RIO DE JANEIRO
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RIO DE JANEIRO
2018
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Banca Examinadora
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Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis (ESS/UFRJ - Orientador)
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Prof.ª. Dra. Maria Augusta Tavares (DSS/UFPB-UNL)
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Prof.ª. Dra. Ana Elizabete Fiuza Simões da Mota (ESS/UFRJ-UFPE)
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Prof.ª. Dra. Maria Mello de Malta (IE/UFRJ)
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Prof.ª. Dra. Tatiana Brettas Waehneldt (ESS/UFRJ)
AGRADECIMENTOS
entendi que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi
visto, ver outra vez o que se viu [...] o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que
aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos
novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.” (José Saramago). Ao Ednaldo
Abreu (Ed), as nossas conversas existenciais e poéticas. À Glau Holanda e ao Ailton Lopes,
pelos reencontros, acolhida e partilha, mesmo que breve, de morada. À Tetê (in memorian), por
seu exemplo de simplicidade e dignidade que transcende a existência material.
Às amizades mais recentes proporcionadas pelas vivências durante o doutorado, em
terras estrangeiras, dentro e fora do Brasil: Michelly, querida companheira a qual tenho
profundo respeito e carinho; Renatinha, amiga-irmã com quem dividi a vida, ombro a ombro,
nas suas alegrias, belezas e dores; Leozinho e Taci, pelo companheirismo e pela agradável
partilha a la “mineirada-cearense”; Marisol e Sandra, pelas agradáveis conversas e trocas sobre
nuestra América desde a Colômbia ao Brasil. Rafaela Rodrigues e Helena Monteiro, que no
exercício de suas profissões e projetos de vida contribuíram decididamente para me conhecer e
me fortalecer mais diante de relações tão adversas do tempo presente. Aos bons encontros além-
mar com as queridas Maria Augusta (Guga), Virgínia e Naire, exemplos de mulheres fortes, à
frente de seu tempo, cuja larga inteligência não as fizeram menos generosas. Obrigada pela
paciência e ensinamentos! Ao Coletivo Andorinha, em especial a Carol e Heide, pela
solidariedade, resistência e partilha frente aos preconceitos e discriminação que persistem e nos
desafiam diariamente.
Aos lutadores e as lutadoras do povo, resistentes ao Golpe e à todas as atrocidades da
dinâmica capitalista, insistentes das causas coletivas, da necessidade cada vez mais urgente da
transformação social e de uma vida mais plena de sentido. Aos militantes da Consulta Popular,
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e todos aqueles que compõem a Via
Campesina. Ao feminismo, que tenho criado cada vez mais intimidade, e às companheiras que
enfrentam cotidianamente o peso do persistente “atraso” sob a vida das mulheres. Aos amigos
e amigas, companheiros e companheiras, de Iguatu - Ceará, que fazem da vida no sertão menos
árida.
Aos estudantes, de ontem e de hoje, que tive (e tenho) a oportunidade de contribuir de
alguma maneira na formação profissional e política, com os quais pude construir relações que
não cabem na denominação fria e pretérita de ex-alunos e alunas. Aqui faço um agradecimento
especial, pelo apoio e companheirismo, à Keile, Andressa, Wanessa, Raí e Raimundo. Com
vocês, diante de tantos percalços, além de muito orgulho, fico mais certa sobre a profissão que
escolhi seguir na vida.
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Belchior
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RESUMO
ABSTRACT
PEREIRA, Evelyne Medeiros. The dialectic of uneven interregional development: the social
issues in the Brazilian Northeast (2007-2015). 2018. 305 f. Thesis (Doctorate in Social Work)
- School of Social Service, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
The Brazil of the last decade reflects the dialectic of uneven and combined development which
focuses on social issues in the Northeast, region incorporated in the recent expansion of
capital.This context has influenced the increase of the life expectancy of the northeast
population and the positive trend which pointed out several indicators of increased participation
of the region in the national economic growth.Even in the face of continuing regional
inequalities in the country, occurred inflections in the forms of confront regional aspect, while
dimension of social issue.Since there was no break with the neoliberal determinations,
reproduction and complexity of logic of dependncy and regional division of labour, in a
recombination between the "backwardness" and the "modern", are hereby confirmed. Despite
the immediate effects and individual improvements, we assume that the attempt to govern
through a model of class reconciliation via the social pact allows only temporarily and
conjuncturally to promote variations in the social question, to the point of even having
repercussions on the development of the country, but without substantially reducing social
inequality in the Northeast and in the national territory.However, it is clear that it is impossible
to escape of the law of uneven and combined development.Such findings were the result of
quantitative and qualitative research based on the bibliographical study, highlighting the
critical-dialectic perspective and dialogue with primary and secondary data. The delimitation
of the period (2007-2015) sought to pay attention since the most favourable conditions for the
access to consolidated and offical information even some aspects that mark the start, pinnacle
and the signs of exhaustion of the last cycle of development in the country with the focus on
regional issues.
RESUMEN
El Brasil de la última decada refleja la dialéctica del desarrollo desigual y combinado que incide
en la cuestión social en el Nordeste, región particularmente inserta en la reciente dinámica de
expansión del capital. Ese contexto incidió sobre el aumento de la expectativa de vida de la
población nordestina y en la tendencia positiva que apuntó diversos indicadores de elevación
de la participación de la región Nordeste en el crecimiento económico nacional. Es posible
señalar que, aún delante de la perpetuación de las desigualdades regionales en el país, ocurrieron
inflexiones en las formas de enfrentamiento a la cuestión regional, en tanto dimensión de la
cuestión social, concomitante con la renovación de sus múltiples expresiones a partir de la
realidad nordestina. Al no existir una ruptura con las determinaciones neoliberales, la
reproducción y complejización de la lógica de la dependencia y de la división interregional del
trabajo, en una nueva combinación entre lo “atrasado” y lo “moderno”, son confirmadas. A
pesar de los efectos inmediatos y de mejoras individuales, partimos del presupuesto que la
tentativa de gobernar mediante un modelo de conciliación de clases vía pacto social permite
sólo temporaria y coyunturalmente promover variaciones en la cuestión social, al punto de,
inclusive, repercutir en el desarrollo del país, aún sin, sustancialmente, reducir la desigualdad
social en el Nordeste y en el territorio nacional. Al ser priorizadas inversiones en esa región se
atendió a la finalidad capitalista y a la población más pobre. No obstante, resulta evidente la
imposibilidad de huir de la ley del desarrollo desigual y combinado en los marcos del
capitalismo. Tales constataciones fueron fruto de la investigación de naturaleza cuanti y
cualitativa que tuvo como base el estudio bibliográfico, priorizando la perspectiva crítico-
dialéctica y el diálogo con datos primarios y secundarios. Para tal fin, la delimitación del
período (2007-2015) buscó considerar desde las condiciones más favorables para el acceso a
las informaciones consolidadas y oficiales, hasta algunos aspectos que marcan el inicio, el auge
y las señales de agotamiento del último ciclo de desarrollo en el país, focalizando en las acciones
que apuntan a la cuestión regional, a partir de la realidad nordestina.
Gráfico 2 Brasil e Nordeste: população ocupada por nível de instrução (2010) .......... 246
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................... 16
1 O DESIGUAL E O COMBINADO NO DESENVOLVIMENTO
CAPITALISTA................................................................................................ 30
1.1 O debate do desenvolvimento na tradição marxiana e marxista....................... 36
1.2 A maturidade do desenvolvimento capitalista como sistema mundial............... 47
1.3 A face regional do capitalismo........................................................................... 60
1.4 O amálgama entre o “moderno” e o “atraso” como processo
histórico............................................................................................................ 67
1.4.1 O desenvolvimento da dependência na América Latina……………………… 88
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 295
........
16
INTRODUÇÃO
Guimarães Rosa
Em referência ao romance Grande Sertão Veredas, Antônio Cândido (2014, s/p) nos
lembra o quanto a realidade do homem do sertão traz consigo uma presença íntima dos
problemas universais e acrescenta:
Para mim, o mundo de Guimarães Rosa não é em Minas. O mundo de Guimarães Rosa
é o mundo. O sertão é o mundo porque dentro daquele enquadramento rigoroso
documentado no sertão mineiro, aquilo serviu de palco para ele desenvolver um drama
que ocorre em qualquer lugar do mundo […] que são os problemas do homem […].
Isso transcende muito o sertão. Por isso eu digo: o sertão é o mundo. […] A vontade
do homem é mais forte que o poder do lugar. […] O que é bonito no Grande Sertão
Veredas é a extrema ambiguidade. [...] As coisas são e não são. […] Tudo é e não é.
Tudo começa e devia acabar de um jeito, acaba de outro. O vencido, que devia ser
sacrificado, é livre. O homem, que é homem, é mulher. […] E isso tira o Grande Sertão
Veredas da craveira comum de qualquer romance regionalista. […] Como é que se
pode resolver esse paradoxo? De um regionalismo que não é regionalismo? De uma
universalidade que é mais particular possível? Ele fez o livro que supera o
regionalismo através do regionalismo. […] A meu ver é um paradoxo supremo.
As sábias palavras de um dos maiores intérpretes do Brasil, que partiu desta vida
recentemente nos deixando um importante legado, inclusive para pensarmos a realidade
sertaneja para além de particularismos e determinismos, certamente contribuem para o
entendimento da dinâmica regional, de permanências e mudanças, que conforma o Brasil em
sua história recente.
Referimo-nos, mais precisamente, ao Nordeste brasileiro de hoje que não mais cabe nas
concepções homogeneizantes, por um lado, (re)construtoras da paisagem pitoresca do litoral
turístico e da caricatura árida do sertanejo miserável e analfabeto; por outro, renovadoras de um
regionalismo que reforça ora a natureza folclórica, ora a concepção de “região problema”.
É certo que as expressões atuais da realidade nordestina, especialmente da última década,
tais como o aumento da expectativa de vida e a diminuição da pobreza absoluta, sinalizam
inflexões nas expressões da questão social e nas suas formas de enfrentamento, especialmente
17
por parte do Estado na região. Isto muito propagandeado como resultado de uma política de
“inclusão social”, com maior peso para o proclamado desenvolvimento, realizada sob a égide
dos governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores (2003-2015) que teriam promovido
maior crescimento e desenvolvimento econômico em regiões historicamente mais pauperizadas
e com menores índices de desenvolvimento humano do país.
Essa constatação é possível ser observada na própria realidade, não apenas através dos
indicadores sociais e econômicos desse período, que demonstram uma efetiva melhoria das
condições de vida dos trabalhadores com a ampliação de postos de trabalho, de industrialização
(inclusive na agricultura), do acesso à renda, ao consumo e a políticas sociais como a educação
e assistência, como também através dos resultados na política institucional, fazendo da região
uma importante base eleitoral desses governos. Por que isso ocorreu? Quais os fatores que
permitiram tais inflexões na região no último ciclo de desenvolvimento? As respostas para tais
questões certamente estão muito além da simples vontade política.
De fato, ao se observar os números e os documentos oficiais, particularmente os planos
plurianuais governamentais, é possível identificar algumas diferenciações em relação à
ortodoxia neoliberal em curso no Brasil durante a década de 1990. A região Nordeste
efetivamente esteve entre as prioridades dadas por parte de instituições estatais via “políticas
de desenvolvimento”, a exemplo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), através do financiamento de grandes projetos infraestruturais e industriais, como a
Transposição do Rio São Francisco, os Complexos Portuários e Siderúrgicos, os Polos
Industriais e a Transnordestina, além de programas de cunho assistencial, como o Programa
Bolsa Família (PBF), o Minha Casa Minha Vida e o Luz Para Todos, para atender quem esteve
à margem do trabalho formal ou mesmo aqueles que não foram incorporados pelo mercado.
Tais políticas foram desenvolvidas sob a ideia de “combate à miséria” e inclusão “dos mais
pobres no orçamento” governamental.
O Nordeste do atraso, da fome e da migração tornou-se a região do “protagonismo”, o
Nordeste moderno, das oportunidades, da interiorização dos serviços, do regresso daqueles que
um dia tiveram que tentar a vida longe, constituindo trajetórias de vida de inúmeros anônimos
que inspiraram a arte popular de Luiz Gonzaga a Belchior. Todavia, nos perguntamos: há
realmente um novo desenho social e econômico da região? Essas mudanças se devem a quê? O
que há de herança e ruptura com a realidade retratada em romances como o de Guimarães Rosa,
Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Euclides da Cunha que motiva este a escrever a célebre
18
1
Referência presente na obra “Os Sertões” de 1902.
2
Ver em Rui Facó, Cangaceiros e Fanáticos.
3
Esse fenômeno foi alvo de diversas elaborações, como as de Antônio Gramsci ([1932] 2002), que encontrou no
Risorgimento italiano cenário propício para analisar a questão meridional na Itália moderna.
19
4
A concepção de “atraso” e sua relação com o “moderno” tem como base a leitura desenvolvida por Lênin ([1899]
1982) e Trotstky ([1930] 1977) a partir da análise da realidade do desenvolvimento capitalista na Rússia. Portanto,
esse termo (atraso), quando utilizado ao decorrer deste trabalho, não pretende reiterar concepções dualistas entre
o “atraso” e o “moderno”, “subdesenvolvido” e “desenvolvido”. Optamos, frente a tal ponderação, por retirar as
aspas a partir de então.
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tem como necessidade a constante superação de fronteiras de tempo e espaço, o que, por outro
lado, acaba por estabelecer outras tantas barreiras territoriais e diferenciações regionais em uma
mundialização que também se regionaliza. Fruto desse processo ocorre o adensamento da
questão social na sua dimensão regional, expressa pela intensificação da divisão internacional
(e inter-regional) do trabalho, da exploração por intermédio da reestruturação produtiva e dos
diversos conflitos de base territorial refletidos na violenta onda migratória cada vez mais
pulsante nos dias de hoje, produzindo milhões de refugiados mundo afora, (re)compondo a
questão regional em termos macrossociais. 5
No Brasil, compreendemos a região Nordeste como destaque nessa questão, sofrendo
com tônica diferenciada os reflexos da concentração de riqueza, renda e poder no país. Os
desdobramentos econômicos e políticos desse processo constituíram uma narrativa dominante
e elitista de “região-problema”, predominante até hoje, muito embora com aspectos dissonantes
- a exemplo daqueles presentes no último ciclo de desenvolvimento no país - que pôs em
destaque essa região como promissora e protagonista de uma onda de crescimento econômico,
tal como já sinalizado.
A despeito da condição estrutural, houve, durante o período priorizado em nossa
pesquisa, também a forte presença de alguns “contrapesos” que, a nosso ver, viabilizaram o
crescimento econômico do Nordeste na última década e seus consequentes impactos na questão
social e regional. Primeiro, a política de composição de classes vigente no referido período foi
pautada e sustentada por um ganho maior de setores empresariais, inclusive do agronegócio.
Assim, como lado mais pesado da mesma moeda, os governos em questão, ao retomarem a
política industrial relegada pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e reorientarem a
atuação estatal, de acordo com Brettas (2013, p.196), deixam claro “sua preocupação em não
5
Entendemos que a questão regional é um aspecto fundamental para a conformação do capitalismo,
particularmente no Brasil. Desse modo, é também uma importante mediação para dimensionar a questão social.
Esta, para Iamamoto (2004, p.27-28), “sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam
as desigualdades e a ela resistem e se opõem”. Assim, com o desenvolvimento capitalista, emergem e acirram-se
os conflitos sociais através do aprofundamento da questão social, que se mundializa regionalizando-se. Trata-se,
portanto, de um conjunto das expressões das desigualdades sociais que tem uma raiz comum: “a produção social
é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos
mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade [...].”. Ou, nas palavras de Mota (2010), referimo-
nos ao “conjunto de questões reveladoras das condições sociais, econômicas e culturais em que vivem as classes
trabalhadoras na sociedade capitalista”. Há, contudo, abordagens e perspectivas teórico-metodológicas
diferenciadas sobre o tema da “questão social”, especialmente na literatura profissional do Serviço Social
brasileiro, mesmo que, como nos alerta Netto (2000, p.41), seja um “ponto saliente, incontornável e praticamente
consensual”. Nesse sentido, ainda segundo o autor, “é fato que a expressão ‘questão social’ não é semanticamente
unívoca; ao contrário, registram-se em torno dela compreensões diferenciadas e atribuições de sentido muito
diversas.”. Na tradição marxista, por exemplo, não há como se remeter a esse tema sem relacioná-lo ao fenômeno
do pauperismo, típico da ordem burguesa, sendo a “questão social” constitutiva do desenvolvimento capitalista.
Feitas tais observações, optamos por retirar as aspas dos termos “questão social” e “questão regional”.
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romper com o capital, mas de fortalecê-lo. O faz, todavia, de maneira diferente da que se definiu
nos governos anteriores”. Segundo, é possível identificar relativa estagnação de outras regiões.
Terceiro, a realidade nos fez constatar a ausência de significativas mudanças nas desigualdades
sociais e concentração de renda.
Como resultado desse processo, a tal melhoria nas condições de vida sinaliza de modo
cada vez mais latente o seu caráter relativo e temporário. As próprias taxas de crescimento não
têm sido estáveis, constantes, nem significativamente altas, especialmente nos últimos anos, a
revelar os limites do pacto social e da forma de se fazer a política de conciliação de classes que
foi bem-sucedida por um tempo. Isso tendo em vista, dentre outros fatores econômicos e
políticos no contexto internacional, que a dinâmica capitalista possibilita dentro da dialética de
expansão e estagnação entre as regiões, um período, mesmo que temporário, de ascensão
econômica e de desdobramento de contra-tendências. Essa dinâmica permitiu alterações no
movimento migratório, nas expressões e formas de enfrentamento a questão social no Nordeste,
o que não significou, por outro lado, alterações substanciais na divisão regional do trabalho, na
concentração de riquezas em território brasileiro e nas próprias políticas sociais voltadas para a
questão regional, a exemplo da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR).
Como síntese, constitui-se uma nação que ocupa o posto entre a 7ª e 8ª maior economia
do mundo com o contingente de 1% mais rico da população a ganhar quase cem vezes mais que
os 10% mais pobres. Tal desigualdade mantém um forte corte regional, o que faz, por exemplo,
do Nordeste brasileiro concentrar cerca de 30% da população nacional e mais da metade da
pobreza no país. (PNUD, 2013). Este quadro torna-se mais agravante diante da baixa qualidade
dos serviços públicos e políticas sociais cada vez mais escassas, fragmentadas e focalizadas.
Mas, então, o que viabilizou essas mudanças, mesmo que temporárias? O que explica
as inflexões das expressões e das formas de enfrentamento a questão social no Nordeste nos
anos 2000 e qual a importância desse fenômeno para o desenvolvimento capitalista no país
durante esse período? Ousamos, durante este trabalho, apresentar alguns sinais para que as
respostas a tais questionamentos pudessem ser maturadas ao decorrer da tese. Isto levando em
consideração os aspectos marcantes do contexto internacional contemporâneo; as
possibilidades do desenrolar de medidas anticíclicas, com tempo cada vez menor de
permanência; o maior descompasso historicamente constituído entre riqueza e pobreza em
determinadas regiões cujo peso do atraso tornou-se mais presente; as diferenças existentes entre
o novo pacto social, que viabilizou a “frente neodesenvolvimentista” nos anos 2000, e o período
anterior de vigência da ortodoxia neoliberal, anos 1990; as tensões existentes entre os setores
diversos que compõem as classes sociais no país; a recomposição (ou recombinação) da relação
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como a tese que aqui se apresenta não se trata de um romance, tendo em vista a predominância
do objeto de pesquisa posto no real, a prioridade foi conhecer a realidade em suas contradições.
Estas, no entanto, extrapolam os limites categóricos, conceituais e temporais da pesquisa em
questão, já que o movimento de expansão e estagnação entre as regiões produz clivagens nas
classes, disputas de interesses inter e intraclasse transcendendo qualquer dicotomia e
polarização. Em outras palavras, entendemos a incorporação de trabalhadores e de regiões na
dinâmica do capital produzem mudanças significativas e perceptíveis, porém, muitas vezes,
ainda não absorvidas pelas classes em relação, luta.
Feitas essas considerações introdutórias, destacamos que o objetivo geral da nossa
pesquisa foi analisar as inflexões ocorridas na questão social no Nordeste durante os anos 2000
e suas repercussões para o desenvolvimento capitalista no país durante esse período. Já os
específicos foram, respectivamente, i) identificar os aspectos e fundamentos que constituem a
dimensão regional da questão social no capitalismo, atentando para o papel das regiões na
reprodução social, no movimento de concentração e centralização do capital e na lei do
desenvolvimento desigual e combinado; ii) entender a importância histórica do Nordeste na
formação social brasileira, em especial na configuração da relação orgânica entre atraso e
moderno no capitalismo dependente; iii) caracterizar o desenvolvimento capitalista no Brasil
no último período (2007-2015) com foco nos elementos (econômicos e políticos) mais
relevantes que conformaram a questão social no Nordeste.
Para tanto, foi necessária uma apresentação, mesmo que breve, de alguns aspectos que
caracterizam a questão regional, como dimensão da questão social, no último período, a partir
do Nordeste, na busca de entender quais foram os fatores que levaram a um quadro de relativas
mudanças nas condições de vida e trabalho das classes subalternizadas dessa região, incidindo
temporariamente sobre as desigualdades regionais no país. Isto tendo como base as
problematizações e os apontamentos, em especial, por parte de autores, pensadores clássicos e
intérpretes do Brasil.
Foi importante adensar o estudo bibliográfico, com explicitação de dados primários e
secundários, a fim de fundamentar nossas argumentações, considerando os aspectos sócio
históricos da realidade, as expressões e tendências do capitalismo contemporâneo e suas
particularidades na recente conjuntura brasileira e nordestina. Isso foi o ponto de partida
necessário para o entendimento do papel das desigualdades regionais no atual padrão de
acumulação capitalista, sem perder de vista a compreensão da totalidade social. Para tanto, foi
necessário atentar para o seguinte:
24
estabelecidos, ela reproduz a ligação interna deles à base do desenvolvimento real das relações
sociais. A razão intima de ser do processo que então se desvenda é, em si mesma, a melhor
verificação da objetividade da exposição”. Desse modo, a compreensão que nos guiou sobre a
história é a de que ela culmina na explicação do presente e que, além disso, existe uma relação
reciproca entre prática e teoria, conhecimento e transformação da realidade. Assim, para nós, a
“necessidade de atuarmos sobre a realidade é o que nos conduz ao conhecimento. Não obstante,
para intervir, é preciso conhecer” (GUERRA, 2009, p.705) mediante procedimentos adequados.
A partir desse entendimento, para conseguirmos alcançar os objetivos aos quais nos dispomos,
foi necessário recorrer a determinadas fontes, procedimentos e instrumentos durante todo o
processo de investigação, tal como a pesquisa bibliográfica, construindo um diálogo com a
realidade empírica mediante dados e informações coletadas.
Desde a construção do texto de qualificação, foi importante o desenvolvimento de um
“estado da arte”, um levantamento prévio das principais e diferentes interpretações correntes
sobre o tema em questão, priorizando a perspectiva do nosso trabalho. Este passo foi
fundamental para a construção das categorias, compreendidas enquanto “formas de modos de
ser, determinações de existência, frequentemente aspectos isolados de [uma] sociedade
determinada” (MARX apud NETTO, 2009, p.685). Tais categorias, sendo reais, objetivas,
portanto históricas e transitórias, mediante procedimentos intelectivos, poderão ser
reproduzidas teoricamente pelos sujeitos da pesquisa. Elas se “constroem pela reflexão que ao
mesmo tempo vai articulando as relações, os processos que constituem o seu objeto”,
representando, dessa forma, uma síntese e ao mesmo tempo um ponto de partida, uma “unidade
na diversidade” (IANNI, [1986] 2011, p.13). Com base nessa perspectiva dialética de
construção do conhecimento, a princípio, apresentamos duas categorias centrais:
desenvolvimento desigual e questão social, sendo priorizado o contexto do Nordeste brasileiro.
Desenvolvemos, portanto, uma pesquisa bibliográfica e documental que buscou se
respaldar nos seguintes passos: a) um criterioso estudo de obras clássicas e contemporâneas de
autores referenciados no tema da pesquisa e nas questões transversais; b) uma análise rigorosa
de dados e informações em documentos oficiais (censos, estatísticas, pesquisas, relatórios,
comunicados e demais publicações) que respaldou o alcance aos objetivos geral e específicos
da tese.
Para tanto, a delimitação do período (2007-2015) buscou atentar desde as condições
mais favoráveis para o acesso às informações consolidadas e oficiais até alguns aspectos que
marcam o início, o auge e os sinais de esgotamento do último ciclo de desenvolvimento no país,
com o foco nas ações mais voltadas para a questão regional e o Nordeste. Diante disso,
26
observamos que em 2003 teve início a gestão no âmbito do governo federal do Partido dos
Trabalhadores (PT) que permaneceu até 2016 com mudanças significativas. De 2003 a 2009,
mesmo diante da crise de 2008, houve um aumento considerável de investimentos públicos –
quase quatro vezes, segundo Tautz et al (2010), especialmente via fundo público através de
instituições como o BNDES, permitindo a viabilidade de iniciativas e medidas anticíclicas
(redução da taxa de desemprego, política de valorização do salário mínimo, adoção de uma
política industrial, incentivo ao crédito, programas de transferência de renda, fortalecimento de
grandes grupos empresariais, etc). Porém, já no ano de 2012 alguns sinais de esgotamento do
padrão de crescimento econômico e atuação do Estado tomam relevo, expressando as
contradições do projeto de desenvolvimento em curso naquele momento, em maior medida e
intensidade, nos protestos massivos de junho de 2013 e em 2015 através do pacote adotado pelo
governo de ajuste fiscal, com cortes orçamentários, que contribuiu para o desencadeamento de
uma crise social, política e econômica.
Dentre outros marcos importantes que refletem esse contexto e incidem sobre os
objetivos da pesquisa de tese, citamos aqueles que sinalizam o ano de 2007 como importante
para o início da nossa delimitação temporal. Vejamos:
• Lançamento da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), em 2003,
que, no entanto, passa a ser institucionalizada apenas em 2007 através do decreto nº
6.047 da Presidência da República;
• Publicação dos Planos Plurianuais para os períodos de 2004 à 2008, de 2008 à 2011, de
2012 à 2015, respectivamente nos anos de 2004, 2008 e 2012, decretados pelo
Congresso Nacional e sancionados pela Presidência da República através de lei
específica. Esses documentos sinalizam as prioridades, inclusive orçamentárias, dos
últimos governos;
• Criação de iniciativas voltadas para o crescimento econômico e enfrentamento a questão
regional, com forte presença em alguns estados nordestinos, como o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007;
• Instauração da nova Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)
através da Lei Complementar Nº 125, de 3 de janeiro de 2007.
Assim, com o intuito de uma caracterização geral desse período (2007-2015), foram
priorizados dados (nacionais e regionais), buscando, inclusive, uma comparação com o período
anterior (década de 1990), a partir de alguns eixos, com suas respectivas variáveis, que
representam importantes dimensões da realidade pesquisada: empregabilidade (formal e
27
6
Estudos que viabilizaram a dissertação de mestrado intitulada “Cooperação e hegemonia na dinâmica do
capitalismo contemporâneo: a cooperação agrícola e organização política dos trabalhadores rurais na Lagoa do
Mineiro/Ceará”.
28
CAPÍTULO 1
Guimarães Rosa
Diante de tais afirmações que, historicamente, são ratificadas pela realidade, para
Fernandes (1998, p.111-112), Marx e Engels desde o Manifesto Comunista já identificam a
tendência de intensificação de fluxos globais do comércio como aspecto da expansão global do
capitalismo, “processo constitutivo do mundo moderno”. Trata-se, portanto, de uma
característica indispensável do “novo modo de produção” que, nos termos do autor, “pela
primeira vez na história, integrou todo o planeta em um único mercado, subordinando,
subvertendo e suplantando variadas formas de cultura e de sociedade preexistentes.”. Daí o
papel da colonização no processo de consolidação capitalista como expressão de uma “nova
ordem que é a do mundo moderno”. (PRADO JR, 2008).
Por outro lado, é necessário entender a universalização do capital na esteira da
31
7 Segundo Marx (2008, p.375-379), “a produção capitalista só começa realmente quando um mesmo capital
particular ocupa, de uma só vez, número considerável de trabalhadores, quando o processo de trabalho amplia sua
escala e fornece produtos em maior quantidade. A atuação simultânea de grande número de trabalhadores, no
mesmo local, ou, se se quiser, no mesmo campo de atividade, para produzir a mesma espécie de mercadoria sob o
comando do mesmo capitalista constitui, historicamente e logicamente, o ponto de partida da produção capitalista
[...]. Chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no
mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos [...]. Não se trata aqui da
elevação da força produtiva individual através da cooperação, mas da criação de uma força produtiva nova, a saber,
a força coletiva”.
8 No modo de produção capitalista, “na medida em que do trabalho resultam mercadorias cujo possuidor é o
capitalista, que, vendendo-as, obtém um excedente dos produtores diretos, o trabalho é, além de processo de
criação de valor, processo de valorização do capital. A criação de valor opera-se no tempo de trabalho necessário;
a valorização opera-se no tempo de trabalho excedente” (NETTO; BRAZ, 2007, p.111).
9 Na sociedade capitalista “os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca. O
valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção
em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e espaço” (MARX, 2008, p.58). “O valor-de-troca
das mercadorias e, portanto, dos meios de produção não aumenta em virtude da maior exploração de seu valor-de-
uso” (Ibid., p.377).
10 A também chamada de divisão capitalista do trabalho “conduz à especialização das atividades e, ao mesmo
tempo, à destruição dos saberes de ofício que permitiam ao trabalhador o conhecimento técnico do conjunto das
operações necessárias à produção de certo bem; alocado a uma única e determinada tarefa, que repetirá ao longo
de todas as jornadas de trabalho, o trabalhador será despojado dos seus conhecimentos e perderá o controle de suas
tarefas [...]. A divisão capitalista do trabalho no interior das unidades produtivas propiciará um enorme aumento
da produtividade do trabalho e terá como efeito uma diferenciação da força de trabalho que favorecerá os desígnios
do capitalista” (NETTO; BRAZ, 2007, p.112). Segundo Iamamoto (2009, p.16), as formas gerais dessa divisão
são expressas “no mercado mundial, por grupos de países, no interior de um país, entre agricultura e indústria,
cidade e campo, etc., passando pelas formas singulares e particulares dentro dos ramos de produção, até a divisão
do trabalho no interior da oficina”.
32
p.383-388).
A re(produção) das relações sociais que viabilizam esse padrão de acumulação dá-se
contraditoriamente sob determinadas (re)configurações de tempo e espaço tendo como
expressão o aprofundamento da questão social e, consequentemente, o acirramento dos
conflitos por intermédio das classes sociais, na tentativa incessante de se reproduzirem objetiva
e subjetivamente. “Tudo isso resulta no que chamamos de 'desenvolvimento geográfico
desigual' do capitalismo” (HARVEY, 2013, p.478).
É importante ressaltar, para evitarmos análises lineares da história, que a forma de
produção dominante exerce (e exerceu) sua hegemonia nos territórios a partir de formas
particulares - inclusive nas formações sociais onde subsistem relações pré-capitalistas - como
uma “luz universal” que transforma as outras “cores”, tal como sinalizam as contribuições de
Lênin “sobre a variada combinação de estruturas econômico-sociais nas distintas formações
sociais nacionais geradas no rastro da expansão global do capitalismo” (FERNANDES, 1998,
p.117-118). Daí o nível de complexificação do desenvolvimento capitalista nas diferentes
sociedades, atuando como uma “unidade na diversidade”, se propagando sobre uma realidade
heterogênea, que cresce e se difunde “em um ambiente geográfico variado que abarca grande
diversidade” (HARVEY, 2013, p.526).
11
“No capitalismo, as forças produtivas, compreendidas sempre como forças sociais, encontram-se todo o tempo
em interação dinâmica. A competição entre os capitais, a busca de novos processos produtivos, a conquista de
outros mercados e a procura de lucros provocam a dinamização das forças produtivas e da forma pela qual elas se
combinam e aplicam nos mais diversos setores de produção, nas mais diferentes nações e regiões do mundo. Estão
em marcha os processos de concentração do capital, o que implica na contínua reinversão dos ganhos no mesmo
ou em outros empreendimentos, e os de centralização do capital, o que implica na contínua absorção de outros
capitais, próximos e distantes, pelo mais ativo, dinâmico ou inovador.” (IANNI, 1995, p.137).
33
Alguns autores fazem referência às economias desses países como aquelas que se
conformam a partir de uma maior presença da combinação de elementos do moderno e do
arcaico (ou atraso). Todavia, é importante observar que em muitos momentos de constituição
do capitalismo, inclusive na Inglaterra, onde se conformou, segundo Marx (1984), em sua forma
clássica, do processo de acumulação primitiva (ou originária) do capital aos desdobramentos
das tendências e contradições que compõem a Lei Geral da Acumulação Capitalista,
(re)incidiram formas de existência retrógradas, mais características de outros modos de
produção. A fome, a baixa expectativa de vida, habitações completamente insalubres e
miseráveis para uma parcela crescente da população, em meio a produção também ascendente
de riquezas, passam a ser fenômenos comuns da nova era. Afinal, “todo capitalista tem interesse
absoluto em extrair determinado quantum de trabalho de um número menor de trabalhadores,
em vez de extraí-lo de modo tão barato ou até mesmo mais barato de um número maior de
trabalhadores” (MARX, 1984, p.203). Daí a presença ainda marcante do trabalho forçado,
acompanhado por legislações excessivamente punitivas para uma sociedade regida pelo lema
da “liberdade”, que foi se configurando ao passar do tempo em formas análogas à escravidão.
Eis a irremediável relação entre pobreza e riqueza nos marcos da sociabilidade capitalista,
mesmo nos ditos países “desenvolvidos”.
Essas formas têm sua origem no processo de acumulação originária capitalista, portanto
num país rico “o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo
expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa
disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa
e da tortura”. (MARX, 1984, p.277). Ou seja, liberdade e escravização; legalidade e ilegalidade;
barbárie e civilização; cidadania e violação de direitos; contrato social e golpes violentos;
34
consolidação e dissolução da democracia; o velho e o novo são face da mesma moeda, sendo a
violência “parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma
potência econômica”. Dessa forma, reiterando as palavras de Marx (1984, p.286-292), se o
dinheiro “[...] ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces’, então
o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeito da cabeça aos pés”.
Para Lukács (2008, p. 96), isso remete também a relação histórica entre modernização
e colonialismo em que a “libertação” das colônias não fez desaparecer o “traço da velha
exploração e opressão; mas, na verdade, a política que se apresenta como nova […] não é mais
do que, em sua real substância, o prosseguimento com novos meios técnicos da velha política
colonialista”. Sobre isso, vejamos o que Marx (1984, p.285) nos diz:
grande escala e turmas de trabalho organizadas, consegue ter um uso mais rentável da
terra do que o camponês proprietário ou o pequeno agricultor. […] “O trabalho
escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de trabalho livre”
[…]. A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência
da escravidão. O trabalho forçado no Novo Mundo foi vermelho, branco, preto e
amarelo; católico, protestante e pagão. […] Eis aí, portanto, a origem da escravidão
negra. A razão foi econômica, não racial; não teve a ver com a cor da pele do
trabalhador, e sim com o baixo custo da mão de obra. Comparada ao trabalho indígena
e branco, a escravidão negra era muito superior. (WILLIAMS, 2012, p.33-50).
Para melhor entender esse tema, podemos nos respaldar, nas contribuições de clássicos
36
como Vladimir Lênin (1870-1924), Antônio Gramsci (1891-1937) e José Carlos Mariátegui
(1894-1930) que, motivados pela necessidade de transformação social da realidade em que
viveram (respectivamente, Rússia, Itália e Peru), ousaram nas análises, hoje tão atuais como em
sua época, pondo em “movimento a dialética na história” e desvelaram particularidades no
desenvolvimento do capitalismo não apenas nessas nações, “mas também para outros países
que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem
passar pela revolução política de tipo radical-jacobino” (GRAMSCI, 2002, p.209-210). Essas
realidades nos colocam como desafios, tendo em vista o objeto desta tese: a) conhecer as
contribuições dos clássicos e a particularidade de cada época; b) entender o movimento
estrutural e conjuntural do modus operandi do capital como também suas expressões e
contradições mais marcantes na permanente dialética entre o “atraso” e o “moderno”, o
“regional” e o “universal”; c) perceber que é incompreensível o debate do desenvolvimento sem
o situarmos historicamente.
Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais […], podemos dizer, por
exemplo, que mesmo o mais deplorável dos seres humanos é mais desenvolvido que
um animal de estimação […]. Nesse caso, o aumento no grau de complexidade poderia
ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido extensivo (aumento da
quantidade de componentes predominantemente sociais como elementos mediadores
da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade dos componentes já
existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como recuo das barreiras
naturais. […] (BONENTE, 2014, p. 277).
12
“Propriedade privada, como antítese da propriedade social, coletiva, existe apenas onde os meios de trabalho e
suas condições externas pertencem a pessoas privadas. Porém, conforme estas pessoas privadas sejam
trabalhadores ou não-trabalhadores, a propriedade privada assume também caráter diferente. Os infindáveis
matizes que a propriedade privada exibe à primeira vista refletem apenas as situações intermediárias existentes
entre esses dois extremos” (MARX, 1984, p.292).
40
13
“[…] o grau de produtividade social do trabalho se expressa no volume relativo dos meios de produção que um
trabalhador, durante um tempo dado, com o mesmo dispêndio de força de trabalho, transforma o produto. A massa
dos meios de produção com que ele funciona cresce com a produtividade de seu trabalho. […] condição ou
consequência, o volume crescente dos meios de produção em comparação com a força de trabalho neles
incorporada expressa a crescente produtividade do trabalho.” (MARX, 1984, p.194).
14
“A superpopulação relativa existe em todos os matizes possíveis. Todo trabalhador faz parte dela durante o
tempo em que está desocupado parcial ou inteiramente. […] ela possui continuamente três formas: líquida, latente
e estagnada. Nos centros da indústria […] trabalhadores são ora repelidos, ora atraídos em maior proporção, de
modo que, ao odo, o número de ocupados cresce, ainda que em proporção sempre decrescente em relação à escala
da produção. A superpopulação existe aqui em forma fluente. […] Assim que a produção capitalista se apodera da
agricultura […] decresce […] a demanda de população trabalhadora rural de modo absoluto […]. Parte da
população rural encontra-se, por isso, continuamente na iminência de transferir-se para o proletariado urbano ou
manufatureiro […]. Essa fonte da superprodução relativa flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante
para as cidades pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo […]. O trabalhador rural é, por
isso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo. A terceira categoria
da superpopulação relativa, a estagnada, constitui parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação
completamente irregular. Ela proporciona, assim, ao capital, um reservatório inesgotável de força de trabalho
disponível. […] É caracterizada pelo máximo do tempo de serviço e mínimo de salário. Sob a rubrica de trabalho
domiciliar, já tomamos conhecimento de sua principal configuração. […] Finalmente, o mais profundo sedimento
da superpopulação relativa habita a esfera do pauperismo. […] o lumpemproletariado propriamente dito, essa
camada social consiste em três categorias. Primeiro, os aptos para o trabalho. […] Segundo, órfãos e crianças
indigentes. Eles são candidatos ao exército industrial de reserva e, em tempos de grande prosperidade […] são
rápida e maciçamente incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Terceiro, degradados, maltrapilhos,
incapacitados para o trabalho. […] O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército ativo de trabalhadores
e o peso morto do exército industrial de reserva. Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa,
sua necessidade na necessidade dela, e ambos constituem uma condição de existência da produção capitalista e do
desenvolvimento da riqueza. […] Quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o exército
industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta geral da acumulação capitalista.”
(MARX, 1984, p.206-209).
41
[…] todas as variáveis básicas desse modo de produção possam [podem], parcial e
periodicamente, desempenhar o papel de variáveis autônomas – naturalmente, não ao
ponto de uma independência completa, mas numa interação constantemente articulada
através das leis de desenvolvimento de todo o modo de produção capitalista. Essas
variáveis abrangem os seguintes itens centrais: a composição orgânica do capital em
geral e nos mais importantes setores em particular (o que também inclui, entre outros
aspectos, o volume de capital e sua distribuição entre os setores); a distribuição do
capital constante entre o capital fixo eu circulante […]; o desenvolvimento da taxa de
mais-valia; o desenvolvimento da taxa de acumulação (a relação entre a mais-valia
produtiva e a mais-valia consumida improdutivamente); o desenvolvimento do tempo
de rotação do capital; e as relações de troca entre os dois Departamentos […]. Nossa
tese é que a história do capitalismo, e ao mesmo tempo a história de suas regularidades
internas e contradições em desdobramento, só pode ser explicada e compreendida
como uma função da ação recíproca dessas seis variáveis.
[…] para Marx as crises não são provocadas unicamente por uma
desproporcionalidade de valor entre vários ramos da indústria, mas também por uma
desproporcionalidade entre o desenvolvimento do valor de troca e do valor de uso,
isto é, pela desproporcionalidade entre a valorização do capital e o consumo
(MANDEL, 1982, p.22).
42
Quaisquer que sejam as “melhorias” que possam ser oferecidas no interior da estrutura
do modo de controle do capital, elas devem ser submetidas aos limites e contradições
da “produção como finalidade da espécie humana”, restrita à riqueza material alienada
como finalidade da produção. As melhorias definidas em tais termos podem, sob o
nível historicamente alcançado de desenvolvimento global do capital excessivamente
expandido, nos prometer apenas mais daquilo que já é excessivo, na quantidade
atualmente disponível, por causa de suas consequências irreversivelmente destrutivas.
(MÉSZÁROS, 2002, p.632).
Como a humanidade não é uma mera sucessão de fatos e etapas, nem poderia ser, é
possível observar que Marx (2008), ao se referir a complexidade das formações sociais, faz
constante referência ao desenvolvimento das forças produtivas e a sua capacidade civilizatória.
Sobre isso, ressaltamos que, no capitalismo, tal desenvolvimento tem sido a alavanca
propulsora do fetichismo da mercadoria. Vejamos:
capital que entra no processo de produção. Este se torna, por sua vez, fundamento para
uma escala ampliada de produção, dos métodos que o acompanham para elevação da
força produtiva do trabalho e produção acelerada de mais-valia. (MARX, 1984, p.195).
Porém, é importante observar que o desenvolvimento das forças produtivas não existe
sem a permanente e complexa articulação com as relações sociais de produção, variando ao
longo da história, o que tornou possível a constituição como também o colapso, em um certo
grau de desenvolvimento, dos modos de produção já existentes diante da contradição entre as
forças produtivas materiais da sociedade e as relações de produção existentes. “De formas
evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se,
então, uma época de revolução social” (MARX, 2008, p.45). Ou, em outras palavras:
Embora as forças produtivas possam se desenvolver ainda mais, isso não altera o fato
de que a missão histórica do capitalismo foi completada. Na verdade, em
determinadas circunstâncias, tal desenvolvimento quantitativo poderia efetivamente
pôr em risco suas conquistas qualitativas. A tese de Lênin de que não há situações
absolutamente desesperadas para a burguesia imperialista não implica que, enquanto
não ocorrer uma revolução socialista, o modo de produção capitalista possa sobreviver
indefinidamente, ao preço de períodos crescentes de estagnação econômica e crise
social. […] a dinâmica do desperdício e destruição do desenvolvimento potencial que
a partir de agora acompanha o desenvolvimento efetivo das forças produtivas é tão
grande, que a única alternativa para a autodestruição do sistema, ou mesmo de toda a
civilização, reside numa forma superior de sociedade. Dessa maneira, apesar de todo
o crescimento internacional das forças produtivas no mundo capitalista [...], a opção
entre 'socialismo ou barbárie' adquire atualmente seu pleno significado. (MANDEL,
1982, p.156).
Lukács (2008, p.161-162) nos aponta as contradições postas na histórica relação entre
processo de trabalho, forças produtivas, necessidades e capacidades humanas:
15
“[...] segundo Marx, a missão histórica do modo de produção capitalista não residia num desenvolvimento
quantitativamente ilimitado das forças produtivas, mas em determinados resultados qualitativos desse
desenvolvimento […] a grande qualidade histórica do capital é criar sobretrabalho” (MANDEL, 1982, p.156).
45
efetivamente aumentar ou não dependerá, entre outros fatores, do grau de resistência revelado
pela classe operária aos esforços do capital para ampliá-la”. (MANDEL, 1982, p.26). Daí a
importância da produção de hábitos, comportamentos e modos de vida, generalizando o projeto
da burguesia como imagem e semelhança de um projeto “de todos”, para a sustentação das
relações sociais antagônicas sob hegemonia do capital.
Nessa direção, é oportuna a crítica de Lowy (2015) a perspectiva etapista que, para o
autor, está presente inclusive na tradição marxista, tendo como premissa uma análise do
desenvolvimento como uma sucessão invariável de etapas históricas, o que constitui, para nós,
uma apropriação do materialismo histórico sob o viés dogmático e economicista. Este tendo
como um de seus representantes o marxista Karl Kautsky, um dos fundadores da social-
democracia alemã, que no início do século XX já sinaliza ser “apenas onde o sistema de
produção capitalista atingiu um alto nível de desenvolvimento que as condições econômicas
permitem ao poder público transformar os meios de produção em propriedade social”.
(KAUTSKY apud LOWY, 2015, p.14). Essa leitura da realidade respaldou uma concepção
sobre a necessária realização de uma revolução “democrático-burguesa” para se desencadear
um processo revolucionário de outra qualidade, a exemplo da revolução socialista. Esta
perspectiva influenciou durante muito tempo os Partidos Comunistas mundo afora. A etapa de
uma “revolução burguesa clássica” 16 como inevitável acabou se tornando, para muitos que
optaram pelos caminhos tortuosos da social-democracia e do revisionismo no referido século,
o objetivo último, tal como para Eduard Bernstein.
O desabrochar da Revolução de Outubro na Rússia, por exemplo, demonstrou, em meio
a condições completamente adversas em termos de desenvolvimento capitalista, que a “história
se move dialeticamente – não unilinearmente –, por meio de inumeráveis combinações, fusões,
descontinuidades, rupturas e saltos súbitos, qualitativos.”. Em outras palavras, revelou o
“caráter multiforme do desenvolvimento social concreto”, fazendo com que um conjunto de
tarefas democráticas não ficasse a cargo da burguesia, mas do proletariado. (LOWY, 2015, p.39-
43).
Esta quase unanimidade entre marxistas e seus críticos mais hostis a respeito da
ligação unilinear entre desenvolvimento econômico e revolução socialista reforçou
uma determinada interpretação do marxismo que alega que o materialismo histórico
provou-se uma análise falida. De fato, se o pensamento de Marx fosse simplesmente
16
“[…] é mais propriamente a Grande Revolução Francesa que fornece a Marx e Engels o protótipo ‘clássico’ da
revolução burguesa; pois, à diferença de sua predecessora inglesa, ‘ela constituiu um corte completo com as
tradições do passado; limpou até o último vestígio de feudalismo’.”. Tal concepção, porém, foi (e continua sendo)
questionada. Segundo Lowy (2015, p.16), Nicos Poulantzas em Poder Político e Classes Sociais, de 1975, é um
dos críticos da ideia de que o padrão exemplar de outras revoluções burguesas tenha sido a francesa.
46
17
“Em primeiro lugar, o termo ‘capitalismo tardio’ não sugere absolutamente que o capitalismo tenha mudado em
essência, tornando ultrapassadas as descobertas analíticas de O Capital, de Marx, e de O Imperialismo, de Lênin.
Assim como Lênin só conseguiu desenvolver sua descrição do imperialismo apoiando-se em O Capital, como
confirmação das leis gerais, formuladas por Marx, que governam todo o decorrer do modo de produção capitalista,
da mesma maneira, atualmente, só podemos intentar uma análise marxista do capitalismo tardio com base no
estudo de Lênin de O Imperialismo. A era do capitalismo tardio não é uma nova época do desenvolvimento
capitalista; constituiu unicamente um desenvolvimento ulterior da época imperialista, de capitalismo monopolista.
Por implicação, as caraterísticas da era do imperialismo enunciadas por Lênin permanecem, assim, plenamente
válidas para o capitalismo tardio”. (MANDEL, 1982, p.4-5).
