar que “as reivindicações ofensivas estiveram presentes na grande maioria das greves – em
porcentagem, 65% ou mais do total de greves de cada ano” (BOITO Jr.; MARCELINO, 2010, p. 331). Além disso,
em todos estes anos, a maior parte das greves tiveram suas reivindicações total ou parcialmente atendidas.”. Desse
modo, para Eduardo Mara (2016, p.28), “desde o aumento do número de greves, muitas delas ocorridas no coração
das políticas de desenvolvimento (como a greve dos trabalhadores nas usinas de Jirau e Santo Antônio no estado
de Rondônia), até a eclosão de massivas manifestações nas ruas das principais capitais brasileiras em junho em
2013”, demonstraram que a “política de conciliação entre as classes no seio do aparelho estatal burguês não era
capaz de conter as contradições que o desenvolvimento capitalista dependente novamente trazia à tona”.
111
“Segundo uma matéria da Agência Brasil, em 2005, quando o Banco Central começou a registrar os dados deste
tipo de endividamento, ele representava 15,29% da renda das famílias, sem contar o crédito imobiliário. Em abril
de 2013, a dívida total das famílias (incluindo o crédito imobiliário) equivalia a 44,46% da renda acumulada nos
últimos 12 meses, maior do que em junho de 2009, quando representava 34,8%226. Ainda de acordo com a
Agência Brasil, com a retirada da dívida imobiliária, o percentual em abril de 2013 é de 30,47%. Embora o
231

expropriando-os com mais intensidade e perpetuando a histórica concentração de renda assim


como a descapitalização dos serviços no Brasil.
Trata-se, portanto, de uma tendência mundial de produção de um desemprego estrutural
e de uma População Economicamente Ativa (PEA) desprotegida em termos de direitos sociais.
Esta parcela que em 1989 configurava 3% da PEA, ou seja, 1,9 milhão de trabalhadores,
corresponde a 13% da PEA em 2010, 2,6 milhões de trabalhadores. No Brasil mais de 44
milhões de brasileiros caminham para a desproteção social na velhice. Já entre os desprotegidos,
19,5 milhões possuem renda menor que 1 salário mínimo. Em 2010, observou-se, conforme
Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED/DIEESE), que o desemprego alcançou 2.618 mil
brasileiros. “Se isso já não fosse o bastante, recordemos que, segundo o IBGE (2009), o trabalho
desprotegido chega a 47,9% da PEA brasileira”. (SITCOVSKY, 2010, p.62). Ainda sobre esse
tema, Brettas (2013, p.276-277) alerta o seguinte: “é preciso considerar também que o
percentual de trabalhadores com carteira assinada ainda é baixo, embora venha aumentando.
Em 2009 os trabalhadores sem carteira ou por conta própria ficaram em torno de 55%, contra
44% com carteira assinada”.
A recente recomposição da classe trabalhadora foi acompanhada pela inserção de
jovens, na maioria das vezes de forma precarizada, no mundo do trabalho e na educação
superior, constituindo um novo segmento social denominado por Braga (2012) de “precariado”,
somada a precarização de serviços públicos, tal como já sinalizamos, e a conturbada vida urbana
nos grandes centros, o que intensificou as contradições no seio do bloco no poder, ensejando
um cenário de lutas, greves e protestos que caracterizaram a realidade do país nesses anos, a
exemplo de 2013.

Observa que, com o avanço da intervenção estatal, o emprego se expandiu e, em


decorrência, o poder relativo da classe trabalhadora. O pleno emprego deu
musculatura aos sindicatos, o que resultou na contínua elevação dos salários reais. A
expressiva quantidade de greves no primeiro mandato de Dilma, conforme tem
assinalado o sociólogo Ruy Braga, seria motivo suficiente para afastar o capital do
trabalho. O número de paralisações, que já vinha subindo desde 2008, atingiu quase
87 mil horas paradas em 2012, o maior índice desde 1997, e continuou a crescer.
Segundo Braga, houve 873 greves em 2012 com um salto para mais de 2 mil em 2013.
(SINGER, 2015, p.61).

Assim, é possível observar que, ao contrário do itinerário mais comum na história do


Brasil, o nível de escolaridade dos trabalhadores ocupados aumentou. Sobre isso, Pochmann
(2012, p. 39-40) ressalta que cerca de 43% dos ocupados, em 2009, tinham 9 anos de estudo ou

endividamento das famílias esteja aumentando, boa parte dele vem sendo puxada pelo financiamento da casa
própria e uma outra pela compra de eletrodomésticos e automóveis”. (BRETTAS, 2013, p.302).
232

acima, destoando do final dos anos 1990 em que este número era de aproximadamente 23%. A
constatação, portanto, torna-se mais ainda evidente:

Os dados contribuem para mostrar que ainda estamos longe de possuir uma
configuração do mercado de trabalho que aponte para alterações substantivas no
padrão de uma economia dependente e desigual. Os traços de nossas heranças do
passado seguem fortes e apresentam limites ao estabelecimento de relações de
trabalho menos desiguais e que garantam o acesso aos direitos trabalhistas e
previdenciários à maior parte da população. (BRETTAS, 2013, p.277)

Esse processo também foi acompanhado pelo congelamento salarial de setores médios
da classe trabalhadora, a exemplo do funcionalismo público, além do escasso investimento em
políticas mais estruturantes, imprimindo um teor neoliberalizante as ações, como a criação da
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), da implantação previdência
complementar através da Fundação da Previdência Complementar do Serviço Público Federal
(FUNPRESP), da concessão privada de aeroportos e portos e das demais ações do pacote de
ajuste fiscal proposto logo após as eleições de 2014, já indicando o esgotamento tanto das
medidas de crescimento econômico, possíveis na década anterior, como da própria “frente
neodesenvolvimentista”.
Enquanto isso, combinada a essas ações, ainda no âmbito da reprodução da força de
trabalho e do enfrentamento as expressões da questão social, diante da impossibilidade de
universalizar as políticas públicas e de ampliar postos de trabalho estáveis, os programas de
transferência de renda tornam-se meio, por excelência, para ampliar a função do Estado,
conjugado à permanência do trabalho precário, redefinindo e reconciliando a assistência social
e o trabalho. Desse modo, nas palavras de Sitcovsky (2012, p.245):

[...] há uma unidade contraditória entre as formas de trabalho precário e o referido


programa de renda mínima. As transformações societárias, decorrentes das
necessidades do capital em superar sua crise estrutural, impuseram à produção
capitalista a mediação do trabalho precário. Acompanhando a nova morfologia do
trabalho foram se desenvolvendo, como mecanismos de proteção social, os modernos
programas assistenciais de renda mínima. A princípio, o que parecia a absorção da
função integradora por parte da assistência social, revelou-se como parte da dinâmica
entre produção e reprodução social do capital.

Há, portanto, uma inflexão no padrão de enfrentamento a questão social e, para isso, a
política de assistência social, em particular o Programa Bolsa Família (PBF), teve papel
importante. Isto diante da tendência a mercantilização dos direitos, tal como já apontamos,
sendo a Seguridade Social posta em xeque, especialmente no que tange o princípio da
universalização. A descaracterização desta política, mediante o avanço da previdência e dos
233

planos de saúde privados, tem caminhado junto ao processo de assistencialização da


Seguridade (MOTA, 2012) em que a própria Assistência Social deixa de ser uma política de
acesso às demais políticas ou, em outras palavras, passa a ser a própria política de proteção
social, não parte da proteção social. Essa tendência, inaugurada com o neoliberalismo, perpetua-
se até os nossos dias. Isso apesar de termos vivenciado também durante os anos 2000 um
importante salto qualitativo da configuração e materialização da Assistência como política, de
fato, mesmo que tardiamente, refletindo os traços e o vigor do nosso atraso.
Sobre o alcance do PBF na década passada, Sitcovsky (2010, p.159-160) sinaliza dois
parâmetros: a quantidade de famílias atendidas e o volume de recursos. Assim, em 2009
observa-se o número de mais de 12 milhões de famílias beneficiadas, representando cerca de
17% das famílias brasileiras ou 24% dos brasileiros. Somado ao Benefício de Prestação
Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS, 1993), reúne cerca de 15,5
milhões de famílias brasileiras, correspondendo a cerca de 70 milhões de pessoas beneficiadas
direta e indiretamente por programas de transferência de renda. O autor chega a afirmar que os
recursos destinados nesse período para o PBF foram consideravelmente maiores que os gastos
governamentais com políticas de trabalho. Um exemplo disto foi a previsão orçamentária
prevista para 2010 que representava menos de 10% dos recursos alocados no PBF. Todavia,
segundo o IPEA (2012), em 2009, apenas dois terços da população considerada oficialmente
na condição de extrema pobreza tinham recebido o benefício. Isto somado ao baixo crescimento
do PIB de somente 0,9% em 2012, ensejando condições desfavoráveis para a continuidade do
pacto neodesenvolvimentista.
Essa realidade destoa das intenções presentes nos próprios documentos governamentais
que sinalizam, em geral, a integração entre a política social e a política econômica; inclusão
social e redistribuição da renda; investimentos e crescimento da renda e do emprego;
universalização dos direitos sociais básicos, com transmissão dos ganhos de produtividade aos
salários, e crescimento ambientalmente sustentável por meio da expansão do mercado de
consumo popular e da redução das disparidades regionais.
Eis um demonstrativo, aparentemente insignificante, de como definitivamente o que
esteve em jogo nos projetos políticos e econômicos de um passado recente não se tratou de
mera vontade política. Daí o questionamento feito por Singer (2015, p.57) ao se referir a esse
contexto: “Afora mobilizar os trabalhadores e as camadas populares para uma política
autônoma, que saída teria Dilma senão buscar a recomposição com a burguesia?”. A elevação
da taxa de juros e corte do gasto social público diante da crise de um ciclo, já responde a direção
priorizada. De fato, uma pergunta pertinente que diz respeito a algo que, ao contrário do que
234

muitos propalam, não perdeu sua centralidade: os interesses antagônicos das classes sociais nas
suas múltiplas condições de existência que atravessam hoje o Estado brasileiro.
Algumas análises também têm dado ênfase à incidência desse programa nas condições
de vida das classes subalternizadas e na própria dinamização da economia de municípios
menores, oportunizando, em especial, a compra de alimentos e o acesso a bens duráveis. De
fato, isso ocorreu. Porém, Sitcovsky (2010) destaca a pouca importância dada, nas análises, ao
próprio BPC que, para ele, devido aos valores repassados, permitiu uma maior mudança na
renda per capita das famílias em relação ao PBF, pois aquele benefício chegou a duplicar a
renda da família. Ambos, contudo, sendo atravessados pelos conflitos de classes e seus
interesses antagônicos, não correspondendo apenas às necessidades de reprodução do capital,
mas também do trabalho, vêm passando por redução drástica de recursos e ameaças, o que
representa o peso diferenciado dessas iniciativas em um país de capitalismo dependente como
o Brasil. Isto tendo em vista que acabam influenciando nas relações históricas de prestígio e
poder históricas, intermediadas pela submissão e pelo favor. Diante disso, atentamos para o que
Mota (2012, p.37) chama a atenção:

Ao desistoricizar a pobreza – não por naturalizá-la como vaticínio e destino, mas


tratando-a como um fenômeno que pode ser gerido através de políticas
compensatórias –, tornou-se possível atender algumas necessidades imediatas das
classes trabalhadoras, sem romper com as exigências das classes proprietárias e
dominantes.

