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ROMAINS E MACHADO: OLHARES CRUZADOS

Stela Maria Sardinha Chagas de Moraes (UERJ)

Tomando como ponto de partida o panorama histórico-político que se estende da


segunda metade do século XIX até a primeira metade do século XX, Paul Surer, em
Cinquante ans de théâtre (1969), elege o entreguerras como o momento decisivo de
mudanças em todas as áreas do conhecimento humano.

No entanto, nesse mesmo contexto, os antagonismos sociais se aguçam e as


dissensões na esfera das potências mundiais se acirram. Nas sociedades burguesas em
geral, como bem o demonstra Louis Chaigne, os interesses prevalecem sobre as ideias e
“quem não entra na valsa desenfreada do arrivismo vê-se condenado a vegetar ou perecer”
(1964, p.483). Aliás, o assim denominado entreguerras se caracteriza pela tendência à
radicalização: é nesse momento que movimentos políticos de caráter autoritário, em nome
do nacionalismo, começam a espocar em diversos países ávidos em (re)afirmar sua
identidade cultural.

De fato, a Grande Guerra ainda não havia chegado ao fim quando o Partido
Bolchevique tomou o poder na Rússia, implantando, pela primeira vez na História, em
1917, um regime socialista.

Na Itália, os fascistas, em 1922, eliminando a oposição, instalaram um estado


totalitário, cuja representação máxima é a do “Duce”, que, apoiado por um partido único,
pretendia representar a vontade das massas.

Governos fascistas formaram-se em outros países, mas com feições próprias. É o


caso da Espanha, Portugal, Polônia, Iugoslávia. Cabe explicitar que o termo, mal
empregado, refere-se ainda a outros regimes autoritários como os da Hungria, Romênia
ou Turquia.

Entrementes, se em termos políticos a instabilidade é uma constante, a


prosperidade e o dinamismo artístico verificados nos anos vinte permitem qualificar a
França como progressista em relação ao período que precedeu a Primeira Grande Guerra.

Estabelecendo-se como centro cultural de maior evidência na Europa, Paris


refletirá, por um lado, a euforia de sua belle époque e, por outro, o pessimismo
decadentista do fin de siècle.
Após a Primeira Grande Guerra, o cinema, principalmente do ponto de vista
comercial (entre outras formas de espetáculo igualmente cosmopolitas, tais como o circo
e o “music-hall”), ganhará destaque.

A euforia nascida mais do desejo do que das evidências do afastamento definitivo


de uma nova guerra, associada à evolução industrial e tecnológica e às novas tendências
artísticas, contribuirá, de certa forma, para a intensificação do apetite consumista das
democracias burguesas.

Todo esse conjunto de fatores leva Paul Surer (1969) a afirmar que o entreguerras
constitui um período rico em transformações sociais que forneceram aos dramaturgos um
considerável material para a sátira das instituições e hábitos sociais.

Mais exatamente, partícipe da ebulição cultural dessa Paris que reassumia seu
papel de capital intelectual num mundo que buscava se reinventar, o teatro retoma sua
relevante função propulsora de modernidade junto aos diversos meios de expressão
artística.

Dos grandes nomes que retornam à cena, ainda segundo Surer (1969), destaca-se
o de Jules Romains entre os autores de comédia satírica pela acuidade com que observa
a sociedade e tudo o que compromete sua estabilidade e desenvolvimento harmonioso,
ressalvando-se, contudo, que sua obra, junto a de outros grandes autores da época, desafia
todas as possibilidades de classificação em categorias.

No que tange a Jules Romains, em particular, a afirmação parece justificar-se


plenamente, uma vez que sua obra teatral comporta temas e formas as mais diversas,
variando igualmente o “tom”, que pode assumir as características da seriedade, do lirismo
ou do farsesco mais cômico, de acordo com as circunstâncias do momento.

Aliás, é justamente a sátira direta em que se explora o humor irônico e provocador


que o consagrará como autor teatral junto ao público e à crítica.

