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Lógica: uma brevı́ssima introdução

Graham Priest

Oxford University Press, 2000


Sumário

1 Validade: O que segue do que? 4

2 Funções de verdade - ou não? 9

3 Nomes e Quantificadores: Nada é alguma coisa? 17

4 Descrições e Existência: Os gregos adoravam a Zeus? 23

5 Auto-referência: Sobre o que se trata este capı́tulo? 28

6 Necessidade e Possibilidade: O que será deve ser? 34

7 Condicionais: O que está contido em um se? 41

8 O tempo é real? 47

9 Identidade e mudança: Tudo é sempre o mesmo? 54

10 Vagueza: Como você para de escorregar em uma rampa es-


corregadia? 60

11 Probabilidade: O estranho caso da falta de classe de re-


ferência 66

12 Probabilidade Inversa: Você não pode ficar indiferente a seu


respeito! 73

13 Teoria da Decisão: Grandes expectativas 80

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Prefácio

A lógica é uma das disciplinas intelectuais mais antigas, e uma das mais
modernas. Seu inı́cio remonta ao século IV a.C. As únicas disciplinas mais
antigas são a matemática e a filosofia, com as quais sempre esteve intima-
mente conectada. Ela passou por uma revolução por volta da virada ao século
XX, por meio da aplicação de novas técnicas matemáticas, e no último meio-
século assumiu papéis radicalmente novos e importantes na computação e
no processamento de informações. É, portanto, um assunto central para o
pensamento e as empreitadas humanas.
Este livro é uma introdução à lógica, tal como é entendida pelos lógicos
contemporâneos. Ele não pretende, no entanto, ser um manual. Tais livros
existem atualmente em quantidade. A finalidade deste é explorar as raı́zes
da lógica, que penetram profundamente a filosofia. Algo de lógica formal
será explicado pelo caminho.
Em cada um dos capı́tulos principais, inicio tomando algum problema
filosófico ou enigma (puzzle) lógico particular. Explico em seguida uma
abordagem deste. Muitas vezes, será uma abordagem bastante convencional
(standard); mas em algumas das áreas não existem respostas convencionais:
os lógicos ainda discordam. Em tais casos, simplesmente escolhi uma que
fosse interessante. Quase todas as abordagens, convencionais ou não, po-
dem ser questionadas. Termino cada capı́tulo com alguns problemas para a
abordagem que expliquei. Algumas vezes, esses problemas são convencionais;
algumas vezes, não. Algumas vezes eles possuem respostas fáceis; outras ve-
zes, podem não tê-las. O objetivo é desafiá-lo a encontrar um meio de lidar
com o assunto.
A lógica moderna é uma área altamente matemática. Busquei escrever
o material de modo a evitar quase toda a matemática. O máximo que será
exigido é um pouco de álgebra elementar nos últimos capı́tulos. É verdade

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que é preciso determinação para dominar algum simbolismo que pode ser
novo para você; mas é muito menos do que seria exigido para se ter uma
compreensão básica de alguma nova lı́ngua. A perspicuidade que o simbo-
lismo fornece a questões difı́ceis paga a pena de dominá-lo. Uma advertência,
no entanto: ler um livro de lógica ou de filosofia não é como ler um romance.
Algumas vezes será necessário ler com cuidado e lentamente. Algumas vezes
será necessário parar e pensar sobre as coisas; e você deve estar preparado
para retornar e reler o parágrafo, se necessário.
O capı́tulo final do livro é sobre o desenvolvimento da lógica. Por meio
dele, busquei colocar algumas das questões com as quais o livro lida em
uma perspectiva histórica, para mostrar que a lógica é um assunto vivo, que
sempre evolui, e que continuará a fazê-lo. O capı́tulo também inclui sugestões
de leitura complementar.
Há dois apêndices. O primeiro contém um glossário de termos e sı́mbolos.
Você pode consultá-lo se esquecer o significado de uma palavra ou sı́mbolo.
O segundo apêndice contém uma questão relevante para cada capı́tulo, com
a qual será possı́vel testar sua compreensão das idéias principais.
O livro visou antes a abrangência que a profundidade. Seria mais fácil
escrever um livro sobre o tópico de cada capı́tulo - e, de fato, vários destes
livros foram escritos. E, ainda assim, há várias importantes questões acerca
da lógica que não foram sequer tocadas aqui. Mas, se continuar firme até o
final do livro, você terá uma idéia bastante adequada dos fundamentos da
lógica moderna, e por que as pessoas acham que vale a pena pensar sobre o
assunto.

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Capı́tulo 1

Validade: O que segue do que?

A maior parte das pessoas gosta de pensar em si mesmas como lógicas. Dizer
a alguém “Você não está sendo lógico” é normalmente uma forma de crı́tica.
Ser ilógico é ser confuso, atrapalhado, irracional. Mas, o que é lógica? Em
Através do espelho, de Lewis Carroll, Alice encontra a dupla argumentativa
(logic-chopping) Tweedledum e Tweedledee. Quando Alice procura algo para
dizer, eles partem para o ataque:

“Eu sei sobre o que você está pensando” disse Tweedledum: “mas
não é assim, de modo algum.”
“Ao contrário” continuou Tweedledee, “se assim fosse, poderia
ter sido; e se tivesse sido assim, seria: mas como não é, não será.
Isto é lógica.”

O que Tweedledee está fazendo - pelo menos na paródia de Carroll - é


raciocinar. E é sobre isto, como ele disse, que é a lógica.
Todos nós raciocinamos. Tentamos descobrir o que será, raciocinando a
partir do que já sabemos. Tentamos persuadir os outros de algo apresentan-
do-lhes razões. A lógica é o estudo do que pode ser considerado uma boa
razão para algo, e por que. Esta afirmação, no entanto, deve ser entendida de
uma certa maneira. Eis aqui dois exemplos de raciocı́nio - que são chamados
pelos lógicos de inferências:

1. Roma é a capital da Itália, e este avião pousa em Roma; logo, este


avião pousa na Itália.

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2. Moscou é a capital dos Estados Unidos; logo, você não pode ir a Moscou
sem ir aos Estados Unidos.

Em cada caso, as afirmações antes do “logo” - chamadas pelos lógicos


de premissas - fornecem razões; as afirmações depois do “logo” - chamadas
pelos lógicos de conclusões - são aquilo para o que as razões pretendem ser
razões de. O primeiro trecho de raciocı́nio é correto; mas o segundo parece
muito pouco promissor, e não convenceria ninguém com um conhecimento
elementar de geografia. Repare, contudo, que se a premissa fosse verdadeira
- se, digamos, os Estados Unidos tivessem comprado toda a Rússia, e não
apenas o Alaska, e mudado a capital para Moscou, para estar mais próxima
dos centros de poder da Europa - a conclusão teria sido de fato verdadeira.
Ela teria se seguido das premissas: e é com isso que se ocupa a lógica. Ela
não se ocupa com as premissas serem verdadeiras ou falsas. Isto é tarefa
de alguma outra pessoa (no caso, do geógrafo). Ela apenas se interessa se
a conclusão segue-se das premissas. Os lógicos chamam uma inferência em
que a conclusão realmente segue-se das premissas válida. Logo, o objetivo
central da lógica é compreender a validade.
Você pode pensar que é uma tarefa um tanto boba - um exercı́cio inte-
lectual com um pouco menos de apelo que resolver palavras cruzadas. Mas
acontece que não apenas esta é uma tarefa muito difı́cil; é uma tarefa que não
pode ser separada de um bom número de importantes (e algumas vezes pro-
fundas) questões filosóficas. Ao longo do percurso você encontrará algumas
delas. Por enquanto, vamos examinar melhor alguns fatos básicos relativos
à validade.
Para começar, é comum distinguir entre dois tipos diferentes de validade.
Para compreendê-lo, considere as três inferências seguintes:

1. Se o ladrão tivesse invadido através da janela da cozinha, haveria pe-


gadas do lado de fora; mas não há pegadas; logo, o ladrão não invadiu
através da janela da cozinha.

2. Jones tem os dedos manchados de nicotina; logo, Jones é um fumante.

3. Jones compra dois maços de cigarro por dia; logo alguém deixou pega-
das do lado de fora da janela da cozinha.

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A primeira inferência é bastante direta. Se as premissas são verdadeiras,
também a conclusão deve sê-lo. Ou, para dizê-lo de outro modo, as pre-
missas não poderiam ser verdadeiras sem que a conclusão também o fosse.
Lógicos chamam uma inferência deste tipo dedutivamente válida. A segunda
inferência é um pouco diferente. A premissa claramente apresenta boas razões
para a conclusão, mas não é totalmente conclusiva. Afinal de contas, Jones
poderia simplesmente ter manchado seus dedos de nicotina para fazer as
pessoas pensarem que ele era um fumante. Logo, a inferência não é dedu-
tivamente válida. Inferências deste tipo normalmente são chamadas indu-
tivamente válidas. A terceira inferência, ao contrário, parece sem salvação
sob qualquer critério. A premissa parece não fornecer qualquer tipo de razão
para a conclusão. Ela é inválida - tanto dedutiva quanto indutivamente. Na
verdade, como as pessoas não são completamente idiotas, se alguém de fato
oferece razões deste tipo, suporı́amos que existe alguma premissa suplemen-
tar que não nos foi dita (talvez que alguém passa os maços de cigarros a
Jones através da janela da cozinha).
A validade indutiva é uma noção muito importante. Nós raciocinamos in-
dutivamente o tempo todo; por exemplo, ao tentar resolver problemas como
saber por que a janela do carro está quebrada, por que uma pessoa está
doente, ou quem cometeu um crime. Sherlock Holmes era um mestre nisso.
Apesar disso, historicamente, muito mais esforço foi empreendido para com-
preender a validade dedutiva - talvez porque os lógicos tenderam a ser ma-
temáticos ou filósofos (em cujos estudos as inferências dedutivamente válidas
são de importância central), e não médicos ou detetives. Retornaremos à
noção de indução mais adiante no livro. Por enquanto, vamos pensar um
pouco mais sobre a validade dedutiva. (É natural supor que a validade dedu-
tiva é uma noção mais simples, pois as inferências dedutivamente válidas são
mais diretas (cut-and-dried). Não é portanto uma má idéia tentar entendê-la
primeiro. Isto, como veremos, já é suficientemente difı́cil). Até afirmação em
contrário, “válido” significará simplesmente “dedutivamente válido”.
O que é então uma inferência válida? Aquela, como vimos, na qual as
premissas não podem ser verdadeiras sem que a conclusão também seja verda-
deira. Mas o que significa isso? Em particular, o que significa o não podem?
Em geral, “não pode” pode significar muitas coisas diferentes. Considere,
por exemplo: “Maria pode tocar piano, mas João não pode”; aqui estamos
falando de habilidades humanas. Compare com: “Você não pode entrar aqui:
é preciso permissão”; aqui estamos falando de algo que um código de regras

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permite.
É natural entender o “não pode” relevante no presente caso deste modo:
dizer que as premissas não podem ser verdadeiras sem que a conclusão seja
verdadeira é dizer que em todas as situações em que as premissas são verda-
deiras, também o é a conclusão. Até aqui, tudo bem: mas o que é exatamente
uma situação? Que tipos de coisas entram na sua constituição e como essas
coisas se relacionam umas com as outras? E o que é ser verdadeiro? Agora
há um problema filosófico para você, como poderia ter dito Tweedledee.
Estas questões irão nos preocupar ao longo do texto; mas vamos deixá-las
de lado por enquanto, e finalizar com uma outra coisinha. Não devemos par-
tir com a idéia de que a explicação de dedutivamente válido que apresentei
está ela própria livre de problemas. (Em filosofia, todas as afirmações inte-
ressantes estão abertas ao exame.) Eis aqui um problema. Assumamos que
a explicação está correta, saber que uma inferência é dedutivamente válida é
saber que não há situações em que as premissas são verdadeiras e a conclusão
não é. Agora, qualquer que seja nossa compreensão de situação, é certo que
há um monte delas: situações sobre coisas em planetas de estrelas distantes;
situações sobre eventos antes que houvesse qualquer ser vivo no cosmos; si-
tuações descritas em obras de ficção; situações imaginadas por visionários.
Como podemos saber o que acontece em todas as situações? Pior, parece
haver um número infinito de situações (situações daqui há um ano, situações
daqui há dois, situações daqui há três anos,...). É portanto impossı́vel, até
mesmo em princı́pio, fazer um levantamento todas as situações. Assim, se
esta abordagem da validade está correta, e dado que nós podemos reconhecer
inferências como válidas ou inválidas (ao menos em vários casos) devemos
ter alguma percepção disto, de alguma fonte especial. Qual fonte?
Devemos invocar algum tipo de intuição mı́stica? Não necessariamente.
Considere um problema análogo. Podemos distinguir entre seqüências grama-
ticais [de acordo com a gramática] e não-gramaticais de nossa lı́ngua nativa
sem muito problema. Por exemplo, um falante nativo do português reco-
nheceria que “isto é uma cadeira” é uma sentença gramatical, mas que “é
cadeira uma isto” não é. Mas parece haver um número infinito de sentenças
gramaticais ou não-gramaticais. (Por exemplo, “um é um número”, “dois é
um número”, “três é um número”, ... são todas sentenças gramaticais. E é
suficientemente fácil produzir saladas de palavras ad libitum). Então, como o
fazemos? Aquele que é talvez o mais influente dos linguistas modernos, Noam
Chomsky, sugeriu que podemos fazê-lo pois as coleções infinitas estão encap-

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suladas em um conjunto finito de regras que estão gravadas (hard-wired) em
nós; que a evolução nos programou com uma gramática inata. Pode a lógica
ser a mesma coisa? As regras da lógica estão gravadas em nós do mesmo
jeito?

Ideias centrais do capı́tulo

• Uma inferência válida é aquela em que a conclusão segue da(s) pre-


missa(s).

• Uma inferência dedutivamente válida é aquela na qual não existe si-


tuação em que todas as premissas são verdadeiras, mas a conclusão
não é.

Problema
A seguinte inferência é dedutivamente válida, indutivamente válida ou ne-
nhuma delas? Por que? José é espanhol. A maioria do povo espanhol é
católico. Logo, José é católico.

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Capı́tulo 2

Funções de verdade - ou não?

Estando ou não as regras da validade profundamente arraigadas em nós,


todos temos intuições bem fortes a respeito da validade ou não de várias
inferências. Não haveria muita discordância, por exemplo, de que a inferência
a seguir é válida: “Ela é uma mulher e é uma banqueira; logo, ela é uma
banqueira”. Ou que a inferência a seguir é inválida: “Ele é um carpinteiro;
logo, ele é um carpinteiro e joga baseball”.
Porém, nossas intuições podem, às vezes, nos colocar em apuros. O que
você pensa sobre inferência a seguir? As duas premissas ocorrem na parte
superior da linha; a conclusão na parte inferior.
A rainha é rica. A rainha não é rica.
Porcos podem voar.
Certamente não parece válida. A riqueza da rainha - grande ou não -
parece não ter relação alguma com a habilidade de voar dos porcos.
Mas o que você pensa a respeito das duas inferências seguintes?
A rainha é rica.
Ou a rainha é rica ou porcos podem voar.

Ou a rainha é rica ou porcos podem voar. A rainha não é rica.


Porcos podem voar.
A primeira delas parece válida. Considere sua conclusão. Lógicos cha-
mam sentenças como esta de disjunção; e as cláusulas em ambos os lados

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do “ou” são chamados disjuntos. Agora, o que precisa ocorrer para que uma
disjunção seja verdadeira? Apenas que um ou outro dos disjuntos seja verda-
deiro. Assim, em qualquer situação em que a premissa é verdadeira, também
o é a conclusão. A segunda inferência também parece válida. Se uma ou
outra de duas suposições é verdadeira e uma delas não é, a outra deve ser
verdadeira.
Agora, o problema é que colocando estas duas inferências aparentemente
válidas juntas, obtemos uma inferência aparentemente inválida, como esta:
A rainha é rica.
Ou a rainha é rica ou porcos podem voar.
A rainha não é rica.
Porcos podem voar.
Isto não pode estar correto. Ligar inferências válidas desta forma não
poderia resultar numa inferencia inválida. Se todas as premissas são ver-
dadeiras em qualquer situação, então também o são as suas conclusões, as
conclusões que seguem destas; e assim por diante, até chegarmos à conclusão
final. O que há de errado?
A fim de fornecer uma resposta ortodoxa para esta pergunta, foquemos
um pouco mais nos detalhes. Para começar, vamos escrever a sentença “Por-
cos podem voar” como p, e a sentença “A rainha é rica” como q. Isto torna
as coisas um pouco mais compactas. Mas não é só isto: se você parar um
momento para refletir, pode ver que as duas sentenças particulares usadas
nos exemplos acima não tem muito a ver com o que está acontecendo. Eu
poderia ter reconstruı́do a inferência utilizando quaisquer outras duas sen-
tenças; assim, podemos ignorar os seus conteúdos. Isto é o que fazemos
quando escrevemos as sentenças representado-as por letras.
A sentença “Ou a rainha é rica ou porcos podem voar” agora torna-se
“Ou q ou p”. Lógicos frequentemente escrevem isto como q ∨ p. E o que
fazer com “A rainha não é rica”? Vamos reescrever isto como “Não é o
caso que a rainha é rica”, puxando a particula negativa para a frente da
sentença. Consequentemente, a sentença torna-se “Não é ao caso que q”.
Lógicos frequentemente escrevem isto como ¬q, e o chamam de a negação
de q. Já que estamos aqui, como seria a sentença “A rainha é rica e porcos
podem voar”, isto é, “q e p”? Lógicos frequentemente escrevem isto como
“q&p” e o chamam de conjunção de q e p, q e p sendo os conjuntos. Munidos
desta maquinaria, podemos escrever a inferência encadeada que vimos, como:

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q
q∨p
¬q
p
O que diremos a respeito desta inferência?
Sentenças podem ser verdadeiras, e sentenças podem ser falsas. Vamos
usar V para verdade e F para falsidade. A partir de um dos fundadores
da lógica moderna, o filósofo/matemático alemão Gottlob Frege, estes são
geralmente denominados valores de verdade. Dada qualquer sentença, a,
qual é a conexão entre o valor da verdade de a e o da sua negação, ¬a? Uma
resposta natural seria que se uma é verdadeira, a outra é falsa, e vice-versa.
Assim, se “A rainha é rica” é verdadeira, “A rainha não é rica” é falsa, e vice
versa. Podemos registrar isso como segue:

• ¬a tem o valor V exatamente se a tem o valor F ,

• ¬a tem o valor F exatamente se a tem o valor V .

Lógicos denominam esses registros como as condições de verdade para


a negação. Se assumirmos que toda sentença é verdadeira ou falsa mas
não ambas, podemos registrar as condição na seguinte tabela, que os lógicos
chamam de tabela de verdade:
a ¬a
V F
F V

Se a tem o valor de verdade dado na coluna abaixo dele, ¬a tem o valor


correspondente à sua direita.
O que dizer da disjunção ∨? Como já vimos, uma suposição natural é
que uma disjunção, a ∨ b, é verdadeira su um ou outro (ou possivelmente
ambos) de a e b são verdadeiros, e falso no caso contrário. Podemos registrar
isto nas condições de verdade para a disjunção:

• a ∨ b tem o valor V exatamente se pelo menos um de a e b têm o valor


V,

• a ∨ b tem o valor F exatamente se ambos a e b têm o valor F .

