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ARTURO PÉREZ-REVERTE
I - O LOTE 307
*1. Em Espanha, são os Reis Magos e não o Pai Natal quem dá as prendas
às crianças, que as recebem no dia 6 de Janeiro, dia de Reis. (N. da T.)
Bem-vindos a bordo. Existem, há milhares de anos, antes mesmo
de os côncavos navios zarparem rumo a Tróia, homens com rugas em
redor da boca e chuvosos corações de Novembro — aqueles cuja
natureza os determina, mais cedo ou mais tarde, a olhar com interesse
o buraco negro de uma pistola — para quem o mar significou sempre
uma solução e que pressentiram sempre quando era hora de partir. E
mesmo antes de saber que era um deles, Coy já o era por vocação e
por instinto. Uma vez, numa taberna de Vera Cruz, uma mulher —
eram sempre mulheres quem formulava este tipo de perguntas —
perguntara-lhe porque era marinheiro, e não advogado, ou dentista; e
ele limitou-se a encolher os ombros antes de responder passado algum
tempo, quando ela já não esperava resposta: «O mar é limpo.» E era
verdade. No alto mar o ar era fresco, as feridas cicatrizavam mais
depressa, e o silêncio tornava-se suficientemente intenso para tornar
suportáveis as perguntas sem resposta e justificar os próprios
silêncios. Noutra ocasião, no Restaurante Sunderland de Rosário, Coy
tinha conhecido o único sobrevivente de um naufrágio: um em
dezanove. Rombo às três da madrugada, fundeados a meio do rio,
todos a dormir, e o barco no fundo em cinco minutos. Gluglu. Mas o
que o tinha impressionado naquele indivíduo era o seu silêncio.
Alguém perguntou como era possível, dezoito homens ao fundo sem
se aperceberem. E o outro olhava-o calado, pouco à vontade, como se
fosse tudo tão óbvio que não valesse a pena explicar nada; e levava à
boca a sua caneca de cerveja. Para Coy, as cidades, com os seus
passeios cheios de gente e tão iluminados como as montras da sua
infância, também o faziam sentir-se pouco à vontade; desajeitado e
deslocado como um pato longe da água, ou como aquele tipo de
Rosário, tão calado como os outros dezoito que estavam ainda mais
calados. O mundo era uma estrutura muito complexa que só do mar
se podia contemplar; e a terra firme só adquiria proporções
tranquilizadoras de noite, durante o quarto de vigia, quando o
timoneiro era uma sombra muda e das entranhas do barco chegava a
trepidação suave das máquinas. Quando as cidades ficavam
reduzidas a pequenas linhas de luzes na distância e a terra era a
claridade trémula de um farol avistado na ondulação. Relâmpagos
que alertavam, que repetiam sem parar: cuidado, atenção, mantém-te
longe, perigo. Perigo.
Não viu esses relâmpagos nos olhos da mulher, quando voltou
para junto dela com um copo em cada mão, entre as pessoas que se
amontoavam no balcão de Boadas; e esse foi o terceiro erro da noite.
Porque não há listas de faróis, de perigos e de sinais para navegar
terra adentro. Não há roteiros específicos, cartas actualizadas, cartas
de baixos em metros ou braças, alinhamentos com este ou aquele
cabo, bóias vermelhas, verdes ou amarelas, nem regulamentos de
abordagem, nem horizontes limpos para calcular uma recta de altura.
Em terra, navega-se sempre por estima, às cegas, e só é possível ver os
recifes quando ouvimos o seu rumor a um cabo(2) da proa e vemos
clarear a escuridão na mancha branca do mar que quebra nas rochas à
superfície da água. Ou quando ouvimos a rocha inesperada — todos
os marinheiros sabem que existe uma rocha com o seu nome,
espreitando em qualquer parte — a rocha assassina, cortar o casco
com uma estridência que faz estremecer as anteparas, nesse momento
terrível em que qualquer homem ao comando de um barco prefere
estar morto.
— Foste rápido — disse ela.
— Sou sempre rápido nos bares.
A mulher olhou-o com curiosidade. Sorria um pouco, talvez por
ter observado a forma como Coy se aproximara do balcão, abrindo
caminho com a determinação de um pequeno e compacto rebocador
entre as pessoas que se amontoavam à frente, em vez de ficar atrás,
esperando chamar a atenção do empregado. Tinha pedido uma
genebra azul com água tónica para ele e um martini seco para ela,
trazendo-os de volta com um hábil movimento pendular das mãos e
sem derramar uma gota. O que em Boadas, e àquela hora, era digno
de mérito.
Ela observava-o através do copo. Azul muito escuro atrás do vidro
e da límpida transparência do martini.
— E o que fazes na vida, além de te mexeres bem pelos bares, de
ires a leilões náuticos e de socorreres mulheres indefesas?
— Sou marinheiro.
*2. Medida de 120 braças. (N. da T.)
- Ah!
— Marinheiro sem barco.
- Ah!
Tratavam-se por tu há apenas alguns minutos. Meia hora antes, à
luz do candeeiro, quando o homem do rabicho grisalho entrou para o
Audi, ela agradecera-lhe nas suas costas, e ele voltou-se para a ver
deveras pela primeira vez, parado no passeio, enquanto pensava no
seu íntimo que até ali tinha sido a parte fácil, e que já não dependia
dele conservar junto de si esse olhar pensativo e um pouco
surpreendido que o percorria de cima a baixo, como se tentasse
catalogá-lo nalguma das espécies de homem que ela conhecia. De
modo que se limitou a esboçar um sorriso prudente, um pouco
coibido. O mesmo sorriso que mostrava ao capitão quando se alistava
num novo barco, nesse momento inicial em que as palavras não
significam nada e os interlocutores sabem que o tempo porá cada
coisa no seu lugar. Mas a questão para Coy era precisamente ninguém
garantir a existência daquele tempo tão necessário, e nada a impedir
de agradecer novamente e de ir embora da forma mais natural do
mundo, desaparecendo para sempre. Foram dez longos segundos de
escrutínio que ele suportou silencioso e imóvel. LBA: Lei da Braguilha
Aberta. Espero não ter a braguilha aberta, pensou. Depois viu que ela
inclinava um pouco a cabeça para um lado, o suficiente para que o
lado esquerdo do seu cabelo louro e liso, cortado assimetricamente
com a precisão de um bisturi, roçasse a sua face cheia de sardas.