Daí, certamente, o incontestável sucesso de duas peças de Romains ‒ Knock ou le


triomphe de la médecine e Donogoo. Não por acaso, ambas têm, “por tema, enormes
mistificações e, por heróis, impostores possuídos de um instinto de conquista e hábeis em
exercer sobre as massas um império despótico” (SURER, 1969, p.61-62).
De fato, já na virada do século, a tomada de consciência da concentração urbana
e industrial, os movimentos de massa na vida política e social, entre outros fatores,
atrairão as atenções para os grupos e os fenômenos coletivos, inspirando Jules Romains,
em 1903, a conceber o “unanimismo” e a formular uma realidade poética nova, através
de uma linguagem igualmente nova. La vie unanime, longo poema publicado em 1908,
constitui, por sua temática, bem como por sua composição, uma “obra moderna, cuja
principal audácia se deve à fundação de um lirismo objetivo de essência espiritual”
(Romains, Apud SURER, 1969, p.34). Observa-se, então, que desde suas mais remotas
origens, o que ressalta, imediatamente, na obra literária de Jules Romains, é o seu caráter
duplamente reflexivo relacionado ao poético em si e a sua própria função.

Tal fato possibilita alinhar Romains a autores como Proust, Gide e Valéry, cujas
obras, opondo-se ao discurso da crítica oficial da época, lançam-se em um outro tipo de
crítica que se realiza dentro da própria ficção.

É justamente dentro deste quadro de literatura crítica que se insere, a nosso ver, já
em 1923, ano de sua primeira encenação, Knock ou le triomphe de la médecine. Situando
esta sátira de Jules Romains dentro do contexto da França do começo do século,
observamos que, no que concerne ao tema, gravita em torno de uma tríplice reflexão de
ordem crítica: da política (sobretudo do ponto de vista do poder), da ciência e da própria
literatura.

Considerando que a ciência ‒ este componente que, doravante, sob as mais


diversas formas, alargará seus domínios pelas mais variadas vertentes do conhecimento
humano ‒ constitui o tema central a partir e em torno do qual desenrola-se a ação
propriamente dita da peça, assinalamos o papel preponderante por ela desempenhado no
que tange ao presente trabalho.

Partindo do pressuposto de que Knock ou le triomphe de la médecine tece, nas


suas entrelinhas, uma crítica à realização literária de cunho cientificista, ou seja, ao
naturalismo, pareceu-nos justificável, respeitadas, naturalmente, as distâncias espaço-
temporais, estabelecer os pontos de contato entre a citada peça de Jules de Romains e o
conto “O alienista”, de Machado de Assis, uma vez que os dois textos parecem realizar,
de maneira subliminar, uma releitura de Le roman expérimental, de Émile Zola
(GERSHMAN; WHITWORTH, 1964).
De fato, como por nós demonstrado em vários trabalhos, remetendo, à primeira
vista, à apologia da ciência ‒ a partir do título onde a exaltação à medicina parece
evidenciar-se ‒ observamos que Knock, após a revelação das verdadeiras intenções do
personagem central ‒ fazer fortuna ‒ configura-se como preponderantemente exegética,
questionando vários aspectos do contexto sócio-histórico franco-europeu, por assim
dizer, dos anos vinte, além de indagar não só sobre o fazer literário, mas sobre a sua
própria função.

Com relação a “O alienista”, o mesmo parece ocorrer, desta vez, dentro do


contexto sócio-histórico do Brasil oitocentista, mais precisamente, do início da década de
80. De acordo com José Luís Jobim, “[n]o Brasil oitocentista, invocou-se o nacionalismo
para legitimar uma política de separação e diferenciação da antiga metrópole colonial”
(2000, p.56).