48
O sistema de crédito público, isto é, das dívidas do Estado […] apoderou-se de toda a
Europa durante o período manufatureiro. O sistema colonial com seu comércio
marítimo e suas guerras comerciais serviu-lhe de estufa. […] A única parte da assim
chamada riqueza nacional que realmente entra na posse coletiva dos povos modernos
é – sua dívida de Estado. Daí ser totalmente consequente a doutrina moderna de que
um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público torna-se
o credo do capital. […] A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas
da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro
improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha
necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação
industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois
a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que
continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro
sonante. […] a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio
com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa
e a moderna bancocracia. […] Com a dívida do Estado surgiu um sistema
internacional de crédito, que frequentemente oculta uma das fontes da acumulação
primitiva neste ou naquele povo. […] A supertributação não é um incidente, porém
muito mais um princípio. […] A influência destruidora que exerce sobre a situação
dos trabalhadores assalariados interessa-nos aqui, entretanto, menos que a violenta
expropriação do camponês, do artesão, enfim, de todos os componentes da pequena
classe média, que ele condiciona. […] Sua eficácia expropriante é fortalecida ainda
pelo sistema protecionista, que constitui uma de suas partes integrantes. […] Nos
países secundários dependentes, toda a indústria foi violentamente extirpada, como,
por exemplo, a manufatura de lã irlandesa, pela Inglaterra. (MARX, 1984, p.288-290).
18
“A mecanização, a padronização, a super-especialização e a fragmentação do trabalho, que no passado
determinaram apenas o reino da produção de mercadorias na indústria propriamente dita, penetram agora todos os
setores da vida social. Uma das características do capitalismo tardio é que a agricultura está se tornando
gradualmente tão industrializada quanto a própria indústria […]. A televisão mecaniza a escola, isto é, a reprodução
da mercadoria força de trabalho. Filmes e documentários de televisão tomam o lugar dos livros e dos jornais. A
'lucratividade' das universidades, academias de música e museus começa a ser calculada da mesma forma que a
das fábricas de tijolos ou de parafusos. Em última instância, todas essas tendências correspondem à característica
básica do capitalismo tardio: o fenômeno da supercapitalização, ou capitais excedentes não investidos, acionados
pela queda secular da taxa de lucros e acelerando a transição para o capitalismo monopolista.” (MANDEL, 1982,
p.271-272).
49
19
“O mundo ainda estaria sem estradas de ferro, caso ficasse esperando até que a acumulação de alguns capitais
individuais alcançasse o tamanho requerido para a construção de uma estrada de ferro. No entanto, a centralização
mediante as sociedades por ações chegou a esse resultado num piscar de olhos. E enquanto a centralização assim
reforça e acelera os efeitos da acumulação, amplia e acelera simultaneamente as revoluções na composição técnica
do capital, que aumentam sua parte constante à custa da sua parte variável e, com isso, diminuem a demanda
relativa de trabalho. As massas de capital soldadas entre si da noite para o dia pela centralização se reproduzem e
multiplicam como as outras, só que mais rapidamente e, com isso, tornam-se novas e poderosas alavancas da
acumulação social. Ao falar, portanto, do progresso da acumulação social - hoje, os efeitos da centralização estão
implícitos.” (MARX, 1984, p.198).
50
A concorrência não deixou de existir. Ao contrário. Dá-se de forma mais violenta através
dos oligopólios numa luta conduzida por intermédio do “barateamento das mercadorias” que
depende diretamente da produtividade do trabalho tendo como arma nessa “luta da concorrência”
o sistema de crédito que se “transforma em enorme mecanismo social para a centralização dos
capitais” (MARX, 1984, p.197).
Nessa nova fase do imperialismo, a internacionalização representa, na verdade, a
reprodução em escala global “de um dos problemas básicos da análise de Marx do capital: a
relação entre o desenvolvimento desigual e a concorrência, que tende a sufocar o
desenvolvimento desigual e ao mesmo tempo é embaraçada por ele”. Afinal, ao contrário dos
muitos apologistas do crescimento e defensores da estabilidade econômica, “o crescimento do
modo de produção capitalista conduz sempre a um desequilíbrio” e consequentemente por um
desnivelamento das taxas de lucro que se expressa de diferentes formas nos territórios distintos
e desiguais. (MANDEL, 1982, p.51). É exatamente sobre esse aspecto que voltamos nossa
atenção, tornando-se central para o entendimento das desigualdades regionais como expressões
significativas da questão social no capitalismo.
Para melhor entender essas contradições, é fundamental lembrarmos das tendências e
leis do desenvolvimento do capitalismo, já brevemente sinalizadas no item anterior, desveladas
a partir da concepção de que tal modo de produção “não se desenvolveu em meio a um vácuo,
mas no âmbito de uma estrutura socioeconômica específica, caracterizada por diferenças de
grande importância” que se expressam territorialmente, em regiões.
As formações sociais, em seu surgimento e desenvolvimento, “reproduzem em formas
e proporções variáveis uma combinação de modos de produção passados e presentes” que não
é reduzida pela “unidade orgânica do sistema mundial capitalista” a um “fator de importância
apenas secundária em face da primazia dos traços capitalistas comuns […]. Ao contrário: o
sistema mundial capitalista é, em grau considerável, precisamente uma função da validade
universal da lei de desenvolvimento desigual e combinado” (MANDEL, 1982, p.14).
O imperialismo, confirma tal constatação, já que se trata de uma fase em que o
capitalismo transformou-se efetivamente em um sistema universal, aprimorando a socialização
da produção, o aperfeiçoamento técnico e a apropriação cada vez mais privada da riqueza frente
a exploração e “subjugação colonial e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da
população do planeta por um punhado de países ‘avançados’”, beneficiando os especuladores.
De acordo com o próprio Lênin (2012, p.124-125):
Embora o Império Germânico chegue a ser o gigante industrial da Europa até o final
do século, não deve ser esquecido que a “Alemanha” de 1844-56 era ainda semifeudal,
pré-industrial e politicamente fragmentada. […] Marx analisou com grande precisão
a característica simultaneamente atrasada e avançada da sociedade alemã […] é a
ameaça “debaixo”, da classe trabalhadora, que faz conservadora a burguesia alemã e
a impede de se tornar uma força revolucionária de qualquer monta. (LOWY, 2015,
p.22-24).
Outro importante exemplo é a realidade italiana que no final do século XIX a tecelagem
doméstica ainda predominava em relação a fabril na produção têxtil. Isto por uma série de
52
fatores, como a ausência de um sistema integrado de transportes. De acordo com Mandel (1982,
p.33-35), não apenas a Itália, mas a Rússia e o Japão são exemplos de países que, até então,
eram considerados “capitalistas em desenvolvimento” que, ao longo do processo de
industrialização e acumulação primitiva, o capital estrangeiro não desempenhou um papel
decisivo. “O capital que sustentou esse movimento era quase exclusivamente nacional. […] Foi
dupla a articulação concreta entre esses países […] e o mercado mundial capitalista. […] os
produtos estrangeiros simplesmente prepararam o terreno para o desenvolvimento do
capitalismo ‘nacional’”.
A realidade desses países já é diferente, por exemplo, daqueles que passaram por um
processo de colonização (e neocolonialismo). Na verdade, sem o papel das “sociedades e
economias […] semi-capitalistas […] seria praticamente impossível compreender traços
específicos de cada estágio sucessivo do modo de produção capitalista” – do “capitalismo
britânico de livre concorrência” até a atualidade. (MANDEL, 1982, p.15). Tais tendências
renovam-se e tomam proporções diferenciadas com o passar do tempo, porém, não desaparecem.
As contradições marcadas centralmente pela relação entre capital e trabalho, pela apropriação
privada da riqueza e pela expropriação do trabalhador coletivo, conformam e organizam
também os territórios, a divisão entre nações e regiões no mundo que se alimentam das
desigualdades existentes entre as mesmas. Daí a motivação, de um lado, para a célebre frase:
“trabalhadores do mundo, uni-vos!”. De outro, para a construção ideológica de nações de
“Primeiro mundo” e de “Terceiro mundo”, ou de países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”,
como se estes assim fossem em virtude da ausência de desenvolvimento capitalista, quando, na
verdade, assim são exatamente por estarem inseridos, de forma particular, neste modo de
produção.
Com o desenvolvimento do capitalismo, mediante sua maturação e complexificação, em
seus diferentes graus e ritmos, acirram-se as contradições presentes no seu próprio modo de ser,
tais como a tendência da queda da taxa de lucro, operando por métodos (anárquicos), que lhe
são próprios, obtendo a luta de classes e a divisão do trabalho uma configuração territorial
diferenciada em relação a períodos anteriores. Assim, o que parece ser, especialmente com a
ascensão do imperialismo, a disputa e luta de um país contra o outro, de um ramo industrial
contra outro, de um setor da economia mundial em relação a outro, trata-se de disputas entre as
classes sociais e suas frações no adensamento da concorrência e na heterogeneidade dessas
mesmas classes que se utilizam das diferenças regionais tornando-as, de forma cada vez mais
aprimorada, desigualdades.
Dito isso, é certo que “o desenvolvimento global do modo de produção capitalista não
53
pode se subordinar à noção de ‘equilíbrio’”, mas a combinação entre crise e períodos acelerados
de produção, de “reprodução ampliada” e “reprodução interrompida”, alimentando esse quadro
de desigualdades que também se expressa territorialmente. Portanto, o discurso do
desenvolvimento e crescimento econômico atrelado a uma concepção de equilíbrio,
planejamento e pleno emprego, supostamente voltados ao bem comum e a uma capacidade
equitativa do capital, frente aos reflexos das crises, cai por terra ao observarmos que, na verdade,
o crescimento econômico, sob o capitalismo, “deve sempre acarretar um desequilíbrio, assim
como ele mesmo é sempre o resultado de um desequilíbrio anterior”. Afinal, “todo o processo
de crescimento da produção capitalista” aciona a “desigualdade crescente de seu
desenvolvimento”. (MANDEL, 1982, p.17-19).
A dinâmica de reprodução ampliada do capital, em meio ao desenvolvimento desigual,
construiu estratégias na busca de superlucros20, com maior tônica em alguns períodos a exemplo
do “imperialismo clássico”, pautadas nas diferenças entre as taxas de lucro das metrópoles e
das colônias e na drenagem de mais-valia para as metrópoles, tais como: a troca desigual21 e a
exportação de capital22; menor composição orgânica do capital e maior taxa média de mais-
valia das colônias através de maior expropriação da força de trabalho, produção de mais-valia
extraordinária23, da existência de um considerável exército industrial de reserva, entre outros,
que refletem diretamente no baixo valor e preço da força de trabalho nas colônias.
20
“Dado o fato da concorrência, 'o anseio incessante por enriquecimento', que é um elemento distintivo do capital,
consiste na realidade na busca de um superlucro, de um lucro acima do lucro médio. Essa procura conduz a
tentativas permanentes no sentido de revolucionar a tecnologia, conseguir menores custos de produção que os dos
concorrentes e obter superlucros, o que é acompanhado por uma composição orgânica do capital mais elevada e,
ao mesmo tempo, por uma taxa crescente de mais valia. Todas as características do capitalismo como forma
econômica estão presentes nessa descrição, características baseadas em sua tendência inerente a rupturas de
equilíbrio. Essa tendência também se encontra na origem de todas as leis de movimento do modo de produção
capitalista”. (MANDEL, 1982, p.17).
21
“A troca de mercadorias produzidas em condições de mais alta produtividade do trabalho por mercadorias
produzidas em condições de mais baixa produtividade do trabalho era uma troca desigual; era uma troca de menos
trabalho por mais trabalho, que inevitavelmente conduziu a um escoamento, a um fluxo para fora de valor e capital
desses países, em benefício da Europa ocidental. A existência de grandes reservas de trabalho barato e terra nesses
países logicamente resultou numa acumulação de capital com uma composição orgânica de capital mais baixa do
que nos primeiros países a se industrializarem” (MANDEL, 1982, p.35).
22
“A exportação de capitais influencia o desenvolvimento do capitalismo no interior dos países em que são
investidos, acelerando-o extraordinariamente. Se, em consequência disso, a referida exportação pode, até certo
ponto, ocasionar uma estagnação do desenvolvimento nos países exportadores, isso tem lugar em troca de um
alargamento e de um aprofundamento maiores do desenvolvimento do capitalismo em todo o mundo. […] A
exportação de capitais, uma das bases econômicas mais essenciais do imperialismo, acentua ainda mais o
isolamento completo da camada dos rentistas da produção e imprime uma marca de parasitismo a todo país que
vive da exploração do trabalho de alguns países e colônias do ultramar”. (LÊNIN, 2012, p.96-138).
23
“Se a demanda normal for satisfeita pela oferta de mercadorias de valor médio, portanto de um valor a meio
caminho dos dois extremos, as mercadorias cujo valor individual estiver abaixo de valor comercial realizarão uma
extraordinária mais-valia ou um superlucro, enquanto aquelas cujo valor individual exceder o valor de mercado
não poderão realizar uma parte da mais-valia nelas contida” (MARX apud MANDEL, 1982, p.69)
54
Marx aduziu outros fatores que, sem serem consubstanciais à atuação da lei [da queda
da taxa de lucros], também contribuíram para atenuar ou deter temporariamente a
queda da taxa de lucro. Um deles, é o comércio exterior, que permite obter bens de
produção e/ou bens-salário mais baratos […]. O outro fator é a exportação de capitais
aos países atrasados, onde a taxa de lucro costuma ser mais elevada, motivo por que
os lucros dos investimentos no exterior impelem para cima a taxa de lucro no país
exportador de capitais. (GORENDER, 1983, p.65).
Ressaltamos que tais ponderações não podem, nem devem, cair no mérito de qual a
classe trabalhadora mais explorada ou, por outro lado, de qual a burguesia menos exploradora:
a imperialista ou aquela que cumpre um papel de “sócio menor do imperialismo”? Vale lembrar
que a mais-valia é proporcional ao desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, melhores
condições materiais, em geral, estão associadas à maior exploração. Todavia, isso não quer
dizer que não existam diferenças intraclasses muito em decorrência das frações existentes nas
classes sociais que, em determinadas formações sociais, são mais presentes ou tênues. Daí as
particularidades também das realidades em que o peso da dependência é operante, o que
trataremos com maior atenção, em território latino-americano, mais adiante. Portanto, longe de
qualquer juízo de valor, nosso propósito é entender o modo operandis, a organização, da
dinâmica capitalista, atentando para o papel da questão regional.
Por ora, adiantamos que, ao contrário do que é propalado, as desigualdades regionais,
expressas nas diferenças entre composições orgânicas do capital, tempo de rotação do capital,
composição do exército industrial de reserva, taxas de lucro, valor de matérias-primas com o
barateamento do capital constante circulante, produtividade do trabalho e valor/preço da força
de trabalho, regido por um movimento conjunto de exportação de capitais, de monopólio da
propriedade e das técnicas, não representam um desequilíbrio ou disfunções do sistema, mas
mecanismos necessários para um aumento na taxa média de lucro como fonte extraordinária de
superlucros.
Por isso, “a intensa exportação de capitais para regiões menos desenvolvidas, que
começou numa escala maciça em meados de 1880, representou portanto uma resposta para” os
problemas do padrão de reprodução capitalista, a exemplo da tendência a queda da taxa de
lucros. Afinal, “o capital imperialista exportado conseguia, agora, superlucros” investindo em
países de economia dependente, com baixa composição orgânica e abundância em matérias-
primas baratas, permitido um aumento da taxa de lucros devido a expansão do exército de
reserva e a consequente redução do preço da mercadoria força de trabalho abaixo do seu valor.
(MANDEL, 1984, p.55-56). Diante dessa realidade, não resta dúvida de que a constituição do
mercado mundial via imperialismo viabilizou, na verdade, um “sistema internacional
hierarquizado e diferenciado de níveis variáveis de produtividade do trabalho”, incidindo
55
fortemente sob a divisão do trabalho criada no século XIX. (MANDEL, 1984, p.57).
Destacamos que as características historicamente constitutivas dos países dependentes
incidiram sob uma formação particular das classes sociais, síntese de uma modernização cuja
herança encontra-se em relações coloniais, ou seja, na moderna escravização. Esta marca é
atravessada pela forte presença da questão agrária, agravada pela ausência de reformas
estruturais que, diferente de outras nações, não foram demandadas pelo desenvolvimento
capitalista, a exemplo da reforma agrária. Ao contrário, pois a presença do latifúndio foi uma
exigência para os superlucros mediante a superexploração – mais adiante trabalhada por nós –
e a garantia de uma força de trabalho a baixo custo, tensionada permanentemente por uma
superpopulação relativa formada, em boa parte, por trabalhadores rurais afastados e destituídos
de suas terras. Essa fração será parte constitutiva do semiproletariado ou subproletariado nos
países dependentes cujas novas necessidades não serão incorporadas aos seus salários. Tudo
isso interferirá diretamente nas experiências e nas formas de organização política dessas classes
sociais, por exemplo, do Brasil e, mais ainda, da região Nordeste, o que implica que tais
aspectos são fundamentais para a constatação da nossa tese, ratificando o peso não apenas do
atraso nesta região como também o seu papel para o último ciclo expansivo do capital no país.
Em termos econômicos, tais condições influenciaram na atrofia do mercado interno e
na desaceleração da acumulação (primitiva) nesses territórios, continuamente expropriados
pelo capital estrangeiro, sufocando o desenvolvimento econômico por parte das classes
dominantes locais, concentrando “os recursos remanescentes nos setores que se tornariam
característicos do ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’ […] ou do ‘desenvolvimento da
dependência’ […]: comércio exterior, serviço de influência para as firmas imperialistas,
especulação com a terra e a construção imobiliária […]” (MANDEL, 1982, p.36).
excesso de força de trabalho, ao invés de trazer força de trabalho para onde haja excesso de
capital; de outra parte”, intensificando a automação e concentrando “investimentos para liberar
tanto trabalho vivo quanto possível” (MANDEL, 1984, p.128); d) o crescimento da
produtividade, mecanização e industrialização na agricultura, conjugado com a herança
latifundiária e com a atrofia de outros setores industriais e produtivos, reposicionando as
economias dependentes no mercado mundial e aprofundando a questão agrária; e) a ampliação
da divisão social do trabalho por meio da expansão da esfera improdutiva e de funções
intermediárias nos setores de serviços, comércio e transportes conjugada ao aumento da
precarização do trabalho e ao avanço da privatização de serviços públicos. (MANDEL, 1984,
p.269).
Desse processo, o resultado certamente é aumento da dependência e a ausência de
soberania nacional, sendo que o “fluxo principal das exportações de capital não se dá mais das
metrópoles para as colônias, mas entre os próprios Estados metropolitanos. Nos países
subdesenvolvidos, a ênfase dos investimentos estrangeiros deslocou-se da pura produção de
matérias-primas para a fabricação de bens de consumo.” (MANDEL, 1984, p.245). Tudo isso
para garantir a redução do tempo de rotação do capital fixo, os superlucros, a diminuição do
custo do capital constante, o aumento da taxa de mais-valia relativa, dentre outras características
predominantes no capitalismo tardio. Por outro lado, tais medidas incidem sob a reprodução
com maior tônus das contradições sociais e as dificuldades crescentes da realização da mais-
valia no capitalismo tardio refletidas e evidenciadas, por exemplo, na grande expansão do
crédito ao consumidor como também no endividamento privado dos Estados. Daí o
entendimento de que a fase contemporânea do capitalismo está associada as características
diferenciadas dos ciclos capitalistas, entre expansão e estagnação, onde este polo passa a ser
mais agudo e duradouro. Por isso, corroboramos com Mandel (1984, p.126-128) quando nos
diz o seguinte:
necessário”:
24
“[...] a marca distintiva do imperialismo e de sua segunda fase, o capitalismo tardio, não é um declínio nas forças
de produção mas um acréscimo no parasitismo e no desperdício paralelos ou subjacentes a esse crescimento. A
incapacidade inerente ao capitalismo tardio, de generalizar as vastas potencialidades da terceira revolução
tecnológica ou da automação, constitui uma expressão tão forte dessa tendência quando a sua dilapidação de forças
produtivas, transformadas em forças de destruição: desenvolvimento armamentista permanente, alastramento da
fome nas semicolônias […], contaminação da atmosfera e das águas, ruptura do equilíbrio ecológico, e assim por
diante […]. Em termos absolutos, na era do capitalismo tardio vem ocorrendo uma expansão mais rápida nas forças
produtivas do que em qualquer outra época. […] No entanto, o resultado é lastimável […] continua plenamente
justificada a definição de Lênin do imperialismo como uma fase da 'decadência crescente do modo de produção
capitalista'. O desperdício de forças reais e potenciais de produção pelo capital aplica-se não só às forças materiais,
mas também às forças produtivas humanas. […] A ciência podia se tornar efetivamente uma força produtiva direta.
[…] A visão profética esboçada por Marx e Engels de uma sociedade na qual 'o livre desenvolvimento de cada um
é a condição para o livre desenvolvimento de todos', e na qual a riqueza efetiva se origina na 'produtividade
desenvolvida de todos os indivíduos', poderiam agora se tornar realidade praticamente palavra por palavra. […] A
pior forma de desperdício, inerente ao capitalismo tardio, jaz no mau uso das forças de produção humanas e
materiais existentes; em vez de serem usadas para o desenvolvimento de homens e mulheres livres, são cada vez
mais empregadas na produção de coisas inúteis e perniciosas. Todas as contradições históricas do capitalismo estão
concentradas no caráter duplo da automação. […] empobrecimento moral e intelectual. A automação capitalista,
desenvolvimento maciço tanto das forças produtivas do trabalho quanto das forças alienantes e destrutivas da
mercadoria e do capital, torna-se dessa maneira a quintessência objetivada das antinomias inerentes ao modo de
produção capitalista”. (MANDEL, 1984, p.151-152).
60
Brasil, especialmente na região Nordeste. Porém, esse tema será melhor trabalhado mais adiante.
O movimento analítico que realizamos até então nos permite entender, a priori, que o
capitalismo atua historicamente sob a contraditória relação entre ritmos diferenciados e
particulares de desenvolvimento, (re)configurando, a partir dessas diferenciações, as regiões
que, ao contrário do que é comumente disseminado, não são determinadas pela natureza
geográfica, mesmo que haja incidência deste fator. Essa dinâmica é produzida e reproduzida
em proporções distintas, não apenas entre continentes e nações, mas dentro dos próprios países
e das próprias regiões.
A noção que tratamos aqui de região 25 é distinta daquela prevalecente nas formações
pré-capitalistas, sendo sua existência associada à divisão social (e regional) do trabalho e a
centralização do poder e do capital. Assim, “a divisão do trabalho em geral está relacionada
diretamente à divisão territorial do trabalho, à especialização de certas regiões na produção de
um único artigo, às vezes de uma única variedade de um artigo e até de uma única parte de um
artigo. [...] A manufatura não cria apenas regiões completas, mas introduz a especialização no
interior mesmo dessas regiões”. Isto, porém, contraditoriamente, nos diz que “a existência de
matéria-prima num dado local não é, de modo algum, obrigatória para a manufatura e
dificilmente seria comum a ela, já que a manufatura pressupõe relações comerciais já bastante
amplas”. (LÊNIN, 1982, 275-276).
O desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo que demanda o processo de
homogeneização para sua reprodução ampliada, ou seja, romper com as diferenças regionais e
integrar as regiões no mesmo modo de produção – daí a importância fundamental do Estado –,
cria e aprofunda, pelos mesmos meios, as desigualdades regionais. Nesse sentido, a região é
“produto-produtora das dinâmicas concomitantes de globalização e fragmentação […] dos
processos de diferenciação social” (HAESBAERT, 2010, p.07). Trata-se, dessa forma, de uma
espécie de arena de atuação dos diferentes sujeitos sociais vinculados à sociedade política e a
25
“[…] a região pode ser pensada praticamente sob qualquer ângulo das diferenciações econômicas, sociais,
políticas, culturais, antropológicas, geográficas, históricas. […] privilegia-se aqui um conceito de região que se
fundamente na especificidade da reprodução do capital, nas formas que o processo de acumulação assume, na
estrutura de classes peculiar a essas formas e, portanto, também nas formas da luta de classes e do conflito social
em escala mais geral.” (OLIVEIRA, 1993, p. 27).
61
O que estamos a adiantar aqui é que, assim como o movimento do capital, as regiões
não estão estanques, mesmo que as mudanças nos “papéis regionais” se tornem cada vez menos
amiúde no período de capitalismo monopolista, tardio. Para Francisco de Oliveira (1993, p.30),
26
A sociedade civil pode ser didaticamente compreendida como o conjunto de instituições responsáveis pela
representação dos interesses de diferentes grupos sociais, bem como pela elaboração e/ou difusão de valores
simbólicos e de ideologias, como igrejas, meios de comunicação de massa, escolas, partidos, etc. Estes aparatos
podem também ser denominados de aparelhos “privados” de hegemonia. Gramsci coloca aspas na palavra
“privados” para chamar a atenção que os aparelhos privados de hegemonia, mesmo com esse nome, são
indiscutivelmente públicos.
62
uma região “tende a desaparecer – embora alguns exemplos históricos atuais deem conta de sua
longa resistência [...] - na mesma medida em que as várias formas do capital se fusionam [...]”,
a exemplo da constituição do capital financeiro que impulsiona, dentre outras, transformações
na relação entre urbano e rural. Em outras palavras, “a relação 'zona industrial - região agrícola'
não permanece eternamente congelada sob o capitalismo. […] não haverá motivo pelo qual uma
zona que se industrializou cedo não se transforme numa área relativamente atrasada ou que um
antigo distrito agrícola não se torne uma área de concentração industrial”. (MANDEL, 1982,
p.71). Portugal, como antiga potência colonizadora, hoje compondo a periferia da Europa, e o
próprio avanço do agronegócio no Brasil, além de outros tantos exemplos, como o caso da
China e da Índia e o papel que esses países têm tido no desenvolvimento capitalista, poderiam
servir como ilustração a tal dinamização regional. Esta, vale ressaltar, possui configuração
radicalmente distinta no capitalismo, especialmente na fase imperialista, impondo maiores e
diferentes limites às possibilidades que têm os países não imperialistas em face das potencias
imperialistas, sendo muito estreitas as margens que permitem mudanças de posições entre eles.
Isto tendo em vista que as potências dominam historicamente pelas condições econômicas
criadas, o que não anula a condição do movimento do capital alterar permanentemente o
desenvolvimento das regiões e dos países. (LÊNIN, [1917] 2012).
Para tanto, assim como é fundamental alterar mecanismos que diminua o tempo de
rotação do capital, diante de um espaço cada vez mais ampliado em que opere esse movimento,
na (re)configuração regional assumem uma importância central os meios de comunicação e
transporte, podendo levar a “ascensão de alguns centros de produção e ao declínio de outros”,
prejudicando ou contribuindo para a formação de mercados nacionais. (MANDEL, 1982, p.71).
Essa perspectiva rompe com uma visão determinista sobre as regiões.
27
“A lei do desenvolvimento desigual e combinado traduz-se, assim, no processo de regionalização que diferencia
não só países entre si como, em cada um deles, suas partes componentes, originando regiões desigualmente
desenvolvidas mas articuladas. Sob o capitalismo queremos crer que a noção de combinação deve ser
explicitamente referida não apenas à coexistência no mesmo território de diferentes modos de vida, mas também
à articulação espacial destes territórios. A região pode ser vista como um resultado da lei do desenvolvimento
desigual e combinado, caracterizada pela sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela
associação de relações de produção distintas. Estes dois aspectos vão traduzir-se tanto em uma paisagem como em
uma problemática, ambas específicas de cada região, problemática que tem como pano de fundo a natureza
específica dos embates que se estabelecem entre as elites regionais e o capital externo à região e dos conflitos entre
as diferentes classes que compõem a região. Os conflitos oriundos dos embates entre interesses internos, bem como
entre interesses internos e externos, podem gerar uma desintegração da região, que se exprimirá na sua paisagem.
Tendo isto em vista, pode-se dizer que a região é considerada uma entidade concreta, resultado de múltiplas
determinações, ou seja, da efetivação dos mecanismos de regionalização sobre um quadro territorial já previamente
ocupado, caracterizado por uma natureza já transformada, heranças culturais e materiais e determinada estrutura
social e seus conflitos. […] Ela [a região] não tem nada da preconizada harmonia, não é única […], mas particular,
ou seja, é uma especificação de uma totalidade da qual faz parte através de uma articulação que é ao mesmo tempo
funcional e espacial. Ou, em outras palavras, é a realização de um processo geral, universal, em um quadro
territorial menor, onde se combinam o geral […] e o particular […]. Acreditamos, com base na lei do
desenvolvimento desigual e combinado, que, neste caso, o processo de regionalização terá seu curso, refazendo
regiões ou áreas diferenciadas”. (CORRÊA, 1986, p.45-46).
64
[…] a “região” não seria um outro modo de produção, nem uma formação social
singular. O que preside o processo de constituição das “regiões” é o modo de produção
capitalista, e dentro dele, as “regiões” são apenas espaços sócio-econômicos onde uma
das formas do capital se sobrepõe às demais [...]. Não reconhecer [...] que existem
marcadas diferenças entre as várias formas de produção do valor dentro do capitalismo
é não reconhecer, em primeiro lugar, e a nível mais abstrato, a lei do desenvolvimento
desigual e combinado, e mais concretamente, o processo de constituição do próprio
capital enquanto relação social. (OLIVEIRA, 1993, p.30).
universalmente e regionalmente. Ou seja, não pode ocorrer regularmente, tal e qual, em toda
parte. (MARX, 1984, p.204).
Por isso chamamos a atenção para momentos de recomposição da classe trabalhadora,
- como o recente ciclo de desenvolvimento no Brasil dos anos 2000 -, em geral, marcados pela
diminuição do desemprego e aumento real do salário-mínimo que, no entanto, não anulam as
diferenças regionais de salário, mas são possíveis exatamente pela existência destas. Caso todos
os fatores fossem iguais, um aumento na composição orgânica do capital implicaria
imediatamente uma queda brusca na taxa de lucros.
Ainda de acordo com Marx (1984), para conter essa queda, dois fatores são muito
importantes: o barateamento dos elementos do capital constante e o aumento da taxa de mais-
valia. Isto só é possível sob a dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado entre as
regiões, territórios e setores da sociedade, ou seja, sob disparidades regionais que representam,
na verdade, a organização territorial da combinação entre o atraso e o moderno, constituindo as
diferentes sociedades e economias no sistema mundial. Diante disso, é certo que não se trata de
um “dualismo estrutural” entre regiões tidas como “atrasadas” e aquelas tidas como “modernas”.
Por isso, corroboramos com o que nos diz Francisco de Oliveira (1993, p.29):
O que de fato ocorre é que o desenvolvimento capitalista se depara com “várias porções
da humanidade em diferentes estágios [e ritmos] de desenvolvimento, cada uma com suas
próprias e profundas contradições internas”. Gradualmente esse desenvolvimento “conquista a
supremacia em relação à desigualdade herdada, quebrando-a e alterando-a, passando a
empregar seus próprios recursos e métodos”, o que produz uma relativa equiparação dos níveis
“econômico e cultural entre os países mais adiantados e os mais atrasados”. Todavia, nos diz
Trotsky (apud MANDEL, 1982, p.15):
Lênin, por exemplo, “se movia no interior de uma sociedade cuja estrutura de poder era
absolutamente autocrática, onde o emergente proletariado não dispunha de tradições
organizativas nem experiência política” (NETTO, 1982, p.09). No embate às ideias vigentes de
sua época, se desenvolveu uma das primeiras interpretações marxistas da emergência do
capitalismo numa sociedade de base fundamentalmente agrária. O trato sobre o tema da questão
agrária, relacionado ao processo de desintegração do campesinato, de criação do mercado
interno, das reconfigurações das relações de trabalho no latifúndio e das demais transformações
nas relações agrárias, expressões das contradições inerentes à economia mercantil e capitalista,
assegura a afirmação de Netto (1982, p.17) sobre o pensador russo: “Lênin realiza uma
importantíssima investigação sobre uma forma particular de transição do feudalismo ao
capitalismo […] ressaltando o caráter combinado e heteróclito da economia agrícola privada
[…]”.
68
Nesse sentido, para Vieira (2006, p.146-147), as análises de Lênin demonstram que a
Rússia segue o modelo de modernização das nações que, na segunda metade do século XIX
transitaram para o capitalismo industrial “pelo alto”, isto é, pela via prussiana. “Foi o ingresso
de capitais europeus, franceses e ingleses principalmente, que viabilizou o ‘salto’ de
desenvolvimento do russo, queimando as etapas que, em alguns países europeus, a exemplo da
Alemanha, se tornaram rigorosamente necessárias”.
Ao analisar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia na transição do século XIX
para XX, com o enfoque no processo de formação do mercado interno para a grande indústria,
Lênin (1982, p.370-372) identifica o papel das províncias periféricas, das colônias, da expansão
mercantil e da própria desigualdade regional. Vejamos:
de baixo” e com “ausência de uma iniciativa popular unitária […], bem como o
desenvolvimento deu-se como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico,
elementar, não orgânico, das massas populares”.
É claro que, assim como em outras realidades, o Peru do início do século XX sofreu
consideráveis transformações, em quantidade e qualidade, exigidas pela própria dinâmica
capitalista, mesmo que particular. Um exemplo disso é o aumento demográfico, especialmente
nas cidades. “Os indígenas, que representavam três quartos da população, hoje só representam
28
“A defesa da 'comunidade' indígena não repousa em princípios abstratos de justiça nem em considerações
sentimentais e tradicionalistas, mas, sim, em razões concretas e práticas de ordem econômica e social. A
propriedade comunal não representa no Peru uma economia primitiva substituída gradualmente por uma economia
progressista fundada na propriedade individual. Não; as 'comunidades' foram despojadas de suas terras em proveito
do latifúndio feudal ou semifeudal, constitucionalmente incapaz de progresso técnico. […] A 'comunidade', ao
contrário, por um lado, acusa capacidade efetiva de desenvolvimento e transformação e, por outro, se apresenta
como um sistema de produção que mantém vivos no índio os estímulos morais necessários para seu rendimento
máximo como trabalhador. […] Dissolvendo ou relaxando a 'comunidade', o regime do latifúndio feudal não
apenas atacou uma instituição econômica, mas também, e sobretudo, uma instituição social que defende a tradição
indígena, que conserva a função da família camponesa e que traduz esse sentimento jurídico popular ao qual tão
alto valor atribuem Proudhon e Sorel” (MARIÁTEGUI, 2010, p.96-99).
71
A Itália moderna, para Gramsci (2004), nos mostra o quanto o país é atravessado por
uma cisão histórica, estrategicamente utilizada pelos setores dominantes, entre o Norte,
“industrializado” e “desenvolvido”, e o Sul, “agrário” e “atrasado”, fazendo das diferenças entre
as regiões um grande motivo para sobrepô-las hierarquicamente e fortalecer as desigualdades
regionais. Na verdade, poderíamos associar tais diferenças a “forma de como o capital articula
os diferentes modos de produção”, ou formações sociais historicamente distintas, “no interior
do território e determina as alianças entre as respectivas classes hegemônicas, tanto no espaço
nacional (a burguesia industrial do norte) quanto no regional (os grandes proprietários de terra
do sul)”. Essas alianças, inclusive, representaram a demanda por homogeneização diante das
fortes barreiras regionais, viabilizando o Risorgimento e a unificação italiana em torno do
Estado moderno através de uma revolução passiva, “em que a aristocracia sulista aceita a
hegemonia da burguesia nortista para manter inalterada a estrutura fundiária e o domínio
político sobre a região”, evitando uma maior desagregação regional e uma revolução popular,
especialmente por parte dos camponeses localizados no Sul do país. (VIEIRA, 2006, p.142).
Tais circunstâncias constituem a chamada “questão meridional” ou o Mezzogiorno29 como uma
29
“[...] Gramsci aponta a necessidade de 'dar importância especialmente à questão meridional, isto é, à questão em
que o problema das relações entre operários e camponeses se coloca não apenas como um problema de relação de
classe, mas também, e especialmente, como problema territorial, isto é, como um dos aspectos da questão nacional'
(L, 130). O III Congresso do Partido Comunista da Itália trata amplamente da questão meridional como o aspecto
principal, com a questão vaticana, da mais ampla questão agrária, que é, pois, o modo de analisar o caso específico
da formação histórica e da composição do Estado italiano. O partido deve se mover em duas frentes: de fato, é
necessário que ele 'destrua no operário industrial o preconceito inculcado pela propaganda burguesa de que o
Mezzogiorno é uma bola de chumbo que se opões aos grandes desenvolvimentos da economia nacional, e que
destrua no camponês meridional o preconceito, ainda mais perigoso, por meio do qual ele vê no norte da Itália um
só bloco de inimigos de classe' […]. Na verdade, a ruptura do bloco histórico tradicional e a construção de um
73
“chave” para entender a tônica do desenvolvimento do capitalismo na Itália, o que, para muitos,
pode ser associada a alguns episódios presentes na história do Brasil, como aqueles
desencadeados a partir dos anos 30.
A formação dos Estados Unidos também sinaliza alguns aspectos importantes sobre as
particularidades do desenvolvimento capitalista e a configuração da sua face regional.
Conformado a partir da unificação de antigas colônias inglesas na América do Norte, o país
também possui uma forte diferenciação territorial entre o Norte e o Sul. O Norte historicamente
conformado com maior presença de atividades econômicas mais voltadas para o mercado local,
interno, com base em pequenas e médias propriedades agrícolas, além de um maior
desenvolvimento industrial e menor peso do trabalho escravo em relação ao território nacional.
Em contraponto, o Sul estadunidense possui como peso histórico a forte presença da escravidão
negra, de atividades agrícolas (algodão, tabaco, etc.) com base no monocultivo, nas grandes
propriedades e na exportação para o mercado europeu30.
O nascimento dos Estados Unidos […] foi, sem dúvida, um fato revolucionário na
história do sistema mundial, por ser o primeiro estado nacional que se formou fora do
território europeu. Mas esta revolução não caiu do céu, ela foi provocada pelas
contradições do sistema […]. Por isso, os Estados Unidos foram uma novidade, porém,
não foram uma exceção […]. No século XX, os Estados Unidos assumiram a liderança
do sistema que havia sido dos europeus e levaram ao extremo sua tendência
contraditória à formação de um império mundial e, ao mesmo tempo, ao
fortalecimento do seu poder nacional. […] Mas, apesar destas diferenças e da
especificidade norteamericana, os Estados Unidos apresentaram […] uma tendência
expansiva que não se encontra nos demais estados “tardios” que foram criados na
América Latina, no início do século XIX. […] Do ponto de vista geopolítico, o fator
que mais pesou na independência e na formação do estado americano foi ter ocorrido
enquanto as Grandes Potências disputavam a hegemonia européia, entre o fim da
Guerra dos Sete Anos, em 1763, e o fim das guerras napoleônicas, em 1815. […] o
ponto decisivo que diferencia a formação da economia americana, durante as
primeiras décadas de vida independente, é sua relação complementar, funcional e
privilegiada com a economia inglesa, naquele momento, a principal economia
novo bloco social anticapitalista, constituído por operários e camponeses, é para Gramsci, em Alguns temas da
questão meridional, o caminho a ser seguido para enfrentar a questão meridional associando sua qualidade
nacional àquela de classe […] superar a forma da unidade nacional típica do Risorgimento, baseada na anexação
das regiões do Sul, para desenvolver um sentimento real de nação, por meio do protagonismo das massas
camponesas meridionais no processo histórico […], bem como, contemporaneamente, construir 'uma aliança
política entre operários do Norte e camponeses do Sul para afastar a burguesia do poder de Estado […]. 'O
Mezzogiorno pode ser definido como uma grande desagregação social […]. A sociedade meridional é um grande
bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa amorfa e desagregada, os intelectuais
da pequena e média burguesia rural, os grandes proprietários fundiários e os grandes intelectuais […]; isso permite
conservar o status quo, tanto meridional quanto setentrional, representando um elemento regressivo de dimensão
nacional”. (DURANTE, 2017, p.665-666).
30
“Entre 1820 e 1830, mais de um terço das exportações americanas foi para a Inglaterra, e os Estados Unidos
obtiveram um sexto das exportações britânicas, o que constituía mais de 40% do total de suas importações. Em
1821, os Estados Unidos ficaram com um sétimo das exportações britânicas, e em 1832 com um nono; o valor das
exportações aumentou 10%. As compras britânicas de algodão do Sul dos Estados Unidos estimularam o
crescimento do reino algodoeiro; bancos estatais e privados do sul do país pegavam empréstimos em Londres”
(WILLIAMS, 2012, p.188).
74
Porém, tal experiência diferenciou-se, tendo em vista que “a vitória dos ideais
revolucionários, alcançados nas guerras da Independência e de Secessão, possibilitaram a
solução democrática do problema da terra (com a consequente eliminação dos excedentes de
mão-de-obra)” nos EUA, permitindo uma “melhor distribuição da riqueza nacional”, a
formação de um mercado interno e a presença de uma “forte classe média no campo”, tornando-
se base do regime liberal no país. (GUIMARÃES, 2008, p.33). A particularidade dessa
realidade, que para Mandel (1982, p.26-27) já era identificada por Marx repetidas vezes, dentre
outros aspectos, pode ser percebida no fato de os salários terem sido altos desde o início, mas
em decorrência de quais fatores? Esse fenômeno, observa o autor, não se dava em função da
alta produtividade do trabalho por si, “mas da crônica escassez de força de trabalho provocada
pela fronteira; portanto, a alta produtividade do trabalho nos Estados Unidos não foi a causa,
mas o resultado de altos salários, e consequentemente foi acompanhada, durante um período
bastante longo, por uma taxa de lucro mais baixa do que na Europa”. Tal exemplo demonstra o
quanto as relações sociais extrapolam a regra, não sendo o “grau de resistência do proletariado
[...] o único determinante que leva a taxa de mais-valia a se tornar uma variável parcialmente
independente da taxa de acumulação: a situação histórica original do exército industrial de
reserva também desempenha um papel decisivo”.
Retomando o exemplo russo, onde “população da gigantesca planície, com seu clima
rigoroso, exposta ao vento e às migrações asiáticas, estava destinada, pela própria natureza, a
uma prolongada estagnação”, a problemática envolvendo os nômades esteve muito presente,
fortalecendo a condição de centralidade das regiões do extremo Sul e Leste do país como
principais no capitalismo agrário russo. (LÊNIN, 1982). “A agricultura – base de todo o
desenvolvimento – progredia de maneira extensiva: no Norte cortavam-se e queimavam-se
florestas; no Sul desorganizavam-se as estepes virgens. Tomava-se posse da natureza em
extensão e não em profundidade”. É inevitável não pensar, diante dessa caracterização, nos
pontos de semelhança com outras diferentes realidades que, mesmo não tendo vivenciado um
período feudal, têm como marca em sua formação as migrações como fruto do peso de
fenômenos sociais, travestidos de argumentos deterministas, como se a estagnação fosse
estabelecida pela própria natureza regional, a exemplo do Brasil e, particularmente, do Nordeste
brasileiro. Contudo, sobre esta realidade, nos debruçaremos mais a frente.
75
Por ora, ressaltamos que todo processo de formação social russa esteve marcado pela
paradoxal relação entre Ocidente e Oriente, território onde o Estado assume uma importância
central em sua configuração particular, autocrática, no período pré-revolucionário, não apenas
condenando as classes populares a uma redobrada miséria, mas ainda enfraquecendo os setores
possuidores. “Como resultado, as classes privilegiadas, burocratizadas, jamais conseguiram
erguer-se em toda a sua pujança, e o Estado russo não fez senão aproximar-se ainda mais dos
regimes despóticos da Ásia.” (TROTSKY, 1977, p.23-25).
Vale mais uma vez lembrar as conexões existentes entre esta realidade e aquela que
priorizamos no desenvolvimento da tese, tendo em vista que a “autocracia burguesa” é um
aspecto também relevante nas análises sobre a realidade brasileira presentes nas obras de
importantes intérpretes do Brasil, a exemplo de Florestan Fernandes (2006), com os quais
dialogaremos mais adiante.
Dentre as particularidades dos primórdios do desenvolvimento capitalista na Rússia,
está a condição do artesanato não ter conseguiu se desvincular da agricultura, diferentemente
de outras realidades. As cidades eram centros de consumo, não de produção. Já o comércio era
voltado fundamentalmente para o estrangeiro, evidenciando um “papel dirigente” do capital
comercial externo em um ambiente caracteristicamente “semifeudal”. “Na falta de uma
democracia industrial nas cidades, a guerra camponesa não se poderia transformar em revolução
assim como as seitas religiosas das aldeias não puderam atingir a Reforma.”. Havia, portanto,
uma clara intenção por parte das classes dominantes de combinar o regime liberal com as bases
de dominação de casta. (TROTSKY, 1977, p.27). Portanto, a questão agrária, diferentemente
de outros países, tornou-se uma problemática essencial na Rússia tzarista.
Pode-se afirmar, sem receio de exagero, que o centro de controle das ações emitidas
pelos bancos, pelas fábricas e manufaturas russas encontrava-se no estrangeiro e a
participação da Inglaterra, da França e da Bélgica no capital atingia o dobro da
participação alemã. As condições em que se organizou a indústria russa, a própria
estrutura desta indústria, determinaram o caráter social da burguesia do país e sua
fisionomia política. A forte concentração da indústria demonstra por si mesma que
entre as esferas dirigentes do capitalismo e as massas populares não existia hierarquia
intermediária. […] o reservatório de onde saia a classe operária russa não era um
artesanato corporativo: era o meio rural; não a cidade, mas a aldeia. É preciso notar
que o operariado russo se formou não paulatinamente […]. A incapacidade política da
burguesia era diretamente determinada pelo caráter de suas relações com o
proletariado e os camponeses. [...] a burguesia era igualmente incapaz de arrastar a
classe camponesa porque estava enredada nas malhas de interesses comuns com os
proprietários de terras e porque temia um abalo da propriedade [...]. Se, portanto, a
revolução russa tardou em rebentar, não foi tão somente por motivo cronológico: a
culpa desta demora cabe também à estrutura social da nação. (TROTSKY, 1977, p.29-
30).
76
velho regime se torna intolerável às massas”, a destruição das “muralhas que as separam da
arena política”, a derrocada dos seus representantes tradicionais e criação de “uma posição de
partida para um novo regime. Seja isto um bem ou um mal, cabe aos moralistas julgá-lo.”
(TROTSKY, 1977, p.15).
Assim, para além de toda a relação colonial que configurará a condição de dependência,
o capitalismo desenvolveu configurações regionais diferenciadas mesmo nas regiões ditas
centrais. Tais conformações são atravessadas fundamentalmente pela unidade entre o “mais
arcaico” e o “mais moderno”. E é exatamente o peso do atraso no desenvolvimento desigual e
combinado que explica determinadas particularidades como o caso russo, já ressaltadas por
Trotsky (1977) e Lênin (1982). Observemos o que o próprio Trotsky (1977, p.24-25) nos fala
sobre isso:
sociais bastante distintivo, desbancando qualquer propensão a uma análise etapista e linear da
história 31. Debate, este, central no tema da Revolução Brasileira, carregado por muitos embates
e polêmicas durante o século XX que, em parte, abordaremos no próximo capítulo.
Em outras palavras, o atraso em sociedades como a russa, até início do século XX, não
supõe que haja uma reprodução tardia neste país da história das nações da Europa Ocidental. A
Rússia não foi, nem será, uma Inglaterra ou uma França. A Rússia representa uma formação
social particular no sentido de assumir uma determinada posição no conjunto das relações
sociais que conformam o padrão de acumulação capitalista. Assim, “o incontestável atraso da
evolução russa, sob a influência e a pressão da cultura ocidental mais elevada, não conduz
apenas a uma simples repetição do processus histórico da Europa ocidental, mas determina
profundas particularidades que devem constituir, isoladamente, um assunto de estudo...”.
(TROTSKY, 1977, p.386).
Contraditoriamente, a condição de atraso na Rússia proporcionou um salto de
desenvolvimento. “Na realidade, a possibilidade de um progresso assim rápido era
precisamente determinada pelo estado atrasado do país”, o que, entretanto, não servirá de regra
para as demais formações sociais. Porém, é certo que, na condição de atraso, o incentivo ao
desenvolvimento das forças produtivas pode promover saltos, um rápido progresso, em relação
ao desenvolvimento “clássico” do capitalismo. É o que ocorreu, por exemplo, com a indústria
russa. “Tardiamente nascida [….] não percorreu, desde o início, o ciclo dos países adiantados,
porém neles se incorporou, adaptando ao seu estado atrasado as conquistas mais modernas”,
passando por cima de processos exigidos no desenvolvimento industrial de muitos países do
Ocidente como os períodos do “artesanato corporativo e da manufatura”. Dessa forma, a
“indústria russa desenvolveu-se em certos períodos com extrema rapidez. Entre a primeira
revolução e a guerra a produção industrial da Rússia quase dobrou”. (TROTSKY, 1977, p.28).