Assim, nos afinamos com a análise de Mara (2016, p.27) ao caracterizar o chamado
neodesenvolvimentismo como “um projeto cuja intenção distancia-se em muito de qualquer
intenção de ruptura com o projeto neoliberal. Tratou-se de uma reforma deste projeto, reforma
relacionada aos interesses de frações da grande burguesia dependente brasileira”. Contudo, isso
não ocorreu como uma mera perpetuação da política neoliberal dos anos 90. Se assim fosse,
estaríamos negando os próprios fatos. Estes, mesmo não sendo a realidade, são parte dela. Por
isso, Singer (2015, p.64-67) também reconhece que “o ensaio desenvolvimentista efetivamente
representou mudanças importantes e foi, por sua vez, combatido por adversários poderosos em
campanha intensa”. Isto muito embora depois, especialmente a partir de 2013, tenha sido
contido pelo aumento dos juros, a crescente atratividade do bloco rentista e a perda progressiva
de apoio dos industriais - que no início reivindicava o programa reindistrializante -, passando à
defensiva e abrindo “um vácuo sob os próprios pés” que se agravou, nas palavras do autor,
“quando a reação burguesa unificada em favor do retorno neoliberal tornou-se incontrastável.
Até por não haver, na sociedade, quem enxergasse a necessidade de contrastá-la”.
235

Desse modo, o “pacto social” que viabilizou nacionalmente o ciclo de desenvolvimento


capitalista dependente durante a década passada foi fundamentalmente marcado por sua
capacidade de tanto construir estratégias de hegemonia, mediante o conflito no interior da
própria burguesia e do empresariado, como de recompor, ainda que temporariamente, o “poder
de mobilização dos de baixo, através da diminuição do exército industrial de reserva, ainda que
incorporada agora a um mercado de trabalho altamente flexibilizado, com a intensificação do
ritmo e da exploração”, recolocando “na ordem do dia as contradições entre capital e trabalho”.
Diante disso, não há como negar que “essa recomposição da classe em si frente ao capital,
somada às políticas compensatórias e às políticas de acesso às universidades, trouxeram
novamente à tona contradições entre as promessas do desenvolvimento burguês e suas
possibilidades de concretização nos limites do capitalismo dependente”. (MARA, 2016, p.399).
Vale lembrar que essas estratégias de construção de hegemonia utilizaram-se tanto de aparelhos
privados de hegemonia como da intelectualidade de ambas as frações, muito embora sob a
direção política da fração burguesa. Tudo isso, segundo Mara (2016), tendo como “lócus
privilegiado” o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).
É conveniente lembrar que, dentre tais estratégias de hegemonia, assumiu importante
papel, a nosso ver, as ações e políticas voltadas e particularizadas na região Nordeste, tal como
seus efeitos políticos e econômicos.
Como podemos perceber, a compreensão priorizada por nós acerca do projeto em curso
nos anos 2000 encontra-se em sintonia com os fatos e dados apresentados até aqui. Estes
contribuem para mostrar que, apesar de alguma melhora, tratam-se de mudanças que não vieram
acompanhadas de alterações de cunho estrutural. Todavia, Ianni (2004, p.239) já nos atentava
para o seguinte:

[…] cabe lembrar que sempre que há um avanço político de forças populares [...] as
classes dominantes, mesmo débeis, juntam as suas forças para garantir e fortalecer o
Estado burguês. Em todas as ocasiões de grande ascenso político popular, quando o
Estado esteve ameaçado, as classes e frações de classes agrárias, comerciais, bancárias
e industriais, nacionais e estrangeiras, buscaram criar ou refazer os blocos de poder,
de modo a garantir e fortalecer o aparelho estatal.

Sobre isso, observamos, por um lado, a ascensão de setores mais conservadores, muitos
advindos de segmentos médios tradicionais, com a intenção de canalizar a insatisfação popular
para um caminho que intensifique o estigma, a criminalização e a desqualificação dos setores
de esquerda e das diversas organizações políticas dos trabalhadores no país, atribuindo a estas
- representadas no senso comum pelo PT - a responsabilidade de ameaçar a democracia no país.
236

Essas condições, garantidas também pelo monopólio dos meios de comunicação no país,
contribuem, decisivamente, para a descrença e desmobilização das forças políticas que podem
ampliar o poder de influência e de conquistas da classe trabalhadora, (re)pondo temas centrais
na opinião pública, corriqueiramente presentes no parlamento, tais como: restrição ainda maior
de direitos sociais, a exemplo da previdência social, e retirada de direitos trabalhistas com o
incentivo às terceirizações ; redução da maioridade penal; rejeição à descriminalização do
aborto; contestação à legalização das drogas; questionamento do casamento homoafetivo;
intensificação do estigma ao pobre e aos programas sociais via crítica conservadora;
manifestações pró-ditadura militar, de caráter xenofóbico e racista, inclusive contra a população
nordestina, que, em certa medida, expressam o quanto ainda é presente a “ideologia do
colonialismo” (SODRÉ, 1984).
Por outro lado, intensificou-se a presença de mecanismos de controle e criminalização,
conformando o que alguns analistas chamam de “militarização da sociedade”, com o “avanço
do Estado penal” (WACQUANT, 2013) e das políticas punitivas que, vale lembrar, possuem
teor secular e são aspectos permanentes da construção e manutenção de hegemonia,
especialmente em realidades com frágeis instituições democráticas. Basta lembrar o genocídio
indígena, a escravidão, as ditaduras, a violência no campo, o encarceramento em massa, o
extermínio de jovens negros e pobres, entre outros, como medidas de enfrentamento à questão
social.

As tendências repressivas e punitivas não existem apenas dentro do aparelho policial;


invadem toda a sociedade civil, que cada vez mais se vê envolvida numa guerra social
cuja verdadeira significação ainda poucos compreendem. Numa sociedade como a
nossa, com uma carga secular de violência a explodir-lhe nas veias, acumulada
durante séculos de opressão e submissão, de coerção e proteção, e, ao mesmo tempo,
privada dos meios de usar a seu favor a Justiça e a Lei, subjugada por um processo
permanente de despolitização […], numa sociedade como a nossa, o protesto das
massas sempre teve a mascará-lo formas messiânicas, místicas ou pré-políticas. Assim
foram Canudos, o Contestado, os bandos de cangaceiros e vários outros que povoam
nossa história rural e […] nossa história urbana” (GUIMARÃES, 2008, p.42)

Em relação a democracia representativa, conforme dados do Departamento Intersindical


de Assessoria Parlamentar (DIAP), “dos 594 parlamentares eleitos em 2010, 273 são
empresários, 160 compõem a bancada ruralista, 66 são da bancada evangélica e apenas 91
parlamentares são considerados representantes dos trabalhadores”. Esta realidade, somada a
outros aspectos, adensaram a insatisfação e o descrédito aos mecanismos da democracia
representativa no país, apresentando, por um lado, a demanda histórica por uma reforma política
que, no entanto, tem sido freada pela reação restauradora dos segmentos conservadores.
237

Essa conjuntura reforça e renova, de forma mais complexa, uma característica presente
em toda a história da formação brasileira: a restrição de direitos e a debilidade democrática,
demonstrando que as mudanças transcorridas até hoje possuem muito mais elementos de
restauração (GRAMSCI, 2006) que de rupturas, sendo uma ou outra ampliada ou retraída a
partir das contradições presentes no desenvolvimento capitalista e da ação das classes sob tais
contradições.
Por fim, nos remetemos as palavras de Alves (2013, s/p) que considera coerente
conceber que:

[...] o neodesenvolvimentismo [...], apesar de avanços significativos e inegáveis nos


indicadores sociais […], tornou-se incapaz, por si só, de alterar qualitativamente, a
natureza da ordem oligárquica burguesa historicamente consolidada no Brasil de hoje,
mais do que nunca, pelo poder dos grandes grupos econômicos beneficiários da
reorganização do capitalismo brasileiro dos últimos vinte anos.

As reformas estruturais continuaram sem avanço, tais como a reforma agrária, urbana,
tributária e política, o que demonstrou, para Stédile (2014), os limites do projeto de
desenvolvimento que esteve em curso no Brasil dos anos 2000, da sua (in)capacidade de dar
resposta às necessidades sociais. A possibilidade de romper o cerco posto às classes
trabalhadoras certamente dependerá, dentre outros fatores, do nível de organização, unidade
nas bandeiras políticas e reivindicações econômicas, além da capacidade de pressão social que
estabeleça uma nova correlação de forças.

Uma reforma tributária voltada para ampliar a progressividade na arrecadação de


impostos, que teria um impacto expressivo sobre a desigualdade de renda, não foi
feita. Também não houve uma mudança significativa da política econômica adotada
no início dos anos 1990. Estes fatos impedem a adoção de medidas com um maior
potencial de alteração na estrutura produtiva e na redistribuição de renda. As
prioridades do governo seguem sendo a chamada responsabilidade fiscal, o que
significa um compromisso com o pagamento de juros que limita as possibilidades de
gasto público, dado que uma parcela substantiva é drenada para arcar com as despesas
da dívida. (BRETTAS, 2013, p.280)

Assim, a acentuada prioridade dada às ações que promoveram a assistencialização das


políticas sociais, na verdade, não vem correspondendo a redução da concentração de renda e do
fosso entre ricos e pobres no país. A respeito disso, enquanto se criava uma expectativa de
diminuição, de fato, das desigualdades sociais, diante das pesquisas que apontam, entre 2001 e
2011, um aumento de 16,6% da renda per capita dos 10% mais ricos e um crescimento de 91,2%
da renda dos mais pobres (IPEA, 2012, p. 6), o Brasil, em 2014, ainda assumia 79ª posição no
ranking de países reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relação ao
238

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mesmo ocupando na época a condição de 6ª


economia mundial. (PNUD, 2014). Mais recentemente, a divulgação dos dados da PNAD
Contínua (2017) revela que 10% da população concentravam quase metade da massa de
rendimentos do país, o que ratifica tanto a vivacidade e atualidade da Lei Geral da Acumulação
Capitalista (MARX, [1867] 1984) como nega reconfigurações de fundo na questão social e
regional em território brasileiro, apesar de inflexões consideráveis na sua forma de
enfrentamento. Estas, inclusive, sofreram consideráveis reversões desde 2015. Vejamos:

Em 2017, os 10% da população com os maiores rendimentos detinham 43,3% da


massa de rendimentos do país, enquanto a parcela dos 10% com os menores
rendimentos detinha 0,7% desta massa. As pessoas que faziam parte do 1% da
população brasileira com os maiores rendimentos recebiam, em média, R$ 27.213, em
2017. Esse valor é 36,1 vezes maior que o rendimento médio dos 50% da população
com os menores rendimentos (R$ 754). Na região Nordeste essa razão foi de foi 44,9
vezes e na região sul, 25 vezes. Em 2017, as pessoas que tinham algum rendimento
(de todas as fontes) recebiam, em média, R$ 2.112,00 contra R$ 2.124,00 em 2016.
Em termos regionais, o Centro-Oeste registrou o maior valor (R$ 2.479,00) e o
Nordeste (R$ 1.429,00), o menor. (IBGE, 2018, s/p)