Essas condições podem ser registradas na seguinte tabela de verdade:

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a b a∨b
V V V
V F V
F V V
F F F

Cada linha - exceto a primeira que está no topo - registra uma possı́vel
combinação de valores de verdade para a (primeira coluna) e b (segunda co-
luna). Existem quatro tais possı́veis combinações e, portanto, quatro linhas.
Para cada combinação, o correspondente valor de a ∨ b é dado à sua direita
(terceira coluna).
Novamente, já que estamos falando nisso, qual é a conexão entre os valores
de verdade de a e b, com o de a&b? Uma suposição natural é que a&b é ver-
dadeira se ambas a e b são verdadeiras, e falsa no caso contrário. Assim, por
exemplo, “John tem 35 anos e cabelos castanhos” é verdadeira exatamente se
“John tem 35 anos” e “John tem cabelos castanhos” são ambas verdadeiras.
Podemos registrar isto nas condições da verdade para a conjunção:

• a&b tem o valor V exatamente se ambos a e b têm o valor V ,


• a&b tem o valor F exatamente se pelo menos um de a e b têm o valor
F.
Essas condições podem ser registradas na seguinte tabela de verdade:

a b a&b
V V V
V F F
F V F
F F F

Agora, como tudo isto está relacionado com o problema que iniciamos?
Vamos voltar à questão que eu levantei no final do último capı́tulo: O que é
uma situação? Um pensamento natural é que seja o que for uma situação,
ela determina um valor de verdade para toda sentença. Assim, por exemplo,
em uma situação em particular, poderia ser verdadeiro que a Rainha fosse
rica e falso que porcos possam voar. Em outra situação poderia ser falso que
a Rainha fosse rica e verdadeiro que porcos possam voar. (Note que estas si-
tuações são puramente hipotéticas!) Em outras palavras, uma situação deter-
mina que cada sentença relevante seja V ou F . As sentenças relevantes aqui

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não contém qualquer ocorrência de “e”, “ou” ou “não”. Dada a informação
básica sobre uma situação, podemos usar as tabelas de verdade para resolver
os valores de verdade das sentenças que contém estas ocorrências.
Por exemplo, suponha que temos a seguinte situação:

p:V
q:F
r:V

(r pode ser a sentença “Rabanete é nutritivo”, e “p : V” significa que a p é


atribuido o valor da verdade V , etc.) Qual o valor da verdade de, digamos,
p&(¬r ∨ q)? Calculamos o valor da verdade disto exatamente da mesma
forma que calcuları́amos o valor numérico de 3 × (−6 + 2), usando tabuadas
para multiplicação e adição. O valor de verdade de r é V . Entao, a tabela de
verdade para ¬ nos diz que o valor de verdade de ¬r é F . Mas, uma vez que
o valor de q é F , a tabela de verdade para ∨ nos diz que o valor de ¬r ∨ q é
F . E dado que o valor de verdade de p é V , a tabela de verdade para & nos
diz que o valor de p&(¬r ∨ q) é F . Desta forma passo-a-passo, conseguimos
calcular o valor de verdade de qualquer fórmula contendo ocorrências de &,
∨ e ¬.
Agora, lembre-se do último capı́tulo em que uma inferência é válida desde
que não haja nenhuma situação que faça com que todas as premissas sejam
verdadeiras, e a conclusão não verdadeira (falsa). Ou seja, é válido se não
existe uma maneira de atribuir V s e F s às sentenças relevantes, que resulte em
todas as premissas tendo o valor V e a conclusão tendo o valor F . Considere,
por exemplo, a inferência que já vimos, q/q ∨ p. (Escrevo isso em uma linha
para economizar dinheiro para a Oxford University Press.) As sentenças
relevantes são q e p. Há quatro combinações de valores de verdade, e para
cada uma destas podemos calcular os valores de verdade para as premissas e
conclusão. Podemos representar o resultado da seguinte forma:

q p q q∨p
V V V V
V F V V
F V F V
F F F F

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As primeiras duas colunas nos dão todas as possı́veis combinações dos
valores de verdade para q e p. As duas últimas colunas nos dão os valores
de verdade correspondentes para a premissa e a conclusão. A terceira coluna
é a mesma que a primeira. Isto é um acidente deste exemplo, devido ao
fato que, neste caso em particular, a premissa vem a ser uma das sentenças
relevantes. A quarta coluna pode ser copiada da tabela de verdade para a
disjunção. Dada esta informação, podemos ver que a inferência é válida. Pois
não existe uma linha em que a premissa q é verdadeira e a conclusão q ∨ p
não o é.
E o que acontece com a inferência q ∨ p, ¬q/p? Procedendo da mesma
maneira, obtemos:

q p q∨p ¬q p
V V V F V
V F V F F
F V V V V
F F F V F

Desta vez, existem cinco colunas, porque existem duas premissas. Os


valores da verdade das premissas e conclução podem ser calculados a partir
das tabelas de verdade para a disjunção e a negação. E novamente, não
existe linha em que ambas as premissas são verdadeiras e a conclusão não.
Portanto, a inferência é válida.
E o que acontece com a inferência pela qual iniciamos: q, ¬q/p? Proce-
dendo como anteriormente, obtemos:

q p q ¬q p
V V V F V
V F V F F
F V F V V
F F F V F

Novamente, a inferência é válida; e agora vemos por que. Não há ne-
nhuma linha em que ambas as premissas são verdadeiras e a conclusão é
falsa. De fato, não há nenhuma linha em que ambas as premissas sejam
verdadeiras. A conclusão de fato não importa! Às vezes, os lógicos descre-
vem esta situação dizendo que a inferência é vacuamente válida, exatamente
porque as premissas nunca poderiam ser verdadeiras simultaneamente.

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Aqui, então, está a solução do problema com que iniciamos. De acordo
com esta abordagem, nossas intuições originais acerca desta inferência esta-
vam erradas. Afinal, as intuições das pessoas podem freqüentemente induzir
ao erro. Parece óbvio para todos que a Terra não se movimenta - até que se
faz um curso de Fı́sica e se descobre que na verdade a Terra esta viajando
através do espaço. Podemos até mesmo oferecer uma explicação de como as
nossas intuições lógicas dão errado. A maioria das inferências que encontra-
mos na prática não são do tipo vácuo. Nossas intuições desenvolvem-se neste
tipo de contexto, e não se aplicam genericamente - assim como os hábitos que
você desenvolve quando aprende a andar (por exemplo, não inclinar para o
lado) não funcionam sempre em outros contextos (por exemplo, quando você
aprende a andar de bicicleta).
Voltaremos a este assunto em outro capı́tulo mais tarde. Mas vamos
encerrar este com uma breve olhada na adequação do maquinário que nós
usamos. As coisas aqui não são tão diretas como se poderia esperar. De
acordo com esta abordagem, o valor de verdade de uma sentença ¬a está
completamente determinado pelo valor de verdade da sentença a. De forma
análoga, os valores de verdade das sentenças a∨b e a&b estão completamente
determinados pelos valores de verdade de a e b. Lógicos chamam as operações
que funcionam desse modo de funções de verdade. Mas há bons motivos para
supor que “ou” e “e”, como eles ocorrem em português, não são funções de
verdade - ao menos, não sempre.
Por exemplo, de acordo com a tabela de verdade para &, “a e b” sempre
tem o mesmo valor de verdade que “b e a”: a saber, ambos são verdadeiros
se a e b forem verdadeiros, e falsos em caso contrário. Mas, considere as
sentenças:

1. John bateu a cabeça e caiu.

2. John caiu e bateu a cabeça.

A primeira diz que John bateu a cabeça e então caiu. A segunda diz
que John caiu e então bateu a cabeça. Claramente, a primeira poderia ser
verdadeira enquanto que a segunda falsa, e vice-versa. Portanto, não são
apenas os valores da verdade dos conjuntos que são importantes, mas qual
conjunto causou qual.

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Problemas similares envolvem “ou”. De acordo com a abordagem que nós
tı́nhamos, “a ou b” é verdadeira se uma ou outra, a e b, forem verdadeiras.
Mas suponha que um amigo diga:

Ou você vem agora ou chegaremos atrasados;

e portanto você vai. Dada a tabela de verdade para ∨, a disjunção é ver-


dadeira. Mas suponha que você descobre que seu amigo estava brincando:
você poderia ter saı́do meia hora depois e ainda estaria no horário. Sob estas
circunstancias você certamente diria que seu amigo havia mentido: o que ele
havia dito era falso. Novamente, não são meramente os valores da verdade
dos disjuntos que são importantes, mas a existência de alguma outra conexão
entre eles.
Deixarei você refletir sobre estas questões. O material que vimos nos
dá ao menos uma amostra de como certos maquinários lógicos funcionam e
iremos tirar proveito disto nos próximos capı́tulos, a não ser que as idéias
destes capı́tulos deixem explı́cito que eles não se aplicam, o que acontecerá
algumas vezes.
O maquinário em questão lida somente com alguns tipos de inferências:
existem muitas outras. Estamos apenas começando.

Ideias centrais do capı́tulo

• Em uma situação, um único valor de verdade (V ou F ) é atribuı́do a


cada sentença relevante.
• ¬a é V exatamente se a é F ,
• a ∨ b é V exatamente se pelo menos um de a e b é V ,
• a&b é V exatamente se ambos a e b são V .

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Ou Jones é um cava-
leiro ou ele é um idiota; mas, ele é certamente um cavaleiro; assim, ele não
é um idiota.

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Capı́tulo 3

Nomes e Quantificadores: Nada


é alguma coisa?

As inferências que vimos no último capı́tulo envolviam sentenças com “ou” e


“não é o caso que”, palavras que adicionam, ou unem, sentenças completas
para criar outras sentenças completas; mas existem muitas inferências que
parecem funcionar de uma forma bem diferente. Considere, por exemplo, a
inferência:
Marcus me deu um livro.
Alguém me deu um livro.
Nem a premissa nem a conclusão possuem uma parte que sozinha seja
uma sentença completa. Se esta inferência é valida, isto acontece somente
por causa do que está ocorrendo dentro das sentenças completas.
A gramática tradicional nos diz que a forma mais simples de uma sentença
completa é formada por um sujeito e um predicado. Assim, considere estes
exemplos:

1. Marcus viu o elefante.

2. Annika dormiu.

3. Alguém me bateu.

4. Ninguém veio à minha festa.

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A primeira palavra, em cada caso, é o sujeito da sentença: cada uma nos
diz do que se trata a sentença. O resto é o predicado: que nos diz o que
é dito a respeito do sujeito. Agora, quando uma tal sentença é verdadeira?
Tome o segundo exemplo. Ela é verdadeira se o objeto referido pelo sujeito
“Annika” possui a propriedade expressa pelo predicado, que é, dormiu.
Até aqui tudo bem. Mas a que o sujeito da sentença 3 se refere? À
pessoa que me bateu? Mas talvez ninguém tenha me batido. Ninguém disse
que esta era uma sentença verdadeira. O caso na sentença 4 é ainda pior. A
quem “ninguém” se refere? No livro “Through the Looking Glass”, um pouco
antes do encontro com o Leão e o Unicórnio, Alice se encontra com o Rei
Branco, que esta aguardando um mensageiro. (Por algum motivo, quando o
mensageiro aparece, ele estranhamente se parece com um coelho.) Quando
o Rei se apresenta a Alice, ele diz:

“Apenas olhe a estrada, e diga-me se você pode ver...(O Men-


sageiro).”
“Eu [não] vejo ninguém na estrada.” Disse Alice.
“Eu gostaria de ter esta visão.” O Rei observou com um tom
insatisfeito. “Ser capaz de ver ninguém! E de longe também!
Porque, tudo o que eu consigo fazer é ver pessoas reais, e de dia!”

Carroll está fazendo uma piada de lógica, como ele frequentemente o faz.
Quando Alice diz que [não] está vendo ninguém, ela não está dizendo que ela
está vendo uma pessoa - real ou não. “Ninguém” não se refere a uma pessoa
- nem a qualquer outra coisa.
Palavras como “ninguém”, “alguém”, “todos” são chamadas pelos profis-
sionais em lógica de quantificadores, e são distinguidos dos nomes “Marcus”
e “Annika”. O que acabamos de ver é que, mesmo que ambos, os quan-
tificadores e nomes, possam ser gramaticalmente sujeitos de uma sentença,
eles devem possuir funções de diferentes formas. Então, como funcionam os
quantificadores?
Eis aqui uma reposta moderna padrão. Uma situação vem equipada com
um estoque de objetos. No nosso caso, os objetos relevantes são todas as
pessoas. Todos os nomes que ocorrem no nosso raciocı́nio sobre esta situação
referem-se a um dos objetos desta coleção. Portanto, se nós escrevermos m
para ”Marcus”, m refere-se a um destes objetos. E se nós escrevermos F
para “é feliz”, então a sentença mF é verdadeira nesta situação exatamente

18
quando o objeto referido por m tem a propriedade expressa por F . (Por mo-
tivos de sua própria conta, lógicos geralmente invertem a ordem, e escrevem
F m, ao invés de mF . Isto é apenas uma questão de convenção.)
Agora considere a sentença “Alguém é feliz”. Isto é verdadeiro em uma
situação somente quando houver algum objeto, na coleção de objetos, que
é feliz - isto é, algum objeto na coleção, digamos x, tal que x é feliz. Va-
mos escrever “Algum objeto x, tal que” como ∃x. Então, podemos escrever
a sentença desta forma: “∃x x é feliz”; ou lembrando-se que estamos escre-
vendo “é feliz” como F , então: ∃x xF . Lógicos às vezes chamam ∃x de um
quantificador existencial (particular).
E quanto a “Todos são felizes”? Isto é verdadeiro em uma situação se
todo objeto na coleção relevante for feliz. Isto é, cada objeto x na coleção
é tal que x é feliz. Se escrevermos “todo objeto x, tal que” como ∀x, então
podemos escrever isto da forma: ∀x xF . Lógicos geralmente chamam ∀x de
um quantificador universal.
Agora, não há vantagem em adivinhar como entendemos “Ninguém é
feliz”. Isto apenas significa que não há um objeto x, na coleção relevante, tal
que x é feliz. Nós poderı́amos ter um sı́mbolo especial significando “Nenhum
objeto x, tal que”, mas na verdade, os lógicos não se importam em ter um.
Pois dizer que ninguém é feliz é dizer que não é o caso que alguém é feliz.
Então podemos escrever isto da forma: ¬∃x xF .
Esta análise dos quantificadores nos mostra que nomes e quantificadores
funcionam de formas bem diferentes. Em particular, o fato de que “Marcus
é feliz” e “Alguém é feliz” tenham sido escritos, bem diferentes, como mF
e ∃x xF , respectivamente, nos mostra isto. Isto nos mostra, além disso, que
formas gramaticais aparentemente simples podem nos levar ao erro. Nem
todos os sujeitos da gramática são iguais. A abordagem, inclusive, nos mostra
porque a inferência com a qual começamos é válida. Vamos escrever D para
“me deu o livro”. Então, a inferência é:
mD
∃x xD
Está claro que, se em alguma situação, o objeto referido pelo nome m
me deu o livro, então algum objeto na coleção relevante me deu o livro.
Em contraste, o Rei Branco está inferindo do fato de que Alice [não] viu
ninguém, que ela viu alguém (a saber, Ninguém). Se nós escrevermos “é
visto por Alice” como V então a inferência do Rei seria:

19
¬∃x xV
∃x xV
Isto é claramente inválido. Se não há objeto no domı́nio relevante que foi
visto por Alice, obviamente não é verdadeiro que há algum objeto no domı́nio
relevante que foi visto por ela.
Você pode achar que tudo isto é um monte de confuã0 à toa - na verdade,
é apenas uma maneira de construir uma boa piada. Mas é muito mais sério
do que isto. Pois os quantificadores têm um papel central em muitos argu-
mentos em matemática e filosofia. Eis aqui um exemplo filosófico. É uma
presunção natural considerar que nada acontece sem haver uma explicação:
As pessoas não ficam doentes sem motivo; carros não quebram sem haver
uma falha. Tudo, então, tem uma causa. Mas o que poderia ser a causa
de tudo? Obviamente não pode ser nada fı́sico, como uma pessoa; ou nem
mesmo algo como o Big Bang da cosmologia. Tais coisas devem, elas mes-
mas, ter suas causas. Então, deve ser algo metafı́sico. Deus é o candidato
óbvio.
Isto é uma versão de um argumento para existência de Deus, comumente
chamado de Argumento Cosmológico. Alguém poderia contestar o argumento
de várias formas. Mas no seu coração, há uma enorme falácia lógica. A
sentença “Tudo tem uma causa” é ambı́gua. Ela pode significar que tudo
que acontece tem alguma causa ou outra - ou seja, para cada x, há um y, tal
que x é causado por y; ou isto pode significar que há algo que é a causa de
tudo - isto é, existe algum y tal que para todo x, x é causado por y. Suponha
que nós assumimos que os domı́nios relevantes dos objetos sejam as causas
e efeitos, e escrevemos “x é causado por y” como xCy. Então, podemos
escrever estes dois significados, respectivamente, como:

1. ∀x∃y xCy

2. ∃y∀x xCy

Agora, esses enunciados não são logicamente equivalentes. O primeiro


segue do segundo. Se houvesse algo que fosse a causa de tudo, então certa-
mente, tudo que acontece tem alguma causa ou outra. Mas, se tudo tem uma
causa ou outra, não se segue que existe uma e a mesma coisa que é a causa
de tudo (Compare: Todos têm uma mãe; disso não se segue que há alguém
que é a mãe de todos.)

20
Esta versão do Argumento Cosmológico trabalha com esta ambigüidade.
O que foi dito das doenças e dos carros é 1. Mas imediatamente, o argu-
mento continua a perguntar qual é a causa, assumindo que 2 é que tenha
sido estabelecido. Além disso, esta ligação é ocultada porque, em português
“Tudo tem uma causa” pode ser usada para expressar tanto 1 quanto 2.
Note, também, que não há ambigüidade se os quantificadores são trocados
por nomes. “A radiação dos cosmos é causada pelo Big Bang” não é de forma
alguma ambı́gua. Pode muito bem acontecer que a falha para distinguir entre
nomes e quantificadores seja outro motivo pelo qual se pode falhar em ver a
ambigüidade.
Então, é importante entender corretamente os quantificadores - e não
somente para a lógica. As palavras “algo”, “nada”, etc., não se referem a
objetos, mas funcionam de forma totalmente diferentes. Ou, ao menos, eles
podem. Mas, as coisas não são tão simples assim. Considere novamente o
cosmos. Ou está estendido infinitamente ao passado ou, em algum momento
especifico, veio a existir. No primeiro caso, não havia inicio, mas sempre
esteve lá; no segundo, ele começou num momento especifico. Em diferentes
épocas, a fı́sica tem de fato nos contado diferentes coisas a respeito da verdade
deste assunto. Entretanto, não se preocupem com isto. Apenas considere a
segunda possibilidade. Neste caso, o cosmos veio à existência a partir do
nada - de qualquer forma, um nada fı́sico, já que o cosmos é a totalidade de
tudo que é fı́sico. Agora considere esta sentença “O cosmos veio à existência
do nada”. Denotemos o cosmos por c e vamos escrever “x veio à existência de
y” como xEy. Então, dado o nosso conhecimento dos quantificadores, esta
sentença deveria significar ¬∃x cEx. Mas esta não significa isto, pois isto é
igualmente verdadeiro na primeira alternativa de cosmologia. Nesse caso, o
cosmos, sendo infinito no passado, não veio à existência de forma alguma. Em
particular, então, não é o caso de que o cosmos veio à existência a partir de
alguma coisa ou outra. Quando dizemos que na segunda cosmologia o cosmos
veio à existência a partir do nada, queremos dizer que veio à existência da
condição de nada (nothingness). Então, o nada pode ser algo. O Rei não era
tão tolo afinal.

21
Ideias centrais do capı́tulo

• A sentença nP é verdadeira em uma situação se o objeto referido por


n possui a propriedade expressa por P naquela situação.

• ∃x xP é verdadeira em uma situação somente se algum objeto na si-


tuação, x, é tal que xP .

• ∀x xP é verdadeira em uma situação somente se cada objeto na situ-


ação, x, é tal que xP .

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Alguém ou viu o
disparo ou ouviu o disparo; assim, ou alguém viu o disparo ou alguém ouviu
o disparo.

22
Capı́tulo 4

Descrições e Existência: Os
gregos adoravam a Zeus?