31
Aqui ressaltamos uma questão de ordem metodológica importante que diz respeito à distinção entre “etapas” e
“etapismo”. Identificar a necessidade de uma determinada etapa necessária para a revolução não significa a crença
cega a uma ou outra etapa, ou seja, não significa “etapismo”. Por exemplo, em 1905 Lênin defendia a necessidade
de uma revolução democrático-burguesa na Rússia. Além disso, há uma outra coisa: é importante considerar,
sempre, qual classe encarna o protagonismo para a consecução de um processo revolucionário que conduza a uma
nova etapa da história. O proletariado pode encarnar o protagonismo de uma revolução democrático-burguesa no
lugar da própria burguesia. Sobre isto, Florestan Fernandes ([1968] 2008, p.65) nos diz o seguinte: “[...] dadas
certas premissas, em um país atrasado uma classe social pode desempenhar as tarefas de outra e promover, assim,
um salto qualitativo na história. Essa é a forma dialética de resolver o assunto. Não é preciso que o regime de
classes esteja ‘completamente desenvolvido’ para que o proletariado realize suas tarefas revolucionárias (a as que
não foram alcançadas pela burguesia).”. Assim, o debate crítico em torno do “etapismo” deve conduzir ao correto
trato dialético das relações entre o atraso e o moderno. Aqui cabe mais uma observação: mesmo não corroborando
com o mecanicismo que opõe arcaico/atraso e moderno, devemos ter clareza de que tanto o atraso quanto o
moderno existem, não por qualquer determinação natural, uma vez que são legados por processos históricos
particulares. É possível perceber tal concepção, por exemplo, tanto nas ideias de Trotsky como de Lênin.
79
O exemplo da Rússia nos mostra, então, que, mesmo tardiamente, em alguns aspectos,
ocorreram transformações muito mais rapidamente que em outros países. Basta observar o
processo de constituição do capital financeiro, fruto da fusão do capital industrial com o capital
bancário que se deu de forma “tão integral como talvez não se tenha visto semelhante em
qualquer outro país”. Todavia, este fator não anulou a submissão do país ao mercado monetário
da Europa Ocidental. (TROTSKY, 1977, p.29). Por outro lado, a própria revolução socialista e
a organização dos sovietes não foram apenas fruto do atraso histórico russo, mas resultado da
luta de classes e da operante lei do desenvolvimento desigual e combinado, revelando sua
expressão mais alta: “começando por derrubar o edifício medieval apodrecido, a Revolução
eleva ao poder, em poucos meses, o proletariado, encabeçado pelo Partido Comunista”
(TROTSKY, 1977, p.32).
A utilização desses exemplos não nos autoriza tornar específica uma lei, uma tendência,
que compõe a forma capitalista de ser como se esta fosse própria dos países “atrasados” e não,
na verdade, produtora do atraso e do moderno ou, em outras termos, da “modernização
conservadora” 32 . Por isso, “as condições atrasadas de desenvolvimento que trouxeram o
proletariado russo ao poder formularam, perante este poder, problemas que, em essência, não
podem ser completamente resolvidos nos quadros de um Estado isolado”, de uma sociedade
isolada. (TROTSKY, 1977, p.384). Contudo, é inevitável perceber a profunda originalidade das
condições econômicas e políticas que produziram a Revolução de Outubro, antes do início de
qualquer revolução socialista na Europa. Originalidade esta que, para Trostky (1977, p.387), é
parte tanto do desenvolvimento universal capitalista como do tardio desenvolvimento histórico
32
“O termo modernização conservadora foi cunhado primeiramente por Moore Junior (1975) para analisar as
revoluções burguesas que aconteceram na Alemanha e no Japão na passagem das economias pré-industriais para
as economias capitalistas e industriais. Neste sentido, o eixo central do processo desencadeado pela modernização
conservadora é entender como o pacto político tecido entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento
capitalista nestes países, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários”. (PIRES; RAMOS, 2009,
p.412).
80
da Rússia, “comprimido pelo cerco dos imperialismos”, sucedendo a burguesia russa que “não
teve tempo de expulsar o tzarismo antes que o proletariado se tornasse uma força revolucionária
autônoma”. Negar o atraso, nesse sentido, seria apartar a realidade nacional e regional do todo
que a determina.
Diante disso, o que podemos observar é um processo de generalização dessa lei, fazendo
com que cada vez mais seja comum a combinação de elementos arcaicos e modernos no
desenvolvimento capitalista. Assim, tal como na Rússia, a Itália e o Brasil, assim como muitos
outros países, podem servir de exemplo de como a questão agrária também não foi resolvida
pela burguesia, mesmo que sejam formações sociais distintas. Eis a relação orgânica entre
questão agrária e regional.
Já que nos parece central o entendimento do atraso e de sua relação com o processo de
modernização para a (re)configuração regional, nos questionamos sobre quais seriam as
características que configuram e sintetizam esse atraso, do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente.
Alguns caminhos, inclusive já sinalizados por nós ao decorrer do presente texto, nos foram
dados pela teoria marxista e marxiana que didaticamente pontuaremos a seguir, separadamente,
mas na prática estão completamente conectados. Vejamos:
33
Apresentamos novamente como pano de fundo o exemplo da realidade russa. Vejamos o que Trotsky (1977,
387-391) nos diz sobre essa questão do peso da indústria, da produção de mercadorias, no desenvolvimento
econômico, sua relação com o “atraso” e seu peso sob as classes sociais em determinada formação social: “Nós
procuramos os critérios de desenvolvimento econômico na produção – técnica e organização social do trabalho –
porém o caminho que o produto percorre entre o produtor e o consumidor é por nós considerado como um fato de
ordem secundária [...]. A grande expansão, pelo menos em superfície, de comércio russo, no século XVI, explica-
se [...] precisamente pelo caráter extremamente primitivo e atrasado da economia russa. [...] as cidades russas eram
[...] centros de consumo, e não de produção. [...] o nosso atraso econômico manifestava-se principalmente no fato
de que o artesanato, não se libertando da agricultura, permaneceu na fase dos pequenos ofícios rurais. Neste ponto
estávamos mais próximos da Índia do que da Europa, assim como as nossas cidades medievais eram mais asiáticas
do que europeias e nossa autocracia, ocupando um lugar intermediário entre o absolutismo das monarquias
europeias e o despotismo asiático, aproximava-se mais, sob alguns aspectos, dos últimos. […] O capitalismo russo
81
O mercado interno aparece quando aparece a economia mercantil: ele é criado pelo
desenvolvimento dessa economia e é o grau de fragmentação da divisão social do
trabalho que determina o nível desse desenvolvimento. O mercado interno se amplia
quando a economia mercantil passa dos produtos à força de trabalho, e apenas na
medida em que esta última se converte em mercadoria o capitalismo cobre toda a
produção do país, desenvolvendo-se graças sobretudo à produção de meios de
produção que ocupam um lugar cada vez mais importante na sociedade capitalista. O
‘mercado interno’ para o capitalismo é criado pelo próprio capitalismo em
desenvolvimento que aprofunda a divisão social do trabalho e decompõe os
produtores diretos em capitalistas e operários. O grau de desenvolvimento do mercado
interno é o grau de desenvolvimento do capitalismo no país. É incorreto colocar a
questão dos limites do mercado interno independentemente da questão do grau de
desenvolvimento do capitalismo – como fazem os economistas populistas. (LÊNIN,
1982, p.33).
não se desenvolveu a partir do artesanato, para passar da manufatura à fábrica: e foi por isso que o capital europeu,
inicialmente sob a forma de capital comercial, depois, sob a forma de capital financiador e industrial, caiu sobre
nós, num período em que o artesanato russo, em seu conjunto, ainda não se havia dissociado da agricultura. Daí
surgiu, entre nós, uma indústria capitalista bastante moderna, no ambiente de uma economia absolutamente
primitiva: uma fábrica belga, ou americana, mas em derredor, lugarejos, aldeias com casas de madeira, cobertas
de colmo e que, todos os anos, eram destruídas por incêndios e por muitas outras desgraças... Os mais antiquados
elementos, ao lado das últimas realizações europeias. Daí o papel imenso desempenhado pelo capital da Europa
ocidental na economia russa. Daí a fragilidade da burguesia russa. Daí a facilidade com que destruímos a nossa
burguesia. Daí as dificuldades que surgiram, quando a burguesia europeia interveio em nossos negócios... Que
dizer do nosso proletariado? [...] Existirão nele tradições corporativas seculares? Nada de parecido. Lançaram-no
diretamente à fornalha, assim que retiraram de seu arado primitivo... Daí a ausência de tradições conservadoras, a
ausência de castas, mesmo entre o proletariado, e a juventude do espírito revolucionário; daí, entre outras causas
eficientes, Outubro e o primeiro governo proletário que existiu no mundo. Mas daí, também, o analfabetismo, a
mentalidade atrasada, a deficiência de hábitos de organização, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a
falta de educação cultural e técnica. A cada passo nos ressentimos dessas inferioridades na nossa economia e na
nossa edificação cultural”.
82
34
“As classes possuidoras da Rússia tinham conflitos com as classes possuidoras da Europa, que lhes eram inteira
ou parcialmente hostis. Esses conflitos desencadeavam-se através das intervenções do Estado. Ora, o Estado era a
autocracia. Toda a estrutura e toda a história da autocracia teria sido diversa, se as cidades europeias não tivessem
existido, se a Europa não houvesse ‘inventado a pólvora’ […], se a Bolsa europeia não tivesse agido. Em seu
último período de existência, a autocracia não foi somente o órgão das classes possuidoras da Rússia: ela servia
também à Bolsa europeia para a exploração de nosso país”. (TROTSKY, 1977, p.391).
83
massas trabalhadoras de seu próprio país, hostil à revolução que conseguira a vitória, a
burguesia russa, entrando tardiamente em cena, não poderia encontrar por si própria
motivo algum que justificasse as suas pretensões ao poder”, por isso, já nasce
contrarrevolucionária e antipopular (TROTSKY, 1977, p.164). Nessas circunstâncias, a
democracia, mesmo nos marcos da sociedade burguesa, contém aspectos mais
restritivos e, ao mesmo tempo, progressistas, pois, em alguma medida, pode realçar e
fortalecer processos de caráter anticapitalista. Basta observar o processo revolucionário
russo e o contorno explosivo que tomaram as pautas de conteúdo democrático na
revolução, fazendo com que a Rússia ultrapassasse “de um salto a democracia
puramente formal”. (TROTSKY, 1977, p.32-33). Essas circunstâncias interferem nas
formas de organização das classes sociais, tomando proporções diferenciadas. Vejamos
o exemplo do capitalismo russo que, “desde seus primeiros passos, chocou-se” e foi
submetido pelo “capitalismo muito mais desenvolvido [...] do Ocidente […]. Do mesmo
modo, a classe operária russa, desde seus primeiros passos, encontrou instrumentos
inteiramente acabados, devido à experiência” já acumulada historicamente pelo
proletariado da Europa ocidental, tais como: “teoria marxista, sindicatos, partido
político.” (Idem, p.391). Em outras palavras, Lênin (apud TROTSKY, 1977, p.273) nos
diz o seguinte em relação a realidade russa do início do século XX:
Em resumo, para Lênin (1982, p.309), utilizando como exemplo Urais, na Rússia, o
“atraso técnico” de uma determinada região está associado aos baixos salários, à condição de
escravo do operário, a baixa produtividade, a predominância do trabalho manual, a exploração
primitiva, ao roubo das riquezas naturais, às poucas ferrovias e outras vias de escoamento de
mercadorias. Tais condições, não sendo estáticas, mas permanentemente suscetíveis a
transformações, ao entrarem em conexão com determinado grau de desenvolvimento das forças
produtivas, podem impulsionar suas contradições ao ponto que essas mesmas relações tornem-
se verdadeiros obstáculos para esse desenvolvimento, abrindo outras possibilidades históricas.
Isto tendo em vista que “nenhum regime econômico e menos ainda um regime agrícola, de
todos o mais atrasado”, jamais tenha cedido terreno sem que primeiro tivesse esgotado todas as
84
suas possibilidades.
Como podemos observar, as expressões e tendências do padrão de acumulação
capitalista tomam contornos territoriais e regionais, a exemplo do adensamento da questão
social que se apresenta com maior tônica nos países dependentes, em condições mais penosas
predominantemente inerentes à exploração da mais-valia absoluta, como também, em distinta
medida, nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, mesmo nos países imperialistas,
frente a combinação entre mais-valia relativa e absoluta. Isto sob uma recorrente combinação
entre formas de exploração de mais-valia que, a partir de cada território, torna-se mais presente
ou mais sofisticada. Porém, mesmo nas regiões “mais desenvolvidas”, tais formas não são
eliminadas. Sobre isto, recorremos a seguinte colocação:
A cisão criada entre o Norte e o Sul, entre campo e cidade, “centro” e “periferia”,
demonstra, a nosso ver, os efeitos contrários ou anárquicos a lógica de homogeneização, de
integração à forma vigente de reprodução social e, ao mesmo tempo, uma estratégia de
sobrevivência do capital, que se expande criando fissuras; mundializa-se regionalizando,
segmentando, segregando; socializa o trabalho e privatiza a riqueza gerada por este mesmo
trabalho; une, massifica, separando; ataca as diferenças, as tradições e a diversidade (cultural,
geográfica, etc) tonando-as desigualdades que ampliem as oportunidades de lucro e
expropriação.
85
Esse retrato é tão atual quanto antes, tornando cada vez mais evidente o
desenvolvimento desigual e combinado de regiões diferentes, inclusive no interior dos mais
importantes países capitalistas, sendo “a fonte principal de reprodução ampliada”, conduzindo
a “penetração progressiva da circulação mercantil capitalista na agricultura, e da separação dos
produtores com relação à terra, [...] a um fluxo contínuo de capital-dinheiro para os mais
importantes distritos industriais, onde ex-camponeses marginalizados formaram um exército
industrial de reserva”. (MANDEL, 1982, p.129). A configuração do movimento migratório e
de seus elementos impulsionadores mostram-se, no nosso entendimento, cada vez menos
progressista na perspectiva apresentada por Lênin35 a partir da realidade russa na passagem do
século XIX para o XX, mesmo que tal movimento continue sendo fundamentalmente
contraditório. Esse tema, contudo, será retomado por nós mais a frente, quando o diálogo com
a realidade contemporânea se apresentar de forma mais categórica.
Pensamos que aí esteja a raiz da questão regional. Esta, assim como a questão agrária e
indígena, é parte de um todo e expressão das contradições capitalistas, do movimento de
concentração e centralização próprio da lógica vigente de acumulação, que constituem,
dimensionam e acirram a questão social. Esta, sendo desigualdade e “também rebeldia, por
envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem” (IAMAMOTO,
35
Para Lênin (1982, p.159-161), as migrações são fenômenos progressistas exatamente por possibilitar a
mobilidades de trabalhadores; o rompimento com as determinações locais; e a destruição das “formas servis do
salariado e do pagamento em trabalho”, reforçando a desintegração do campesinato nas regiões, oferecendo
“vantagens ‘puramente econômicas’ aos operários, porque eles se dirigem para locais onde os salários são mais
elevados e onde é mais vantajosa a sua situação de vendedores de força de trabalho”. Afinal, “enquanto a população
não tiver mobilidade, não pode ser desenvolvida [...]”.
86
2004, p. 27-28), nos permite identificar na questão regional também a sua dimensão política,
de luta por hegemonia entre as classes e suas frações; pelo controle do Estado moderno e por
formas que assume a modernização burguesa em cada território; pela “integração” das regiões
em prol de um determinado projeto de desenvolvimento, de sociedade, em âmbito nacional e
internacional. Por isso, e por outras tantas razões, não existe, nem poderá existir, capitalismo
sem uma forte presença do Estado.
Diante dessas circunstâncias, Mariátegui (2010, p.191-197), a partir da realidade
peruana em um período de forte presença do regionalismo e crítica ao centralismo por parte do
povo, aponta a descentralização administrativa como uma forma superficial de enfrentamento
as desigualdades regionais por parte das classes dominantes, deixando intocável as questões de
fundo, estruturais, e, por vezes, adensando a centralização do poder político e econômico nas
mãos das elites locais, representantes do “caciquismo”. Vejamos:
Ou seja, existe uma marca regional na relação entre Estado e sociedade civil mesmo que
seja um traço universal constitutivo da hegemonia vigente. Afinal, não nos custa lembrar que o
Estado moderno (e sua institucionalidade), é “produto do antagonismo inconciliável das classes”
(LENIN, 2007), portanto, lócus no acirramento da luta de classes e da dominação classista,
mesmo que não seja reduzido à mera vontade dos dominantes. Trata-se de um Estado (Integral)
que “deve ser concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um
novo tipo ou nível de civilização” (GRAMSCI, 2007, p.28). É uma instância, por excelência,
de exercício da hegemonia de classe, pois permite a combinação entre as funções de
dominação/coerção, a cargo da sociedade política, e de direção social/consenso, por intermédio
da sociedade civil, estabelecendo o consentimento e a dominação em prol do projeto da classe
dirigente e dominante.
Diante disso, aqui explicitamos o fenômeno do “coronelismo” como parte da formação
sócio-histórica brasileira, em especial nas regiões com maior peso agrário, com raízes coloniais
que, assim como a questão agrária, são tenazes, mesmo com reconfigurações. Por isso, não se
trata de um “fenômeno simples, pois envolve um complexo de características da política
municipal […]. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu
fenômeno típico de nossa história colonial”. (LEAL, 1997, p.39-40).
É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação
em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm
conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. Por isso
mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre
o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos
chefes locais, notadamente dos senhores de terra. Não é possível, pois, compreender
o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação
das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.
Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo
poder político, e isto se explica justamente em função do regime representativo, com
sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação
de dependência ainda é incontestável. Desse compromisso fundamental resultam as
características secundárias do sistema “coronelista”, como sejam, entre outras, o
mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços
públicos locais. (Ibid., p.40-41).
36
“[…] agência de difusão da teoria do desenvolvimento surgida nos Estados Unidos e na Europa ao final da
Segunda Guerra Mundial. Essa teoria tinha, então, um propósito definido: responder à inquietude e à
inconformidade manifestadas pelas novas nações que emergiam para a vida independente, a partir dos processos
de descolonização, ao se darem conta das enormes desigualdades que caracterizavam as relações econômicas
internacionais. […] trata-se essencialmente de construir um conceito de desenvolvimento econômico a partir da
ideia de que este corresponde ao desdobramento do aparato produtivo em função da conhecida classificação em
três setores: primário, secundário e terciário. […] toma-se o processo de desenvolvimento econômico ocorrido nos
países capitalistas avançados como um fenômeno de ordem geral e sustenta-se que a posição que esses países
ocupam no contexto internacional corresponde ao estágio superior de um continuum evolutivo. As diferentes
economias que integram o sistema internacional se situariam em fases inferiores do mesmo processo, enquadradas
em um esquema dual: desenvolvimento-subdesenvolvimento, que seria substituído posteriormente por outro mais
sofisticado. […] a Cepal, ao ser constituída, vincula-se à realidade interna da América Latina e expressa as
contradições de classe que a caracterizam, inclusive as contradições interburguesas. […] Isso fará com que a Cepal,
partindo da teoria do desenvolvimento nos termos em que havia sido formulada nos grandes centros, introduza
nela as mudanças que representarão sua contribuição própria, original, e que farão do desenvolvimentismo latino-
americano um produto em si, e não uma simples cópia da teoria do desenvolvimento” (MARINI, 2010, p.104-
107).
91
em países como o Brasil, a Argentina, o Chile, o Uruguai e o México, tendo como importante
contribuição a “crítica à teoria clássica do comércio internacional”37. Essa comissão, que teve
dentre seus intelectuais o argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, com “formação,
em geral, keynesiana” e “um domínio apreciável de economia política clássica”, influenciou
ativamente na política econômica governamental do período, tendo como um de seus propósitos
subsidiar processos de modernização através de “políticas de desenvolvimento regional” como
forma de enfrentar o famigerado subdesenvolvimento na América Latina. (MARINI, 2010).
Assim, oferecendo respostas paradoxais às das premissas do pensamento cepalino, que
“não considerava desenvolvimento e subdesenvolvimento como fenômenos qualitativamente
distintos, marcados por antagonismos e complementaridade, […] e sim como expressões
quantitativamente diferenciadas do processo histórico de acumulação de capital”, a realidade
latino-americana, particularmente a partir da década de 1960, demonstrou os efeitos perversos,
de crise e estagnação, promovidos pelo próprio desenvolvimento capitalista e do seu processo
de industrialização, aprofundando a dependência. Segundo Marini (2010, p.109-111), “isso não
poderia deixar de repercutir profundamente nos círculos da Cepal, dando lugar a uma crise
teórica de amplas proporções”.
Tais efeitos dão-se em decorrência de um movimento fundamentalmente dialético que
(re)constitui o fenômeno da dependência como marca estrutural do padrão internacional de
reprodução capitalista. Isto tendo em vista que o desenvolvimento da América Latina, a partir
do século XVI, ocorre em consonância com a dinâmica do capitalismo internacional,
37
“Baseada no princípio das vantagens comparativas, essa teoria postula que cada país deve se especializar na
produção de bens nos quais possa atingir maior produtividade […]. Se for seguido, esse princípio assegurará ao
país condições privilegiadas para concorrer no mercado mundial […]. A Cepal dirá que, no mundo concreto, isso
não ocorre dessa maneira. Por um lado, demonstrará empiricamente que, a partir de 1870, observa-se no comércio
internacional uma tendência permanente à deterioração dos termos de intercâmbio, em detrimento dos países
exportadores de produtos primários. Por outro lado, afirmará que essa tendência propicia transferência de renda –
na realidade, transferência de valor, conceito que a Cepal não utiliza com correção – que implicam que os países
subdesenvolvidos, exportadores desses bens, sejam submetidos a uma sangria constante de riqueza em favor dos
mais desenvolvidos, ou seja, a uma descapitalização […]”. Para Cepal, isso “se deve ao fato de que o mercado
mundial confronta países industrializados com países de economia primário-exportadora. Estes últimos, por não
desenvolverem seu setor industrial ou manufatureiro, não estão habilitados a produzir tecnologias e meios de
capital capazes de elevar a produtividade do trabalho”. Daí a preocupação cepalina com o processo de
industrialização, ou seja, expansão do setor secundário, como forma de fazer frente a tal “impasse” do
subdesenvolvimento, viabilizando a oferta de empregos, elevação da produtividade, o combate a força de trabalho
excedente no setor primário e terciário e, consequentemente, os baixos salários que “freiam o progresso técnico e,
simultaneamente, não permitem a expansão e dinamização do mercado interno. […] A verdade é que, captando
corretamente o fenômeno empírico da deterioração dos termos de intercâmbio, a Cepal o interpretava erroneamente:
mais cedo ou mais tarde, o aumento da produtividade e a consequente redução dos custos devem ser transferidos
aos preços […] a referência à questão da remuneração da força de trabalho representou uma intuição formidável,
ainda que mal estabelecida, posto que não se tratava simplesmente de uma consequência da baixa produtividade
[…]. As limitações do pensamento da Cepal são um efeito de seu vínculo umbilical com a teoria do
desenvolvimento, além de representarem um custo derivado da posição de classe a partir da qual a instituição
realizou suas colocações”. (Ibid., p.107-108).
92
Já Mandel (1982, p.128), ao tratar desse tema, reforça os mecanismos das classes
dominantes em transferir os custos de reprodução da força de trabalho para os próprios
trabalhadores dos países dependentes, mas não só. Vejamos: “Em 1968, 10 milhões de
assalariados nos Estados Unidos ganhavam menos de 1,6 dólar por hora e 3,5 milhões
ganhavam menos de 1 dólar por hora, enquanto o salário médio na indústria de transformação
era de 3 dólares por hora e na construção chegava a 4,4 dólares.”. Ou seja, para o autor, esse
fenômeno, denominado por ele de superexploração do “subproletariado”, extrapola os
territórios dos países em condição de dependência, muito embora ressalte o seguinte:
A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países
semicoloniais, dependentes, do que nos países imperialistas indubitavelmente
possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos mundiais – o que explica,
em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se
mais lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial.
[…] Em resultado, é travada a concentração de capital, impedida a expansão da
produção, promovido o escoamento de capital para esferas não industriais e
improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e
subempregados. Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na
alegada insuficiência da renda nacional, acarretando uma taxa insuficiente de
poupanças. (MANDEL, 1982, p.45).
38
“A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta; a mais-valia
que, ao contrário, decorre da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os
dois componentes da jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa” (MARX, 1983, p.251).
94
39
“A troca de mercadorias produzidas em condições de mais alta produtividade do trabalho por mercadorias
produzidas em condições de mais baixa produtividade do trabalho era uma troca desigual; era uma troca de menos
trabalho por mais trabalho, que inevitavelmente conduziu a um escoamento, a um fluxo para fora de valor e capital
desses países, em beneficio da Europa ocidental. A existência de grandes reservar de trabalho barato e terra nesses
países logicamente resultou numa acumulação de capital com uma composição orgânica de capital mais baixa do
que nos primeiros países a se industrializarem.” (MANDEL, 1982, p.35).
95
Para Marini (2011), dentro dessa “rede internacional de dependência”, tem predominado
na economia da região latino-americana sua condição de oferta mundial de alimentos e
matérias-primas mediante a “deterioração dos termos de troca” e depreciação dos bens
primários, viabilizando não apenas o incremento da produtividade como também taxas de mais-
valia cada vez mais elevadas. Atrofia do mercado interno, divisão do trabalho interrompida ou
estagnada, tecnologia retardatária, economia predominantemente agrícola - portanto, o peso da
questão agrária e do atraso -, enorme exército industrial de reserva, industrialização com
maquinaria obsoleta, permanente centralidade de exportação de matérias-primas, “transferência
constante de valor de uma zona para outra pela deterioração dos termos comerciais”, etc. Assim,
é instituída uma dificuldade competitiva estrutural nos países dependentes. (MANDEL, 1982,
p.260-261). Afinal, “na alvorada do capitalismo, o desenvolvimento da indústria nas cidades
fabris é acompanhado pela destruição da indústria nos 'países dependentes' […], bloqueando
qualquer avanço sistemático da industrialização e reforçando e perpetuando o
subdesenvolvimento”. (Idem, p.58-59).
Tal condição tem relação direta com medidas internacionais voltadas para amenizar os
efeitos da tendência a queda da taxa de lucro em um momento de predomínio, nos países
centrais, do aumento da composição orgânica do capital, da capacidade produtiva do trabalho
e da extração de mais-valia relativa que, por um lado, possibilita, mesmo que
momentaneamente, a obtenção superior de mais-valia em relação aos seus concorrentes, mas,
por outro, se desdobra no barateamento das mercadorias e na desvalorização da força de
trabalho em relação ao capital constante (que inclui matérias-primas), especialmente diante da
tendência a generalização das condições técnicas que permitiram o respectivo aumento da
produtividade. Assim, em tais condições, um importante mecanismo utilizado por parte dos
capitalistas é exatamente a alteração, redução, do valor dos bens necessários à reprodução da
força de trabalho como também uma “baixa paralela no valor do capital constante”.
É, portanto, “mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no
mercado internacional que a América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da
produção capitalista nos países industriais”, mas também contribui para o enfrentamento de
“obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão”
(MARINI, 2011, p.141-142). Isto, como já sinalizamos, sob condições de reprodução de
acumulação marcada, além da “superexploração da força de trabalho”, pela formação de um
mercado interno débil e estratificado40 que impediu o acesso ao “consumo popular”, ou seja,
40
“A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia
não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do mercado interno, que também é uma diferenciação de
97
não se constituiu sob a base do consumo individual do trabalhador em favor da exportação para
o mercado mundial.
Vale lembrar aqui que “o problema do mercado interno como problema particular,
autônomo, independente da questão referente ao grau de desenvolvimento do capitalismo,
simplesmente não existe” (LÊNIN, 1982, p.32). Isto porque, ao falarmos de mercado interno,
estamos nos referindo a uma contradição que compõe a própria natureza do capitalismo.
Noutros termos, não é na realização da mais-valia que existe a dificuldade, mas em todo
o processo de realização do produto na sociedade capitalista. Afinal, “não se pode explicar o
‘consumo’ se não se compreende o processo de reprodução da totalidade do capital social e da
compensação dos componentes isolados do produto social” (LÊNIN, 1982, p.29).
Esses aspectos incidem particularmente sobre o processo de industrialização no
território latino-americano, fazendo com que o desenvolvimento industrial nos países
dependentes (a exemplo da Argentina, México e Brasil) não tenha promovido uma mudança
qualitativa, permanecendo a indústria como uma atividade subordinada à produção e
exportação de bens primários. “É apenas quando a crise da economia capitalista internacional,
correspondente ao período compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, limita
a acumulação baseada na produção para o mercado externo que o eixo da acumulação se desloca
para a indústria, dando origem à moderna economia industrial que prevalece na região”. Em
tais circunstâncias, para Marini (2011, p.159-165), a industrialização latino-americana dá-se
sobre bases diferenciadas de outras economias capitalistas, comprometendo o aumento da
capacidade produtiva do trabalho, sendo “parcialmente neutralizado pela ampliação do
consumo” de produtos manufaturados dos setores médios e permanente restrição do mercado
esferas de circulação: enquanto a esfera 'baixa', onde se encontram os trabalhadores – que o sistema se esforça por
restringir-, se baseia na produção interna, a esfera 'alta' de circulação, própria dos não trabalhadores – que é aquela
que o sistema tende a ampliar-, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação”
(MARINI, 2011, p.157-158).
98
interno, desencadeando-se com baixo nível tecnológico em função das exigências externas;
recurso à tecnologia estrangeira, destinado a elevar a capacidade produtiva do trabalho, mesmo
que lentamente; aumento da massa de valor em relação a taxa de mais-valia; e com maior
exploração do trabalhador. “Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na
alegada insuficiência da renda nacional, acarretando uma taxa insuficiente de poupanças.”
(MANDEL, 1982, p.45).
A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países
semicoloniais, dependentes, do que nos países imperialistas indubitavelmente
possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos mundiais – o que explica,
em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se
mais lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial.
[…] Em resultado, é travada a concentração de capital, impedida a expansão da
produção, promovido o escoamento de capital para esferas não industriais e
improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e
subempregados. (MANDEL, 1982, p.45).
As burguesias coloniais tentaram, não sem sucesso, aumentar sua proporção de mais-
valia produzida pelos operários e camponeses pobres, em detrimento da proporção
tomada pelas empresas e Estados imperialista. A transição realizada pelo imperialismo,
do controle direto para o controle indireto dos países subdesenvolvidos, com
generalização da independência política, possibilitou às classes governantes nativas
financiarem aos menos parte dos custos indiretos da produção de mais-valia que antes
tinham de ser cobertos pelo sobreproduto não capitalista apropriado por elas, a partir
da própria mais-valia – em outras palavras, alguns desses custos foram transferidos
para o capital imperialista. […] A estratégia mundial das principais empresas
multinacionais inclui um interesse incontestável em dominar os limitados mercados
internos das semicolônias […]. Esse processo tende a privar a chamada burguesia
'nacional' de sua preponderância na indústria manufatureira […] combinando o capital
nativo e estrangeiro, privado e público, torna-se um dos traços mais importantes do
capitalismo tardio, ou da fase neocolonial do imperialismo.
41
“Através da ideologia do colonialismo, a camada culta dos povos oriundos da fase colonial estrita é ganha, -
preparada que está pela sua condição de classe, - para aceitar a subordinação econômica, atribuindo-a a fatores
não materiais: superioridade de raça, superioridade de clima, superioridade de situação geográfica, que
predestinam as novas metrópoles. […] A transplantação cultural, isto é, a imitação, a cópia, a adoção servil de
modelos externos, no campo político como no campo artístico, deriva de tudo isso […] ao mesmo tempo que
justifica a supremacia de nações colonizadoras, justifica, internamente, a supremacia da classe ou das classes que
se beneficiam da subordinação, associando-se às forças econômicas externas que a impõem. Um povo começa a
ter o direito de repudiar a ideologia do colonialismo quando […] a sua sociedade não define como predominante,
ou absoluta em seu domínio, a classe interessada na subordinação econômica, quando as forças econômicas
internas passam a exigir um lugar ao sol, passam a disputar uma posição. A opção pela ideologia do colonialismo
só então é um ato de vontade – e quando isto acontece, tal ideologia entra em crise e começa a desmoralizar-se”
(SODRÉ, 1984, p.08-09).
100
42
Tratar-se de processo de superexploração e empobrecimento dos operários a partir de 1964, caracterizado por
Ianni (1981) a partir dos seguintes aspectos: rebaixamento vultoso do salário real; perda acentuada do poder de
compra para o conjunto das categorias trabalhadoras; escassez de recursos para alimentação, vestuário, habitação,
saúde, educação, transporte etc.; crescimento de doenças/mortalidade; adoção de mecanismos como hora extra,
contrato por tarefa, intensificação e extensão da jornada de trabalho; e o consequente esgotamento físico. Tudo
isso para garantir um salto na concentração e centralização do capital nesse período de “ditadura do grande capital”,
conforme o próprio autor.
101
De acordo com o autor, o que houve, portanto, no Brasil pós-64, foi a ascensão de um
período em que a política burguesa ditatorial provoca uma maior produção de mais-valia
absoluta, impactando consideravelmente nas condições de vida dos trabalhadores expressas,
por exemplo, pelo alto índice de mortalidade infantil nas décadas de 1960 e 1970 como também
pelo crescimento migratório “local, estadual, regional e nacional de trabalhadores e seus
familiares”. (IANNI, 1981, p.88).
Eis um exemplo de redefinição da articulação entre pauperização relativa e absoluta
como resultado da acumulação de contradições e intensificação de tendências capitalistas, tais
como a ampliação da superpopulação relativa, concentração de renda, intensidade do trabalho
e das jornadas de trabalho, fazendo com que, nas palavras de Osório (2014), “as dimensões da
barbárie […] tendam a prevalecer no capitalismo dependente”. Isto mesmo que “esse processo
de expansão da 'camada de lázaros do proletariado' […] nada” tenha “de original”, a exemplo
da própria realidade inglesa na primeira metade do século XIX que “teve como resultado […]
uma rápida e trágica proliferação da criminalidade”, encontrando como saída “o crescimento
da intensidade das migrações para os EUA e para Austrália”. (GUIMARÃES, 2008, p.32). O
que expressa, por outro lado, um quadro geral de conflitos e fraturas sociais, latentes e
manifestas, que, mesmo diante de circunstâncias adversas para a organização sindical, podem
potencializar a luta de classes, requisitando por parte do Estado uma maior presença na função
de manutenção da hegemonia burguesa através do uso mais recorrente de mecanismos
coercitivos.
países pelas peculiaridades do estilo de crescimento capitalista que nos foi imposto.
Mas o fenômeno dos excedentes relativos da população não é um fato original de
nosso país. Durante toda a história dos países latino-americanos […], o produto
excedente do nosso trabalho foi subdividido entre uma sequência de metrópoles
estrangeiras e as oligarquias agrárias escravocratas e pós-escravocratas. Essas
oligarquias, por toda uma fase em que exerceram o absoluto domínio interno da
economia e da sociedade, empregaram todos os meios ao seu alcance para manter
rigidamente em suas mãos o controle da propriedade e do uso da terra, e para impedir
o acesso das classes trabalhadoras a quaisquer dos outros meios de produção. A
apropriação ultraconcentrada da renda nacional (deduzida a parte evadida para o
exterior), diferentemente do que aconteceu nos países em que a propriedade da terra
foi subdividida (como nos Estados Unidos), foi obtida à custa de métodos de
acumulação de capital (pré-capitalistas e capitalistas) fortemente espoliativos, que
exigiram a continuidade histórica de regimes políticos apoiados no arbítrio.
(GUIMARÃES, 2008, p.32-33).
Daí a dificuldade em “gerar o sentido de comunidade” por parte do Estado nesses países
como também o forte vínculo entre as pautas democráticas e populares que, mesmo não sendo
“essencialmente” ou “classicamente” transgressoras, podem tomar outra qualidade na
particularidade latino-americana. Aqueles que se propõem a analisar e atuar sobre essa realidade,
certamente precisam levar em consideração essas condições que demonstram o quanto as
desigualdades regionais compõem estruturalmente a questão social e, consequentemente, a
dinâmica do capital. Como vimos, é inegável que o desenvolvimento capitalista e o crescimento
da divisão social do trabalho ampliam e intensificam a diferenciação regional que se expressa
como uma “divisão territorial do trabalho” pautada na “especialização de certas regiões na
produção [...].” (LÊNIN, 1982, p.275).
Finalmente, isto pode explicar o fato de que a generalização da lei geral da acumulação
capitalista, seja pela exploração extensiva ou intensiva, sobrevive impondo “regras iguais para
realidades desiguais”, confrontando “economias onde se trabalha 12 horas por 20 centavos a
hora com outras em que se trabalha 7 horas com remuneração de 20 dólares por hora” na
tentativa de “unificar as realidades mais díspares”. Ao contrário, “o que a prática demonstra é
que as mutações decorrentes da globalização”, que trataremos mais adiante, “agravam cada vez
mais a questão social” na sua dimensão regional. Isto da mesma forma com que o
desenvolvimento econômico, assim como o desenvolvimento regional, não significa
desenvolvimento humano. Afinal, a dinâmica capitalista não é pautada pelas necessidades
humanas. É oportuno lembrar que “seu objetivo fundamental não é o pleno desenvolvimento
humano, mas sim, a reprodução do capital”. (TAVARES, 2001, s/p).
É importante ressaltar, contudo, que existe uma verdadeira disputa (intra e interclasses)
de projetos e modelos de desenvolvimento de sociedade, respaldadas em diversas vertentes
teóricas, que apontam, por um lado, para o aperfeiçoamento do capitalismo na busca de sanar
103
suas crises e, por outro, para a necessidade de uma transição necessária para a superação da
sociabilidade do capital. Isto, levando em consideração que “a transformação da propriedade
privada parcelada, baseada no trabalho próprio dos indivíduos, em propriedade capitalista”,
promovido pelo desenvolvimento do projeto burguês de sociedade, é “um processo […] mais
longo, duro e difícil do que a transformação da propriedade capitalista, […] fundada numa
organização social da produção, em propriedade social. Lá, tratou-se da expropriação da massa
do povo por poucos usurpadores; aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela
massa do povo.” (MARX, 1984, p.294).
A questão central não está na natureza do desenvolvimento das forças produtivas por si
só. Na Rússia, por exemplo, “a metrópole da civilização socialista nascente” trabalhava-se
“febrilmente para desenvolver sua indústria”, sendo um dos sonhos daqueles que encampavam
a revolução popular a eletrificação do país. (MARIÁTEGUI, 2010, p.215-216). No entanto,
identificar essa diferenciação na vinculação dos “projetos de desenvolvimento” a projetos
antagônicos de sociedade, de classe, não se trata de uma tarefa fácil em meio a discursos
naturalizados e ideologizados pelos setores dominantes em prol do “desenvolvimento
econômico”, “desenvolvimento social”, “desenvolvimento sustentável”, “desenvolvimento
regional”, que, supostamente, é para todos.
Esse debate, caso queiramos entender os meandros que configuram a realidade do
Nordeste brasileiro dos anos 2000, priorizada em nossa pesquisa, não pode ser feito sem
considerar que o capitalismo, pela sua própria natureza, carrega consigo a capacidade de
destruir o “espírito estreito e provinciano”, possibilitando a mobilidade através das migrações,
ultrapassando as determinações locais, fragilizando laços de dependência pessoal do sistema de
pagamento em trabalho. Porém, isso ocorre sob profundas contradições sociais que lhe são
inerentes, criando e recriando desníveis e desigualdades sociais que (re)configuram as mais
diversas regiões. “Assim, o capitalismo criou, nas regiões periféricas, uma nova forma de
‘combinação da agricultura com os ofícios’, ou seja, a combinação do trabalho assalariado
agrícola e não agrícola. Essa combinação só é viável em larga escala na fase superior do
capitalismo […]. Os preços do trabalho experimentam fortes variações, que, naturalmente,
provocam múltiplas violações de contratos.” (LÊNIN, 2012, p.156-157).
Desse modo, mesmo que o capital, cada vez mais internacionalizado, não tenha pátria e
que, para ele, não exista fronteiras, contraditoriamente, a perpetuação da propriedade privada e
da acumulação de riquezas, cada vez mais privada, demanda delimitações territoriais,
invisibilizando a luta de classes através de construções ideológicas pautadas em oposições entre
países, regiões e Estados: “num lugar [...] ele [o capital] faz progredir um ramo da economia
104
[...]; noutra região, impulsiona outro ramo etc. […]. A formação de ramos especializados na
agricultura comercial torna as crises capitalistas e a superprodução possíveis e inevitáveis, mas
elas [...] dão um impulso ainda mais vigoroso à produção mundial e à socialização do trabalho”.
(LÊNIN, 1982, p.204-206).
Com isso, percebemos que, ao contrário do propalado discurso da globalização como
suposta homogeneização, a região e suas fronteiras, como resultado da lei do desenvolvimento
desigual e combinado, compondo a divisão nacional, regional e internacional do trabalho, não
desapareceram. Basta observarmos o papel, ontem e hoje, das desigualdades regionais na
formação social do Brasil. Estas continuam sendo nosso fio condutor a fim de alçarmos passos
mais largos na pesquisa, dando continuidade ao caminho percorrido até então.
105
CAPÍTULO 2
43
Texto extraído do livro "O Melhor da Crônica Brasileira" de José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1997, p. 33.
Disponível em: <http://www.releituras.com/jlinsrego_docefranca_imp.asp>. Acesso em: 21. nov. 2017.
107
A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado
noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos
assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala.
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio
da travessia. (ROSA, [1956] 2001, p.80).
44
Dentre a ampla literatura que apresenta a diversidade no trato sobre as bases da formação social brasileira,
ressaltamos, inicialmente, a concepção de Octávio Ianni (1980, p.159). Para ele, as principais implicações
históricas e teóricas da problemática em torno do entendimento do período colonial se expressam nas categorias
108
não nos cabe aqui se debruçar, muito embora tenham sido de fundamental importância para o
entendimento por parte das gerações presentes sobre o padrão de dominação burguesa no Brasil.
Por ora, o que se deve destacar é que tais discussões possuíram e ainda possuem, entre os seus
desdobramentos, sérias implicações políticas no seio das organizações vinculadas às classes
subalternas, com influência direta das orientações das Internacionais Comunistas45. Malgrado
formação social e modo de produção Também para Jacob Gorender (1980, p.60) é possível identificar a
centralidade que assume esta categoria na análise do “Brasil Colonial”, já que “na realidade histórica fatual, o
modo de produção capitalista em nenhuma parte se estabeleceu no vazio e em estado puro, porém teve de se
defrontar e coexistir com outros modos de produção. Alguns deles se lhe tornaram subsidiários ou foram mesmo
por ele recriados, enquanto não conseguiu reorganizar suas forças produtivas à maneira capitalista”. Para esse
autor, o sistema colonial foi a acumulação primitiva de capitais no interior do Modo de Produção Escravista
Colonial que se diferenciou regionalmente. Já para Nelson Werneck Sodré (1980, p.135-136), uma das
particularidades do Brasil era o fato de ter ocorrido uma verdadeira “transplantação”, que diz respeito ao processo
vivido pela sociedade brasileira “dos primeiros tempos da chamada colonização”. Transplantação esta nascida dos
“elementos humanos africanos e europeus [...]. Os alicerces da sociedade brasileira, pois, foram importados,
transplantados”. Ianni (1980, p.158) já caracteriza o período colonial a partir da concepção de Formação Social
Escravista que teria sido o “modo de ser” da sociedade brasileira naquela época. Nas palavras do próprio autor,
era “uma sociedade organizada com base no trabalho escravo [...] na qual o escravo e o senhor pertenciam a duas
castas distintas; sociedade essa cujas estruturas de dominação política e apropriação econômica estavam
determinadas pelas exigências da produção de mais-valia absoluta. Nessas formações sociais, as unidades
produtivas – como os engenhos de açúcar no Nordeste [...] – estavam organizadas de maneira a produzir e
reproduzir, ou criar e recriar, o escravo e o senhor, a mais-valia absoluta, acultura do senhor (da casa-grande), a
cultura do escravo (da senzala), as técnicas de controle, repressão e tortura, as doutrinas jurídicas, religiosas ou de
cunho ‘darwinista’ sobre as desigualdades raciais e outros elementos. [...] Assim, a formação social escravista era
uma sociedade bastante articulada internamente, motivo por que ela pode resistir algum tempo às contradições
‘externas’; ou às contradições internas pouco desenvolvidas.”. Em uma análise mais recente sobre esse período,
Carlos Nelson Coutinho ([1990] 2011, p.39-40) nos diz o seguinte: “[...] assumo como hipótese a de que se tratava
de um modo de produção escravista (de resto, o adjetivo colonial não me parece caracterizar o modo de produção,
no sentido de atribuir-lhe novas leis, mas indica precisamente o seu vínculo de subordinação formal ao capital
internacional [...]). É o elemento escravista que fornece a marca determinante da formação econômico-social. Ele
interfere, por um lado, na produtividade econômica do sistema, que se mantém estacionária (ao contrário do que
ocorreria no feudalismo), com todas as consequências que disso resultam para a criação ulterior de um mercado
interno e, portanto, para a forma ‘prussiana’ que prevaleceria quando da transição para o capitalismo. E, por outro
lado, vale ressaltar a marca escravista sobre a estrutura de classes: a degradação do trabalho manual, que é muito
mais intensiva no escravismo do que no feudalismo [...]”. Por fim, sinalizamos outro ponto de vista a mais nesse
amplo e diverso debate que certamente não teremos como melhor desenvolver neste trabalho. Remetemo-nos à
concepção, também mais recente, de Antônio Carlos Mazzeo (1995, p.07-08). Para este autor, poderíamos
considerar o Sistema Colonial como a primeira fase do capitalismo. Assim sendo, “o regime de capitanias consistia
numa grande empresa de tipo mercantil e os donatários como primeiros burgueses”. Em resumo: “[...] a produção
escravista instalada na América e, portanto, no Brasil, não se constitui em um modo de produção distinto do
capitalista, mas, ao contrário, estrutura-se como um tipo específico de capitalismo. Um capitalismo de extração
colonial e escravista que objetiva o mercado externo, grandes lucros e, fundamentalmente, que utiliza a mais-valia
que expropria do escravo para investir na produção açucareira e agrária, em geral.” (MAZZEO, 1995, p.11).
Sabemos da importância de outros tantos “Interpretes do Brasil”, tal como Darcy Ribeiro, Antônio Cândido,
Florestan Fernandes e Caio Prado Junior, e da grandeza de suas contribuições para o debate em questão. Porém,
ratificando os limites deste trabalho, optamos por buscar um diálogo mais direto com parte desses pensadores, a
exemplo de Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., no corpo do texto, pois consideramos de maior referência e
contribuição para o que priorizamos em nossa tese.
45
Lembramos que o desenrolar desse debate em torno da configuração do sistema colonial e do capitalismo no
Brasil, buscava, na verdade, desvelar o entendimento sobre a natureza das classes sociais no país e o caráter da
nossa revolução burguesa. Isso significava, portanto, uma disputa férrea de narrativas e de rumos do país. Não se
tratava de uma questão acadêmica, mas fundamentalmente política. Intentava-se não apenas conhecer melhor
nossa formação social, mas entendê-la para transformá-la. Do ponto de vista das organizações das classes
trabalhadoras, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) exerceu importante papel no século XX e é dentro dele que
parte desses autores desenvolveram suas principais contribuições, incidindo sobre as suas disputas internas,
109
as divergências, tem-se como acúmulo desse legado, primeiro, o entendimento de que “de
qualquer maneira, desde o princípio as sociedades do Novo Mundo estão atadas à economia
mundial [...]” (IANNI, 1980, p.162), viabilizando, por meios coloniais o processo de
acumulação originária de capitais, “onde as colônias exercem um papel fundamental,
constituindo-se em poderosas alavancas de concentração de capitais” (MAZZEO, 1995, p.06);
segundo, a concepção de que o desenvolvimento capitalista nessas terras não se deu (nem se
dará) tal como nos outros países, especialmente naqueles que conheceram a via clássica de tal
desenvolvimento, como Inglaterra e França (TROSTKY, [1930] 1977). 46
Contudo, nos
deteremos a este tema mais adiante.
inclusive de direção política. Parte dessas elaborações expressavam a forte influência da Terceira Internacional
Comunista que, de acordo com Coutinho (2011, p.223), “de modo extremamente esquemático, poderíamos resumir
assim essa "imagem" pecebista: segundo ela, o Brasil continuaria a ser um país ‘atrasado’, semicolonial e
semifeudal, bloqueado cm seu pleno desenvolvimento para o capitalismo pela presença do latifúndio e da
dominação imperialista. Em consequência, careceríamos ainda de uma ‘revolução democrático-burguesa’, que
deveria ser feita com a participação de uma ‘burguesia nacional’ supostamente anti-imperialista e antifeudal”.
