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Organização
Celina Maria Moreira de Mello
Pedro Paulo GarCia Ferreira Catharina
Sonia CriStina reiS
Rio de Janeiro
2014
PPG-LEN/UFRJ
CLA/UFRJ
CNPq
© 2014 Celina Maria Moreira de Mello, Pedro Paulo Garcia Ferreira
Catharina, Sonia Cristina Reis e autores
Coordenação editorial
Karla Melo
Márcio-André
Ronaldo Ferrito
Victor Paes
Imagem da Capa
Obra de Stéphanie Devaux
Revisão
Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina
Victor Paes
Comercial
Fernando Monteiro
Mello, Celina Maria M. de; Catharina, Pedro Paulo G. F.; Reis, Sonia Cristina
CONFRARIA DO VENTO
Av. Treze de Maio, 13 Sala 2010
Cinelândia 20031-007 – Rio de Janeiro/RJ
Telefax (21) 2533-3587
www.confrariadovento.com
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
SUMÁRIO
aPreSentação
7
JoSePh Jurt
29
seu ensaio fundamental intitulado “O que é a literatura?”, ele define
a obra intelectual pelo público ao qual se dirige, recusando-se a levar
em conta, como fator determinante, a condição do autor:
30
o PaPel do reCePtor na teoria da CoMuniCação
31
a eStétiCa da reCePção
32
é, para ele, a leitura, a atualização do texto pelo leitor. De acordo com
essa visão, trata-se da história das atualizações sucessivas do texto
pelo leitor: “A história da literatura é um processo de recepção e de
produção estética que se realiza na atualização dos textos literários
pelo leitor que lê, pelo crítico que pensa e pelo escritor que produz
novamente” (JAUSS, 1970, p. 172). A fim de não limitar a história
da recepção a um inventário de reações individuais e puramente
psicológicas, Jauss introduz o conceito de “horizonte de expec-
tativa”, que vem da sociologia de Mannheim e é projetado como
um sistema de referência transindividual. O momento da leitura é
descrito como a fusão do horizonte intratextual e do horizonte de
expectativa da época. Este conceito de fusão dos horizontes é tira-
do de Gadamer (que considera a leitura como um diálogo entre o
intérprete e o texto, uma integração do passado no presente, o leitor
sendo influenciado pela tradição e, por sua vez, a influenciando).
A história da recepção está, portanto, vinculada à história do efeito
(Wirkungsgeschichte), sugerida por Gadamer, ao mesmo tempo que se
apresenta como uma mudança radical de perspectiva na abordagem
literária (estética da recepção vs estética da produção). A proposta
de Jauss se insere na tradição da tendência filosófica dominante na
Alemanha: a hermenêutica. Esta ressalta a importância do sujeito e da
situação histórica no momento do processo de percepção (contra
o objetivismo) e eleva a tradição (das interpretações anteriores) para
a categoria transubjetiva (contra o subjetivismo). Jauss apresenta a
“distância estética” como um critério de avaliação estética dos textos,
ou seja, o afastamento entre a obra e o horizonte de expectativa
constituído pela tradição de um gênero, a tópica, as metáforas. O
afastamento ou a inovação serve de parâmetro para medir o valor
estético. Esse parâmetro vem dos formalistas russos; dessa forma
concedemos a uma categoria histórica, que é no máximo pertinente
para a literatura moderna, uma pertinência universal. Por outro lado,
atribui-se ao horizonte de expectativa intraliterária (os sinais do texto)
a prioridade diante do horizonte extraliterário. Ao situar as normas
na obra, Jauss retorna a uma ontologização da obra que ele havia
decidido evitar. Para Jauss, a sociedade está presente externamente
ao fato literário, na qualidade de contexto. As repercussões são, para
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ele, a consequência da comunicação literária. Por meio do ato de recep-
ção, escreve Jauss, a experiência literária pode entrar na vida prática
(Lebenspraxis) do leitor, pré-formar sua visão de mundo e, em seguida,
exercer uma influência em seu comportamento. Jauss desconhece
que o fato literário é, por si só, um fato social. Para ele, o contato com
a obra pode contribuir para ampliar a própria experiência do leitor
graças à experiência do outro, mas esta experiência não parece incidir
sobre a vida prática (JAUSS, 1984, p. 822). Claude Piché observa, a
respeito, com razão: “Por enquanto, só se pode conceber a aplicação
“estética” como sendo a experiência que contribui para que o leitor
fortaleça ou desloque os cânones reconhecidos da estética, e nada
mais” (PICHÉ, 1984, p. 187).
