Libertar-se Deus
Um dia, meu filho de três anos me assistia rezar, tentando imitar meus
movimentos e fingindo que também estava rezando.
Então ele falou: "Papai! Acabei de ver os pés de Deus!"
Não sabia o que responder, mas rapidamente decidi que a verdade era a melhor
opção.
"Yehuda, você não pode ter visto os pés de Deus. Ele não tem pés."
Ele parecia surpreso com a resposta, mas disse apenas "ah".
Depois de alguns minutos, Yehuda veio puxar a manga da minha camisa.
Ele me olhava com seus grandes olhos castanhos e, com um sorriso doce, disse
com total convicção: "Mas eu vi."
Não havia nada que eu pudesse fazer para convencê-lo do contrário.
Decidi deixar passar.
Afinal, ele tinha apenas três anos.
Espero que, quando for adulto, ele tenha aprendido que Deus não tem pés.
Se ele ainda alimentar esse conceito, não vai conseguir ver Deus de verdade.
A maioria das pessoas que conheci desde que sou rabino usa vendas espirituais nos
olhos.
Isso lhes causa muito sofrimento, porque essas vendas encobrem os olhos da alma,
que nunca estão livres para ver Deus.
Algumas pessoas sabem que andam cegas pela vida, mas a maioria não tem essa
consciência.
Isso é ainda pior porque, se você não sabe o que o machuca, fica mais difícil
encontrar a cura.
Em meus seminários, muitas vezes peço às pessoas que escrevam suas definições
de Deus.
As respostas típicas são intelectuais, filosóficas e abstratas.
Então peço que escrevam uma carta a Deus, que comece com "Querido Deus,
sempre quis saber..."
Também peço que escrevam com a mão esquerda — no caso dos canhotos, com a
direita — para simular a experiência de escrever como uma criança, porque o
objetivo do exercício é chegar aos primeiros anos de vida, quando a imagem de
Deus começa a se formar para nós.
É aí que as vendas se revelam.
Não importa a definição intelectual que as pessoas têm de Deus, suas visões
infantis e sentimentais se revelam em cartas como:
- "Querido Deus... por que Você levou meu avô?"
- "Querido Deus... por que Você permite que aconteçam guerras?"
- "Querido Deus... por que há tanta gente ruim no mundo?"
O destruidor de ídolos
A humanidade luta contra esse problema desde o início da civilização.
Esta foi a contribuição genial e fundamental de Abrahão.
Há quatro mil anos, ele disse a um mundo que adorava uma grande quantidade de
ídolos — que representavam cada aspecto da natureza — que existe apenas uma
fonte inimaginável de toda a criação.
Você pode imaginar o choque?
Deus não tem forma?
Como assim?
A ironia é que o pai de Abrahão, Terach, era um fabricante de ídolos profissional.
Conta a tradição judaica que, quando criança, Abrahão destruiu todas as estátuas
da loja do pai.
Em resposta à fúria de Terach, o pequeno Abrahão simplesmente disse que a maior
das estátuas era a responsável pela destruição.
"Mas é apenas uma estátua, ela não pode fazer nada", disse o pai. "Que seus
ouvidos ouçam o que a sua boca acaba de dizer", disse Abrahão.
Deus, responsável pela imensidão e complexidade da Criação, não pode ser
limitado a forma nenhuma, principalmente a formas esculpidas e inanimadas.
Uma alma madura e saudável deve negar imaginações tão infantis.
Como disse o Rabino Abraham Isaac Kook, grande cabalista e filósofo do começo do
século XX: "Há um tipo de fé que é, na verdade, negação; e há um tipo de negação
que é, na verdade, fé."
Se uma pessoa diz que acredita em Deus, mas o Deus em que acredita é um ídolo
conceitual e espiritual, uma imagem de Deus que ela própria formou, então sua fé
é, de fato, a negação da verdade, uma heresia.
No entanto, se uma pessoa professa ateísmo porque não consegue acreditar num
rei todo-poderoso de barba branca e esvoaçante flutuando em algum lugar do
espaço, de um certo modo ela está expressando a fé verdadeira, porque esse Deus
não existe.