Estamos falando de um país que ainda possui uma população de 13,3 milhões de
analfabetos; um terço dos jovens de 18 a 24 anos sem concluir o ensino médio; e apenas 19%
da juventude tendo acesso ao ensino superior. Esse cenário torna-se mais alarmante em
determinadas regiões, ainda mais quando associado ao número de pessoas na condição de
ocupações análogas ao trabalho escravo: “dos 1.550 trabalhadores resgatados de condições
análogas a de escravo em 2014, 39,3% não tinham concluído o 5º ano do ensino fundamental,
32,8% eram analfabetos e 14,6% tinham do 6º ao 9º ano escolar incompletos”. Já o déficit
habitacional correspondia em 2012 a 8,53% da população, o que representa 5,24 milhões de
residências, adensando a violência e o conflito pelo acesso à terra que vem produzindo um alto
número de assassinatos (36 no ano de 2014) e tentativas de assassinatos (56 no ano de 2014)
(MEDEIROS, 2014, p.26).
Enquanto isso, a crônica cotidiana composta por diversas trajetórias de vida e trabalho
daqueles/as que sofrem violentamente os efeitos da questão regional permanece presente,
embora de forma reconfigurada, como marca intransponível nos limites do desenvolvimento
capitalista no Brasil e no mundo. Afinal, os meios para suprimir as barreiras espaciais e as
distinções regionais, que limitam o padrão de acumulação em curso, envolvem a produção de
“novas diferenciações geográficas que criam novas barreiras espaciais a serem superadas. A
organização geográfica do capitalismo internaliza as contradições dentro da forma de valor. É
239

isso que quer dizer o conceito do inevitável desenvolvimento desigual do capitalismo”


(HARVEY, 2013, p.528).
Diante dessa realidade, atentamos para as particularidades regionais, mais precisamente
para a necessidade de compreender como o Nordeste se insere no padrão de reprodução
capitalista em curso. Assim, antes de tudo, é importante reiterar que a conformação da região
Nordeste historicamente recompõe os aspectos próprios da formação social do país que, nas
palavras de Pereira Jr. (2012, p.196), se expressam na perpetuação das oligarquias tradicionais
(e modernas). Estas, assim como no Brasil, “tiveram influência na reprodução histórica de uma
sociedade baseada no princípio da intocabilidade do poder político e econômico. Esse processo
demarcou a construção social do Nordeste e teve no Estado um protagonista […] mudando
pouco para não mudar o todo”.
Com isso, identificar as expressões da questão social na realidade brasileira, a partir do
Nordeste, nos marcos do desenvolvimento desigual em curso, particularmente, na última
década, se apresenta, nesse momento, como desafio central e necessário para que possamos,
enfim, confirmar a veracidade da tese que aqui apresentamos.
De passo a passo damos prosseguimento a saga que mais parece aquela do personagem
de Rosa (2001, p.31), que em um certo trecho daquele romance nos diz: “O senhor concedendo,
eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira,
e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!”. Com objetivos distintos, mas com
persistência semelhante à do personagem, nos debruçaremos a partir de então nos aspectos que
marcam a realidade brasileira no período priorizado nesta pesquisa.

3.2.1. A questão social no contexto nordestino contemporâneo (2007-2015): principais


expressões e formas de enfrentamento

É certo que o Nordeste brasileiro de hoje não cabe mais nas concepções
homogeneizantes, por um lado, (re)construtoras da paisagem pitoresca do litoral turístico e da
caricatura árida do sertanejo miserável e analfabeto; por outro, renovadoras de um regionalismo
que reforça ora a natureza folclórica, ora a concepção de “região problema”. Sobre isso,
vejamos o que nos apresenta o trecho abaixo:

Nos últimos trinta anos houve uma forte alteração da realidade nordestina que deu
240

origem a 'focos', 'polos' ou mesmo 'manchas' de dinamismo econômico, que mantém


ligações ainda pouco estudadas com a agropecuária mais tradicional da região […]
existem pelo menos sete desses novos dínamos: o complexo petroquímico de
Camaçari; o pólo têxtil e de confecções de Fortaleza; o complexo minero-metalúrgico
de Carajás; o pólo agroindustrial de Petrolina-Juazeiro […]; o moderno pólo de
fruticultura do Rio Grande do Norte […]; as áreas de moderna agricultura de grãos
(que se estendem pelos cerrados baianos, atingindo o sul dos estados do Maranhão e
do Piauí); e os diversos polos turísticos implantados nas principais cidades litorâneas.
A estes sete talvez ainda devam ser acrescentados os 'tecnopólos' de Campina Grande
e Recife. (VEIGA apud DÓRIA, 2007, p.288).

De fato, o Nordeste não é o mesmo do século XX. E mais: as expressões atuais da


realidade nordestina, especialmente da última década, tais como o aumento da expectativa de
vida e a diminuição da pobreza absoluta, sinalizam inflexões, a nosso ver, das expressões e
formas de enfrentamento da questão social na região. Isto muito propagandeado como resultado
de uma política de “inclusão social”, com maior peso para o desenvolvimento regional, durante
os governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores (2003-2015) que, como vimos no
item anterior, promoveram maior crescimento econômico em regiões historicamente mais
pauperizadas e com menores índices de desenvolvimento humano do país.
Essa constatação é possível ser observada na própria realidade, não apenas através dos
indicadores sociais e econômicos desse período que demonstram uma efetiva melhoria das
condições de vida dos trabalhadores com a ampliação de postos de trabalho, de industrialização,
do acesso à renda, ao consumo e a políticas sociais como a educação e assistência, como
também através dos resultados na política eleitoral, fazendo da região uma importante base
desses governos. Porém, quais os fatores que permitiram tais inflexões na região no último ciclo
de desenvolvimento? As respostas certamente estão muito além da simples vontade política.
Lembremos que, apesar da preocupação e da responsabilidade assumida por parte do
Estado brasileiro no enfrentamento às desigualdades regionais cujo registro consta na própria
Constituição Federal de 1988, indicando o planejamento regional como forma prioritária de
ação estatal, a década de 1990 tal como a primeira metade dos anos 2000 apresentaram, de
acordo com Silva (2015, p.08), um relativo esvaziamento nesse quesito.

A retomada das discussões acerca das políticas e estratégias adotadas para o


desenvolvimento regional esteve relacionada às críticas sobre o acirramento das
desigualdades regionais promovido pela criação dos eixos nacionais de integração e
desenvolvimento (Enids) – referentes aos PPAs de 1996-1999 e 2000-2003 [...], à
extinção da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e
da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 2001, e à
reformulação do sistema de incentivos fiscais no início dos anos 2000 [...]. Com a
eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, abriu-se espaço
para que as discussões sobre a problemática regional fossem retomadas de forma mais
ampla na esfera governamental, envolvendo diversos setores da sociedade, uma vez
que o tema fazia parte da cartilha de campanha eleitoral do presidente recém-eleito.
241

Assim, no final do ano de 2003, uma equipe da Secretaria de Políticas de


Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional (MI), liderada por
Tânia Bacelar de Araújo, elaborou a proposta original da Política Nacional de
Desenvolvimento Regional (PNDR). O processo de discussão e de negociações em
torno da elaboração da nova política durou até 2007, quando esta foi instituída por
meio de decreto. (SILVA, 2015, p.08).

Com efeito, ao se observar os números e os documentos oficiais, particularmente os


planos plurianuais governamentais (PPAs) e a própria Política Nacional de Desenvolvimento
Regional (PNDR) de 2007, é possível identificar a reinserção da questão regional na agenda
governamental e, portanto, algumas diferenciações em relação à ortodoxia neoliberal em curso
no país durante a década de 1990.
A região Nordeste efetivamente esteve entre as prioridades dadas por parte de
instituições estatais via políticas de desenvolvimento, a exemplo do BNDES, através do
financiamento de grandes projetos infraestruturais e industriais vinculados ao Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) - não por coincidência criado também em 2007. Esse
investimento público via BNDES passou de 2,73 bilhões, em 2000, para 5,4 bilhões de reais,
em 2007, sendo as maiores parcelas, pelo menos até 2009, destinadas aos estados nordestinos.
Sobre isto, de acordo com o IPEA (2015, p.37), “a participação da região Nordeste nos
desembolsos do BNDES, que chegou a um mínimo de 7% (ou R$ 3,7 bilhões) em 2004, subiu
para 13% (ou R$ 18,6 bilhões) em 2012”. Já em relação ao Sudeste, “o montante chegou a um
máximo de 62% (R$ 37,6 bilhões) em 2002 e diminuiu para 46% em 2012 (R$ 64 bilhões).”.
Dessa forma, o grande investimento na região Nordeste nesse período indicou, para muitos
pesquisadores, um crescimento da capacidade e da diversificação produtiva na região, inclusive
no âmbito da estrutura industrial, o que refletiu também no perfil dos projetos desenvolvidos
na região, especialmente nas “áreas petroquímica, naval, eólica, siderúrgica, ferroviária, de
refinaria, de celulose e automobilística” (IPEA, 2015), a exemplo dos seguintes projetos:
Suzano Papel e Celulose S.A. (MA), Polo de Camaçari (BA), Petroquímica Suape (PE), Projeto
Alumar (MA), Projeto Vanádio de Maracás (BA), Votorantim Cimentos (SE, PE e MA),
Estaleiro Atlântico Sul S.A. (PE), Refinaria Abreu e Lima (PE) e Gasoduto de Integração
Sudeste-Nordeste (BA). (BNDES, 2014).
Ainda sobre os recursos destinados à economia nordestina via BNDES no período
analisado, “[...] no ano de 2013 atingiram R$ 25,7 bilhões, o que significa um crescimento de
cerca de 22% em relação a 2012 e representa cerca de 13,5% do total desembolsado pelo Banco
no país. Esse valor é quase cinco vezes maior que o desembolso realizado em 2007, que foi de
242

R$ 5,3 bilhões.”. (BNDES, 2014, p.37). O gráfico abaixo apresenta um maior detalhamento dos
valores destinados à região pelo referido banco no período de 2007 a 2013.

Gráfico 1 – Desembolsos do BNDES para o Nordeste - 2007-2013 (em R$ bilhões)

Fonte: BNDES, 2014.