Enquanto estamos no tópico de sujeitos e predicados, há um certo tipo de


expressão que pode ser o sujeito de sentenças, que ainda não falamos a res-
peito. Os lógicos geralmente as chamam de descrições definidas, ou às vezes
apenas descrições - fique avisado que isto é apenas um termo técnico. Des-
crições são expressões como “O homem que aterrissou pela primeira vez na
lua” e “O único objeto criado pelo homem que é visı́vel do espaço”. Em
geral, descrições têm a forma: a coisa satisfazendo tal e tal condição. Se-
guindo o filósofo/matemático inglês Bertrand Russell, um dos fundadores da
lógica moderna, podemos escrevê-las como se segue. Reescreva “O homem
que aterrissou pela primeira vez na lua” como “O objeto x, tal que x é um
homem e x aterrissou primeiro na lua”. Agora escreva ιx para “o objeto x,
tal que”, e isto torna-se:
ιx(x é um homem e x aterrissou primeiro na lua).
Se escrevermos H para “é um homem” e P para “aterrissou primeiro na lua”,
temos então: ιx(xH&xP ). Em geral, uma descrição é algo da forma ιxcx ,
onde cx é alguma condição que contém ocorrências de x. (Por isso o pequeno
sub-escrito x está lá para lembrá-lo disso.)
Como descrições são sujeitos, eles podem ser combinados com predica-
dos para formar sentenças completas. Portanto, se nós escrevermos U para
“nasceu nos Estados Unidos”, então “O homem que aterrissou pela primeira
vez na lua nasceu nos Estados Unidos” fica: ιx(xH&xP )U . Vamos escre-
ver µ como uma abreviação para ιx(xH&xP ). (Eu uso uma letra grega para

23
lembrá-lo que aquilo é realmente uma descrição.) Então, isto fica µU . Analo-
gamente, “O primeiro homem a aterrissar na lua é um homem e ele aterrissou
primeiro na lua” é µH&µP .
Em termos da divisão do último capı́tulo, descrições são nomes, não quan-
tificadores. Ou seja, elas se referem a objetos - se tivermos sorte: voltaremos
a isto. Portanto, “O homem que aterrissou pela primeira vez na lua nasceu
nos Estados Unidos”, µU , é verdadeira exatamente se a pessoa particular
referida pela expressão µ tem a propriedade expressa por U .
Mas, descrições são um tipo especial de nome. Diferente do que nós po-
derı́amos chamar de nomes próprios, como “Annika” e “o Big Bang”, elas
carregam informações sobre o objeto a que se referem. Portanto, por exem-
plo, “o homem que aterrissou pela primeira vez na lua” carrega a informação
de que o objeto referido tem a propriedade de ser um homem e ser o primeiro
na lua. Isto pode parecer banal e óbvio, mas as coisas não são tão simples
como parecem. Porque as descrições carregam informações desta forma, elas
freqüentemente são centrais em discussões importantes em matemática e fi-
losofia; e uma forma de apreciar algumas destas complexidades é olhar para
um exemplo de um tal discussão. Esta é outro argumento para existência
de Deus, freqüentemente chamado de Argumento Ontológico. O argumento
vem em um número de versões, mas aqui está uma forma simples do mesmo:

Deus é o ser com todas as perfeições.


Mas, a existência é uma perfeição.
Portanto, Deus possui a existência.

Isto é, Deus existe. Se você não viu este argumento antes, ele irá parecer
um tanto desafiador. Para começar, o que é uma perfeição? Vagamente,
uma perfeição é algo como onisciência (saber tudo que é possı́vel saber),
onipotência (ser capaz de fazer tudo que pode ser feito), e ser moralmente
perfeito (agir sempre da melhor forma possı́vel). Em geral, as perfeições são
todas aquelas propriedades que são boas de se ter. Agora, a segunda premissa
diz que existência é uma perfeição. Por que isto deveria ser assim? A razão
de se supor que isso seja assim é ainda mais complexa, com suas raı́zes na
filosofia de um dos dois filósofos mais influentes da Grécia Antiga, Platão.
Felizmente, podemos contornar esta questão. Podemos fazer uma lista de
propriedades como onisciência, onipotência etc., incluir existência na lista,
e simplesmente fazer com que “perfeição” signifique qualquer propriedade

24
da lista. Além disso, podemos tomar “Deus” como sinônimo de uma certa
descrição, a saber, “o ser que possui todas as perfeições (isto é, aquelas
propriedades da lista)”. No Argumento Ontológico, ambas as premissas são
agora verdadeiras por definição, e estão fora de discussão. O argumento então
se reduz a uma linha:

O objeto que é onisciente, onipotente, moralmente perfeito,...


e existe, existe.

- e, podemos acrescentar, é onipotente, onisciente, moralmente perfeito, e


assim por diante. Isto certamente parece estar correto. Para tornar as coisas
mais transparentes, suponha que escrevemos a lista das propriedades de Deus
como P1 , P2 , ..., Pn . Então, o último, Pn , é existência. A definição de “Deus”
fica:
ιx(xP1 &xP2 &...&xPn ).
Vamos escrever isto como sendo y. Então, temos yP1 &yP2 &...&yPn (da qual
yPn se segue).
Este é um caso especial de algo mais geral, a saber: a coisa satisfazendo
tal e tal condição satisfaz aquela própria condição. Isto é freqüentemente
chamado de Principio de Caracterização (uma coisa possui aquelas proprie-
dades pelas quais ela é caracterizada). Abreviemos isto como PC. Já vimos
um exemplo de PC, com “O primeiro homem a aterrissar na lua é um homem
e ele aterrissou primeiro na lua”, µH&µP . Em geral, obtemos um caso de PC
se tomarmos alguma descrição,ιx cx , e a substituı́mos para cada ocorrência
de x na condição cx .
Agora, para toda a gente, o PC parece ser verdadeiro por definição. Claro
que as coisas possuem aquelas propriedades pelas quais elas são caracteriza-
das. Infelizmente, em geral, ele é falso. Pois, muitas coisas que seguem dele
são incontestavelmente falsas.
Para começar, podemos usá-lo para deduzir a existência de todo o tipo
de coisa que não existe realmente. Considere os números inteiros (não nega-
tivos): 0,1,2,3... Não existe o maior deles. Mas, utilizando o PC, podemos
mostrar a existência do maior número de todos. Seja cx a condição “x é o
maior número inteiro & x existe”. Seja δ a descrição ιx cx . Então, o PC nos
dá “δ é o maior número inteiro, e δ existe”. Os absurdos não terminam aı́.
Considere uma pessoa não casada, digamos o Papa. Podemos provar que ele

25
é casado. Seja cx a condição “x casou com o Papa”. Seja δ a descrição ιx cx .
O PC nós dá “δ casou com o Papa”. Então, alguém casou com o Papa, isto
é, o Papa é casado.
O que se pode dizer de tudo isto? Segue uma resposta moderna padrão.
Considere a descrição ιx cx . Se houver um único objeto que satisfaça a
condição cx , em alguma situação, então a descrição se refere a ele. Em caso
contrário, ela não se refere a nada: é um “nome vazio”. Deste modo, existe
um único x, tal que x é um homem e x aterrissou primeiro na lua, Armstrong.
Então, “o x tal que x é um homem e x aterrissou primeiro na lua”refere-se
a Armstrong. Igualmente, existe o menor número inteiro, chamado 0 (zero);
portanto, a descrição “o objeto que é o menor número inteiro” denota 0. Mas,
dado que não há o maior número inteiro, “o objeto que é o maior número
inteiro” falha ao referir-se a qualquer coisa. Igualmente, a descrição “a cidade
na Austrália que possui mais de um milhão de pessoas” também falha ao se
referir a algo. Desta vez, não pelo fato que não existe tal cidade, mas porque
existem diversas delas.
O que isto tem a ver com o PC? Bem, se houver um único objeto satisfa-
zendo cx , em alguma situação, então ιx cx refere-se a ele. Então, a instância
do PC com respeito a cx é verdadeira: ιx cx é uma dessas coisas - na verdade,
a única coisa - que satisfaz cx . Em particular, o menor número inteiro é (de
fato) o menor número inteiro; a cidade que é a capital federal da Austrália
é, de fato, a capital federal da Austrália etc. Então, alguns exemplos de PC
se mantém.
Mas, e se não houver um único objeto que satisfaça cx ? Se n é um nome e
P é um predicado, a sentença nP é verdadeira somente se houver um objeto
a que n se refira, e que tenha a propriedade expressa por P . Por isso, se
n não denota nenhum objeto, nP deve ser falso. Portanto, se não houver
uma única coisa tendo a propriedade P , (se, por exemplo, P é “é um cavalo
alado”) (ιx xP )P é falso. Como se é esperado, sob estas circunstâncias, o
PC pode falhar.
Agora, como tudo isto está contido no Argumento Ontológico? Lembre-se
que a instância do PC lá referida é yP1 &yP2 &...&yPn em que y é a descrição
ιx(xP1 &xP2 &...&xPn ). Ou existe algo satisfazendo xP1 &xP2 &...&xPn ou
não existe. Se existir, deve ser único. (Não pode haver 2 objetos onipoten-
tes: se eu sou onipotente, eu consigo fazer você parar de fazer coisas, então
você não pode ser onipotente.) Então y se refere a isto, e yP1 &yP2 &...&yPn

26
é verdadeiro. Se não houver, então y não se refere a nada; portanto cada
conjunto de yP1 &yP2 &...&yPn é falso; conseqüentemente, toda a conjunção
é falsa. Ou seja, a instância do PC usado no argumento é verdadeira apenas
se Deus existir; mas é falsa se Deus não existir. Portanto, se alguém está ar-
gumentando pela existência de Deus, ele simplesmente não pode evocar esta
instância do PC: ele estaria somente assumindo algo que supostamente deve-
ria estar provando. Os filósofos dizem que tal argumento suplica a questão;
isto é, suplica para estar admitindo exatamente o que está em questão. E,
um argumento que suplica a questão, claramente não funciona.
É o bastante para o Argumento Ontológico. Vamos terminar este capı́tulo
vendo que o apanhado das descrições que expliquei é, de certa forma, pro-
blemático por si só. De acordo com este apanhado, se δP é uma sentença
onde δ é uma descrição que não se refere a nada, ela é falsa. Mas isto não
parece estar sempre correto. Por exemplo, pareceria verdadeiro que o mais
poderoso deus da Antiga Grécia era chamado de “Zeus”, vivia no Monte
Olympus, era adorado pelos gregos e assim por diante. Ainda que não haja,
na realidade, nenhum deus grego. Eles não existiam de fato. Se isto é correto,
então a descrição “o mais poderoso deus da Antiga Grécia” não se refere a
nada. Mas, neste caso, existem sentenças tipo sujeito/predicado verdadeiras
na qual o termo sujeito falha em se referir a algo, tal como “o mais poderoso
deus da Antiga Grécia era adorado pelos gregos”. De modo tendencioso,
existem verdades sobre objetos não existentes, afinal de contas.

Ideias centrais do capı́tulo

• (ιx cx )P é verdadeiro em uma situação exatamente se, nesta situação,


houver um único objeto, a, satisfazendo cx , e aP .

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Todos queriam ganhar
o prêmio; assim, a pessoa que venceu a corrida queria ganhar o prêmio

27
Capı́tulo 5

Auto-referência: Sobre o que se


trata este capı́tulo?

Freqüentemente, as coisas parecem simples quando alguém pensa em casos


normais; mas isto pode ser enganoso. Quando se considera casos mais inco-
muns, a simplicidade pode muito bem desaparecer. Assim é com a referência.
Vimos no último capı́tulo que as coisas não são tão diretas como alguém pode
supor, quando se leva em consideração o fato de que alguns nomes podem
não se referir a nada. Outras complexidades aparecem quando consideramos
outro tipo de caso incomum: a auto-referência.
É bem possı́vel para um nome se referir a algo do qual, ele mesmo, faz
parte. Por exemplo, considere a sentença “Esta sentença contém cinco pa-
lavras”. O nome que é o sujeito desta sentença, “Esta sentença”, se refere
a toda a sentença, na qual este nome faz parte. Coisas parecidas acontecem
num conjunto de regras que contém a sentença “As regras devem ser revi-
sados por uma decisão majoritária do Departamento de Filosofia”, ou pela
pessoa que pensa “Mas se eu estou pensando este pensamento, então eu devo
estar consciente”.
Estes são todos casos relativamente não problemáticos de auto-referência.
Existem outros casos que são bem diferentes. Por exemplo, suponha que
alguém diga:

Esta própria sentença que eu estou proferindo agora é falsa.

Chame esta sentença de λ. A sentença λ é falsa ou verdadeira? Bem,


se é verdadeira, então o que é dito é o caso, portanto λ é falso. Mas se é

28
falsa, então, desde que isto é exatamente o que afirma ser, é verdadeira. Em
ambos os casos, λ pareceria ser ambos, verdadeira e falsa. A sentença é como
uma faixa de Möbius, uma configuração topológica onde, por causa de uma
torção, o interior é o exterior, e o exterior é o interior: verdade é falsidade e
falsidade é verdade.
Ou suponha qua alguém diga:

Esta própria sentença que eu estou proferindo agora é verdadeira.

Isto é verdadeiro ou falso? Bem, se é verdadeiro, é verdadeiro, dado que


isto é o que é dito. E se é falso, então é falso, dado que ela afirma que é
verdadeiro. Sendo assim, ambas, a assunção que é verdadeiro e a assunção
que é falso parecem ser consistentes. Além disso, parece não haver nenhum
outro fato que resolva a questão de qual é valor de verdade que ela possui.
Não é que ela possua algum valor que nós não saibamos, ou nem mesmo
podemos saber. Pelo contrário, pareceria (não) haver nada que a determine
como verdadeira ou falsa. Parece não ser nem verdadeira nem falsa.
Estes paradoxos são muito antigos. O primeiro deles parece ter sido des-
coberto pelo o antigo filósofo grego Eubúlides, e é freqüentemente chamado
de o paradoxo do mentiroso. Existem muitos outros, e mais recentes, para-
doxos do mesmo tipo, alguns deles têm um papel crucial nas partes centrais
do raciocı́nio matemático. Aqui está outro exemplo. Um conjunto é uma
coleção de objetos. Portanto, por exemplo, pode-se ter o conjunto de todas
as pessoas, o conjunto de todos os números, o conjunto de todas as idéias
abstratas. Conjuntos podem ser membros de outros conjuntos. Assim, por
exemplo, o conjunto de todas as pessoas numa sala é um conjunto, e, sendo
assim, é um membro do conjunto de todos os conjuntos. Alguns conjuntos
podem até mesmo ser membros de si mesmos: um conjunto de todos os obje-
tos mencionados nesta página é um objeto mencionado nesta página (acabei
de mencionar), e, portanto, é um membro de si mesmo; O conjunto de todos
os conjuntos é um conjunto, e também um membro de si mesmo. E alguns
conjuntos certamente não são membros deles mesmos: O conjunto de todas
as pessoas não é uma pessoa, e assim não é um membro do conjunto de todas
as pessoas.
Agora, considere o conjunto de todos aqueles conjuntos que não são mem-
bros deles mesmos. Chame-o R. R é um membro de si mesmo, ou não? Se é
um membro de si mesmo, então é uma das coisas que não é um membro de

29
si mesmo. Se, por outro lado, não é um membro de si mesmo, é um daqueles
conjuntos que não são membros de si mesmos, e, portanto é um membro de
si mesmo. Pareceria ambos, que R é e não é um membro de si mesmo.
Este paradoxo foi descoberto por Bertrand Russell, que nós vimos no
último capı́tulo, portanto é chamado de o paradoxo de Russell. Como o
paradoxo do mentiroso, ele tem um primo. O que diremos a respeito do
conjunto de todos os conjuntos que são membros de si mesmos. Este é um
membro de si mesmo, ou não? Bem, se é, é; Se não é, não é. Novamente,
parece não haver nada para determinar a questão de alguma forma.
O que exemplos deste tipo fazem, é desafiar a assunção que nós tivemos no
capitulo 2, que toda sentença é verdadeira ou falsa, mas nunca as duas coisas.
“Esta sentença é falsa”, e “R não é um membro de si mesmo” parecem ser
ambas verdadeiras e falsas; e os primos delas não parecem ser nem verdadeiras
nem falsas.
Como esta idéia pode ser acomodada? Simplesmente levando estas ou-
tras possibilidades em consideração. Suponha que em qualquer situação,
toda sentença é verdadeira, mas não falsa, falsa, mas não verdadeira, am-
bas verdadeira e falsa, ou nem verdadeira nem falsa. Lembre-se do capitulo
2, que as condições da verdade para negação, conjunção e disjunção são as
seguintes. Em qualquer situação:
¬a tem o valor V exatamente se a tem o valor F .
¬a tem o valor F exatamente se a tem o valor V .
a&b tem o valor V exatamente ambos a e a tem o valor V .
a&b tem o valor F exatamente se ao menos um dos a e b tem o valor F .
a ∨ b tem o valor V exatamente se ao menos um dos a e b tem o valor V .
a ∨ b tem o valor F exatamente ambos a e a tem o valor F .
Usando esta informação, é fácil calcular os valores da verdade das sen-
tenças sob o novo regime. Por exemplo:

• Suponha que a é F e não V . Então, desde que a seja F , ¬a é V (pela


primeira cláusula para negação). E desde que a não seja V , ¬a não é
F (pela segunda cláusula para negação). Assim sendo, ¬a é V , mas
não F .
• Suponha que a é V e F , e que b é apenas V . Então, ambos a e b são V ,
portanto a&b é V (pela primeira cláusula para conjunção). Mas, por

30
que a é F , ao menos uma das sentenças a e b é F , portanto, a&b é F
(pela segunda cláusula para conjunção). Portanto, a&b são ambos V e
F.
• Suponha que a é somente V , e b não é V nem F . Então desde que a
seja V , ao menos uma das a e b é V , e assim sendo a ∨ b é V (pela
primeira cláusula para disjunção). Mas desde que a não seja F , então
não é caso que a e b sejam ambas F . Portanto a ∨ b não é F (pela
segunda cláusula para disjunção). Assim sendo, a ∨ b é apenas V .

O que isto nos diz sobre a validade? Um argumento válido é ainda um


argumento onde não existe situação em que as premissas são verdadeiras, e a
conclusão não é verdadeira. E uma situação é ainda algo que dá um valor da
verdade a cada sentença relevante. Somente que agora, uma situação pode
dar a uma sentença um valor da verdade, dois, ou nenhum. Então considere a
inferência q/q ∨p. Em qualquer situação onde q tenha o valor V , as condições
para ∨ nos garante que q ∨ p também tem o valor V . (Pode também ter o
valor F , mas não importa.) Portanto, se a premissa tem o valor V , assim
também tem a conclusão. A inferência é válida.
A esta altura, vale a pena retornar à inferência que começamos no capı́tulo
2: q, ¬q/p. Como nós vimos naquele capı́tulo, dadas as assunções feitas
lá, esta inferência é válida. Mas dadas às novas assunções, as coisas são
diferentes. Para ver porque, apenas tome uma situação onde q tem o valor V
e F , mas p tem apenas o valor F . Desde que q seja ambos V e F , ¬q é também
ambos V e F . Assim sendo, ambas as premissas são V (e F também, mas
isto não é relevante), e a conclusão, p, não é V . Isto nos dá outro diagnóstico
de porque nós achamos a inferência intuitivamente inválida. Ela é inválida.
Mas isto não é o fim da questão. Como nós vimos no Capı́tulo 2, esta
inferência segue de duas outras inferências. A primeira delas (q/q ∨ p) nós
acabamos de ver como sendo válida na abordagem atual. A outra deve,
entretanto, ser inválida; e este é o caso. A outra inferência é:
q ∨ p, ¬q
p
Agora, considere a situação em que q ganha os valores V e F , e p ganha
apenas o valor F . Facilmente, verificamos que ambas as premissas possuem
o valor V (assim como F ). Mas, a conclusão não ganha o valor V . Assim
sendo, a inferência é inválida.

31
No Capı́tulo 2, eu disse que esta inferência não parecia intuitivamente
válida. Portanto, dada a nova abordagem, nossas intuições a respeito disso
devem estar erradas. Entretanto, pode-se oferecer uma explicação para este
fato. A inferência parece ser válida porque, se ¬q é verdadeiro, isto parece
eliminar a verdade de q, nos deixando com o p. Mas na abordagem atual, a
verdade de ¬q não elimina a verdade de q. Isto seria assim, somente se algo
não pudesse ser verdadeiro e falso. Quando pensamos em uma inferência
como válida, nós estamos talvez nos esquecendo de tais possibilidades, que
podem surgir em casos incomuns, como estes que são fornecidos pela auto-
referência.
Qual explicação da situação é melhor, aquela que concluı́mos no Capı́tulo
2, ou aquela que temos agora? Esta é uma questão que eu vou deixar para
você pensar a respeito. Ao invés disto, vamos terminar notando que, como
sempre, alguém pode objetar algumas das idéias na qual a nova abordagem
se apóia. Considere o paradoxo do mentiroso e o seu primo. Comece pelo
segundo. A sentença “Esta sentença é verdadeira” era supostamente para ser
um exemplo de algo que não é verdadeiro nem falso. Vamos supor que este
seja o caso. Então, em particular, não é verdadeira. Mas, ela mesma, diz ser
verdadeira. Portanto ela deve ser falsa, ao contrário da nossa suposição que
não é verdadeira nem falsa. Parece que nós acabamos em uma contradição.
Ou tome a sentença do mentiroso, “Esta sentença é falsa”. Esta sentença era
supostamente para ser um exemplo de algo que é tanto verdadeira quanto
falsa. Vamos melhorar o exemplo um pouco. Considere a sentença “Esta
sentença não é verdadeira”. Qual é o valor da verdade dela? Se for verda-
deira, então o que é dito é o caso, portanto não é verdadeira. Mas se não
é verdadeira, então, uma vez que isso é o que ela afirma, é verdadeira. De
qualquer forma, parecia ser ambos, verdadeira e não verdadeira. Novamente,
nós temos uma contradição em nossas mãos. Não é apenas que as sentenças
possam tomar os valores V e F ; pelo contrário, uma sentença pode tanto ser
V e não ser V .
São situações como esta que têm feito do assunto auto-referência muito
contundente, desde Eubúlides. É, certamente, uma questão muito difı́cil.