Contudo, é importante ressaltar os embates existentes dentro desse “campo pecebista” expressos, por exemplo,
nos posicionamentos de Caio Prado Junior. Ao tentar encontrar o sentido da colonização brasileira no contexto de
expansão capitalista, Prado Jr. nos aponta pistas importantes para pensarmos o país a partir do movimento da
história em que o “velho” se reatualiza no “novo” e onde este “novo” também se faz “velho”. Nesse caminho, o
autor alude os aspectos que configuram os setores “orgânico” e “inorgânico” na sociedade brasileira como
mediações para entender a configuração da economia e das classes sociais e sua influência na Revolução Brasileira,
a ser arquitetada e empreendida pelas classes populares, não pela burguesia. Aí o autor pode ser considerado
heterodoxo em sua análise. Certamente não seria possível contemplar neste trabalho a grandiosidade do conjunto
da obra de Caio Prado Jr. que, já na década de 1930, mediante a dificuldade encontrada no acesso a dados,
estatísticas e demais edições, inclusive de clássicos da tradição marxista, conseguiu construir uma análise profunda,
que foge do dogmatismo. Por outro lado, nota-se também que Caio Prado foi um homem do seu tempo, sofrendo
influências do pensamento que predominava, por exemplo, nas Ciências Sociais na primeira metade do século XX,
perceptível no trato de alguns temas como o da questão racial. Porém, este aspecto não reduz a relevância de sua
obra e a necessidade de atualizá-la a partir do diálogo com outros pensadores, clássicos e contemporâneos e com
a própria realidade brasileira. Cabe dizer que antes mesmo da publicação de Formação do Brasil Contemporâneo
(1942), Caio Prado, em 1933, na primeira versão do livro Evolução Política do Brasil, utiliza de forma inédita no
Brasil a ideia de classes sociais como conceito para analisar os movimentos sociais e políticos ao longo da história
brasileira. De forma inovadora, Prado procura demonstrar os distintos interesses e os conflitos entre as classes nos
diferentes contextos desta história, com destaque para as classes populares e/ou setores inorgânicos. (REIS, 1999).
Eventos como a Balaiada, Cabanada e a Revolta Praieira são citados como exemplos de resistência ao mesmo
tempo que indicam a incipiente participação direta desses setores nos eventos políticos do país.
46
A concepção sobre o papel das colônias no desenvolvimento capitalista, especialmente dentro do processo de
acumulação primitiva (MARX, [1867] 1984), ou seja, de intensa expropriação e exploração da força de trabalho,
necessário para viabilizar a acumulação de capital e concentração de riquezas sobre a qual o “novo mundo” iria se
abancar, foi fundamental para o entendimento acerca do “modo de ser” capitalista e da sua necessidade nata de se
expandir e universalizar. Sobre esse processo, Eduardo Galeano ([1971] 2008, p.41) nos oferece a seguinte
caracterização acerca do papel da América Latina em tal desenvolvimento: “Os metais arrebatados aos novos
domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até mesmo dizer que o tornaram possível.
Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas, que Alexandre Magno despejou sobre o mundo helênico,
poderiam se comparar com a magnitude dessa formidável contribuição da América para o progresso alheio.”. E
acrescenta: “[...] a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em razão das
necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos
foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que o valor das importações, compostas de
escravos, sal e artigos de luxo. [...]. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado
interno do capitalismo que emergia. [...]. No fim das contas, tampouco em nosso tempo a existência dos centros
ricos do capitalismo pode explicar-se sem a existência das periferias pobres e submetidas: umas e outras integram
o mesmo sistema.” (GALEANO, 2008, p.48-49).
110
A escravidão dos negros – uma escravidão puramente industrial – que, em todo caso,
desaparece com o desenvolvimento da sociedade burguesa e é com ela incompatível,
pressupõe o trabalho assalariado, e se outros Estados livres, com trabalho assalariado,
não existissem ao lado de tal escravidão, mas a isolassem, imediatamente todas as
condições sociais nos Estados escravistas se converteriam em formas pré-civilizadas.
(MARX, [1939] 2011, p.249-250).
47
Sobre esse tema, durante o doutorado tivemos a oportunidade de aprofundar nossa leitura e desenvolver algumas
reflexões introdutórias, brevemente apresentadas no artigo intitulado Setores orgânico e inorgânico na formação
social brasileira em Caio Prado Jr. Disponível em: < http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/27844>.
112
países, reproduzindo todas as etapas de seu passado […]. O desenvolvimento de uma nação
historicamente atrasada conduz [...] a uma combinação original das diversas fases do processus
histórico. A órbita descrita toma, em seu conjunto, um caráter irregular, complexo, combinado.”
Daí o entendimento, já apresentado nas páginas anteriores, de que não há etapas bem definidas
de desenvolvimento pelas quais cada formação social deva passar, inevitavelmente ou
predestinadamente. Essa constatação contribuiu de forma decisiva para compreender, por
exemplo, o por que foi viável na história da Rússia (semi-feudal) uma revolução popular
socialista, além da existência de formas de sociedade tão distintas sob o mesmo modo de
produção.
Aqui chamamos a atenção para um aspecto que demonstra a veracidade dessa
constatação: a questão da transição. Sobre este tema, novamente teremos outras tantas
interpretações, mesmo na perspectiva marxista, que se complementam ou se conflitam. 48 Isto,
muito embora, haja uma concepção prevalente: “[...] a ideia de que o Brasil transitou para a
48
A literatura marxista disponível que trate sobre a questão da transição de um sistema de relações sociais de
produção ou, em outras palavras, de um modo de produção para outro, é vasta. Dentre os pensadores que se
destacaram no esforço de desenvolver uma análise a partir da realidade brasileira, encontra-se Sodré (1980, p.147)
e sua tese da “regressão feudal”, ou seja, da existência em algum momento da história do Brasil de uma passagem
de relações de produção escravistas a feudais. Como expressões de um “feudalismo não codificado”, o autor
apresenta as seguintes: “[...] as lutas de famílias, o direito dos seus moradores, as formas patológicas que
proliferaram em disfarces como o do banditismo endêmico, da arregimentação das forças paramilitares nas grandes
fazendas, dos currais eleitorais que constituíram o fundo de pano da chamada ‘política dos governadores’, do
fanatismo religioso e das manifestações de rebeldia a que deu lugar, como heréticas.”. Esses aspectos, para Sodré
(1980), muito se associavam à temática medieval e estariam presentes com maior força em algumas regiões do
Brasil, subsidiando, inclusive, alguns dos principais enredos da literatura brasileira: “[...] a mulher que se disfarça
em homem para combater ou exercer vingança, os amores contrariados pela rivalidade familiar, as gestas de bandos
armados varrendo os sertões. No fundo do amplíssimo painel das guerrilhas narradas em Grande Sertão: Veredas
está o latifúndio feudal, em seu esplendor.”. Frente a tais evidências, de acordo com o autor, teria existido no Brasil
tanto o escravismo, “e passagem ao feudalismo, quanto feudalismo, e passagem ao capitalismo. Esta sequência
[...] decorre da análise do particular brasileiro, e não de simples adoção de uma fórmula, como se fora universal e
obrigatória.” (SODRÉ, 1980, p.149). Nessa perspectiva, o monopólio da terra seria a expressão central de uma
forma particular de relação feudal. Ainda para Sodré (1980, p.156), a transição entre tal forma particular e o modo
de produção capitalista no Brasil deu-se sem uma ruptura revolucionária, o que muito se assemelha, para ele e
outros autores, ao exemplo da chamada via-prussiana elaborada nas análises de Lênin ([1982] 1899) sobre o
desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Nas palavras do próprio pensador-militante, “os recursos às formas
ditatoriais e aos regimes fascistas são recursos de que se vale a burguesia, pressionada pelo imperialismo, para
assegurar a via prussiana e a exploração cômoda e pacífica da força de trabalho: o Estado Novo como a ‘redentora’
são exemplos dessa acomodação com o atraso [...]. De qualquer forma, completar as tarefas peculiares à revolução
burguesa e no Brasil ainda não alcançadas pelas próprias características de que esta se tem revestido, é
indispensável.”. Esse processo é caracterizado por Mazzeo (1995, p.21) como “via-prussiano-colonial do
capitalismo brasileiro”, constituído por episódios que podem ser associados, para o autor, a um “bonapartismo-
colonial”: “A não-ruptura com a estrutura de produção escravista e exportadora confirmará a dimensão colonial
da economia brasileira [...]. Daí denominarmos o caminho brasileiro para o capitalismo de ‘via prussiano-colonial’.”
(MAZZEO, 1995, p.22). Nesse sentido, o caráter da revolução de 1930 representaria um redimensionamento do
capitalismo brasileiro, não se desvinculando do caminho autocrático e da “via prussiano-colonial”, mas
reafirmando-o. Já para Coutinho (2008), que também se remete a nossa via-prussiana, os momentos de transição
no Brasil são caracterizados pelas transformações pelo alto que configuram a nossa “revolução passiva”, uma
analogia que o autor faz com as análises de Antônio Gramsci sobre a realidade italiana.
114
modernidade capitalista através de uma via não clássica (e não de uma revolução jacobina,
desencadeada de baixo para cima) [...].” (COUTINHO, 2011, p.248).
O fato é que, mesmo diante de todas as desconformidades, o “agente organizador” da
acumulação capitalista não deixou de ser a burguesia associada ao grande capital (IANNI, 2004)
e destituída de um projeto político de orientação democrática e de soberania nacional, mediante
arranjos de cúpula com setores oligárquicos, sem por isso realizar uma “revolução democrático-
burguesa” ou de “libertação nacional” (IAMAMOTO, 2007, p.132). Em outras palavras, a
dinâmica do capital por aqui foi realizada “por meio de mecanismos ainda não essencialmente
capitalistas” (GORENDER, 1982), não tendo como “meio ambiente original”, de transição, o
definhamento do feudalismo, ao contrário da Europa.
Tal como já sinalizamos no capítulo anterior e aqui retomamos a partir de outros autores,
para Coutinho (2011), dois conceitos são centrais na literatura marxista para caracterizar a via
não-clássica e os processos de modernização conservadora 49 no Brasil: a “Via Prussiana”,
elaborada por Lênin, presente especialmente no Programa agrário da social-democracia de
1907, e a “Revolução Passiva”, de Antônio Gramsci, concepção concebida a partir de sua
análise em torno do processo de modernização e unificação do Estado italiano, contexto
também conhecido como Risorgimento. 50
Essas realidades, tal como os exemplos da
Alemanha, Japão e Estados Unidos, revelam a força e universalidade do desigual e combinado
no desenvolvimento capitalista, embora longe da condição de dependência que aprofunda tais
49
A terminologia “modernização conservadora” tem sido utilizada recorrentemente por vários autores brasileiros
para expressar uma das principais características da nossa formação social: a permanente relação entre arcaico e
moderno como também os diversos episódios de transformações pelo alto sob os quais compõem o processo de
modernização capitalista no Brasil. Todavia, é importante fazer a ressalva de que se trata de um conceito acadêmico
elaborado pelo sociólogo norte-americano Barrington Moore Jr. “Ele distingue entre diferentes caminhos de
trânsito para a modernidade, um que leva à criação de sociedades liberal-democráticas, outro que leva a formações
de tipo autoritário e mesmo fascista. Embora não cite nem Lenin nem Gramsci, Moore distingue os dois caminhos
valendo-se de determinações análogas àquelas apontadas pelos dois marxistas, ou seja, entre outras, a conservação
de várias características da propriedade fundiária pré-capitalista e, consequentemente, do poder dos latifundiários,
o que resulta do fato de que a ‘moderna’ burguesia industrial prefere conciliar com o atraso a aliar-se às classes
populares.” (COUTINHO, [2000] 2008, p.109).
50
Novamente nos respaldando em Coutinho ([1990] 2011, p.205), consideramos válida a seguinte observação
sobre a concepção de via clássica e de via prussiana: “São aqui indicadas duas vias principais, que Lenin chamaria
de "americana" (ou "clássica”) e de "prussiana". A via "clássica" implica uma radical transformação da estrutura
agrária: a antiga propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração camponesa. Nesse
caso, não só desaparecem as relações de trabalho pré-capitalistas, fundadas na coerção extraeconômica sobre o
trabalhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já que são eliminadas as formas econômicas
em que ela se apoiava e de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução como classe. Diverso é o caso da
"via prussiana": aqui a velha propriedade rural, conservando sua grande dimensão, vai se tornando
progressivamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de formas de trabalho fundadas na
coerção extraeconômica, em vínculos de dependência ou subordinação que se situam fora das relações
"impessoais" do mercado, e que vão desde a violência aberta até a intromissão na vida privada do trabalhador. É
evidente que isso permite a conservação (ou mesmo o fortalecimento) do poder político do velho tipo de
proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da nova ordem capitalista”.
115
características. Vejamos o que Lênin (apud COUTINHO, 2011, p.204) também nos diz sobre
esse tema tomando como referência as formas de propriedade agrária e como se deu a relação
entre o velho e o novo para a conformação do padrão de (re)produção capitalista nas diferentes
formações sociais:
Marx já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção capitalista
encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde ao capitalismo. O
próprio capitalismo cria para si as formas correspondentes de relações agrárias,
partindo das velhas formas de posse da terra [...]. Na Alemanha, a transformação das
formas medievais de propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo a
via reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propriedades feudais, que se foram
transformando lentamente em fazendas de Junkers [...]. Nos Estados Unidos, a
transformação foi violenta [...]. As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a
grande propriedade agrária feudal se converteu em pequena propriedade burguesa.
Dessa forma, o solo propício para a consolidação no país das relações capitalistas de
(re)produção dá-se, especialmente, a partir da década de 1930, mesmo que para isso
acontecimentos anteriores ao próprio século XX tenham sido também fundamentais. Estamos
117
falando de uma sociedade na qual a transição capitalista ocorre sem profundas alterações na
estrutura social, especialmente agrária. “Em lugar de uma ‘autêntica’ revolução, ‘debaixo para
cima’, realizam-se arranjos de cúpula, ‘de cima para baixo’.” (IANNI, 2004, p.231), o que, para
Coutinho (2011, p.214), poderíamos associar a concepção de “revolução-restauração” presente
na obra de Antônio Gramsci quando se refere aos processos, já sinalizados por nós, de
transformação pelo alto, “pretendendo com isso indicar que o momento ‘restaurador’ ou
‘conservador’ desse tipo de transformação não impede que através dela ocorram também
modificações efetivas na ordem social.”. Novamente, trata-se de um fator histórico em que,
apesar de possuir uma tônica mais forte em certos países, não são a estes um privilégio, ou
melhor, uma excepcionalidade.
Essa condição é, portanto, central para entendermos a natureza das classes sociais (e de
suas frações) e sua relação com o desenvolvimento desigual, o que foi decisivo na construção
de alianças e dos processos de transição, desde o exemplo russo, daquelas feitas entre os
proprietários nobres, a burguesia e o clero progressista, em que “os burgueses liberais, pondo
de lado a sua opinião sobre ortodoxia, julgavam que, para a conservação da ordem, seria
necessário tanto uma aliança com a Igreja como com a Monarquia” (TROTSKY, 1977, p.165),
ao caso brasileiro, mais precisamente aquelas em que a “burguesia mostrou as verdadeiras
entranhas, reagindo de maneira predominantemente reacionária e ultraconservadora, dentro da
melhor tradição do mandonismo oligárquico [...].” (FERNANDES, 2006, p.242). Tais
exemplos demonstram, em semelhantes, embora tão distintas, realidades, o quanto a “burguesia
mantém múltiplas polarizações com as estruturas econômicas, sociais e políticas do país”. E
mais:
Diante disso, voltamos ao trecho do romance presente no início deste capítulo para
apresentarmos uma terceira e última reflexão que ainda pode nos remeter, analogicamente, às
palavras ditas pelo jagunço: trata-se de uma caracterização que, para nós, atravessa e constitui
os demais elementos apontados até então sobre o desenvolvimento desigual e a conformação
das classes sociais no Brasil. Referimo-nos aquilo que, assim como o personagem Riobaldo de
Grande Sertão Veredas, ficamos sabendo “para de lá de tantos assombros”, pois, tal como no
Mito da Alegoria da Caverna, ás vezes, a realidade é para nós como um quarto escuro que “só
no último derradeiro é que clareiam a sala”. Continuando nas palavras do jagunço, “digo: o real
não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. (ROSA,
[1956] 2001, p.80). Mas o que isso quer dizer? Em que ponto se quer chegar?
A realidade nos revela que, indo para além do factual e da aparência, do simples ao
complexo, é possível se aproximar de um concreto pensado que nos possibilita entender a
dinâmica histórica do desenvolvimento desigual e combinado da humanidade e, mais
precisamente, do capitalismo brasileiro nas suas diversas expressões. Afinal, “qualquer
exposição histórica tem o direito de pretender que se lhe reconheça objetivamente quando [...]
ela reproduz a ligação interna deles à base do desenvolvimento real das relações sociais. A razão
íntima de ser do processo que então se desvenda é [...] a melhor verificação da objetividade da
exposição.” (TROTSKY, 1977, p.382).
Dessa forma, o que nos parece “desenvolvimento” é “subdesenvolvimento”;
“modernização” é “conservação”, e vice-versa. Isso nos faz lembrar a velha, porém atual, frase
de Tancredi do romance italiano “O Leopardo”, escrito por Tomasi di Lampedusa, a nos dizer
que “algo deve mudar para que tudo continue como está” ou que “tudo deve mudar para que
tudo fique como está”. Em outras palavras, trata-se da nossa modernização que viabiliza a
constituição do “padrão compósito e articulado da hegemonia burguesa” no Brasil.
(FERNANDES, 2006, p.416). Esse aspecto, no nosso entendimento, é fundamental para a
análise da realidade brasileira para além do dualismo e determinismo, revelando como o
capitalismo articula permanentemente aspectos considerados “avançados” e “retrógrados” do
ponto de vista do desenvolvimento social sobre o qual tratamos no primeiro capítulo.
Recorremos novamente às palavras de Sodré (1980, p.143) quando nos diz: “Está claro,
e aqui entra a relação entre o universal e o particular, que, adiante, quando o capitalismo triunfa
no ocidente europeu, põe a seu serviço uma variadíssima constelação de formas de produção
não-capitalistas”. Sobre isso, alguns dos intérpretes brasileiros sinalizam um diálogo com Rosa
Luxemburgo, mais precisamente com seu trabalho A Acumulação do Capital (1913), onde
mostra como o capitalismo se vale das relações que não são tipicamente capitalistas. Para
119
Gorender (1980, p.56), por exemplo, Rosa “não conseguiu explicar a reprodução ampliada do
capital senão pela realização necessária de uma parte da mais-valia num ambiente não-
capitalista, erigindo, dessa maneira, o intercâmbio com modos de produção não-capitalistas em
fator estrutural indispensável à própria existência do modo de produção capitalista”. Tal
condição nos é extremamente válida até hoje não apenas para melhor compreendermos nossa
constituição no passado, mas para entendermos os avanços e retrocessos do nosso presente, por
exemplo, em relação às desigualdades regionais na recente realidade brasileira, aspecto
propulsor do nosso trabalho de pesquisa.
É, portanto, com base nesse lastro - central para o entendimento do capitalismo
brasileiro, de suas classes e frações, da natureza do Estado, da democracia como também das
desigualdades regionais - que nos deteremos de forma mais precisa a partir de então. Isto,
sabendo que não será no início ou no término deste trabalho suas principais revelações e
contribuições, mas no seu desenrolar, “no meio da travessia”. O intuito é que não percamos,
nesse meio, o “fio da meada”.
Essa característica evidencia-se com maior grau nos países dependentes (nos processos
de transição, na constituição das classes sociais, das formas de propriedade e de exploração da
força de trabalho, nos valores morais e éticos etc.) e em determinadas regiões onde o peso e a
funcionalidade do atraso tornam-se mais potente, tal como é também a marca das desigualdades
120
combinado do capital” (MANDEL, 1982, p.58). 51 Portanto, não é que exista “menos
capitalismo” e “mais capitalismo” ou mesmo uma incompletude do capitalismo em
determinadas regiões, mas configurações diferenciadas do próprio capitalismo.
Diante desse entendimento, é inevitável não lembrar da frase de José Lins do Rego
quando nos diz que "o pior não é morrer de fome num deserto: é não ter o que comer na Terra
Prometida.". Essa consideração nos possibilita refletir sobre o quanto a articulação necessária
entre o atraso e o moderno é própria do modo de ser capitalista. Trata-se de uma relação com
dois pesos e duas medidas cuja funcionalidade do atraso para a conservação e o aprofundamento
do “embrutecimento cultural”, mesmo diante de tanta modernidade, torna-se cada vez maior
em detrimento do potencial civilizatório, pondo na ordem do dia a opção entre socialismo ou
barbárie.
Por conseguinte, a compreensão sobre essa necessária articulação como um requisito do
capitalismo dependente leva-nos a outra importante concepção que, apesar de considerar o
“subdesenvolvimento” como condição efetivamente existente, o trata longe de qualquer
dualismo. Para Florestan Fernandes ([1968] 2008, p.54), a sociedade capitalista
subdesenvolvida não é “uma redução patológica daquele tipo social, considerado em
determinado estágio do seu desenvolvimento”. O subdesenvolvimento e seu regime de classes,
nesse sentido, só podem ser explicados pelas condições de dependência de uma civilização
nucleada no exterior. Resumidamente:
51
É válido destacar a proximidade e discordâncias dessa análise de Ernest Mandel com aquela feita por André
Gunder Frank. Observemos o que o próprio Mandel nos fala sobre isso: “Em última instância, o problema da ‘troca
desigual’ traz de volta a questão da estrutura social diferente dos países subdesenvolvidos. [...] Também
concordamos com a tese básica de André Gunder Frank sobre essa questão: o próprio desenvolvimento do
capitalismo produz a justaposição do ‘superdesenvolvimento’ das metrópoles e do ‘subdesenvolvimento’ das
colônias e semicolônias. Nossas diferenças com Frank originam-se de sua análise dos mecanismos que permitem
a dependência dos países subdesenvolvidos: ele os vê na natureza capitalista da economia dessas colônias e
semicolônias (que confunde com subordinação ao mercado mundial capitalista); nós os vemos na combinação
específica de relações de produção pré-capitalistas, semicapitalistas e capitalistas, que caracteriza a estrutura social
desses países.” (MANDEL, 1982, p.258). Em outras palavras, Mandel atenta que não se pode deslocar a
centralidade da análise da produção para a distribuição.
122
cultural, fazendo com que as mudanças não se reflitam, duradouramente, a não ser pela
“substituição das polarizações dos vínculos [e formas] de heteronomia [...] crescentemente mais
complexas, envolventes e eficazes”, o desenvolvimento capitalista no país não pode ser
examinado como a mera reprodução do seu passado. Basta observar os “diferentes colapsos do
velho ou do novo colonialismo e do imperialismo econômico [que] não conduziram senão a
formas de heteronomia”. (FERNANDES, 2008, p.56). Caso contrário, estaríamos fraturando
em cheio a perspectiva crítica e dialética que procuramos nos orientar.
Assim, atentar para os ensinamentos de Marx ([1858] 2008) em relação a anatomia do
macaco, pensando na “forma clássica” como a mais desenvolvida e termos esta como parâmetro
para pensar outras formas, inclusive a “anatomia do caso brasileiro”, implica levarmos em
consideração os fundamentos que constituíram durante um longo tempo tal formação social
como também suas transformações em curso até nossos dias. Nesse sentido, Coutinho (2011)
expressa em toda a sua obra um valoroso esforço para que a “Imagem do Brasil” na tradição
marxista não minimize os aspectos políticos em detrimento dos econômicos, o que fez com que
o autor travasse uma dura, porém, generosa avaliação no diálogo com outros intérpretes. 52
Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil conhece uma trajetória que leva de
uma situação de completa debilidade (ou mesmo ausência) de sociedade civil até outra
situação, a apresente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais
complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória é expressão do
progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias transversas, na era do capitalismo
industrial. (COUTINHO, [1990] 2011, p.18-19).
52
Dentre as ponderações feitas por Coutinho (2011, p.214) no diálogo com outros intérpretes brasileiros marxistas,
destacamos aquelas voltadas, por exemplo, a Caio Prado Junior, sua ênfase na conservação e tendência a
“minimizar e subestimar os elementos de ‘modernização’ que eles [os processos de transição] também trouxeram
consigo”, sem desconsiderar, entretanto, que as categorias marxistas que esse grande pensador comunista
“dispunha – e muitas das que inventou – permitiram-lhe chegar, na maioria dos casos, a análises lúcidas, fecundas
e quase sempre justas.” (2011, p.214). Segundo o autor, “[...] pode- se constatar que, na análise do nosso presente,
Caio Prado se aproxima em muitos pontos do ‘estagnacionismo’ contido em tal paradigma: o desenvolvimento
brasileiro, sua passagem definitiva para a ‘modernidade’, estaria bloqueado pelo ‘atraso’, seja nas relações
agrárias, seja no setor industrial, um ‘atraso’ proveniente, pensa ele, da limitação estrutural do mercado interno e
da dependência ao imperialismo. E, além dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa convergência objetiva
entre o Caio Prado tardio e os teóricos do ‘desenvolvimento do subdesenvolvimento’, como André Gunder Frank
e Ruy Mauro Marini, o que levou a um mal-entendido no plano político: A revolução brasileira, publicado cm
1966, terminou por alimentar a ideologia da ultraesquerda no Brasil, a qual se baseava na falsa alternativa entre
‘socialismo já’' ou ‘ditadura fascista com estagnação econômica’. Essa alternativa não está absolutamente presente
no livro de Caio Prado; mas a sua visão do Brasil como estruturalmente atrasado e estagnado podia contribuir
objetivamente para alimentá-la, como de fato ocorreu. Finalmente, cabe observar que essa visão ‘atrasada’ parece
ser responsável pela insuficiente formulação da questão da democracia política nas análises do historiador paulista.
Se o Brasil é plenamente capitalista, mas chegou a essa situação através de processos de transição que configuram
uma ordem social excludente e autoritária - como nos ensina Caio Prado -, então a principal tarefa histórica que se
coloca hoje ao nosso povo, ou seja, o conteúdo da ‘revolução brasileira’, consiste cm inverter essa tendência
‘prussiana’, por meio da consolidação daquilo que, em sua obra de 1933, o historiador chamava de ‘estrutura
política democrática e popular’, agora tomada possível pela emergência de novas condições objetivas e
subjetivas.”. (COUTINHO, 2011, p.217-218).
123
Isso quer dizer que a caracterização do Brasil desde a época colonial deve levar em
consideração as mudanças, por exemplo, no âmbito da “sociedade civil” que, segundo Coutinho
(2011, p.19), praticamente inexistia no sistema de produção escravista, afinal, não havia
parlamento, partidos políticos, sistema de educação, direito de expressar ideias e publicizá-las
através de livros e jornais, intelectuais para além daqueles “diretamente ligados à administração
colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja”. Assim, apesar da marca da “manobra pelo alto”,
dos “golpes palacianos” ou simplesmente das “mudanças pelo alto” expressas em episódios
como o da Independência e Proclamação da República, é preciso validar que, quando o
“capitalismo vai se tornando o modo de produção dominante também nas relações internas”, há
o importante surgimento de novas classes e camadas sociais no cenário político do país, “ainda
que continue atrasada e fortemente marcada por restos pré-capitalistas [...].” (COUTINHO,
2011, p.23).
Essa ponderação é fundamental para não cairmos numa postura fatalista ou mesmo, de
alguma forma, determinista ao avaliarmos, mais adiante, o peso do atraso nas transformações
mais recentes da realidade brasileira. É certo que hoje, apesar de tantos retrocessos,
encontramos milhões de pessoas que entenderam que é possível viver em melhores condições,
irem às ruas e se manifestarem de várias formas. Tais mediações são centrais também para nos
precavermos diante de análises que, dando ênfase às recentes mudanças em relação à
conservação histórica, de um lado, propagandeiam o peso do “Brasil potência” como uma
“nação emergente” e, de outro, referendam a tese do subimperialismo, descolando o
“subdesenvolvimento” a sua existência historicamente condicionada. Vale lembrar que esta
condição – “subdesenvolvida” - não é mero produto do atraso que o crescimento econômico
mais acelerado possa superar, tal como já trabalhamos no capítulo anterior. Sobre isto,
recorremos novamente a Mandel (1982, p.263-264) quando ainda na segunda metade do século
XX nos sinaliza o seguinte:
Embora esse assunto retorne mais adiante às nossas discussões para subsidiar a análise
mais contemporânea do desenvolvimento desigual e combinado e, portanto, da questão
regional, por ora, é importante destacá-lo no intuito de lembrarmos os aspectos estruturais e
conjunturais que incidem permanentemente na dialética entre mudança e conservação no
capitalismo. Para tanto, o entendimento sobre a realidade brasileira sem a mediação central da
sua condição de dependência certamente nos levaria a um emaranhado no caminho da pesquisa
em que nem mesmo no meio da travessia o real estaria presente. Afinal, “uma sociedade seria
subdesenvolvida não por ser pobre e economicamente atrasada” (SINGER, 2008, p.13), mas
por compor com o sistema capitalista de forma desigual e combinada na sua condição de
dependência que, inclusive, se difere de muitas outras composições também dependentes.
Nesses caminhos e descaminhos que integram o Brasil ao padrão de acumulação
capitalista, implicando o universal e o particular (GORENDER, 1980, p.65), quais são,
portanto, as bases elementares que, combinadas, sustentam o modo particular e atual de
desenvolvimento desigual no país diante da consolidação, de fato, dos processos de transição,
mesmo que pelo alto, e da revolução burguesa, mesmo que sem rupturas e pela via da
autocracia burguesa (FLORESTAN, 2006)? Em outras palavras, quais os aspectos centrais que
conformam nossa “especificidade particular” (OLIVEIRA, 2013)? As motivações a tais
questões não são novas, mas constituem um verdadeiro motor, no presente e no passado, na
vida daqueles que não estavam (ou estão) em busca apenas de interpretarem o mundo de
diferentes maneiras, mas também de transformá-lo (MARX; ENGELS, [1846] 1998). No caso
brasileiro, como resultado, temos uma gama de contribuições que buscaram as respostas, da
direita à esquerda, diante de tantas questões em momentos históricos distintos, contudo, como
diria Coutinho (2011, p.239), a tarefa coletiva de elaborar uma “Imagem do Brasil”, tendo, no
caso, como base o marxismo, “é uma tarefa sempre em aberto”.
“Que espécie de estímulo é necessário para perturbar uma forma determinada de
justaposição de desenvolvimento e subdesenvolvimento, guia-la numa direção diferente ou
revolucioná-la?”. Já se perguntava Mandel (1982). Tomando tal questionamento para nosso
contexto, a identificação desse “estímulo” para guiar a realidade numa outra direção demanda
necessariamente o entendimento sobre como tem se configurado a “justaposição de
desenvolvimento e subdesenvolvimento” no Brasil e em suas regiões. Para tanto, já nos ensinou
o autor, “devem ser consideradas todas as variáveis básicas” do modo de produção capitalista.
Sobretudo, é preciso não esquecer que a exploração de regiões [...] e dos ramos de
produção tecnologicamente menos desenvolvidos não se limitam a suceder-se
125
temporalmente como fontes principais de superlucros, mas que, além disso, coexistem
lado a lado em cada uma das três fases do modo de produção capitalista. Uma
clarificação dessas combinações torna-se indispensável para uma compreensão do
capitalismo tardio. (MANDEL, 1982, p.72-73).
Ao contrário do que ocorreu em outros países, inclusive naqueles onde também não
houve uma transição clássica para o capitalismo, permitindo, por exemplo, a completa
transformação da estrutura agrária e das relações sociais pré-capitalistas “fundadas na coerção
extraeconômica sobre o trabalhador” e na “velha classe rural dominante”, no Brasil, torna-se
peculiar a adaptação da grande exploração rural escravista, herdada da Colônia, ao capitalismo
que conserva a grande propriedade como também os traços servis nas relações de trabalho.
Desse modo, como já vimos, “[...] o que no Brasil se adaptou ‘conservadoramente’ ao
capitalismo não foi o domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifúndio peculiar:
uma exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada desde as origens para a produção de
valores de troca para o mercado externo) e fundada em relações escravistas de trabalho.”
(COUTINHO, [1990] 2011, p.205-206).
Podemos estabelecer uma relação entre o peso agrário do desenvolvimento capitalista
no Brasil com outras realidades, a exemplo da Rússia. Porém, esse peso constitui-se de forma
bastante diferenciada. Basta observarmos as palavras de Lênin ([1899] 1982, p.203-204) ao
tratar do desenvolvimento do capitalismo russo e o papel do que ele vai denominar de
“capitalismo agrário” na época:
“Que valeria aquela vida de usina, vendo tanta gente morrer e a fome andando pelo meio
do povo, com mais impiedade que pela casa de Jesuíno?”. Eis a indagação que se apresenta ao
leitor do romance Menino de Engenho de José Lins do Rego ([1932] 2012, p.345) revelando o
quadro de decadência do Nordeste canavieiro, centrado no Engenho, dando lugar a moderna
Usina que “não permitia que o povo ocupasse um pedaço de terra que fosse boa de cana”.
(REGO, 2012, p. 102).
Em outra obra, Vidas Secas, de Graciliano Ramos ([1938] 1982), é possível observar o
mesmo contexto sob outra percepção:
53 “Com o desenvolvimento do capitalismo no campo e o domínio do capital sobre a agricultura daí resultante, a
demanda de trabalho sofre na economia agrícola uma diminuição relativa e, depois, uma diminuição absoluta, à
medida que o capital se acumula. Uma parte da população do campo, arruinada pela concorrência e pela espoliação,
bem como a parte deslocada pelo progresso técnico, 'está sempre a ponto de se converter em população urbana ou
manufatureira e à espera que ocorram circunstâncias que favoreçam essa conversão'. Para a cidade, já que a piora
das condições de vida no campo não lhes permite mais ali permanecer, vão, ao lado dos mais aptos, também os
mais pobres, aqueles que 'já puseram um pé na lama do pauperismo'. As correntes migratórias normalmente afluem
em ritmo lento, mas – é Marx quem diz – há 'momentos excepcionais em que os seus canais de descarga se abrem
ao máximo'. Nesses momentos a superpopulação relativa ou o aumento excessivo do exército de reserva do
trabalho atinge proporções extraordinárias ou mesmo alarmantes, porque muitos dos migrantes não conseguem
ingressar no mercado de trabalho e seu padrão de vida cai abaixo dos níveis de subsistência. O pauperismo cresce:
'sua produção está compreendida na produção da superpopulação relativa, sua necessidade, na necessidade
daquela; o pauperismo forma, com a superpopulação relativa, uma condição de existência da riqueza capitalista'.”
(GUIMARÃES, 2008, p.26).
128
Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo
os sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas. [...] Angustiado, Chico Bento
apalpava os bolsos... nem um triste vintém azinhavrado... [...] O vaqueiro saiu com a
rede, resoluto: - Vou ali naquela bodega, ver se dou um jeito... Voltou mais tarde, sem
a rede, trazendo uma rapadura e um litro de farinha. [...] Faminta, a meninada avançou
[...]. De manhã cedo, Mocinha foi ao Castro, ver se arranjava algum serviço, uma
lavagem de roupa, qualquer coisa que lhe desse para ganhar uns vinténs. [...]
Duramente Chico Bento trabalhou todo o dia no serviço da barragem, sentindo acabar
o fôlego. Só de longe em longe parava para descansar o pobre peito cansado e os
músculos vadios. E o almoço, ao meio-dia, onde, junto ao pirão, um naco de carne
cheiroso emergia, mal o soergueu e animou. [...] já era tão antiga, tão bem instalada a
sua fome, para fugir assim, diante do primeiro prato de feijão, da primeira lasca de
carne!.. E até lhe amargou o gosto daquela carne, lembrando-se de que Cordulina, a
essa hora, engolia talvez um triste resto de farinha, e junto dela, devorada a magra
ração, os meninos choravam... Mas, à tarde, quando sentiu tinir no bolso o jornal
ganho, um novo sentimento o animou. Tinha finalmente algum dinheiro - só dois
níqueis, é bem verdade! – mas dinheiro ganho com seu esforço, com os calangros dos
seus braços, e que o auxiliaria a alimentar a filharada esfomeada... [...]. Ele trazia um
pão, rapadura e um pouco de café. E o alvoroço da meninada que o acolheu, e lhe
arrebatou as compras, bem lhe pagou as tristes horas do dia, curvado sobre a pá, em
tempo de morrer de calor e cansaço... (QUEIROZ, [1930] 1937, p.20-46).
Que fatores podem causar uma modificação abrupta das diferenças em níveis de
produtividade? [...] A exemplo da questão das fontes de superlucro no modo de
produção capitalista, esses problemas tampouco podem ser solucionados com uma
única fórmula. Também nesse caso devem ser consideradas todas as variáveis básicas
desse modo de produção. Sobretudo, é preciso não esquecer que a exploração de
regiões agrícolas, a exploração de colônias e semicolônias e a exploração dos ramos
de produção tecnologicamente menos desenvolvidos não se limitam a suceder-se
temporalmente como fontes principais de superlucros, mas que, além disso, coexistem
lado a lado em cada uma das três fases do modo de produção capitalista. Uma
clarificação dessas combinações torna-se indispensável para uma compreensão do
capitalismo tardio. (MANDEL, 1982, p.72-73).
De um lado, as flutuações em seu nível de emprego são muito maiores do que no caso
dos trabalhadores “estáveis”, “chefes de família”. De outro, recebem muito menos por
sua força de trabalho, uma vez que a burguesia cinicamente pressupõe que sua renda
seja apenas um “complemento” ao “orçamento familiar”. Muitas vezes seus salários
se mostram inadequados até mesmo para a reconstrução física de sua força de trabalho,
de maneira que, para garantir a custo a sobrevivência, são obrigados a recorrer à
beneficência, ao seguro social, á busca “ilegal” de recursos, e assim por diante. Dessa
forma, parte dos custos de reprodução de sua força de trabalho é “socializado”.
(MANDEL, 1982, p.128)
Voltando ao “problema agrário”, deve-se dizer que a sua “solução” se deu por aqui de
forma bem distinta de outros países, não demandando, por exemplo, ampliação do consumo
dos trabalhadores rurais nem diversificação da produção. Isso refletiu também na indústria e
54 O monopólio da terra no país tem sido palco para enredos da vida real tão bem anunciados por Sodré (1980,
p.155) no século passado e que continuam tão presentes, fazendo-nos perceber o quanto o “[...] Brasil arcaico nos
cerca de todos os lados; o latifúndio persiste, resiste, abalado, mas sobrevivendo a tudo. As alterações agrárias
processam-se pela duríssima via prussiana: todos os dias estamos assistindo a episódios, choques e escândalos
dessa via tortuosa, que inflige sofrimento e miséria às massas camponesas, mantidas em secular atraso, ainda nos
primeiros esforços de organização e nas primeiras luzes da tomada de consciência.”.
131
nas cidades, com o avançar do processo de urbanização, tal como veremos mais adiante,
expressando como, de fato, algumas características não ficaram presas no tempo do sistema
colonial, onde as “classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as
economias internas, nem elevar os níveis técnicos e culturais da população”. O que de fato
ocorria era uma funcionalidade da imensa miséria no campo e na cidade, “tão lucrativa do ponto
de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de
consumo.” (GALEANO, 2008, p.49).
Segundo Oliveira ([1972] 2003, p.43), trata-se na verdade de um “complexo de soluções
cujo denominador comum reside na permanente expansão horizontal da ocupação com
baixíssimos coeficientes de capitalização e até sem nenhuma capitalização prévia: numa palavra,
opera com uma sorte de ‘acumulação primitiva’.”. Este conceito, elaborado por Marx ao retratar
o processo de expropriação dos camponeses como condição precípua para a acumulação
capitalista, para o autor, deve ser repensando levando em consideração os “nossos fins” e, desse
modo, algumas peculiaridades nossas, tais como o fato de não ter ocorrido um processo de
expropriação da propriedade, mas do “excedente que se forma pela posse transitória da terra”
por intermédio, por exemplo, da figura do “parceiro” ou “morador”. Este, ao receber uma
parcela da terra cedida temporariamente pelo proprietário, ocupa, trabalha e cultiva a terra tanto
nas lavouras temporárias (de sua subsistência) como nas permanentes (comerciais) ou pastagens,
do proprietário, e em troca tem como pagamento da sua força de trabalho parte da produção,
sua moradia e comida. “Há, portanto, uma transferência de ‘trabalho morto’, de acumulação,
para o valor das culturas ou atividades do proprietário, ao passo que a subtração de valor que
se opera para o produtor direto reflete-se no preço dos produtos de sua lavoura, rebaixando-os.”
(OLIVEIRA, 2003, p.43).
Eis as circunstâncias centrais para se forjar um “proletariado rural” no Brasil, servindo
tanto às culturas comerciais como as de subsistência, tanto ao mercado interno como externo.
Tais condições, vale lembrar, estão conectadas com o processo de gênese da questão agrária no
capitalismo caracterizada por Marx ([1867]1984, p.282) através da “intermitente e sempre
renovada expropriação e expulsão do povo do campo”, fornecendo “à indústria urbana mais e
mais massas de proletários”. Esse processo confunde-se com a necessária criação do mercado
interno em cada país, mesmo que com todas as particularidades desse mercado no Brasil.55
55
“A expropriação e a expulsão de parte do povo do campo liberam, com os trabalhadores, não apenas seus meios
de subsistência e seu material de trabalho para o capital industrial, mas criam também o mercado interno. […]
Essas matérias-primas e esses meios de subsistência tornaram-se agora mercadorias; o grande arrendatário as
vende e nas manufaturas encontra ele seu mercado...” (MARX,1984, p.283-284).
132
para a nossa “especificidade particular” expressa, por exemplo, no fato da indústria no país,
como tal, não demandar o “mercado rural como consumidor”, diferentemente de outros países
como a própria Rússia. Esse quadro “nada tem a ver com a oposição formal de quaisquer setores
‘atrasado’ e ‘moderno’ [...] por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética”.
Daí a completa funcionalidade do atraso atraindo para si a força da pauperização absoluta,
mesmo que combinada com a relativa. Esse processo é explicado por Martins (1994, p.70-80)
com outras palavras:
Ao contrário do que ocorria com o modelo clássico da relação entre terra e capital, em
que a terra (e a renda territorial, isto é, o preço da terra) é reconhecida como entrave
à circulação e reprodução do capital, no modelo brasileiro o empecilho à reprodução
capitalista do capital na agricultura não foi removido por uma reforma agrária, mas
pelos incentivos fiscais. O empresário pagava pela terra, mesmo quando terra sem
documentação lícita e portanto produto de grilagem, isto é, de formas ilícitas de
aquisição. Em compensação, recebia gratuitamente, sob a forma de incentivo fiscal, o
capital de que necessitava para tornar a terra produtiva. O modelo brasileiro inverteu
o modelo clássico. Nesse sentido, reforçou politicamente a irracionalidade da
propriedade fundiária no desenvolvimento capitalista, reforçando, consequentemente,
o sistema oligárquico nela apoiado. Com a diferença, porém, de que a injeção de
dinheiro no sistema de propriedade modernizou parcialmente o mundo do latifúndio,
sem eliminá-lo [...].
[...] em última instância, a transferência de valor não está vinculada a nenhum tipo
específico de produção material, nem a nenhum grau específico de industrialização,
mas à diferença entre os respectivos graus de acumulação de capital, de produtividade
do trabalho e de taxa de mais-valia. Só se houvesse uma homogeneização geral da
produção capitalista em escala mundial é que as fontes de superlucros secariam. Sem
essa homogeneização, tudo o que muda é a forma do subdesenvolvimento, não o seu
conteúdo.
lado, também não podem, nem devem, se constituírem com uma intensidade simultânea de
capitalização “sob pena de concorrerem com a indústria propriamente dita pelos escassos
fundos disponíveis para a acumulação capitalística” (OLIVEIRA, 2003, p.56). Vale destacar
que o proletário rural é também elo fundamental dessa engenharia toda.
Essa condição interfere diretamente na divisão do trabalho, mais precisamente na sua
interdição ou estagnação, implicando, por conseguinte, em uma economia pautada centralmente
em produtos primários e em uma tecnologia retardatária, “bloqueando qualquer avanço
sistemático da industrialização e reforçando e perpetuando o subdesenvolvimento”. “Por esse
motivo Marx afirmou expressamente que, na alvorada do capitalismo, o desenvolvimento da
indústria nas cidades fabris é acompanhado pela destruição da indústria nos 'países dependentes'”
(MANDEL, 1984, p.58-59). Em outras palavras, a menor rotação de capital nos países centrais
implica em uma maior rotação nos países dependentes tal como uma menor composição
orgânica do capital nos primeiros, demanda uma realização mais rápida da mercadoria nos
segundos, conformando da divisão internacional do trabalho.
Assim, o tão detestável “inchaço do setor de serviços”, ao contrário daqueles que o trata
como uma disfunção no esquema econômico entre setores “primário, secundário e terciário” -
conforme “modelo de Clark” (Ibid.) - é também funcional a expansão capitalista no Brasil.
Afinal, diante de um crescimento industrial com uma “base de acumulação capitalista
razoavelmente pobre”, há exigência do apoio de serviços urbanos como parte da divisão social
de trabalho da fábrica em si. “Tal contradição é resolvida mediante o crescimento não-
capitalístico do setor Terciário” que possa subsidiar uma redução do custo da força de trabalho
e de sua reprodução no contexto urbano, sinaliza Oliveira (2003, p.57). Portanto:
[...] os serviços realizados a base de pura força de trabalho, que é remunerada a níveis
baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte
capitalista, uma fração do seu valor, “mais-valia” em síntese. Não é estranha a
simbiose entre “moderna” agricultura de frutas, hortaliças e outros produtos de granja
com o comércio ambulante? [...] Esses tipos de serviços, longe de serem excrescência
e apenas depósito do “exército industrial de reserva”, são adequados para o processo
da acumulação global e da expansão capitalista e, por seu lado, reforçam a tendência
à concentração de renda. (OLIVEIRA, 2003, p.57-58).
subdesenvolvimento” 56
explicitam que mais vale empregadas domésticas recebendo
baixíssimos salários, mulheres e homens realizando constantemente o trabalho não pago
necessário a sua reprodução em cidades intrafegáveis que um dispêndio de recursos destinados
a estruturas coletivas que não propiciam lucro suficiente com o rebaixamento da força de
trabalho urbana que depende desses mesmos serviços abundantes e degradados e boa parte
dessa força de trabalho não pode ao menos consumir tais serviços demandados.
É, então, desse importante circuito que sobrevive o capital por aqui, perpetuando, com
o crescimento industrial, as formas arcaicas de produção especialmente no campo. Isso seria
inviável sem as elevadas desigualdades regionais, inclusive entre urbano e rural, como também
a agigantada concentração de renda da economia brasileira. Por isso tanto empenho por parte
do Estado e das classes que o controlam em deslegitimar e atacar os direitos trabalhistas
particularmente dos trabalhadores rurais que tiveram, por exemplo, a garantia da previdência
social muito tardiamente, sendo até hoje ameaçadas. 57
Em resumo, esse “modelo permite a diferenciação produtiva e de produtividade” através
da elevada exploração de trabalhadores com base na “manutenção de baixíssimos padrões do
custo de reprodução da força de trabalho e portanto do nível de vida da massa trabalhadora
rural”. (OLIVEIRA, 2003, p.45). Trata-se, assim, de um complexo arcaico-moderno
dialeticamente pautado pelo desenvolvimento tardio, pela modernização dependente e
56 “A existência de um preço muito mais baixo para a força de trabalho nos países semicoloniais, dependentes,
do que nos países imperialistas indubitavelmente possibilita uma taxa média de lucro mais alta, em termos
mundiais – o que explica, em última análise, o fato do capital estrangeiro fluir para esses países. […] torna-se mais
lucrativo para o capital local investir fora da indústria do que no setor industrial […]. Em resultado, é travada a
concentração de capital, impedida a expansão da produção, promovido o escoamento de capital para esferas não
industriais e improdutivas e ampliado o exército de proletários e semiproletários desempregados e subempregados.
Aí reside o real 'círculo vicioso do subdesenvolvimento', e não na alegada insuficiência da renda nacional,
acarretando uma taxa insuficiente de poupanças” (MANDEL, 1984, p.45).
57
“Após a aprovação da reforma trabalhista na Câmara dos Deputados, a bancada ruralista na Casa, com apoio do
governo Temer, pretende discutir agora legislação específica para os trabalhadores rurais. O Projeto de
Lei 6.442/2016 [...] suspende a aplicação da CLT aos trabalhadores do campo e pretende limitar a atuação
da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho”. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2017/05/02/reforma-trabalhista-rural-quer-acabar-ate-com-salario-do-
trabalhador-do-campo/>. Acesso em: 12. nov. 2017.