Aproximadamente R$ 117,0 bilhões foram liberados pelo BNDES no Nordeste, entre


2007 e 2013, representando essa região “23% dos desembolsos da AS [Área de Infraestrutura
Social] em 2012, sendo a segunda [...] com maior desembolso, ficando atrás somente do
Sudeste. (BNDES, 2014, p.71). O montante dos recursos na região voltou-se para
empreendimentos como a Transposição do Rio São Francisco, os Complexos Portuários e
Siderúrgicos (Porto do Pecém no Ceará e Porto do Suape em Pernambuco), os Polos Industriais
(estaleiros e refinaria da Petrobrás, planos de montagem de siderúrgica, laminadora e montadora
de automóveis da Fiat, etc) e a Transnordestina (estrada de ferro entre os estados de Pernambuco,
Piauí e Ceará), além de ações como o Programa Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida 112 e
o Luz Para Todos, que priorizaram o atendimento de quem esteve à margem do trabalho formal
e não foram incorporados pelo mercado de trabalho. Tudo isso sob a ideia de fazer o Brasil
crescer através do “combate à miséria” e da inclusão “do pobre no orçamento governamental”.
De acordo com a Empresa Brasil de Comunicação, até 2014, “a economia da região
mais pobre do Brasil crescia num ritmo muito superior a média nacional. Das cinco regiões
brasileiras, o Nordeste foi a que gerou mais empregos formais nos últimos anos”. (IBGE, 2014).
Já as pesquisas divulgadas pelo IBGE, em 2012, chegaram a revelar que ocorreu uma inversão

112
“O Programa Minha Casa, Minha vida, voltado para a habitação, foi criado em 2009, também como forma de
enfrentar a crise, mas com caráter prolongado. Com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do
Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o programa é voltado para reduzir o déficit habitacional brasileiro e
tinha como público alvo famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Em alteração realizada em 2011,
o público alvo passou a ser famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (BRASIL, 2011)”. (BRETTAS, 2013,
p.286).
243

no histórico movimento de migração entre as regiões. Em vez da corrida para o Sudeste que
marcou as décadas de 1960 a 1980, a tendência era de deslocamentos entre municípios de um
mesmo estado e queda acentuada nas migrações entre regiões, tendo como principais fatores
para a diminuição no número de migrantes a saturação das metrópoles e a melhor distribuição
da oferta de emprego.
Aqui nos permitimos fazer um parêntese no intuito de relembrar o papel dessa dinâmica
migratória no desenvolvimento capitalista, particularmente em realidades onde tal percurso
deu-se de forma heterodoxa e até mais agravante como aquela em que Lênin ([1899]1982,
p.153-154) viveu e pôde nos oferecer a seguinte análise relativa ao contexto da época:

Verifica-se que os operários assalariados [...] abandonam as regiões onde o regime da


servidão era mais desenvolvido por aquelas onde ele era mais débil, trocando os locais
onde é sólido o sistema de pagamento em trabalho por aqueles em que é frágil e onde
o capitalismo atingiu um alto grau de desenvolvimento. Noutros termos: eles fogem
do trabalho “semilivre”, procurando um trabalho livre. Seria um erro considerar que
esse êxodo se reduz ao abandono de regiões com alta densidade populacional, trocadas
por outras, com menor densidade. O estudo das migrações revelou algo original e
importante: em muitas regiões, a saída de operários ocorre em números tão elevados
que provoca redução na oferta de mão-de-obra, que acaba sendo completada por
operários vindos de outras partes. As migrações, pois, expressam tanto a tendência da
população para se distribuir mais igualmente num território dado quanto a tendência
dos operários para se estabelecerem em lugares melhores. Compreende-se melhor esse
último aspecto se se recordar que, nas regiões de onde partem os operários, dominando
o sistema de pagamento em trabalho, os salários são particularmente baixos, enquanto
nas regiões para onde se dirigem, dominadas pelo sistema capitalista, os salários são
infinitamente mais elevados. [...] Essa massa “camponesa” que abandona sua casa e
seu pedaço de terra (quando possui) evidencia o gigantesco processo de transformação
dos pequenos agricultores em proletários rurais e revela a enorme demanda de mão-
de-obra assalariada do capitalismo agrário em desenvolvimento.

Traçando um diálogo entre a realidade atual do capitalismo no Brasil e os ensinamentos


deste pensador clássico, podemos, nessa lógica de raciocínio, entender as tendências
migratórias entre as regiões no último período como uma expressão de um maior
desenvolvimento capitalista na região Nordeste. Isto por intermédio de uma política de
“inclusão social” e maior presença do Estado enquanto financiador dos custos de reprodução
da força de trabalho, promovendo, de início, maior produtividade acompanhada por melhores
condições de trabalho para os inseridos no mercado formal e melhores condições de vida (de
alimentação e moradia, por exemplo) aos que ficaram à margem desse mercado na região. Ou,
em outras palavras, a elevação dos salários, dos postos de trabalho e da margem de consumo
via políticas de transferência de renda favoreceram a dinamização da economia em regiões que
historicamente eram mais estagnadas. Se não, o que representou a redução, em particular, do
movimento migratório de nordestinos para outras regiões do Brasil? O simples inchaço ou
244

saturação das grandes metrópoles concentradoras de renda e riqueza no país? Segundo o próprio
Lênin (1982, p.153), “seria um erro considerar que esse êxodo se reduz ao abandono de regiões
com alta densidade populacional, trocadas por outras, com menor densidade”. Este erro não
seria ainda maior ao situarmos esse fenômeno na atual fase de desenvolvimento capitalista que
apresenta como tendência o adensamento do movimento de concentração e centralização do
capital e, por conseguinte, a propensão a uma distribuição não equitativa, desigual, da
população territorialmente?
Mesmo certos de que há um conjunto de diferenciações temporais, qualitativas e
quantitativas, expresso desde formas reconfiguradas de exploração e expropriação até o
redesenho da dimensão regional que tais formas passam a ter, o fenômeno mais recente das
mudanças no fluxo migratório inter-regional aponta alterações, em relação aos anos anteriores,
não apenas na relação entre indústria e agricultura como também na composição e configuração
da classe trabalhadora e da superpopulação relativa no Brasil a partir da região Nordeste. Isto
tendo em vista que as tendências no mercado de trabalho na última década demonstraram que
ocorreu o crescimento da população ocupada e dos empregos considerados formais, resultando
em uma tarifa negativa do conjunto de desocupados, que passou de 3,1 milhões de pessoas, em
2000, para 2,3 milhões, em 2010, tal como podemos observar na tabela abaixo. (BNDES, 2014).

Tabela 1 – Nordeste: dinâmica do mercado de trabalho (2000-2010)

Fonte: IBGE, 2010.

Contudo, concomitantemente a esse processo, a alavanca do trabalho informal e precário


não deixou de funcionar a todo vapor como aspecto irredutível ou “mal necessário” do tempo
histórico do capitalismo contemporâneo, especialmente periférico.

Na contramão dessa tendência à formalização, está o contingente de trabalhadores


vinculados à produção para o próprio consumo, que passou de 1,4 milhão para
aproximadamente 2 milhões, registrando um crescimento anual de 3,6%. [...] Não
obstante essas cifras, o avanço obtido com esse processo de formalização no período
deve ser qualificado. De fato, quando se considera a dimensão do contingente
informal no mercado de trabalho do Nordeste em 2010, o que se constata é que a cifra
alcança 12,4 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 60% (59,4%) do total de
pessoas ocupadas (20,9 milhões), no referido ano. [...] Considerando-se, no último
245

ano do censo demográfico, o total dos ocupados, constata-se que 36,6% estão na
condição de empregados que tinham carteira assinada, 27,4% não a tinham, 22,9%
estavam constituídos de conta própria e 9,4% de trabalhadores voltados para a
produção do próprio consumo. (BNDES, 2014, p.431-434)

Esse quadro possui algumas características diferenciadas quando levamos para o centro
da análise a realidade rural, mais precisamente do setor agropecuário. O aumento da
formalização no agronegócio, por exemplo, caminhou junto a permanência de formas de
trabalho degradantes. Isto além da condição necessariamente descontínua e sazonal dessa
formalização que não garante, de fato, condições demandadas pelas necessidades da reprodução
social do trabalhador do campo, incidindo sob a reconfiguração da questão agrária e urbana no
interior do território brasileiro. Assim, conforme as pesquisas desenvolvidas e publicadas no
documento “Um olhar territorial para o desenvolvimento: Nordeste” (BNDES, 2014, p.435), o
que se constatou nesse setor foi que dos 5 milhões de pessoas ocupadas, somente 338 mil tinham
carteira assinada. “A grande proporção de pessoas ocupadas, no setor agropecuário, que
poderiam ser classificadas como informais compreende os que trabalham para o próprio
consumo, quase 40% do total (exatamente 38,9%); seguem, nesse setor, os que trabalham por
conta própria (28,3%) e, finalmente, os empregados sem carteira assinada (21,5%)”.
Vale lembrar que a região Nordeste, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE,
concentrava mais de 47% da população rural do Brasil. Por conseguinte, também é a que mais
concentra os assalariados rurais com 4,8% (1,41 milhão), seguida do Sudeste com 34,4% (1,4
milhão). Conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE, 2014, p.13), “também é possível observar elevadas taxas de empregados sem carteira
em relação ao total de empregados, o que, grosso modo, pode ser chamado de taxa de
informalidade (ou taxa de ilegalidade). O Norte e o Nordeste apresentam as maiores taxas
(77,1% nas duas regiões).
Para Bezerra (2012), ocorreu, sem dúvidas, uma maior inserção de trabalhadores no
mercado formal pelo agronegócio na última década. E isso significou, em certa medida, maior
cobertura social do Estado com a garantia de direitos trabalhistas, por exemplo, e, de imediato,
uma melhoria de vida, o que não isentou os trabalhadores da experiência de precarização. Sobre
isso, segundo o autor, no âmbito da expansão da fruticultura no Nordeste é recorrente o
descumprimento permanente das normativas trabalhistas, agravando a vulnerabilidade que
acomete os trabalhadores, especialmente sazonais. Diante desse cenário, como resultado, temos
a reprodução de fenômenos como a constituição das periferias no entorno das cidades menores
em decorrência da ausência de condições de trabalho e de vida no campo, inclusive da completa
estagnação da reforma agrária. Até programas que não tem representado avanços substantivos,
246

como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), observa-se


que a maior parte dos recursos continuaram sendo destinados para a região Sul do país, “apesar
de cerca de 50% dos agricultores familiares no Brasil, de acordo com o IBGE (2009), estarem
localizados nos estados da região Nordeste”. (IPEA, 2015, p.42). Assim, mesmo com iniciativas
como o Programa Luz para Todos e a ampliação do alcance da Assistência Social em territórios
considerados rurais, os demais serviços e políticas ainda continuam atravessados pela escassez
nessas áreas, travando ou mesmo bloqueando outras oportunidades de vida e trabalho.
Ainda sobre as alterações no mercado de trabalho e também na configuração da
superpopulação relativa, de acordo com as pesquisas divulgadas pelo BNDES (2014, p.435-
436), tivemos o seguinte quadro:

O segmento produtivo que mais avançou na contratação de empregados com carteira


assinada foi o da indústria de transformação, que, em 2010, representava metade
(50,7%) dos empregados nessa categoria. Não obstante esse avanço, registra-se que a
soma dos empregados sem carteira (23%) e trabalhador por conta própria (23,3%)
alcança mais de 46%. No interior do setor industrial, vale ressaltar que a atividade da
construção civil ocupa como empregado com carteira assinada somente 37,2% do
total. [...] Nos serviços domésticos, apenas 20,4% do total das pessoas ocupadas
tinham carteira de trabalho assinada pelo empregador, o que representava menos da
metade da média apresentada pelo total do setor de serviços (46,4%); nas atividades
comerciais (incluindo, nessa categoria, a reparação de veículos), que ocupavam, no
Nordeste, em 2010, cerca de 3,5 milhões de pessoas, 35,3% eram empregados com
carteira assinada e os demais estavam constituídos de empregados sem carteira
(23,5%) e trabalhadores por conta própria (35,5%).