O segredo do sucesso da estética da recepção parece residir
no radicalismo de uma inovação verbal que é, de fato, uma síntese
eclética de elementos já presentes. A estética da recepção é con-
cebida como uma abordagem histórica, mas ela reduz, de fato, a
historicidade à história da recepção, deixando de lado a unidade
essencial entre produção e recepção; por meio de empréstimos ao
formalismo, a estética da recepção isola e privilegia a estética (espe-
cialmente através da categoria de “distância estética”) e, desse modo,
permanece fiel à concepção de uma (certa) autonomia da estética
em relação ao social ou ao psicológico. A estética da recepção não
nega o social, mas o reduz a um fator periférico. No ensaio Die
Partialität der rezeptionsästhetischen Methode (JAUSS, 1973), o próprio H.
R. Jauss reconheceu que o seu conceito de horizonte de expectativa
é marcado por sua origem intraliterária e que ele negligencia um
pouco as interferências extraliterárias. No entanto, não negaremos
que a introdução dos termos de “horizonte de expectativa” e de
“distância estética” tenha sido produtiva. Mas as propostas de Jauss
permanecem frequentemente no nível da teoria, são teses (ou melhor,
hipóteses) que devem ser verificadas à luz de pesquisas empíricas que
deveriam ser desenvolvidas em duas direções: por um lado, trata-se
de fundamentar a reconstituição do horizonte de expectativa de um
determinado momento em uma base documental representativa, até
mesmo exaustiva; por outro lado, é importante destacar os condi-
cionamentos extraliterários do processo de recepção.
34
Por uMa SoCioloGia da reCePção
Estes foram os dois centros de interesse que nos levaram a nos dedi-
carmos a um projeto de pesquisa, visando elucidar, mais de perto, o
processo da recepção. Esse processo nos parece perceptível, para um
período histórico, nos registros escritos deixados pela crítica literária.
Por esse motivo, inicialmente, elaboramos um inventário, que preten-
dia ser exaustivo, de todas as reações provocadas pela obra literária
de um autor do período entre as duas guerras mundiais, Georges
Bernanos4; também levamos em conta um determinado número de
reações suscitadas pelos romances de Gide e de Malraux. Todas essas
resenhas foram analisadas usando um gráfico que foi desenvolvido
com esta finalidade. Em uma síntese, a seguir, procuramos estabelecer
uma classificação significativa das reações, assim como uma listagem
dos critérios que informam o julgamento literário. Dessa forma,
classificamos as reações, de acordo com as orientações políticas da
imprensa, em oito correntes ideológicas (extrema direita, direita,
burguesia, católicos moderados, centro literário, esquerda radical, es-
querda socialista e esquerda comunista). Nossa análise evidenciou uma
grande coerência das reações no âmbito das correntes apresentadas;
foi possível constatar que os julgamentos literários são fortemente
influenciados por seus respectivos pressupostos ideológicos. Ao
examinar a forma das críticas, detectamos dois tipos de reação: por
um lado uma critica judicativa, que opera a partir de um modelo, de um
ideal (literária, referencial, sociocultural, moral, doutrinal [JURT, 1977,
pp. 87-98); a obra é, então, avaliada em sua conformidade com esse
ideal; por outro lado, identificamos uma crítica compreensiva – praticada
por uma minoria de intérpretes – que pretende compreender a obra
mais do que julgá-la; esta crítica não isola alguns aspectos particulares
da obra, ela procura, ao contrário, integrar, em sua interpretação, o
maior número de elementos do texto5.