32
Ideias centrais do capı́tulo

• As sentenças podem ser verdadeiras, falsas, ambas, ou nenhuma delas.

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Você fez um omelete,
e não é o caso que você fez um omelete e não quebrou um ovo; assim, você
quebrou um ovo.

33
Capı́tulo 6

Necessidade e Possibilidade: O
que será deve ser?

Freqüentemente alegamos não apenas que algo é assim, mas que deve ser as-
sim. Dizemos: “Deve chover”, “Não vai deixar de chover”, “Necessariamente,
irá chover”. Também temos muitas formas de dizer que, embora algo possa,
na verdade, não ser o caso, poderia ser. Dizemos: “Poderia chover amanhã”,
“é possı́vel que chova amanhã”, “não é impossı́vel que chova amanhã”. Se
a é alguma sentença, lógicos geralmente escrevem a alegação que a deve ser
verdadeira como 2a, e a alegação que a poderia ser verdadeira como 3a.
2 e 3 são chamados operadores modais, uma vez que eles expressam
os modos nas quais as coisas são verdadeiras ou falsas (necessariamente,
possivelmente). Os dois operadores estão, na verdade, conectados. Dizer que
algo deve ser o caso é dizer que não é possı́vel que isto não seja o caso. Ou
seja, 2a significa o mesmo que ¬3¬a. Igualmente, dizer que é possı́vel que
algo seja o caso é dizer que não é necessariamente o caso que isto é falso. Ou
seja, 3a significa o mesmo que ¬2¬a. Por precaução, nós podemos expressar
o fato de que é impossı́vel para a ser verdadeiro, indiferentemente, como ¬3a
(não é possı́vel que a), ou como 2¬a (a é necessariamente falsa).
Ao contrário dos operadores que encontramos até agora, 2 e 3 não são
funções da verdade. Como vimos no Capı́tulo 2, quando se sabe o valor
de verdade de a, pode-se calcular o valor de verdade de ¬a. Similarmente,
quando se sabe os valores de verdade de a e b, pode-se calcular os valores
de verdade de a ∨ b e a&b. Mas, não se pode inferir o valor de verdade de
3a simplesmente pelo conhecimento do valor de verdade de a. Por exemplo,

34
seja r a sentença “Amanhã eu me levantarei antes das 7 horas”. Suponha
que r é, na verdade, falso. Mas, certamente poderia ser verdadeiro: Eu
poderia programar meu despertador e acordar mais cedo. Assim sendo, 3r
é verdadeiro. Mas, seja j a sentença “Eu saltarei da cama e ficarei suspenso
no ar a 2m do chão”. Assim como r, isto também é falso. Mas, ao contrário
de r, não é nem mesmo possı́vel que isso seja verdade. Porque violaria as
leis da gravidade. Assim sendo, 3j é falso. Portanto, o valor de verdade
de uma sentença, a, não determina o de 3a: r e j são ambas falsas, mas
3r é verdadeiro e 3j é falso. Similarmente, o valor de verdade de a não
determina o valor da verdade de 2a. Seja, agora, r a sentença “Amanhã,
eu me levantarei antes das 8 horas”. Isto é, de fato, verdadeiro; mas não
é necessariamente verdadeiro. Eu poderia ficar na cama. Seja, agora, j a
sentença “Se eu saltar da cama amanhã de manhã, eu terei me movido”.
Isto também é verdadeiro, mas não existe nenhum modo em que isto poderia
ser falso. É necessariamente verdadeiro. Assim sendo, r e j são ambos
verdadeiros, mas um é necessariamente verdadeiro e o outro não.
Operadores Modais são, portanto, tipos de operadores bem diferentes de
qualquer coisa que tenhamos visto até agora. Eles também são importantes
e frequentemente são operadores que nos desafiam. Para ilustrar isto, eis
aqui um argumento para o fatalismo, dado por um dos dois mais influentes
filósofos Gregos, Aristóteles.
Fatalismo é a concepção de que tudo o que acontece deve acontecer: não
poderia ter sido evitado. Quando um acidente ocorre, ou uma pessoa morre,
não há nada que poderia ter sido feito para evitá-lo. Fatalismo é uma visão
que tem atraı́do algumas pessoas. Quando algo dá errado, existe um certo
conforto que provem do pensamento de que aquilo não poderia ter sido de
outra forma. Não somente isto, fatalismo implica que eu sou incapaz de alte-
rar o que acontece, e isto parece patentemente falso. Se eu me envolver num
acidente de carro hoje, eu poderia ter evitado isto simplesmente tomando
uma rota diferente. Então, qual é o argumento de Aristóteles? Ele procede
da seguinte forma. (Por ora, ignore que o texto esteja em negrito; voltaremos
a tocar neste assunto.)
Tome qualquer alegação que quiser - digamos, a tı́tulo de ilustração, que
estarei envolvido em um acidente de trânsito amanhã. Agora, podemos não
saber ainda se isto é verdadeiro ou não, mas sabemos que estarei envolvido
em um acidente ou não. Suponha o primeiro caso. Então, como questão
de fato, estarei envolvido em um acidente de trânsito. E se é verdadeiro

35
dizer que estarei envolvido em um acidente, então não pode deixar
de ser o caso que estarei envolvido. Ou seja, deve ser o caso que estarei
envolvido. Suponha, por outro lado, que, como questão de fato, não estarei
envolvido em um acidente de trânsito amanhã. Então, é verdade dizer que
não estarei envolvido em um acidente; e sendo assim, não pode deixar de
ser o caso que não estou envolvido no acidente. Qualquer um dos dois que
acontecer, então, deve acontecer. Isto é fatalismo.
O que se poderia dizer a respeito disso? Para responder, vamos exami-
nar a concepção moderna standard dos operadores modais. Suponhamos que
toda situação, s, venha acompanhada de um feixe de possibilidades, isto é, si-
tuações que são possı́veis no que diz respeito a s - a serem definidas, digamos,
como as situações que poderiam surgir sem que se violassem as leis da fı́sica.
Assim sendo, se s é uma situação em que eu estou presentemente (estando
na Austrália), estar em Londres por uma semana é uma situação possı́vel;
enquanto que estar em Alfa Centauros (a mais de 4 anos-luz de distância) não
é. Segundo o filósofo e lógico do século 17, Leibniz, lógicos frequentemente
chamam estas situações possı́veis, de modo divertido, de mundos possı́veis.
Agora, dizer que 3a (é possivelmente o caso que a) é verdadeiro em s, é
apenas dizer que a é verdadeiro em ao menos um dos mundos associados
com s. E dizer que 2a (é necessariamente o caso que a) é verdadeiro em s,
é apenas dizer que a é verdadeiro em todos os mundos possı́veis associados
com s. Por isso, 2 e 3 não são funções da verdade. Porque a e b podem
ter o mesmo valor da verdade em s, digamos F , mas podem ter diferentes
valores da verdade nos mundos associados com s. Por exemplo, a pode ser
verdadeiro em um dos mundos (digamos, s′ ), mas b pode não ser verdadeiro
em nenhum, da seguinte forma:

s s′
a:F a:V

b:F b:F

Essa abordagem nos fornece uma maneira de analisar inferências que

36
empregam operadores modais. Por exemplo, considere a inferência:
3a 3b
3(a&b)
Isso é inválido. Para ver o porquê, suponha que as situações associadas
com s são s1 e s2 , e que os valores de verdade são como se segue:

a:F

b:F

a:V a:F
s1 s2
b:F b:V

a é V em s1 , portanto 3a é verdadeiro em s. Similarmente, b é verdadeiro em


s2 ; portanto 3b é verdadeiro em s. Mas, a&b não é verdadeiro em nenhum
mundo associado; portanto 3(a&b) não é verdadeiro em s.
Em contraste, a seguinte inferência é válida:
2a 2b
.
2(a&b)

Pois, se as premissas são verdadeiras em uma situação s, então a e b são ver-


dadeiros em todos os mundos associados com s. Mas, então, a&b é verdadeira
em todos aqueles mundos. Isto é, 2(a&b) é verdadeira em s.
Antes de voltarmos à questão de como isso se relaciona com o argumento
de Aristóteles, devemos mencionar brevemente um outro operador lógico,

37
com o qual ainda não nos encontramos. Escrevamos ‘se a então b’ como a →
b. Sentenças dessa forma são chamadas condicionais, e serão a nossa principal
preocupação no próximo capı́tulo. Por enquanto, tudo o que precisamos notar
é que a principal inferência na qual condicionais parecem estar envolvidos é
essa:
a a→b
b
(Por exemplo: ‘Se ela se exercita frequentemente, então ela está em forma.
Ela se exercita frequentemente; então ela está em forma’.) Lógicos modernos
costumam chamar essa inferência pelo nome dado a ela pelos lógicos medi-
evais: modus ponens. Literalmente isso significa ‘o modo de colocar’. (Não
me pergunte.)
Agora, para considerar o argumento de Aristóteles, precisamos pensar um
pouco a respeito de condicionais da forma:

se a então não pode deixar de ser o caso que b.

Tais sentenças são, de fato, ambı́guas. Uma coisa que elas podem signi-
ficar é que se a, de fato, é verdadeira, então b é necessariamente verdadeira.
Isto é, se a é verdadeira na situação de que estamos falando, s, então b é
verdadeira em todas as situações possı́veis associadas a s. Podemos escrever
isso como a → 2b. A sentença está sendo usada desta maneira quando di-
zemos coisas como: ‘Você não pode mudar o passado. Se algo foi verdadeiro
no passado então esse algo não pode hoje deixar de ter sido verdadeiro. Não
há nada que você possa fazer a respeito: É irrevogavel’.
O outro significado de um condicional da forma ‘se a então não pode
deixar de ser o caso que s’ é bastante diferente. Frequentemente usamos
essa expressão para dizer que b se segue de a. Estarı́amos usando a sentença
desta maneira se disséssemos ‘Se Fred vai se divorciar então ele é necessaria-
mente casado’. Não estamos dizendo que se Fred vai se divorciar, então seu
casamento é irrevogável. Estamos dizendo que você não pode se divorciar
sem ser casado. Não há uma situação possı́vel onde acontece uma coisa e a
outra não. Isto é, em qualquer situação possı́vel, se uma é verdadeira, então
a outra também é. Isto é, 2(a → b) é verdadeira.
Agora a → 2b e 2(a → b) significam coisas bem diferentes. E certamente,
a primeira não se segue da segunda. O mero fato de que a → b seja verdadeira
em toda situação associada a s não significa que a → 2b é verdadeira em s.

38
a pode ser verdadeira em s sem que 2b seja: tanto b quanto a podem ser
falsos em algum mundo associado. Ou para dar um contra-exemplo concreto:
é necessariamente verdadeiro que se Jonh vai se divorciar, ele é casado; mas
certamente não é verdade que se Jonh vai se divorciar ele é necessariamente
(irrevogavelmente) casado.
Voltando finalmente ao argumento de Aristóteles, considere a sentença
colocada em negrito: ‘Se é verdade dizer que me envolverei em um acidente,
então não pode deixar de ser o caso que eu me envolverei’. Isso é exatamente
da forma de que estávamos falando. E é, portanto, ambı́guo. Além disso, o
argumento se fia nesta ambiguidade. Se a é a sentença ‘É verdadeiro dizer
que me envolverei em um acidente de trânsito’ e b é a sentença ‘Me envolverei
(em um acidente de trânsito)’, então o condicional em negrito é verdadeiro
no sentido:
1. 2(a → b).
Necessariamente, se é verdadeiro dizer algo, então este algo é de fato o
caso. Mas o que precisaria ser estabelecido é:
2. a → 2b.
Afinal de contas, o próximo passo do argumento é inferir 2b a partir de
a por modus ponens. Mas, como vimos, 2 de maneira nenhuma se segue
de 1. Assim, o argumento de Aristóteles é inválido. Em grande medida, o
mesmı́ssimo problema aparece na segunda parte do argumento, com o condi-
cional ‘Se é verdadeiro dizer que eu não me envolverei em um acidente, então
não pode deixar de ser o caso que eu não me envolva em um acidente’.
Isso parece ser uma resposta satisfatória ao argumento de Aristóteles.
Mas, há uma variação do argumento que não tem resposta tão fácil. Volte
ao exemplo que tı́nhamos sobre mudar o passado. Parece mesmo verdadeiro
que se alguma sentença sobre o passado é verdadeira, ela é hoje necessaria-
mente verdadeira. É impossı́vel, agora, transformá-la em falsa. A Batalha
de Hastings se deu em 1066, e não há, hoje, nada que possamos fazer para
que ela tenha se dado em 1067. Portanto, se p é um enunciado a respeito do
passado, então p → 2p.
Considere agora um enunciado a respeito do futuro. De novo, por exem-
plo, seja a afirmação de que me envolverei em um acidente de trânsito
amanhã. Suponha que isso é verdade. Segue-se que se alguém disse isso
100 anos atrás, então este alguém disse a verdade. E mesmo se ninguém

39
nunca dissesse isso, se tivesse dito teria dito a verdade. Assim, que eu me
envolverei em um acidente amanhã era verdade há 100 anos. Esse enunciado
(p) é certamente um enunciado a respeito do passado, e portanto, uma vez
verdadeiro, é necessariamente verdadeiro (2p). Então, deve ser necessari-
amente verdadeiro que me envolverei em um acidente amanhã. Mas, isso
era apenas um exemplo; o mesmo raciocı́nio poderia ser aplicado a qualquer
coisa. Assim, o que quer que aconteça, deve acontecer. Este argumento em
favor do fatalismo não comete a mesma falácia (isto é, o mesmo argumento
inválido) que o considerado anteriormente. No fim das contas, o fatalismo é
verdadeiro?

Ideias centrais do capı́tulo

• Cada situação vem associada a uma coleção de situações possı́veis.

• 2a é verdadeira em uma situação, s, se a é verdadeira em todas as


situações associadas a s.

• 3a é verdadeira em uma situação, s, se a é verdadeira em alguma a


situação associada a s.

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. É impossı́vel para por-
cos voarem, e é impossı́vel para porcos respirarem debaixo d’água; portanto,
deve ser o caso que os porcos nem voem e nem respirem debaixo d’água.

40
Capı́tulo 7

Condicionais: O que está


contido em um se?

Neste capı́tulo, nos voltaremos para o operador lógico que apresentei de pas-
sagem no capı́tulo anterior, o condicional. Lembre-se que um condicional é
uma sentença da forma ‘se a então c’, que escrevemos como a → c. Lógicos
chamam a de antecedente do condicional, e c de consequente. Notamos
também que uma das mais fundamentais inferências a respeito do condi-
cional é o modus ponens: a, a → b/c. Os condicionais são fundamentais para
muito do nosso entendimento. O capı́tulo anterior mostrou apenas um exem-
plo disto. Mesmo assim, eles são profundamente difı́ceis de entender. Eles
têm sido estudados em lógica desde os tempos mais antigos. Na verdade, foi
reportado por um antigo comentarista (Callimachus) que uma vez até mesmo
os corvos nos telhados estavam gorjeando a respeito dos condicionais.
Vamos ver porque - ou, pelo menos, um motivo do porque - os condicionais
são difı́ceis de entender. Se você sabe que a → c, parece que você poderia
inferir que ¬(a&¬c) (não é o caso que a e não c). Suponha, por exemplo, que
alguém lhe informa que se perder o ônibus, vai chegar atrasado. Você pode
inferir disto que é falso que você perderá o ônibus e não chegará atrasado.
Inversamente, se você sabe que ¬(a&¬c), parece que você poderia inferir
a → c disto. Suponha, por exemplo, que alguém lhe diga que você não irá
ao cinema sem gastar dinheiro (não é o caso que vá ao cinema e não gaste
dinheiro). Você pode inferir que se for ao cinema, irá gastar dinheiro.
¬(a&¬c) é freqüentemente escrita como a ⊃ c, e chamado de condicional
material. Portanto, parece que a → c e a ⊃ c significariam a mesma coisa.

41
Em particular, assumindo a maquinaria do Capı́tulo 2, eles devem ter a
mesma tabela da verdade. É um exercı́cio simples, que eu deixo para você,
mostrar que isto é da seguinte forma:

a c a⊃c
V V V
V F F
F V V
F F V

Mas isto é estranho. Significa que se c é verdadeiro em uma situação


(primeira e terceira fileiras), então a → c também é. Isto dificilmente pa-
rece correto. É verdadeiro, por exemplo, que Canberra é a capital federal
da Austrália, mas o condicional ‘Se Canberra não for a capital federal da
Austrália, então Canberra é a capital federal da Austrália’ parece certamente
falso. Igualmente, a tabela da verdade nos mostra que se a é falso (terceira
e quarta fileiras), a → c é verdadeiro. Mas, isto dificilmente parece correto
também. O condicional ‘Se Sydney for a capital federal da Austrália, então
Brisbane é a capital federal’ também aparece claramente falso. O que deu
errado?
O que estes exemplos parecem mostrar é que → não é uma função da
verdade: o valor da verdade de a → c não é determinado pelos valores da
verdade de a e c. Ambas ‘Roma é na França’ e ‘Beijing é na França’ são
falsas; mas é verdadeiro que:

Se a Itália for parte da França, então Roma é na França.

Enquanto é falso que:

Se a Itália for parte da França, então Beijing é na França.

Então, como funcionam os condicionais?


Uma resposta pode ser dada usando o mecanismo de mundos possı́veis
do último capı́tulo. Considere os dois últimos condicionais. Em qualquer
situação possı́vel na qual a Itália foi incorporada à França, Roma seria cer-
tamente na França, mas isto não tem nenhum efeito na China. Portanto,
Beijing ainda não seria na França. Isto sugere que o condicional a → c é
verdadeiro em algumas situações, s, somente se c é verdadeiro em todas as

42
situações possı́veis associadas com s na qual a é verdadeiro; e é falso em s se
c for falso em algumas das possı́veis situações associadas com s na qual a é
verdadeira.
Isto nos dá um apanhado plausı́vel de →. Por exemplo, isto mostra
porque modus ponens é válido - pelo menos sob uma hipótese. A hipótese é
que nós contamos o próprio s como uma das situações possı́veis associadas
com s. Isto parece razoável: qualquer coisa que é verdadeiramente o caso em
s é certamente possı́vel. Agora, suponha que a e a → c são verdadeiros em
alguma situação s. Então, c é verdadeiro em todas as situações associadas
com s na qual a é verdadeiro. Mas, s é uma destas situações, e a é verdadeiro
nela. Assim sendo, c também é, como querı́amos.
Voltando ao argumento com que nós começamos, podemos ver agora onde
ele falha. A inferência na qual o argumento repousa é:

¬(a&¬c)
a→c
E isto não é válido. Por exemplo, se a for F em alguma situação s, isto é
suficiente para fazer a premissa verdadeira em s. Mas isto não nos diz nada
sobre como a e c se comportam nas possı́veis situações associadas com s.
Poderia muito bem acontecer que em uma destas, digamos s′ , a é verdadeira
e c não é, desta forma:

s s′
a:F a:V

c:F c:F

Portanto, a → c não é verdadeiro em s.