Aqui destacamos outra importante variável que incidiu sobre tais alterações: o nível de
instrução exigido por essa “nova” força de trabalho. Sobre isso, segundo as mesmas pesquisas,
“as pessoas ocupadas que, em 2001-2002, não tinham instrução ou com menos de um ano de
estudo representavam 23,9%, no Nordeste, e passaram, em 2009-2011, para 17,6%. Os
percentuais eram, no Brasil 11,6% e 9,2%, respectivamente”. Sobre o percentual da população
ocupada por nível de instrução no ano de 2010, vejamos o quadro abaixo:

Gráfico 2 – Brasil e Nordeste: população ocupada por nível de instrução (2010)

Fonte: IBGE, 2010.


247

Os números demonstram que, mesmo diante de uma redução do índice de pessoas sem
instrução e acesso a estudos, ainda permanece baixo o nível de trabalhadores escolarizados e
qualificados, especialmente diante das novas demandas e exigências advindas das
transformações nas relações de trabalho. Isto, especialmente no caso do Nordeste, em que “as
informações do último censo, relacionadas com a condição de saber ler e escrever das pessoas
ocupadas, em 2010,” mostraram que “três milhões de pessoas, representando 14,3% do total
dos ocupados, não sabiam ler nem escrever”. (BNDES, 2014, p.438).
Os dados apontam, então, que a análise sobre a elevação da formalidade e da
informalidade nas relações de trabalho no Nordeste, tendo esta alcançado em 2010 quase 60%
da força de trabalho ocupada, mesmo após um avanço significativo da formalização nos anos
2000 (2000-2010), deve levar em consideração outros condicionantes, tais como o nível de
instrução, os rendimentos e a própria elevação real do salário mínimo. (BNDES, 2014, p.446).
Esta, conforme Araújo (2013, p.162-164), também teve impacto mais forte na realidade
nordestina, “onde 45% dos ocupados receberam até 1 salário-mínimo – bem acima da média
nacional que era de 26% […] entre 2003 e 2009 o valor do rendimento médio das famílias” da
referida região “cresceu 5,4% ao ano, quando a média brasileira foi de 3,5%, e no Sudeste essa
taxa foi de apenas 2,9%”. Todavia, o ganho médio dos trabalhadores no Nordeste, apesar de ter
dobrado na última década, ainda está longe da média do Sudeste. Observemos o demonstrativo
na tabela abaixo:

Tabela 2 – Brasil e regiões – evolução do rendimento médio das famílias

Fonte: IBGE, 2010.

Podemos observar que, apesar do Nordeste ter apresentado a maior taxa de crescimento
médio anual entre 2000 e 2010, continua sendo a região com menor rendimento médio das
famílias. Em relação ao total dos rendimentos, conforme BNDES (2014, p.440), “a participação
nordestina passou, nos rendimentos do trabalho no Brasil, de 15,2%, em 2000, para 17%, em
2010”.
Essas condições, somadas a outros aspectos que marcaram a primeira década do século
XXI, viabilizaram, de acordo com o economista Márcio Pochmann (2014, s/p), o
248

“protagonismo de regiões que eram vistas como atrasadas como é o caso das regiões Nordeste,
Norte e Centro-Oeste, que são regiões que absorveram indústrias pela força do movimento de
deslocamento de indústrias”, impulsionando a constituição de uma estrutura produtiva antes
inexistente ou, pelo menos, bem diferente do que havia originalmente. Mas, de fato, ocorreu
um maior dinamismo da estrutura produtiva no Nordeste suficiente para alterar os pilares da
questão regional edificada durante o século XX no Brasil? Tivemos uma desconcentração
industrial ou o que houve foi apenas a necessidade de expansão do capital em regiões com
menor produtividade e maior peso do atraso a fim de dar prosseguimento ao movimento de
concentração e centralização do capital, não alterando seu centro dinâmico regional, reforçando,
assim, o papel histórico das regiões na divisão social do trabalho?
De início, é possível constatar, de acordo com a publicação “Desenvolvimento Regional
no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas” (IPEA, 2017, p.44), que o total de recursos
destinados à demanda de investimento no Nordeste passou de R$ 73,5 bilhões para R$ 168,5
bilhões, em 2012, contribuindo para a expansão de empreendimentos produtivos. Já na região
Norte, os valores passaram de R$ 31,5 bilhões para R$ 79,7 bilhões e, no Centro-Oeste, de R$
17,3 bilhões para R$ 40,9 bilhões.

O crescimento do setor industrial do Nordeste também apresentou taxas superiores ao


crescimento médio brasileiro. Isto explica muito o crescimento médio anual do PIB
per capita nordestino (3,12%) acima da média brasileira (2,2%) entre 2000 e 2010
[...]. Ademais, o crescimento de vendas no varejo da região Nordeste entre 2005 e
2011 está sempre acima da média nacional. (IPEA, 2015, p.23)

Contudo, é importante atentar também para o montante de recursos destinados às


atividades agropecuárias, que, na região Nordeste, correspondeu a cerca de 45% do total dos
valores liberados pelo do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) 113, sendo
38% para a indústria e 17% para os serviços e comércio. (IPEA, 2017). Ainda sobre os
investimentos destinados ao setor agropecuário, temos o seguinte:

Das 188 microrregiões delimitadas pelo IBGE na Região Nordeste, 152 (80,5%)
apresentavam participação da agropecuária acima da média nacional em 2010,
enquanto 154 (81,9%) tinham participação da indústria abaixo da média – a título de
comparação, na Região Sudeste esses índices são respectivamente 65,6% e 55,0%, o

113
Segundo o Ministério da Integração Nacional, “o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE)
foi criado pelo artigo 159, inciso I, alínea ‘c’ da Constituição da República Federativa do Brasil, e regulamentado
pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989. O FNE, juntamente com os outros Fundos Constitucionais, pode ser
considerado como um dos principais instrumentos de financiamento da Política Nacional de Desenvolvimento
Regional (PNDR) visando, sobretudo, a contribuir para o desenvolvimento econômico e social do Nordeste, por
meio de instituição financeira federal de caráter regional, mediante a execução de programas de financiamento aos
setores produtivos, em consonância com os respectivos planos regionais de desenvolvimento.”. Disponível em:
http://www.mi.gov.br/apresentacao-fne. Acesso em: 16.07.2018.
249

que indica a existência de amplas áreas na Região Nordeste com espaço para
estratégias de apoio à industrialização. (BNDES, 2014, p.219)

Portanto, diante desses apontamentos e ponderações que, ao tempo em que demonstra o


crescimento industrial, revela a permanência de características históricas do Nordeste, tal como
o predomínio de atividades com baixa capitalização e da agropecuária, os dados demonstram
que o Nordeste esteve entre as regiões que mais cresceram economicamente,
proporcionalmente em relação ao período anterior (anos 1990). Sobre esse crescimento,
vejamos a tabela abaixo (IPEA, 2015):

Tabela 3 – Taxas anuais de crescimento do PIB total (1990 e 2000)

Fonte: IPEA, 2015

É possível constatar que o comparativo entre as taxas anuais de crescimento do PIB total
entre as décadas de 1990 e 2000 demonstra a substantiva participação da região Nordeste na
economia nacional. Segundo Araújo (2013, p.162-164), no período de 2003 a 2010, a taxa de
crescimento da economia da região teria sido de 4,9%, ou seja, mais elevada que a média
nacional que foi de 4,4%. No mesmo período, houve também uma liderança do Nordeste, junto
à região Norte, no crescimento do consumo.
A elevação do PIB que, segundo Grabois (2014, s/p), quadruplicou de 2003 para 2013,
com o destaque para algumas regiões como o Nordeste; o incentivo dado à descentralização
territorial na implantação de polos industriais, a exemplo da indústria naval, “renascida na
esteira do petróleo”, concentrada no Rio de Janeiro, mas que teve presença significativa em
estados como Ceará, Pernambuco, Alagoas e Bahia; o crescimento do número de trabalhadores
da indústria, passando de 4 milhões e 800 mil, em 2003, para quase 13 milhões, em 2013, na
indústria de transformação e de 2 milhões para 6 de milhões na construção civil no mesmo
período; são aspectos que influenciaram na base de sustentação do projeto de desenvolvimento
em curso até 2014. O autor ainda destaca que “a incorporação de trabalhadores e de regiões ao
movimento do capital produziu mudanças perceptíveis, mas que ainda não foram absorvidas
pelas classes em luta”.
250

Assim, o PIB per capita na região Sudeste, a região mais rica, representava 139% da
média nacional em 1989 e 131% em 2010. Por sua vez, o PIB per capita da região
mais pobre, o Nordeste, era apenas 43% da média nacional em 1989 e 48% em 2010.
Projeções detalhadas a seguir mostram que seriam necessários cerca de cinquenta anos
para o PIB per capita do Nordeste atingir 75% do PIB per capita nacional. [...] No
período 2000-2010, pode-se observar maior queda nas disparidades dos PIBs
macrorregionais em comparação com o período 1990-2000. [...] De forma sintética,
os dados [...] mostram que, por exemplo, em 2010, a região Nordeste, com 18% da
área geográfica do país, continha 28% da população brasileira e apresentava PIB per
capita equivalente a 48% da média nacional. Por sua vez, no mesmo ano, a região
Sudeste, ocupando 11% da área geográfica brasileira e participando com 42% da
população nacional, possuía PIB per capita que representava 131% da média nacional
em 2010. Ademais, [...] mostra uma análise mais detalhada da evolução do PIB per
capita ao longo da década de 2000, segundo a qual a taxa média anual do PIB per
capita do Nordeste foi de 3,32%, enquanto a região mais rica, o Sudeste, cresceu a
taxas médias de 2,05% ao ano. (IPEA, 2015, p.07-10)

Todavia, segundo Pochmann (2014, s/p), as pesquisas também demonstram que ocorreu,
simultaneamente, uma relativa estagnação de alguns setores da economia em regiões que
historicamente cumprem um papel mais central, em termos industriais, no país, a exemplo do
Sul e Sudeste, “regiões hoje cada vez mais apegadas ao agronegócio, ao setor financeiro, aos
serviços. Então isso fez com que essas regiões não tivessem um crescimento tão exitoso como
observado nas regiões identificadas anteriormente como regiões subdesenvolvidas, regiões
mais pobres”. Contudo, apesar dos números promissores em relação ao PIB total do Brasil,
assumindo o Nordeste a terceira posição (cerca de 13% do PIB brasileiro), atrás das regiões Sul
e Sudeste, a realidade nordestina ainda é considerada aquela com maior peso da pobreza
nacional, com PIB per capita de R$ 10.379, em 2013 (período em que o PIB per capita brasileiro
correspondia R$ 21.536), abrangendo dois estados com menor PIB per capita do país, Maranhão
e Piauí.
Levando em consideração que as desigualdades regionais favorecem a divisão entre
pobres e ricos territorialmente, como o Nordeste, com menor Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (IDH-M) médio dos estados (de 0,6598), ainda possui mais da metade da
população muito pobre do país, captou 55% dos recursos do Programa Bolsa Família (PBF),
carro-chefe da Política de Assistência Social dos Governos Lula e Dilma, o que influenciou
diretamente tanto nas condições de vida dessa parcela populacional como na dinâmica
econômica e territorial do interior nordestino com a constituição das chamadas “cidades
médias”, que passaram a crescer com mais intensidade. “O último Censo Demográfico registra
que elas são as que mais ganham peso relativo na população total do país, e tal fenômeno
também é nordestino. Os municípios de 100 mil a 2 milhões de habitantes estão ganhando peso
relativo e esta é uma mudança muito importante [...] (BNDES, 2014, p.550-551).
O Nordeste, portanto, assumiu destaque no percentual de domicílios que receberam
251

recursos do PBF, apresentando uma média de 31,3%, ficando o Norte, o Centro-Oeste, o