À luz dos resultados de nossa análise, foi possível verificar os
principais pressupostos da estética da recepção, a qual, como vimos,
postula um horizonte de expectativa composto quase que exclusi-
vamente por experiências e conhecimentos literários. Essa hipótese
não foi confirmada por nossa análise. Os julgamentos dos intérpretes
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não são determinados, em primeiro lugar, por critérios estéticos; os
critérios de avaliação são na maioria das vezes de teor extraliterário;
os critérios estéticos são utilizados, repetidamente, para corroborar
um pré-julgamento ideológico prévio.
De acordo com uma segunda hipótese de H. R. Jauss, a crítica
literária tende a determinar as normas (estéticas) de uma época e
expressa, então, seu desapontamento quando a obra inova e trans-
gride o horizonte de expectativa estabelecido. No entanto, em nossa
análise, identificamos uma série de reações que valorizam os traços
inovadores e originais das obras literárias. Entretanto, os julgamen-
tos críticos, em sua maioria, são expressos a partir de um horizonte
de expectativa conservador, inspirando-se nos modelos já citados.
Considerando as valorizações divergentes da inovação, não podemos
manter o postulado de um horizonte de expectativa uniforme para uma
época em sua totalidade.
Conforme afirmou H. R. Jauss em seus primeiros escritos, a
estética da recepção não pode substituir uma estética da produção;
ela a complementaria ao destacar a presença do leitor no texto e a
importância do leitor real para a concretização. Mas não podemos
esquecer que o processo dinâmico engloba tanto a produção do
texto a partir de suas condições de possibilidade específica, quanto
a concretização do sentido a partir dos apelos inerentes ao texto. A
concretização é, por sua vez, enquanto produção de sentido, um
processo ativo que pode provocar novas produções textuais.
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comentaristas, professores, tradutores), devido à crença no “gênio cria-
dor”, como um dom individual que seria a causa primeira e o princípio
explicativo da obra. Por outro lado, os demais agentes culturais também
seriam os primeiros a reconhecer implicitamente a superioridade da
“criação”, por ver em sua profissão um meio de serem criadores por
procuração (BOSCHETTI, 1994, pp. 51-52).
Quando analisarmos a recepção de obras literárias, não podere-
mos nos ater somente à categoria do “grande autor” ou da “grande
obra”. Teremos que levar em conta o conjunto dos agentes envol-
vidos no processo. Assim, não sem razão, foi criticada a “estética
da recepção”, que pretendia, em primeiro lugar, avaliar a qualidade
estética das obras, por meio da diferença estética entre o produto
criado e o horizonte de expectativa, por negligenciar as condições
sociais do processo de recepção. Somente explicaremos esse processo
se isolarmos um ou outro agente, mas unicamente considerando-os
como parte integrante de um conjunto ou de um sistema e que eu
defino, com Pierre Bourdieu, como um campo.
Se for necessário levar em conta todos os agentes envolvidos
no processo da recepção, não deveremos, de forma alguma, negligen-
ciar os fatores específicos que são considerados quando uma obra é
recebida em um campo estrangeiro. Foi Yves Chevrel que, em um
dos primeiros números dos Cahiers d’Histoire de Littératures Romanes,
identificou pertinentemente os traços específicos que caracterizam
a recepção crítica de obras estrangeiras. O que diferencia a obra es-
trangeira é, de acordo com Chevrel, a grande distância que a separa
do campo de chegada; o contexto extraliterário deve ser considerado,
por exemplo, o estatuto das relações oficiais com a nação de origem.
A literatura estrangeira está sempre sujeita a uma explicação, de acordo
com um processo que traz o desconhecido (o estrangeiro) ao conhe-
cido (a tradição francesa universalizante). O método mais comum
é o simples paralelo; a seguir, os leitores são incitados a descobrir a
marca de sua própria literatura, ou afirma-se que tudo já foi dito pela
literatura francesa. Yves Chevrel, a esse respeito, transcreve as obser-
vações feitas por Zola, em 1897, em La Revue blanche: “Do mesmo
modo que, dizem, nosso vinho de Bordeaux torna-se melhor com
a viagem às Índias, é certo que algumas de nossas ideias, passando
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pelo gênio do Norte, assumiram uma dimensão e uma intensidade
admiráveis” (CHEVREL, 1977).