Nessa conjuntura de edificação da nacionalidade, a literatura ‒ aqui, tomada no


sentido amplo, que passa, naturalmente, pela poesia, romance, crônicas e teatro, mas
também pela história, geografia, etnografia, entre outras manifestações textuais de cunho
descritivo ‒ desempenhará papel fundamental enquanto instrumento de inegável utilidade
para a pátria.

Neste sentido, a natureza brasileira oferecerá matéria essencial à inserção da


literatura no projeto de constituição da nacionalidade, permitindo aos escritores
brasileiros “o duplo movimento necessário ao estabelecimento de uma identidade:
delinear a imagem do ‘eu’ e mostrar a sua diferença em relação ao ‘outro’” (JOBIM,
2000b, p.22).

É importante assinalar, no entanto, que o início da literatura brasileira será


marcado pela paradoxal tentativa de estabelecimento de identidade nacional através da
utilização da língua do antigo colonizador. Daí a necessidade de adoção de temas
diferentes, de caráter original, na busca de demarcação dos limites entre a literatura
propriamente portuguesa e a brasileira.

Aliás, segundo Roberto Schwarz, o ritmo de nossa vida ideológica, seguindo à


distância os passos do velho mundo, “viu passarem as maneiras barroca, neoclássica
romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram
transformações imensas na ordem social” (2000, p.25). Em outras palavras, adotadas ‒ o
que vale dizer importadas ‒ tais ideias encontram-se desajustadas em relação ao lugar a
que são submetidas; donde “o desacordo entre a representação e o que, pensando bem,
sabemos ser o seu contexto” (2000, s/p).

Tal “impropriedade” de ideias europeias aplicadas por uma sociedade recém-


emancipada e a procura de identidade será verificada também no campo das artes e,
particularmente, no da literatura. Dessa forma, ainda de acordo com Schwarz,
“herdávamos com o romance, mas não só com ele, uma postura e dicção que não
assentavam nas circunstâncias locais e destoavam delas” (2000, p.49). E é deste
“desajuste naturalmente cômico” (2000, p.49-50) que Machado de Assis tirará partido,
principalmente no conto “O alienista" ao “colocar em xeque o determinismo mecanicista
que a ciência do seu tempo, meio às cegas, apregoava” (MASSAUD, 2001, p.126).

É o que se evidencia através do personagem principal, Simão Bacamarte, que,


encarnando a Ciência, na sua incansável luta pela demarcação da zona limítrofe entre a
razão e a loucura, propicia, não só o questionamento das “verdades científicas”, mas
também das instituições sociais, de maneira geral, além da própria linguagem ‒
instrumento indiscutível de ataque utilizado por Machado de Assis, no entender de José
Carlos Garbuglio, “contra os vezos da época e do brasileiro, amante da retórica balofa e
inchada, ainda hoje estimada de muitos” (1998, p.4).

É preciso considerar que, em um como em outro caso, os protagonistas, apesar da


seriedade e devotamento à missão que se propõem cumprir, não são totalmente imunes
às satisfações de ordem pessoal: Simão, embora “exteriormente”, compreendeu que se
ocupando da saúde da alma, “a ciência” lusitana e particularmente a brasileira, podia
cobrir-se de “louros imarcescíveis” (ASSIS, 1998, p.10). Louros estes que lhe cobririam,
por certo, a fronte que sempre se mostra altiva: primeiramente, ao declinar do convite que
lhe fazia o rei para que pudesse dedicar-se apenas ao “estudo da ciência” (1998, p.9); em
seguida, diante da decepção causada pela recusa da esposa em lhe atender à prescrição do
“regímen alimentício” que asseguraria a continuidade à dinastia dos Bacamartes,
mergulhando inteiramente “no estudo e na prática da medicina” (1998, p.9); depois,
defendendo com veemência, na Câmara, sua proposta de “agasalhar e tratar” os loucos de
Itaguaí e vizinhança; mais tarde, ao falar com o vigário a respeito da “razão humana, e
puramente científica” que explicaria a demência de um dos reclusos (1998, p.12); também
no momento em que retorna a casa depois de se despedir da esposa que partia para o Rio
de Janeiro, sem se deixar abalar pelas abundantes lágrimas por ela vertidas: “se alguma
coisa o preocupava naquela ocasião [...] não era outra coisa mais do que a ideia de que
algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo” (1998, p.16).