E quanto ao exemplo que vimos antes, em que você é informado que não
irá ao cinema sem gastar dinheiro. A inferência não parece válida neste caso?
Suponha que você sabe que não irá ao cinema sem gastar dinheiro: ¬(g&¬m).
Você realmente está obrigado a concluir que se você for ao cinema gastará
dinheiro: g → m? Não necessariamente. Suponha que você não está indo ao

43
cinema, não importa as circunstâncias, mesmo que o ingresso seja grátis esta
noite. (Tem um programa na TV que é bem mais interessante.) Então, você
sabe que não é verdade que vai ao cinema (¬g), e então que não é verdadeiro
que você vai ao cinema e não gastará dinheiro: ¬(g&¬m). Então, você está
obrigado a inferir que se você for gastará dinheiro? Certamente não: pode
ser uma noite gratuita.
É importante perceber que no tipo de situação em que você aprende que
a premissa é verdadeira por ter sido informado dela, outros fatores estão
normalmente operando. Quando alguém lhe diz algo como: ¬(g&¬m), nor-
malmente não se faz isto com base em que se sabe que ¬g é verdadeiro.
(Se sabe-se isto, normalmente não haveria motivo para dizer a você qualquer
coisa sobre a situação.) Se se lhe dizem isto, é com base em que existe alguma
conexão entre g e m: que você não consegue que g seja verdadeiro sem que
m seja verdadeiro - e é exatamente o que é necessário para o condicional ser
verdadeiro. Então, neste caso, em que você é informado da premissa, seria
normalmente razoável inferir que g → m; mas não do conteúdo do que foi
dito - pelo contrário, do fato de que isto foi dito.
Na verdade, frequentemente fazemos inferências corretas deste tipo sem
pensar. Suponha, por exemplo, que eu pergunte a alguém como fazer meu
computador executar uma coisa ou outra, e eles respondem ‘Há um manual na
prateleira’. Eu infiro que é um manual de computador. Isto não se segue do
que na verdade foi dito, mas o comentário não teria sido relevante ao menos
que o manual fosse um manual de computador, e as pessoas normalmente são
relevantes no que dizem. Assim sendo, eu posso concluir que é um manual
de computador do fato que eles disseram aquilo. A inferência não é uma
inferência dedutiva. Pois, a pessoa poderia ter dito isto, e não ser um manual
de computador. Mas, a inferência é ainda uma excelente inferência indutiva.
Ela é de um tipo geralmente chamado de implicatura conversacional.
O apanhado do condicional que acabamos de ver parece se sair bem - ao
menos até onde temos olhado. Todavia, ele possui um número de problemas.
Aqui está um. Considere as seguintes inferências:

Se você for a Roma você estará na Itália.


Se você está na Itália, você estará na Europa.
Portanto, se você for a Roma, você estará na Europa.

44
Se x é maior que 10, então x é maior do que 5.
Portanto, se x é maior que 10 e menor que 100, então x é maior
que 5.

Estas inferências parecem perfeitamente validas, e portanto elas estão na


presente abordagem. Podemos escrever a primeira inferência como:
a→b b→c
1.
a→c
Para ver que isto se revela válido, suponha que as premissas são verdadeiras
em alguma situação, s. Então, b é verdadeira em toda situação possı́vel
associada com s em que a é verdadeiro; e da mesma forma, c é verdadeiro
em toda situação associada em que b é verdadeiro. Portanto, c é verdadeiro
em toda situação em que a é verdadeiro. Em outras palavras, a → c é
verdadeiro em s.
Podemos escrever a segunda inferência como:
a→c
2.
(a&b) → c
Para ver que esta se revela válida, suponha que a premissa é verdadeira
em alguma situação, s. Então, c é verdadeiro em toda situação possı́vel
associada com s em que a é verdadeira. Agora, suponha a&b é verdadeiro
em uma situação associada; então a é certamente verdadeiro nesta situação
e, assim, c também é. Logo, (a&b) → c é verdadeiro em s.
Por enquanto tudo bem. O problema é que há inferências que possuem
exatamente estas formas, mas que parecem serem inválidas. Por exemplo,
suponha que há uma eleição para Primeiro Ministro com apenas dois candi-
datos, Smith, o Primeiro Ministro atual, e Jones. Agora considere a seguinte
inferência:

Se Smith morrer antes das eleições, Jones irá vencer. Se Jones


vencer a eleição, Smith irá se aposentar e receber sua pensão. As-
sim sendo, se Smith morrer antes das eleições, ele irá se aposentar
e receber sua pensão.

Esta inferência é exatamente da forma 1. Mas parece claro que poderia


haver uma situação em que ambas as premissas são verdadeiras. Mas, a

45
conclusão não - a menos que estejamos considerando a situação bizarra na
qual o governo pode pagar pensão após a morte!
Ou considere a seguinte inferência que se refere a Smith:

Se Smith pular do topo de um alto precipı́cio, ele irá morrer da


queda. Assim sendo, se Smith pular do topo de um alto precipı́cio
e usar pára-quedas, ele irá morrer da queda.

Esta é uma inferência da forma 2. Ainda assim, novamente, parece claro que
poderia haver situações em que a premissa é verdadeira e a conclusão não é.
O que alguém diria acerca deste estado de coisas? Deixarei para você
pensar a respeito disto. Apesar do fato dos condicionais serem centrais na
maneira que raciocinamos sobre a maioria das coisas, eles são umas das áreas
mais desafiantes da lógica. Se os pássaros não estão mais gorjeando sobre os
condicionais, lógicos certamente estão.

Ideias centrais do capı́tulo

• a → b é verdadeiro em uma situação s, exatamente quando b for ver-


dadeiro em toda situação associada a s em que a é verdadeiro.

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Se você acredita em
Deus, então você vai a igreja. Mas, você vai a igreja. Portanto, você acredita
em Deus.

46
Capı́tulo 8

O tempo é real?

O tempo é uma coisa com a qual estamos todos acostumados. Planejamos fa-
zer coisas no futuro; lembramos de coisas do passado; e às vezes simplesmente
aproveitamos o presente. E parte da maneira com a qual nos orientamos no
tempo envolve fazer inferências a respeito dele. Por exemplo, as seguintes
inferências são intuitivamente válidas:
Está chovendo. Será verdadeiro que sempre tem chovido.
Terá chovido. Está chovendo.
Tudo isso parece elementar.
Mas, assim que começamos a pensar sobre o tempo, metemo-nos em um
monte de enroscos. Como disse Agostinho, se ninguém me perguntar o que
é o tempo, eu sei muito bem; mas quando alguém me pergunta, eu já não
sei. Uma das coisas mais intrigantes a respeito do tempo é que ele parece
fluir. O presente parece se mover: primeiro é hoje; depois é amanhã; e assim
por diante. Mas como o tempo pode mudar? O tempo é aquilo que mede o
ritmo no qual todas as demais coisas mudam. Este problema é o cerne de
várias questões enigmáticas envolvendo o tempo. Uma destas questões foi
colocada no começo do século vinte pelo filósofo britânico John McTaggart
Ellis McTaggart. (É isso mesmo.) Tal como muitos filósofos, McTaggart
ficou tentado pela visão de que o tempo é irreal - que, em última análise, o
tempo é uma ilusão.
Para apresentar o argumento de McTarggart, um pouco de simbolismo
será útil. Tomemos uma sentença conjugada no passado, como ‘O sol bri-
lhava’. Podemos expressar isso de maneira equivalente, ainda que um pouco

47
estranha, como ‘foi o caso que o sol está brilhando’. Vamos escrever ‘foi o
caso que’ como P (de ‘passado’). Então, podemos escrever essa sentença
como ‘P o sol está brilhando’, ou, escrevendo ‘s’ para ‘O sol está brilhando’,
escrevemos simplesmente Ps. De modo similar, tome qualquer sentença con-
jugada no futuro, digamos, ‘O sol brilhará’. Podemos escrever esta frase
como ‘Será o caso que o sol está brilhando’. Se escrevermos ‘Será o caso que’
como F (de ‘futuro’), então podemos escrever isso como Fs. (Não confunda
esse F com o valor de verdade F .)
P e F são operadores, tais como 2 e 3, que se aplicam a sentenças com-
pletas para formar sentenças completas. Além disso, assim como 2 e 3, P e
F não são funções de verdade. ‘São quatro da tarde’ e ‘São quatro da tarde
de dois de agosto de 1999’ são ambas sentenças verdadeiras (no momento em
que estou escrevendo); ‘Serão quatro da tarde’ também é verdadeiro (nesse
instante) - são quatro da tarde uma vez por dia - muito embora ‘serão quatro
da tarde de dois de agosto de 1999’ não seja. Os lógicos chamam P e F de
operadores temporais. Operadores temporais podem ser iterados, ou com-
postos. Podemos dizer, por exemplo, ‘O sol terá brilhado’, isto é ‘será o caso
que terá sido o caso que o sol está brilhando’: FPs. Ou podemos dizer ‘O
sol havia brilhado’, isto é, ‘foi o caso que foi o caso que o sol está brilhando’:
PPs. (Os operadores modais que encontramos no último capı́tulo também
podem ser iterados desta forma, apesar de não termos considerado isso lá.)
Nem todas as iterações de operadores temporais correspondem a expressões
claras e breves na linguagem cotidiana. Não há, por exemplo, modo muito
melhor de dizer FPFs do que o nada bom ‘será o caso que terá sido o caso
que será o caso que o sol está brilhando’. As iterações, no entanto, fazem
perfeito sentido gramatical. Podemos chamar as iterações de P e F, tais
como FP, PP, FFP, de flexões compostas.
Voltemos a McTaggart. Ele pensou que não haveria tempo a menos que
houvesse passado e futuro: estes fazem parte de sua essência. No entanto,
ser passado e ser futuro, ele argumentou, são inerentemente contraditórios;
então, nada na realidade pode corresponder a ambos. Bom, talvez. Mas
por que o passado e o futuro são contraditórios? Para começo de conversa,
passado e futuro são incompatı́veis. Se algum evento instantâneo é passado,
ele não é futuro e vice-versa. Seja e um evento instantâneo. Pode ser o que
você quiser, mas digamos que seja o atravessar da primeira bala pelo coração
do Czar Nicolau na Revolução Russa. Seja h a sentença ‘e está ocorrendo’.

48
Então, temos:
¬(Ph & Fh).
Mas e, assim como todos os eventos, é passado e é futuro. Uma vez que o
tempo flui, todos os eventos são futuros (antes de acontecerem) e passados
(depois de terem acontecido):

Ph & Fh.

Assim, temos uma contradição.


Este argumento não parece convencer ninguém por muito tempo. Um
evento não pode ser passado e futuro ao mesmo tempo. O instante em que a
bala atravessou o coração do Czar foi passado e futuro em momentos diferen-
tes. Começou como futuro; tornou-se presente num instante doloroso; e então
foi passado. Mas agora - e esta é a parte sagaz do argumento de McTaggart
- o que estamos dizendo aqui? Estamos aplicando flexões compostas a h.
Estamos dizendo que foi o caso que o evento foi futuro, PFh; depois foi o
caso que o evento foi passado, PPh. Agora, muitas flexões compostas, assim
como flexões simples, são incompatı́veis. Por exemplo, se qualquer evento
será futuro, não é o caso que foi passado:

¬(PPh & FFh).

Mas, da mesma forma que com as flexões simples, o fluxo do tempo é su-
ficiente para garantir que todos os eventos também têm todas as flexões
compostas. No passado, Fh; então no passado distante FFh. No futuro, Ph;
então no futuro distante, PPh:

PPh & FFh.

E estamos novamente com uma contradição.


Aqueles que mantiveram o tino sobre a questão responderão, como antes,
que h tem suas flexões compostas em momentos diferentes. Foi o caso que
FFh; então, mais tarde, foi o caso que PPh. Mas o que estamos dizendo?
Estamos aplicando flexões mais complexas a h: PFFh e PPPh; e, nova-
mente, podemos desenvolver exatamente o mesmo argumento. Essas flexões
compostas não são todas consistentes entre si, mas a passagem do tempo
garante que h possui todas elas. Podemos dar a mesma resposta de novo,
mas esta também está sujeita à mesma contra resposta. Quando quer que

49
tentemos nos livrar da contradição com um conjunto de flexões, tudo o que
fazemos é descrever as coisas em termos de flexões que são igualmente con-
traditórias; logo, nunca escapamos da contradição. Esse é o argumento de
McTaggart.
O que dizer sobre isso? Para a resposta, examinemos a validade de in-
ferências envolvendo flexões temporais. Para tanto, supomos que cada si-
tuação, s0 , é acompanhada de várias outras situações - não, dessa vez, si-
tuações que representam possibilidades associadas com s0 (como com os ope-
radores modais), mas situações que são ou antes de s0 ou depois de s0 . Assu-
mindo, como fazemos normalmente, que o tempo é unidimensional e infinito
em ambas as direções, passado e futuro, podemos representar as situações de
maneira familiar:

. . . s−3 s−2 s−1 s0 s1 s2 s3 . . .

Esquerda é antes, direita é depois. Como de costume, cada s fornece


um valor de verdade, V ou F , para cada sentença sem flexões temporais.
E as sentenças com flexões temporais? Bem, Pa é V em uma situação s,
exatamente se a é verdadeiro em alguma situação à esquerda de s; e Fa é
verdadeiro em s, exatamente se a é verdadeiro em alguma situação à direita
de s.
Enquanto estamos fazendo tudo isso, podemos adicionar dois operadores
temporais, G e H. G pode ser lido ‘Sempre será o caso que’, e Ga é verda-
deiro em uma situação s, exatamente se a é verdadeiro em todas as situações
à direita de s. H pode ser lido ‘Sempre foi o caso que’, e Ha é verdadeiro
em uma situação s, exatamente se a é verdadeiro em todas as situações à
esquerda de s. (G e H correspondem, respectivamente, a F e P, exatamente
da mesma forma que 2 correponde a 3.)
Essa maquinaria nos mostra o porque as inferências com as quais começa-
mos o capı́tulo são válidas. Empregando os operadores temporais, tais in-
ferências podem ser escritas, respectivamente, como:
r FHr
FPr r
A primeira inferência é válida, já que se r é verdadeiro em alguma situação
s0 , então em qualquer situação à direita de s0 , digamos s1 , Pr é verdadeiro

50
(já que s0 está à esquerda). Mas então, FPr é verdadeiro em s0 , já que s1
esta à sua direita. Podemos representar isso assim:

. . . s−3 s−2 s−1 s0 s1 s2 s3 . . .


r
Pr
FPr

A segunda inferência é válida, já que se FHr é verdadeiro em s0 , então em


alguma situação à direita de s0 , digamos s2 , Hr é verdadeiro. Mas, então,
em todas as situações à esquerda de s2 , e em particular em s0 , r é verdadeiro:

. . . s−3 s−2 s−1 s0 s1 s2 s3 . . .


FHr
Hr
r r r r r

Além disso, certas combinações de operadores temporais são impossı́veis,


como é de se esperar. Assim, se h é uma sentença que é verdadeira em
apenas uma situação, digamos s0 , então Ph&Fh é falsa em toda s. Ambos
conjuntos são falsos em s0 ; o primeiro conjunto é falso à esquerda de s0 ; o
segundo conjunto é falso à direita. De maneira similar, e.g., PPh&FFh é
falso em toda s. Deixo para você checar os detalhes.
Agora, como isso tudo se relaciona com o argumento de McTaggart? O
ponto principal do argumento, lembre-se, era que dado que h tem todas as
possı́veis flexões temporais, nunca é possı́vel evitar a contradição. Resolver
a contradição em um nı́vel de complexidade de flexão temporal apenas cria
a contradição em outro nı́vel. O tratamento que acabamos de dar às flexões
temporais mostra que isso é falso. Supponha que h é verdadeiro apenas em s0 .
Então, qualquer sentença com flexões compostas envolvendo h é verdadeira
em algum lugar. Considere, por exemplo, FPPFh. Isso é verdade em S−2 ,
como mostra o seguinte diagrama:

. . . s−3 s−2 s−1 s0 s1 s2 s3 . . .


h
Fh
FPh
PPFh
FPPFh

51
É claro que podemos fazer o mesmo para toda flexão composta de F e P,
ziguezagueado à esquerda ou à direita, conforme for requerido. E tudo isso
é perfeitamente consistente. A infinidade de situações diferentes nos permite
atribuir à h todos as suas flexões verbais sem violar as várias incompati-
bilidades entre elas, e.g., ter Fh e Ph verdadeiros na mesma situação. O
argumento de McTaggart, portanto, falha.
Essa é uma resposta confortante para aqueles que crêem na realidade do
tempo. Mas os que concordam com McTaggart podem não estar convencidos
pelas nossas considerações. Suponha que eu dê um conjunto de especificações
para a construção de uma casa: a porta da frente fica aqui, uma janela ali...
Como você sabe que todas as especificações são consistentes? Como você
sabe que, quando for construir, tudo funcionará, e você não será solicitado a,
por exemplo, colocar a porta em uma posição incompatı́vel? Uma maneira é
construir um modelo em escala de acordo com as especificações. Se tal modelo
pode ser construı́do, as especificações são consistentes. Isso é exatamente o
que fizemos com o nosso discurso flexionado. O modelo é a sequência de
situações, junto com a maneira de atribuir V ou F às sentenças flexionadas.
É um pouco mais abstrato do que uma maquete de uma casa, mas o princı́pio
é essencialmente o mesmo.
No entanto, é possı́vel fazer objeções a um modelo. Às vezes um modelo
deixa de representar coisas importantes. Num modelo em escala de uma casa,
por exemplo, uma viga pode não ceder porque está sujeita a muito menos
força do que a viga correspondente está sujeita na construção propriamente
dita. A viga propriamente dita pode estar sujeita a uma carga insustentável,
fazendo com que a construção da casa seja impossı́vel - a despeito da maquete.
De forma similar, podem sugerir que nosso modelo do tempo ignora coisas
importantes. Afinal, o que fizemos foi construir um modelo espacial do tempo
(esquerda, direita, etc.). Mas tempo e espaço são coisas bastante diferentes.
O espaço não flui da maneira que o tempo flui (seja lá o que, de fato, isso
possa significar). Agora, é exatamente a fluidez do tempo que produz a
suposta contradição à qual McTaggart se refere. Não é de se espantar que
ela não apareça no modelo! Então o que é, exatamente, que está faltando em
nosso modelo? E uma vez que isso seja levado em consideração, a contradição
reaparece?

52
Ideias centrais do capı́tulo

• Toda situação é acompanhada de uma coleção de situações anteriores


e posteriores.

• Fa é verdadeiro em uma situação se a é verdadeiro em alguma situação


posterior.

• Pa é verdadeiro em uma situação se a é verdadeiro em alguma situação


anterior.

• Ga é verdadeiro em uma situação se a é verdadeiro em toda situação


posterior.

• Ha é verdadeiro em uma situação se a é verdadeiro em toda situação


anterior.

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Sempre esteve cho-
vendo e sempre estará chovendo; portanto, está chovendo agora.

53
Capı́tulo 9

Identidade e mudança: Tudo é


sempre o mesmo?

