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De fato, a Grande Guerra ainda não havia chegado ao fim quando o Partido
Bolchevique tomou o poder na Rússia, implantando, pela primeira vez na História, em
1917, um regime socialista.
Todo esse conjunto de fatores leva Paul Surer (1969) a afirmar que o entreguerras
constitui um período rico em transformações sociais que forneceram aos dramaturgos um
considerável material para a sátira das instituições e hábitos sociais.
Mais exatamente, partícipe da ebulição cultural dessa Paris que reassumia seu
papel de capital intelectual num mundo que buscava se reinventar, o teatro retoma sua
relevante função propulsora de modernidade junto aos diversos meios de expressão
artística.
Dos grandes nomes que retornam à cena, ainda segundo Surer (1969), destaca-se
o de Jules Romains entre os autores de comédia satírica pela acuidade com que observa
a sociedade e tudo o que compromete sua estabilidade e desenvolvimento harmonioso,
ressalvando-se, contudo, que sua obra, junto a de outros grandes autores da época, desafia
todas as possibilidades de classificação em categorias.
Tal fato possibilita alinhar Romains a autores como Proust, Gide e Valéry, cujas
obras, opondo-se ao discurso da crítica oficial da época, lançam-se em um outro tipo de
crítica que se realiza dentro da própria ficção.
É justamente dentro deste quadro de literatura crítica que se insere, a nosso ver, já
em 1923, ano de sua primeira encenação, Knock ou le triomphe de la médecine. Situando
esta sátira de Jules Romains dentro do contexto da França do começo do século,
observamos que, no que concerne ao tema, gravita em torno de uma tríplice reflexão de
ordem crítica: da política (sobretudo do ponto de vista do poder), da ciência e da própria
literatura.
Tão pouco a posterior descoberta de que “a verdadeira doutrina” (1998, p.40) não
era a que o levara a enclausurar quatro quintos da população de Itaguaí, mas a oposta,
poderá desconcertá-lo: “Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-
se ainda na penetração com que principiou a tratá-los” (1998, p.45).
Mais do que tudo, entrementes, é o final do conto que parece confirmar de maneira
definitiva a “superioridade e a autoridade científicas” de Simão Bacamarte: após a
libertação da segunda leva de reclusos por ele “tratada” e julgada “recuperada”, o alienista
não hesitará em se internar, reconhecendo em si mesmo “os característicos do perfeito
equilíbrio mental e moral” (ASSIS, 1998, p.48), isto é, tudo aquilo que, de acordo com
suas novas conclusões, determinaria os sintomas de “demência”: “Era decisivo. Simão
Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste.
Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde.” (1998, p.48).
Mas outras satisfações serão igualmente apontadas, no conto: a forma como é
descrita, pelo narrador, a atitude do personagem em relação à surpresa de Dona Evarista
diante da “via láctea de algarismos” que lhe apresenta o marido e, principalmente, em
frente às arcas onde estava o dinheiro proveniente das internações, parece bastante
significativa: “Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a
e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões: Quem diria que meia dúzia de
lunáticos...” (1998, p.15).
Mas não serão os únicos a serem persuadidos por Knock, quer no que concerne à
“saúde”, quer no que se refere à “doença”. É o que relata Madame Rémy, a dona do Hôtel
de la Clef, recém-transformado em hospital, ao atônito predecessor de Knock, Doutor
Parpalaid, já ao final da peça, quando este volta a Saint-Maurice, como estipulado
anteriormente, três meses após a venda de sua clientela:
E não adianta insinuar tampouco que ele [Knock] descobre doenças em pessoas
que não têm nada. Eu, mais do que qualquer outro, já fiz com que ele me
examinasse dez vezes desde que começou a vir todos os dias ao hotel. Todas
as vezes ele se prestou a fazê-lo com a mesma paciência, me auscultando dos
pés à cabeça, com todos os seus instrumentos, e perdendo um bom quarto de
hora. Ele sempre me dizia que eu não tinha com o que me preocupar, que tudo
o que eu tinha a fazer é comer e beber bem. E nem pensar em fazer com que
ele aceitasse um centavo. [...] (1924, p.122)
Também o farmacêutico Mousquet, não colocará em dúvida a “teoria
profundamente moderna” que lhe expõe o Doutor Knock quanto ao princípio de que
“todos os habitantes do cantão são ipso facto” (ROMAINS, 1924, p.79- 80), clientes
potenciais, tanto de um, quanto do outro:
MOUSQUET
— É verdade que num momento ou outro de sua vida, cada um pode se tornar
nosso cliente ocasional.