Depois disso, a mulher não sorriu nem disse nada, limitando-se a
andar devagar pelo passeio, rua acima, com as mãos nos bolsos do
casaco de camurça. Levava uma grande carteira de pele ao ombro, e
mantinha-a junto ao corpo com o cotovelo. O seu nariz era menos
bonito visto de perfil: um pouco achatado, como se o tivesse partido
alguma vez. Isso não diminuía o seu encanto, decidiu Coy, mas dava-
lhe um perfil de insólita dureza. Andava olhando para o chão à sua
frente e encostada à esquerda, como se lhe desse a ele a oportunidade
de ocupar esse lugar. Andaram em silêncio, a alguma distância um do
outro, sem olhares nem explicações ou comentários, até ela parar na
esquina, e Coy compreender que era o momento das despedidas ou
das palavras. A mulher estendia-lhe uma mão que apertou na sua,
grande e desajeitada, sentindo um aperto firme, ossudo, que
desmentia as sardas juvenis e estava mais de acordo com a expressão
tranquila dos olhos, que ele, finalmente, decidira serem azul-marinho.
E então Coy falou. Fê-lo com aquela timidez espontânea que era o
seu modo natural de dirigir-se a desconhecidos, encolhendo os
ombros com simplicidade e acompanhando as suas palavras com o
sorriso que, embora ele não o soubesse, lhe iluminava o rosto e
atenuava a sua rudeza. Falou e coçou o nariz e tornou novamente a
falar, ignorando se alguém a esperava nalgum sítio, se era desta
cidade ou de outra qualquer. Disse o que achou que devia dizer, e
depois ficou ali, baloiçando-se ligeiramente, com a respiração
suspensa, como uma criança que acaba de expor em voz alta uma
lição e aguarda sem grandes esperanças o veredicto da professora. E
então ela olhou-o outros dez segundos em silêncio, inclinou
novamente a cabeça, e o cabelo voltou a roçar-lhe a cara. E disse que
sim, porque não? Também lhe apetecia beber alguma coisa em
qualquer sítio. E assim, dirigiram-se para a Plaza Cataluña, depois
para as Ramblas e para a Calle Tallers. E quando ele manteve aberta a
porta de Boadas para a deixar passar, sentiu pela primeira vez o seu
aroma, indefinido e suave, que não parecia provir de águas-de-colónia
ou perfumes, mas da sua pele pintalgada em tons dourados, que
imaginou suave e cálida, com uma textura semelhante à pele das
nêsperas. E ao entrar, aproximando-se do balcão da parede,
comprovou que os homens e as mulheres que estavam no local
olhavam primeiro para ela e só depois para ele; e disse para consigo
que, por alguma estranha razão, os homens e as mulheres olham
sempre primeiro para uma mulher bonita e depois desviam o olhar
para o seu acompanhante de uma forma inquisitiva, para ver quem
será aquele fulano. Como se quisessem comprovar que a sua
aparência a merece, e que ele está à altura das circunstâncias.
— E o que faz um marinheiro sem barco em Barcelona?
Estava sentada num tamborete alto, com a carteira sobre os
joelhos, as costas contra o balcão de madeira que corria ao longo da
parede, sob as fotografias emolduradas e as lembranças do bar. Usava
duas pequenas bolinhas de ouro como brincos e nem um anel nas
mãos. Quase não usava maquilhagem. Pela gola entreaberta da blusa,
branca e com o botão superior desabotoado sobre centenas de sardas,
Coy via brilhar uma corrente de prata.
— Esperar — disse. Depois bebeu um gole de genebra azul e,
enquanto o fazia, viu que ela observava o seu velho casaco, e que
talvez se detivesse nas faixas mais escuras dos galões ausentes nos
punhos. — Esperar tempos melhores.
— Um marinheiro deve navegar.
— Nem todos são da mesma opinião.
— Fizeste alguma coisa errada?
Concordou com um meio sorriso triste. Ela abriu a carteira e tirou
um maço de tabaco inglês. As suas unhas não eram bonitas: curtas e
largas, de rebordos irregulares. Noutros tempos devia tê-las roído,
sem dúvida. Talvez ainda o fizesse. No maço restava um cigarro, e ela
acendeu-o com uma caixa de fósforos que tinha impresso um anúncio
de uma companhia de navegação belga que ele conhecia, a Zeeland
Ship. Viu que o fazia protegendo a chama com as mãos em concha,
num gesto quase masculino. A sua linha da vida era muito longa,
como se tivesse vivido muitas vidas na Terra.
— A culpa foi tua?
— Legalmente, sim. Aconteceu durante o meu quarto de serviço.
— Abordagem?
— Toquei no fundo. Havia uma rocha não assinalada nas cartas.
Era verdade. Um marinheiro nunca dizia encalhei, ou varei. O
verbo comum era tocar: toquei no fundo, toquei o molhe. Se a meio da
névoa do Báltico um barco partia outro ao meio e o metia a pique,
dizia: tocámos num barco. De qualquer forma, observou que ela
também tinha utilizado o termo marinheiro de abordagem, em vez de
choque ou colisão. O maço de cigarros estava sobre o balcão, aberto, e
Coy ficou a olhar para ele: a cabeça de um marinheiro, um salva-vidas
em jeito de orla e dois barcos. Há muito tempo que não via um maço
de Players sem filtro como aquele, dos de toda a vida. Não eram fáceis
de encontrar, e ignorava que ainda os fabricavam no seu invólucro de
cartolina branca, quase quadrada. Era engraçado ela fumar essa
marca: o leilão náutico, o Urrutia, ele próprio. LCA: Lei das
Coincidências Assombrosas.
— Conheces a história?
Apontava para o maço. Ela ficou a olhá-lo e depois levantou os
olhos, surpreendida.
— Que história?
— A de Héroe.
— Quem é Héroe?