Foi Pierre Bourdieu quem, de forma muito perspicaz, definiu
as condições específicas da recepção de obras científicas e literárias
estrangeiras. Ele constatou que os textos, frequentemente, circulam
sem o seu contexto. Os receptores, inseridos em um campo de pro-
dução distinto, os interpretam em função da estrutura de seu campo
de recepção. O sentido e a função de uma obra estrangeira seriam
dessa forma determinados, ao menos, tanto pelo campo de recepção
quanto pelo campo de origem. A função no campo de origem, por
um lado, seria frequentemente ignorada, por outro lado, a transfe-
rência de um espaço para o outro se daria por meio de uma série de
operações sociais, uma operação de seleção, uma operação de tagging
e uma operação de leitura; e os leitores muitas vezes aplicam à obra
categorias de percepção e problemáticas de seu próprio campo:
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cionar porque membros de uma elite não francesa haviam internalizado
o modelo, ao mesmo tempo em que o instrumentalizaram como sinal
de distinção diante de classes inferiores7.
É contra esta civilização aristocrática de inspiração francesa, e
aparentemente transnacional, que consideravam superficial e alienante,
que os intelectuais alemães de origem burguesa opunham sua concep-
ção da Kultur. Foi especialmente Justus Möser quem em 1781, em uma
resposta a Frederico II, fez a defesa de uma identidade cultural alemã,
em seu ensaio Über die Deutsche Sprache und Literatur, acusando o ideal
literário francês de ser exclusivamente aristocrático e louvando Goethe e
os autores ingleses por terem integrado, em seus escritos, a dimensão do
povo. Em sua opinião, não poderia haver padrões poéticos universais e
ele recorria a uma concepção organicista da cultura. Haveria uma cultura
específica para cada povo, uma vez que a lei do universo é a variedade
e não a uniformidade. Esta concepção organicista da cultura prevale-
cerá, especialmente em Herder, para quem a individualidade de cada
povo se traduz por sua língua e que busca nos textos originais a forma
de pensamento, o princípio originário da natureza, seu “Volksgeist”. A
concepção organicista da cultura, que podíamos encontrar em Herder
e Möser, deveria ter conduzido a um reconhecimento da legitimidade
das outras culturas. No entanto, a literatura nacional alemã afirmou-
-se, já no final do século XVIII, em particular, contra a predominância
francesa. Herder via na tragédia francesa somente mentiras e disparates,
uma marionete desprovida de espírito, de vida e de verdade. Ao longo
do século XIX, haverá críticas recorrentes da orientação da literatura
alemã em conformidade com o modelo estrangeiro, sobretudo com
as literaturas romanas.
Contudo, o nacionalismo literário exclusivo não era a única
reação destinada a exceder o cosmopolitismo aristocrático. Um outro
modelo expressava-se no conceito da Weltliteratur de Goethe, que
estipulava o intercâmbio entre as literaturas, assim como nos escri-
tos de Mme de Staël. Mme de Staël também partia de uma concepção
cultural organicista. No entanto, para ela, a ideia da legitimidade de
uma literatura nacional implicava no reconhecimento da legitimidade
idêntica das literaturas das outras nações. Devia-se reconhecimento
ao que era estrangeiro em sua originalidade, referindo-a às condições
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históricas específicas, o que Mme de Staël tentou fazer em sua obra Da
literatura considerada em suas relações com as instituições sociais (1800). A partir
de tal reconhecimento mútuo, é possível que haja uma troca entre as
culturas. Dessa forma, Mme de Staël, segundo Pierre Macherey, foi
além do particularismo romântico que afirma a autonomia radical de
cada cultura e também do universalismo clássico que confunde todas
as culturas em um modelo ideal abstrato. A tese por ela formulada, já
no final do século XVIII, era totalmente inovadora: “Só existe iden-
tidade cultural dentro da relação cultural que reúne todas as culturas,
opondo-as entre si” (MACHEREY, 1988, p. 425).