Ainda não terminamos de falar sobre tempo. Tempo está envolvido em vários
outros enigmas, um dos quais olharemos neste capı́tulo. Este tipo é refe-
rente a problemas que surgem quando as coisas mudam; e especificamente,
a questão do que é dito sobre a identidade dos objetos que mudam através
do tempo.
Eis aqui um exemplo. Todos pensamos que objetos podem sobreviver
através da mudança. Por exemplo, quando eu pinto um armário, ainda que
a sua cor possa mudar, ele ainda é o mesmo armário. Ou quando você
muda o seu penteado, ou se você infelizmente tiver o azar de perder um
membro, você ainda será você. Mas como algo pode sobreviver à mudança?
Afinal, quando você muda seu penteado, a pessoa que resulta é diferente,
não é a mesma de forma alguma. E se a pessoa está diferente, é uma pessoa
diferente; então o velho você deixou de existir. De forma exatamente igual,
pode ser argumentado, nenhum objeto persiste através de qualquer mudança.
Qualquer mudança significa que o velho objeto deixa de existir e é substituı́do
por um outro objeto bem diferente.
Argumentos como este aparecem em vários lugares na história da filosofia,
mas seria geralmente aceito pelos lógicos, agora, que eles estão errados, e
repousam em uma simples ambiguidade. Devemos distinguir entre um objeto
e a suas propriedades. Quando dizemos que você, com um outro penteado, é
diferente, estamos dizendo que você tem propriedades diferentes. Não quer
dizer que você é literalmente uma pessoa diferente, da mesma forma que eu

54
sou diferente de você.
Um motivo pelo qual uma pessoa pode falhar ao distinguir entre ser um
certo objeto e ter certa propriedade é que, em português, o verbo ‘ser’ e
suas várias formas gramaticais - ‘é’, ‘sou’, e assim por diante - podem ser
usados para expressar ambas estas coisas. (E o mesmo serve para palavras
similares em outros idiomas.) Se dissermos ‘A mesa é vermelha’, ‘O seu
cabelo está curto agora’, e coisas parecidas, estamos atribuindo propriedades
a um objeto. Mas, se alguém disser ‘Eu sou Graham Priest’, ‘A pessoa que
venceu a corrida é a mesma pessoa que venceu ano passado’ e assim por
diante, então eles estão identificando um objeto de uma certa forma. Em
outras palavras, eles estão expressando a sua identidade.
Lógicos chamam o primeiro uso de ‘é’ o ‘é’ da predicação; eles chamam
o segundo uso de ‘é’ o ‘é’ da identidade. E por eles terem de alguma forma
propriedades diferentes, eles o escrevem de formas diferentes. O ‘é’ da pre-
dicação nós já conhecemos no Capı́tulo 3. ‘John é vermelho’ é tipicamente
escrito na forma jR. (Na verdade, como eu observei no Capı́tulo 3, é mais
comum escrever isto de forma contrária, Rj.) O ‘é’ de identidade é escrito
com =, parecido com a matemática da escola. Assim sendo, ‘John é a pessoa
que venceu a corrida’ é escrito: j = w. (O nome w é uma descrição aqui;
mas isto não tem importância na questão presente.) Frases como estas são
chamadas identidades.
Quais propriedades a identidade possui? Primeiro, ela é uma relação.
Uma relação é algo que conecta dois objetos. Por exemplo, ver é uma relação.
Se dissermos ‘John vê Mary’, estamos expressando uma relação entre eles. Os
objetos conectados pela relação não têm de ser necessariamente diferentes. Se
dissermos ‘John vê a si mesmo’ (talvez em um espelho), estamos expressando
uma relação que John tem com John. Agora, identidade é uma relação muito
especial. É uma relação que todo objeto tem consigo mesmo e com nada mais.
Você pode pensar que isto faria da identidade uma relação inútil, mas, na
verdade, não é assim. Por exemplo, se eu digo ‘John é a pessoa que venceu
a corrida’, estou dizendo que a relação da identidade se dá entre o objeto
referido por ‘John’ e o objeto referido por ‘a pessoa que venceu a corrida’ -
em outras palavras, que estes dois nomes se referem a uma e a mesma pessoa.
Isto pode ser uma informação altamente significativa.
Mas, as coisas mais importantes sobre identidade são as inferências em
que ela está envolvida. Eis aqui um exemplo:

55
John é a pessoa que venceu a corrida.
A pessoa que venceu a corrida ganhou um prêmio.
Portanto John ganhou um prêmio.

Podemos escrever isto como:


j=w wP
jP
Esta inferência é válida em virtude do fato de que, para qualquer objeto,
x e y, se x = y, então x tem qualquer propriedade que y tem, e vice-versa.
Um e um mesmo objeto tem a propriedade em questão, ou não tem. Isto
é geralmente chamado de Lei de Leibniz, aquele Leibniz que encontramos
no Capı́tulo 6. Em uma aplicação da Lei de Leibniz, uma premissa é um
enunciado de identidade, digamos m = n; a segunda premissa é uma frase
contendo um dos nomes que flanqueiam o sinal da identidade, digamos m; e
a conclusão é obtida substituindo m por n nela.
A Lei de Leibniz é uma lei muito importante, e tem muitas aplicações
não problemáticas. Por exemplo, a álgebra nos assegura que (x + y)(x − y) =
x2 − y 2 . Portanto, se você está solucionando um problema, e estabelece que,
digamos, x2 − y 2 = 3, você pode aplicar a Lei de Leibniz para inferir que
(x+y)(x−y) = 3. Mas, a sua simplicidade enganadora esconde uma multidão
de problemas. Em particular, parece haver muitos exemplos contrários a ela.
Considere, por exemplo, a inferência a seguir:

John é a pessoa que venceu a corrida.


Mary sabe que a pessoa que venceu a corrida ganhou um prêmio.
Portanto, Mary sabe que John ganhou um prêmio.

Isto parece uma aplicação da Lei de Leibniz dado que a conclusão é obtida
substituindo ‘a pessoa que ganhou a corrida’ por ‘John’ na segunda premissa.
Ainda assim, está claro que a premissa poderia muito bem ser verdadeira
sem que a conclusão fosse verdadeira: Mary pode não saber que John é a
pessoa que ganhou a corrida. Isto é uma violação da Lei de Leibniz? Não
necessariamente. A lei diz que se x = y, então qualquer propriedade de
x é uma propriedade de y. Agora, a condição ‘Mary sabe que x ganhou
um prêmio’ expressa uma propriedade de x? Na verdade não: ao contrário

56
pareceria expressar uma propriedade de Mary. Se Mary de repente deixasse
de existir, isto não mudaria x de forma alguma (A lógica das frases tais como
‘sabe que’ está ainda bem sub judice em lógica.)
Um outro tipo de problema é o seguinte. Eis aqui uma estrada; ela é
uma estrada asfaltada; chame-a de t. E eis aqui uma estrada; é uma estrada
de terra batida; chame-a de d. Mas, as duas estradas são a mesma estrada,
t = d. É que o asfalto desaparece no final da estrada. Portanto, a Lei de
Leibniz nos diz que t é uma estrada de terra, e que d é uma estrada asfaltada
- que elas não são. O que aconteceu de errado aqui? Não podemos dizer
que ser de terra ou asfaltada não são realmente propriedades da estrada.
Elas certamente são. O que deu errado (sustentável) é que: não estamos
sendo suficientemente precisos nas nossas especificações de propriedades. As
propriedades relevantes são ser asfaltada em tal e tal ponto, e ser de terra
em tal e tal ponto. Desde que t e d são a mesma estrada, ambas possuem as
mesmas propriedades, e não temos uma violação da lei de Leibniz.
Até agora tudo bem. Estes problemas são relativamente fáceis. Agora
vamos ver um que não é. E aqui, o tempo volta a ser a questão. Para explicar
o que é o problema, será útil empregar os operadores de tempo do último
capı́tulo, e especificamente, G (“sempre será o caso que”). Seja x qualquer
coisa que você queira, uma árvore, uma pessoa; e considere o enunciado
x = x. Isto diz que x tem a propriedade de ser igual a x - que é obviamente
verdadeira: ela é parte do próprio significado da identidade. E isto é assim,
independentemente do tempo. É verdadeiro agora, verdadeiro em todos os
tempos futuros e em todos os tempos passados. Em particular, Gx = x é
verdadeiro. Agora, aqui está uma instância da Lei de Leibniz:
x = y Gx = x
Gx = y

(Não ligue para o fato de que substituı́mos y somente para uma das ocorrên-
cias de x na segunda premissa. Tais aplicações da Lei de Leibniz fazem
perfeitamente sentido. Apenas considere: “John é a pessoa que ganhou a
corrida; John vê John; assim, John vê a pessoa que ganhou a corrida.”) O
que a inferência mostra é que se x é idêntico to y, e x tem a propriedade de
ser idêntico a x em todos os tempos futuros, então y também tem. E dado
que a primeira premissa é verdadeira, como acabamos de notar, conclui-se
que se duas coisas são idênticas, elas sempre serão idênticas.

57
E o que dizer disto? Simplesmente, não parece ser sempre verdadeiro.
Por exemplo, considere uma ameba. Amebas são criaturas unicelulares en-
contradas na água que se multiplicam por mitose: uma ameba se dividirá
ao meio para se tornar duas amebas. Agora, tome alguma ameba A, que se
divide e torna-se duas amebas, B e C. Antes da divisão, ambas B e C eram
A. Portanto antes da divisão, B = C. Mas depois da divisão, B e C são
amebas distintas, ¬B = C. Portanto, se duas coisas são a mesma, não segue
necessariamente que elas sempre serão a mesma.
Não podemos sair deste problema da mesma forma que saı́mos do pro-
blema anterior. A propriedade de ser idêntico a x em todos os tempos futuros
é certamente uma propriedade de x. E não parece ser o caso que a proprie-
dade é insuficientemente refinada. Parece não haver uma forma de torná-la
mais precisa a fim de evitar o problema.
O que mais alguém poderia dizer? Um pensamento natural é este. Antes
da divisão, B não era A: ele era somente parte de A. Mas, B é uma ameba,
e A é uma criatura unicelular: ela não tem partes que são amebas. Portanto,
B não pode ser parte de A.
Mais radicalmente, alguém pode sugerir que B e C na verdade não exis-
tiam antes da divisão, então eles não eram A antes da divisão. Portanto,
não é o caso que B = C antes da divisão. Mas, isto parece estar errado
também. B não é uma nova ameba; é simplesmente A, embora algumas de
suas propriedades tenham mudado. Se isto não está claro, apenas imagine
que C iria morrer na divisão. Neste caso, não terı́amos nenhuma hesitação
em dizer que B é A. (Seria como uma cobra trocando sua pele.) Agora,
a identidade de algo não pode ser afetada pelo fato que possa haver outras
coisas ao redor. Portanto A é B, assim como, A é C.
É claro, alguém pode insistir que exatamente porque A toma novas pro-
priedades, ele é, estritamente falando, um novo objeto; não meramente um
velho objeto com novas propriedades. Portanto, B não é realmente A. Do
mesmo modo que C. Mas agora, estamos de volta com o problema com o
qual começamos este capı́tulo.

58
Ideias centrais do capı́tulo

• m = n é verdadeiro extamente se os nomes m e n referem-se ao mesmo


objeto.

• Se dois objetos são os mesmos, qualquer propriedade de um é proprie-


dade do outro (Lei de Leibniz).

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade. Pat é uma mulher, e
a pessoa que limpou a janela não é uma mulher; assim, Pat não é a pessoa
que limpou a janela.

59
Capı́tulo 10

Vagueza: Como você para de


escorregar em uma rampa
escorregadia?

Enquanto estávamos no assunto da identidade, eis aqui um outro problema


sobre ela. Tudo se desgasta com o tempo. Às vezes, as peças são repostas.
As motocicletas e carros trocam as suas embreagens; as casas trocam os seus
telhados; e até mesmo as células do corpo são repostas de tempos em tempos.
Mudanças como estas não afetam a identidade do objeto em questão. Quando
eu troco a embreagem da minha motocicleta, ela permanece a mesma moto,
uma Thunder preta. Por ser um rapaz cauteloso, eu guardo todas as peças
antigas. Quando tudo tiver sido trocado, ponho todas as peças antigas juntas
para recriar a moto original. Mas, eu comecei com uma Thunder preta; e
mudar uma peça da moto não afeta a sua identidade: ela é ainda a mesma
moto. Portanto, a cada troca, a máquina ainda é a Thunder preta; até, ao
final, ela é - a Thunder preta. Mas, sabemos que isto não pode estar certo.
A Thunder preta agora está de pé ao lado da moto original na garagem.
Aqui está um exemplo do mesmo problema. Uma pessoa de 5 anos de
idade é (biologicamente) uma criança. Se alguém é uma criança, ele ainda
é criança um segundo depois. Neste caso, ele ainda é criança um segundo
depois, e um segundo depois deste, e um segundo depois deste,... portanto,
depois de 630.720.000 segundos, ele ainda é criança. Mas aı́, ele terá 25 anos
de idade.
Argumentos como este têm a reputação de terem sido inventados por

60
Eubúlides, o mesmo Eubúlides que inventou o paradoxo do mentiroso do
Capı́tulo 5. Agora eles são chamados de paradoxos de sorites. (Uma forma
padrão do argumento é o efeito de que adicionando um grão de areia por vez,
uma pessoa nunca pode formar uma pilha; “sorites” vem do grego “soros”,
o termo grego para pilha, monte.) Estes são um dos mais perturbadores
paradoxos em lógica. Eles surgem quando o predicado empregado (“é uma
Thunder preta”, “é uma criança”) é vago, em um certo sentido; ou seja,
quando a sua aplicação é tolerante com respeito a mudanças bem pequenas:
se é aplicado a um objeto, então um mudança bem pequena no objeto não
alterará este fato. Virtualmente todos os predicados que nós empregamos
em um discurso normal são vagos neste sentido: “é vermelho”, “está acor-
dado”, “está feliz”, “está bêbado” - até mesmo “está morto” (morrer leva
tempo). Portanto, os argumentos da rampa escorregadia do tipo sorites são
potencialmente endêmicos em nosso raciocı́nio.
Para focar a questão a respeito deles, vamos olhar um dos argumentos
com mais detalhes. Seja Jack uma criança de 5 anos. Seja a0 a frase “Jack é a
criança após 0 segundos”. Seja a1 a frase “Jack é a criança após 1 segundos”,
e assim por diante. Se n é um número qualquer, an é a frase “Jack é a criança
após n segundos”. Seja k um número enorme, pelo menos tão grande quanto
630.720.000. Sabemos que a0 é verdadeiro. (Após 0 segundos passados,
Jack ainda tem 5 anos.) E para cada número, n, sabemos que an → an+1 (se
Jack é uma criança em algum momento, ele é uma criança 1 segundo depois.)
Ligamos todas estas premissas juntas por uma seqüência de inferências modus
ponens, como esta:
a0 a0 → a1 /a1 a1 → a2 /a2 · · · ak−1 ak−1 → ak /ak
A conclusão final é ak que sabemos que não é verdadeira. Algo deu errado,
e não parece haver muito escopo para manobras.
Então, o que diremos agora? Aqui está uma resposta, que às vezes é cha-
mada de lógica difusa (fuzzy). Ser uma criança parece algo que desaparece,
gradualmente. Assim como ser um adulto (biologicamente) parece ser algo
que aparece, gradualmente. Parece natural supor que o valor da verdade
de “Jack é uma criança” também vai do verdadeiro para surgir como falso.
A verdade, então, vem por graus. Suponha que medimos estes graus por
números entre 1 e 0, 1 sendo completamente verdadeiro, 0 sendo completa-
mente falso. Cada situação, então, atribui a cada sentença básica um tal
número.

61
E quanto a sentenças que contém operadores de negação e conjunção?
Conforme Jack envelhece, o valor da verdade de “Jack é uma criança” dimi-
nui. O valor da verdade de “Jack não é uma criança” pareceria correspon-
dentemente aumentar. Isto sugere que o valor da verdade de ¬a é 1 menos
o valor da verdade de a. Suponha que escrevamos o valor da verdade de a
como |a| ; então teremos:
|¬a| = 1 − |a|
Eis aqui uma tabela com uma amostra de alguns valores:

a ¬a
1 0
0,75 0,25
0,5 0,5
0,25 0,75
0 1

E quanto ao valor da verdade das conjunções? Uma conjunção só pode


ser tão boa quanto a sua pior parte. Portanto, é natural supor que o valor
da verdade de a&b é o minimum (menor) de |a| e |b|:
|a&b| = M in(|a|, |b|)
Eis aqui uma tabela de algumas amostras de valores. Valores de a estão
na coluna da esquerda; valores de b estão na fileira de cima. Os valores
correspondentes de a&b estão onde a linha e a coluna se encontram. Por
exemplo, se quisermos encontrar |a&b|, em que |a| = 0, 25 e |b| = 0, 5, vemos
onde a fileira e a coluna em itálico se encontram. O resultado está em negrito.

a&b 1 0,75 0,5 0,25 0


1 1 0,75 0,5 0,25 0
0,75 0,75 0,75 0,5 0,25 0
0,5 0,5 0,5 0,5 0,25 0
0,25 0,25 0,25 0,25 0,25 0
0 0 0 0 0 0

Analogamente, o valor de uma disjunção é o maximum (maior) dos valores


dos disjuntos:
|a ∨ b| = M ax(|a|, |b|)

62
Deixo para você construir uma tabela com algumas amostras de valores.
Note que, de acordo com a tabela acima, ¬, & e ∨ são ainda funções de
verdade. Isto é, por exemplo, o valor da verdade de a&b é determinado pelo
valor da verdade de a e b. É apenas que estes valores são agora números entre
0 e 1, ao invés de V e F . (Talvez valha a pena notar, que se nós pensamos o 1
como V , e o 0 é como F , os resultados em que somente 1 e 0 estão envolvidos
são os mesmos como para as funções de verdade do Capı́tulo 2, como você
pode checar sozinho.)
E quanto aos condicionais? Vimos no Capı́tulo 7 que existem boas razões
para supor que → não é uma função da verdade, mas vamos colocar estas
preocupações de lado por ora. Se ele fosse uma função da verdade, qual
seria, agora que nós temos que levar em consideração os graus de verdade?
Nenhuma reposta parece tremendamente óbvia. Eis aqui uma sugestão (bem
padrão), que ao menos parece fornecer o tipo correto de resultados.

Se |a| ≤ |b| : |a → b| = 1
Se |b| < |a| : |a → b| = 1 − (|a| − |b|)

(< significa “é menor que”; ≤ significa “é menor que ou igual a”.) Por-
tanto, se o antecedente é menos verdadeiro que o conseqüente, o condici-
onal é completamente verdadeiro. Se o antecedente é mais verdadeiro que
o conseqüente, então o condicional é menor que o verdadeiro maximal pela
diferença entre os seus valores. Eis aqui uma tabela de algumas amostras
de valores. (Lembre-se que os valores de a estão na coluna da esquerda e os
valores de b estão na fileira superior.)

a→b 1 0,75 0,5 0,25 0


1 1 0,75 0,5 0,25 0
0,75 1 1 0,75 0,5 0,25
0,5 1 1 1 0,75 0,5
0,25 1 1 1 1 0,75
0 1 1 1 1 1

E quanto à validade? Uma inferência é válida se a conclusão vale em


todas as situações em que as premissas valem. Mas o que significa agora algo
valer em uma situação? Quando é suficientemente verdadeiro. Mas, quando
a verdade é suficientemente verdadeira? Isto vai exatamente depender do
contexto. Por exemplo, “é uma moto nova” é um predicado vago. Se você

63
for a um vendedor de motos que lhe diz que uma certa moto é nova, você
espera que ela nunca tinha sido usada anteriormente. Ou seja, você espera
que “esta é uma moto nova” tenha o valor 1. Suponha, por outro lado, que
você vai a uma corrida de motos, e te pedem para escolher as motos novas.
Você vai escolher as motos que têm menos de um ano de uso. Em outras
palavras, o seu critério para o que é aceitável como uma moto nova é mais
flexı́vel. “Esta é uma moto nova” precisa ter valor apenas, digamos, 0,9 ou
maior.
Portanto, supomos que há algum nı́vel de aceitação, fixado pelo contexto.
Este será um número qualquer entre 0 e 1 - talvez 1 no casos extremos. Vamos
escrever este número como ε. Então, uma inferência é válida para aquele
contexto exatamente se a conclusão tiver um valor ao menos tão grande
quanto ε em toda situação em que todas as premissas possuem valores ao
menos tão grande quanto ε.
Agora, como tudo isto se aplica ao paradoxo de sorites? Suponha que
tenhamos uma sequência de sorites. Como acima, seja an a sentença “Jack
é uma criança depois de n segundos”; mas para deixar as coisas manejáveis,
vamos supor que Jack cresce em 4 segundos! Então, um registro de valores
de verdade poderia ser:
a0 a1 a2 a3 a4
1 0,75 0,5 0,25 0
a0 → a1 possui o valor 0,75 (= 1 - (1 - 0,75)); também possui esse valor
a1 → a2 ; de fato, todo condicional da forma an → an+1 tem o valor 0,75.
O que isto nos diz a respeito do paradoxo de sorites depende do nı́vel
de aceitação ε, que está em jogo aqui. Suponha que o contexto seja tal que
impõe o maior nı́vel de aceitação; ε é 1. Neste caso, modus ponens é valido.
Pois, suponha que |a| = 1 e |a → b| = 1. Dado que |a → b| = 1, devemos ter
|a| ≤ |b|. Segue que |b| = 1. Portanto, o argumento de sorites é válido. Mas,
neste caso, cada premissa condicional, tendo o valor 0,75, é inaceitável.
Se, por outro lado, colocarmos o nı́vel de aceitação abaixo de 1, então
modus ponens se torna inválido. Suponha, só por ilustração, que ε é 0,75.
Como já vimos, ambos a1 e a1 → a2 tem o valor 0,75; mas, a2 possui o valor
0,5; que é menor que 0,75.
De qualquer forma que você olhar, então, o argumento falha. Ou algumas
das premissas não são aceitáveis; ou, se forem, as conclusões não se seguem

64
validamente. Por que somos enganados tão facilmente pelo argumento de
sorites? Talvez, porque confundimos a verdade completa com a verdade
quase-completa. Uma falha ao traçar a distinção não faz muita diferença
normalmente. Mas se você o fizer de novo, e de novo, e de novo, ... aı́ faz.
Eis um diagnóstico do problema. Mas com vagueza, nada é direto. Qual
foi o problema em dizer que “Jack é uma criança” é simplesmente verdadeiro,
até um particular ponto no tempo, quando isto se torna simplesmente falso?
Apenas que não parece existir um tal ponto. Qualquer lugar que alguém
escolha traçar uma linha é completamente arbitrário; pode ser, na melhor
das hipóteses, uma questão de convenção. Mas agora, em que ponto do
crescimento de Jack faz com que ele deixe de ser 100 % uma criança; ou seja,
em que ponto “Jack é uma criança” muda do valor de exatamente 1, para um
valor inferior a 1? Qualquer lugar que alguém escolha para traçar uma linha
seria tão arbitrário quanto antes. (Isto é, às vezes, chamado de problema da
vagueza de ordem superior.) Se isto está correto, ainda não solucionamos o
problema mais fundamental sobre vagueza: apenas o mudamos de lugar.