KNOCK
— Ocasional? De jeito nenhum. Cliente regular, cliente fiel.
Observa-se, assim, que o discurso de Knock, bem como suas atitudes, busca
encobrir seus verdadeiros objetivos de satisfação de ordem pessoal: não só o
enriquecimento, mas também, o poder.
Verifica-se, pois, que tanto o conto quanto a peça, unindo a retórica à ciência,
instalam “ditaduras científicas”, uma em Itaguaí, outra, em Saint-Maurice ‒ ambas,
cidades interioranas, representativas de um macrocosmo político-social em que o “poder”
encontra-se estreitamente relacionado com a “palavra”, mais exatamente, a ela subjugado.
Assim, nos dois casos, a oratória brilhante (mas vazia do ponto de vista de ideias
ou, senão, mistificadora), sob aparente embasamento científico, será utilizada como
instrumento de sujeição da população das duas cidades pelos manipuladores da retórica
da ciência: Simão Bacamarte e Knock.
E é essa abordagem de cunho irônico verificada nos dois textos supracitados que
nos leva a depreender um dos traços da “política do palimpsesto” neles contida, como
bem o demonstra Costa Lima no que concerne a O alienista:
Com efeito, o humour, que mais do que um recurso estilístico constitui o traço
transgressor da obra machadiana, participando, por assim dizer, da própria trama de O
Alienista (desde a escolha do tema, passando pela elaboração dos personagens e do
cenário em que se desenrola a ação), será apontado por uma parte da crítica (cujos padrões
de legitimação dos textos literários brasileiros baseavam-se na presença da natureza e dos
índios) ‒ como procedimento “anti-natural”, logo, “anti-nacional”.
Quanto a Knock, também não pode ser compreendida como casual a escolha do
tema, dos personagens e do cenário, sobretudo no momento em que, em nome do
nacionalismo, regimes totalitários, senão declaradamente xenófobos, segregacionistas,
começam, como anteriormente referido, a firmar suas bases na Europa. Sendo assim, a
questão da recusa do outro ‒ a princípio, o doutor Knock; em seguida, pela inversão de
papéis provocada pela mudança de situação, M. Parpalaid, seu predecessor ‒ dentro de
uma comunidade gregária ‒ no caso, o vilarejo de Saint-Maurice ‒ pode ser compreendida
como a metáfora dessa vertente nacionalística que “proporciona um caminho fácil para
aspirantes a ditador” (JOHNSON, 2000, p.150-151).
REFERÊNCIAS
CHAIGNE, Louis (1964). Les lettres contemporaines. Paris: Del Duca.
GARBUGLIO, José Carlos (1998). “Entre a loucura e a ciência”. In: ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. O alienista. São Paulo: Ática.
JOBIM, José Luís (2000). Sentidos da literatura. (Tese apresentada para concurso de professor
titular de Teoria da Literatura). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
______ (2000b). (s/t). Comentado [L1]: É possível a referência ficar desta forma?
(Matheus)
JOHNSON, Paul (2000). “Bom servo, mau senhor”. Veja. São Paulo: Abril. Procurando sobre o autor achei várias obras de 2000, ficando difícil
saber de qual se trata; procurando a citação, achei o artigo dessa
LIMA, Luiz Costa (1991). Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Rocco. mesma autora, na Abralic, em que ela usou essa mesma citação, mas
referenciou de forma diferente:
ASSIS, Joaquim Maria Machado de (1998). O alienista. São Paulo: Ática. “JOBIM, José Luis (Org.). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro:
EdUerj, 1999”.
MELLO, Maria Elizabeth Chaves de (1997). Lições de crítica. Niterói: Eduff. Assim, deixo a critério da supervisão a troca ou não da referência
(Elen)
MOISÉS, Massaud (2001). Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix.
ROMAINS, Jules (1924). Knock ou le triomphe de la médecine. Paris: Gallimard.
______ (1950). Donogoo. Paris: Gallimard.
______ (1983). La vie unanime. Paris: Gallimard.
SCHWARZ, Roberto (2000). Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades.
SURER, Paul (1969). Cinquante ans de théâtre. Paris: Société d’Edition d’Enseignement
Supérieur.
GERSHMAN;WHITWORTH (1962). Anthologie des préfaces de romans français du XIX e siècle.
Paris: Julliard.