Contou-lhe. Falou-lhe do nome na fita do gorro do marinheiro de
barba ruiva, da sua juventude, do veleiro que aparece num dos lados
da imagem, do outro barco, o vapor que foi o seu último barco. De
como o senhor Player e filhos compraram o seu retrato para o porem
nos maços de cigarros. Depois ficou calado, enquanto ela fumava — o
cigarro fora-se consumindo entre os dedos — e olhava para ele.
— É uma boa história — disse a mulher passado algum tempo.
Coy encolheu os ombros.
— Não é minha. Conta-a Dominó Vitali a James Bond em
Operação Relâmpago. Naveguei num petroleiro que tinha a bordo os
romances de Ian Fleming.
Também se lembrava de que esse barco, o Palestine, tinha passado
mês e meio bloqueado em Ras Tanura a meio de uma crise
internacional, com as pranchas do convés ardendo a sessenta graus
sob um sol infame, e os tripulantes deitados nos camarotes, sufocados
pelo calor e pelo tédio. O Palestine era um barco desgraçado,
agoirento, desses onde as pessoas se tornam hostis e se detestam e
desvairam: o chefe de máquinas resmungava delirando a um canto —
esconderam a chave do bar, e ele bebia às escondidas o álcool metílico
da enfermaria misturando-o com laranjada — e o primeiro-oficial não
dirigia a palavra ao capitão mesmo que o barco estivesse prestes a
encalhar. Coy teve tempo de sobra para ler esses romances e muitos
outros na sua prisão flutuante, naqueles dias intermináveis em que o
ar abrasador que entrava pelas escotilhas o fazia abrir a boca como um
peixe fora de água, e deixava, ao levantar-se, a silhueta do seu corpo
nu impressa em suor nos lençóis enxovalhados e sujos do beliche. Um
petroleiro grego tinha sido atingido a três milhas por uma bomba da
aviação, e durante alguns dias pôde ver do seu camarote a coluna de
fumo preto que subia directamente para o céu e, à noite, a claridade
que tingia o horizonte de vermelho e recortava as silhuetas escuras e
vulneráveis dos barcos atracados.
Durante esse tempo, acordou todas as noites aterrado, sonhando
que nadava num mar de chamas.
— Lês muito?
— Alguma coisa. — Coy esfregou o nariz. — Leio um pouco. Mas
sempre sobre o mar.
— Há outros livros interessantes.
— É capaz. Mas a mim só me interessam esses.
A mulher olhava-o, e ele encolheu novamente os ombros, antes de
se baloiçar um pouco sobre os pés. Então apercebeu-se de que não
tinham falado do tipo do rabicho grisalho, nem do que ela estava ali a
fazer. Nem sequer sabia o seu nome.
Três dias mais tarde, deitado de costas na cama do seu quarto da
pensão La Marítima, Coy olhava para uma mancha de humidade no
tecto. Kind of Blue. Nos auscultadores do seu walkman, depois de So
What, por onde o contrabaixo tinha estado a deslizar suavemente, o
trompete de Miles Davis acabava de entrar com o histórico solo de
duas notas — a segunda de uma oitava mais baixa que a primeira — e
Coy esperava, suspenso nesse espaço vazio, a descarga libertadora, a
única batida de bateria, o eco dos pratos e dos tambores preparando o
caminho lento, inevitável, assombroso, ao metal do trompete.
Considerava-se quase um analfabeto musical, mas amava o jazz, a
sua insolência e o seu engenho. Apaixonara-se por ele nos longos
quartos de serviço na ponte, quando navegava como terceiro-oficial a
bordo do Fedallah, um navio de transporte de fruta da Zoeline cujo
primeiro-oficial, um galego chamado Neira, possuía as cinco
gravações da Smithsonian Collection de jazz clássico. Isso incluía
desde Scott Joplin e Bix Beiderbecke até Thelonius Monk e Ornette
Coleman, passando por Armstrong, Ellington, Art Tatum, Billie
Holiday, Charlie Parker e os restantes. Horas e horas de jazz com uma
chávena de café nas mãos, olhando para o mar, com os cotovelos
apoiados numa das asas da ponte, de noite, sob as estrelas. O chefe
das máquinas, Gorostiola, natural de Bilbau, mais conhecido por
Torpedeiro Tucumán, era outro apaixonado por esta música; e os três
tinham partilhado jazz e amizade durante seis anos, numa rota
quadrangular que levou o Fedallah — depois passaram os três juntos
para o Tashtego, outro barco gémeo da Zoeline — com carga a granel
de fruta e sementes, entre Espanha, as Caraíbas, o Norte da Europa e o
Sul dos Estados Unidos. E aquela foi uma época feliz na vida de Coy.
Apesar da música dos auscultadores, através do pátio que fazia de
estendal, chegava o som do rádio da filha da patroa, que costumava
ficar a estudar até muito tarde. A filha da patroa era uma jovem tosca
e pouco bafejada pela beleza, a quem ele sorria educadamente sem
nunca obter em troca um gesto ou um olhar. La Marítima era uma
antiga casa de banhos públicos — 1844, garantia o dintel da porta,
aberta para a Calle Are del Teatre — reconvertida em pensão barata
de marinheiros. Estava a meio caminho entre o porto velho e o bairro
chinês e, sem dúvida, a mãe da rapariga, uma grosseira dama de
cabelo pintado num tom alaranjado, alertara-a para os perigos da sua
clientela habitual, gente rude e sem escrúpulos que coleccionava
mulheres em todos os portos, desembarcando sedenta de álcool,
droga e raparigas mais ou menos virgens.
Pela janela podia ouvir-se perfeitamente, entre o jazz do walkman,
Noel Soto cantando Noche de Samba en Puerto Espana; e Coy
aumentou o volume. Estava nu, à excepção de uns calções curtos, e,
pousado na barriga, tinha Capitão de Mar e Guerra, de Patrick
O'Brian, aberto e voltado para baixo. Mas o seu espírito andava muito
longe das andanças náuticas do capitão Aubrey e do doutor Maturin.
A mancha do tecto parecia-se com o traçado de uma costa, com os
seus cabos e enseadas, e Coy percorria com a vista uma rota
imaginária, entre duas das suas extremidades mais longínquas, no
mar amarelado do céu limpo. Naturalmente, pensava nela.