Nem a ameaça de morte alardeada em altos brados pelo barbeiro Porfírio e a


convocação deste para que os revoltosos que o haviam acompanhado até a residência do
Doutor Bacamarte destruíssem a Casa Verde (1998, p.29-30), ou seja, o hospício que
mandara construir, é capaz de “desengonçar por um instante a rigidez científica” (1998,
p.23) do alienista.

Tão pouco a posterior descoberta de que “a verdadeira doutrina” (1998, p.40) não
era a que o levara a enclausurar quatro quintos da população de Itaguaí, mas a oposta,
poderá desconcertá-lo: “Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-
se ainda na penetração com que principiou a tratá-los” (1998, p.45).

Os exemplos se multiplicam ao longo do conto consolidando essas que constituem


as principais características do alienista: a autoconfiança, fruto de sua fé inabalável na
ciência, e o autoritarismo revestido de abnegação e desprendimento: “Era um grande
homem austero, Hipócrates forrado de Catão” (1998, p.40).

Observa-se que, em ambos os casos, os especialistas, utilizando “métodos


próprios”, buscam estabelecer fronteiras: em Itaguaí, como referido, o Doutor Bacamarte
se empenhará em demarcar “definitivamente os limites da razão e da loucura” (1998,
p.18); em Saint-Maurice, o Doutor Knock concentrará todos os seus esforços não só no
sentido de determinar, mas também no de “conduzir à existência medical os milhares de
indivíduos neutros do Cantão” (ROMAINS, 1924, p.135).

Mais do que tudo, entrementes, é o final do conto que parece confirmar de maneira
definitiva a “superioridade e a autoridade científicas” de Simão Bacamarte: após a
libertação da segunda leva de reclusos por ele “tratada” e julgada “recuperada”, o alienista
não hesitará em se internar, reconhecendo em si mesmo “os característicos do perfeito
equilíbrio mental e moral” (ASSIS, 1998, p.48), isto é, tudo aquilo que, de acordo com
suas novas conclusões, determinaria os sintomas de “demência”: “Era decisivo. Simão
Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste.
Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde.” (1998, p.48).
Mas outras satisfações serão igualmente apontadas, no conto: a forma como é
descrita, pelo narrador, a atitude do personagem em relação à surpresa de Dona Evarista
diante da “via láctea de algarismos” que lhe apresenta o marido e, principalmente, em
frente às arcas onde estava o dinheiro proveniente das internações, parece bastante
significativa: “Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a
e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões: Quem diria que meia dúzia de
lunáticos...” (1998, p.15).

Também Knock se mostrará, ao longo da peça, imbuído do mesmo sentimento de


“superioridade” propiciado por seus conhecimentos científicos que lhe conferirão, ainda,
a condição de indiscutível autoridade no tocante às questões de saúde da população do
cantão. Como no caso de Simão Bacamarte, a imagem de devoção à causa abraçada ‒ a
medicina ‒ e desinteresse no que se refere a questões pecuniárias, amplamente divulgada
pelo Doutor Knock, é totalmente ‒ ou quase, considerando-se as dúvidas de seu
predecessor antes do desfecho da peça ‒ assimilada pelos habitantes de Saint-Maurice. É
o que se deduz a partir da consulta de alguns dos personagens, seja o tocador de tambor
da cidade, acometido, por vezes, de um mal-estar no ventre depois de ter comido
(ROMAINS, 1924, p.62-65), sejam os dois rapazes gaiatos que só queriam se divertir
(1924, p.103-108), ou a senhora vestida de negro, estafada por excesso de trabalho (1924,
p.82-91), ou, ainda, a senhora vestida de violeta, sujeita à insônia devido a preocupações
financeiras (1924, p.92-102), todos sairão do consultório do novo médico da cidade
convencidos da gravidade do mal diagnosticado e do tratamento que lhes é imposto.