Sudeste e o Sul com os respectivos percentuais: 19,4%, 9,5%, 8,2% e 8,0. Assim, dentre as 15,6
milhões de famílias nordestinas, 5,4 milhões receberam o referido benefício. Já no Sudeste, 2,6
milhões das 25,8 milhões de famílias da região foram contempladas pelo Programa. Em outras
palavras (e números), 77% do total de benefícios do PBF estiveram concentrados nestas regiões
que também são as duas regiões mais populosas do país. (SITCOVSKY, 2010, p.173).
Essa realidade, junto a outros processos como a aprovação da “lei das empregadas
domésticas” (Lei Complementar nº 150, de 1 de junho de 2015), permitindo que a renda média
das trabalhadoras domésticas no Nordeste (a menor de todo o Brasil), fosse de R$ 243,2, em
2003, a R$ 419,2, em 2013, (FURNO, 2016) o que interferiu diretamente nas condições de
vida 114 e formas de exploração da força de trabalho recorrentes na região, implicando em
maiores dificuldades na manutenção de mecanismos de subjugação do trabalhador a formas de
trabalho aviltantes, especialmente nos municípios menores do interior nordestino.
Contudo, o PBF, além das diretivas da focalização e assistencialização, desenvolveu-se
sob a lógica da indispensável intermediação dos bancos, revelando as contradições das políticas
sociais que, “além de servirem ao capital por reduzirem o custo de reprodução da força de
trabalho e atenuarem os conflitos de classe [...] servem, cada vez mais, à acumulação capitalista
de modo direto” (BRETTAS, 2013, p. 202). Segundo Sitcovsky (2012), frente a tendência ao
hiperdimensionamento da Política de Assistência Social no âmbito da Seguridade Social e da
centralidade que assume tal política no enfrentamento a questão social, é imprescindível que o
PBF seja situado também como um dos mecanismos de reprodução da força de trabalho no
Brasil, reduzindo o lumpemproletariado e mantendo o trabalho precário e a força de trabalho
excedente, especialmente na forma da superpopulação relativa estagnada e flutuante. Esse
processo diz muito sobre as contradições que atravessam iniciativas como a do PBF que, ao
mesmo tempo em que responde às exigências de acumulação capitalista em meio à crise,
viabiliza também o acesso ao consumo de bens e serviços. Trata-se, portanto, de um mecanismo
de barateamento dos custos da produção, mas não apenas tendo em vista que acaba sendo um

114
“Segundo dados do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em pesquisa nacional
realizada, em 2008, com as famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, 78% dos recursos do Programa
são gastos em alimentação (no Nordeste chega a 91% enquanto no Sul a 73%); 46% com material escolar (no
Norte chega a 63,5%, enquanto no Nordeste a 40%); 37% com vestuário; 22% com remédios. Seguem-se gás
(10%); luz (6%); tratamento médico (2%); água (1%); outras opções (menos de 1%). A pesquisa do IBASE também
revelou mudanças no padrão alimentar das famílias [...]. Em 74% das famílias do Programa o auxílio financeiro
permitiu aumentar a quantidade de alimentos que já consumiam e em 70% ampliou a variedade dos alimentos.
Entretanto, mesmo observada a tendência de ampliação na quantidade e variedade no consumo de alimentos ao
analisar o estudo do IBASE percebe-se que, ‘21% representando 2,3 milhões de famílias encontra-se em situação
de insegurança alimentar grave [...]; outros 34% [...] estão em situação de insegurança alimentar moderada’ [...]”
(SITCOVSKY, 2010, p.185).
252

empecilho para as atividades informais tradicionalmente desenvolvidas nas regiões mais pobres
do país, como o Nordeste, a exemplo do trabalho não-monetarizado, em troca de favor, de
comida ou moradia, traço ainda pulsante no seio da nossa “modernização conservadora”.
Nessa perspectiva, analisar cada iniciativa isoladamente não seria o melhor caminho
para maiores aproximações da complexa realidade a qual priorizamos. Daí a importância em
entender a relação entre inciativas como o PBF, o aumento do salário mínimo, o custo da cesta
básica, o tipo de consumo que se ampliou, o endividamento, dentre outras, na última década.
Esse exercício é fundamental para que possamos concatenar os fatos, os argumentos e as ideias
que subsidiam cada vez mais a constatação de que as mudanças conjunturais não permitiram
romper com as múltiplas expressões das desigualdades sociais no país.

Quando se considera a relação entre o custo da cesta básica e o salário mínimo líquido
[...] verifica-se que o percentual do rendimento liquido comprometido em abril de
2003 com os produtos essenciais ficou em 83,65% do salário mínimo de R$ 240,00.
Atualmente [...], o custo da cesta básica absorve 43,91% do salário mínimo em vigor.
O que, sem dúvida sinaliza uma melhora no poder de compra dos salários em relação
aos bens de necessidades fisiológicas do trabalhador. Contudo, isso não se traduz
numa ampliação na repartição da riqueza social produzida no país. (SITCOVSKY,
2010, p.192).

Ainda ressaltamos que algumas ações, desenvolvidas na última década, vinculadas a


outras políticas, a exemplo da educação profissional e superior, com uma tendência a expansão
e a interiorização, mesmo diante de todas as adversidades relativas às condições de trabalho e
funcionamento das atividades, adensaram impactos significativos na vida cultural, política e
econômica desses territórios. Isto, porém, não teremos como nos deter, mas já explicitam
também que, apesar dos avanços, o que predominou foi a ausência de mudanças estruturais na
lógica dessas instituições e do seu “conservantismo cultural”. (FERNANDES, [1968] 2008,
p.56).
Em suma, não há como negar os fatos: o contexto dos anos 2000 incidiu
consideravelmente sobre o aumento da expectativa de vida da população nordestina e a
tendência positiva que apontavam diversos indicadores de elevação da participação da região
Nordeste no PIB nacional, tal como vimos no quadro mais acima. Este demonstrou uma taxa
anual de crescimento do PIB total do Nordeste de 2,1 na década de 1990 para 4,4 nos anos 2000.
(IPEA, 2015).
Toda essa dinâmica certificou que o Nordeste do atraso, da fome e da migração pode,
supostamente, tornar-se a região do “protagonismo”, o Nordeste moderno, das oportunidades,
da interiorização dos serviços, do regresso daqueles que um dia tiveram que tentar a vida longe,
253

constituindo trajetórias de vida de inúmeros anônimos que inspiraram a arte popular de Luiz
Gonzaga a Belchior.
Todavia, existem ainda algumas questões que teimam em não calar: de fato, há (ou
houve) realmente um novo desenho social e econômico da região? Essas mudanças se deveram
a quê? O que há de herança e ruptura? Acreditamos que para entender essa realidade é preciso
desvendar o Nordeste profundo, em suas contradições e heterogeneidades, porém, já que o
“sertão é o mundo”, como nos disse Antônio Cândido (2014), é preciso também transcendê-lo,
ir para além da região, dos discursos de desenvolvimento, das alianças e propostas políticas dos
governos. Isso em busca de entender como essa região continua se integrando ao capitalismo
em território nacional e de identificar os “fios invisíveis” que constituem a dinâmica regional-
universal no modo vigente de produção e reprodução da vida social, particularmente no período
priorizado por nós. Esse caminho, não pode ser feito sem revelar as ambiguidades e os
paradoxos constitutivos dessa realidade, assim como não há possibilidade de entender as
expressões e formas de enfrentamento a questão social de outrora, por uma via de mão única.
Para tanto, lembramos as palavras de Florestan Fernandes ([1960] 2008, s/p), quando
nos diz o seguinte:

Apesar da ‘fome de bens de consumo’, dos incentivos que em determinadas


conjunturas favorecem a substituição de importações e das tendências de
integração nacional do mercado interno, fraco poder de compra, elevada
especulação e alta capacidade ociosa foram um círculo vicioso tenaz. Nesse
quadro geral, as forças produtivas são inibidas, solapadas ou desorganizadas
por outros fatores, que dificultam a própria expansão do capitalismo, mas não
põe em xeque as formas de organização da produção capitalista propriamente
ditas.

Do mesmo modo, é importante observar alguns aspectos da realidade brasileira mais


recente que continuam a sinalizar a presença de um “círculo vicioso tenaz” que permanece não
pondo “em xeque” tanto os papéis históricos das regiões constitutivos da (e na) dinâmica
desigual e combinada como as formas de organização da produção capitalista propriamente
ditas. Assim, é necessário perceber, antes de tudo, um contraponto fundamental que, a nosso
ver, viabilizou o crescimento econômico do Nordeste nos anos 2000 e seus consequentes
impactos na questão regional, além das circunstâncias internacionais mais favoráveis. Estas, já
apresentadas nos anos iniciais do século XXI, são marcadas, dentre outros aspectos, pelo
destaque do crescimento econômico da China, que se torna importante compradora das
commodities brasileiras, contribuindo para o desempenho nacional, mesmo em tempos de
inflação resistente. Esse crescimento, contudo, partícipe de um circuito composto por outras
254

tantas circunstâncias, apresentadas brevemente no início deste capítulo, teve que desacelerar,
impactando não apenas a economia brasileira. Quanto ao contraponto, sinalizamos o seguinte:
Primeiro, a política de conciliação de classes vigente no referido período foi pautada e
sustentada por um ganho maior de setores empresariais, inclusive do agronegócio, tal como
apresentamos no item anterior. Nesse sentido, entendemos que o crescimento econômico
revelou, por outro lado, a gestação de novas elites regionais, que se fundem com as velhas,
reafirmando a presença do “familismo” ou, nas palavras de Nobre (2010), dos “clãs familiares”,
porém, agora junto ao capital financeiro internacional que passa a se constituir internamente
desde a última década, de acordo com Brettas (2013). Como lado mais pesado da mesma moeda,
os governos em questão retomaram a política industrial, relegada pelo governo FHC e
reorientaram a atuação estatal, contudo também deixaram clara a ausência de ruptura com o
neoliberalismo, com maiores tensões e medidas relativamente diferentes daquelas definidas nos
governos anteriores. Para Mara (2016, p.27), tratou-se, na verdade, “de uma reforma deste
projeto [neoliberalismo], reforma relacionada aos interesses de frações da grande burguesia
dependente brasileira”.
Segundo, é possível observar a ausência de significativas mudanças nas desigualdades
sociais e na concentração de renda, expressa territorialmente, o que ainda faz do Nordeste, por
exemplo, apesar dos avanços, ainda ser a região com menor esperança de vida ao nascer (70,4
anos), a maior taxa bruta de mortalidade infantil (33,20%) e a maior quantidade de analfabetos
do país. Daí porque os ganhos relativos as classes trabalhadoras na última década rapidamente
estão sendo revertidos, tendo em vista que, segundo a PNAD Contínua de 2017 (IBGE, 2018),
1% da população brasileira com os maiores rendimentos recebia, até ano passado, em média,
R$ 27.213. “Esse valor é 36,1 vezes maior que o rendimento médio dos 50% da população com
os menores rendimentos (R$ 754). Na região Nordeste essa razão foi de foi 44,9 vezes e na
região sul, 25 vezes.” (IBGE, 2018, s/p). Ainda de acordo com a mesma pesquisa, o Jornal Valor
Econômico nos diz que: “Todas as regiões exibiram indicadores piores de pobreza. O Nordeste
concentrava 55% da população extremamente pobre. No ano passado, eram 8,1 milhões de
pessoas na região com renda per capita abaixo de R$ 136,00 [...]. É um contingente 10,8%
maior do que o registrado no ano anterior [...]”115. Isto torna-se mais agravante com a queda de
14,3%, em 2016, para 13,7%, em 2017, do total de domicílios que recebem Bolsa Família,
somada a um conjunto de medidas que atinge também outras iniciativas, tal como o BPC e os
direitos trabalhistas como um todo.