Chovia, quando saíram de Boadas. Uma chuva fina, que quase não
incomodava, que dourava com luzes cintilantes o asfalto e os passeios,
e pontilhava o feixe dos faróis dos automóveis. Ela não parecia
importar-se de que o seu casaco de camurça se molhasse, e foram
andando rua abaixo pelo passeio central, entre os quiosques de jornais
e revistas e os vendedores de flores que começavam a fechar. Um
mimo, estóico sob o molha-tolos que lhe fazia regueiros no pó branco
da cara imóvel, tão triste que deprimia todos os transeuntes vinte
metros em redor, seguiu-os com os olhos, quando a mulher se
inclinou um momento para deixar uma moeda no seu cestinho.
Andava da mesma forma que antes, um pouco adiantada e
olhando para o chão à sua esquerda, como se deixasse a Coy a opção
de ocupar esse espaço ou de se retirar discretamente. Ele
contemplava, às escondidas, o seu perfil duro entre o cabelo liso que
oscilava ao caminhar; os olhos azulados que, de vez em quando, se
voltavam para ele como um preâmbulo de um olhar pensativo ou de
um sorriso.
Em Schilling não estava muita gente. Voltou a pedir genebra azul
com água tónica e ela conformou-se apenas com água tónica. Eva, a
empregada brasileira, serviu as bebidas olhando-a com descaramento,
e depois arqueou uma sobrancelha em atenção a Coy, tamborilando o
balcão com as mesmas unhas compridas, pintadas de verde, que há
apenas três madrugadas cravara conscienciosamente nas suas costas
nuas. Mas Coy passou a mão pelo cabelo molhado e manteve o seu
sorriso inalterável, muito doce e tranquilo, até a empregada
murmurar «bastardo», sorrindo por sua vez e recusando-se a cobrar-
lhe a sua bebida. Depois, Coy e a mulher foram sentar-se numa mesa,
diante do espelho enorme que reflectia as garrafas colocadas na
parede. Aí prosseguiram a conversa intermitente. Ela não era faladora.
Por essa altura limitara-se a contar que trabalhava num museu, e cinco
minutos mais tarde ele pôde averiguar que se tratava do Museu Naval
de Madrid. Deduziu que tinha estudado História e que alguém, o seu
pai talvez, fora militar de carreira. Ignorava se isso tinha relação com o
seu aspecto de menina bem-educada. Também vislumbrou uma
firmeza contida, uma segurança interior, discreta, que o intimidava.
Coy não trouxe à baila o tipo do rabicho grisalho senão mais tarde,
quando passeavam sob as arcadas da Plaza Real. Ela tinha confirmado
que o Urrutia era uma peça valiosa, embora não fosse única; mas não
ficou claro se a aquisição tinha sido para o museu ou para ela. É um
atlas marítimo importante, comentou evasiva quando ele se referiu à
cena da Calle Consell de Cent, e há sempre alguém interessado nesse
tipo de coisas. Coleccionadores, acrescentou passado um instante.
Gente desse tipo. Depois inclinou um pouco a cabeça e perguntou
pela vida que ele fazia em Barcelona, de uma forma que tornava
evidente o seu desejo de mudar de conversa. Coy falou de La
Marítima, dos seus passeios pelo porto, das manhãs de sol na
esplanada do Universal, diante do comando da marinha, onde podia
estar três ou quatro horas sentado com um livro e o seu walkman pelo
preço de uma cerveja. Também falou do tempo que lhe restava pela
frente, da impotência de estar em terra sem trabalho e sem dinheiro.
Nesse momento julgou ver espreitar, na extremidade das arcadas, o
indivíduo baixinho de bigode, cabelo com gel e casaco aos quadrados
que, à tarde, estivera no leilão. Observou-o um momento para ter a
certeza, e voltou-se para ela, a fim de verificar se também tinha
reparado nessa presença. Mas os olhos dela estavam inexpressivos,
como se não vissem nada de particular. Quando Coy deu a volta para
olhar de novo, o homenzinho do casaco aos quadrados continuava ali,
passeando com as mãos atrás das costas, com um ar casual.
Estavam à porta do Club de la Pipa, e ele fez um cálculo rápido do
que ainda tinha na carteira, concluindo que podia permitir-se
convidá-la para mais um copo e que, no pior dos casos, Roger, o
encarregado, lhe fiaria. Ela mostrou-se surpreendida pelo lugar
insólito, pela campainha da porta, pelas velhas escadas e pelo local no
segundo andar, com o seu balcão estranho, o sofá e as gravuras de
Sherlock Holmes penduradas na parede. Não havia jazz nessa noite e
permaneceram de pé junto do balcão deserto, enquanto Roger fazia
palavras cruzadas na outra extremidade. Ela quis provar a genebra
azul, dizendo que gostava do seu aroma, e logo a seguir declarou-se
encantada com o sítio, acrescentando que nunca imaginara que
houvesse um lugar como aquele em Barcelona. Coy disse que estavam
prestes a encerrá-lo, porque os vizinhos se queixavam do ruído e da
música; pisavam um barco a caminho do desmantelamento. Ela tinha
ficado com uma gotinha de genebra com água tónica na comissura
dos lábios, e ele pensou que felizmente só tinha três copos no
estômago, pois com mais alguns teria estendido a mão para limpar
aquela gota com os dedos. E ela não parecia ser daquelas que deixam
um marinheiro que acabaram de conhecer, e a quem olham com uma
mistura de reserva, cortesia e agradecimento, limpar nada. Então, ele
perguntou, finalmente, o nome dela. Ela sorriu novamente — desta
vez passado um instante, como se tivesse de ter ido longe para o fazer
— e depois os seus olhos cravaram-se nos de Coy; ou seja, cravaram-
se literalmente durante um longo e intenso segundo, e disse o seu
nome. E ele considerou que era um nome singular tal como a sua
aparência, um nome que, no entanto, lhe ficava bem, e que
pronunciou uma vez só em voz alta, devagar, quando dos lábios dela
ainda não se tinha esfumado de todo o sorriso distante. Depois, Coy
pediu um cigarro a Roger para lho oferecer, mas ela não quis fumar
mais. E quando a viu levar o copo à boca e entreviu os seus dentes
brancos atrás do vidro, com o gelo a roçá-los num tilintar húmido,
baixou os olhos na direcção da corrente de prata que brilhava um
pouco naquela gola aberta da sua blusa, sobre a pele que, com aquela
luz, parecia mais cálida do que nunca, e interrogou-se se um homem
teria contado alguma vez todas aquelas sardas até à Finisterra. Se as
teria contado sem pressa, uma por uma, rumo ao sul, da mesma forma
que a ele lhe apetecia fazê-lo. Foi nessa altura que, ao erguer os olhos,
verificou que ela tinha interpretado o seu olhar e sentiu parar o
coração, quando a ouviu dizer que eram horas de ir embora.