O desafio é tirar essas imagens falsas da mente — imagens que se tornaram
grossas, duras e sólidas com o tempo e que, assim como uma parede de cimento,
são uma obstrução que nos impede de realmente ver Deus.
Comecemos com a grande palavra: D-E-U-S.
A morte de Deus
Sinceramente, a palavra "Deus" não significa nada para mim, apenas interfere na
minha verdadeira fé.
Não acredito em "Deus".
É uma palavra de origem latina não encontrada na Bíblia original, em hebraico.
Essa palavra tem sido tão usada, abusada e mal-entendida que chega a atrapalhar
nossa busca pela verdade fundamental.
Pensando nisto, começo a entender o que Nietszche quis dizer quando declarou que
Deus está morto.
O conceito de "Deus" — o significado que atribuímos à palavra "Deus" — é um
conceito morto.
Não é real.
O vingador parecido com Zeus que flutua no céu não representa nem um pouco da
realidade.
Percebi o quanto esse conceito é infantil e contra produtivo quando, um dia, entrou
em meu seminário um sujeito vestindo uma camiseta com uma tirinha do Calvin e
Haroldo.
Haroldo, o tigre de brinquedo, pergunta a Calvin, o menininho: "Calvin, você
acredita em Deus?" A resposta de Calvin é: "Bem, alguém está aí para me pegar."
Infelizmente, muita gente alimenta a imagem de que Deus é um valentão celeste e
todo-poderoso, que existe para "nos pegar".
Não é de espantar que essas pessoas não queiram acreditar em Deus, que não
façam a menor idéia de como ter uma conexão com esse Deus.
Certa vez uma mulher me disse: "Só quero que Ele me deixe em paz. Eu não O
incomodo; Ele não deveria me incomodar."
Mas, no fundo, essas pessoas sofrem de um intenso medo de Deus e de Seus
castigos.
É a teofobia.
Muitas vezes, as pessoas que sofrem de teofobia se dizem ateias e tentam escapar
de seus tormentos mentais negando a existência daquele Deus a quem elas, na
verdade, continuam a temer todos os dias.
Entendo o medo dessas pessoas.
Lembro-me da primeira vez em que senti esse tipo de medo.
Estava assistindo ao filme Os Dez Mandamentos, estrelado por Charlton Heston no
papel de Moisés.
Só percebi a influência negativa daquela experiência algum tempo depois.
Uma coisa é certa: a voz de Deus ficou marcada em minha mente por muito tempo.
Imagine só os testes para o papel.
Atores de voz doce e gentil não precisam nem se inscrever!
Só alguém de voz estrondosa, alta e opressiva poderia ser a voz de Deus.
Esses são os tipos de recordação que passeiam pelas mentes de muitas pessoas. A
soma de todas essas memórias resulta numa Péssima imagem de Deus.
Por isso, acredito que, antes de qualquer crescimento espiritual, devemos nos livrar
de Deus.
Como Abrahão, devemos destruir nossas próprias estátuas e nos desvencilhar da
idolatria conceitual que bloqueia os olhos da alma.
Chegou a hora de ver Aquele que procuramos.
Mudança de Paradigma
É interessante notar que Nietzche, além de proclamar que Deus está morto, disse
que, a não ser que experimentemos um "todo-infinito" que se manifesta através de
nós, a vida não faz sentido.
Nietzche não acreditava em Deus.
Eu também não.
Acredito no Todo-Infinito, Aquele que era, é e sempre será — Hashern.
Para a maioria das pessoas, estabelecer uma relação com Hashem requer uma
mudança total de paradigma.
De modo geral, as pessoas entendem que há a realidade e há Deus na realidade.
Dentro dessa realidade Deus criou você e eu.
E então aqui estamos na realidade, ao lado de Deus Todo-Poderoso.
Diante dessa imagem, é difícil não nos sentirmos muito pequenos, insignificantes e
ameaçados.