Ideias centrais do capı́tulo


• Valores de verdade são números entre 0 e 1 (inclusive).
• |¬a| = 1 − |a|
• |a ∨ b| = M ax(|a|, |b|)
• |a&b| = M in(|a|, |b|)
• |a → b| = 1, se |a| ≤ |b|
|a → b| = 1 − (|a| − |b|), em caso contrário
• Uma sentença é verdadeira em uma situação exatamente quando o seu
valor da verdade é pelo menos tão grande quanto o nı́vel de aceitação
(determinado pelo contexto).

Problema
Simbolize a seguinte inferência e avalie a sua validade em que o nı́vel de
aceitação é 0,5. Jenny é esperta e; ou Jenny não é esperta ou ela é bela.
Portanto, Jenny é bela.

65
Capı́tulo 11

Probabilidade: O estranho caso


da falta de classe de referência

Os capı́tulos anteriores têm nos dado ao menos algum sentimento pelas quais
inferências são dedutivamente válidas, e por que. Agora, está no momento de
voltar à questão da validade indutiva: ou seja, a validade daquelas inferências
em que as premissas fornecem apoio para a conclusão; ainda que, mesmo
as premissas sendo verdadeiras em alguma situação, a conclusão poderia se
revelar falsa.
Como eu obeservei no Capı́tulo 1, Sherlock Holmes era muito bom neste
tipo de inferência. Vamos começar com um dos seus exemplos. O mistério da
Liga dos Cabeças Vermelhas começa quando Holmes e Dr. Watson recebem
uma visita de um certo Sr. Jabez Wilson. Quando Wilson entra, Watson
olha para ver o que Holmes havia inferido a respeito dele:

‘Além do fato óbvio que ele em algum momento da vida dele fez
trabalhos braçais, que cheira rapé, que é um Freemason (socie-
dade secreta), que já esteve na China, e que tem escrito bastante
ultimamente, eu não consigo deduzir mais nada’.
Sr. Jabez Wilson começou a se endireitar em sua cadeira com seu
dedo indicador sobre o papel, mas seus olhos permaneciam sobre
o meu companheiro.
‘Como, em nome da boa sorte, você sabia tudo aquilo, Sr. Hol-
mes?’ Ele perguntou.

66
Holmes sente prazer em explicar. Por exemplo, a respeito de escrever
muito:

‘O que mais poderia indicar aquele punho da manga tão bri-


lhante por cinco polegadas, e a esquerda com um remendo macio
próximo ao cotovelo onde você descansa o braço sobre a mesa.’

Apesar de Holmes estar acostumado a chamar este tipo de inferência


uma dedução, a inferência é, na verdade, uma inferência indutiva. É com-
pletamente possı́vel que o casaco do Sr. Wilson mostrasse estes padrões
sem que ele tivesse escrito muito. Ele poderia, por exemplo, ter roubado de
alguém. Não obstante, a inferência é claramente boa. O que faz com que
esta inferência seja boa? Uma resposta plausı́vel pode ser dada em termos de
probabilidade. Portanto, vamos falar sobre isto, e então podemos retornar à
questão.
Uma probabilidade é um número atribuı́do a uma sentença, que mede o
quão provável ela, em algum sentido, é verdadeira. Vamos escrever pr(a)
para a probabilidade de a. Convencionalmente, medimos probabilidades em
uma escala entre 0 e 1. Se pr(a) = 0, a é certamente falsa; então, a medida
que pr(a) aumenta, se torna mais provável que a seja verdadeiro; até que
pr(a) = 1, e a é certamente verdadeira.
O que mais podemos dizer sobre estes números? Deixe-me ilustrar com
um simples exemplo. Suponha que consideremos os dias de alguma semana.
Seja w uma sentença que é ou falsa ou verdadeira todos os dias - digamos,
‘está calor’ - e seja r outra sentença - digamos, ‘está chovendo’. Seja a
informação relevante dada pela tabela a seguir:

Seg Ter Qua Qui Sex Sab Dom


w    
r   

Um tique indica que a frase é verdadeira naquele dia; um espaço em


branco indica que não é.
Agora, se estamos falando sobre esta semana em particular, qual é a
probabilidade de em um dia, escolhido aleatoriamente, estar calor? Há quatro
dias com calor, e sete dias no total. Portanto, a probabilidade é de 4/7.
Igualmente, há 3 dias chuvosos, portanto a probabilidade que choveu é de
3/7:

67
pr(w) = 4/7

pr(r) = 3/7

Em geral, se nós escrevermos #a para representar os números de dias em


que cada frase a é verdadeira, e N para o total de números de dias:

pr(a) = #a/N

Como a probabilidade se relaciona com a negação, conjunção e disjunção?


Primeiro consideremos a negação. Qual é a probabilidade de ¬W ? Bem,
havia 3 dias em que não estava calor, portanto pr(¬w) = 3/7. Note que
pr(w) e pr(¬w)somam 1. Isto não é um acidente. Nós temos:

#w + #¬w = N

Dividindo ambos os lados por N , obtemos:


#w #¬w
N
+ N
=1

Isto é, pr(w) + pr(¬w) = 1.


Para conjunção e disjunção: Há dois dias em que estava calor e chovendo,
portanto pr(w&r) = #(w&r)/N = 2/7. E há cinco dias em estava ou
chovendo ou estava calor, portanto pr(w ∨ r) = #(w ∨ r)/N = 5/7. Qual é a
relação entre estes dois números? Para achar o número de dias em que w ∨ r
é verdadeiro, podemos começar por somar os dias em que w é verdadeiro,
então somar o número de dias em que r é verdadeiro. Isto não vai resolver,
dado que alguns dias foram contados duas vezes: quarta e sábado. Estes
foram os dias que estava chovendo e calor. Portanto, para conseguir a conta
correta, temos que subtrair o número de dias em que estavam ambos calor e
chovendo:

#(w ∨ r) = #w + #r − #(w&r)

Dividindo ambos os lados por N , obtemos:


#(w∨r)
N
= #w
N
+ #r
N
− #(w&r)
N

Isto é,

68
pr(w ∨ r) = pr(w) + pr(r) − pr(w&r)

Esta é a relação geral entre as probabilidades de conjunções e disjunções.


No último capı́tulo, vimos que os graus da verdade podem também ser
medidos entre 0 e 1, e poderia ser natural supor que os graus de verdade
e probabilidades são os mesmos. Eles não são. Em particular, conjunção e
disjunção funcionam bem diferentemente. Para graus da verdade, disjunção
é uma função da verdade, especificamente, |w ∨ r| é o maximum de |w| e |r|.
Mas, pr(w∨r) não é determinada por pr(w) e pr(r) sozinhos, como acabamos
de ver. Em particular, para os nossos w e r, pr(w) = 4/7, pr(r) = 3/7 e
pr(w ∨ r) = 5/7. Mas, se |w| = 4/7 e |r| = 3/7, |w ∨ r| = 4/7, e não 5/7.
Antes de voltarmos às inferências indutivas, há mais um pouco de in-
formação sobre probabilidade que precisamos. Dado nossa semana modelo,
a probabilidade de estar chovendo em um dia, escolhido aleatoriamente, é de
3/7. Mas, suponha que você saiba que o dia em questão era um dia de calor.
Qual é a probabilidade agora que tenha chovido? Bem, houve quatro dias de
calor, mas somente em dois deles estava chovendo, portanto a probabilidade é
de 2/4. Este número é chamado de probabilidade condicional, e escrito desta
forma: pr(r|w), a probabilidade de r dado w. Se pensarmos sobre isto um
pouco, podemos dar uma fórmula geral para calcular probabilidades condici-
onais. Como chegamos ao número 2/4? Primeiro, nos restringimos aos dias
em que w é verdadeiro; então dividimos pelo número de dias em que r era
verdadeiro, ou seja, o número de dias em que ambos w e r são verdadeiros.
Em outras palavras:

pr(r|w) = #(w&r) ÷ #w

Um pouco de álgebra nos diz que isto é igual a:


#(w&r)
N
÷ #w
N

E isto é, pr(w&r) ÷ pr(w).


Portanto, eis nossa fórmula geral para probabilidade condicional:

CP: pr(r|w) = pr(w&r)/pr(w)

69
O mı́nimo de cuidado é necessário ao aplicar esta fórmula. Dividir pelo
número 0 não faz nenhum sentido. 3/0, por exemplo, não tem nenhum valor.
Matemáticos chamam este quociente de indefinido. Na fórmula para pr(w|r),
dividimos por pr(w), que faz sentido somente se ele não for zero, ou seja,
somente se w for verdadeiro ao menos algumas vezes. Em caso contrário, a
probabilidade condicional é indefinida.
Agora, finalmente, podemos voltar às inferências indutivas. O que é pre-
ciso para uma inferência ser indutivamente válida? Simplesmente que as
premissas façam a conclusão mais provável do que menos provável. Ou seja,
a probabilidade condicional de c, a conclusão, dada p, a premissa (ou a con-
junção das premissas se houver mais que uma) é maior do que a da negação
de c:

pr(c|p) > pr(¬c|p)

Deste modo, se estamos raciocinando sobre a semana da nossa ilustração,


a inferência:

Era um dia chuvoso, portanto era um dia de calor;

é indutivamente válida. É fácil checar que, pr(w|r) = 2/3, e pr(¬w|r) = 1/3.


A análise pode ser aplicada para mostrar porque a inferência de Holmes
com a qual começamos é válida. Holmes concluiu que Jabez Wilson havia
escrito bastante ultimamente (c). A premissa dele era sobre o efeito de que
havia certas marcas de desgaste na jaqueta de Wilson (p). Agora, se nós
tivéssemos ido a Londres nos tempos de Holmes, e tivéssemos coletado todas
aquelas pessoas com roupas no mesmo estado da roupa em questão, então a
maioria deles seriam escriturários, pessoas que passam a vida escrevendo -
ou assim poderı́amos supor. Deste modo, a probabilidade que Jabez tinha
escrito bastante, dado que a jaqueta dele continha aquelas marcas, é maior
do que a probabilidade que ele não tinha escrito. A inferência de Holmes é,
de fato, indutivamente válida.
Deixe-me terminar por observar um enigma no qual o mecanismo que aca-
bamos de empregar faz surgir. Como temos visto, uma probabilidade pode
ser calculada como um quociente: pegamos uma certa classe de referência;
então calculamos os números de diversos grupos contidos nela; então fazemos
algumas divisões. Mas, qual classe de referência usamos? No exemplo ilus-
trativo a respeito do clima, comecei especificando a classe de referência em

70
questão: os dias de uma semana em especifica. Mas, os problemas da vida
real não são apresentados desta forma.
Volte a Jabez Wilson. Para resolver as probabilidades relevantes neste
caso, sugeri que pegássemos como classe de referência as pessoas vivendo em
Londres nos tempos de Holmes. Mas, por que isto? Por que não as pessoas
que viviam em toda a Inglaterra, ou em toda Europa, ou apenas os homens de
Londres, ou apenas as pessoas que tinham o privilégio de ir conhecer Holmes?
Talvez, em alguns destes casos, não fizesse muita diferença. Mas certamente
em outros faria. Por exemplo, as pessoas que vieram ver Holmes eram todas
relativamente ricas, e provavelmente não eram de usar casacos usados. As
coisas seriam bem diferentes com uma maior população. Portanto, qual
deveria ter sido a classe de referência mais apropriada? Esta é um tipo de
pergunta que tira o sono dos estatı́sticos (as pessoas que tentam descobrir os
fatores de risco para as empresas de seguros).
Em última análise, a classe de referência mais precisa parece ser aquela
contendo apenas o Sr. Wilson. Afinal, o que os fatos sobre outras pessoas
têm a ver com ele afinal? Mas, nesse caso, ou ele havia escrito muito, ou
não. No primeiro caso, a probabilidade que ele tinha escrito muito, dado
que o punho da sua manga estava brilhante, é 1, e a inferência é valida; na
segunda, é 0, e a inferência não é válida. Em outras palavras, a validade
da inferência depende inteiramente da verdade da conclusão. Portanto, você
não pode empregar a inferência para determinar se a conclusão é ou não é
verdadeira. Se nós formos até este ponto, a noção de validade é inteiramente
inútil.

71
Ideias centrais do capı́tulo

• A probabilidade de um enunciado é o número de casos no qual ele é


verdadeiro, dividido pelo número de casos na classe de referência.

• pr(¬a) = 1 − pr(a)

• pr(a ∨ b) = pr(b) + pr(b) − pr(a&b)

• pr(a|b) = pr(a&b)/pr(b)

• Uma inferência é indutivamente válida exatamente se a probabilidade


condicional da conclusão dada a (conjunção das) premissas é maior que
a da sua negação dadas as premissas.

Problema
O seguinte conjunto de estatı́stica foi coletado a partir de dez pessoas (cha-
madas 1-10).

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Alto    
Saudável     
Feliz      

Se r é uma pessoa randomicamente escolhida nesta coleção, avalie a va-


lidade indutiva da seguinte inferência. r é alto e saudável; portanto, r é
feliz.

72
Capı́tulo 12

Probabilidade Inversa: Você


não pode ficar indiferente a seu
respeito!

O capı́tulo anterior nos deu um conhecimento básico de probabilidade e o pa-


pel que ela pode ter em inferências indutivas. Neste capı́tulo, iremos olhar al-
guns aspectos mais avançados. Vamos começar considerando uma inferência
indutiva muito famosa.
O cosmos fı́sico não é uma bagunça puramente aleatória. Ele mostra
padrões muito distintivos: a matéria é organizada nas galáxias, que estão
organizadas, por sua vez, em estrelas e sistemas planetários, e em alguns
destes sistemas planetários, a matéria é organizada de tal forma que produz
seres vivos como você e eu. Qual é a explicação para isto? Você poderia dizer
que a explicação é provida pelas as leis da fı́sica e biologia. E assim poderia
ser. Mas por que as leis da fı́sica e biologia são da forma que são? Afinal,
elas poderiam ter sido bem diferentes. Por exemplo, a gravidade poderia ter
sido uma força de repulsão, e não atração. Neste caso, nunca haveria existido
pedaços estáveis de matéria, e a vida assim como a conhecemos teria sido
impossı́vel em qualquer lugar no cosmos. Isto não nos dá razões excelentes
para acreditar na existência do criador do cosmos: um ser inteligente que
trouxe o cosmos à existência, junto com as leis da fı́sica e da biologia, para
algum propósito ou outro? Em resumo, o fato que o cosmos fı́sico é ordenado
não nos dá razões para acreditar na existência de algum Deus de alguma
forma?

73
Este argumento é freqüentemente chamado de “Argumento do Desı́gnio”
(para a existência de Deus). Ele poderia muito bem ser chamado de Argu-
mento para o Desı́gnio; mas esqueça isto. Vamos pensar sobre isto de mais
perto. A premissa do argumento, o, é uma declaração para o efeito de que o
cosmos é ordenado em uma certa forma. A conclusão, g, afirma a existência
de um Deus criador. A menos que g fosse verdadeiro, o não seria muito
provável; portanto, o argumento segue, dado que o, g é provável.
Agora, é certamente verdadeiro que a probabilidade condicional de o dado
que g é verdadeiro, é muito mais elevada do que de o dado que g é falso:
1. pr(o|g) > pr(o|¬g)
Mas, isto não nos fornece o que queremos. Para o ser uma boa razão
indutiva para g, nós precisamos que a probabilidade de g, dada o, seja maior
do que a de sua negação:
2. pr(g|o) > pr(¬g|o)
E o fato de pr(o|g) ser alto não necessariamente significa que pr(g|o) seja
alto. Por exemplo, a probabilidade que você está na Austrália, dado que
você vê um canguru, é muito alta. (Em qualquer outro lugar, ele teria que
ter fugido de um zoológico.) Mas a probabilidade que você vê um canguru,
dado que você está na Austrália, é muito baixa. (Eu morei na Austrália por
cerca de 10 anos até que eu visse um.)
pr(o|g) e pr(g|o) são chamados de probabilidades inversas, e o que temos
visto é que para o argumento de desı́gnio funcionar, a relação entre elas deve
ser tal que nos faça passar de 1 a 2. É isso? Existe, na verdade, uma relação
muito simples entre probabilidades inversas. Lembre-se da equação CP do
último capı́tulo que, por definição:

pr(a|b) = pr(a&b)/pr(b)

Portanto:
3. pr(a|b) × pr(b) = pr(a&b)
Analogamente:

pr(b|a) = pr(b&a)/pr(a)

74
Portanto:
4. pr(b|a) × pr(a) = pr(b&a)
Mas, pr(a&b) = pr(b&a) (dado que a&b e b&a são verdadeiros exata-
mente nas mesmas situações). Deste modo, 3 e 4 nos fornece:

pr(a|b) × pr(b) = pr(b|a) × pr(a)

Supondo que pr(b) não é 0 - farei suposições deste tipo sem menção adi-
cional - podemos reorganizar esta equação para obter:
INV: pr(a|b) = pr(b|a) × pr(a)/pr(b)
Esta é a relação entre probabilidades inversas. (Para recordar isto, pode
ajudar notar que do lado direito, é primeiramente um b seguido por um a, e
então um a seguido por um b).
Usando INV para reescrever as probabilidades inversas em 1, obtemos:

pr(g|o) × pr(o)
pr(g)
> pr(¬g|o) × pr(o)
pr(¬g)

E cancelando pr(o) em ambos os lados, temos:


pr(g|o) pr(¬g|o)
pr(g)
> pr(¬g)

Ou, rearranjando a equação:


pr(g|o) pr(g)
5. pr(¬g|o)
> pr(¬g)

Lembre-se que, para o Argumento do Designio funcionar, temos que che-


gar a 2, que é equivalente a:
pr(g|o)
pr(¬g|o)
>1

Pareceria que a única coisa plausı́vel que irá nos levar a isto a partir de 5
pr(g)
é que pr(¬g) ≥ 1, isto é:

pr(g) ≥ pr(¬g)

75
Os valores pr(g) e pr(¬g) são chamados de probabilidades a priori ; ou
seja, as probabilidades de g e ¬g anteriores à aplicação de qualquer evidência,
tal como o. Consequentemente, o que parece precisar para fazer com que o
Argumento funcione é que a probabilidade a priori de que existe um deus
criador é maior que (ou igual) à probabilidade a priori que não existe.
É isso? Infelizmente, não há razão para acreditar que sim. Na verdade,
parece que é o contrário. Suponha que você não saiba que dia é da semana.
Seja m a hipótese de que é uma segunda. Então ¬m é a hipótese que não
é segunda. Qual é mais provável?, m ou ¬m? Certamente, ¬m: porque há
muito mais maneiras para que não seja segunda, do que há para que seja
segunda. (Poderia ser terça, quarta, quinta...) Igualmente com Deus. De
maneira concebı́vel, existem muitas diferentes formas que o cosmos tenha
vindo à existência. E intuitivamente, um número relativamente muito pe-
queno destes são significamente ordenados: a ordem é algo especial. Que
afinal, é o que dá ao argumento do Desı́gnio a sua força. Mas então, existem
relativamente poucos cosmos possı́veis em que se haja um ordenador. Por-
tanto, a priori é muito mais provável que não exista criador algum do que
exista.
O que vimos, então, é que o Argumento do Desı́gnio falha. É sedutor
porque freqüentemente se confunde probabilidades com os seus inversos e,
portanto, deixa de lidar com uma parte crucial do argumento.
Muitos argumentos indutivos requerem que pensemos a respeito de proba-
bilidades inversas. O Argumento do Desı́gnio não é especial nesta questão.
Mas, muitos argumentos são mais bem sucedidos ao fazer isto. Deixe-me
ilustrar. Suponha que você visite o cassino local. Eles tem duas roletas.
Chame-as de A e B. Você foi informado por um amigo que uma delas está
viciada - embora o seu amigo não possa lhe dizer qual exatamente. Ao invés
de dar vermelho a metade do tempo e preto a outra metade do tempo, como
uma roleta normal deveria fazer, esta dá vermelho por 3/4 do tempo, e preto
por 1/4 do tempo. (Falando precisamente, as roletas reais às vezes dão verde
ocasionalmente também; mas vamos ignorar este fato para manter as coisas
simples.) Agora, suponhamos que você assista uma das roletas, digamos a
roleta A, e um cinco giros consecutivos ela mostrou os resultados:
R, R, R, R, B
(R para vermelho e B para preto). Você tem motivos para inferir que esta é a
roleta que está viciada? Em outras palavras, seja c o enunciado para o efeito