Mas não serão os únicos a serem persuadidos por Knock, quer no que concerne à
“saúde”, quer no que se refere à “doença”. É o que relata Madame Rémy, a dona do Hôtel
de la Clef, recém-transformado em hospital, ao atônito predecessor de Knock, Doutor
Parpalaid, já ao final da peça, quando este volta a Saint-Maurice, como estipulado
anteriormente, três meses após a venda de sua clientela:

E não adianta insinuar tampouco que ele [Knock] descobre doenças em pessoas
que não têm nada. Eu, mais do que qualquer outro, já fiz com que ele me
examinasse dez vezes desde que começou a vir todos os dias ao hotel. Todas
as vezes ele se prestou a fazê-lo com a mesma paciência, me auscultando dos
pés à cabeça, com todos os seus instrumentos, e perdendo um bom quarto de
hora. Ele sempre me dizia que eu não tinha com o que me preocupar, que tudo
o que eu tinha a fazer é comer e beber bem. E nem pensar em fazer com que
ele aceitasse um centavo. [...] (1924, p.122)
Também o farmacêutico Mousquet, não colocará em dúvida a “teoria
profundamente moderna” que lhe expõe o Doutor Knock quanto ao princípio de que
“todos os habitantes do cantão são ipso facto” (ROMAINS, 1924, p.79- 80), clientes
potenciais, tanto de um, quanto do outro:

MOUSQUET
— É verdade que num momento ou outro de sua vida, cada um pode se tornar
nosso cliente ocasional.
KNOCK
— Ocasional? De jeito nenhum. Cliente regular, cliente fiel.
Observa-se, assim, que o discurso de Knock, bem como suas atitudes, busca
encobrir seus verdadeiros objetivos de satisfação de ordem pessoal: não só o
enriquecimento, mas também, o poder.

Verifica-se, pois, que tanto o conto quanto a peça, unindo a retórica à ciência,
instalam “ditaduras científicas”, uma em Itaguaí, outra, em Saint-Maurice ‒ ambas,
cidades interioranas, representativas de um macrocosmo político-social em que o “poder”
encontra-se estreitamente relacionado com a “palavra”, mais exatamente, a ela subjugado.

E não por acaso: o positivismo de Comte e o evolucionismo de Darwin e Spencer


teriam suscitado a aceitação da supremacia da ciência sobre as demais disciplinas
“fazendo com que até as artes a ela se submetam” (MELLO, 1997, p.7).

Assim, nos dois casos, a oratória brilhante (mas vazia do ponto de vista de ideias
ou, senão, mistificadora), sob aparente embasamento científico, será utilizada como
instrumento de sujeição da população das duas cidades pelos manipuladores da retórica
da ciência: Simão Bacamarte e Knock.

E é essa abordagem de cunho irônico verificada nos dois textos supracitados que
nos leva a depreender um dos traços da “política do palimpsesto” neles contida, como
bem o demonstra Costa Lima no que concerne a O alienista:

Supomos então haver em Machado uma verdadeira política do texto


consistente em compor um texto aparente, “segundo”, capaz de interessar a
seus leitores "cultos" pelo sóbrio casticismo da linguagem, seus polidos
torneios, suas personagens de pequenos vícios e inofensiva aparência. Sob
esses traços, eram deixadas as marcas de um texto “primeiro”, que a impressão
tipográfica antes velava que apagava. (1991, p.253)
Afirmação semelhante podemos fazer com relação a Knock ou le triomphe de la
médecine, pois, o inusitado da situação ‒ um charlatão que contava fazer fortuna graças
à aplicação de métodos supostamente científicos e modernos nos clientes de um vilarejo,
tendo sido “passado para trás” pelo médico da região, consegue “virar a mesa”, dominar
toda a população e atingir seu intento ‒ de ordem cômica, esconde, na verdade, as
camadas palimpsestas do texto: a do questionamento da parceria ciência-poder e,
principalmente, a da aliança ciência-arte, no caso, ciência-literatura, proposta pelo citado
texto de Zola.