Tudo — toda criação e nós também — parece tão pequeno e inferior comparado a
Deus.
Por isso é que fugimos desse Deus e negamos Sua existência.
Simplesmente não podemos lidar com a comparação, com o sentimento de
nulidade com relação a Deus.
As pessoas têm essa imagem de um Deus flutuando em algum lugar na realidade, e
que, por algum motivo, decidiu criar você e eu.
Ainda assim, esse ser perfeito e flutuante criou um monte de seres imperfeitos.
É difícil evitar a comparação entre nós mesmos e esse ser perfeito e todo-poderoso.
Não podemos evitar o sentimento de nulidade com tal comparação.
Então nos perguntamos: "Temos que nos render a Deus e religiosamente aceitar a
ideologia de que não somos nada?"
Algumas religiões responderiam: "Sim, não somos nada e este mundo não é nada.
Essa é a maior compreensão que se deve buscar — a anulação pessoal."
Entretanto, para aqueles que não estão dispostos a acreditar que não somos nada,
a alternativa é virar a moeda — Deus não é nada.
Para que eu acredite em mim mesmo, não posso acreditar em Deus.
O paradigma que constrói um Deus na realidade conduz as pessoas a duas linhas
de pensamento: a filosofia da rendição absoluta e anulação total do ser humano e
da vida neste mundo ou — para quem não quer aceitar isso — o ateísmo.
Aliás, o ateu, ao negar Deus, está certo em parte — na realidade, não há Deus
A Cabalá inspira uma mudança completa de paradigma.
Ela ensina que Hashem não existe na realidade — Hashem é a realidade.
E não existimos ao lado de Hashem; existimos em Hashem, dentro da realidade
que é Hashem.
Hashem é o lugar.
De fato, Hashem é o contexto de tudo que tudo abarca.
Então não é possível haver você e Deus lado a lado na realidade.
Há somente uma realidade, que é Hashem, e você existe em Hashem.
Você existe dentro da realidade, incorpora um aspecto e participa da realidade.
Esse é um conceito completamente diferente.
De repente, você não é mais uma criatura insignificante e inferior ao lado de Deus,
dividindo o mesmo lugar com Ele.
Sob a luz dessa nova perspectiva, você não é inferior, insignificante e nulo; sua
existência se intensifica porque é uma manifestação do Divino.
Ver Deus é entrar em contato com a realidade.
Deus pessoal
Quando falo sobre realidade em meus seminários, às vezes meus alunos protestam.
Eles dizem que "realidade" soa muito impessoal.
"O que aconteceu com aquele Deus mais próximo de nós?", eles perguntam.
A Realidade Suprema, Hashem, Y/H/V/H, não é impessoal.
Ela nos abraça e constitui a fonte e o contexto para a humanidade; por isso,
Hashem não poderia ser menos "pessoal" do que você e eu.
De fato, Hashem é infinitamente mais "pessoal".
As pessoas pensam que a realidade é um espaço vazio e morto, quando na verdade
é consciente, viva e terna.
Por isso, não podemos falar de realidade de modo impessoal.
Não podemos perguntar, por exemplo, "o que é realidade?"
Devemos perguntar "Quem é realidade? Quem é a fonte de toda consciência? Quem
é a fonte de toda vida? Quem é a fonte do amor? Quem acomoda tudo o que vemos
nesse mundo?"
A resposta é Hashem.
O Rabino Moshe Cordovero, grande cabalista do século XVI, define essa ideia.
"Encontra-se Hashem em todas as coisas. Encontra-se todas as coisas em Hashem.
Não há nada destituído da Divindade de Hashem. Tudo está em Hashem. Hashern
está em tudo, além de tudo."
Acho importante esclarecer que essa declaração não é panteísta.
De acordo com a teoria do panteísmo, tudo é Deus.
Não é isso que o Rabino Cordovero quer dizer, e não é a mensagem que quero
passar.
O panteísmo depende da equação: Deus = universo.
Subtraia o universo e Deus passa a ser nada.