No rádio da filha da patroa, a mesma voz acometia agora La Reina
del Barrio Chino. Coy desligou o seu walkman — Miles Davis
monologava Saeta, o quarto tema de Sketches of Spain — e deixou de
olhar para a mancha do tecto. O livro e os auscultadores caíram sobre
os lençóis quando se levantou e se pôs a andar pelo quarto estreito,
tão parecido à cela que uma vez ocupara durante dois dias em La
Guaira, daquela vez em que o Torpedeiro Tucumán, o galego Neira e
ele próprio, fartos de comer fruta, foram a terra comprar peixe fresco
para uma caldeirada, e Neira disse: — Esperem-me bebendo um café,
quinze minutos para uma rapidinha e estou de volta.
E passado pouco tempo ouviram-no a pedir socorro pela janela,
entraram e partiram o bar, destruíram-no todo, até as mesas, as
garrafas e as costelas do chulo que tinha ficado com a carteira do
galego, e o capitão, Dom Matías Norena, teve de ir, bastante mal-
humorado, tirá-los de lá, subornando dois polícias venezuelanos com
um maço de dólares que, mais tarde, descontou dos salários deles, até
ao último centavo.
Sentiu um início de nostalgia ao recordar tudo aquilo. O espelho
sobre o lavatório reflectia os seus ombros compactos e o rosto
cansado, por barbear. Deixou correr a água até estar bem fria e depois
jogou-a com as mãos para a cara e para a nuca, resfolegando e
sacudindo a cabeça como um cão sob a chuva. Esfregou-se
vigorosamente com uma toalha e ficou algum tempo olhando-se
imóvel, o nariz forte, os olhos escuros, as feições toscas, como se
avaliasse as probabilidades a seu favor. Tás feito, concluiu. Com essa
pinta não comes gaja nenhuma.
Abriu a gaveta da cómoda, tirando-a completamente, e tacteou por
trás até encontrar o sobrescrito onde guardava o dinheiro. Não era
muito, e nos últimos dias minguava perigosamente. Ficou algum
tempo sem se mexer, dando voltas à cabeça, e no fim foi até ao
armário e tirou o saco onde tinha os seus escassos pertences: alguns
livros bastante lidos, os galões de oficial cujos dourados começavam a
ficar verde-bolor, cassetes de jazz, uma carteira para fotografias — o
navio escola Estreita del Sur com as velas ao vento, o Torpedeiro
Tucumán e o galego Neira no balcão de um bar de Roterdão, ele
próprio com galões de primeiro-oficial, apoiado na amurada do Islã
Negra sob a ponte de Brooklyn — e a caixa de madeira onde guardava
o seu sextante. Era um bom sextante: um Weems & Plath de sete
filtros fumados, metal preto e arco de latão dourado, que Coy tinha
comprado em prestações, a partir do seu primeiro ordenado, mal
obtivera o seu título de piloto. Os sistemas de'posicionamento por
satélite sentenciavam a morte deste instrumento, mas qualquer
marinheiro que se prezasse conhecia a sua fiabilidade, à prova de
falhas electrónicas, para estabelecer a latitude ao meio-dia, quando o
Sol atingia o seu ponto mais alto no céu (meridiana), ou de noite com
uma estrela baixa no horizonte: efemérides náuticas, tábuas, três
minutos de cálculos. Da mesma forma que os militares cuidam e
mantêm limpas as suas armas, Coy tinha procurado ao longo de todos
aqueles anos que o sextante se mantivesse sem humidade salina ou
sujidade, limpando os seus espelhos e verificando possíveis erros
laterais e de índice. Mesmo agora, sem barco sob os pés, costumava
levá-lo nos seus passeios pela costa para calcular rectas de altura,
sentado numa rocha e diante do horizonte do mar aberto. Este hábito
datava do tempo em que navegava como aluno no Monte Pequeno, o
seu terceiro barco se contarmos com o Estrella del Sur. O Monte
Pequeno era um barco de 275 000 toneladas da Enpetrol, e o capitão,
Dom Agustín de La Guerra, gostava de dar solenidade ao momento
da meridiana, convidando para um copo de xerez, os oficiais, depois
de estes e de os jovens adjuntos conferirem os seus respectivos
cálculos, após terem estado numa das asas da ponte, o capitão de
relógio na mão e eles tangenciando o Sol no horizonte através dos
filtros fumados dos seus instrumentos. Aquele era um capitão da
velha escola; com um parafuso a menos, mas excelente marinheiro, do
tempo em que os grandes petroleiros iam ao Pérsico em lastro pelo
Suez e voltavam carregados rodeando África pelo Cabo. Uma vez
atirou um despenseiro por uma escada quebra-costas, porque este lhe
faltara ao respeito e, quando o sindicato se queixou, respondeu que o
despenseiro tinha sorte, porque há século e meio tê-lo-ia pendurado
no mastro grande. «No meu barco», disse em determinada ocasião a
Coy, «ou estão de acordo com o capitão ou calam-se.» Foi durante um
jantar de Natal no Mediterrâneo, com um péssimo tempo de proa, um
temporal duro de força dez que obrigava a moderar as máquinas
diante do cabo Bom. Coy, aluno de náutica estagiário a bordo, tinha
discordado de um comentário banal do capitão. Nessa altura, ele
atirou o guardanapo para cima da mesa e disse aquilo de que no seu
barco, etc. Depois mandou-o sair de quarto à ponte, para a asa da
ponte de estibordo, onde Coy permaneceu as quatro horas seguintes
na escuridão, açoitado pelo vento, pela chuva e pelos borrifos do mar
que batia contra o petroleiro. Dom Agustín de La Guerra era um raro
sobrevivente de outros tempos, despótico e duro a bordo; mas quando
um cargueiro panamense, com um oficial de quarto russo e bêbado,
lhe meteu a proa na popa, numa noite em que a chuva e o granizo
saturavam os radares no canal da Mancha, soube manter o petroleiro
a flutuar e governá-lo até Dover sem derramar uma gota de crude e
poupando à empresa o custo de rebocadores. Qualquer atrasado
mental, dizia, consegue agora dar a volta ao mundo apertando botões;
mas se a electrónica deixa de funcionar, ou os Americanos resolvem
desligar os seus malditos satélites, invenção do Maligno, ou um filho
da puta de um bolchevique nos rebenta o cu bem rebentado a meio do
oceano, um bom sextante, uma agulha magnética e um cronometro
continuarão a levar-nos a qualquer parte. De modo que pratica,
garoto. Pratica. Obediente, Coy tinha praticado sem descanso durante
dias, meses e anos, e passado mais tarde, e com aquele mesmo
sextante, por observações mais difíceis em noites cerradas e perigosas,
a meio de fortes temporais que percorriam o Atlântico de ponta a
ponta, agarrando-se empapado à amurada, enquanto a proa embatia
furiosamente e ele perscrutava desesperadamente, com um olho
colado ao visor, o aparecimento do ténue círculo dourado entre as
nuvens empurradas pelo vento de noroeste.