Outra faceta desse questionamento seria a do tema do nacionalismo, que se


verifica implícito, quer no texto de Machado, quer no de Romains.

Com efeito, o humour, que mais do que um recurso estilístico constitui o traço
transgressor da obra machadiana, participando, por assim dizer, da própria trama de O
Alienista (desde a escolha do tema, passando pela elaboração dos personagens e do
cenário em que se desenrola a ação), será apontado por uma parte da crítica (cujos padrões
de legitimação dos textos literários brasileiros baseavam-se na presença da natureza e dos
índios) ‒ como procedimento “anti-natural”, logo, “anti-nacional”.

Quanto a Knock, também não pode ser compreendida como casual a escolha do
tema, dos personagens e do cenário, sobretudo no momento em que, em nome do
nacionalismo, regimes totalitários, senão declaradamente xenófobos, segregacionistas,
começam, como anteriormente referido, a firmar suas bases na Europa. Sendo assim, a
questão da recusa do outro ‒ a princípio, o doutor Knock; em seguida, pela inversão de
papéis provocada pela mudança de situação, M. Parpalaid, seu predecessor ‒ dentro de
uma comunidade gregária ‒ no caso, o vilarejo de Saint-Maurice ‒ pode ser compreendida
como a metáfora dessa vertente nacionalística que “proporciona um caminho fácil para
aspirantes a ditador” (JOHNSON, 2000, p.150-151).

Podemos entrever, dessa forma, em que medida o conto e a peça em questão,


configurando-se enquanto textos críticos, estabelecem novas perspectivas no que
concerne às relações entre o pensamento e a ficção, apontando para uma outra vocação
da literatura: o da literatura crítica.

REFERÊNCIAS
CHAIGNE, Louis (1964). Les lettres contemporaines. Paris: Del Duca.
GARBUGLIO, José Carlos (1998). “Entre a loucura e a ciência”. In: ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. O alienista. São Paulo: Ática.
JOBIM, José Luís (2000). Sentidos da literatura. (Tese apresentada para concurso de professor
titular de Teoria da Literatura). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
______ (2000b). (s/t). Comentado [L1]: É possível a referência ficar desta forma?
(Matheus)
JOHNSON, Paul (2000). “Bom servo, mau senhor”. Veja. São Paulo: Abril. Procurando sobre o autor achei várias obras de 2000, ficando difícil
saber de qual se trata; procurando a citação, achei o artigo dessa
LIMA, Luiz Costa (1991). Pensando nos trópicos (Dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Rocco. mesma autora, na Abralic, em que ela usou essa mesma citação, mas
referenciou de forma diferente:
ASSIS, Joaquim Maria Machado de (1998). O alienista. São Paulo: Ática. “JOBIM, José Luis (Org.). Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro:
EdUerj, 1999”.
MELLO, Maria Elizabeth Chaves de (1997). Lições de crítica. Niterói: Eduff. Assim, deixo a critério da supervisão a troca ou não da referência
(Elen)
MOISÉS, Massaud (2001). Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix.
ROMAINS, Jules (1924). Knock ou le triomphe de la médecine. Paris: Gallimard.
______ (1950). Donogoo. Paris: Gallimard.
______ (1983). La vie unanime. Paris: Gallimard.
SCHWARZ, Roberto (2000). Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades.
SURER, Paul (1969). Cinquante ans de théâtre. Paris: Société d’Edition d’Enseignement
Supérieur.
GERSHMAN;WHITWORTH (1962). Anthologie des préfaces de romans français du XIX e siècle.
Paris: Julliard.

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