No entanto, o judaísmo afirma que Hashem já existia antes do universo, e que, de
fato, Ele criou o universo.
Mesmo se o mundo deixar de existir, Hashem continuará a existir.
Esse conceito, completamente diferente do panteísmo, chama-se panenteísmo, e
significa que tudo está incluído em Hashem.
Tudo está incluído no Divino, mas se eu e você não existíssemos, Hashem não se
tornaria menor.
Há uma metáfora que pode nos ajudar a entender nossa relação com Hashem.
Trata-se da relação entre pensamento e pensador.
Se crio um homem na minha imaginação, onde esse homem existe?
Na minha mente.
Esse homem existe dentro de mim, mas não sou esse homem.
O homem imaginado não sou eu.
Ele continuará existindo enquanto eu continuar a pensar nele.
Caso contrário, ele deixa de existir.
Mas eu continuo a ser o mesmo.
-Não me tornei inferior depois de tê-lo criado em minha imaginação.
Da mesma forma, somos fruto da criação de Hashem.
Existimos em Hashem.
Mas não somos Hashem e Hashem não é nós.
É um conceito místico.
Não há nada destituído de Hashem.
Tudo está em Hashem,
Hashem está em tudo, mas Hashem está além de tudo.
Existimos dentro da realidade, incorporamos a realidade, mas, mesmo assim, não
somos a realidade.
E se deixássemos de existir, a realidade continuaria, nada menos do que antes ou
depois da criação.
Quando tentei explicar essa ideia ao meu filho de sete anos, foi algo assim:
"Nuri, onde está Hashem?"
"Ali", ele responde, apontando, com segurança, para cima.
"No céu.,'
"Não. Hashem não está ali. Hashern está em todo lugar."
"E onde estamos eu e você?"
"Bom..." Ele agora pensava com mais cuidado, achando que havia alguma
"pegadinha" na pergunta.
"Estamos aqui."
"Não", eu disse. "Você e eu estamos em Hashem. Entende? Hashem não está ali, e
você e eu não estamos aqui. Hashem está em todo lugar e nós estamos em
Hashem."
Meu filho ficou pensativo por alguns instantes, tentando entender.
Então ele disse, admirado: "Entendi! Entendi! Uau! Hashem é tão gordo!"
Ele tinha que imaginar Hashern gordo o bastante para poder conter duas pessoas,
porque a mente de uma criança não consegue se fixar em abstrações.
É por isso que, se um aluno da terceira série do primário tem problemas para
resolver quanto é catorze menos nove, explicamos assim:
"Se você tem catorze doces e dá nove para sua irmã, quantos doces vão sobrar?"
Ele vai entender na hora; vai ver os doces desaparecendo na sua imaginação.
Mas quando crescer, espera-se que deixe os conceitos infantis, limitados e
concretos.
Ele não pode pensar em doces cada vez que fizer contas de soma ou subtração.
Também não pode imaginar um balão enorme cada vez que pensar em Deus.
Se quisermos uma relação madura com Hashem, precisamos estar dispostos a
mudar de paradigma.
Porém, abandonar velhos conceitos é muito difícil.
A mente pode ser como uma prisão.
Escapar da prisão da nossa imaginação pode ser mais difícil do que fugir de uma
prisão de cimento e grades.
Se nos tornamos prisioneiros do velho conceito nocivo de Deus, vemos a vida
através da ideia "Deus versus eu".
Não me surpreende que essa religião não tenha muita graça.
Quando lemos que um ser onipotente nos deu esse ou aquele mandamento,
dizemos em nossas mentes infantis: "Ah é? E daí?"
E isso se torna uma questão de quem vai ganhar.
Vamos nos render a esse ser?
Mas se podemos sair da contagem de doces e entrar nas abstrações da álgebra,
conseguiremos libertar a mente das imagens nocivas e artificiais de Deus.
Somente quando retiramos dos olhos da mente as vendas dos velhos conceitos é
que podemos abrir os olhos da alma e enxergar de outra maneira.
Quando o fazemos, temos a possibilidade de realmente enxergar Hashem.
Continua