137
acumulação primitiva estrutural. O imperativo desse complexo incidirá sobre a divisão regional
do trabalho, a configuração do Estado brasileiro e suas formas predominantes de enfrentamento
a questão social na sua dimensão regional no contexto do capitalismo monopolista, do
desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Assunto este que nos deteremos nos próximos itens
como um passo a mais no exercício de pensar longe, sem, no entanto, perder o tino para o
terreno fértil da realidade, em seu movimento que também nos move junto. Continuemos, então,
nesse afina e desafina em busca da “verdade maior”, mesmo que imperfeita, parcial e inacabada,
mas que responda aos objetivos da tese aqui elencada por nós desde o início.
Só o dr. Luís olhava para tudo aquilo, medindo, avaliando, comparando. Falavam-lhe
138
das maravilhas da fabricação, que seria a outra usina naquele ano. Seiscentas toneladas
de cana, dando oitocentos sacos de açúcar por dia. De fato, se fosse verdade, aquela
gente nunca mais saberia o que era dificuldade. [...] Tinha orgulho da fábrica que, em
breve, seria tão forte e poderosa como uma Tiúma. Se o Vertente fosse de maior curso
teria energia para eletrificar os seus aparelhos, teria força de graça para mover as
turbinas, arrastar os ternos de moenda, esmagar cana, como a Tiúma fazia, sem gastar
um pau de lenha. [...] A verdade era que tirara a família daquela miséria de moer cana
em bangüê, dando aos seus uma oportunidade de subirem de vida. [...] Fizera a Bom
Jesus e contara com o pessoal para as reformas. Mas iriam ver o que era uma usina
perfeita. (REGO, [1932] 2012, p.211-214).
58
Sobre isso, ver a reportagem intitulada “Rompendo ciclos: a nova cara do sertão. A juventude do interior
nordestino interrompe ciclo de pouco estudo e trabalho precoce”, publicada no Jornal Brasil de Fato, 2017.
Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2017/10/31/rompendo-ciclos-a-nova-cara-do-sertao/>. Acesso
em: 11.nov.2017.
139
arcaicas no novo”. (OLIVEIRA, 2003, p.60). Daí a relação orgânica entre essa “originalidade”
e a própria forma com que a lei do valor opera no mercado mundial via desenvolvimento
desigual e combinado.
Lembremos que tal “originalidade” está, portanto, em sintonia com aquilo que Mandel
(1982, p.260) caracterizou como acumulação de capital nas “semicolônias” enquanto uma
“acumulação específica” de capital industrial “saindo da esfera das matérias-primas para a
indústria manufatureira, mas permanecendo em média um ou dois estágios atrás em termos da
tecnologia ou do tipo de industrialização predominante nas metrópoles”. Isso em consequência
do “pequeno mercado interno, do enorme exército industrial de reserva e da tendência à
industrialização com maquinaria obsoleta [...]”. Essa dinâmica torna a dificuldade competitiva
da indústria em países como o Brasil algo estrutural, sendo a exportação de matérias-primas
permanentemente central para suas economias mediante a tendência da queda “ao preço de
produção das matérias-primas produzidas nas metrópoles com a mais moderna tecnologia”,
obrigando-os a “importarem das metrópoles um volume cada vez maior de maquinaria cara e
de peças de reposição ainda mais caras, a fim de conseguir promover sua industrialização”.
Em decorrência disso, ainda nos termos de Mandel (1982, p.261), há uma “transferência
constante de valor de uma zona para outra pela deterioração dos termos comerciais”, tal como
apresentamos brevemente no capítulo anterior. Todavia, em alguns contextos, especialmente
nos de crise internacional, há nova alta nos preços das mercadorias primárias, possibilitando às
burguesias desses países “melhorar sua situação de sócios minoritários do imperialismo”.
Desse modo, a questão desde o princípio já se mostra com evidencia: o problema do
desenvolvimento não é a ausência de riquezas e de crescimento econômico, ao contrário. A qual
projeto de desenvolvimento esse crescimento econômico tem servido? Existe um elemento de
fundamental importância para os desdobramentos desta questão: a concepção sobre a natureza
das classes sociais e do Estado capitalista por aqui no período de consolidação e adensamento
do capitalismo, o que trabalharemos mais adiante. Por ora, antecipamos, nos termos de
Coutinho (2011, p.251), algo que, apesar de sua irrefutabilidade, não custa nada lembrar: “[...]
não é em nome da modernidade, ou da construção da nacionalidade, que o Estado brasileiro
interferiu durante tanto tempo na esfera da economia: ao contrário, o fez para garantir os
interesses de determinadas classes e frações de classe”.
No fim das contas, de acordo com Martins (1994, p.53), “é a modalidade de crescimento
econômico o que, na verdade, bloqueia o desenvolvimento social e político da sociedade
brasileira”, necessário para uma vida “autêntica e humana”, como nos fala Coutinho (2011).
Por isso, aquela expectativa refletida nas personagens da obra do escritor paraibano diante da
141
chegada da usina, no trecho mencionado, apresenta uma íntima relação com as possibilidades
de frustração dessas mesmas personagens em meio ao nascente cenário do capitalismo tardio.
Vejamos:
O povo pobre reclamava a vida. Tivera que botar para fora muita gente viciada com
os tempos do velho José Paulino. Queriam ficar na propriedade, desfrutar as terras e
fugir das obrigações. [...] Em bangüê podia ser, mas usina não podia mais agüentar
morador com regalias. A terra era pouco para cana. [...] Do contrário teria que estragar
o seu trabalho se fosse amolecer o coração. Havia muita diferença dum coração de
senhor de engenho para um coração de usineiro. Em Recife, quando se encontrava
com os colegas, eles só falavam de grandeza, de compras de engenho, de zona, de
fornecedores. Conversa de usineiro era de um tom diferente. (REGO, 2012, p. 214-
215).
dada a natureza imanente do capital [...] como a 'contradição viva', cada tendência
principal desse sistema [...] só se faz inteligível se levamos plenamente em conta a
contratendência específica à qual aquela está objetivamente ligada. [...] Assim, a
tendência do capital ao monopólio é contrabalançada pela concorrência; igualmente,
a centralização pela fragmentação, a internacionalização pelos particularismos
nacionais e regionais, o equilíbrio pela quebra do equilíbrio etc. (MÉSZÁROS, 2002,
p.653).
59
“Na tradição de Caio Prado Jr. e de Celso Furtado, acostumamo-nos a pensar na expansão do café como espécie
de expansão da missão civilizadora do capital. Mas a adoção de uma solução via imigração européia para a questão
da mão-de-obra na expansão do café implica a primeira e mais determinante segmentação do mercado de trabalho
que estrutura a moderna economia brasileira. […] E essa cisão reforça-se pelo aspecto étnico: introduz-se uma
competição no mundo do trabalho pelos postos mais baixos, antes reservados apenas aos negros, agora disputados
entre brancos imigrantes e negros […]. Para se ser progressista, e ver na adoção do trabalho livre a superioridade
sobre o trabalho escravo, fez-se silêncio sobre a discriminação étnica que a imigração introduzia na estruturação
do mercado de trabalho da região em expansão capitalista, com pretensões de dominação. Tardiamente, essa
discriminação étnica aparecerá na forma do separatismo dos ricos, versão ainda soft da limpeza étnica que os
atentados dos grupos de skinheads neonazistas da Zona Leste da capital de São Paulo, contra rádios que fazem
programas nordestinos, expressam dramaticamente. De outro lado, acostumamo-nos também ao decadentismo que
impregna a história das regiões, ao ponto de fazê-las desaparecer, para restar, apenas, a missão civilizadora do café.
A força da demiurgia de Caio Prado e Celso Furtado levou a obscurecer um período que não foi só de decadência
[…]. Desde a segunda metade do século XIX, a indústria têxtil começou a expandir-se no Brasil […]. Segue-se
daí, depois da recuperação do lugar da produção norte-americano nesse mercado, um esforço de industrialização,
que se dá em todo o país, de alto a baixo. […] O processo desenvolvido foi, pois, de concorrência entre capitais, e
o que foi capital, para ornamentar com uma frase de efeito, foi a organização da concorrência. Não se tratou de
autoorganização da concorrência, ou auto-regulamentação do capital, como nunca pode se tratar. Aqui entra o
papel do Estado, de forma forte. […] Eis a segunda fonte da acumulação primitiva que alimentou a expansão
cafeicultora, um mistério que nem Caio Prado nem Furtado explicaram: de onde saíram os recursos de capital do
café? Dele mesmo? Mas como capital faz capital antes de ser capital? Pela acumulação primitiva: de um lado o
Rio, com o comércio de escravos, de outro as fontes fiscais, drenando recursos das províncias superavitárias para
as deficitárias. […] o Estado tanto subsidiava o café e obstaculizava a acumulação de capital em outros setores,
quanto organizava a concorrência, impedindo a expansão de outros segmentos.”. (OLIVEIRA, 1993, p.48-50).
144
Isso nos põe a necessidade de impetrar a dimensão política para o nosso diálogo,
entendendo que sob as relações sociais que constituem o capital e a exploração do trabalho
opera a luta de classes, a relação “das forças dos combatentes.” (MANDEL, 1982, p.105). Tal
vinculação, contudo, “não é uma grandeza matemática, suscetível de cálculo a priori. Quando
se altera o equilíbrio do velho regime, a nova relação de forças só se pode estabelecer como
resultado de sua computação recíproca na luta.” (TROTSKY, 1977, p.190).
episodicamente, que sente a pressão do imperialismo, mas receia enfrentá-lo, pois receia mais
a pressão proletária.”. Há o recurso ao reforço do “favor” como importante mediação nas
relações sociais, recompondo capitalisticamente os vínculos de dependência pessoal.
Conforma-se, portanto, a hegemonia burguesa, de acordo com Coutinho (2011, p.43),
tendo como base um “modo de relacionamento autoritário (mesmo quando paternalista) e
antiliberal. É essa dialética de adequação e inadequação que [...] altera-se com a passagem [da
subordinação formal] á subordinação real” do trabalho ao capital. Eis um solo fértil para edificar
uma democracia pautada pela restrição – “[...] de fato uma ‘democracia restrita’, aberta e
funcional só para os que têm acesso à dominação burguesa” (FERNANDES, [1975] 2006,
p.249) - e pelo predomínio do binômio autoritarismo e assistencialismo que interdita, e tenta a
todo custo invalidar, o papel mais diretivo das classes subalternas nos processos e momentos
decisórios do país. Para tanto, o caminho priorizado por parte dos setores burgueses no Brasil,
para Fernandes ([1975] 2006, p.250), foi o da “contrarrevolução prolongada”, consagrando esta
classe como uma “uma força social naturalmente ultraconservadora e reacionária.”. E ainda
acrescenta:
Tudo isso, nas palavras de Coutinho (2008, p.111), criou “este fato anômalo de que o
Brasil foi um Estado antes de ser uma nação”, o que nos dá pistas para entendermos o “por que”
do capitalismo brasileiro não viabilizar - muito menos abrir margem para que se viabilize - até
os nossos dias reformas sociais clássicas, de teor democrático e popular, tal como a reforma
agrária 60 , urbana e política, que, inclusive, foram viáveis em outros países capitalistas em
60
“Esse é o aspecto crucial do dilema rural brasileiro. A revolução do mundo agrário – mesmo em sentido
puramente capitalista e ‘dentro da ordem’ – não esbarra só na chamada ‘inação das elites econômicas, culturais e
políticas’. Ela é bloqueada por uma verdadeira muralha que nasce dos interesses dessas elites em manter o status
quo e dos interesses mais específicos dos setores privilegiados do meio rural, efetivamente empenhados na
reprodução social do trabalho que de todo não chega a transformar-se em mercadoria ou que somente chega a
146
transformar-se numa mercadoria extremamente depreciada. Nessas condições, torna-se impossível qualquer
modalidade de revolução agrícola ou de ‘reforma agrária’ e, o que é pior, são os estratos ‘mais modernos’, ‘ativos’
e ‘influentes’ da economia agrária que encabeçam a cruzada contra qualquer mudança, que possa alterar a
‘estrutura da situação’ ou simplesmente ameaçar o seu poder de decisão e de dominação. Daí resultam modalidades
seletivas e refinadas de resistência à mudança, que são ‘racionais’ e ‘inteligentes’ em um sentido puramente
egoístico e particularista, mas que são sociopáticas do ponto de vista das camadas sociais prejudicadas, da eficácia
e universidade de um padrão capitalista dinâmico de desenvolvimento econômico e do equilíbrio de crescimento
da sociedade nacional como um todo. [...] O que lhes interessa, exclusivamente, é anular ou restringir ritmos
rápidos e incontroláveis de absorção das economias agrárias por formas de crescimento ou de desenvolvimento
especificamente capitalistas, que tolham ou anulem sua faculdade de sobrepor-se às funções ‘normais’ o mercado
interno e dos modos de produção. Por paradoxal que pareça, as ‘forças da ordem’ e de ‘defesa da paz social’
identificam-se, na realidade, com a sobrevivência indefinida de iniquidades econômicas, sociais e políticas que
são incompatíveis com o ‘capitalismo maduro’. [...] Em consequência, as massas rurais despossuídas estão entre
dois fogos: sofrem por perderem as poucas garantias sociais inerentes aos padrões de relações tradicionalistas e
paternalistas, em crise; e sofrem por não saberem como impor o respeito às garantias sociais inerentes aos padrões
de relações seculares e racionais, em emergência. [...] As economias agrárias se defrontam com um círculo vicioso,
do qual só poderão sair superando esse dilema: ou mediante soluções capitalistas, através da absorção do padrão
de desenvolvimento imperante no pólo urbano-industrial (alternativa da ‘revolução dentro da ordem’), ou mediante
soluções socialistas, absorvendo um novo padrão de desenvolvimento capaz de quebrar o impasse levantado pelas
funções desempenhadas pela desigualdades socioeconômica na perpetuação do status quo (alternativa da
‘revolução contra a ordem’). [...] Em sentido pleno, só a segunda é propriamente revolucionária [...]”.
(FERNANDES, [1968] 2008, p.187-189).
61
Tal como na América Latina, no Brasil “os projetos burgueses estiveram sempre divorciados do pacto
democrático […]. A democracia política, entre nós, ergue-se não a partir de componentes dos projetos burgueses,
mas contra eles”. Ou seja, mesmo diante da resistência das classes subalternas, caracterizada pela “dialética de
revolta e conformismo”, o modo de desenvolvimento capitalista no continente latinoamericano “não propiciou a
consolidação de uma tradição cultural democrática”. (NETTO, 1990, p.119-121).
147
fração preponderante no bloco de poder” tenha sido o capital industrial associado ao grande
capital internacional. (COUTINHO, 2008, p.113). As transformações desse período,
caracterizado pelo desenvolvimentismo em suas mais diversas vertentes, especialmente diante
da consagração da “autocracia burguesa” 62 e coroação do “imperialismo total” (FERNANDES,
[1975] 2006), valida o que nos disse Mandel (1982, p.262) ao tratar das frações burguesas nas
chamadas semicolônias: “[...] a penetração do capital imperialista na indústria manufatureira
das semicolônias e sua crescente fusão com o capital nativo da chamada 'burguesia nacional'
significam que uma proporção cada vez maior da propriedade do capital desses países cai nas
mãos das empresas imperialistas”. O que, para nós, nada mais é que o reforço da condição de
dependência. 63
Ainda sobre a burguesia brasileira e suas frações, concordamos com Ianni (1965, p.114-
115), ao afirmar o seguinte:
62
A concepção de autocracia burguesa, para Florestan Fernandes, está vinculada a caracterização da forma
particular de dominação burguesa no Brasil, o que pode ser associada aquela feita por Trotsty ([1930] 1977): “[...]
a dominação burguesa se associava a procedimentos autocráticos, herdados do passado ou improvisados no
presente, e era quase neutra para a formação e a difusão de procedimentos democráticos alternativos, que deveriam
ser instituídos (na verdade, eles tinham existência legal e formal, mas eram socialmente inoperantes. [...]. Todavia,
as concepções liberais e republicanas, apesar de suas inconsistências e debilidades, tornavam essa autocracia social
e de fato um arranjo espúrio [...].” (FLORESTAN, 2006, p.243).
63
Aqui ressaltamos a concepção de dependência (ou heteronomia) também presente na obra de Fernandes ([1968]
2008, p.56). Sobre isso, ressaltamos o seguinte trecho: “[...] o regime de classes, numa sociedade capitalista
subdesenvolvida, possui como substrato material uma situação de mercado dependente e como suporte
sociocultural os recursos de uma civilização nucleada no exterior. No nível da situação de mercado, os mecanismos
da economia mundial operam de tal forma que as mudanças estruturais ou de conjuntura não se refletem,
duradouramente, na posição daquela sociedade, a não ser pela substituição das polarizações dos vínculos de
heteronomia. Isso é tão verdadeiro que os diferentes colapsos do velho ou do novo colonialismo e do imperialismo
econômico não conduziram senão a formas de heteronomia crescentemente mãos complexas, envolventes e
eficazes.”.
148
palavras, “por ter se limitada durante muito tempo a essa forma de representação ‘econômico-
corporativa’, a burguesia brasileira renunciou a elaborar [...] uma consciência ‘ético-política’,
com o que se tornou incapaz por muito tempo de formular um projeto nacional hegemônico.”
(COUTINHO, 2008, p.117). Eis, portanto, mais um aspecto, por um lado, destoante entre a
forma com que se desenvolveu o capitalismo por aqui e aquelas que envolve as burguesias
inglesa, francesa e até alemã; por outro, convergente com formações sociais que viveram a
“indigência filosófica” da burguesia de maneira muito mais genuína, a exemplo da Rússia.
(TROTSKY, 1977, p.169). No nosso caso, uma verdadeira “transplantação cultural”, tendo
como uma de suas expressões a “ideologia do colonialismo” promovida pelos setores
dominantes, tal como nos apresenta Sodré (1984).
Do lado diametricamente oposto, os trabalhadores rurais também não cabem dentro de
uma concepção que os associam a um segmento camponês historicamente conservador, tal
como foi em outros países. Afinal, já nos disse Martins (1994, p.77), a “história das lutas
camponesas desde o século XVIII [...] sugere que são eles importantes desestabilizadores da
ordem [...] tradicional, baseada na propriedade da terra, [...] justamente por isso, abrem
caminhos para a ação reformadora ou revolucionária de classes sociais dotadas de projetos
históricos mais abrangentes”, o que trataremos mais adiante.
O que se torna importante enfatizar, por ora, é a relação umbilical entre trabalhador rural
e operariado urbano, tal como entre a questão urbana e a questão agrária, ambas dimensões
centrais da questão social no país, compondo a face regional da nova era monopolista. Esta,
inclusive, com o aflorar e desenvolvimento da sociedade urbano-industrial no país, torna-se não
apenas mais complexa como também objeto de intervenção planejada por parte do Estado
brasileiro, o que, diante do objetivo da nossa pesquisa, será de fundamental importância um
entendimento mais aprofundado para que, mais adiante, possamos traçar um diálogo direto com
as ações e estratégias desenvolvidas no período priorizado na nossa pesquisa. Contudo,
buscaremos, antes, situarmos a configuração sócio histórica nordestina nesse contexto.
149
Subitamente, Conceição teve uma ideia: - Por que vocês não vão para São Paulo? Diz
que lá é muito bom... Trabalho por toda parte, clima sadio... Podem até enriquecer...O
vaqueiro levantou os olhos, e concordou, pausadamente: - É... Pode ser... Boto tudo
nas suas mãos, minha comadre. o que eu quero é arribar. Pro Norte ou pro Sul... [...]
Chico Bento ajuntou: - Eu já tenho ouvido contar muita coisa boa do São Paulo. Terra
de dinheiro, de café, cheia de marinheiro... Conceição levantou-se, rebatendo o
vestido: - Pois então está dito: São Paulo! Vou tratar de obter as passagens. Quero ver
se daqui a alguns anos voltam ricos... [...] Eles já estavam na ponte, magros,
encolhidos, apertados uns contra os outros, num grupo miserável e cheio de medo.[...]
Chico Bento fitava o navio, escuro e enorme, com sua bandeira verde de bom agouro,
tremulando ao vento do Nordeste, o eterno sopro da seca. Sentia como que um ímã o
atraindo para aquele destino aventuroso, correndo para outras terras, sobre as costas
movediças do mar...[...] Iam para o desconhecido, para um barracão de emigrantes,
para uma escravidão de colonos... Iam para o destino, que os chamara de tão longe,
das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias
infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde
sempre há farinha e sempre há inverno... (QUEIROZ, 1937, s/p).
64
No título desse item, fazemos alusão ao poema de Patativa do Assaré intitulado “Nordestino, sim. Nordestinado,
não!
65
Trata-se de uma referência à música “Meu cordial brasileiro” do cantor e compositor cearense Belchior (in
memoriam).
150
de “região-centro”, constituindo sua hegemonia nas demais regiões. Em outras palavras, trata-
se do processo em que se opera a “substituição de uma economia nacional formada por várias
economias regionais para uma economia nacional localizada em diversas partes do território
nacional”. (OLIVEIRA, 1977, p.55-56). Aqui nos interessa saber que os efeitos da questão
social na sua dimensão regional são aprofundados junto com esse processo de consolidação do
capitalismo no país.
A prosperidade expressa entre os personagens do romance de Rego (2012, p.233), diante
da passagem do antigo engenho para a moderna usina, onde “seiscentas toneladas de cana
entravam nas suas esteiras e oitocentos sacos de açúcar saíam de suas turbinas”, convivia com
a realidade dos flagelos da seca que passava cada vez mais a ter um contorno de fenômeno
social, não natural, tão bem retratado por Raquel de Queiroz no trecho mais acima. Na verdade,
de acordo com Francisco de Oliveira (1981), esse cenário da primeira metade do século XX
expressa dois lados da mesma moeda, ou seja, dois importantes aspectos do desenvolvimento
desigual e combinado do capitalismo no Brasil, quais sejam:
Primeiro, tal como já sinalizamos antes, a coexistência de regiões tão distintas sem que
sejam “formações sociais singulares”, mas fruto do caráter diverso das leis da própria
reprodução do capital que reproduz internamente, entre as regiões do território nacional, a
condição de dependência. Sobre isso, lembramos as características que passa a ter o “complexo
econômico nordestino” sobre o qual Celso Furtado nos apresenta em Formação Econômica do
Brasil ([1959] 2003) frente a transmutação regional dos polos dinâmicos da economia e da
política brasileira, demonstrando que a lei do desenvolvimento desigual e combinado, de fato,
opera na realidade.
66
A figura do “morador” também é interessante, embora menos emblemática em relação ao “cambão”,
trabalhadores das zonas canavieiras que não recebiam nada em dinheiro. A remuneração relacionava-se
exclusivamente ao uso da terra na safra e na entressafra. No caso do “morador”, em particular, o que chama atenção
é que a remuneração combinava formas monetárias com não-monetárias. O “morador” recebia uma remuneração
formal (monetária, com pagamento por tarefa) cujo quantum era sempre inferior à remuneração complementar
(não-monetária), representada pela “concessão” de um teto para morar e pela parcela da produção de gêneros
alimentícios que plantava e colhia para si nas terras do senhor.
152
67 “As formas do capital, e seu controle por burguesias regionais, tornavam muito difícil, senão impossível, aquela
integração; é apenas quando surge uma forma do capital infinitamente superior às controladas pelas burguesias
regionais, no caso o capitalismo monopolista, que a integração ocorre; e essa integração é, em verdade, a
consumação do processo de ‘nacionalização’ do capital, isto é, a de predominância absoluta não apenas de sua
essência, a extração de mais-valia, mas de suas leis de movimento, a concentração e centralização do capital. Nisto
é que consiste a ‘nacionalização’ do capital, que não tem nada que ver com a nacionalidade dos seus proprietários;
contraditoriamente, essa ‘nacionalização’ somente se dá quando se está em presença de uma forma do capital, o
capitalismo monopolista, que tem forte presença de propriedade estrangeira”. (OLIVEIRA, 1977, p.3).
153
questão regional. Esta não pode ser entendida deslocada da divisão regional do trabalho opera
transferindo, à princípio, as atividades voltadas para a agricultura, que até certo momento
exercia o Sudeste, ao Nordeste e ao Sul, para, assim, ter como principal atividade econômica a
indústria. Essa cadeia de produção e reprodução do capital, combinada regionalmente, garante
a oferta a baixo custo de recursos naturais à industrialização nacional, acionando processos de
acumulação primitiva nas regiões, em especial no Nordeste. Como resultado dessa nova
dinâmica, Oliveira (1977, p.51-52), analisando o período de 1947 a 1968, acrescenta o seguinte:
Porém, entendendo que tanto as relações entre as regiões como as próprias regiões
mudam com um tempo, assim como o próprio capital necessita acionar novos mecanismos e
imprimir uma nova dinâmica como forma de sobrevivência às próprias crises cíclicas, o
desencadeamento e desenrolar do movimento competitivo entre as regiões demandará também
um crescimento econômico e uma industrialização, mesmo que tardia, no Nordeste, mediante
a transferência de empresas das regiões mais desenvolvidas para a menos desenvolvidas. Além
disso, “o crescimento industrial do Sudeste cria e amplia a fronteira agrícola, reproduzindo, nas
margens, formas de acumulação não inteiramente capitalísticas, das quais transfere excedente
que vai reforçar a capacidade de acumulação no próprio Sudeste.” (OLIVEIRA, 1977, p.72).
Como expressão desse desenvolvimento e de suas novas demandas, Oliveira (1977) sinaliza a
criação do Centro-Oeste e as próprias áreas nos arredores de São Paulo que passaram a cumprir
um importante papel na produção agrícola para subsidiar a indústria e a própria reprodução da
força de trabalho nascente: o proletariado urbano.
Há, portanto, a reprodução do movimento, já caracterizado por nós no capítulo anterior
quando tratamos da dependência e da troca desigual, que impulsiona a transferência de capitais
da região mais pobre para a mais rica, reproduzindo constantemente a questão regional em
maior proporção. Por isso, a intervenção planejada do Estado torna-se fundamental, tendo em
vista que a questão social na sua dimensão regional é constituída e publicizada também a partir
do acirramento dos conflitos de interesses antagônicos de classes. Nesse sentido, as regiões são
“espaços sócio-econômicos onde uma das formas do capital se sobrepõe às demais,
homogeneizando a ‘região’ exatamente pela sua predominância e pela consequente constituição
154
de classes sociais cuja hierarquia e poder são determinados pelo lugar e forma em que são
personas do capital e de sua contradição básica.” (OLIVEIRA, 1981, p.30).
Diante disso, toda a reconfiguração econômica da dinâmica regional sobre a qual
mencionamos materializou-se politicamente, ou seja, assumiu a forma também reconfigurada
de classes sociais (e suas frações) mediante a correlação de forças sociais vigente em uma
determinada época. Isso pode ser melhor evidenciado com as palavras de Oliveira (1981, p.31-
32) que nos diz o seguinte:
O ‘fechamento’ de uma região pelas suas classes dominantes requer, exige e somente
se dá, portanto, enquanto estas classes dominantes conseguem reproduzir a relação
social de dominação, ou mais claramente as relações de produção. E nessa reprodução,
obstaculizam e bloqueiam a penetração de formas diferenciadas de geração do valor
e de novas relações de produção. A ‘abertura’ da região e a consequente ‘integração’
nacional, no longo caminho até a dissolução completa das regiões, ocorre quando a
relação social não pode mais ser reproduzida, e por essa impossibilidade, percola a
perda de hegemonia das classes dominantes locais e sua substituição por outras, de
caráter nacional e internacional.
É por isso que Antônio Cândido é certeiro quando nos afirma que “o sertão é o mundo”,
referindo-se a obra de Guimarães Rosa, citada na introdução do nosso trabalho. O fato é que a
realidade que a nós nos parece local “está sempre governada, altamente determinada, pela
dinâmica da produção predominante na sociedade, no conjunto do subsistema econômico
brasileiro.”. (IANNI, 1981, p.127-128). Porém, a garantia de hegemonia implica em fazer com
que a aparência predomine e que o Nordeste continue sendo visto como Nordeste, a partir de
seu “exotismo”, de um lado, ressaltando as belezas nativas que se tonam cenário dos cartões
postais pra turista ver; de outro, reforçando a ideia do lugar dos esquecidos e dos condenados
pela seca, pobreza e pelo “subdesenvolvimento”. E é exatamente movido pela contestação a
essa imagem que fundamenta uma lógica de ser “Nordeste”, aparentemente cristalizada pelas
circunstâncias da própria natureza da região, que o artista canta: “Não! Você não me impediu
de ser feliz! Nunca jamais bateu a porta em meu nariz! Ninguém é gente! Nordeste é uma ficção!
Nordeste nunca houve! Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos
condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar!” 68.
Assim, ao contrário da aparência, as regiões são e estão em movimento. Sobre isso, vale
recorrer a história e ressaltar que o Nordeste - particularmente o território que hoje constitui os
estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas – já desempenhou um papel
central na colonização, funcionando como verdadeira base de sustentação da economia
68 Letra da música “Conheço o meu lugar” do cantor e compositor cearense Belchior (in memoriam).
155
açucareira, tanto que, na formação das primeiras concentrações demográficas da Colônia, Bahia
e Pernambuco tiveram destaque. Segundo Oliveira (2008, p.181), “a economia do açúcar
fundava-se na Colônia […] e no trabalho escravo, compulsório, […] e assim […] o capitalismo
mercantil criou como um dos pilares de sua acumulação primitiva”. Portanto, “dada a forma
particular do desenvolvimento capitalista no Brasil, quando a economia escravista produtora de
bens primários em sistema de plantation articulava-se à economia capitalista mundial em sua
fase mercantilista” (NOBRE, 2010, s/p), a questão social já se “manifestava de forma latente
no período colonial” (SILVA, 2008), assim como a questão agrária e a questão regional,
imbricadas, que aqui, tal como já mencionamos, tratamos como expressões daquela, ganhando
fôlego e novos contornos com o passar da história. Concordamos, então, com Oliveira (1993,
p.45) quando nos diz que “[…] no fundo da Questão Regional tipicamente brasileira jaz uma
questão agrária irresoluta, de par com a do mercado de força de trabalho. As duas formam uma
unidade inextricável, e suas gêneses são praticamente simultâneas em forma e fundo: a de uma
nova forma de produção de mercadorias”. O reconhecimento do Nordeste tem, portanto,
passado por modificações ao longo da história. “É possível constatar, sem recuar muito no
tempo, que o Nordeste como ‘região’ [...] somente é reconhecível a partir de meados do século
XIX [...]”. Há, pois, na história regional e nacional, vários “nordestes”. O território que hoje é
a Bahia, por exemplo, era como se fosse outra região, fechada sobre si mesma junto as
metrópoles coloniais. (OLIVEIRA, 1981, p.32).
Tal como já tratamos, esse movimento que se expressa na transformação do Nordeste
“açucareiro” para o Nordeste “algodoeiro-pecuário” diz respeito a uma reconfiguração da
correlação de forças sociais entre as classes não apenas da região, mas do Brasil e do contexto
internacional. Nesse processo, no âmbito das classes dominantes, sendo a região, “em suma, o
espaço onde se imbricam dialeticamente uma forma especial de reprodução do capital, e, por
consequência uma forma especial da luta de classes [...]”, os agentes internos da região
Nordeste, os “coronéis”, passam a se conectarem mais diretamente com aqueles da região
Sudeste, “barões” do café. Essas classes dominantes locais “são absolutamente necessárias para
a ‘nacionalização’ do capital, sem o que o capital internacional não existiria senão como
abstração” (OLIVEIRA, 1981, p.29).
Vejamos a seguinte caracterização:
pecuário”. [...] Não é sem razão que tanto o controle político da Nação começou a
escapar das mãos da burguesia açucareira do “velho” Nordeste, quanto o controle
político interno do ‘velho’ e do ‘novo’ Nordeste começou a passar às mãos da classe
latifundiária que comandava o processo produtivo algodoeiro-pecuário, reiterado pela
sua subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-
americano. A imagem do Nordeste, que as crônicas dos viajantes de fins do século
XVIII e princípios do século XIX descreveram em termos da opulência dos ‘barões’
do açúcar, [...] começou a ser substituída pela imagem do Nordeste dos latifúndios do
sertão, dos “coronéis”, imagem rústica, pobre, contrastando com as dos salões e saraus
do Nordeste ‘açucareiro’. Nesse rastro é que surge o Nordeste das secas. A
fundamentação do Estado unitário que prevaleceu por todo o Segundo Império e
continuou, República Velha adentro, sob a forma da coligação ‘café-com-leite’ residia
sobretudo na homogeneidade dos processos de reprodução do capital, na sua
subordinação aos interesses do capital comercial e financeiro inglês e norte-
americano: ‘coronéis’ do algodão, pecuária e “barões” do café e Estado oligárquico
são os agentes e a forma da estrutura do poder. (OLIVEIRA, 1981, p.35).
produto, ou seja, uma parte da produção mais comum, no caso, milho e feijão 69.
69
Dessa forma, “a chamada vocação agrícola para a produção do algodão está vinculada ao aumento de massa de
trabalhadores camponeses, privados da terra ou da possibilidade de acesso livre a esta, uma vez que a Lei de Terras
de 1850 colocou uma série de restrições à ocupação e apropriação de terras pelos trabalhadores livres.
Diferentemente da pecuária, a agricultura fixa e adensa demograficamente a população, que só tem como saída de
trabalho e sobrevivência colocar-se agregado, como trabalhadores sujeitos aos proprietários das terras”
(BARREIRA apud DINIZ, 2008, p.43).
70
“Através de invasões coordenadas, ameaças, ocupações de prédios e, em último caso, saques dos mercados de
alimentos, conseguiam realizar uma intensa pressão sobre as autoridades, sobre chefes de obras e sobre a população
das cidades, o que resultava, na maioria dos casos, numa tensa e silenciosa negociação em que se conseguia uma
distribuição de alimentos, um alistamento para uma obra, uma promessa [...]. Conflitos desencadeados pela
presença das multidões ameaçando os mercados das cidades interioranas e os barracões de abastecimento das obras
do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – antigo IFOCS) aconteceram em todo o estado.
As cidades, pouco a pouco, ganham uma população extra de famintos que a caridade particular não consegue
sequer avaliar” (NEVES, 2004, p.90-93).
158
A luta de classe, nesse contexto, assume formas também clássicas: serão os ‘rebeldes
primitivos’ [...] que tentarão opor-se a esse círculo de ferro, com debilidade própria
desses movimentos, estruturalmente determinada pelo caráter ambíguo de sua posição
dentro do contexto latifúndio-minifúndio: eles ainda não estão completamente
expropriados dos meios e instrumentos de produção; o que se lhes expropria é o
produto, não sua força-de-trabalho. [...] Nasce dessa ambiguidade o próprio
movimento pendular da violência no ‘Nordeste’ algodoeiro-pecuário: cangaceiros e
jagunços ora estão contra, ora a favor dos ‘coronéis’, ora punem, ora defendem
meeiros e pequenos sitiantes. Essa ambiguidade estrutural da luta de classes no
Nordeste algodoeiro-pecuário marcará no futuro o próprio movimento de explosão da
pax agrariae nordestina: as Ligas Camponesas reivindicarão inicialmente o direito à
terra, a extinção do ‘cambão’; será a dialética própria da estrutura íntima do latifúndio-
minifúndio, que não pode resolver uma das pontas do dilema sem afetar a outra, que
levará o movimento camponês do Nordeste [...] para além das suas iniciais
reivindicações. (OLIVEIRA, 1981, p.50).
Tais aspectos demonstram o quanto é hibrida e diversa a formação das classes sociais
no Brasil e em suas regiões, tendo como exemplo disso a forma como se constituiu o
proletariado rural como também a burguesia agrária no Nordeste. Ao mesmo tempo, avançava,
primeira metade do século XX, nos centros urbanos dos principais estados, o processo de
estabelecimento de indústrias, como as do ramo têxtil, que possibilitou o ingresso de grupos
159
71
“Durante dezenas de anos, ele [o 'problema nordestino'] foi apresentado pelos políticos e técnicos como um
produto das secas periódicas, inevitáveis. Com o correr dos anos, as secas se transformaram no fulcro da questão.
Instituições e recursos governamentais foram organizados e canalizados continuamente para a região, a fim de
contornarem-se os efeitos indesejáveis da 'calamidade natural'. Entretanto, com a recolocação do problema em
bases mais científicas, a questão começou a mudar de significado. À medida que se expandia o capitalismo
industrial no Brasil e que a reintegração do Nordeste se colocava em termos mais objetivos para toda a nação,
ganhou bases científicas a análise do problema. Pouco a pouco, revelou-se que havia uma espécie de ilusão
semântica na interpretação do Nordeste. A manipulação ideológica dos fenômenos ligados às secas, pelos
latifundiários e políticos, havia conseguido canalizar para a região recursos de vulto, para manter a estrutura
econômico-social vigente, sobre a qual as secas seriam e serão sempre catastróficas. A questão, pois, não é apenas
fazer açudes e irrigar, mas ‘organizar e fortalecer a economia no sentido de distribuir na região as reservas
econômicas […]'. Por isso, 'é inútil tratar do Nordeste sem enfrentar os problemas econômicos fundamentais
envolvidos'. Já se reconhecia que as condições naturais adversas eram adversas ao tipo pré-capitalista de
distribuição da renda e organização social da produção” (IANNI, 1965, p.77-78).
72
“A meu ver, a fome que o Nordeste está atravessando […] é mais fenômeno de ordem social do que natural.
Mais do que a seca, o que acarreta esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva
do sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite possuir nenhuma reserva para enfrentar
as épocas difíceis […]. A meu ver, a causa essencial, central, contra a qual temos de lutar todos, é o regime
inadequado da estrutura agrária da região, o regime impróprio com o grande latifundiarismo, ao lado do
minifundiarismo, reinantes no Nordeste do Brasil. […] o latifúndio é o irmão siamês do arcaísmo técnico. Nessas
áreas latifundiárias, se pratica uma agricultura primária, uma proto-agricultura, sem assistência técnica, sem
adubação, sem seleção de sementes, sem a mecanização, e pelos processos mais rudimentares, exaurindo a força
do pobre sertanejo para produzir menos do que o suficiente para matar sua fome. O latifúndio nessa região é
representado pelo fato estatístico significativo de que, de 1940 a 1950, […] este tamanho aumentou e vem
aumentando de tal forma que, hoje, no Nordeste, apenas 20% dos habitantes das regiões rurais possuem terra; 80%
trabalham como arrendatários, como parceiros ou como colonos, porque a terra é monopolizada por pequeno
grupo.”. (CASTRO, 1956, s/p).
160
73
Essa realidade foi interpretada por diversos vieses. Dentre estes, aquele em que um dos principais pensadores
foi Celso Furtado, tal como nos apresenta Oliveira (1993, p. 44-45): “A rigor, ele percebe a Questão Regional em
termos de um diagnóstico, o qual foi a base da criação da SUDENE, com todos seus explosivos ingredientes, mas
inverte a equação: a migração de nordestinos estaria fazendo baixar o salário real dos trabalhadores da nova
industrialização no Centro-Sul, considerada como ameaça à unidade nacional, ao invés de solução para a questão
da mão-de-obra, clássico componente, desde o século XIX, da Questão Regional!”.
161
A coexistência das duas regiões numa mesma economia tem consequências práticas
de grande importância. Assim, o fluxo de mão-de-obra da região de mais baixa
produtividade para a de mais alta, mesmo que não alcance grandes proporções
relativas, tenderá a pressionar sobre o nível de salário desta última, impedindo que os
mesmos acompanhem a elevação da produtividade. Essa baixa relativa do nível de
salários traduz-se em melhora relativa da rentabilidade média dos capitais invertidos.
Em consequência, os próprios capitais que se formam na região mais pobre tendem a
emigrar para a mais rica.
O trecho do romance acima retrata o cenário marcado por dois fenômenos, decisivos
não apenas para a construção ideológica de uma imagem do Nordeste e do nordestino, mas
também causas mais emblemáticas, vinculadas a outras, sob as quais se legitimarão as algumas
inciativas estatais. Referimo-nos a seca e a fome no sertão nordestino do início do século XX,
período em que novas estratégias, voltadas para o enfrentamento da questão social no Nordeste,
começam a ser implementadas por parte do Estado. Essas ações serão direcionadas ao processo
de “integração nacional” ou, em outras palavras, de expansão intensiva e extensiva do capital
na realidade nacional.
A consolidação do “imperialismo total”, nas palavras de Florestan Fernandes ([1973]
2009), ou o avanço da expansão do capitalismo monopolista e de suas contradições no âmbito
do seu desenvolvimento desigual e combinado que se expressa no território, nacional e
regionalmente, exigiu alguns mecanismos prioritários por parte do Estado na tentativa de
combater supostos desequilíbrios regionais. Mecanismos estes necessários inclusive para
viabilizar tal consolidação via integração nacional diante da decadência da burguesia industrial,
do declínio do pacto populista, da penetração de grupo econômicos e mercadorias produzidas
no Centro-Sul e no Nordeste, da destruição da economia regional promovendo uma
superacumulação e do adensamento das forças populares no Nordeste ameaçando a hegemonia
74
Trecho retirado da música “Cajuína” do compositor e cantor baiano Caetano Veloso.
163
burguesa nacional, o que se tornou central para a consagração no discurso oficial do território
nordestino como “região problema”.
Esse quadro compõe o desenho da hegemonia do capitalismo monopolista brasileiro sob
a ideologia desenvolvimentista na qual o “desenvolvimento econômico surge como redenção
nacional”. Assim, dialogando com o que já apresentamos no Capítulo 1 sobre esse tema,
reforçamos o seguinte:
75
Para melhor entendermos a concepção de atraso que predominava nesse período, recorremos às palavras de
Miriam Limoeiro Cardoso (1978, p.414). Para ela, segundo a ideologia desenvolvimentista, “o atraso do país e a
pobreza de seu povo são devidos às forças políticas tradicionais, apegadas ao passado; o desenvolvimentismo,
porém, surge como mensagem de forças novas, progressistas, que restabelecerão a justiça, promovendo a
prosperidade – estritamente dentro da ordem. [...] As gritantes desigualdades entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos passam a ser meras questões de atraso que uma administração laboriosa pode corrigir,
acelerando o ritmo do crescimento. As enormes diferenças entre regiões, entre setores econômicos ou entre grupos
sociais ricos e pobres e as tensões que derivam delas são percebidas, sim, mas são tratadas como sendo apenas
resultantes de ações cuja orientação política se discute.”.
164
grande capital internacional no Nordeste quanto ao seu papel civilizatório que, ao contrário do
que propalava, representou, na verdade, opressão e negação de futuro. Contudo, é interessante
observar que tais políticas, na luta contra as forças do atraso, retrógradas, carregam contradições
que acabavam por torná-las, em meio a nossa “especificidade particular”, progressistas. Isso
tendo em vista que a reprodução de tais forças era também o que garantia a reprodução do
capital nas regiões, particularmente no Nordeste, tal como vimos no item anterior. Esse traço
será motivo de conflitos de classes que atravessarão essas políticas, expressos, por exemplo,
com maior força logo em que a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE)
é criada.
De acordo com Vieira (2006, p.150-151), mesmo com “resistência por parte da
oligarquia rural nordestina” tendo em vista a “necessidade de manter o Estado no Nordeste
capturado” pelo “bloco regional”, as ações do poder público que marcam esse período,
especialmente a partir de 1950, representam não apenas o esforço em impulsionar o
desenvolvimento nacional e regional via industrialização como a conformação de uma “nova
aliança, um novo bloco histórico, que assumirá, com muitos conflitos, é claro - o Golpe de 1964
é o corolário deles, - a direção das políticas de Estado no Brasil”. Para o autor, trata-se de uma
“aliança estrutural” dirigida pela “burguesia industrial do Sudeste, o grande capital externo, o
Estado, que já vinha cumprindo funções econômicas essenciais, e incluirá também os grandes
proprietários de terra, inclusive os nordestinos” 76.
76
A política de “desenvolvimento regional” do regime militar favoreceu os grandes proprietários que, com o acesso
a recursos financeiros, cercam suas propriedades, dotando-as de benfeitorias, a exemplo de açudes privados. Esta
situação reforçou as péssimas condições de vida no campo que contribuiu para intensificar o êxodo de um grande
contingente de pessoas para os centros urbanos de outras regiões do país, a exemplo do Centro-sul, entre as décadas
de 1950 a 1980. Por outro lado, contraditoriamente, com a multiplicação de programas de “desenvolvimento do
165
Nordeste”, crescem “também as possibilidades de trabalho, distribuição de alimentos e assistência médica, temas
centrais nas lutas dos retirantes e dos sindicatos de trabalhadores rurais” (NEVES, 2004, p.95). Dessa forma, a
estratégia de “combate à seca” e de “fixar o homem no campo” das políticas desenvolvimentistas, com o objetivo
de manter o controle e poder dos “clãs políticos familiares” (NOBRE, 2010), possibilitaram também, segundo o
autor, que “os canteiros de obras em cidades do interior” passassem “a atrair os retirantes, redirecionando os fluxos
migratórios” (NEVES, 2004).
77
“[...] o processo em causa é o da substituição de uma economia nacional formada por várias economias regionais
para uma economia nacional localizada em diversas partes do território nacional. [...] significa precisamente que
é o crescimento industrial da região Sudeste que está formando ou reformando a distribuição espacial das
atividades econômicas no território do País. [...] tem-se a partir daqui a criação de uma economia nacional
regionalmente localizada. A divisão social do trabalho ao nível de cada região, isoladamente considerada, será
função do tipo e natureza das ligações que ela mantiver com a região líder [...] a divisão social do trabalho não é
o reflexo de um mercado regional ou vice-versa.” (OLIVEIRA, 1977, p.55-56).
166
Esse movimento dialético destrói para concentrar, e capta o excedente das outras
regiões para centralizar o capital. O resultado é que, em sua etapa inicial, a quebra das
barreiras inter-regionais, a expansão do sistema de transportes facilitando a circulação
nacional das mercadorias, produzidas agora no centro de gravidade da expansão do
sistema, são em si mesmas tantas outras formas do movimento de concentração; e a
exportação de capitais das regiões em estagnação são a forma do movimento de
centralização. Aparentemente, pois, sucede de início uma destruição das economias
‘regionais’, mas essa destruição não é senão uma das formas da expansão do sistema
em escala nacional. (OLIVEIRA, 1981, p.76).
78
A partir dos estudos desenvolvidos por Oliveira (1977, p.47), no período de 1947 a 1968 houve um aumento da
participação da indústria em detrimento da agricultura, especialmente no Sudeste. De acordo com o autor, “[...] a
renda gerada pela indústria daquela região [Sudeste], que, em 1947, representava 19,4% da renda interna total da
região, passa a representar, em 1968, 31,5%. Em compensação, para o Nordeste o quadro não se altera (10,6%), e
para o Sul o crescimento é pequeno: 13,3% em 1947 contra 15,2% em 1968.”. Concomitantemente, ocorreu a
queda da participação do comércio, dos transportes e da comunicação, representando uma baixa capitalização do
setor de serviços no Brasil dessa época. Tudo isso parte do processo de redefinição do desenvolvimento inter-
regional no país que, inclusive, impulsiona a criação da região Centro-Oeste. Esta, sendo, “evidentemente, uma
criação do Sudeste, e, apenas no que se refere ao seu setor agrícola, pode ser considerada como uma ‘reserva de
acumulação primitiva’ para a expansão do sistema [...]” (OLIVEIRA, 1977, p.74).
168
em vista que o Estado, ao contrário das ideias liberais, nas suas mais diversas vertentes, não é
mero regulador, mas verdadeiro promotor de processos de acumulação, especialmente em
formações sociais como a brasileira. Afinal, a nova divisão do trabalho demandava uma
intervenção mais técnica e planejada para comandar o trabalho produtivo, garantindo a criação
e hegemonia de um “novo centro dinâmico, ainda que secundário, dentro do sistema em
expansão” como também “a formação de mão-de-obra qualificada para a indústria” que “passa
a definir toda a preocupação desenvolvimentista com a política educacional. Isto é, trata-se de
uma educação que tem por finalidade adequar as novas gerações ao projeto de desenvolvimento
em curso [...]” (CARDOSO, 1978, p.426-428).
Assim, o tema do desenvolvimento na realidade brasileira, enquanto “um processo de
acumulação privada de capital” que “envolve capital, força de trabalho, tecnologia e divisão
social do trabalho, como forças produtivas principais” (IANNI, 1979, p.06), é atravessado pela
emblemática política voltada para o desenvolvimento e planejamento regional 79, respaldada
predominantemente na ideologia desenvolvimentista que, tal como vimos, reforça a
necessidade da superação do “subdesenvolvimento” 80 , encobrindo o “caráter produtivo do
atraso” e a disparidade regional como um “modo de ser classe dominante” (BARBOSA, 2012,
p.42).