Sentiu uma suave melancolia quando susteve o peso familiar do
sextante nas mãos, fazendo correr a alidade móvel enquanto a ouvia
deslizar pela cremalheira dentada que numerava de 0 a 120 os graus
de qualquer meridiano terrestre. Depois calculou quanto pediria por
ele a Sergi Solàns, que admirava há anos aquele instrumento. Pois,
como costumava dizer Sergi quando bebiam juntos um copo no
Schilling, já não se fabricavam sextantes como aquele. Sergi era um
bom rapaz, que pagava quase todas as bebidas desde que Coy se vira
em terra sem dinheiro, e não lhe guardava rancor por ter ido para a
cama com Eva, naquela noite em que a brasileira ostentou uma
camisola diabolicamente cingida à medida 95 do soutien que nunca
usava, e Sergi estava demasiado bêbado para a disputar. Também
tinha estudado náutica com Coy, partilhado o barco alguns meses,
quando ambos navegavam estagiários no Migalota, um ro-ro da
Rodríguez & Saulnier, e agora preparava o seu exame de capitão
como primeiro-oficial de um ferry da Transmediterrânea que fazia
duas vezes por semana a linha Barcelona-Palma. É como conduzir um
autocarro, dizia. Mas com um sextante como esse no camarote, uma
pessoa continua a sentir-se marinheiro.
Centrou o braço a meio do arco e devolveu com cuidado o Weems
& Platb à sua caixa. Depois foi até à cómoda, abriu a sua carteira e
tirou de lá o cartão que a mulher lhe dera há três dias, ao despedir-se
na esquina das Ramblas. O cartão não tinha direcção nem telefone,
apenas o nome e um único apelido: Tânger Soto. Em baixo, com letra
redonda e precisa, com um círculo a fazer de ponto sobre o único «i»,
ela escrevera a direcção do Museu Naval de Madrid.
Quando fechou a tampa do sextante, Coy assobiava Nocte de
Samba en Puerto Espana.
II - A MONTRA DE TRAFALGAR
Em terra só há problemas.
D. Haeften. Como Enfrentar os Temporais
Depois soube que foi como saltar para o vazio; e isso era singular
no caso de Coy, que não recordava ter tomado um rumo precipitado
na sua vida. Era o tipo de pessoa que, na casa de pilotagem de um
navio, demora o tempo que for preciso para traçar conscienciosamente
qualquer rota sobre a carta náutica. Antes de se ver à força em terra e
sem barco, essa tinha sido fonte de satisfações numa profissão onde
essas coisas contavam na altura de definir um trajecto seguro entre
dois pontos situados em diferentes latitudes e longitudes geográficas.
Havia poucos prazeres comparáveis a passar um bom tempo entre
cálculos de rumo, abatimento e velocidade, prevendo que o cabo Tal
ou o farol Beltrano apareceriam dois dias mais tarde, por volta das
seis da manhã e a uns trinta graus pela amurada de bombordo, e
depois aguardar a essa mesma hora na amurada húmida pelo sereno
da madrugada, com os binóculos nos olhos, até ver aparecer,
exactamente no lugar previsto, a silhueta cinzenta ou a luz
intermitente que, uma vez cronometrada a frequência de relâmpagos
ou eclipses, confirmava a exactidão dos cálculos. Chegado esse
momento, Coy modulava sempre um sorriso para o seu íntimo; um
sorriso sereno e satisfeito. Depois, alegrando-se com a confirmação
daquela certeza obtida pela matemática, pelos instrumentos de bordo
e pela sua competência profissional, ia apoiar-se num ângulo da
ponte, junto à sombra silenciosa do timoneiro, ou servia-se de um café
quente do termos, contente por estar ali, num bom barco, em vez de
fazer parte daquele outro mundo incómodo, feito de terra firme,
felizmente reduzido a uma ligeira claridade atrás do horizonte.