115
Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-aumenta-11-e-atinge-148-
milhoes-de-pessoas>. Acesso em: 12.06.2018.
255

Diante dessas circunstâncias, o economista e professor Márcio Pochmann (2014), ainda


durante o último governo petista, em 2014, nos diz o seguinte:

Em 1980, o Brasil era a 8º economia do mundo e era 3º país mais desigual do mundo.
Hoje nós somos a 7º economia do mundo e somos o 17º país mais desigual do mundo.
Melhoramos a nossa posição relativa, mas ainda estamos entre os 20 países, de 200
existentes, mais desigual. Então é uma tarefa gigantesca pela frente e seu sucesso vai
depender também da capacidade de luta do povo brasileiro.

Esse quadro nos remete a constatação de que o problema do Brasil, assim como de
outras realidades, não é relativo ao freneticamente propalado crescimento econômico por si só,
mas, sim, a algo que Florestan Fernandes em 50 anos atrás já afirmava: “Crescimento tem
havido, especialmente no nível econômico. Ele não chegou a assumir, porém, as proporções e
um padrão que afetassem a integração do Brasil como uma sociedade nacional e sua posição
no conjunto das demais sociedades nacionais, que compartilham da mesma civilização”. Frente
a tal fato, assim como já nos dizia o mesmo autor, “o que nos deve interessar é o modo de
participar do padrão dessa civilização”, se de forma dependente ou soberana. (FERNANDES,
[1968] 2008, p. 155). A segunda opção, por razões históricas que remetem à própria natureza
das classes sociais no Brasil, demandaria certamente um processo de ruptura com o capitalismo.
Como resultado desse processo, de permanência e aprofundamento do desenvolvimento
capitalista e, portanto, da condição de dependência, a melhoria nas condições de vida sinaliza
de modo cada vez mais latente o seu caráter relativo e temporário. Afinal, “o cobertor do
neodesenvolvimentismo é curto. Em um país de capitalismo dependente, as concessões
possíveis à estratégia de conciliação de classes também.”. (MARA, 2016, p.390). As próprias
taxas de crescimento não têm sido estáveis nem significativamente altas, sobremodo nos
últimos anos, o que, a nosso ver, revela tanto os efeitos da crise mundial e demais fatores da
conjuntura internacional 116 como os limites de uma política de alianças de classes, subordinada

116
É certo que a conjuntura internacional favoreceu tanto a ascensão como a decadência do último ciclo de
desenvolvimento. Dentre outros aspectos, ressaltamos: o avanço e o declínio (com Golpes de Estado) de um ciclo
histórico progressista na América Latina, frente a crise das experiências neoliberais da década de 1990; a crise de
2008 desencadeada a partir dos EUA e seus efeitos no Sul europeu; o fortalecimento e a estagnação de blocos
regionais; o crescimento da China, seu destaque como compradora das commodities brasileiras, mesmo em tempos
de inflação resistente, por um lado, e sua desaceleração, fruto dos desdobramentos da crise mundial, despencando
o preço das commodities a partir de 2015, por outro; maior integração de países como a Índia no mercado mundial.
O fato é que o predominante foi a manutenção e reciclagem com rapidez do projeto neoliberal. Sobre isso, vejamos
o que Braz (2016, p.36-37) nos apresenta: “Vemos hoje, por exemplo, nos EUA, a adoção de métodos pouco
‘liberais’ como a política de investimentos fortemente induzida pelo Estado com forte elevação da dívida pública
(cujo pagamento tem sido assegurado pelos países que compram seus títulos públicos, principalmente a China), a
indução de uma política monetária abertamente favorável ao dólar e uma deliberada política de juros baixos. Por
outro lado, na Europa, os Estados/governos encontram fortes limites para adotar os mesmos métodos, uma vez que
vivem sob o jugo da troika [...]. São obrigados [...] a implementar uma severa política de austeridade fiscal. Já no
Brasil, e nalguns outros países latino-americanos, pratica-se (ou praticava-se, pelo menos até o início de 2015
256

aos interesses do capital, que foi bem-sucedida por curto tempo, porém não apontou para a
politização da sociedade em torno do fortalecimento de um projeto democrático, nacional e
popular. Isso tendo em vista que a dinâmica capitalista possibilita, dentro da dialética de
expansão e estagnação entre as regiões, um período, mesmo que temporário, de ascensão
econômica e de desdobramento de contratendências.
Diante disso, alguns especialistas sinalizam que estamos vivendo um momento onde
pulsam duas principais tendências em um país como o Brasil: a desindustrialização 117 e a
reprimarização da economia, com base na alavanca da dívida pública. De acordo com o IPEA
(2017, p.438-439), dentre as variáveis que podem confirmar, de fato, a desindustrialização está
a “redução da participação da indústria de transformação no valor adicionado total desde
meados da década de 1980; a concentração do investimento industrial em atividades de baixo
conteúdo tecnológico; a concentração das exportações brasileiras em produtos não
manufaturados”. Porém, por outro lado, no que diz respeito a variável emprego, é possível
observar que a proporção das ocupações na indústria de transformação, comparada às
ocupações totais da economia, quase que permaneceu no patamar dos 13%, não ocorrendo
alterações substantivas.
Contudo, o que na verdade deve ser considerado centralmente é a existência de
dificuldades advindas pela própria forma com que o Brasil se integra ao sistema mundial
historicamente, impondo constantemente a “perda de dinamismo e competitividade do parque
industrial [...], a expansão das atividades exportadoras agroindustriais (commodities) e [...] a
integração plena aos circuitos financeiros internacionais [...], obstáculos à mudança estrutural
do sistema produtivo” brasileiro. Esse tipo de integração regional reproduz-se dentro do próprio
Brasil, por isso também os limites existentes de produtividade média da indústria nordestina
que, segundo o mesmo Instituto, praticamente se manteve inalterada entre 2000 e 2010. Assim,
mesmo diante a expectativa gerada para o período pós-2010, de alterações nos indicadores
produtivos diante da construção no Nordeste de “várias plantas industriais de maior valor
agregado e densidade tecnológica”, a exemplo da refinaria de petróleo, do estaleiro naval, da

quando o governo Dilma passou a adotar o ajuste e a austeridade fiscais) uma espécie de ‘capitalismo social’ que
inova ao criar uma engenharia social que se esmera em emprestar um rosto mais ‘humano’ ao sistema [...]. Os
países centrais vivem uma crise cuja expressão mais evidente é a estagnação econômica, atestada por baixos
índices de crescimento.”. Esse contexto desdobra-se em redefinições geopolíticas e geoeconômicas em curso.
117
“A controvérsia sobre a desindustrialização no Brasil constitui um capítulo particular da história do pensamento
econômico nacional neste início de século XXI. Ela pode ser entendida, resumidamente, como a redução, no longo
prazo, do peso da indústria de transformação no produto interno bruto (PIB) em um determinado espaço
econômico, geralmente nacional (Unctad, 2003; Akyuz, 2005). Este indicador é conhecido como grau de
industrialização e, no Brasil, passou de um máximo de 35,9%, em 1985, para 9,8%, em 2013. Ou seja, uma redução
de mais de 72% em um período em que prevaleceu o baixo crescimento econômico, manufatureiro e dos
investimentos”. (IPEA, 2017, p.369).
257

fábrica de automóveis da Fiat em Pernambuco, da JAC Motors na Bahia e da produção de


sistemas eólicos para geração de energia em Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí,
a tendência mundial e regional recompõe a divisão internacional e regional do trabalho
parametrada no desenvolvimento desigual e combinado e, portanto, na condição de
dependência em que vivem o Brasil e, particularmente, o Nordeste.
Sobre isso, vejamos o que nos diz Aristides Monteiro Neto, técnico do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA):

Observa-se o avanço do esforço de redução das disparidades, capturado anteriormente


pelo índice de Theil, pela perda de importância relativa das regiões Sudeste e Sul na
composição do PIB nacional, de 74,1% em 1990, para 71,3% em 2009, e o ganho
absoluto de 2,8% entre 1990 e 2009 para o conjunto das regiões Norte, Nordeste e
Centro-Oeste, de 25,9% em 1990 para 28,7% em 2009. O esforço e o resultado são
relevantes ao final do período de análise, mas o quadro geral da composição territorial
das atividades econômicas permanece muito díspar. Em particular, a região Nordeste,
que se caracterizou durante o século XX como uma região de retraso econômico,
conseguiu internalizar uma estratégia de contenção de perdas e de aceleração do
crescimento que resultou na expansão, ainda que lenta, de seu patamar de participação
relativa no contexto nacional. Continua sendo, entretanto, a região em que a
concentração da produção econômica no Brasil se expressa mais desfavoravelmente,
pois sua participação no PIB nacional atingida em 2010 ainda é equivalente àquela do
início da década de 1960, quando Celso Furtado, por meio do Grupo de Trabalho para
Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), preocupou-se com as causas e manifestações
de seu subdesenvolvimento. Cabe ainda notar que as mudanças em prol da
desconcentração foram mais presentes na década de 2000 que na precedente. (NETO,
2014, p.70-71).