79
“A ação ‘planejada’ do Estado [...] ocorre somente quando a luta de classes chega a um ponto de ruptura, em
que não apenas a estrutura existente não tem mais condições de continuar a reproduzir-se, como se vê seriamente
ameaçada pela emergência política dos agentes que lhes são contrários. Não é a estagnação que força ao
planejamento, nem apenas a situação de miséria das massas camponesas e trabalhadoras do ‘Nordeste’ algodoeiro-
pecuário [...] no Nordeste como um todo, essa estagnação refletia sobretudo a submissão da burguesia industrial
aos interesses da oligarquia agrária algodoeira-pecuária e portanto a dinâmica dessa oligarquia, sua expansão.
Quanto à miséria, essa era e é secular; o que existiu de novo em tal miséria, transformando o conflito de classes
[...], é sua politização: é sua insolubilidade nos mesmos termos de reprodução da estrutura produtiva do ‘Nordeste”
algodoeiro-pecuário’.” (OLIVEIRA, 1981, p.52).
80
“No país ‘subdesenvolvido’, a industrialização é simultaneamente um processo de ruptura com o presente. […]
Em alguns casos, a ruptura é total, como ocorre nas nações que optam pelo desenvolvimento segundo o modo
socialista de organização da produção. […] implica na negação plena do presente, isto é, do modo capitalista de
produção, em sua forma colonial, semicolonial ou realizada. Em outros casos dá-se apenas uma interrupção
ocasional, uma quebra transitória daquelas relações da nação consigo mesma e com o exterior. É o que está
acontecendo com o Brasil. O desenvolvimentismo é a ideologia dessa ruptura parcial, frustra, das nações que
optam pelo desenvolvimento capitalista. Implica numa concepção abstrata da história, em que as contradições
essenciais do sistema submergem nas soluções verbais da ideologia burguesa. A industrialização de tipo capitalista,
como ocorre no Brasil, produziu-se com o desenvolvimentismo, que é seu ingrediente ideológico fundamental.
Nacionalista ou associado ao capital externo, esse desenvolvimentismo faz parte da corrente de ideias característica
dessa etapa de transição do sistema econômico social nacional. […] exprime a conversão do poder econômico da
burguesia industrial em poder político […]. O Estado patrimonial se converte em Estado burguês. Nessa concepção,
desenvolvimento significa industrialização.” (IANNI, 1965, p.107-108). Já nas palavras de Marini (2010, p.110-
111), “o desenvolvimentismo foi a ideologia da burguesia industrial latino-americana, especialmente daquela que
[…] tratava de ampliar seu espaço às custas desta última, recorrendo, para isso, à aliança com o proletariado
industrial e com a classe média assalariada. […], mediante a crítica ao esquema tradicional de divisão internacional
do trabalho, exigia dos grandes centros capitalistas o estabelecimento de um novo tipo de relação. No entanto,
apesar de rechaçar o modelo primário-exportador e de abrir fogo contra a velha classe dominante, relutava em
apresentar a reforma agrária como premissa do modelo industrial [...]”.
169
Essa política, na verdade, obtém relevo antes mesmo dos anos 1950, a partir dos anos
1930 81 , tendo como eixo central a acumulação de capital associada ao processo de
industrialização mediante as metamorfoses do “capital agrícola” (em capital industrial sob a
mediação do capital comercial e do capital financeiro), ainda expressão da complexificação de
“uma nova nação que se esboça no seio do empreendimento comercial inaugurado pelos
portugueses” na colonização. (PRADO JR, 1972, p.30).
Vale lembrar que o período de reintegração da economia nacional ao sistema
internacional em que a industrialização começou a preponderar envolve “não apenas novas
técnicas de evasão do excedente econômico como também a transformação do Brasil numa
nação ‘associada’ do capitalismo internacional. Em outras palavras, ao mesmo tempo realiza-
se e frustra-se a revolução burguesa no Brasil” (IANNI, 1965, p.41-42).
É, portanto, de um processo que não se restringe ao âmbito interno, mas implica também
“numa política de controle e incentivos que opera também na faixa das relações externas do
Brasil […]. Daí a necessidade de medidas de disciplina do câmbio, conjugadas com uma
política aduaneira destinada ao máximo aproveitamento da capacidade de importação” (Ibid.,
p.19). As forças produtivas passam a ter “novos canais de expressão” em uma fase de
desenvolvimento com a orientação de dinamizar e diversificar as atividades produtivas.
Para Florestan Fernandes (1978, p.11), é um contexto “de oscilação mais agudo na
transição para o capitalismo monopolista”, quando os setores burgueses do país “ainda
pensavam articular o tipo de imperialismo emergente no após-guerra [...] às estruturas de poder
consolidadas através de uma economia basicamente exportadora e às velhas ilusões de que os
dinamismos do sistema capitalista mundial deixariam espaço para as revoluções burguesas em
atraso.”. Nas palavras de Francisco de Oliveira (2013, p.61), trata-se de um período que contêm
alguma “especificidade particular”, onde “a história e o processo da economia brasileira podem
81
“A Revolução de 30 amplifica a unificação do mercado, derruba as fronteiras estaduais, criando o espaço para a
circulação ampliada das mercadorias, o que significa imenso reforço à acumulação de capital, pelo aumento da
velocidade da sua circulação, pela mais rápida metamorfose da forma-mercadoria para a forma-dinheiro e, desta,
novamente para a forma capital-dinheiro” (OLIVEIRA, 1993, p. 51-52).
170
ser entendidos, de modo geral, como a da expansão de uma economia capitalista [...] mas essa
expansão não repete nem reproduz ipis litteris o modelo clássico do capitalismo nos países mais
desenvolvidos, nem a estrutura que é o seu resultado”.
[...] emerge a revolução burguesa no Brasil. O populismo será sua forma política, e
essa é uma das ‘especificidades particulares’ da expansão do sistema. Ao contrário da
revolução burguesa ‘clássica’, a mudança das classes proprietárias rurais pelas novas
classes burguesas empresário-industriais não exigirá, no Brasil, uma ruptura total do
sistema, não apenas por razões genéticas, mas por razões estruturais. Aqui, passa-se
uma crise nas relações externas com o resto do sistema, enquanto no modelo ‘clássico’
a crise é na totalidade da economia e da sociedade. (OLIVEIRA, 2013, p.63).
82
“São a concentração e a centralização do capital que governam parcela dos instrumentos e medidas postos em
prática pelo Estado […]. A concentração é um processo que consiste no aumento do capital das unidades
empresariais, pela capitalização da mais-valia ali produzida. Ao passo que a centralização é um processo através
do qual se realiza a reunião de capitais individuais diversos em um só. São duas tendências fundamentais na
acumulação capitalista. […] À medida que se acelera a concentração de capital, desenvolve-se a centralização, isto
é, a absorção de empresas menores. Inversamente, a integração de empresas impulsiona a concentração de capital.
Mas esses processos não se dão apenas internamente. Eles ocorrem simultaneamente no interior da nação e no
âmbito do sistema capitalista mundial, o que cria problemas especiais quando se trata de por em prática políticas
de desenvolvimento.” (IANNI, 1965, p.22)
171
exemplo o papel da legislação trabalhista na primeira metade do século XX, associando a uma
das formas de realização por parte do Estado da tal “acumulação primitiva”. Vejamos o
exemplo dado:
O populismo é a larga operação dessa adequação, que começa por estabelecer a forma
da junção do “arcaico” e do “novo”, corporativista como se tem assinalado, cujo
epicentro será a fundação de novas fontes internas da acumulação. A legislação
trabalhista criará as condições para isso. [...] Como contrapartida, a legislação
trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um modo de
“acumulação primitiva” extremamente adequado para a expansão global. Esse “pacto
estrutural” preservará modos de acumulação distintos entre os setores da economia,
mas de nenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino. [...] as formas
nitidamente capitalistas de produção não penetram totalmente na área rural, mas, bem
ao contrário, contribuem para a reprodução tipicamente não-capitalista. Assim, dá-se
uma primeira “especificidade particular” do modelo brasileiro, pois, ao contrário do
“clássico”, sua progressão não requer a destruição completa do antigo modo de
acumulação. Uma segunda “especificidade particular” é a que se reflete na
estruturação da economia industrial-urbana, particularmente nas proporções da
participação do Secundário e do Terciário na estrutura do emprego [...]. As
instituições do período pós-anos 1930, entre as quais a legislação do trabalho destaca-
se como peça-chave, destinam-se a “expulsar” o custo de reprodução da força de
trabalho de dentro das empresas industriais [...] para fora: o salário mínimo será a
obrigação máxima da empresa, que dedicará toda a sua potencialidade de acumulação
às tarefas do crescimento da produção propriamente dita (OLIVEIRA, 2013, p.65)
Algumas vezes […] esse movimento pendular parece ter sido perturbado pela
manifestação de uma terceira tendência. De fato, houve grupos políticos –
principalmente de esquerda – que defendiam a participação aberta do Estado nas
atividades econômicas. A luta contra o imperialismo (para esses grupos) era parte da
mesma luta pela nacionalização e estatização de empresas estrangeiras; ou filiais e
associadas de empresas multinacionais. Além disso, eles preconizavam a crescente
participação do Estado nas atividades produtivas, como empresário, no estilo da
Petrobras. Assim, pouco a pouco configurou-se uma estratégia de desenvolvimento
socialista, paralelamente às outras. Mas os representantes dessa estratégia nunca
chegaram a controlar centros de decisão, sobre política econômica governamental. […]
No conjunto dos anos 1930-70, entretanto, predominou a estratégia de
desenvolvimento dependente. Nem o projeto de capitalismo nacional, nem o projeto
83
“Costuma-se dizer que foi a partir de 1930 que ingressamos na ‘modernidade’, mas me parece mais preciso dizer
que o movimento liderado por Getúlio Vargas contribuiu para consolidar definitivamente a transição do Brasil
para o capitalismo. Depois da Abolição e da proclamação da República, o Brasil já era uma sociedade capitalista,
com um Estado burguês; mas é depois de 1930 que se dá efetivamente a consolidação e generalização das relações
capitalistas em nosso país, inclusive com a expansão daquilo que Marx considerava o ‘modo de produção
especificamente capitalista’, ou seja, a indústria” (COUTINHO, 2008, p.112).
174
Lembramos que, tal como nos sinaliza Marini (2014), a condição de dependência do
Brasil acentua, na sua reprodução capitalista, características como a superexploração da força
de trabalho, como ocorre em outras nações do continente latinoamericano, gerando “processos
produtivos que tendencialmente ignoram as necessidades da maioria da população trabalhadora,
direcionando a produção para mercados estrangeiros e/ou para estreitas camadas sociais que
conformam os reduzidos […] mercados internos, gerados em meio à aguda concentração da
riqueza”. Essas circunstâncias promovem, diante da expansão limitada da estrutura produtiva
nacional, além de mecanismos de intensificação da exploração e expropriação do trabalho, a
redução da incorporação da massa trabalhadora, consequentemente, o aumento de modalidades
de subemprego e desemprego, acirrando às desigualdades sociais e à concentração de renda que
afetam diretamente as condições materiais e subjetivas das classes e suas frações. “Tudo isso
tende a criar condições para potencializar os enfrentamentos sociais e a luta de classes”
(OSORIO, 2014, p.208-209).
Nesse complexo e particular cenário, ganha espaço, por um lado, a presença de uma
“forma corporativista de Estado”, sob a marca da autocracia burguesa, conjugada a um “deficit
de cidadania”; por outro, o significativo caráter popular, na constituição das classes
trabalhadoras, e democrático, nas suas reivindicações, formas de luta e organização política
(COUTINHO, 2008). Essa constatação, portanto, apenas pode ser feita se transviarmos a
ideologia do desenvolvimento, afinal de contas, “qualquer que seja a verbiagem ou o discurso,
a opção conservadora leva implícita e exige, a partir dos interesses burgueses internos e externos,
uma forma de acumulação capitalista impiedosa, que aprofunda as desigualdades econômicas
e reforça os privilégios dos poderosos, nacionais e estrangeiros”, além de fortalecer uma
prolongada contra-revolução (FERNANDES, 1978, p.13).
2007, p.131-132). Isso nos diz que “o liberalismo no Brasil não se constrói sobre a
universalidade da figura de cidadão”, ou mesmo da democracia; não “exige a defesa implacável
dos direitos do cidadão”. (FERNANDES, 2006, p.46-47).
Dessa forma, assim como tais tendências põem em xeque “mais de um século de
promessas de eliminação […] da desigualdade por meio […] de desenvolvimento socialmente
viável em todo o mundo”, também demonstram o quanto as contradições desse
desenvolvimento tomam formas particulares, internamente e externamente aos territórios
nacionais, agudizando a divisão regional do trabalho e as desigualdades regionais. Estas, vale
lembrar, “não apenas entre o 'norte desenvolvido' e o 'sul subdesenvolvido', mas também no
interior dos países capitalisticamente mais avançados” (HARVEY, 2014, p.186).
Em meio a dialética entre modernização e conservadorismo, “internacionalização” e
“particularismos nacionais e regionais”, central no desenvolvimento capitalista no Brasil, tal
como nos diz Oliveira (2003) na sua crítica a razão dualista, é importante destacar que na
formação sócio-histórica brasileira um aspecto tem sido permanentemente pulsante: a questão
regional ou, em outras palavras a questão social na sua dimensão regional, resultante das
contradições do modo de produção capitalista, “sinal de uma redefinição da divisão regional do
trabalho no conjunto do território nacional” (Id., 2008, p.163).
Como expressão dessa questão, mesmo diante da tendência apresentada por Mandel
(1982, p.104) - onde a “queda no salário real torna o trabalhador mais passivo e indiferente,
assim como, em termos objetivos, o enfraquece psicológica e fisicamente, pelo menos em parte
[...]” -, existe um vasto enredo da vida real centrado em um conjunto de experiências de
protestos e lutas populares que, por vezes, equivocadamente não foram, nem são, incorporadas
nas “narrativas nacionais” com uma nítida intenção por parte dos setores dominantes de isolá-
las e pejorativamente associá-las ao fanatismo e banditismo. Isto é demonstrado na importante
obra de Rui Facó (1963, p.15-16) ao fazer alusão e desconstruir a concepção hegemônica dos
fenômenos do cangaceirismo e do messianismo vividos especialmente no Nordeste no fim do
século XIX e da primeira metade do século XX.
Que foram Canudos, Juazeiro, o Contestado, Caldeirão, Pau de Colher, Pedra Bonita,
que precedeu a todos, com traços mais ou menos idênticos , ao lado do cangaceirismo,
que se prolongou até os fins da década de 30? Para nossa história têm sido encarados
como fenômenos extra-históricos. “Banditismo”, “fanatismo” são expressões que os
resumem, eliminando-os dos acontecimentos que fazem parte da nossa evolução
nacional, de nossa integração como Nação […]. Mas, seriam simples criminosos esses
milhares, dezenas de milhares de pobres do campo que se rebelavam nos sertões,
durante um tão largo período de nossa história? Seriam apenas os “retardatários” da
civilização, como os qualificava Euclides da Cunha? Evidentemente, não. […] Hoje,
compreendemos e sentimos que eles eram […] o protesto contra uma ordem de coisas
176
[...] mesmo uma esfera estratégica, como a do crescimento econômico, não possui
poder para alterar as demais esferas, se a intervenção assumir um caráter concentrado
e unilateral. [...] Os povos que tentam essa saída e persistem nela, mesmo depois de
descobrirem suas limitações, o fazem porque não possuem outros meios para forçar a
melhoria do seu ‘destino histórico’ na civilização a que pertencem. No fundo, trata-se
de uma saída cega e desesperada, tão irracional e improdutiva quanto seria combater
a raiva mordendo-se o cão que a transmitisse. No entanto, convém ressaltar,
igualmente, que a superação do impasse não poderia resultar na mera ‘vontade
esclarecida’ [...]. Um povo pode contar com elites capazes de fazer diagnósticos
precisos e completos de sua situação histórica, em seus diversos desdobramentos. Mas,
se essas elites não tiverem coragem e decisão de levar o diagnóstico à prática ou se
não receberem suficiente apoio coletivo, nada se alterará fundamentalmente. O Brasil
não possui elites desse tipo; e, de outro lado, as próprias massas ainda não se projetam
no cenário histórico, como atores do drama e fatores humanos de mudanças sociais
conscientemente desejadas em escala coletiva. Não obstante, se realizasse as duas
condições indicadas, ainda assim a ‘vontade esclarecida’ pouco significaria em si
mesma. O esclarecimento só se converte num elemento construtivo da situação
quando ele envolve e conduz a transformação de caráter global. (FERNANDES,
p.156-157).
84
“[…] o processo de industrialização no Brasil esteve, desde o início, vinculado aos capitais produzidos pelo setor
agrário exportador; tanto os capitais nacionais, investidos diretamente, como as cambiais imprescindíveis à
importação de equipamentos, matérias-primas e técnica essenciais à industrialização dependem dele” (IANNI,
1965, p.64-65).
177
Essa “trama”, que se conforma regionalmente, dar lugar histórico e central ao Nordeste.
Ou seja, como expressão do processo particular de transição e consolidação do capitalismo
monopolista no Brasil, que passa a ter o “Centro-sul” como polo dinâmico do desenvolvimento
econômico nacional, a questão regional toma relevo e raízes diferenciadas, tendo o Nordeste
grande peso 85
. Tal questão tornou-se pública e objeto de intervenção do Estado com suas
políticas de desenvolvimento regional ao tempo em que a “região de mais antiga colonização
passou a ser objeto de atenção nacional” como “região problema” (DÓRIA, 2007, p.271). Isto
não apenas devido ao alto índice de desigualdade e pauperismo como também por ser cenário
de insurgência popular, especialmente diante da possibilidade real de aliança entre os setores
da classe trabalhadora com a influência do operariado nascente, que poderia apontar
formulações dos problemas regionais por outra ótica na perspectiva de superar os limites do
status quo.
Afinal, é preciso lembrar que “foram as lutas sociais que romperam o domínio privado
nas relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para a esfera pública,
exigindo a interferência do Estado para o reconhecimento e a legalização de direitos e deveres
dos sujeitos sociais envolvidos” (IAMAMOTO, 2001, p.17). Estes, porém, passaram (e ainda
passam) por um processo violento de criminalização em meio a permanente coexistência da
repressão e do assistencialismo, gerenciados por parte dos setores dominantes na manutenção
da hegemonia burguesa.
O coroamento desse processo deu-se exatamente durante a ditadura militar na década
de 1960, quando através da ideologia que atribuía ao Nordeste a natureza de região perigosa, a
repressão aos trabalhadores rurais organizados agudizou-se. A ideia difundida era que o país
estava na iminência de uma verdadeira revolução no Nordeste, tendo como referência a
revolução cubana. Isto em virtude da experiência de movimentos como o das Ligas
Camponesas. “Foi assim que o imperialismo e a burguesia, no Brasil, decidiram transformar o
Nordeste numa questão política, militar e policial prioritária” (IANNI, 1981, p.112) com a
finalidade de acabar com todas as experiências democráticas que emergiam na região, a
exemplo da ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários no campo, além dos avanços
85
“No Nordeste, a situação agravou-se quando, na segunda metade do século XIX, o centro de gravidade
econômica se foi transferindo gradativamente para o Sul, mais desenvolvido do ponto-de-vista capitalista. O
Nordeste, com seus arraigados remanescentes feudais e acentuada debilidade técnica, foi perdendo terreno em
todos os domínios. A valorização do café atraía para o Sul a mão-de-obra disponível no Nordeste, tanto de escravos
como de trabalhadores livres. Enquanto isso, era o Sul que recebia a totalidade dos imigrantes europeus que, nos
fins do século, vieram modificar a fisionomia econômica e social da fazenda paulista” (FACÓ, 1963, p.17).
178
na democracia em termos meramente eleitorais. E isso já era muito para as elites do nosso país,
tal como podemos observar no seguinte trecho:
Pela primeira vez na história da região, em tal escala, o povo estava elegendo
vereadores, deputados, prefeitos e governadores que estavam cumprindo os seus
compromissos políticos com os eleitores. Os trabalhadores do campo começaram a
ver os seus direitos trabalhistas respeitados; podiam fazer política; participar de ligas,
sindicatos, comícios, greves, sem que os usineiros, ou os seus prepostos,
manipulassem a Polícia para reprimi-los; os casos de violência privada estavam sendo
denunciados, apurados. Pouco a pouco, o trabalhador começava a sentir-se cidadão,
com direito a votar, ver o seu voto respeitado, ter os seus direitos trabalhistas
garantidos e assim por diante. Em Pernambuco, o Governador ouvia o trabalhador e
atendia o seu reclamo. O humilhado e ofendido do mundo rural começava a sentir-se
pessoa, gente, cidadão. [...] É claro: o que estava acontecendo era revolucionário. [...]
em 1961-64 a sociedade brasileira conheceu uma riqueza política poucas vezes havida
anteriormente. [...] Sob vários aspectos, portanto, o que estava acontecendo no
Nordeste dizia respeito ao que estava acontecendo e podia acontecer no Brasil. [...] A
verdade é que a grande burguesia monopolista (com base no imperialismo e apoiada
em forças reacionárias internas, inclusive a burocracia civil e militar) estava
manipulando o caso do Nordeste, a ‘inquietação social’ na região nordestina [...], a
mobilização de trabalhadores rurais em ligas e sindicatos, etc., como um pretexto para
derrubar o Governo do Presidente Goulart. Ao mesmo tempo em que buscava reverter
o processo democrático do Nordeste, essa aliança de interesses reacionários buscava
reverter o processo democrático no Brasil. (IANNI, 1981, p.115-116).
Para o atual tempo histórico, é inevitável não associar tais características que sucederam
ao Golpe de 1964, guardadas as devidas proporções, aquelas da década anterior ao atual Golpe
em que o país vive desde 2016. Porém, deixemos esse debate para mais adiante.
Voltando às principais estratégias de enfrentamento a questão regional, podemos situar,
mesmo que tardia, uma nova política de desenvolvimento para o Nordeste com base na
industrialização da região. Para os idealizadores dessa política, certamente o que estaria em
questão seria o enfrentamento às formas de perpetuação de relações não-capitalistas na
agricultura, como se assim fosse possível eliminar tais relações daquelas tipicamente
capitalistas em nossa formação social onde há a reprodução e criação de uma “larga ‘periferia’
onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma e meio de
sustentação e alimentação do crescimento dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que
são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema.”
(OLIVEIRA, 2013, p.69). Em outras palavras, a superação desse tipo de relações seria como
romper com a dependência da dependência, já que “a integração ao mercado interno significa
tornar a região que se integra ‘dependente’ da economia do Sudeste, isto é, as vantagens da
industrialização desequilibram a economia ‘normal’ da região e impõem uma nova divisão do
trabalho em função do Sudeste.” (OLIVEIRA, 1977, p.52).
179
Por outro lado, esse desequilíbrio regional, expressando também conflito de classes,
“[...] que aparece sob as roupagens de conflitos regionais [...] chegará a uma exacerbação cujo
resultado mais imediato é a intervenção ‘planejada’ do Estado no Nordeste, ou a SUDENE”
(OLIVEIRA, 1981, p.113), tal como já mencionamos. Esse órgão estatal foi um dos mais
memoráveis desse tipo de intervenção no Nordeste e sua história representa exatamente o
direcionamento hegemônico que as políticas dessa natureza tiveram no período
desenvolvimentista.
Antes de tudo, é importante ressaltar que, ao contrário de muitas análises críticas à
experiência da SUDENE, ela não pode ser resumida como uma “farsa”. A história dessa
instituição foi marcada por ambiguidades e embates entre as forças e aspirações populares e
aquelas do grande capital monopolista que procuravam socorrer os interesses das elites locais
do “velho Nordeste dos ‘coronéis’ e da burguesia açucareira, convocando as forças da burguesia
internacional-associada e do imperialismo para liquidar as classes populares” (OLIVEIRA,
1981, p.15). Caso estas forças não tivessem ganho, certamente teríamos um outro Nordeste e
um outro Brasil. De toda forma, há que considerar a SUDENE como “um empreendimento de
uma audácia inédita na história nacional” (OLIVEIRA, 1981, p.18) que de alguma forma
enfrentou resistências, inclusive das “elites nordestinas temerosas da perda de privilégios” que
atacavam a figura de Celso Furtado e viam sua defesa à reforma agrária como ameaçadora,
abrindo margem para a subversão associada aos movimentos camponeses da época.
(FURTADO, 2009, p.12).
Para Furtado ([1959] 2003, p.249-251), a saída para a questão regional seria uma nova
forma de integração da economia nacional, “distinta da simples articulação que se processou na
primeira metade do século” XX. Isto tendo em vista que essa articulação significou,
simplesmente, desviar para os mercados da região cafeeira-industrial produtos que antes se
colocavam no exterior. Um processo de efetiva integração, para o autor, teria de orientar-se no
sentido do aproveitamento mais racional de recursos e fatores no conjunto da economia
nacional. E acrescenta:
À medida que se chegar a captar a essência desse problema, se irão eliminando certas
suspeitas como essa de que o rápido desenvolvimento de uma região tem como
contrapartida necessária o entorpecimento do desenvolvimento de outras. A
decadência da região nordestina é um fenômeno secular, muito anterior ao
processo de industrialização do sul do Brasil. A causa [‘atraso, peso da questão
agrária, do monocultivo’] básica daquela decadência está na incapacidade do
sistema para superar as formas de produção e utilização dos recursos
estruturados na época colonial. A articulação com a região sul, através de
cartelização da economia açucareira, prolongou a vida do velho sistema cuja
decadência se iniciou no século XVII, pois contribuiu para preservar as velhas
180
comparação do Nordeste em relação ao Brasil como uma região dependente de uma nação
dependente. A expansão capitalista no Nordeste, uma região com baixa capitalização, foi, dessa
maneira, uma demanda do capital monopolista. Em suma, a necessidade maior era “manter
elevada a remuneração do capital no país, penetrando um espaço periférico, que é aquele que,
por ser virgem de práticas monopolísticas, oferece as maiores oportunidades de elevar a
remuneração do capital [...]”. (OLIVEIRA, 1977, p.72).
Isso significa que o custo da reprodução da força de trabalho continuará baixa mesmo
com o aumento da produtividade 86; as mercadorias produzidas na região continuarão sofrendo
a deterioração dos termos de troca, abastecendo a nova classe assalariada urbana em ascensão
especialmente no Sudeste e garantindo a oferta de recursos naturais à industrialização nacional
em uma espécie de acumulação primitiva; que o enorme exército industrial de reserva
continuará vivo legitimando relações de trabalho híbridas, monetárias e não-monetárias,
capitalistas e não-capitalistas, recompondo a divisão regional do trabalho e o complexo arcaico-
moderno com um maior peso no Nordeste. 87 Este continua tendo como um de suas principais
expressões o fenômeno da seca.
Diante disso, para Nobre (2010, p.05-06), foram quatro principais as formas de
enfrentamento às consequências das secas por parte do Estado:
86
Lênin (1982, p.147), a partir da realidade russa, nos oferece a seguinte contribuição: “Ora, é notório que os
baixos salários constituem um dos maiores obstáculos à introdução de máquinas. Os fatos nos mostram
efetivamente que o amplo movimento no sentido de transformação da técnica agrícola só teve início no período
de desenvolvimento da economia mercantil e do capitalismo que se seguiu à reforma. A concorrência criada pelo
capitalismo e a dependência do agricultor em relação ao mercado mundial tornaram a transformação da técnica
uma necessidade [...]”. Talvez aqui possamos dialogar com a formação regional brasileira que apresenta uma nítida
distinção entre o valor da força de trabalho, sendo as regiões com menor valor aquelas que também possuem um
menor índice de desenvolvimento tecnológico. Essa relação também pode ser observada entre o Brasil e outros
países na constituição das relações de dependência. Outro aspecto que nos faz lembrar essa citação é o
desenvolvimento da técnica nas civilizações pré-colombianas que, porém, não tomou fôlego em um “amplo
movimento”, ao contrário. Assim, a baixa produtividade e composição orgânica do capital está completamente
articulada com a reconstrução do exército industrial de reserva.
87
“Mesmo quando há algum aumento de salário real, fica muitíssimo abaixo do crescimento, às vezes notáveis, da
‘produtividade’. Ao comparar dados relativos aos anos 1948-68, podemos constatar que o ‘aumento da
produtividade agrícola da mão-de-obra no Nordeste superou o da agricultura do País’. E ao tomar a evolução dos
salários em 1959-68, pode-se constatar que ‘os salários agrícolas reais expandiram-se um pouco no nordeste na
década de 60, mas esse aumento foi de magnitude menor do que o aumento da renda interna por pessoa da força
de trabalho agrícola’. Ocorre que o trabalhador rural, assalariado ou não, ficou ainda mais à mercê do empresário,
fazendeiro latifundiário, empreiteiro de mão-de-obra, comerciante, usuário, banqueiro e outros beneficiários da
mais-valia.” (IANNI, 1981, p.120-121).
182
88
“A principal providência tomada pelos governantes, a pretexto de fazer face aos problemas sociais ‘criados pela
seca’, foi propor o Programa de Integração Nacional, PIN [...], com o fim de construir as rodovias Transamazônica,
Cuiabá-Santarém e outras, lançando mão da força de trabalho ‘excedente’ no Nordeste. Ao combinar a atuação do
PIN com o INCRA [...], os governantes estavam, mais uma vez, lançando mão do poder discricionário da ditadura
para manipular os recursos financeiros federais e trabalhadores desempregados e subempregados do Nordeste a
fim de favorecer os negócios da grande empresa privada nacional e estrangeira. Sob a alegação de que se tratava
de construir estradas e desenvolver a colonização oficial e particular na Amazônia, estavam atuando no sentido de
preservar as relações de produção, as estruturas de poder e a estrutura fundiária no Nordeste. E mais uma vez
alguns contingentes nordestinos do exército industrial de reserva iam servir aos desenvolvimentos da acumulação
capitalista. Ao longo das últimas décadas, e não só em algumas ocasiões, os trabalhadores rurais e urbanos do
Nordeste têm sido o principal contingente de reserva da força de trabalho, com o qual a burguesia tem contado
para desenvolver e diversificar a expansão do capital”. (IANNI, 1981, p.119).
183
89
“Mais importante nisso tudo, e aí estava a verdadeira subversão que convulsionaria o País nos anos seguintes,
era a tomada de consciência por importantes setores das elites [...] de que a questão da miséria era uma questão
política. Não era a seca, propriamente, como se dizia desde o século XIX, que respondia pela pobreza dos
trabalhadores rurais nordestinos. Era o uso político da seca como pretexto para obtenção de recursos financeiros
do governo federal que, no fim, não iam aliviar a miséria dos pobres, mas revigorar a máquina do clientelismo
político dos ricos. Uma situação que só poderia ser resolvida com uma revolução, como entendiam e temiam alguns
dos próprios setores das elites. Ou então com reformas sociais.” (MARTINS, 1994, p.67).
90 “As ‘emergências’ criaram outra forma de enriquecimento e de reforço da oligarquia: não apenas os eleitores
reais dos ‘coronéis’ tinham prioridade para engajamento nas frentes de trabalho, como os eleitores-trabalhadores-
fantasmas pululavam. Obras-fantasmas e trabalhadores, ‘cassacos’ -fantasmas, povoavam as frentes de trabalho
das secas.” (p.55). Oligarquia do Estado do Ceará – DNOCS, o mais “encarniçadamente oligárquico”. (p.55). “O
algodão reunir-se-á com a pecuária e a carnaúba para transformar o Ceará num vasto algodoal segmentado em
milhares de pequenas plantações, e imbricação latifúndio-minifúndio, comerciante-fazendeiro, fazendeiro-
exportador, não ocorreu em nenhum outro lugar do Nordeste com maior profundidade que ali. As primeiras
grandes obras da IFOCS e do DNOCS foram no Ceará, e daí por diante o controle desse organismo estatal, sua
captura pela oligarquia algodoeira-pecuária, aprofundou-se e tornou-se completamente indistinta a linha divisória
entre DNOCS e a mesma oligarquia. Falar de DNOCS no Ceará, era o mesmo que falar da oligarquia e vice-versa.”
(OLIVEIRA, 1981, p.56).
184
do mercado de crédito. […] com a própria expansão da circulação de mercadorias, São Paulo
vence, domina, mas não hegemoniza. Porque seu mecanismo de dominação é o mercado, e este
é insuficiente para forjar a hegemonia” (OLIVEIRA, 1993, p.52). Para o autor, “a Questão
Regional há muito deixou de ser considerada uma questão nacional”.
Depois da derrota, em 1964, das forças sociais e políticas às quais deveu seu
nascimento e seu auge, a SUDENE — o último grande esforço e momento de sua
importância nacional — prosseguiu num êxito administrativo que, ironicamente, iria
marcar mais fundo seu fracasso político. Na ditadura, a Questão Regional, enquanto
tal, deixou de existir e foi rebaixada a planos administrativos […]. Entre um regime
carente de legitimidade e políticos faltos de representatividade, os planos regionais
foram abastardados como moeda de troca que, de um lado, ajudava a manter a fachada
das instituições representativas e, de outro, a fazer de conta que o regime era racional,
para lograr empréstimos e financiamentos dos Bancos Mundial e Interamericano de
Desenvolvimento. Assim, a ditadura obtinha recursos externos para financiar a
expansão capitalista […] com a moeda podre do novo clientelismo, com o álibi da
promoção da desconcentração da renda na região mais miserável do país. Mas não se
tratava de pacto, nem de negócios de ingênuos: o que estava em operação de todos os
lados — Bancos Mundial e Interamericano incluídos — era salgar a terra do Nordeste,
para matar a erva daninha da subversão social. O sucesso da SUDENE sob a ditadura
foi enorme, mas o Nordeste transformou-se num gueto de nordestinos. (Ibid., p.43-
44).
Diante disso, o fato é que a coexistência de uma modernização em meio a fome que
continua assolando em maior grau e medida algumas regiões como o Nordeste brasileiro não
diz respeito fundamentalmente a incompetência da gestão pública. A pobreza e a fome são
aspectos determinantes para o rebaixamento salarial. Como nos apresenta Ianni (1981, p.124),
a pobreza no campo “tem sua fundamentação principal, mais que na ecologia regional, na
natureza e intensidade das relações sociais que pressionam o pequeno produtor” (parceiro,
morador, assalariado etc) para “extrair o máximo possível de seus excedentes monetários e de
suas forças físicas, em benefício de grupos e classes sociais que monopolizam o capital e a
terra.”. É exatamente em virtude dessa fundamentação que, para o autor, a pauperização relativa
e absoluta ocorreu em escala acentuada desde 1964, “[...]quando a burguesia transforma a
repressão política, o planejamento governamental, a política salarial, a política sindical e outras
atuações do poder estatal em técnicas de controle, subordinação e superexploração das classes
assalariadas [...].” (IANNI, 1981, p.79).
O empobrecimento da população trabalhadora, portanto, caminhou junto a extração da
mais-valia extraordinária 91
no período da ditadura (do grande capital), fazendo com que o
91
“A ditadura militar foi levada a criar condições jurídico-políticas e econômicas sob as quais a burguesia
conseguiu aumentar a taxa e a massa de mais-valia. Criou as condições sob as quais a mais valia potencial, que o
subsistema econômico brasileiro poderia produzir, se realizasse na mais-valia extraordinária, que a burguesia
passou a acumular” (IANNI, 1981, p.79). Contraditoriamente, somado a proletarização do campo, “todo o peso da
186
crescimento da taxa de expropriação tenha viabilizado o “milagre brasileiro”. Este quadro pode
nos apresentar vários elementos consonantes e dissonantes com a particularidade do ciclo
econômico e político dos anos 2000 diante de um crescimento econômico concomitante a
redução da pobreza via programas de transferência de renda, com maior tônica na região
Nordeste, além do aumento real do salário-mínimo. Em ambos os cenários, o contexto
internacional, a (re)combinação entre as formas de exploração da força de trabalho (mais-valia
absoluta e/ou relativa e a consequente pauperização absoluta e/ou relativa) e a capacidade
organizativa das classes sociais são aspectos decisivos.
Como podemos observar, com o golpe de 1964 a questão regional se agravou, tendo em
vista que foi exatamente no Nordeste, “região do país que havia acumulado maior atraso social”,
que “as consequências do golpe foram mais graves” (FURTADO, 2009, p.19). A partir daí as
políticas voltadas para o desenvolvimento do Nordeste, na verdade, ficaram cada vez mais
alinhadas com a necessidade de “reconquista” do Nordeste pelo capital de forma ampla. (IANNI,
1981, p.117).
O aprofundamento da questão social no Nordeste continuou caminhando junto ao
reforço ideológico do “nordestino nordestinado” e do Nordeste como uma “região castigada
pela natureza”, que toma novo fôlego especialmente a partir da seca de 1970. Assim, de “região
‘perigosa’, que ‘ameaçava’ o Estado burguês, passava a ser considerada como uma paisagem
de ‘inclemência do tempo’ [...] com ‘multidões famintas angustiadas’ [...]. Diante da miséria a
que o capital submete operários rurais e camponeses, os governantes fazem literatura, imaginam
que os muitos severinos e severinas enganam-se com palavras.” (IANNI, 1981, p.118). Já do
ponto de vista do Estado, há uma substituição da retórica política antiga (regionalismo,
municipalismo, etc) pela tecnocrática, do planejamento. Isto muito devido ao relativo
enfraquecimento do coronelismo e das mediações políticas tradicionais em virtude do
crescimento da exploração da força de trabalho operária e camponesa ao mesmo tempo em que
ganhavam espaço político e econômico os grandes negócios, no campo e na cidade.
ditadura, desde 64, ao mesmo tempo em que acentuou a exploração da força de trabalho, provocou a repolitização
dessas classes, dos trabalhadores assalariados do campo e da cidade, dos produtores autônomos. [...] As greves
dos trabalhadores da agroindústria canavieira, em 79 e 80, são expressões desse processo político de profunda
significação para o Nordeste e o Brasil.” (IANNI, 1981, p.128-129).
187
Como podemos perceber, a questão regional não teve resolubilidade. Assim como
Correia (1988, p.60-61), consideramos que “o avanço das relações capitalistas provoca
transformações nas características da questão regional, em suas exterioridades, mas, em vez de
eliminá-la, ele agrava, aprofunda a questão”. A partir desse entendimento, “a questão regional
persiste [...] e coexiste com a questão nacional”. Ou, em outros termos, a “questão nordestina é
regional e nacional”, hoje mais ainda.
Assim, tal como no Brasil, no Nordeste, com maior peso, a base da questão regional
continua tendo como um dos principais aspectos a questão agrária, fundiária, o monopólio da
terra. Este, mesmo diante das novas relações sociais em permanente formação na agricultura
com a inserção do trabalho assalariado e as contínuas migrações, não deixou de existir com a
modernização, ao contrário. Sobre isso, é importante ressaltar o que alguns autores apontam
como contradições presentes no movimento migratório de trabalhadores tendo em vista que
pode representar também, por outro lado, a possibilidade de romper com as determinações
locais.
Contudo, não há como negar os determinantes centrais para esse movimento migratório
que perdurou, mesmo em outro grau e medida, no Brasil contemporâneo: o fortalecimento da
aliança do atraso, sobre a qual nos fala Martins (1994, p.92), como sendo aquela “aliança
estruturalmente básica entre capital e terra”, debilitando a força dos movimentos populares,
especialmente do campo. “Essa aliança enfraqueceu a sensibilidade de amplos setores da
sociedade brasileira, basicamente porque anulou a vulnerabilidade política das classes
dominantes ao anular a possibilidade de um conflito de interesses tão radical quanto o que
poderia existir no conflito entre racionalidade do capital e a irracionalidade da propriedade
fundiária”. E foi exatamente a permanente capacidade de recompor essa aliança entre os
diferentes setores, segmentos e frações das classes dominantes no Brasil, associadas aos
interesses imperialistas, que tem sido tão penosa a trajetória de conquistas de direitos sociais
das classes populares da cidade e especialmente do campo, onde tão tardiamente foram
implementadas leis trabalhistas e a reforma agrária continua sendo uma possibilidade remota.
Basta atentarmos para as atuais mudanças na legislação trabalhista diante da última “reforma”
que demonstrou o quanto a tal aliança continua com vigor, recompondo a questão agrária
188
regionalmente. Isto reforça a contribuição que nos traz Oliveira (1993, p.50) quando nos diz
que a “questão regional é, basicamente, a história da resolução da questão do mercado de força
de trabalho, a qual vai ter consequências sobre a irresolução da questão agrária”.
O que, então, a história nos ensina é que o movimento de concentração e centralização
do capital por aqui apresentou e continua apresentando como saída para suas crises a expansão
capitalistas nas áreas menos monopolísticas e capitalizadas, onde o peso do atraso de destaca
como é a região Nordeste. Isso se expressa através de momentos onde há um súbito crescimento
econômico nordestino no compasso da estagnação de outras regiões. É o que podemos, por
exemplo, observar durante os anos 2000.
Porém, outro grande aprendizado tem sido identificar e entender que essa saída é, por
outro lado, uma tendência esgotada. Afinal, a questão regional, assim como a questão social, é
insuprimível nos marcos da hegemonia capitalista, pois trata-se de uma economia que “articula
estruturas arcaicas e modernas, na qual essas últimas apresentam intenso crescimento
‘desordenado’ e se impõem às primeiras como centros hegemônicos da economia nacional.”
(FERNANDES, [1968] 2008, p.79). Em outras palavras:
Não à toa que desde o Golpe de 2016 os vetores e números têm tomado outro contorno,
especialmente para o Nordeste. Frente a isso, lembramos da sinalização feita por Coutinho
(2011, p.141-142) sobre como a crise da sociedade brasileira durante o século XX tem no
Nordeste “cores mais vivas e intensas” em relação as demais regiões do país, condenando os
que “lutavam por uma nova comunidade à solidão e à incompreensão. De certo modo, na
medida em que aí as contradições eram mais ‘clássicas’ (no sentido de Marx), o Nordeste era a
região mais típica do Brasil; a sua crise expressava, em toda a sua crueza, a crise do conjunto
do país”.
Essa constatação implica em outra: a de que a “saída” para a questão regional está
fundida com aquela voltada para a questão nacional e ambas constituídas pela questão social na
sociedade capitalista. A história já nos demonstrou que esta “saída” não está em uma suposta
ausência de integração nacional ou na falta de crescimento econômico, mas sob quais bases,
qual projeto de nação, se constitui o desenvolvimento que sustenta tanto a integração quanto o
189
crescimento. E foi olhando para os ensinamentos da própria história, para a trajetória das
iniciativas em torno do planejamento e desenvolvimento regional no Brasil do século XX, que
Furtado (2004, s/p) demonstra sua lucidez através das seguintes palavras:
O que nos resta, diante dos elementos apresentados até então, é seguirmos a nossa saga
em recompor os fios que ligam o passado ao presente, constituindo a dialética arcaico-moderno,
entre permanências e mudanças, para, assim, chegarmos às constatações da nossa tese sobre as
inflexões ocorridas na questão social, tanto na sua dimensão econômica como política, no
Nordeste dos anos 2000. Isso implicará tecermos ainda, nessa colcha de retalhos que é a
formação social brasileira e nordestina, os fios que constituíram (e constituem) o neoliberalismo
e as “novidades” do nosso tempo. E é exatamente este tempo que nos motiva a retomarmos a
pergunta que intitula o presente item para, então, finalizarmos por aqui e adentrarmos o último
capítulo. Seja enquanto nação ou como brasileiros, seja enquanto região ou como nordestinos,
“existirmos: a que será que se destina?”.
190
CAPÍTULO 3
Tal como a Usina no romance de Rego (2012, p.189), que reproduz permanentemente o
novo no velho, não se contentando nunca e sempre pedindo mais terra; engolindo não só a cana,
mas tudo que via pela frente, a dinâmica capitalista, sob vigência da lei da concorrência, ao
mesmo tempo em que demanda cada vez mais adentrar outros territórios, em um permanente
descontentamento, (re)estabelece também com mais afinco as fronteiras regionais. Esse
processo recompõe continuamente a questão regional, sob a lógica desigual e combinada,
mesmo que recombinando novos aspectos em sua constituição e manifestações.
Harvey (2013, p.527) explicita a importância da relação entre tempo e espaço na
produção e circulação capitalista, buscando nas próprias palavras de Marx a sinalização de um
permanente esforço do capital em superar todas as barreiras espaciais. Isto, contudo, se dá
mediante a produção de “configurações espaciais fixas e imóveis” através, por exemplo, de
estruturação de sistemas de transporte e comunicação, fruto do desenvolvimento das forças
produtivas. (HARVEY, 2005, p.145). Assim, a mais-valia (ou o mais-valor) deve ser produzida
e realizada em um período de tempo socialmente necessário, dadas as circunstâncias históricas
de cada época. “Se é necessário tempo para superar o espaço, o mais-valor deve também ser
produzido e realizado dentro de um determinado domínio geográfico”. Eis a base para o que o
autor denomina de “desenvolvimento geográfico desigual no capitalismo” (HARVEY, 2013).
Trata-se mesmo de uma consequência prática do desenvolvimento desigual e combinado.
Na busca de superar as fronteiras de tempo, espaço e de “distinções regionais”, o
desenvolvimento capitalista estabelece outras tantas barreiras espaciais e diferenciações
geográficas. Fruto desse processo, ocorre a “regionalização das lutas de classes e entre facções”
191
como também o adensamento da questão social na sua dimensão regional, expressa pela
intensificação da divisão internacional do trabalho, da exploração do trabalho por intermédio
da “reestruturação territorial e produtiva” (que afeta decisivamente as condições econômicas,
políticas e ideológicas dos/as trabalhadores/as) e dos diversos conflitos de base territorial que
promovem uma onda migratória cada vez mais pulsante nos dias de hoje 92 . Diante dessa
realidade, é importante atentar o seguinte:
92
Em relação as migrações internacionais, de acordo com a ONU, o mundo possui atualmente cerca de 232
milhões de migrantes, o que corresponde a 3,2% da população. Disponível em: <www.nacoesunidas.org>. Acesso
em: 15 set. 2015.
192
[...] decerto muito diferente do período 'fordista', mas também do período inicial da
época imperialista, um século atrás. Pois, embora tenham ressurgido alguns dos
aspectos característicos daquela época (extrema centralização e concentração do
capital, interpenetração das finanças e da indústria etc.), o sentido e o conteúdo da
acumulação de capital e dos seus resultados são bem diferentes: o capitalismo parece
ter triunfado e parece dominar todo o planeta, mas os dirigentes políticos, industriais
e financeiros dos países do G7 cuidam de se apresentarem como portadores de uma
missão histórica de progresso social […]. O estilo de acumulação é dado pelas novas
formas de centralização de gigantescos capitais financeiros (os fundos mútuos e
fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da esfera
financeira. Seu veículo são os títulos e sua obsessão, a rentabilidade aliada à 'liquidez',
da qual Keynes denunciara o caráter 'anti-social', isto é, antiético ao investimento de
longo prazo. Não é mais um Henry Ford ou um Carnegie, e sim o administrador
praticamente anônimo […] de um fundo de pensão com ativos financeiros de várias
dezenas de bilhões de dólares, quem personifica o 'novo capitalismo' de fins do século
XX. É na produção que se cria riqueza […]. Mas é a esfera financeira que comanda,
cada vez mais, a repartição e a destinação social dessa riqueza (CHESNAIS, 1996,
p.14-15).
Trata-se também de um momento em que a relação entre Estado e sociedade passa por
uma série de redefinições sob a marca do neoliberalismo e do monitoramento dos países de
economia dependente pelas agências multilaterais. Para além de garantir, regular, a propriedade
e a exploração do trabalho, “o Estado capitalista precisa agora assumir um papel
intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente
o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala monumental”. Tal recondução
torna-se um pilar para a manutenção da “extrema perdularidade do sistema capitalista
contemporâneo” (MÉSZÁROS, 2002, p.700).
Nesse sentido, é importante ressaltar que a nova dinâmica do capital, com a tônica sob
as finanças, de acordo com Chesnais (1996), tem sustentação tanto no mecanismo de “inflação
do valor dos ativos” ou, em outras palavras, de “formação de capital fictício”, como também
no “serviço da dívida pública e as políticas monetárias”. Um mecanismo associado ao outro,
viabilizando as transferências efetivas de riqueza para a esfera financeira. E isso só é possível
pela permanente presença dos Estados Nacionais. Nesse quadro, os fatores de hierarquização
entre as nações e regiões são acentuados, ao mesmo tempo que redesenhados. “O abismo que
separa os países participantes, mesmo que marginalmente, da dominação econômica e política
do capital monetário rentista, daqueles que sofrem essa dominação, alargou-se ainda mais”
(Ibid., 1996, p.15-19).