Mas esse rigor na hora de pôr em prática movimentos sobre o
papel das cartas náuticas que dirigiam a sua vida não o tinha livrado
do erro nem do fracasso. Dizer terra à vista e verificar depois, de
forma táctil, a presença dessa mesma terra e as suas consequências
eram situações que nem sempre surgiam por essa ordem. A terra
existia, nas cartas ou fora delas, e tinha decidido manifestar-se de
improviso, como costuma acontecer neste tipo de coisas, penetrando
no frágil reduto — apenas um pouco de ferro flutuando no imenso
oceano — onde Coy julgava sentir-se a salvo. Seis horas antes de o Islã
Negra, um porta-contentores da companhia de navegação Mínguez
Escudero, encalhar a meio caminho entre o cabo e o canal de
Moçambique durante o seu quarto de serviço, Coy, primeiro-oficial a
bordo, tinha advertido o capitão de que a carta do Almirantado
britânico correspondente a essa zona mencionava, numa chamada
especial, algumas imprecisões nos levantamentos. Mas o capitão tinha
pressa e, além disso, tinha navegado por aquelas águas durante vinte
e cinco anos com as mesmas cartas e sem problemas. Também levava
dois dias de atraso por ter apanhado mau tempo no golfo da Guiné e
por ter sido obrigado, mais tarde, a evacuar de helicóptero um
tripulante que partira a coluna ao escorregar numa escada diante da
Costa dos Esqueletos. As cartas inglesas, dissera durante o jantar, são
tão minuciosas que é preciso trazê-las nas palminhas. A rota está
limpa, duzentas e quarenta braças nas extremidades dos baixios mais
altos e nem uma caganita de mosca no papel. De modo que
passaremos entre os ilhéus Terson e Mowett Grave. Foi o que disse:
folha de papel, caganita de mosca e direito entre os ilhéus. O capitão
era um galego de sessenta e alguns anos, franzino, de cara
avermelhada e cabelo grisalho. Além de confiar cegamente nas cartas
do Almirantado, chamava-se Dom Gabriel Moa, tinha quatro décadas
de mar nas rugas da cara e em todo esse tempo ninguém o vira perder
a compostura, nem sequer quando, no início dos anos noventa, dizia-
se, andou dia e meio adornado vinte graus, depois de perder onze
contentores a meio de um temporal do Atlântico. Era um desses
capitães pelos quais armadores e subalternos põem a mão no fogo:
seco na ponte, sério na casa de pilotagem, invisível em terra. Um
capitão à moda antiga, dos que tratavam oficiais e estagiários por
você, e a quem ninguém podia imaginar a cometer um erro. Por isso,
Coy manteve aquele rumo na carta inglesa que assinalava imprecisões
nos levantamentos; e também por isso, decorridos vinte minutos do
seu quarto de serviço, tinha ouvido ranger sobre uma rocha o casco de
aço do Islã Negra estremecendo sob os seus pés, antes de conseguir
recuperar do seu estupor e, precipitando-se sobre o telégrafo de
ordens, parasse as máquinas, e o capitão Moa aparecesse na ponte de
pijama e com o cabelo despenteado, olhando para a escuridão lá de
fora com uma expressão sonâmbula e estúpida que Coy nunca lhe vira
anteriormente. O capitão balbuciara apenas «não pode ser» três vezes,
uma atrás da outra, e depois, sempre perplexo como se não estivesse
ainda completamente acordado, murmurou um fraco «parem as
máquinas», quando as máquinas já estavam paradas há cinco
minutos, e o timoneiro continuava imóvel com as mãos na roda do
leme, observando-os alternadamente a ele e a Coy. E Coy olhava, com
a certeza terrível de quem obtém à sua custa uma revelação
inesperada, para aquele respeitável superior cujas ordens tinha
acatado sem vacilar meia hora antes, apesar de o conduzirem com o
radar desligado pelo estreito de Malaca, e que, de repente,
surpreendido e sem tempo de ajustar a máscara da sua falsa
reputação, ou talvez — os homens mudam com os anos e no seu
coração — a máscara do marinheiro eficiente que fora noutros tempos,
se mostrava agora tal como era na realidade: um velho aturdido e em
pijama, ultrapassado pelos acontecimentos, incapaz de dar uma
ordem adequada. Um pobre homem assustado que de repente via
esfumar-se a sua pensão de reforma, após quarenta anos de serviço. A
advertência da carta inglesa não era em vão: existia pelo menos uma
agulha por determinar no canal entre Terson e Mowett Grave, e um
brincalhão cósmico devia estar a rir-se às gargalhadas nalgum lugar
do Universo, porque aquela rocha isolada no vasto oceano se pusera
exactamente a meio da rota do Islã Negra, com a mesma exactidão que
o famoso icebergue do Titanic, durante o quarto de serviço do
primeiro-oficial Manuel Coy. De qualquer forma, ambos, capitão e
primeiro-oficial, tinham pago por isso. O tribunal de investigação,
composto por um inspector da companhia e dois marinheiros
mercantes, teve em conta o historial do capitão Moa, solucionando o
assunto com uma discreta reforma antecipada. Quanto a Coy, aquela
carta do Almirantado britânico tinha acabado por levá-lo para muito
longe do mar. Agora estava em Madrid, imóvel junto de uma fonte de
pedra onde um menino de sorriso hierático estrangulava um golfinho,
e parecia um náufrago recém-chegado a uma praia ruidosa em plena
época alta. Tinha as mãos nos bolsos e, entre a multidão de
automóveis e o estrépito de buzinadelas ferozes, olhava de longe para
o galeão de bronze que presidia a entrada do número cinco do Paseo
del Prado. Ignorava a precisão do levantamento hidrográfico na rota
que se propunha seguir, mas já tinha deixado bastante para trás, na
sua consciência, o ponto em que ainda é possível virar de bordo e
mudar um rumo. O sextante Weems & Plath, que o seu amigo Sergi
Solàns tinha finalmente adquirido a um preço razoável, fora suficiente
para lhe pagar o bilhete de comboio Barcelona-Madrid usado na noite
anterior, e para um fundo de sobrevivência com capacidade de
flutuação garantida para duas semanas, do qual uma parte avolumava
o bolso direito das suas calças de ganga, e a outra se encontrava no
saco de lona que tinha deixado no depósito da Estação de Atocha.
Agora eram doze e quarenta e cinco de um soalheiro dia de Primavera
e o tráfego fluía, colorido e ruidoso, em direcção à Plaza de La Cibeles,
junto ao Palácio dos Correios que ladeava o quartel-general da
Armada e as dependências do Museu Naval. Meia hora antes, Coy
tinha feito uma visita à direcção-geral da marinha mercante, situada
algumas ruas mais acima, para verificar se o seu recurso
administrativo ia avante. A encarregada do departamento, uma
mulher madura de sorriso amável que tinha um vaso com
sardinheiras em cima da mesa, deixou de sorrir quando, depois de
premir uma tecla do seu computador, o processo de Coy apareceu no
ecrã. Recurso indeferido, tinha dito então com uma voz impessoal.