De toda forma, as mudanças ocorridas, mesmo dentro dessas condições, incidiram na


dinâmica migratória e, consequentemente, na questão social no Nordeste, o que não significou
a anulação do peso das desigualdades regionais em âmbito nacional, pois, dentre outros fatores,
não houve desconcentração no território brasileiro de riquezas socialmente produzidas, como
já constatamos. Assim, se pensarmos que, diante da onda migratória violenta durante o século
XX, a região que continha, em 1872, quase metade da população brasileira e passou a ter, em
2010, um pouco mais de um quarto da população brasileira, vive mais recentemente uma queda
da mobilidade. Em outras palavras, “o fluxo de migrantes em anos recentes e as projeções do
IBGE têm mostrado uma trajetória descendente, ou seja, parece haver uma redução da
mobilidade da mão de obra no Brasil” (IPEA, 2015, p.32). Esse fenômeno tem relação com as
transformações na própria região que incidiram, não apenas, sobre a relação entre urbano e
rural, tais como:

a) As mudanças demográficas expressas na análise dos últimos censos demográficos


do IBGE vêm apresentando uma elevação da população urbana de cerca de 18% em
258

detrimento da redução em 4% da população rural. Esta cresceu apenas em alguns


estados (Sergipe 6,9%, Maranhão 5,7% e Piauí 1,2%). Sobre isto, acrescenta-se a
seguinte informação: “Nessa década [2000-2010], o IBGE mostra que a Região
Nordeste do país apresentou intensa movimentação de pessoas: 1,2 milhão de
pessoas saíram de outras regiões para se fixar na Região Nordeste ao mesmo tempo
em que cerca de 2,3 milhões de habitantes se deslocaram da região”. (BNDES, 2014,
p.164).

b) A redução da pobreza junto às alterações nas condições de vida e trabalho na região,


com fomento a uma maior produção e consumo visando o mercado interno, tal como
já demonstrado anteriormente, têm incentivado um retorno de quem já foi ou mesmo
uma certa inversão no fluxo migratório para o Nordeste. Todavia, por um lado, o
fenômeno da seca continuou existindo, mesmo que em grau diferente, apresentando
consequências diferenciadas em relação ao êxodo que foi reduzido, comparando a
outros períodos, muito em decorrência, dentre outros aspectos, da Política de
Assistência Social. Por outro lado, a Sudene, tal como os demais mecanismos
voltados mais propriamente à Política de Desenvolvimento Regional, não
apresentou avanços e um papel mais incisivo, ou mesmo diferenciado, desde o fim
da crise fiscal, nos anos 1980. (BNDES, 2014, p.246).

c) As alterações territoriais, desde a constituição das cidades médias e das novas


regiões metropolitanas à intensificação da vida caótica nos grandes centros urbanos,
apontaram novas possibilidades de fluxos migratórios para além daqueles entre as
macrorregiões, constituindo o que Sposito (2006) denominará de “pontos
estratégicos de determinado sistema de cidades” ou “espaços de transição”, “elo
urbano-regional”.

Tudo isso contribuiu para que tenhamos, em torno desse tema, o seguinte quadro
apresentado pelo IPEA (2017, p.449-450):

Segundo o censo de 2010, alcançamos cerca de 1 milhão de imigrantes retornados


(21,53% dos imigrantes) no período 2005-2010. Os migrantes interestaduais de curto
prazo perfizeram mais de 1,8 milhão (28,32%). Assim, as proporções de imigrantes
retornados e de curto prazo, características marcantes desde novo padrão
demográfico, juntas, chegaram a 43,77% dos imigrantes interestaduais no período
2005-2010. Não obstante, a persistência das grandes trajetórias migratórias anteriores
impediu mudanças abruptas em relação ao antigo padrão, determinando que ocorra no
259

presente muito mais a combinação de variados padrões migratórios e revelando


elementos de estabilização e regularidade dos caminhos estruturais migratórios já
trilhados. [...] Entretanto, deve-se destacar o crescimento dos municípios
intermediários, posto que a taxa de crescimento da população total, entre 2000 e 2010,
foi de 0,45% para os municípios pequenos, 2,81% para os médios, e 1,29% para os
grandes.

Assim, junto às concepções ainda hegemônicas da realidade nordestina que renovam o


fenômeno do regionalismo “problemático e emblemático”, buscando, em outro extremo, nos
atributos regionais aspectos que possam hierarquicamente compor o nacional e sua “essência”,
emerge um novo desenho social e econômico da região em que o moderno empresariado
nordestino vincula-se à estrutura de serviços que as políticas de desenvolvimento regional
ajudaram a desenvolver na região, assemelhando-se, respeitando as devidas proporções e
particularidades históricas, ao ocorrido no período desenvolvimentista.
Para tanto, como já sinalizado, o BNDES teve papel fundamental. Este passou a investir,
em 2007, o dobro que investia em 2000, priorizando, até 2009, programas e projetos de
infraestrutura voltados para o Nordeste, já sinalizados por nós, além das isenções fiscais e da
oferta de mão de obra mais barata em relação a outras regiões do país, atraindo setores
industriais (de transformação, calçadista, alimentos e bebidas, etc.) e da construção civil,
nacionais e internacionais. Isso tendo em vista a margem salarial dos trabalhadores que vivem
nos estados do Nordeste e ganham em torno de um salário-mínimo, quando essa média chega
a triplicar em outras regiões do país, principalmente Sul e Sudeste. (IPEA, 2010).

Um dado novo, revelado com as recentes transformações sentidas pelo Nordeste,


aponta para a inserção de uma nova política macroeconômica a atingir intensamente
a região. Esse dado tem a ver com a relativa mudança de rumo assumida pelo governo
Lula, que, apesar de garantir a manutenção de inúmeros acordos firmados com os
capitais produtivos e financeiros internacionais, vem, paradoxalmente,
implementando ações econômicas com certa influência nacional-desenvolvimentista
no território nacional. Isso possivelmente representa o nascimento de uma nova fase
na evolução econômica e industrial nordestina […] Segundo dados do Banco do
Nordeste do Brasil (BNB, 2008), os empreendimentos privados financiados pela
instituição passaram de 222 milhões de reais, em 2002, para 5,3 bilhões, em 2007
[…]. Outros indicativos positivos somam-se a esses números, em especial a ampliação
das exportações, que passaram de 3,3 bilhões de reais em 1999 para 13 bilhões em
2007 (MIDIC, 2010a), e os dados do PIB, que avançou de 191,5 bilhões de reais em
2002 para 347,7 bilhões em 2007 (IBGE, 2009). (PEREIRA JR, 2012, p. 221).

Essa dinâmica, além de ter tido como incentivo a margem salarial dos trabalhadores que
vivem no Nordeste, foi acompanhada também por um conjunto de estímulos por parte dos
governos federais e estaduais que atraiu setores empresariais através de programas como o
“Minha Casa Minha Vida” e o PAC. Todo esse processo promoveu uma maior dinamização do
mercado de trabalho, com a geração de empregos formais, tal como já apresentamos, como
260

também de Arranjos Produtivos Locais (APLs), além da movimentação dos serviços,


multiplicando o crédito e elevando o consumo. Sobre isto, o IPEA (2015, p.22) destaca que,
segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, o crescimento do consumo das
famílias, entre 2002 e 2008, nas duas regiões mais pobres do Brasil – Norte e Nordeste –
apresentou um crescimento superior à média nacional”. Enquanto no Nordeste o crescimento
do consumo das famílias foi de 7,6%, a média nacional ficou em 7,4%. “O Nordeste também
se destacou pelo crescimento do setor de comércio e serviços, que sugere outra tendência do
crescimento regional brasileiro no período: crescimento econômico puxado pelo consumo das
famílias mais pobres”.
Nesse quadro, “temos […] novamente esboçado um modelo decisório de inversão de
recursos públicos que utiliza o espectro dos ‘pobres do campo’ para a montagem de engrenagens
grandiosas de acumulação de capital […]” (DÓRIA, 2007, p.289). Grupos empresariais como
os bancos Itaú e Bradesco e as empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Correa,
além daqueles que atuam mais diretamente no agronegócio, como a Suzano papel e celulose,
antiga Aracruz Celulose, também ganharam bastante destaque, inclusive, nas estratégias
empreendidas hoje no âmbito das políticas sociais como na educação. Sobre isto, podemos citar
o “Movimento Todos pela Educação” que nasce em 2006 a partir da articulação de um conjunto
de organizações vinculadas diretamente à importantes corporações com o intuito de incidir
sobre as diretrizes das políticas educacionais como também na formação e qualificação
profissional de milhões de trabalhadores formais e informais, da cidade e do campo. Aqui torna-
se importante citar o papel da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), através do
Programa Educacional Agronegócio na Escola; do Programa Nacional de Acesso ao Ensino
Técnico e Emprego (PRONATEC) e outras tantas iniciativas envolvendo o Estado e o
empresariado na formação técnica de pedreiros, pintores, mecânicos, eletricistas, auxiliares de
cozinha, camareiras, recepcionistas, porteiros, técnicos em celulose, montagens, além de
operadores industriais e florestais. (BNDES, 2014).
O BNDES, por exemplo, disponibilizou na última década por volta de um terço do total
dos recursos “para somente dez grandes grupos econômicos privados em processo de
concentração e fusão”. (POCHMANN, 2013, p.152). No âmbito do setor sucroalcoleiro, foram
28,2 bilhões de reais o valor total de repasses aos usineiros na forma de empréstimos via
BNDES durante a década (2003-2010). No Nordeste, dentre os principais empreendimentos
priorizados, tivemos:
261

Tabela 4 - Empreendimentos Financiados pelo BNDES no Nordeste (2005-2013)

Empresa/Projeto Estado Valor

Suzano Papel e Celulose MA R$ 2,7 bilhões

Veracel Celulose BA R$ 1.430 milhões

Polo de Camaçari BA R$ 4 bilhões

Complexo Petroquímico de Suape PE R$ 3,5 bilhões

Consórcio de Alumínio do Maranhão MA R$ 1,1 bilhão

Vanádio de Maracás BA R$ 334 milhões

Votorantim Cimentos PE-SE-MA R$ 180 milhões

Estaleiro Atlântico Sul PE R$ 1,86 bilhão

Refinaria Abreu e Lima PE R$ 9,9 bilhões

Gasoduto de Integração Sudeste-Nordeste RJ-BA R$ 4,4 bilhões

Continental BA R$ 9,3 milhões

Pirelli BA R$ 100 milhões

Moura PE R$ 182,6 milhões

Fábrica da Fiat PE R$ 3,5 bilhões

Fonte: BNDES, 2014. Elaboração própria.

Nesse contexto, podemos observar uma súbita modernização na agricultura com a


expansão do agronegócio na região, tal como expressam as informações abaixo:

No período de 1990 a 2009, a quantidade de hectares plantados com soja


aumentou em 10.177.048 (87,84%). O mesmo crescimento foi identificado
com o acréscimo da área plantada com cana-de-açúcar, que no espaço de duas
décadas, mais do que dobrou a quantidade de área plantada, incorporando
4.523.534 hectares. Em contrapartida, as culturas tradicionais, como o feijão
e o arroz, perderam participação no total da área plantada no Brasil,
apresentado respectivamente uma queda percentual de 19,35% e 30,14%. [...]
Na Região Nordeste, observamos processos semelhantes ao que identificamos
no Brasil mediante o crescimento de culturas do agronegócio. A análise dos
dados estatísticos do IBGE para os de 1990 e 2009 mostra que, apesar de
culturas tradicionais como milho, feijão e mandioca terem se mantido entre as
culturas com maior quantidade de área plantada na região, houve uma variação
percentual negativa para culturas, como feijão e mandioca, que apresentaram
respectivamente queda de 6,21% e 27,66%. [...] Das frutas com a melhor
relação produção versus exportação, tais como o melão, a manga e a banana,
o Nordeste concentra a maior número de área plantada e de quantidade
produzida. Em 2009, somente a Região Nordeste foi responsável por 84,87%
262

da área plantada e 94,30% da quantidade produzida de melão. (BEZE