A autonomia literária também se manifestou no campo dos es-
tudos universitários. A literatura que, por certo, havia-se inspirado nas
obras da Antiguidade e que havia integrado, ao longo do século XVIII,
o empirismo inglês, era considerada universal, mas, no final das contas,
essa universalidade era muito galocêntrica e pouco aberta a outras cul-
turas. Em um livro recente intitulado O paradigma do estrangeiro, Michel
Espagne conta que somente em 1830 foi criada, em Paris, a primeira
cátedra de literatura estrangeira, constituindo, desta forma, por oposição
uma “literatura francesa” desprovida de sua pretensão universalista.
Para a França do século XIX, o “estrangeiro” era a cultura alemã; e os
instrumentos intelectuais por meio dos quais se buscava compreender
as culturas estrangeiras provinham da tradição alemã: filologia, historis-
mo, teoria do espírito nacional. Contudo, não se tratava, em hipótese
alguma, de uma visão desinteressada da cultura estrangeira, que foi, ao
contrário, instrumentalizada em benefício das necessidades nacionais8.
O conceito de literatura estrangeira implicava, como observa Michel
Espagne, o princípio da diferenciação; a partir de 1879, foi instituída
uma cátedra para a literatura da Europa do Sul e, em 1901, foi criada
uma cátedra voltada para a língua alemã e a língua inglesa.
A referência nacional determinou a recepção da literatura, de
ambos os lados, ainda no século XX. Doris Harrer constata esse fato na
conclusão de sua tese sobre a recepção da literatura francesa, durante
a República de Weimar (Französische Literatur in der Weimarer Republik).
Segundo a autora, na Alemanha da República de Weimar, marcada
por uma crise de identidade nacional, a literatura francesa tornara-se
um modo para a busca de si própria; alguns pretendiam manter uma
40
entidade alemã em oposição ao estrangeiro, encarnado pela literatura
francesa; em contrapartida, críticos próximos da esquerda pretendiam
ir além da “essência” alemã adaptando-se ao estrangeiro, também
representado pela literatura francesa. Aqueles que, como Walter
Benjamin, procuravam entender a literatura francesa enquanto tal se
encontravam mais à margem ou distantes dos grupos dominantes da
República de Weimar (HARRER, 1987, pp. 182-183).
Assim, em um artigo publicado em 1928, Ernst Robert Curtius
constatou que cada parceiro deste diálogo franco-alemão utilizava
inconscientemente as normas de sua própria cultura como critério
de apreciação da cultura do outro. Mas o próprio Curtius não con-
seguiu fugir dessa forma de percepção. Ele pretendia apresentar em
seu livro sobre os precursores da nova França (Die Wegbereiter des
neuen Frankreich [1919]) uma imagem diferente da França decadente;
mesmo assim, ele recorreu a estereótipos de convenção, ao associar
a França a um estado de agregação sólido e a Alemanha a um estado
líquido. Em autores como Gide, Romain Rolland, Claudel, Suarès,
Péguy, ele vislumbrava os representantes de uma “jovem” França,
que correspondia à imagem que a Alemanha tinha de si própria –
que representava o porvir. Curtius acreditou ter descoberto naqueles
autores um sentimento de valores que teria um “ponto comum”
com o dos alemães; ele ressaltava, nesses escritores, as categorias de
intensidade da vida e do vivido, um impulso novo que Bergson e
Nietzsche pareciam confirmar a partir de uma filosofia vital.
Por ocasião de uma recente pesquisa empírica sobre as moda-
lidades sócio-históricas da leitura, Jacques Leenhardt e Pierre Józsa
tiveram que se render à evidência que a ideia segundo a qual cada
leitor se encontra diante das obras-primas da literatura mundial, em
uma situação de leitura idêntica, deveria ser reavaliada:
41
Durante a sua pesquisa empírica, Leenhardt e Józsa sugeriram
a leitura de um romance francês (Les Choses, de Pérec) e um romance
húngaro (Le cimetière de rouille, de Fejes) para uma amostragem repre-
sentativa de leitores na França e na Hungria. Os resultados não foram
idênticos, longe disso. Na Hungria, para o romance francês, preva-
leceu uma leitura moralista e, para o romance húngaro, uma leitura
sociológica, política, enquanto que na França, para os dois romances,
prevaleceu uma leitura analítica e sociológica. Se a questão política
evocada pelos romances transita na Hungria pela identificação, isso
comprova, aos olhos dos autores, que o discurso universalista não
está à disposição de qualquer um. Em contrapartida, a capacidade de
que dispõe, teoricamente, qualquer francês para apreender os pro-
blemas em toda a sua complexidade pode parecer como um efeito
da prevalência do discurso universalista, na França (LEENHARDT
& JÓZSA, 1982, pp. 332-341).