Daí a importância de sinalizar a função cada vez mais ativa que assume o fundo público
- parcela significativa do trabalho necessário e da mais-valia socialmente produzida capitaneada
pelo aparato estatal – nas políticas macroeconômicas, valorizando capitais (através da dívida
193
93
Disponível em: <www.auditoriacidada.org.br>. Acesso em: 10.05.2015.
194
do nível [...] de desenvolvimento dos capitais nacionais, bem como da posição mais ou menos
dominante destes últimos no interior da estrutura do capital global” (MÉSZÁROS, 2002, p.653).
Com isso, os ajustes e as contrarreformas (BEHRING, 2008) implementadas no Brasil
com maior intensidade a partir da década de 1990 representam muito mais que “uma
programática econômica”, expressam uma redefinição mundial do campo político-institucional
e, em face da desigualdade crescente, “situa a figura do pobre no centro de políticas focalizadas
de assistência. Ocorre, então, um deslocamento da função assistencial, que se torna um
instrumento essencial de legitimação do Estado” (NETTO, 2007, p.150).
A “velha” questão social, conotada com o pauperismo, não foi equacionada e, menos
ainda, resolvida. E, de fato, temos novas problemáticas, seja pela magnitude que
adquiriram situações que antes não eram socialmente reconhecidas como
significativas (violência urbana, migrações involuntárias, conflitos étnicos e culturais,
opressão/exploração nas relações de gênero etc.), seja pela refuncionalização de
velhas práticas sociais agora submetidas à lógica contemporânea da acumulação e da
valorização (o trabalho escravo e semi-escravo, o tráfico humano, a prostituição, o
“turismo sexual” etc.), seja, enfim, pela emergência de fenômenos que, novos,
vinculam-se aos porões da globalização – as conseqüências da organização do crime
em escala planetária (Ibid., p.156).
94
“Conforme a última estimativa da Campanha da CPT, De olho aberto para não virar escravo, ano 2014, o
número de pessoas que foram libertadas da situação análoga à escravidão corresponde a 1.752” (PLASSAT, 2014,
p.108).
95
Segundo Harvey (2010, p.19), “há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-
modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de 'compressão do
tempo-espaço' na organização do capitalismo […] A fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de
todos os discursos universais são um marco do pensamento pós-moderno”.
196
radical do padrão de acumulação vigente. Na verdade, quase que como um lobo na pele de
cordeiro, o que efetivamente está em jogo por trás do discurso socioambiental hegemônico é a
preocupação com as condições favoráveis e necessárias para a perpetuação do desenvolvimento
capitalista nas atuais circunstâncias. Ou seja, a tentativa permanente é buscar uma resolução,
ou “antídoto”, para a uma contradição irremediável: a reprodução ampliada do capital, com
capacidade cada vez mais destrutiva em detrimento da criativa, e as condições ambientalmente
favoráveis para a humanidade se sustentar nesse modelo de sociedade.
Assim, buscando fugir das concepções catastróficas, fatalistas e/ou idealistas como
também daquelas engessadas no tempo, incapazes de fazer uma releitura e/ou considerar a
existência de novos aspectos no movimento da história, tentaremos neste momento esboçar uma
breve problematização acerca das principais questões em torno do desenvolvimento capitalista
contemporâneo. Sejam velhas questões ainda não resolvidas ou, ao menos, polêmicas, sejam
questões inovadoras a partir do que se tornou o desenvolvimento em nosso tempo. Este, do
ponto de vista da expansão das capacidades humanas, enquanto desenvolvimento social, tal
como mencionado no primeiro capítulo, definitivamente depara-se com contradições cada vez
mais adensadas pelo próprio crescimento econômico capitalista, ao contrário do que é tão
proclamado.
É exatamente diante desse processo que Martins (1994, p.52) recorre novamente a
constatação de que crescemos, sim, porém, sem o desenvolvimento esperado ou dando
prosseguimento aquele “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Por isso, em décadas atrás,
o autor já ressalta que, assim como a ênfase na palavra crescimento não é nova, a “ideia de
bloqueios econômicos, sociais e institucionais ao crescimento econômico do Brasil” também
não é recente. E, assim, faz a seguinte provocação:
Tudo isso nos remete ao debate iniciado no Capítulo 1, agora, num diálogo mais direto
com o padrão de reprodução do capital mundializado, o que demanda levarmos em
consideração, nos limites do nosso trabalho, a diversidade de contribuições mesmo na tradição
marxista. Captá-las e canalizá-las para subsidiar nossa tese é um dos grandes esforços que
continua em curso.
197
“Viver é muito perigoso... [...] Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o
concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”. Mesmo que
despretensiosamente, as palavras de Guimarães Rosa ([1956]1994, p.16), embebidas em
arcaísmo, fazendo alusão a realidade de um sertão remoto, embrenhado nas profundas terras
brasileiras, parecem mais retratar o “desafio e o fardo do” nosso “tempo histórico”,
parafraseando Mészáros (2007, p.58), que nos diz o seguinte:
que exigiu, especialmente no período mais recente, a superação de “barreiras que impediam o
desenvolvimento de novos componentes vitais”. “Reduzindo e degradando os seres humanos à
condição de meros ‘custos de produção’ como ‘força de trabalho necessária’ […]”.
A mundialização do capital, nessa ótica, é sinônimo do predomínio universal do modo
“de extração e apropriação do trabalho excedente como mais-valia”. Os setores dominantes,
que compõem a burguesia (e suas frações) internacionalmente articulada, dirigem o movimento
de acumulação capitalista, em tempos de agudização da luta de classes, atualiza e renova
dispositivos de coerção e exploração social, reproduzindo as relações sociais a semelhança de
suas ideias. No entanto, a crise revela o que Iasi (2009) vai subscrever de “hipocrisia
deliberada”, apresentando “um particular momento do processo ideológico, mais precisamente
aquele que se caracteriza pela perda da correspondência entre as ideias e as condições reais de
existência” (MARX; ENGELS, 2009). Esse processo tem se caracterizado pelo retorno
avassalador de um conservadorismo arraigado em todas as dimensões da vida humana. Assim,
estratégias como a intensificação da política de guerras, da indústria armamentista e aparatos
repressivos do Estado têm sido um forte aliado da classe dominante e dirigente na realidade de
crise capitalista que enfrentamos.
Já nas palavras de Mandel (1982, p.75-85), a crise capitalista, inclusive a que
vivenciamos no período mais recente, expõe com maior notoriedade as discrepâncias e
contradições que “derivam das leis internas do modo de produção capitalista, […] razão para a
inevitabilidade das oscilações conjunturais do capitalismo”. É importante destacar que tais
crises se dão não por falta de competência ou de vontade política dos governantes, mas em
decorrência do “andamento cíclico do modo de produção capitalista ocasionado pela
concorrência” que se manifesta “pela expansão e contração sucessivas da produção de
mercadorias, e consequentemente da produção de mais-valia”.
[…] a expansão geográfica do capitalismo que está na base de boa parte da atividade
imperialista é bastante útil para a estabilização do sistema precisamente por criar
demanda tanto de bens de investimento como de bens de consumo alhures. Podem
com efeito surgir desequilíbrios entre setores e regiões, bem como ser produzidos
ciclos de negócios e recessões localizadas. Mas também é possível acumular diante
de uma demanda efetiva em estagnação se os custos dos insumos (terra, matérias-
primas, insumos intermediários, força de trabalho) sofrerem um declínio acentuado.
Logo, o acesso a insumos mais baratos é tão importante quanto o acesso a mercados
em ampliação na manutenção de oportunidades lucrativas. […] O capital também
pode se apropriar de “reservas latentes” de um campesinato ou, por extensão,
mobilizar mão de obra barata de colônias e outros ambientes externos. Se isso não der
certo, o capitalismo pode […] induzir ao desemprego, criando assim, diretamente, um
exército industrial de reserva […] exercer uma pressão de baixa sobre as taxas de
salário e abrir assim novas oportunidades de emprego lucrativo do capital (HARVEY,
2014, p.117)
Esse contexto nos remete a uma característica central que configura as relações de
trabalho em sociedades como a brasileira: a dupla exploração da força de trabalho. Isso significa
que o operário e o camponês são expropriados de modo a garantir tanto os interesses dos setores
dominantes “internos” (representantes do capital privado brasileiro) como os dos setores
estrangeiros (representantes da grande burguesia internacional), “com os quais aqueles se
acham articulados”. Tal aspecto, a nosso ver, é reproduzido internamente entre as regiões
brasileiras, compondo o novo, e já velho, enredo onde “a mesma nação industrializada, moderna,
conta com situações sociais, políticas e culturais desencontradas.” (IANNI, 1989, p.154). A
transformação do Brasil em potência continua, portanto, sendo acompanhada por uma
modernização econômica que pouco reverbera em uma modernização, de fato, da sociedade
como um todo. E isto, como já vimos, está para além da insistente herança oligárquica e
patrimonial que se reedita nesses tempos.
Esse grau de heterogeneidade, distorção e desigualdades territoriais destacam-se
especialmente diante da vigência do imperialismo, vivo e operante, tendo o neocolonialismo e
a troca desigual como uma de suas expressões (MANDEL, 1982). Afinal, “a acumulação
200
96
“Estão aí a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão
de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de
propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação da
força de trabalho e a supressão de formas alternativas de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais
e imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação,
particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de
crédito como meios radicais de acumulação primitiva. O Estado, com seu monopólio da violência e suas definições
da legalidade, tem papel crucial no apoio e promoção desses processos, havendo […] consideráveis provas de que
a transição para o desenvolvimento capitalista dependeu e continua a depender de maneira vital do agir do Estado
[…].” (HARVEY, 2014, p.121).
201
Nessa ótica, com todas as ponderações que possamos fazer sobre o significado histórico
que particularizou o processo de acumulação primitiva (originária) 97, a proposta de análise
apresentada por Harvey (2014) traz consigo uma analogia com esse processo para dizer que
vivenciamos um momento histórico de atualização e aprimoramento de mecanismos de
expropriação violenta dos trabalhadores, de cerceamento de liberdades democráticas,
degradação, predação, fraude e roubo, bastante comuns, por exemplo, no sistema financeiro e
da política neoliberal de privatização que têm aberto novos terrenos de acumulação do capital.
Contudo, encontramos já em Mandel (1982) uma discussão que pode se assemelhar a
de Harvey (2014), muito embora com as devidas diferenças que certamente é possível
identificar nas palavras do próprio autor. Vejamos:
97
A questão central que particulariza historicamente a acumulação primitiva é o fato de ter sido um fenômeno
observado no estágio do capitalismo comercial, fundamental para a formação, durante três séculos, das condições
para o protagonismo do capital produtivo (industrial). Para isso ela serviu e durante o longo período de sua vigência
o protagonismo era do capital comercial e mercantil. Já na contemporaneidade o protagonismo é de um novo tipo
de capital surgido na etapa imperialista (o capital financeiro). É esse capital que domina no tempo presente, mesmo
onde as relações capitalistas ainda não se desenvolveram plenamente, como em alguns casos da periferia. Tal
ponderação, dentre outras, subsidiam as críticas por parte de outros autores à tese de Harvey (2014), o que não
teremos como contemplar neste trabalho, mesmo que consideremos importante sinalizar esse contraponto.
202
absoluta, sendo esta mais ocasional em períodos de crise e de governos ditatoriais, quando os
setores dominantes da sociedade transformam a repressão política, o planejamento
governamental, a política sindical e outras atuações estatais em técnicas de controle,
subordinação e exploração mais agressiva das classes assalariadas no campo e na cidade. Nesse
patamar, como já vimos, há uma alteração significativa dos níveis de pauperização relativa e
absoluta, o que viabiliza a “mais-valia extraordinária” sobre a qual se remete Ianni (1981),
inspirado no próprio Marx (1984).
Tudo isso conforma uma base onde, especialmente a partir da década de 1990, haverá a
introdução e o aprimoramento de novas formas de exploração (e expropriação), subsidiadas e
legitimadas pelas instituições do Estado que vão desde o patenteamento e licenciamento de
material genético, sementes e uso indiscriminado de agrotóxicos; a expropriação de terras e a
expansão do agronegócio; a biopirataria; a mercantilização de formas culturais e espaciais; a
especulação imobiliária; a privatização de bens e equipamentos públicos; a dívida pública e os
fundos de pensão; à regressão de estatutos e legislações sociais. Desse modo, “temos de
examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes
instituições do capital financeiro”, o que contribui para um aspecto já apresentado por Lênin
(2012, p.138) desde o início do século XX: “o crescimento extraordinário […] da camada dos
rentistas, ou seja, de indivíduos que vivem do 'corte de cupom', que não participam de nenhuma
empresa e cuja profissão é a ociosidade”.
Assim, à semelhança da usina que “tirara o rio, para fazer porcaria por cima dele” e
crescia os olhos “em tudo o que era do povo”, retratada por José Lins do Rego (2012, p.270)
naquele romance com o qual dialogamos no capítulo anterior, o rentismo, o processo de
financeirização do capital faz deste ainda mais devastador com consequências predatórias,
inclusive no âmbito das forças produtivas. Tal como no processo de formação do exército
industrial de reserva, “valiosos ativos são tirados de circulação e desvalorizados […] até que o
capital excedente faça uso deles a fim de dar nova vida à acumulação do capital”. Essa dinâmica
impõe “crises limitadas a um setor, a um território ou a todo um complexo territorial de
atividade capitalista”. (HARVEY, 2014, p.123-126). Como exemplo, temos a crise asiática do
final dos anos de 1990, a crise imobiliária dos EUA em 2008 e tantas outras noticiadas como
conflitos atípicos e supostamente motivados apenas por um descontrole em determinado setor
da economia ou estritamente por questões territoriais e culturais específicas a determinadas
regiões. E assim nos acostumamos a ver, entender e naturalizar os fatos mais comuns durante
as últimas décadas.
O Brasil contemporâneo é um cenário fértil que nos permite identificar alguns impactos
204
98
Ver em: <https://brasildefato.com.br/2016/07/05/sem-marx-nos-nao-entendemos-o-mundo-em-que-vivemos-
afirma-professor-da-ufrj/>. Acesso em: 04.07.2016.
99
Uma análise sobre as consequenciais econômicas do Novo Regime Fiscal encontra-se disponível em:
<http://www.valor.com.br/politica/4740633/economistas-lancam-documento-com-criticas-pec-dos-gastos-
publicos>. Acesso em: 01.06.2018.
100 Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/geral/ricardo-antunes/>. Acesso em:
01.06.2018.
101
Ver em: <https://www.brasildefato.com.br/2016/06/21/em-terra-de-indio-a-mineracao-bate-a-
porta/?platform=hootsuite.>. Acesso em: 04.07.2016.
205
102
Ver em: <http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3044-balanco-da-questao-agraria-
no-brasil-em-2015>. Acesso em: 04.07.2016.
206
propriedade obtidos graças a anos de dura luta de classes […] ao domínio privado tem
sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da
ortodoxia neoliberal. […] a acumulação por espoliação sai dessa condição clandestina
e se torna a forma dominante de acumulação com respeito à reprodução expandida
[…].
Esse processo diz respeito a um movimento impulsionado pela política neoliberal que
cria bases e maior incentivo para a instalação de algumas empresas e indústrias em cidades
menores do interior nordestino, atraídas pela oferta abundante de força de trabalho como
também pelos baixos salários. Condições estas propícias para instituir relações de trabalho mais
flexíveis, tal como a subcontratação, e, portanto, elevar o poder competitivo dessas industrias
em relação à concorrência externa, a exemplo das empresas dos países asiáticos. (ARAÚJO,
2012).
Sobre a política de desenvolvimento regional, dentre outras ações voltadas ao
enfrentamento a questão regional no país, existe uma marca, apontada por muitos analistas,
própria dos anos 90, tendo em vista os desdobramentos do neoliberalismo, da reestruturação
produtiva e da financeirização do capital que influenciaram decididamente no agravamento das
desigualdades regionais. 103 Observemos a seguinte caracterização da política regional nessa
década:
103 “De fato, os primeiros anos da década de 90 revelaram dois fenômenos concomitantes no mundo
desenvolvido. O primeiro deles, o efeito de reequilíbrio regional negativo, isto é: estaria havendo uma redução
das disparidades entre regiões por conta de a recessão dos anos 90/93 ter impactado mais fortemente as áreas mais
prósperas e ricas dos países desenvolvidos, onde foi mais longe o processo de reestruturação produtiva com
consequências amplas e bastante graves sobre o desemprego e a desaceleração do crescimento. Isso teria
provocado uma convergência de rendas no plano inter-regional negativa, pois carreada pelas perdas das regiões
mais dinâmicas e não por ganhos acumulados juntos às mais atrasadas”. (LAVINAS, 1997, p.9-10).
208
No projeto neoliberal não há grande espaço para o Estado planejador nem para o
Estado produtor. As últimas décadas nos mostram que os dois, junto com o grande
capital privado (nacional e multinacional), foram os principais agentes das mudanças
[...]. O Projeto de Reconstrução Nacional ignora isso. [...]. Coloca a questão regional,
por exemplo, no capítulo das políticas sociais compensatórias, ao lado do seguro-
desemprego e das creches. Que espaços poderíamos, nesse contexto, esperar para o
planejamento regional? (ARAÚJO, 2012, p.23-24).
Como reflexo desse contexto, o Nordeste volta a perder posição na economia nacional,
sendo reduzido consideravelmente o peso desta região na indústria nacional, de 12% em 1990
para 8% em 1994. Dos considerados “centros urbanos dinâmicos” em termos de crescimento
industrial, o território nordestino abrigava apenas cerca de 15% dos quais 80% estavam nas
regiões Sudeste e Sul. Essa realidade tornou-se mais agravante frente ao reforço na seletividade
espacial dos investimentos via BNDES. Seletividade esta, inclusive no interior da própria
região, beneficiando estados como a Bahia. Assim, o novo dinamismo das áreas de fruticultura
irrigada, o mercado do pequeno excedente da agricultura de sequeiro e a crise do velho
complexo “gado-algodão-policultura”, que se estendia desde 1980, associada a queda de quase
pela metade da participação do Nordeste na pauta de exportações brasileiras, desdobraram-se
em um quadro de consequente estagnação nos indicadores econômicos da região em questão.
Foi diante desse cenário que Celso Furtado, em 1992, publicou o livro cujo título já explicitava
sua análise sobre as tendências da época: “Brasil: a construção interrompida”.
O resultado desse processo foi, sem dúvidas, o aprofundamento das diferenciações e
desigualdades regionais, tal como demonstra a publicação do IPEA (1997) intitulada
“Desigualdades Regionais: Indicadores Socioeconômicos nos Anos 90”. Observemos um dos
trechos da pesquisa:
comércio externo, são débeis os sinais de uma reação à altura dos desafios que se
colocam para a reversão de um quadro tão desfavorável. (LAVINAS, 1997, p.33).
Todo esse contexto teria reforçado o peso do atraso em detrimento uma modernização
de fato ou, nos termos da própria autora, “em lugar de buscar a modernização, ampliamos nosso
atraso.” (ARAÚJO, 2012, p.23). Este expresso, inclusive, no crescimento do fundamentalismo,
de formas de exploração sexual, de condições de trabalho degradantes e aviltantes, de
exploração predatória dos recursos naturais, da restrição de direitos humanos e sociais, mesmo
nos marcos da sociedade burguesa. A transformação de “reservas do 'mundo do trabalho' em
reservas do 'mundo do crime'” (GUIMARÃES, 2008), o aumento expressivo da criminalidade
e da criminalização, da violência e da repressão são aspectos que compõem essa “nova” face
da hegemonia do capital. O que isso nos demonstra? Aqui lembramos das questões que fizemos
no início deste item relativas ao dilema entre civilização e/ou barbárie, ensaiando alguns
possíveis caminhos que certamente nos levarão a outras tantas questões. Vamos aos pontos.
Mesmo que seja nesta sociedade que “pela primeira vez na história da humanidade, não
só a classe dominante, mas também a classe dominada abre uma perspectiva para toda a
humanidade”, sendo “a primeira classe social que exige, por sua própria natureza, a superação
radical da exploração do homem pelo homem” (MARX; ENGELS, 2009, p.10), é essa mesma
sociedade que carrega consigo um potencial de conter essa força social, não apenas pelo
tamanho e sofisticação de suas indumentárias repressivas, mas também por sua capacidade de
alienação dos sujeitos, de “dessubstancialização”, podendo representar uma inversão perversa
dos saltos progressivos.
Por enquanto, diante dos argumentos aqui postos, é possível observar que vivemos um
momento histórico em que o capitalismo demonstra cada vez mais o que de menos tem a
oferecer para a humanidade. Isso não significa que seu desenvolvimento e sua possibilidade
concreta de modernização esteja necessariamente em decadência; ao contrário, está em pleno
vapor e ainda mais complexo, porém, sob uma perda considerável do seu caráter civilizatório e
progressista e, por conseguinte, um rebaixamento necessário da defesa de valores democráticos
pelos próprios setores dominantes como uma alavanca para o padrão atual de acumulação. Eis
a gradativa decadência ideológica da burguesia que se aprofunda nesses tempos. “Por
conseguinte, os significados originais tanto de ‘liberdade’ quanto de ‘igualdade’ são
transformados em determinações abstratas que se sustentam de maneira circular […]”
(MÉSZÁROS, 2007, p.188). Daí a completa similaridade entre liberalismo e conservadorismo.
A gênese e o desenvolvimento do capitalismo “implicou episódios ferozes e com
210
frequência violentos, de destruição criativa”, mediante a dominação de classe. Foi esse mesmo
contexto que permitiu “a abolição das relações feudais, a liberação de energias” potencialmente
“criadoras, a abertura da sociedade a fortes correntes de mudança tecnológica e organizacional
e a superação de um mundo fundado na superstição e na ignorância, substituído por um mundo”
que teria o potencial de desenvolver as forças produtivas ao ponto de “libertar as pessoas dos
anseios e necessidades materiais”, de superar a escassez das condições de vida. (HARVEY,
2014). Esse processo compõe todo o legado do projeto de modernidade que aos poucos ficou
órfão do seu próprio criador. Referimo-nos aos setores burgueses.
Portanto, não dá pra avaliar o que há de positivo e negativo do capitalismo, percorrendo
os modos de produção existentes na história da humanidade, como se o mesmo pudesse
sobreviver apenas com um ou com o outro lado da moeda. Estamos falando de uma unidade
contraditória, de um complexo social que tem esferas constitutivas do seu modo de ser, às vezes
se expressando de maneira mais branda, outras vezes mais ofensiva. Assim, entendemos que,
se em algum momento a teoria marxiana e marxista avalia que é possível compreender a
acumulação primitiva como “uma etapa necessária, ainda que tenebrosa, pela qual teve de
passar a ordem social para chegar a uma condição na qual se tornassem possíveis tanto o
capitalismo como algum socialismo alternativo”, que abriu caminhos à reprodução expandida,
hoje temos formas de expropriação, alienação e acumulação que podem fazer ruir e destruir um
caminho já aberto. “A acumulação por espoliação pode ser aqui interpretada como o custo
necessário de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista”. Isto, portanto,
muito explica e caracteriza as práticas do imperialismo contemporâneo. É nesta mesma linha
de raciocínio que situamos as reflexões sobre a existência (ou não) de algo progressista na
expansão capitalista em territórios tradicionais, a exemplo do caso do imperialismo britânico
na Índia que, “diante da opção entre a mão de obra industrial e a volta ao empobrecimento rural,
muitas pessoas no âmbito do novo proletariado” pareciam “exprimir forte preferência por
aquela.” (HARVEY, 2014, p.128-135).
Certos de que Marx “não defendeu a perpetuação do status quo e, sem dúvida, não foi
favorável a nenhuma reversão a relações sociais e formas de produção pré-capitalistas”
(HARVEY, 2014, p.134), partindo da concepção do desenvolvimento capitalista como uma
“fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral”, portanto, não como algo
inexorável (BONENTE, 2014, p.02), entendemos que está no cerne não apenas da história do
Brasil, mas da própria lógica capitalista, que em períodos de intenso desenvolvimento
econômico, com aumento de forças produtivas, tendem a acirrar as contradições fundamentais
da sociedade. Afinal,
211
Essa 'alienação' […] só pode ser superada, evidentemente, dadas duas premissas
práticas. Para que ela se torne um poder 'insuportável', isto é, um poder contra o qual
se faça uma revolução, é necessário que tenha criado uma grande massa da
humanidade absolutamente 'destituída de propriedade' e ao mesmo tempo em
contradição com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um grande
aumento da força produtiva, um grau elevado do seu desenvolvimento – e, por outro
lado, esse desenvolvimento das forças produtivas […] é também uma premissa prática
absolutamente necessária, porque sem ele só a escassez se generaliza […] só com esse
desenvolvimento universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio
universal dos homens […] tornando todos eles dependentes das revoluções uns dos
outros […]. [Porém] no desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estágio
no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações
vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças de
destruição […] (MARX; ENGELS, 2009, p.50-56).
Dessa forma, o desenvolvimento das forças produtivas que viabilize, mesmo que
momentânea ou circunstancialmente, melhores condições de vida e trabalho, embora de forma
relativa, é muito mais suscetível para aprofundar as contradições e viabilizar as fissuras reais,
estruturais e sistêmicas que venham a favorecer um desenvolvimento social pautado nas
necessidades humanas, não nas do capital. Contudo, como podemos observar, o potencial atual
do desenvolvimento capitalista nos parece estar cada vez mais pautado na destruição, não na
criação, mesmo que essas sejam duas faces da mesma moeda. Se assim não fosse, o grau de
desenvolvimento das forças produtivas já alcançados na história da humanidade certamente já
poderia ter superado o estado de calamidade, enfermidade e degradação que boa parte da
população ainda é submetida, o que seria um completo inconveniente à dinâmica capitalista.
A reprodução ampliada do capital aponta, não só, para uma recomposição da classe
trabalhadora urbana e rural, como também para tendências históricas e imanentes a essa lógica,
como a reorganização e intensificação da luta de classes. Estas tendências tomam proporções
diferenciadas frente ao complexo sistema de financeirização e fetichismo do capital que se
integra à atual crise. Nesse caminho, a luta democrática adquire outro contorno e qualidade,
especialmente quando atrelada a outros projetos estratégicos de sociedade, sendo cada vez mais
uma das muitas trincheiras a serem enfrentadas pelos trabalhadores enquanto “questão geral da
resistência à acumulação por espoliação” (HARVEY, 2014, p.133). Isto tendo em vista que
“mesmo as escassas medidas de igualdade formal” estão sendo “com frequência consideradas
um luxo inacessível e anuladas sem cerimônia por práticas políticas corruptas e autoritárias, ou
ainda por intervenções ditatoriais realizadas abertamente.” (Idem, p.186).
Esse contexto põe grandes desafios para as resistências populares e organizações de
esquerda no atual quadro da luta de classes. Dentre esses, a necessidade de enfrentar uma leitura
economicista de desenvolvimento e suas contradições que associa de forma mecânica a
212
Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil, particularmente nas regiões Norte e Nordeste, contra
os impactos da construção de hidrelétricas, tal como a de Belo Monte, e de outras grandes obras
com objetivos claramente destoantes daqueles defendidos pelas populações atingidas.
É, portanto, inconcebível adjetivar tais resistências como anti-modernas ou como
obstáculos ao desenvolvimento econômico, quando, na verdade, são experiência movidas pela
necessidade de um desenvolvimento social, de fato. “Ainda que esta seja uma batalha específica
num local particular e precise ser travada com recursos específicos, seu caráter geral de classe
é bastante claro, tanto quanto o é o ‘bárbaro’ processo de expropriação” (HARVEY, 2014,
p.145). Por isso, é importante reiterar a política como mediação fundamental para se conformar
estratégias dos diferentes sujeitos e classes, que na disputa de projetos antagônicos podem abrir
caminho para a construção de uma nova hegemonia.
Retomando o tema sobre o qual iniciamos este capítulo, ressaltamos o quanto é comum,
na caracterização das tendências contemporâneas do capitalismo, a utilização de algumas
“máximas” relativas a um contexto de globalização e mundialização, onde o caráter expansivo
do padrão de acumulação do capital assume dimensões que desafiam seus próprios limites.
Vivemos hoje em uma sociedade sem fronteiras, globalizada, desterritorializada, sem distinções
regionais? Ou, em outra perspectiva e com tom muito menos entusiasta, podemos dizer que a
financeirização intensificou o domínio do mercado internacional implicando na perda do poder
de decisão e interferência dos Estados nacionais nos territórios nacionais? Optar por uma ou
outra posição certamente não contribuiria para decifrarmos as contradições e captarmos os eixos
que compõem o movimento dialético entre universal e regional na realidade atual. Ao contrário,
tornaria o caminho ainda mais nebuloso, inclusive aquele que estamos percorrendo ao longo
deste trabalho com o objetivo de dar sustentação a nossa tese, tendo como base os argumentos
aqui expostos. Dentre estes, aqueles que reiteram a questão regional como dimensão da questão
social e, portanto, parte constitutiva da dinâmica de ser capitalista, particularmente na
contemporaneidade. Por isso, atentamos para o seguinte:
Em contraponto, é certo que “a busca de mais-valia ao nível global faz com que a sede
primeira do impulso produtivo […] seja apátrida, extraterritorial, indiferente às realidades
locais […]”. Nessa perspectiva, “o poder das forças desencadeadas num lugar ultrapassa a
capacidade local de controlá-las, nas condições atuais de mundialidade e de suas repercussões
nacionais”. (SANTOS, 2006, p.170).
É exatamente no momento em que mais se agilizam, simplificam, integram,
desterritorializam, flexibilizam e universalizam as relações de produção e reprodução que, por
outro lado, se complexificam, fragmentam, territorializam, enrijecem e particularizam essas
mesmas relações. Assim, o que mais parece um jogo de confundir para esclarecer, trata-se do
acirramento das contradições de uma sociedade pautada na lógica de desenvolvimento das
forças produtivas para atender as necessidades do capital, de superlucros, produzindo e
aprofundando a segregação e as desigualdades sociais, regionais e territoriais. É por isso que a
flexibilização não significa menos rigidez na exploração e controle do trabalho 104 . A
universalização não corresponde a melhores condições de igualdade no acesso aos bens que
deveriam ser universais. A globalização não se desdobra no enfrentamento às fronteiras de
classe, etnia, raça, gênero, regionais e territoriais. A expansão e integração capitalista não
implica em um sistema mundial homogêneo, mas fundamentalmente heterogêneo.
O que, na verdade, tem ocorrido é um aumento exponencial do componente
internacional da divisão regional do trabalho junto a uma monopolização das técnicas e novas
tecnologias, geograficamente circunscritas, reforçando o que há de comum em todas as épocas:
“o novo não é difundido de maneira generalizada e total”. Nesse sentido, “os espaços assim
requalificados atendem sobretudo aos interesses dos atores hegemônicos da economia, da
104
“Na medida em que cada produção supõe necessidades específicas, o aprofundamento do capital, sua maior
densidade, sua mais alta composição orgânica, criam condições materiais sempre mais rígidas para o exercício do
trabalho vivo. Essa rigidez tanto se manifesta pela existência de novas técnicas convergentes, como pelas formas
de trabalho que esse meio técnico renovado acarreta. Fala-se muito em flexibilidade e flexibilização como aspectos
maiores da produção e do trabalho atuais, mas o que se dá, na verdade, é a ampliação da demanda de rigidez. Pode-
se, mesmo, dizer, sem risco de produzir um paradoxo, que a fluidez somente se alcança através da produção de
mais capital fixo, isto é, de mais rigidez. (SANTOS, 2006, p.169).
215
cultura e da política […]. A diferença […] vem da lógica global que acaba por se impor a todos
os territórios e a cada território como um todo. […] o meio geográfico tende a ser universal”.
(SANTOS, 2006, p. 160)
As necessidades de reconfiguração do tempo-espaço, sendo orientadas pelos
imperativos do capital, atuam no sentido de criar condições mais favoráveis para uma
acumulação em proporções cada vez maiores, diminuindo o tempo e o espaço necessário para
o processo direto da produção, “enquanto se alarga o espaço das outras instâncias da produção,
circulação, distribuição e consumo”.
Essa redução da área necessária à produção das mesmas quantidades havia sido
prevista por Marx, que a esse fenômeno chamou de "redução da arena". Graças aos
avanços da biotecnologia, da química, da organização, é possível produzir muito mais,
por unidade de tempo e de superfície. O processo de especialização, criando áreas
separadas onde a produção de certos produtos é mais vantajosa, aumenta a
necessidade de intercâmbio, que agora se vai dar em espaços mais vastos, fenômeno
a que o mesmo Marx intitulou "ampliação da área". Como se produzem, cada vez
mais, valores de troca, a especialização não tarda a ser seguida pela necessidade de
mais circulação. O papel desta, na transformação da produção e do espaço, torna-se
fundamental. Uma de suas consequências é, exatamente, o aprofundamento das
especializações produtivas, tendentes a convocar, outra vez, mais circulação. Esse
círculo vicioso - ou virtuoso? - depende da fluidez das redes e da flexibilidade dos
regulamentos. As possibilidades, técnicas e organizacionais, de transferir à distância
produtos e ordens, faz com que essas especializações produtivas sejam solidárias no
nível mundial. Alguns lugares tendem a tornar-se especializados, no campo como na
cidade, e essa especialização se deve mais às condições técnicas e sociais que aos
recursos naturais. […] Imaginando duas regiões com as mesmas virtualidades físicas,
aquela mais bem equipada cientificamente será capaz de oferecer uma melhor relação
entre investimento e produto, graças ao uso just-in-time dos recursos materiais e
humanos. Numa região desprovida de meios para conhecer, antecipadamente, os
movimentos da natureza, a mobilização dos mesmos recursos técnicos, científicos,
financeiros e organizacionais obterá uma resposta comparativamente mais medíocre.
[…] Uma nova dinâmica de diferenciação se instala no território. (SANTOS, 2006,
p.161-163).
mundial, que ao longo de sua história gera regiões e nações diferenciadas do ponto de vista da
capacidade de se apropriar de valor (o centro) e outras de ser despojadas de valor (a periferia)”.
(OSÓRIO, 2014, p.182-1833). A mundialização do capital reconfigura em patamares mais
complexos a dependência e, consequentemente, o grau de menor soberania das nações nesta
condição em relação a outras.
Nesse sentido, de acordo com Osório (2014), é fundamental tanto para os grandes
capitais do mundo central como para os setores dominantes dos Estados dependentes o
fortalecimento da capacidade política estatal, o que vai de encontro com a ideia de que a
financeirização do capital demanda necessariamente o enfraquecimento, ou mesmo
definhamento, dos Estados-nação.
[…] os grandes atores políticos dessa etapa da mundialização são, portanto, os Estados
neo-oligarquizados, e não um capital financeiro “desterritorializado” […]. A
mundialização reproduz assim a contradição que atravessa o capital entre o âmbito
econômico e o âmbito político. A expansão econômica do capital, que busca apagar
as fronteiras, se vê limitada no terreno político pela presença do Estado-nação, que
fixa fronteiras. Mas este é apenas um aspecto da contradição. Ao mesmo tempo, a
mundialização capitalista somente pôde alcançar os níveis atuais, e somente poderá
seguir avançando, ao estar apoiada no Estado-nação, que poderá se redefinir,
ampliando, por exemplo, os espaços “nacionais” a serem controlados, mas que
manterá os traços essenciais que o definem como tal e, com isso, manterá as disputas
entre Estados capitalistas (Ibid., p.196-200).
Eis os argumentos que fazem Santos (2006) conceber como um dos aspectos centrais na
“era da globalização” a transformação dos territórios nacionais em espaço nacional da
economia internacional. Em tais condições, equivocadamente, “a noção de territorialidade é
posta em xeque e não falta quem fale em desterritorialização [...] atribuindo-lhe alguns
significados extremos, como o da supressão do espaço pelo tempo [...] ou o da emergência do
que chamam ‘não-lugar’ [...]” (SANTOS, 2006, p.163). Em outras palavras, há uma forte
tendência discursiva que reforça a concepção de que estaríamos vivendo hoje um capitalismo
sem fronteiras onde não caberia mais a ideia de região, sendo esta ultrapassada. Tal concepção
é alvo de severa crítica por parte de Milton Santos, enquadrando-a na vertente pós-moderna.
Observemos as próprias palavras do autor:
Da mesma forma, como se diz, hoje, que o tempo apagou o espaço, também se afirma,
nas mesmas condições, que a expansão do capital hegemônico em todo o planeta teria
eliminado as diferenciações regionais e, até mesmo, proibido de prosseguir pensando
que a região existe. Quanto a nós, ao contrário, pensamos que: em primeiro lugar, o
tempo acelerado, acentuando a diferenciação dos eventos, aumenta a diferenciação
dos lugares; em segundo lugar, já que o espaço se torna mundial, o ecúmeno se
redefine, com a extensão a todo ele do fenômeno de região. As regiões são o suporte
e a condição de relações globais que de outra forma não se realizariam. Agora,
217
105
“Essa rentabilidade é maior ou menor, em virtude das condições locais de ordem técnica (equipamentos, infra-
estrutura, acessibilidade) e organizacional (leis locais, impostos, relações trabalhistas, tradição laborai). Essa
eficácia mercantil não é um dado absoluto do lugar, mas se refere a um determinado produto e não a um produto
qualquer. Seria uma outra forma de considerar a valorização do espaço, já analisada por A. C. Moraes & W. Costa
(1984).” (SANTOS, 2006, p.166).
218
As condições pós-1973 […] têm sido bem mais favoráveis a todo e qualquer país ou
complexo regional que deseje inserir-se no sistema capitalista global – o que explica
o rápido crescimento de territórios como Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul, bem
219
não apenas ao fim desse percurso, pois, tal como nos ensina o personagem de Grande Sertão
Veredas, muitas vezes atravessamos as coisas e no meio da travessia não vemos, só estávamos
“entretido[s] na ideias dos lugares de saída e de chegada” quando, na verdade, “o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. (ROSA,
[1956]1994, p.85). Enfrentemos, então, mais um passo nesta travessia.
106 Ver em Plano plurianual 2004-2007: mensagem presidencial. Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Brasília: MP, 2003.
222
Contudo, tal como nos atenta Brettas (2013, p.196), “o governo Lula, ao retomar a
política industrial, relegada pelo governo FHC, e reorientar a atuação estatal, deixa clara sua
preocupação em não apenas não romper com o capital, mas de fortalecê-lo. O faz, todavia, de
maneira diferente da que se definiu nos governos anteriores”. Assim, seria um grande equívoco
conceber os governos eleitos nos anos 2000 como mera continuidade da política neoliberal
inaugurada no país nos anos 1990. Isto, na avaliação de Boito Jr. (2012), se daria porque, ao
priorizar investimentos às empresas brasileiras, o governo acabou contrariando frações da
burguesia que mais ganharam com a política de FHC, ou seja, aquelas mais diretamente
afinadas com o imperialismo, priorizando os interesses da chamada “burguesia interna” no
bloco do poder.
Já para Sitcovsky (2010), as ações priorizadas pelos governos em questão,
particularmente aquelas que buscaram associar políticas de transferência de renda ao trabalho
precário, teriam encontrado maior oposição naquelas frações burguesas identificadas pelo autor
como “segmentos capitalistas atrasados ou periféricos”. Mara (2016) já aponta como principal
contradição gerada no seio do “pacto social” estabelecido nesse período a própria recomposição
da classe trabalhadora brasileira, o que permitiu, através das políticas de elevação dos níveis de
emprego e consumo, mudanças na composição da superpopulação relativa, um impacto do
aumento expressivo do número de greves, especialmente a partir de 2012, um consequente
descontentamento de setores da pequena burguesia brasileira e, posteriormente, da própria
burguesia dependente brasileira, fração que, segundo o autor, tinha sido mais beneficiada com
a política neodesenvolvimentista. Para alguns, como Castelo (2012, p.614), tratou-se, na
verdade, de uma nova fase do desenvolvimento capitalista inaugurada pelos governos do
Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como uma de suas principais marcas o retorno da
ideologia desenvolvimentista.
Diante de outros tantos pontos de vistas distintos e, na maioria das vezes, polêmicos
sobre o período priorizado na nossa pesquisa, desde os mais críticos aos mais otimistas, que
não teremos como contemplar na nossa pesquisa de tese, o fato é que a roda da economia
tomava um novo impulso com impactos regionais em meados dos anos 2000, tal como
caracteriza a passagem abaixo:
bilhões de reais. As forças motrizes de tais investimentos eram, como se pode prever,
as obras de infraestrutura previstas no Programa de Aceleração do Crescimento, o
crescimento das exportações, a ampliação do crédito ao consumo e a ampliação da
indústria pesada de bens de capital. (MARA, 2016, p.356).
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2010, p.18), houve uma
considerável retomada nos investimentos públicos especialmente a partir do ano de 2005,
totalizando cerca de R$ 300 bilhões até 2009, com destaque para a infraestrutura de petróleo e
gás, energia hidroelétrica e construção civil.
É claro que todo esse processo não pode ser compreendido sem a decisiva interferência
das relações internacionais sobre a política interna com algumas destacadas ações no âmbito do
fortalecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul), da inserção do Brasil na Comunidade
dos Estados Latinoamericanos (CELAC) e na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL),
além da participação direta do país junto a algumas nações da Ásia, Europa Oriental e África
em iniciativas econômicas e políticas que podem representar uma possibilidade de interferência
na geopolítica internacional.
Além de certa recuperação do emprego, redução da informalidade, recomposição do
salário-mínimo e elevação do Produto Interno Bruto (PIB) que, em 2002, correspondia a 6,9%
e, em 2009, subiu para o montante de 9,3% (IPEA, 2010, p.18), algumas iniciativas no âmbito
das políticas, com viés mais focalizado e compensatório, de transferência de renda às famílias
que se encontram em situação de extrema pobreza ganharam bastante notoriedade, ocasionando
desdobramentos, a exemplo do alargamento da capacidade de consumo de segmentos mais
subalternizados da sociedade, através da inclusão bancária e creditícia. Sobre isso, vale destacar
que o Programa Bolsa Família, “com cobertura nacional de 1,15 milhão de famílias em outubro
de 2003, atingiu 12,37 milhões em dezembro de 2009”. Segundo Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS), o programa chegou a abranger quase 14 milhões de famílias
224
ao final do segundo governo Dilma Roussef. Isto, vale lembrar, com intermédio dos bancos,
que passa a ser indispensável.
Para Pochmann (2013, p.151), “com a complementação de renda pelas transferências, o
Brasil registra 18,7 milhões de pessoas com até um quarto de salário-mínimo mensal”. Tais
circunstâncias, para o autor, fizeram com que o quadro geral da pobreza no país
tendencialmente apresentasse uma redução de 30% desde 2003. Esse processo foi
acompanhado por outras medidas no campo das políticas sociais, como a implementação da
Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do Sistema Único da Assistência Social
(SUAS), desde 2004.
Esse cenário, tal como caracterizado até então, aparentemente nos leva a reflexão que
certamente muitos já fizeram, seja para afirmar ou refutar, sobre a possibilidade desse contexto
ter representado uma reedição da política desenvolvimentista no Brasil do século XX. Chegar
a esta conclusão, afirmativa, a nosso ver, nos traz equívocos e não nos permite entender o real
processo em curso. Isso tendo em vista que esse quadro geral possui um conjunto de
características que permite identificar a continuidade da hegemonia neoliberal, especialmente
na realidade mais atual de estagnação de crescimento, aumento do desemprego, avanço de
pautas conservadoras e ajuste fiscal com cortes orçamentários nas políticas sociais.
Alguns críticos a essa associação entre o nacional-desenvolvimentismo e a política
implementada nos anos 2000, utilizam-se de argumentos como a existência de um processo de
desindustrialização, a reprimarização da economia e a dominância financeira expressa em uma
maior rentabilidade dos bancos em relação as empresas no referido período, mesmo diante do
crescimento econômico propalado. Tais aspectos, para Gonçalves (2012), revelam um
verdadeiro fosso entre a década passada e a política desenvolvimentista. Nesta mesma fileira,
encontra-se Maranhão (2009, p.356), que nos chama a atenção para o seguinte:
André Singer (2015, p.54) defende a hipótese de que, ao longo do período que
predominou o “lulismo”, foram estruturadas “duas coalizões contrapostas”: a “rentista” e a
“produtivista”. Para o autor, a primeira “unificaria o capital financeiro e a classe média
tradicional”, enquanto a segunda seria “composta dos empresários industriais associados à
225
fração organizada da classe trabalhadora”. E acrescenta uma breve caracterização acerca dessas
coalizões:
Já para Boito Jr (2012), de fato, a última década é caracterizada por um contexto em que
a correlação de forças políticas favoreceu a formação de uma “frente neodesenvolvimentista”
107
, gelatinosa e heterodoxa, que viabilizou governos de composição de classes em torno de um
projeto de desenvolvimento possível sob a hegemonia neoliberal, ou seja, que não rompeu com
o neoliberalismo, apesar de se diferenciar do projeto vigente nos anos 1990, não sendo
simplesmente sua mera continuidade. Nesta perspectiva, tomando como base as análises de
Alves (2013, s/p), podemos entender que, embora “o projeto burguês do
neodesenvolvimentismo” tenha nascido “no bojo da crise do neoliberalismo [...], ele não
107
“A frente política neodesenvolvimentista começou a se formar no decorrer da década de 1990. Na década
anterior, elementos de ordem econômica e política tornavam os principais instrumentos de luta política e social
recém criados pelas classes trabalhadoras – o PT, a CUT e o Movimentos dos Sem Terra (MST) – infensos a
qualquer aproximação política com o grande empresariado. [...] No início da década de 1990, contudo, a situação
mudou. A parte mais significativa da burguesia unificou-se em torno do programa neoliberal, o desemprego
aumentou muito e o movimento sindical e popular, com exceção do MST (COLETTI, 2002), entrou em refluxo
(BOITO, 1999). Na segunda metade da década de 1990, começaram a surgir sinais de mudança. Um setor da
grande burguesia interna, que também havia apoiado, ainda que de modo seletivo, o programa neoliberal foi
acumulando contradições com esse mesmo programa. Foi nesse quadro marcado, de um lado, por dificuldades
crescentes para o movimento sindical e popular e, de outro lado, pelo fato de um setor da burguesia começar a
rever suas posições frente a algumas das chamadas reformas orientadas para o mercado que se criaram as condições
para a construção de uma frente política que abarcasse setores das classes dominantes e das classes dominadas.
Essa frente, organizada, fundamentalmente, pelo PT chegou ao poder governamental em 2003 [...]. Não se tratava,
agora, de uma frente que se pudesse denominar populista e, ademais, tampouco o seu programa poderia ser
identificado com o programa do velho desenvolvimentismo. [...] Por que recorrer ao termo “desenvolvimentista”?
De maneira tentativa e inicial, diríamos que é porque esse é um programa de política econômica e social que busca
o crescimento econômico do capitalismo brasileiro com alguma transferência de renda, embora o faça sem romper
com os limites dados pelo modelo econômico neoliberal ainda vigente no país. Para buscar o crescimento
econômico, os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff lançaram mão de alguns elementos importantes de política
econômica e social que estavam ausentes nas gestões de Fernando Henrique Cardoso. Sem a pretensão de sermos
exaustivos, enumeraríamos a título inicial alguns elementos que têm sido destacados por parte da bibliografia: a)
políticas de recuperação do salário mínimo e de transferência de renda que aumentaram o poder aquisitivo das
camadas mais pobres, isto é, daqueles que apresentam maior propensão ao consumo; b) forte elevação da dotação
orçamentária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) para financiamento das grandes
empresas nacionais a uma taxa de juro favorecida ou subsidiada; c) política externa de apoio às grandes empresas
brasileiras ou instaladas no Brasil para exportação de mercadorias e de capitais (DALLA COSTA, 2012); d)
política econômica anticíclica – medidas para manter a demanda agregada nos momentos de crise econômica e e)
incremento do investimento estatal em infraestrutura. [...] E por que empregar o prefixo “neo”? Porque as
diferenças com o velho desenvolvimentismo do período 1930-1980 são significativas. O neodesenvolvimentismo
é o desenvolvimentismo da época do capitalismo neoliberal.” (BOITO JR., 2012, s/p).
226
poderia ser mera continuidade do projeto I (projeto neoliberal), oriundo da década de 1990, sob
pena de ir à ruína”.
Sob o semblante da afirmação periférica do “reformismo impotente”, o que houve,
segundo Arcary (2014), foi a construção das bases para um novo patamar de acumulação do
capital nas condições dadas pela crise estrutural, demandando com maior veemência a função
reguladora do Estado, investidor e financiador, “capaz de financiar e constituir grandes
corporações de capital privado nacional com a capacidade competitiva no mercado mundial”.