76
de que esta seqüência em particular aparece, e f o enunciado de que a roleta
A está mexida. A inferência de c para f é uma boa inferência indutiva?
Precisamos saber se pr(f |c) > pr(¬f |c). Usando a equação INV con-
vertendo para uma relação entre probabilidades inversas, o que isto significa
que:

pr(c|f ) × pr(f )
pr(c)
> pr(c|¬f ) × pr(¬f )
pr(c)

Multiplicando ambos os lados por pr(c) temos:

pr(c|f ) × pr(f ) > pr(c|¬f ) × pr(¬f )

Isso é verdade? Para começar, quais são as probabilidades a priori de f


e ¬f ? Sabemos que uma das duas A ou B está viciada (mas não ambas).
Não temos mais razões para acreditar que seja a roleta A, ao invés de roleta
B ou vice-versa. Portanto, a probabilidade que é a roleta A é 1/2 , e a
probabilidade que é a vroleta B é 1/2 também. Em outras palavras, pr(f ) =
1/2, e pr(¬f ) = 1/2. Então, podemos cancelar estas probabilidades, e a
condição relevante se torna:

pr(c|f ) > pr(c|¬f )

A probabilidade de observar a seqüência indicada por c, dado que a roleta


está viciada como é descrito, pr(c|f ), é (3/4)4 ×1/4. (Não ligue se não souber
por que: você pode confiar em mim). Isto é 81/45 , que resulta em 0,079.
A probabilidade que a sequência é observada, dado que a roleta não está
viciada, e portanto pr(c|¬f ), é (1/2)5 (novamente, confie em mim se quiser),
que resulta em 0,031. Isto é menos que 0,079. Portanto, a inferência é válida.
A forma como trabalhamos as probabilidades a priori aqui é digno de nota.
Temos duas possibilidades: ou a roleta A está viciada, ou roleta B está. E
não temos nenhuma informação que diferencie entre estas duas possibilidades.
Portanto, atribuı́mos a elas a mesma probabilidade. Isto é uma aplicação de
algo chamado o Princı́pio da Indiferença. O Principio nos diz que quando
temos um número de possibilidades, sem nenhuma diferença relevante entre
elas, todas têm a mesma probabilidade. Assim sendo, se há N possibilidades
no total, cada uma tem a probabilidade 1/N. O Princı́pio da Indiferença é
um tipo de princı́pio da simetria.

77
Observe que não poderı́amos aplicar o Principio no Argumento do Desı́-
gnio. No caso da roleta, há duas situações possı́veis que são completamente
simétri-cas: roleta A está viciada, roleta B está viciada. No Argumento do
Desı́gnio existem duas situações: um Deus criador existe; um Deus criador
não existe. Mas estas duas situações não são mais simétricas como: hoje é
segunda; hoje não é segunda. Como vimos, intuitivamente, existem muito
mais possibilidades na qual não existe um criador do que possibilidades na
qual exista um.
O Principio da Indiferença é uma importante parte do raciocı́nio intuitivo
sobre probabilidade. Vamos acabar este capitulo por notar que não é isento
de problemas. É bem conhecido que leva a paradoxos em certas aplicações.
Eis aqui uma.
Suponha que um carro parte de Brisbane ao meio dia, viajando a uma
cidade a 300 km de distância. O carro mantém uma média de velocidade algo
entre 50 km/h e 100 km/h. O que podemos dizer sobre a probabilidade de
tempo de sua chegada? Bem, se está indo a 100 km/h chegara às 3 da tarde;
e se está indo a 50 km/h, chegara às 6 da tarde. Consequentemente, chegará
entre estes dois tempos. O ponto médio entre estes tempos é 4:30 da tarde.
Portanto, pelo Princı́pio da Indiferença, a probabilidade do carro chegar antes
das 4.30 da tarde bem como depois disso é a mesma. Mas agora, a média de
velocidade entre 50 km/h e 100 km/h é 75 km/h. Portanto, novamente pelo
Princı́pio da Indiferença, a probabilidade do carro estar viajando acima de
75 km/h ou abaixo de 75 km/h é a mesma. Se estiver viajando a 75 km/h,
ele chegará às 4 da tarde. Portanto, é tão provável que chegue antes das 4 da
tarde como após isso. Em particular, então, é ainda mais provável de chegar
antes das 4:30 da tarde do que depois disso. (Que dá uma meia hora extra).
Deixarei você a pensar sobre isto. Tivemos o bastante sobre probabilidade
para um capı́tulo!

78
Ideias centrais do capı́tulo

• pr(a|b) = pr(b|a) × pr(a)


pr(b)

• Dado um número de possibilidades, sem qualquer diferença relevante


entre elas, todas têm a mesma probabilidade (Princı́pio de Indiferença).

Problema
Suponha que existam duas doenças, A e B, que possuem exatamente os
mesmos sintomas observáveis. 90% daqueles que apresentam os sintomas
têm a doença A; os outros 10% têm a doença B. Suponha, também, que
exista um teste patológico para dintinguir entre A e B. O teste dá 9 respostas
corretas a cada 10.

1. Qual a probabilidade do teste, quando aplicado a uma pessoa escolhida


randomicamente, indicar que ela tem a doença B? (Dica. Considere
uma amostra tı́pica de 100 pessoas com os sintomas, e calcule para
quantas o teste diria que tem a doença B.)

2. Qual é a probabilidade de alguém com os sintomas ter a doença B,


dado que o teste indica que ela tem (a doença B)? (Dica. Você deve
usar a primeira questão.)

79
Capı́tulo 13

Teoria da Decisão: Grandes


expectativas

Vamos olhar para uma questão final a respeito raciocı́nio indutivo. Este
tópico é às vezes chamado de raciocı́nio prático, dado que é um raciocı́nio
sobre como alguém deveria agir. Aqui está uma parte famosa do raciocı́nio
prático.
Você pode escolher acreditar na existência de Deus (Cristão); você pode
escolher não acreditar. Vamos supor que você escolhe acreditar. Ou Deus
existe ou Deus não existe. Se Deus existir, tudo ótimo. Se não, então a sua
crença é uma inconveniência menor: quer dizer que você terá desperdiçado
um bocado de tempo na igreja, e talvez feito outras coisas que não faria se
fosse ao contrário; mas nada disso é desastroso. Agora suponha, por outro
lado, que você escolha não acreditar na existência de Deus. Novamente,
ou Deus existe ou Deus não existe. Se Deus não existe, tudo ótimo. Mas
se Deus existir mesmo, rapaz você está encrencado! Você estará cheio de
sofrimento após a morte; talvez por toda a eternidade se não tiver um pouco
de misericórdia. Portanto, qualquer pessoa sã deve acreditar na existência
de Deus. É a única atitude prudente.
O argumento é agora frequentemente chamado de a aposta de Pascal,
batizado em nome do filósofo do século XVII, Blaise Pascal, que primeiro o
formulou. O que alguém irá dizer sobre a aposta?
Vamos pensar um pouco a respeito de como este tipo de raciocı́nio fun-
ciona, comecemos com um exemplo um pouco menos contencioso. Quando
executamos ações, frequentemente não podemos acertar os resultados, que

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podem não estar totalmente sob controle. Mas, podemos geralmente estimar
o quão provável os possı́veis resultados são; e, tão importante quanto, po-
demos estimar o valor dos vários resultados. Convencionalmente, podemos
medir o valor de um resultado atribuindo um número a ele na escala a seguir,
aberta em ambas as direções:

..., −4, −3, −2, −1, 0, +1, +2, +3, +4, ...

Números positivos são bons, e quanto mais à direita, melhor. Números


negativos são ruins, e quanto mais à esquerda, pior. 0 é um ponto de indife-
rença: não nos importamos de qualquer modo.
Agora, suponha que exista uma ação que podemos executar, digamos dar
uma volta de bicicleta. Pode, ainda assim, chover. Uma volta de bicicleta
quando não está chovendo é muito divertido, portanto, avaliarı́amos isto
como, digamos, +10. Mas, uma volta de bicicleta quando está chovendo
pode ser bem infeliz; portanto, avaliarı́amos isto como, digamos -5. Qual
valor deverı́amos colocar na única coisa que está sob controle: dar uma volta
de bicicleta? Poderı́amos apenas somar os dois valores, -5 e 10, juntos, mas
estaria faltando uma importante parte da situação. Pode ser que seja mais
provável que chova, portanto ainda que a possibilidade de chuva seja ruim,
nós não queremos dar a ela muito peso. Suponha que a probabilidade de
chuva é, digamos, 0,1; correspondentemente, a probabilidade de não chover
é de 0,9. Então, podemos pesar os valores com probabilidades apropriadas
para chegar a um valor geral:

0, 1 × (−5) + 0, 9 × 10

Isto é igual a 8,5, e é chamado de expectativa da ação em questão, dar uma


volta de bicicleta. (‘Expectativa’, aqui, é um termo técnico; ele virtualmente
não tem nada a ver com o significado da palavra usada normalmente em
português).
Em geral, seja a um enunciado de que executamos uma ação ou outra.
Suponha, simplesmente, que há dois resultados possı́veis, seja o1 afirmando
que um destes ocorre, e seja o2 afirmando que o outro ocorre. Finalmente,
seja V (o) o valor que nós atribuı́mos a o como sendo verdadeiro. Então a
expectativa de a, E(a), é um número definido por:

pr(o1 ) × V (o1 ) + pr(o2 ) × V (o2 )

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(Estritamente falando, as probabilidades em questão deveriam ser probabi-
lidades condicionais, pr(o1 |a) e pr(o2 |a), respectivamente. Mas, no exemplo,
dar uma volta de bicicleta não tem nenhum efeito na probabilidade de chuva.
O mesmo é verdadeiro em todos os outros exemplos que veremos. Portanto,
podemos permanecer com as simples probabilidades a priori aqui.)
Até aqui tudo bem. Mas como isto me ajuda a decidir se vou ou não dar
uma volta de bicicleta? Eu sei o valor geral da minha volta de bicicleta. A
expectativa é de 8,5, como acabamos de ver. Qual é a expectativa de não
dar uma volta de bicicleta? Novamente, ou irá chover ou não irá - com as
mesmas probabilidades. Os dois resultados agora são (i) que irá chover e eu
fico em casa; e (ii) que não irá chover e eu fico em casa. Em cada caso, não
tenho prazer na volta de bicicleta. Poderia ser um pouco pior se não chover.
Neste caso, poderia ficar irritado que eu não saı́. Mas, em nenhum dos casos
é tão ruim quanto ficar ensopado. Portanto, os valores seriam de 0 se chover,
e de -1 se não chover. Eu posso, agora, calcular a expectativa de ficar em
casa:
0, 1 × 0 + 0, 9 × (−1)
Isto resulta em -0,9, e me dá a informação que eu precisava; porque
eu deveria escolher a ação que tem o maior valor geral, ou seja, expectativa.
Neste caso, dar uma volta de bicicleta tem expectativa 8,5, enquanto que ficar
em casa tem o valor -0,9. Portanto, eu deveria dar uma volta de bicicleta.
Deste modo, dada uma escolha entre a e ¬a, eu deveria escolher a que
tem maior expectativa. (Se forem as mesmas, eu posso simplesmente escolher
aleatoriamente, digamos jogando uma moeda para o alto.) No caso anterior,
há apenas duas possibilidades. Em geral, pode existir mais (digamos dar
uma volta de bike, ir ao cinema, e ficar em casa). Mas, o princı́pio é o
mesmo: calculo a expectativa de cada possibilidade, e escolho a que tiver
maior expectativa. Este tipo de raciocı́nio é um exemplo simples de um
ramo da Lógica que se chama teoria da decisão.
Agora vamos voltar à aposta de Pascal. Neste caso, há duas ações
possı́veis: acreditar ou não; e há duas possibilidades relevantes: Deus existe
ou não. Podemos representar as informações relevantes na forma de uma
tabela:
Deus existe Deus não existe
Eu acredito (b) 0, 1 \+102 0, 9 \−10
Eu não acredito (¬b) 0, 1 \−106 0, 9 \+102

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Os valores à esquerda das barras contrárias (\) são as probabilidades
relevantes, 0,1 que Deus existe, digamos, 0,9 que Deus não existe. (Se eu
acredito ou não, não tem efeito nenhum no fato de que Deus existe ou não;
portanto, as probabilidades são as mesmas em ambas as fileiras.) Os valores
à direita das barras são os valores relevantes. Eu não me importo muito se
Deus existe ou não; o importante é que os coloque corretamente; portanto;
o valor em cada um destes casos é de +102 . (Talvez a preferência de alguém
aqui não seja exatamente a mesma, mas não importa muito, como veremos.)
Acreditar, quando Deus não existe, é uma inconveniência inferior, portanto
ganha o valor -10. Não acreditar, quando Deus existe, ainda é muito ruim.
Ele ganha o valor −106 .
Dados estes valores, podemos computar as expectativas relevantes:

E(b) = 0, 1 × 102 + 0, 9 × (−10) ≈ 0


E(¬b) = 0, 1 × (−10)6 + 0, 9 × 102 ≈ −105
(≈ significa ‘é aproximadamente igual a’.) Eu deveria escolher a ação que
possui a maior expectativa, que é acreditar.
Você pode pensar que os valores precisos que eu escolhi são artificiais de
alguma forma; e eles são. Mas, na verdade, os valores precisos não importam
muito. O valor importante é o −106 . Este valor representa algo que é muito
ruim. (Às vezes, um teórico da decisão escreveria isto como −∞.) É tão
ruim que irá inundar todos os outros valores, até mesmo se a probabilidade
da existência de Deus for bem baixa. Esta é a pegada da aposta de Pascal.
A aposta pode parecer bem persuasiva, mas na verdade ela faz um simples
erro de teoria da decisão. Ela omite algumas possibilidades relevantes. Não
existe um deus possı́vel, existem vários: um deus cristão (Deus), Alá do Islã,
Brahma do Hinduı́smo, e muitos outros que religiões inferiores adoram. E
um número destes são deuses muito ciumentos. Se Deus existe, e você não
acredita, você está encrencado; mas se Alá existe e você não acredita, você
está igualmente encrencado; e assim por diante. Além disso, se Deus existe,
e você acredita em Alá ou vice-versa - isso é ainda pior. Porque em ambas,
Cristianismo e Islã, acreditar em falsos deuses é pior do que ser um simples
descrente.
Vamos desenhar uma tabela com alguma informação mais realı́stica.

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sem deuses Deus existe Alá existe ...
não acredito (n) 0, 9 \+102 0, 01 \−106 0, 01 \−106 ...
Acredito em Deus (g) 0, 9 \−10 0, 01 \+102 0, 01 \−109 ...
Acredito em Alá (a) 0, 9 \−10 0, 01 \−109 0, 01 \+102 ...
.. .. .. ..
. . . .

Se computarmos as expectativas mesmo com essa quantidade limitada de


informação, temos:

E(n) = 0, 9 × 102 + 0, 01 × (−106 ) + 0, 01 × (−106 ) ≈ −2 × 104


E(g) = 0, 9 × (−10) + 0, 01 × 102 + 0, 01 × (−109 ) ≈ −107
E(a) = 0, 9 × (−10) + 0, 01 × (−109 ) + 0, 01 × 102 ≈ −107

As coisas estão parecendo bem obscuras por toda parte. Mas, está claro
que crenças teı́stas estão se saindo pior. Você não deveria ter nenhuma delas.
Deixe-me terminar, assim como terminei todos os capı́tulos, com alguns
motivos pelos quais alguém poderia se preocupar com o quadro geral apre-
sentado - especificamente, neste caso, a polı́tica de decidir de acordo com a
maior expectativa. Há situações em que isto parece definitivamente dar os
resultados errados.
Vamos supor que você faz a aposta errada na aposta de Pascal, e acaba no
Inferno. Após alguns dias, o Diabo aparece com uma oferta. Deus deu poder
para lhe mostrar alguma misericórdia. Portanto, o Diabo tramou um plano.
Ele lhe dará uma chance de sair do Inferno. Você pode jogar uma moeda;
se der cara, você está fora e vai ao céu. Se de coroa, você fica no Inferno
para sempre. Entretanto, a moeda não é justa, e o Diabo tem controle da
probabilidade. Se você jogar hoje, as chances de dar cara é de 1/2 (i.e.,
1 − (1/2)). Se você esperar até amanhã, as chances sobem para 3/4 (i.e.,
1 − (1/2)2 ). Você registra a informação:

Escapar Ficar no Inferno


Jogo hoje (d) 0, 5 \+106 0, 5 \−106
Jogo amanhã (m) 0, 75 \+106 0, 25 \−106

Escapar tem um valor positivo grande; ficar no Inferno tem um valor


negativo grande. Além disso, estes valores são os mesmos hoje e amanhã. É
verdade que se você esperar até amanhã, você teria que passar um dia extra

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no Inferno, mas um dia é insignificante comparado com o infinito número de
dias que estão por vir. Então, você faz os cálculos:

E(d) = 0, 5 × 106 + 0, 5 × (−106 ) = 0


E(m) = 0, 75 × 10 + 0, 25 × (−10 ) = 0, 5 × 106
6 6

Portanto, você decide esperar até amanhã.


Mas, amanhã, o Diabo vem a você e diz que se esperar mais um dia, as
chances ficarão ainda melhores: elas subirão até 7/8 (i.e., 1 − (1/2)3 ). Eu
deixarei você fazer os cálculos: você deveria esperar até o próximo dia. O
problema é que todos os dias o Diabo vem a você e oferece melhores chances
se esperar até o próximo dia. As chances ficam melhores, dia-a-dia, como a
seguir:

1 − 1/2, 1 − (1/2)2 , 1 − (1/2)3 , 1 − (1/2)4 , ..., 1 − (1/2)n , ...


Todo dia você faz o cálculo. A expectativa de jogar a moeda no dia n é:

(1 − (1/2)n ) × 106 + (1/2)n × (−106 )


Um pouco de aritmética nos diz que isso é igual a 106 × (1 − 2/2n ) =
10 × (1 − 1/2n−1 ). A expectativa para esperar até o próximo, n + 1-ésimo,
6

dia é a mesma, com n substituı́do por n + 1. Isto é, 106 × (1 − 1/2n ) - que é
maior. (1/2n é menor que1/2n−1 ) Todo dia, a expectativa aumenta.
Consequentemente, todo dia você faz a coisa racional e espera pelo outro
dia. O resultado é que você nunca irá jogar a moeda; portanto, você fica no
Inferno para sempre! Jogar a moeda em qualquer dia tem que ser melhor
do que isto. Portanto, parece que a única coisa racional a se fazer é ser
irracional!

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Ideias centrais do capı́tulo

• E(a) = pr(o1 )×V (o1 )+...+pr(on )×V (on ) em que o1 , ..., on estabelecem
todos os resultados possı́veis que possam ocorrer a partir de a como
sendo verdadeiro.

• A ação racional é aquela que torna verdadeiro o enunciado com a maior


expectativa.

Problema
Você aluga um carro. Se você não contrata o seguro e ocorre um acidente,
você gastará $1.500. Se você contrata o seguro e ocorre um acidente, você
gastará $300. O seguro custa $90 e você estima que a probabilidade de
ocorrer um acidente é 0,005. Assumindo que as únicas considerações são as
financeiras, você deve contratar o seguro?

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