A análise da recepção das obras estrangeiras, que é aquela da
circulação internacional das obras e das ideias, não é somente um
tema acadêmico. No campo das trocas de bens materiais, a globali-
zação parece prevalecer cada vez mais; não é de forma alguma o que
ocorre no que se refere às trocas culturais, onde parece haver uma
evolução inversa. Os domínios linguísticos, mesmo no âmbito dos
Estados-nações se diferenciam cada vez mais. A Europa está dividi-
da por culturas nacionais estritamente separadas e cada país ignora
quase que totalmente o que se passa nos países vizinhos, tanto no
âmbito do debate das ideias quanto em termos de criação literária,
principalmente se eles não pertencerem à mesma área linguística9.
É, portanto, primordial analisar de perto os fatores que deter-
minam a transferência (ou a não transferência) de obras e de ideias
de um campo nacional para outro; isso facultaria, assim, que fossem
esclarecidas as causas de muitos dos mal-entendidos estruturais que
caracterizam as relações intelectuais transnacionais e que fosse aberto
o caminho para um diálogo racional10.
42
notaS
43
a escolha dos autores estrangeiros de que eles se ocupam permanece
muito limitada e determinada por considerações puramente nacionais,
por necessidades específicas da cultura de chegada [...]. Em contrapar-
tida, o que ocorre é uma instrumentalização variada e complexa das
culturas vizinhas, uma instrumentalização que talvez seja inconsciente,
mas cujas diversas figuras são suficientemente marcadas para que sejam
explicadas, em sequência” (ESPAGNE, 1993, pp. 15-16).
9 Ver o que afirma Roger-Paul Droit a este respeito: “Conversamos por
satélite entre dois continentes. Imagens de televisão, mensagens de fax,
ordens informatizadas transitam, instantaneamente, entre os dois lados
do mundo. Mas são necessários longos anos, por vezes décadas, para
que uma obra importante atravesse o rio Reno, a cordilheira dos Alpes
ou dos Pirineus, o canal da Mancha ou o mar Mediterrâneo. Ignoramos,
com persistência, pensadores importantes dos países vizinhos que nos
tocariam intimamente, enquanto somos avisados que um trem descar-
rilou ou que há casos de vaca louca. Este não é o menor paradoxo do
século: as questões, políticas ou financeiras, e também os fatos fúteis
ignoram as distâncias e o tempo, enquanto o comércio das ideias é
afinal de contas mais limitado e menos intenso do que nos tempos dos
cocheiros, das pousadas para muda e das prensas manuais” (Le Monde,
12 de abril de 1991, p. 22).
10 Para um estudo de caso cf. JURT, 2009; 2006. A partir das propos-
tas de Pierre Bourdieu foi constituída uma rede de pesquisas finan-
ciada pela comunidade europeia, denominada ESSE, que se dedicou
à análise dos processos de recepção transnacionais da literatura e das
ideias. Trata-se de determinar os mecanismos de importação e de
exportação das obras das duas últimas décadas, em um plano inter-
nacional. O ângulo sociológico de percepção, nesse caso, amplia-se
para o direito e a economia, uma vez que se trata da troca de bens
materiais e simbólicos. Especificamente, trata-se de considerar o
contexto da globalização (econômica) e suas consequências para a
troca intelectual. Nesse contexto, Gisèle Sapiro organizou e publicou
três obras coletivas voltadas para a problemática da recepção vista
pelo viés das traduções: Translatio. Le marché de la traduction en France à
l’heure de la mondialisation (2008); Les contradictions de la globalisation édi-
toriale (2009), L’espace intellectuel en Europe: de la formation des Etats-nation
à la mondialisation XIXe-XXIe siècle (2009). Nesse contexto, convém
mencionar a obra de Gustavo Sorá, Traducir el Brasil. Una antropología
dela circulación de ideas (2003).
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