Daí a ênfase no papel do fundo público via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) e fundos de pensões de estatais, viabilizando grandes obras especialmente
através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). E foi exatamente pela via da
política de incentivos implementada pelos bancos, principalmente por meio do BNDES, mas
também da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, a exemplo do crédito imobiliário, que a
taxa média de crescimento foi de 4,2% do PIB, no período de 2004 a 2011. (BRETTAS, 2013).
Essa realidade tornou-se subsídio para a análise disposta abaixo sobre o processo de
financeirização no Brasil, reconfiguração e reforço do papel do Estado no desenvolvimento
capitalista durante esse período. Este, enquanto “sócio-proprietário de empreendimentos
privados”, nos demonstra, por um lado, o quanto está cada vez mais comprometido e regido
pela lógica da iniciativa privada e, por outro, a gravidade das dificuldades existentes em nosso
tempo histórico em defender os “interesses públicos” e o caráter universalizante das políticas
sociais, inseridas em um caminho de mercantilização próprio do circuito ditado pelo capital
portador de juros. Esse fato, em si, já demonstra uma “novidade” considerável em relação ao
período nacional-desenvolvimentista, determinando alterações substantivas na capacidade
gerencial do Estado108. Voltamos ao que nos diz a referida análise:
108
“Naquele tempo, o Estado geria a ‘coisa pública’ e, embora do ponto de vista mais geral, estivesse atuando na
defesa dos interesses capitalistas, suas atitudes não raras vezes contrariaram as demandas de capitalistas, vistos de
forma individual. Foi o caso, por exemplo, da criação da Petrobras que, a princípio, irritou muitos capitalistas que
criticaram o alto investimento público para a criação desta empresa, argumentando que seria muito mais barato
comprar barris de petróleo no mercado externo. Esta decisão viabilizou o fornecimento de insumos básicos a preços
subsidiados, além de um investimento em tecnologia de ponta que permitiu, posteriormente, a exploração em alto-
mar. A criação desta empresa foi um dos pontos altos de enfrentamento aos interesses imperialistas do período
nacional-desenvolvimentista, com fortes impactos sobre a produção nacional”. (BRETTAS, 2013, p.192-193).
227
proporções significativas. [...] O salto para a formação do capital financeiro não foi
diferente e a atuação de instituições do governo ou que possuem forte relação com o
governo, como os fundos de pensão, tiveram um papel fundamental. (BRETTAS,
2013, p.297-298).
como a prioridade dada ao pagamento dos juros da dívida com a permanência da política de
superávit primário, drenando recursos para financiar a acumulação capitalista, e a redução do
gasto social, com a manutenção da Lei de Responsabilidade Fiscal que cada vez mais onera a
classe trabalhadora. Esta torna-se muito mais severa com a aprovação do Novo Regime Fiscal
em 2016.
Tudo isso, segundo Pinto (2010), demonstra que, na verdade, o que houve foi, em termos
estruturais, certa continuidade da política industrial, fortalecida via BNDES e endividamento
do Estado, promovendo “um avanço de segmentos industriais intensivos em recursos naturais
e produtores de commodities, intensivo em capital, que tiveram como contrapartida a redução
absoluta e relativa de outros segmentos industriais” (PINTO, 2010, p. 165).
Brettas (2013) ainda atenta outra contradição central que torna ainda mais explícita os
setores que, de fato, mais ganharam nesse processo com formas cada vez mais sofisticadas de
apropriação do trabalho, não apenas excedente, mas necessário: os recursos utilizados para
viabilizar a acumulação capitalista, a concentração e centralização do capital, que deveriam ser
destinados ao trabalhador, a exemplo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Diante dessas constatações, é possível entender com mais propriedade os motivos que
viabilizaram a constituição de um pacto social neodesenvolvimentista na última década,
conformado por entidades representativas das diferentes frações de classes, a exemplo da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Esta começou a apresentar maior
descontentamento diante de medidas demandadas pelo capital, inviabilizadas pela própria
natureza desse pacto, que certamente não teria como respondê-las sem que isso não demandasse
maiores fissuras no projeto de desenvolvimento em curso naquele período. Um exemplo disso
foi a reforma trabalhista aprovada após o Golpe de 2016. Desse modo, medidas como a redução
ou isenção de impostos, em especial o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para uma
série de produtos, dentre outras ações, combinadas a políticas de redução do desemprego e
valorização do salário mínimo com impacto inclusive no Regime Geral de Previdência Social
(RGPS) e em benefícios como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), não apenas seriam
insuficientes para dar sustentação as exigências contemporâneas do capital, mas estariam na
contramão de tais requisitos.
Por isso, Carvalho (2018) aponta, dentre os erros das gestões dos governos do PT nesse
período, a ausência de ações que, de fato, pudessem ter promovido mudanças estruturais,
atrelando o crescimento econômico com o desenvolvimento social, a exemplo da diversificação
e sofisticação da estrutura produtiva, de forma a alterar a dependência ao “ciclo de
commodities”; do não “tocar nas rendas do topo” através de uma reforma tributária progressista
229
com tributação de lucros e dividendos, herança e patrimônio da mesma forma que a renda; da
ausência de grandes mudanças na política econômica como a taxa de juros elevada como
mecanismo de controle inflacionário, mantendo o real valorizado; da aposta em uma política de
incentivos ao setor industrial privado pautada a partir da “Agenda Fiesp” sob a ideologia
desenvolvimentista de que o desenvolvimento industrial a todo custo supostamente beneficiaria
a todos. Assim, segundo a autora, foi dado um “passo atrás” em relação a algumas medidas
progressistas desenvolvidas durante o Governo Lula e esse passo se tornou maior ainda a partir
de 2015, quando, para ela, realmente iniciou um processo de verdadeira reversão de todos
aqueles aspectos entendidos como ganhos nos anos 2000 do ponto de vista da classe
trabalhadora. Tal reversão é resultado de uma série de circunstâncias que anteciparam o ano de
2015, sintetizadas por Singer (2015, p.40-52) da seguinte forma:
Nesse sentido, a afirmação que reconhece o aumento das condições de vida e trabalho
na última década, o que fez com que cerca de 87% dos reajustes salariais109 analisados pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (DIEESE) em 2011
109
“Na indústria, 90% das negociações registraram aumentos reais na data-base. Destacam-se os segmentos da
construção e mobiliário, indústria extrativa e indústria do papel, papelão e cortiça, que registraram aumentos reais
em todas as negociações neste ano. As atividades na indústria da alimentação, metalúrgica e gráfica apresentaram
percentuais de negociação com aumentos reais acima da média do setor. Os serviços obtiveram o menor índice,
cerca de 76%” (DIEESE, 2012 apud BRETTAS, 2013, p.276).
230
Ou seja, trata-se de um padrão de crescimento que requer uma força de trabalho com
rebaixamento do custo da sua reprodução, repercutindo não necessariamente em diminuição
salarial, sua elevação pode até ocorrer, contanto que não haja, concomitante a isto, uma
considerável melhoria e ampliação dos serviços públicos (saúde, educação, saneamento,
transporte, etc), o aumento da escolaridade e de remunerações acima do piso salarial. Isso
levando em consideração que, quando há o acesso a serviços públicos de qualidade, há um custo
maior para o capitalista e/ou para o Estado com a reprodução da força de trabalho, gerando uma
espécie de renda ou salário indireto. Para que isso não ocorra, unindo o útil ao agradável,
expande-se o capital para outros “nichos” e mercantiliza-se os serviços, obrigando os
trabalhadores a arcarem ainda mais os custos da sua própria reprodução, endividando-os111,
110
De acordo com Brettas (2012, p.277), Boito Jr. e Marcelino (2010) “afirmam que, embora o número de greves
seja menor do que o verificado em média nos anos 1990, existe um percentual maior de greves ofensivas, ou seja,
aquelas voltadas para novas conquistas, como aumento real de salário. Em outras palavras, o que marcou o
movimento grevista na última década do século passado, foram iniciativas voltadas para resistir às mudanças
impostas e defender direitos conquistados. Nos anos 2000 ao contrário, uma análise das greves entre 2004 e 2008
permite afirmar que “as reivindicações ofensivas estiveram presentes na grande maioria das greves – em
porcentagem, 65% ou mais do total de greves de cada ano” (BOITO Jr.; MARCELINO, 2010, p. 331). Além disso,
em todos estes anos, a maior parte das greves tiveram suas reivindicações total ou parcialmente atendidas.”. Desse
modo, para Eduardo Mara (2016, p.28), “desde o aumento do número de greves, muitas delas ocorridas no coração
das políticas de desenvolvimento (como a greve dos trabalhadores nas usinas de Jirau e Santo Antônio no estado
de Rondônia), até a eclosão de massivas manifestações nas ruas das principais capitais brasileiras em junho em
2013”, demonstraram que a “política de conciliação entre as classes no seio do aparelho estatal burguês não era
capaz de conter as contradições que o desenvolvimento capitalista dependente novamente trazia à tona”.
111
“Segundo uma matéria da Agência Brasil, em 2005, quando o Banco Central começou a registrar os dados deste
tipo de endividamento, ele representava 15,29% da renda das famílias, sem contar o crédito imobiliário. Em abril
de 2013, a dívida total das famílias (incluindo o crédito imobiliário) equivalia a 44,46% da renda acumulada nos
últimos 12 meses, maior do que em junho de 2009, quando representava 34,8%226. Ainda de acordo com a
Agência Brasil, com a retirada da dívida imobiliária, o percentual em abril de 2013 é de 30,47%. Embora o
231
endividamento das famílias esteja aumentando, boa parte dele vem sendo puxada pelo financiamento da casa
própria e uma outra pela compra de eletrodomésticos e automóveis”. (BRETTAS, 2013, p.302).
232
acima, destoando do final dos anos 1990 em que este número era de aproximadamente 23%. A
constatação, portanto, torna-se mais ainda evidente:
Os dados contribuem para mostrar que ainda estamos longe de possuir uma
configuração do mercado de trabalho que aponte para alterações substantivas no
padrão de uma economia dependente e desigual. Os traços de nossas heranças do
passado seguem fortes e apresentam limites ao estabelecimento de relações de
trabalho menos desiguais e que garantam o acesso aos direitos trabalhistas e
previdenciários à maior parte da população. (BRETTAS, 2013, p.277)
Esse processo também foi acompanhado pelo congelamento salarial de setores médios
da classe trabalhadora, a exemplo do funcionalismo público, além do escasso investimento em
políticas mais estruturantes, imprimindo um teor neoliberalizante as ações, como a criação da
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), da implantação previdência
complementar através da Fundação da Previdência Complementar do Serviço Público Federal
(FUNPRESP), da concessão privada de aeroportos e portos e das demais ações do pacote de
ajuste fiscal proposto logo após as eleições de 2014, já indicando o esgotamento tanto das
medidas de crescimento econômico, possíveis na década anterior, como da própria “frente
neodesenvolvimentista”.
Enquanto isso, combinada a essas ações, ainda no âmbito da reprodução da força de
trabalho e do enfrentamento as expressões da questão social, diante da impossibilidade de
universalizar as políticas públicas e de ampliar postos de trabalho estáveis, os programas de
transferência de renda tornam-se meio, por excelência, para ampliar a função do Estado,
conjugado à permanência do trabalho precário, redefinindo e reconciliando a assistência social
e o trabalho. Desse modo, nas palavras de Sitcovsky (2012, p.245):
Há, portanto, uma inflexão no padrão de enfrentamento a questão social e, para isso, a
política de assistência social, em particular o Programa Bolsa Família (PBF), teve papel
importante. Isto diante da tendência a mercantilização dos direitos, tal como já apontamos,
sendo a Seguridade Social posta em xeque, especialmente no que tange o princípio da
universalização. A descaracterização desta política, mediante o avanço da previdência e dos
233
muitos propalam, não perdeu sua centralidade: os interesses antagônicos das classes sociais nas
suas múltiplas condições de existência que atravessam hoje o Estado brasileiro.
Algumas análises também têm dado ênfase à incidência desse programa nas condições
de vida das classes subalternizadas e na própria dinamização da economia de municípios
menores, oportunizando, em especial, a compra de alimentos e o acesso a bens duráveis. De
fato, isso ocorreu. Porém, Sitcovsky (2010) destaca a pouca importância dada, nas análises, ao
próprio BPC que, para ele, devido aos valores repassados, permitiu uma maior mudança na
renda per capita das famílias em relação ao PBF, pois aquele benefício chegou a duplicar a
renda da família. Ambos, contudo, sendo atravessados pelos conflitos de classes e seus
interesses antagônicos, não correspondendo apenas às necessidades de reprodução do capital,
mas também do trabalho, vêm passando por redução drástica de recursos e ameaças, o que
representa o peso diferenciado dessas iniciativas em um país de capitalismo dependente como
o Brasil. Isto tendo em vista que acabam influenciando nas relações históricas de prestígio e
poder históricas, intermediadas pela submissão e pelo favor. Diante disso, atentamos para o que
Mota (2012, p.37) chama a atenção:
Assim, nos afinamos com a análise de Mara (2016, p.27) ao caracterizar o chamado
neodesenvolvimentismo como “um projeto cuja intenção distancia-se em muito de qualquer
intenção de ruptura com o projeto neoliberal. Tratou-se de uma reforma deste projeto, reforma
relacionada aos interesses de frações da grande burguesia dependente brasileira”. Contudo, isso
não ocorreu como uma mera perpetuação da política neoliberal dos anos 90. Se assim fosse,
estaríamos negando os próprios fatos. Estes, mesmo não sendo a realidade, são parte dela. Por
isso, Singer (2015, p.64-67) também reconhece que “o ensaio desenvolvimentista efetivamente
representou mudanças importantes e foi, por sua vez, combatido por adversários poderosos em
campanha intensa”. Isto muito embora depois, especialmente a partir de 2013, tenha sido
contido pelo aumento dos juros, a crescente atratividade do bloco rentista e a perda progressiva
de apoio dos industriais - que no início reivindicava o programa reindistrializante -, passando à
defensiva e abrindo “um vácuo sob os próprios pés” que se agravou, nas palavras do autor,
“quando a reação burguesa unificada em favor do retorno neoliberal tornou-se incontrastável.
Até por não haver, na sociedade, quem enxergasse a necessidade de contrastá-la”.
235
[…] cabe lembrar que sempre que há um avanço político de forças populares [...] as
classes dominantes, mesmo débeis, juntam as suas forças para garantir e fortalecer o
Estado burguês. Em todas as ocasiões de grande ascenso político popular, quando o
Estado esteve ameaçado, as classes e frações de classes agrárias, comerciais, bancárias
e industriais, nacionais e estrangeiras, buscaram criar ou refazer os blocos de poder,
de modo a garantir e fortalecer o aparelho estatal.
Sobre isso, observamos, por um lado, a ascensão de setores mais conservadores, muitos
advindos de segmentos médios tradicionais, com a intenção de canalizar a insatisfação popular
para um caminho que intensifique o estigma, a criminalização e a desqualificação dos setores
de esquerda e das diversas organizações políticas dos trabalhadores no país, atribuindo a estas
- representadas no senso comum pelo PT - a responsabilidade de ameaçar a democracia no país.
236
Essas condições, garantidas também pelo monopólio dos meios de comunicação no país,
contribuem, decisivamente, para a descrença e desmobilização das forças políticas que podem
ampliar o poder de influência e de conquistas da classe trabalhadora, (re)pondo temas centrais
na opinião pública, corriqueiramente presentes no parlamento, tais como: restrição ainda maior
de direitos sociais, a exemplo da previdência social, e retirada de direitos trabalhistas com o
incentivo às terceirizações ; redução da maioridade penal; rejeição à descriminalização do
aborto; contestação à legalização das drogas; questionamento do casamento homoafetivo;
intensificação do estigma ao pobre e aos programas sociais via crítica conservadora;
manifestações pró-ditadura militar, de caráter xenofóbico e racista, inclusive contra a população
nordestina, que, em certa medida, expressam o quanto ainda é presente a “ideologia do
colonialismo” (SODRÉ, 1984).
Por outro lado, intensificou-se a presença de mecanismos de controle e criminalização,
conformando o que alguns analistas chamam de “militarização da sociedade”, com o “avanço
do Estado penal” (WACQUANT, 2013) e das políticas punitivas que, vale lembrar, possuem
teor secular e são aspectos permanentes da construção e manutenção de hegemonia,
especialmente em realidades com frágeis instituições democráticas. Basta lembrar o genocídio
indígena, a escravidão, as ditaduras, a violência no campo, o encarceramento em massa, o
extermínio de jovens negros e pobres, entre outros, como medidas de enfrentamento à questão
social.
Essa conjuntura reforça e renova, de forma mais complexa, uma característica presente
em toda a história da formação brasileira: a restrição de direitos e a debilidade democrática,
demonstrando que as mudanças transcorridas até hoje possuem muito mais elementos de
restauração (GRAMSCI, 2006) que de rupturas, sendo uma ou outra ampliada ou retraída a
partir das contradições presentes no desenvolvimento capitalista e da ação das classes sob tais
contradições.
Por fim, nos remetemos as palavras de Alves (2013, s/p) que considera coerente
conceber que:
As reformas estruturais continuaram sem avanço, tais como a reforma agrária, urbana,
tributária e política, o que demonstrou, para Stédile (2014), os limites do projeto de
desenvolvimento que esteve em curso no Brasil dos anos 2000, da sua (in)capacidade de dar
resposta às necessidades sociais. A possibilidade de romper o cerco posto às classes
trabalhadoras certamente dependerá, dentre outros fatores, do nível de organização, unidade
nas bandeiras políticas e reivindicações econômicas, além da capacidade de pressão social que
estabeleça uma nova correlação de forças.
Estamos falando de um país que ainda possui uma população de 13,3 milhões de
analfabetos; um terço dos jovens de 18 a 24 anos sem concluir o ensino médio; e apenas 19%
da juventude tendo acesso ao ensino superior. Esse cenário torna-se mais alarmante em
determinadas regiões, ainda mais quando associado ao número de pessoas na condição de
ocupações análogas ao trabalho escravo: “dos 1.550 trabalhadores resgatados de condições
análogas a de escravo em 2014, 39,3% não tinham concluído o 5º ano do ensino fundamental,
32,8% eram analfabetos e 14,6% tinham do 6º ao 9º ano escolar incompletos”. Já o déficit
habitacional correspondia em 2012 a 8,53% da população, o que representa 5,24 milhões de
residências, adensando a violência e o conflito pelo acesso à terra que vem produzindo um alto
número de assassinatos (36 no ano de 2014) e tentativas de assassinatos (56 no ano de 2014)
(MEDEIROS, 2014, p.26).
Enquanto isso, a crônica cotidiana composta por diversas trajetórias de vida e trabalho
daqueles/as que sofrem violentamente os efeitos da questão regional permanece presente,
embora de forma reconfigurada, como marca intransponível nos limites do desenvolvimento
capitalista no Brasil e no mundo. Afinal, os meios para suprimir as barreiras espaciais e as
distinções regionais, que limitam o padrão de acumulação em curso, envolvem a produção de
“novas diferenciações geográficas que criam novas barreiras espaciais a serem superadas. A
organização geográfica do capitalismo internaliza as contradições dentro da forma de valor. É
239
É certo que o Nordeste brasileiro de hoje não cabe mais nas concepções
homogeneizantes, por um lado, (re)construtoras da paisagem pitoresca do litoral turístico e da
caricatura árida do sertanejo miserável e analfabeto; por outro, renovadoras de um regionalismo
que reforça ora a natureza folclórica, ora a concepção de “região problema”. Sobre isso,
vejamos o que nos apresenta o trecho abaixo:
Nos últimos trinta anos houve uma forte alteração da realidade nordestina que deu
240
R$ 5,3 bilhões.”. (BNDES, 2014, p.37). O gráfico abaixo apresenta um maior detalhamento dos
valores destinados à região pelo referido banco no período de 2007 a 2013.
112
“O Programa Minha Casa, Minha vida, voltado para a habitação, foi criado em 2009, também como forma de
enfrentar a crise, mas com caráter prolongado. Com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e do
Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), o programa é voltado para reduzir o déficit habitacional brasileiro e
tinha como público alvo famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Em alteração realizada em 2011,
o público alvo passou a ser famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (BRASIL, 2011)”. (BRETTAS, 2013,
p.286).
243
no histórico movimento de migração entre as regiões. Em vez da corrida para o Sudeste que
marcou as décadas de 1960 a 1980, a tendência era de deslocamentos entre municípios de um
mesmo estado e queda acentuada nas migrações entre regiões, tendo como principais fatores
para a diminuição no número de migrantes a saturação das metrópoles e a melhor distribuição
da oferta de emprego.
Aqui nos permitimos fazer um parêntese no intuito de relembrar o papel dessa dinâmica
migratória no desenvolvimento capitalista, particularmente em realidades onde tal percurso
deu-se de forma heterodoxa e até mais agravante como aquela em que Lênin ([1899]1982,
p.153-154) viveu e pôde nos oferecer a seguinte análise relativa ao contexto da época:
saturação das grandes metrópoles concentradoras de renda e riqueza no país? Segundo o próprio
Lênin (1982, p.153), “seria um erro considerar que esse êxodo se reduz ao abandono de regiões
com alta densidade populacional, trocadas por outras, com menor densidade”. Este erro não
seria ainda maior ao situarmos esse fenômeno na atual fase de desenvolvimento capitalista que
apresenta como tendência o adensamento do movimento de concentração e centralização do
capital e, por conseguinte, a propensão a uma distribuição não equitativa, desigual, da
população territorialmente?
Mesmo certos de que há um conjunto de diferenciações temporais, qualitativas e
quantitativas, expresso desde formas reconfiguradas de exploração e expropriação até o
redesenho da dimensão regional que tais formas passam a ter, o fenômeno mais recente das
mudanças no fluxo migratório inter-regional aponta alterações, em relação aos anos anteriores,
não apenas na relação entre indústria e agricultura como também na composição e configuração
da classe trabalhadora e da superpopulação relativa no Brasil a partir da região Nordeste. Isto
tendo em vista que as tendências no mercado de trabalho na última década demonstraram que
ocorreu o crescimento da população ocupada e dos empregos considerados formais, resultando
em uma tarifa negativa do conjunto de desocupados, que passou de 3,1 milhões de pessoas, em
2000, para 2,3 milhões, em 2010, tal como podemos observar na tabela abaixo. (BNDES, 2014).
ano do censo demográfico, o total dos ocupados, constata-se que 36,6% estão na
condição de empregados que tinham carteira assinada, 27,4% não a tinham, 22,9%
estavam constituídos de conta própria e 9,4% de trabalhadores voltados para a
produção do próprio consumo. (BNDES, 2014, p.431-434)
Esse quadro possui algumas características diferenciadas quando levamos para o centro
da análise a realidade rural, mais precisamente do setor agropecuário. O aumento da
formalização no agronegócio, por exemplo, caminhou junto a permanência de formas de
trabalho degradantes. Isto além da condição necessariamente descontínua e sazonal dessa
formalização que não garante, de fato, condições demandadas pelas necessidades da reprodução
social do trabalhador do campo, incidindo sob a reconfiguração da questão agrária e urbana no
interior do território brasileiro. Assim, conforme as pesquisas desenvolvidas e publicadas no
documento “Um olhar territorial para o desenvolvimento: Nordeste” (BNDES, 2014, p.435), o
que se constatou nesse setor foi que dos 5 milhões de pessoas ocupadas, somente 338 mil tinham
carteira assinada. “A grande proporção de pessoas ocupadas, no setor agropecuário, que
poderiam ser classificadas como informais compreende os que trabalham para o próprio
consumo, quase 40% do total (exatamente 38,9%); seguem, nesse setor, os que trabalham por
conta própria (28,3%) e, finalmente, os empregados sem carteira assinada (21,5%)”.
Vale lembrar que a região Nordeste, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE,
concentrava mais de 47% da população rural do Brasil. Por conseguinte, também é a que mais
concentra os assalariados rurais com 4,8% (1,41 milhão), seguida do Sudeste com 34,4% (1,4
milhão). Conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE, 2014, p.13), “também é possível observar elevadas taxas de empregados sem carteira
em relação ao total de empregados, o que, grosso modo, pode ser chamado de taxa de
informalidade (ou taxa de ilegalidade). O Norte e o Nordeste apresentam as maiores taxas
(77,1% nas duas regiões).
Para Bezerra (2012), ocorreu, sem dúvidas, uma maior inserção de trabalhadores no
mercado formal pelo agronegócio na última década. E isso significou, em certa medida, maior
cobertura social do Estado com a garantia de direitos trabalhistas, por exemplo, e, de imediato,
uma melhoria de vida, o que não isentou os trabalhadores da experiência de precarização. Sobre
isso, segundo o autor, no âmbito da expansão da fruticultura no Nordeste é recorrente o
descumprimento permanente das normativas trabalhistas, agravando a vulnerabilidade que
acomete os trabalhadores, especialmente sazonais. Diante desse cenário, como resultado, temos
a reprodução de fenômenos como a constituição das periferias no entorno das cidades menores
em decorrência da ausência de condições de trabalho e de vida no campo, inclusive da completa
estagnação da reforma agrária. Até programas que não tem representado avanços substantivos,
246
Aqui destacamos outra importante variável que incidiu sobre tais alterações: o nível de
instrução exigido por essa “nova” força de trabalho. Sobre isso, segundo as mesmas pesquisas,
“as pessoas ocupadas que, em 2001-2002, não tinham instrução ou com menos de um ano de
estudo representavam 23,9%, no Nordeste, e passaram, em 2009-2011, para 17,6%. Os
percentuais eram, no Brasil 11,6% e 9,2%, respectivamente”. Sobre o percentual da população
ocupada por nível de instrução no ano de 2010, vejamos o quadro abaixo:
Os números demonstram que, mesmo diante de uma redução do índice de pessoas sem
instrução e acesso a estudos, ainda permanece baixo o nível de trabalhadores escolarizados e
qualificados, especialmente diante das novas demandas e exigências advindas das
transformações nas relações de trabalho. Isto, especialmente no caso do Nordeste, em que “as
informações do último censo, relacionadas com a condição de saber ler e escrever das pessoas
ocupadas, em 2010,” mostraram que “três milhões de pessoas, representando 14,3% do total
dos ocupados, não sabiam ler nem escrever”. (BNDES, 2014, p.438).
Os dados apontam, então, que a análise sobre a elevação da formalidade e da
informalidade nas relações de trabalho no Nordeste, tendo esta alcançado em 2010 quase 60%
da força de trabalho ocupada, mesmo após um avanço significativo da formalização nos anos
2000 (2000-2010), deve levar em consideração outros condicionantes, tais como o nível de
instrução, os rendimentos e a própria elevação real do salário mínimo. (BNDES, 2014, p.446).
Esta, conforme Araújo (2013, p.162-164), também teve impacto mais forte na realidade
nordestina, “onde 45% dos ocupados receberam até 1 salário-mínimo – bem acima da média
nacional que era de 26% […] entre 2003 e 2009 o valor do rendimento médio das famílias” da
referida região “cresceu 5,4% ao ano, quando a média brasileira foi de 3,5%, e no Sudeste essa
taxa foi de apenas 2,9%”. Todavia, o ganho médio dos trabalhadores no Nordeste, apesar de ter
dobrado na última década, ainda está longe da média do Sudeste. Observemos o demonstrativo
na tabela abaixo:
Podemos observar que, apesar do Nordeste ter apresentado a maior taxa de crescimento
médio anual entre 2000 e 2010, continua sendo a região com menor rendimento médio das
famílias. Em relação ao total dos rendimentos, conforme BNDES (2014, p.440), “a participação
nordestina passou, nos rendimentos do trabalho no Brasil, de 15,2%, em 2000, para 17%, em
2010”.
Essas condições, somadas a outros aspectos que marcaram a primeira década do século
XXI, viabilizaram, de acordo com o economista Márcio Pochmann (2014, s/p), o
248
“protagonismo de regiões que eram vistas como atrasadas como é o caso das regiões Nordeste,
Norte e Centro-Oeste, que são regiões que absorveram indústrias pela força do movimento de
deslocamento de indústrias”, impulsionando a constituição de uma estrutura produtiva antes
inexistente ou, pelo menos, bem diferente do que havia originalmente. Mas, de fato, ocorreu
um maior dinamismo da estrutura produtiva no Nordeste suficiente para alterar os pilares da
questão regional edificada durante o século XX no Brasil? Tivemos uma desconcentração
industrial ou o que houve foi apenas a necessidade de expansão do capital em regiões com
menor produtividade e maior peso do atraso a fim de dar prosseguimento ao movimento de
concentração e centralização do capital, não alterando seu centro dinâmico regional, reforçando,
assim, o papel histórico das regiões na divisão social do trabalho?
De início, é possível constatar, de acordo com a publicação “Desenvolvimento Regional
no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas” (IPEA, 2017, p.44), que o total de recursos
destinados à demanda de investimento no Nordeste passou de R$ 73,5 bilhões para R$ 168,5
bilhões, em 2012, contribuindo para a expansão de empreendimentos produtivos. Já na região
Norte, os valores passaram de R$ 31,5 bilhões para R$ 79,7 bilhões e, no Centro-Oeste, de R$
17,3 bilhões para R$ 40,9 bilhões.
Das 188 microrregiões delimitadas pelo IBGE na Região Nordeste, 152 (80,5%)
apresentavam participação da agropecuária acima da média nacional em 2010,
enquanto 154 (81,9%) tinham participação da indústria abaixo da média – a título de
comparação, na Região Sudeste esses índices são respectivamente 65,6% e 55,0%, o
113
Segundo o Ministério da Integração Nacional, “o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE)
foi criado pelo artigo 159, inciso I, alínea ‘c’ da Constituição da República Federativa do Brasil, e regulamentado
pela Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989. O FNE, juntamente com os outros Fundos Constitucionais, pode ser
considerado como um dos principais instrumentos de financiamento da Política Nacional de Desenvolvimento
Regional (PNDR) visando, sobretudo, a contribuir para o desenvolvimento econômico e social do Nordeste, por
meio de instituição financeira federal de caráter regional, mediante a execução de programas de financiamento aos
setores produtivos, em consonância com os respectivos planos regionais de desenvolvimento.”. Disponível em:
http://www.mi.gov.br/apresentacao-fne. Acesso em: 16.07.2018.
249
que indica a existência de amplas áreas na Região Nordeste com espaço para
estratégias de apoio à industrialização. (BNDES, 2014, p.219)
É possível constatar que o comparativo entre as taxas anuais de crescimento do PIB total
entre as décadas de 1990 e 2000 demonstra a substantiva participação da região Nordeste na
economia nacional. Segundo Araújo (2013, p.162-164), no período de 2003 a 2010, a taxa de
crescimento da economia da região teria sido de 4,9%, ou seja, mais elevada que a média
nacional que foi de 4,4%. No mesmo período, houve também uma liderança do Nordeste, junto
à região Norte, no crescimento do consumo.
A elevação do PIB que, segundo Grabois (2014, s/p), quadruplicou de 2003 para 2013,
com o destaque para algumas regiões como o Nordeste; o incentivo dado à descentralização
territorial na implantação de polos industriais, a exemplo da indústria naval, “renascida na
esteira do petróleo”, concentrada no Rio de Janeiro, mas que teve presença significativa em
estados como Ceará, Pernambuco, Alagoas e Bahia; o crescimento do número de trabalhadores
da indústria, passando de 4 milhões e 800 mil, em 2003, para quase 13 milhões, em 2013, na
indústria de transformação e de 2 milhões para 6 de milhões na construção civil no mesmo
período; são aspectos que influenciaram na base de sustentação do projeto de desenvolvimento
em curso até 2014. O autor ainda destaca que “a incorporação de trabalhadores e de regiões ao
movimento do capital produziu mudanças perceptíveis, mas que ainda não foram absorvidas
pelas classes em luta”.
250
Assim, o PIB per capita na região Sudeste, a região mais rica, representava 139% da
média nacional em 1989 e 131% em 2010. Por sua vez, o PIB per capita da região
mais pobre, o Nordeste, era apenas 43% da média nacional em 1989 e 48% em 2010.
Projeções detalhadas a seguir mostram que seriam necessários cerca de cinquenta anos
para o PIB per capita do Nordeste atingir 75% do PIB per capita nacional. [...] No
período 2000-2010, pode-se observar maior queda nas disparidades dos PIBs
macrorregionais em comparação com o período 1990-2000. [...] De forma sintética,
os dados [...] mostram que, por exemplo, em 2010, a região Nordeste, com 18% da
área geográfica do país, continha 28% da população brasileira e apresentava PIB per
capita equivalente a 48% da média nacional. Por sua vez, no mesmo ano, a região
Sudeste, ocupando 11% da área geográfica brasileira e participando com 42% da
população nacional, possuía PIB per capita que representava 131% da média nacional
em 2010. Ademais, [...] mostra uma análise mais detalhada da evolução do PIB per
capita ao longo da década de 2000, segundo a qual a taxa média anual do PIB per
capita do Nordeste foi de 3,32%, enquanto a região mais rica, o Sudeste, cresceu a
taxas médias de 2,05% ao ano. (IPEA, 2015, p.07-10)
Todavia, segundo Pochmann (2014, s/p), as pesquisas também demonstram que ocorreu,
simultaneamente, uma relativa estagnação de alguns setores da economia em regiões que
historicamente cumprem um papel mais central, em termos industriais, no país, a exemplo do
Sul e Sudeste, “regiões hoje cada vez mais apegadas ao agronegócio, ao setor financeiro, aos
serviços. Então isso fez com que essas regiões não tivessem um crescimento tão exitoso como
observado nas regiões identificadas anteriormente como regiões subdesenvolvidas, regiões
mais pobres”. Contudo, apesar dos números promissores em relação ao PIB total do Brasil,
assumindo o Nordeste a terceira posição (cerca de 13% do PIB brasileiro), atrás das regiões Sul
e Sudeste, a realidade nordestina ainda é considerada aquela com maior peso da pobreza
nacional, com PIB per capita de R$ 10.379, em 2013 (período em que o PIB per capita brasileiro
correspondia R$ 21.536), abrangendo dois estados com menor PIB per capita do país, Maranhão
e Piauí.
Levando em consideração que as desigualdades regionais favorecem a divisão entre
pobres e ricos territorialmente, como o Nordeste, com menor Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (IDH-M) médio dos estados (de 0,6598), ainda possui mais da metade da
população muito pobre do país, captou 55% dos recursos do Programa Bolsa Família (PBF),
carro-chefe da Política de Assistência Social dos Governos Lula e Dilma, o que influenciou
diretamente tanto nas condições de vida dessa parcela populacional como na dinâmica
econômica e territorial do interior nordestino com a constituição das chamadas “cidades
médias”, que passaram a crescer com mais intensidade. “O último Censo Demográfico registra
que elas são as que mais ganham peso relativo na população total do país, e tal fenômeno
também é nordestino. Os municípios de 100 mil a 2 milhões de habitantes estão ganhando peso
relativo e esta é uma mudança muito importante [...] (BNDES, 2014, p.550-551).
O Nordeste, portanto, assumiu destaque no percentual de domicílios que receberam
251
114
“Segundo dados do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em pesquisa nacional
realizada, em 2008, com as famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, 78% dos recursos do Programa
são gastos em alimentação (no Nordeste chega a 91% enquanto no Sul a 73%); 46% com material escolar (no
Norte chega a 63,5%, enquanto no Nordeste a 40%); 37% com vestuário; 22% com remédios. Seguem-se gás
(10%); luz (6%); tratamento médico (2%); água (1%); outras opções (menos de 1%). A pesquisa do IBASE também
revelou mudanças no padrão alimentar das famílias [...]. Em 74% das famílias do Programa o auxílio financeiro
permitiu aumentar a quantidade de alimentos que já consumiam e em 70% ampliou a variedade dos alimentos.
Entretanto, mesmo observada a tendência de ampliação na quantidade e variedade no consumo de alimentos ao
analisar o estudo do IBASE percebe-se que, ‘21% representando 2,3 milhões de famílias encontra-se em situação
de insegurança alimentar grave [...]; outros 34% [...] estão em situação de insegurança alimentar moderada’ [...]”
(SITCOVSKY, 2010, p.185).
252
empecilho para as atividades informais tradicionalmente desenvolvidas nas regiões mais pobres
do país, como o Nordeste, a exemplo do trabalho não-monetarizado, em troca de favor, de
comida ou moradia, traço ainda pulsante no seio da nossa “modernização conservadora”.
Nessa perspectiva, analisar cada iniciativa isoladamente não seria o melhor caminho
para maiores aproximações da complexa realidade a qual priorizamos. Daí a importância em
entender a relação entre inciativas como o PBF, o aumento do salário mínimo, o custo da cesta
básica, o tipo de consumo que se ampliou, o endividamento, dentre outras, na última década.
Esse exercício é fundamental para que possamos concatenar os fatos, os argumentos e as ideias
que subsidiam cada vez mais a constatação de que as mudanças conjunturais não permitiram
romper com as múltiplas expressões das desigualdades sociais no país.
Quando se considera a relação entre o custo da cesta básica e o salário mínimo líquido
[...] verifica-se que o percentual do rendimento liquido comprometido em abril de
2003 com os produtos essenciais ficou em 83,65% do salário mínimo de R$ 240,00.
Atualmente [...], o custo da cesta básica absorve 43,91% do salário mínimo em vigor.
O que, sem dúvida sinaliza uma melhora no poder de compra dos salários em relação
aos bens de necessidades fisiológicas do trabalhador. Contudo, isso não se traduz
numa ampliação na repartição da riqueza social produzida no país. (SITCOVSKY,
2010, p.192).
constituindo trajetórias de vida de inúmeros anônimos que inspiraram a arte popular de Luiz
Gonzaga a Belchior.
Todavia, existem ainda algumas questões que teimam em não calar: de fato, há (ou
houve) realmente um novo desenho social e econômico da região? Essas mudanças se deveram
a quê? O que há de herança e ruptura? Acreditamos que para entender essa realidade é preciso
desvendar o Nordeste profundo, em suas contradições e heterogeneidades, porém, já que o
“sertão é o mundo”, como nos disse Antônio Cândido (2014), é preciso também transcendê-lo,
ir para além da região, dos discursos de desenvolvimento, das alianças e propostas políticas dos
governos. Isso em busca de entender como essa região continua se integrando ao capitalismo
em território nacional e de identificar os “fios invisíveis” que constituem a dinâmica regional-
universal no modo vigente de produção e reprodução da vida social, particularmente no período
priorizado por nós. Esse caminho, não pode ser feito sem revelar as ambiguidades e os
paradoxos constitutivos dessa realidade, assim como não há possibilidade de entender as
expressões e formas de enfrentamento a questão social de outrora, por uma via de mão única.
Para tanto, lembramos as palavras de Florestan Fernandes ([1960] 2008, s/p), quando
nos diz o seguinte:
tantas circunstâncias, apresentadas brevemente no início deste capítulo, teve que desacelerar,
impactando não apenas a economia brasileira. Quanto ao contraponto, sinalizamos o seguinte:
Primeiro, a política de conciliação de classes vigente no referido período foi pautada e
sustentada por um ganho maior de setores empresariais, inclusive do agronegócio, tal como
apresentamos no item anterior. Nesse sentido, entendemos que o crescimento econômico
revelou, por outro lado, a gestação de novas elites regionais, que se fundem com as velhas,
reafirmando a presença do “familismo” ou, nas palavras de Nobre (2010), dos “clãs familiares”,
porém, agora junto ao capital financeiro internacional que passa a se constituir internamente
desde a última década, de acordo com Brettas (2013). Como lado mais pesado da mesma moeda,
os governos em questão retomaram a política industrial, relegada pelo governo FHC e
reorientaram a atuação estatal, contudo também deixaram clara a ausência de ruptura com o
neoliberalismo, com maiores tensões e medidas relativamente diferentes daquelas definidas nos
governos anteriores. Para Mara (2016, p.27), tratou-se, na verdade, “de uma reforma deste
projeto [neoliberalismo], reforma relacionada aos interesses de frações da grande burguesia
dependente brasileira”.
Segundo, é possível observar a ausência de significativas mudanças nas desigualdades
sociais e na concentração de renda, expressa territorialmente, o que ainda faz do Nordeste, por
exemplo, apesar dos avanços, ainda ser a região com menor esperança de vida ao nascer (70,4
anos), a maior taxa bruta de mortalidade infantil (33,20%) e a maior quantidade de analfabetos
do país. Daí porque os ganhos relativos as classes trabalhadoras na última década rapidamente
estão sendo revertidos, tendo em vista que, segundo a PNAD Contínua de 2017 (IBGE, 2018),
1% da população brasileira com os maiores rendimentos recebia, até ano passado, em média,
R$ 27.213. “Esse valor é 36,1 vezes maior que o rendimento médio dos 50% da população com
os menores rendimentos (R$ 754). Na região Nordeste essa razão foi de foi 44,9 vezes e na
região sul, 25 vezes.” (IBGE, 2018, s/p). Ainda de acordo com a mesma pesquisa, o Jornal Valor
Econômico nos diz que: “Todas as regiões exibiram indicadores piores de pobreza. O Nordeste
concentrava 55% da população extremamente pobre. No ano passado, eram 8,1 milhões de
pessoas na região com renda per capita abaixo de R$ 136,00 [...]. É um contingente 10,8%
maior do que o registrado no ano anterior [...]”115. Isto torna-se mais agravante com a queda de
14,3%, em 2016, para 13,7%, em 2017, do total de domicílios que recebem Bolsa Família,
somada a um conjunto de medidas que atinge também outras iniciativas, tal como o BPC e os
direitos trabalhistas como um todo.
115
Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-aumenta-11-e-atinge-148-
milhoes-de-pessoas>. Acesso em: 12.06.2018.
255
Em 1980, o Brasil era a 8º economia do mundo e era 3º país mais desigual do mundo.
Hoje nós somos a 7º economia do mundo e somos o 17º país mais desigual do mundo.
Melhoramos a nossa posição relativa, mas ainda estamos entre os 20 países, de 200
existentes, mais desigual. Então é uma tarefa gigantesca pela frente e seu sucesso vai
depender também da capacidade de luta do povo brasileiro.
Esse quadro nos remete a constatação de que o problema do Brasil, assim como de
outras realidades, não é relativo ao freneticamente propalado crescimento econômico por si só,
mas, sim, a algo que Florestan Fernandes em 50 anos atrás já afirmava: “Crescimento tem
havido, especialmente no nível econômico. Ele não chegou a assumir, porém, as proporções e
um padrão que afetassem a integração do Brasil como uma sociedade nacional e sua posição
no conjunto das demais sociedades nacionais, que compartilham da mesma civilização”. Frente
a tal fato, assim como já nos dizia o mesmo autor, “o que nos deve interessar é o modo de
participar do padrão dessa civilização”, se de forma dependente ou soberana. (FERNANDES,
[1968] 2008, p. 155). A segunda opção, por razões históricas que remetem à própria natureza
das classes sociais no Brasil, demandaria certamente um processo de ruptura com o capitalismo.
Como resultado desse processo, de permanência e aprofundamento do desenvolvimento
capitalista e, portanto, da condição de dependência, a melhoria nas condições de vida sinaliza
de modo cada vez mais latente o seu caráter relativo e temporário. Afinal, “o cobertor do
neodesenvolvimentismo é curto. Em um país de capitalismo dependente, as concessões
possíveis à estratégia de conciliação de classes também.”. (MARA, 2016, p.390). As próprias
taxas de crescimento não têm sido estáveis nem significativamente altas, sobremodo nos
últimos anos, o que, a nosso ver, revela tanto os efeitos da crise mundial e demais fatores da
conjuntura internacional 116 como os limites de uma política de alianças de classes, subordinada
116
É certo que a conjuntura internacional favoreceu tanto a ascensão como a decadência do último ciclo de
desenvolvimento. Dentre outros aspectos, ressaltamos: o avanço e o declínio (com Golpes de Estado) de um ciclo
histórico progressista na América Latina, frente a crise das experiências neoliberais da década de 1990; a crise de
2008 desencadeada a partir dos EUA e seus efeitos no Sul europeu; o fortalecimento e a estagnação de blocos
regionais; o crescimento da China, seu destaque como compradora das commodities brasileiras, mesmo em tempos
de inflação resistente, por um lado, e sua desaceleração, fruto dos desdobramentos da crise mundial, despencando
o preço das commodities a partir de 2015, por outro; maior integração de países como a Índia no mercado mundial.
O fato é que o predominante foi a manutenção e reciclagem com rapidez do projeto neoliberal. Sobre isso, vejamos
o que Braz (2016, p.36-37) nos apresenta: “Vemos hoje, por exemplo, nos EUA, a adoção de métodos pouco
‘liberais’ como a política de investimentos fortemente induzida pelo Estado com forte elevação da dívida pública
(cujo pagamento tem sido assegurado pelos países que compram seus títulos públicos, principalmente a China), a
indução de uma política monetária abertamente favorável ao dólar e uma deliberada política de juros baixos. Por
outro lado, na Europa, os Estados/governos encontram fortes limites para adotar os mesmos métodos, uma vez que
vivem sob o jugo da troika [...]. São obrigados [...] a implementar uma severa política de austeridade fiscal. Já no
Brasil, e nalguns outros países latino-americanos, pratica-se (ou praticava-se, pelo menos até o início de 2015
256
aos interesses do capital, que foi bem-sucedida por curto tempo, porém não apontou para a
politização da sociedade em torno do fortalecimento de um projeto democrático, nacional e
popular. Isso tendo em vista que a dinâmica capitalista possibilita, dentro da dialética de
expansão e estagnação entre as regiões, um período, mesmo que temporário, de ascensão
econômica e de desdobramento de contratendências.
Diante disso, alguns especialistas sinalizam que estamos vivendo um momento onde
pulsam duas principais tendências em um país como o Brasil: a desindustrialização 117 e a
reprimarização da economia, com base na alavanca da dívida pública. De acordo com o IPEA
(2017, p.438-439), dentre as variáveis que podem confirmar, de fato, a desindustrialização está
a “redução da participação da indústria de transformação no valor adicionado total desde
meados da década de 1980; a concentração do investimento industrial em atividades de baixo
conteúdo tecnológico; a concentração das exportações brasileiras em produtos não
manufaturados”. Porém, por outro lado, no que diz respeito a variável emprego, é possível
observar que a proporção das ocupações na indústria de transformação, comparada às
ocupações totais da economia, quase que permaneceu no patamar dos 13%, não ocorrendo
alterações substantivas.
Contudo, o que na verdade deve ser considerado centralmente é a existência de
dificuldades advindas pela própria forma com que o Brasil se integra ao sistema mundial
historicamente, impondo constantemente a “perda de dinamismo e competitividade do parque
industrial [...], a expansão das atividades exportadoras agroindustriais (commodities) e [...] a
integração plena aos circuitos financeiros internacionais [...], obstáculos à mudança estrutural
do sistema produtivo” brasileiro. Esse tipo de integração regional reproduz-se dentro do próprio
Brasil, por isso também os limites existentes de produtividade média da indústria nordestina
que, segundo o mesmo Instituto, praticamente se manteve inalterada entre 2000 e 2010. Assim,
mesmo diante a expectativa gerada para o período pós-2010, de alterações nos indicadores
produtivos diante da construção no Nordeste de “várias plantas industriais de maior valor
agregado e densidade tecnológica”, a exemplo da refinaria de petróleo, do estaleiro naval, da
quando o governo Dilma passou a adotar o ajuste e a austeridade fiscais) uma espécie de ‘capitalismo social’ que
inova ao criar uma engenharia social que se esmera em emprestar um rosto mais ‘humano’ ao sistema [...]. Os
países centrais vivem uma crise cuja expressão mais evidente é a estagnação econômica, atestada por baixos
índices de crescimento.”. Esse contexto desdobra-se em redefinições geopolíticas e geoeconômicas em curso.
117
“A controvérsia sobre a desindustrialização no Brasil constitui um capítulo particular da história do pensamento
econômico nacional neste início de século XXI. Ela pode ser entendida, resumidamente, como a redução, no longo
prazo, do peso da indústria de transformação no produto interno bruto (PIB) em um determinado espaço
econômico, geralmente nacional (Unctad, 2003; Akyuz, 2005). Este indicador é conhecido como grau de
industrialização e, no Brasil, passou de um máximo de 35,9%, em 1985, para 9,8%, em 2013. Ou seja, uma redução
de mais de 72% em um período em que prevaleceu o baixo crescimento econômico, manufatureiro e dos
investimentos”. (IPEA, 2017, p.369).
257
Tudo isso contribuiu para que tenhamos, em torno desse tema, o seguinte quadro
apresentado pelo IPEA (2017, p.449-450):
Essa dinâmica, além de ter tido como incentivo a margem salarial dos trabalhadores que
vivem no Nordeste, foi acompanhada também por um conjunto de estímulos por parte dos
governos federais e estaduais que atraiu setores empresariais através de programas como o
“Minha Casa Minha Vida” e o PAC. Todo esse processo promoveu uma maior dinamização do
mercado de trabalho, com a geração de empregos formais, tal como já apresentamos, como
260