Receberá a notificação por escrito. Depois desinteressou-se dele,
voltando aos seus assuntos. Talvez, daquele escritório, a trezentas
milhas náuticas da costa mais próxima, a mulher alimentasse um
conceito romântico do mar e não gostasse dos marinheiros que
tocavam no fundo com os seus barcos.
Ou talvez fosse apenas o contrário: uma funcionária objectiva,
desapaixonada, para quem um encalhe no oceano Índico pouco se
diferenciasse de um acidente na estrada; e um marinheiro suspenso
do emprego e na lista negra dos armadores não lhe parecesse
diferente de qualquer indivíduo privado da licença de condução por
um juiz rigoroso. O pior, pensava Coy enquanto descia as escadas em
direcção à rua, é que nesse caso a mulher não estava totalmente
errada. Num tempo em que os satélites marcavam rotas e posições, o
telemóvel varria das pontes capitães habilitados a tomar decisões, e
qualquer executivo podia comandar um transatlântico ou petroleiros
de 100 000 toneladas, de um escritório, a diferença entre um
marinheiro que encalhava um barco e um camionista, que saía da
estrada por perder os travões ou conduzir bêbado, era pouca.
Esperou, concentrado nos seus passos seguintes, até os
pensamentos amargos ficarem longe e à deriva. Nessa altura decidiu-
se, finalmente. Olhando para um lado e para outro, esperou que um
semáforo próximo fizesse diminuir a intensidade do tráfego e pôs-se a
andar com decisão sob os castanheiros cobertos de folhas novas,
atravessou a rua e foi até à porta do museu, onde dois infantes da
marinha, com franja vermelha nas calças, correagem e capacete
brancos, olharam com curiosidade para o seu casaco cruzado antes de
o fazerem passar sob o arco detector de metais. Sentia um formigueiro
no estômago quando subiu pela ampla escadaria, voltou à direita no
patamar e se viu, por fim, diante da montra da livraria do vestíbulo,
ao pé da enorme roda dupla do leme da corveta Nautilus. A esquerda
ficava a porta da administração e serviços e, à direita, a entrada para
as salas de exposições. Havia quadros e maquetas de barcos nas
paredes, um marinheiro de uniforme e de expressão aborrecida
sentado atrás de uma secretária, e um civil no outro lado do balcão
onde se vendiam livros, gravuras e lembranças do museu. Passou a
língua pelos lábios; de repente sentia uma sede espantosa. Depois
dirigiu-se ao civil.
— Procuro a menina Soto.
A boca seca enrouquecia a voz. Deu uma rápida vista de olhos à
porta da esquerda, receando vê-la aparecer ali, surpreendida ou
aborrecida. Que diacho fazes aqui, etc. Tinha passado a noite
acordado, com a cabeça apoiada no seu reflexo da janela, pensando no
que iria dizer. Mas agora tudo se lhe apagava da cabeça como uma
esteira na popa. De modo que, reprimindo o impulso de dar a volta e
desaparecer, se apoiou sobre um pé e depois sobre o outro, enquanto
o homem ao balcão o examinava. Era de meia-idade, com óculos
grossos e aspecto amável.
— Tânger Soto?
Anuiu com uma ligeira sensação de irrealidade. Era estranho,
pensou, ouvir aquele nome na boca de uma terceira pessoa. No fim de
contas, concluiu, ela tinha uma existência real. Havia gente que lhe
dizia olá, adeus e todas essas coisas.
— Isso mesmo — disse.
Não era estranha mas absurda, pensou de repente, aquela viagem,
e o seu saco no depósito de Atocha, e a sua presença ali para se
encontrar com uma mulher que vira apenas algumas horas numa
noite, em toda a sua vida. Uma mulher que nem sequer o esperava.
— Ela está à sua espera? Encolheu os ombros.
— Talvez.
O do balcão repetiu aquele «talvez», com ar pensativo. Observava-
o com desconfiança, e Coy lamentou não ter tido oportunidade de se
barbear de manhã. A barba, feita na noite anterior antes de sair para a
Estação de Sants, começava a escurecer-lhe o maxilar. Ergueu a mão
para o tocar, detendo o gesto a meio caminho.
— A senhora Soto saiu — respondeu o homem do balcão. Quase
aliviado, Coy anuiu. Pelo rabinho do olho viu que o marinheiro da
secretária, meio inclinado sobre uma revista, olhava para os seus
sapatos e para as suas coçadas calças de ganga. Felizmente, pensou,
tinha trocado as sapatilhas brancas por uns velhos sapatos de vela.
— Voltará hoje?
O homem deu uma rápida vista de olhos ao casaco de marinheiro,
tentando decidir se aquele pano escuro garantia alguma
respeitabilidade do seu interlocutor.
— É possível — disse, após ponderar um pouco. — Não fechamos
até à uma e meia.
Coy olhou para o seu relógio e depois apontou para a primeira
sala. Ao fundo viam-se dois grandes retratos de Alfonso XII e de
Isabel II, ao lado de uma porta que exibia expositores, modelos de
barcos e canhões.
— Então esperarei ali dentro.
— Como quiser.
— Avisa-a quando chegar?... Chamo-me Coy.
Agora sorria. A ausência dela significava um adiamento oportuno
e isso tranquilizava-o. O do balcão pareceu descontrair diante daquele
sorriso fatigado, sincero, resultado de seis horas de comboio e seis
cafés.
— Claro.
Atravessou a sala, os seus passos amortecidos pelas solas de
borracha sobre a madeira corrida do chão. O medo que lhe atazanara
os intestinos dava lugar a uma incerteza incómoda, semelhante à
sensação provocada pelo barco quando dá um solavanco e
estendemos uma mão à procura de um apoio que não se encontra
onde supostamente deveria estar. De modo que procurou
tranquilizar-se prestando atenção aos objectos que tinha à sua volta.
Passou junto de um quadro enorme, Colombo e os seus homens em
terra junto de uma cruz, bandeirolas ao fundo e o azul das Caraíbas
com os indígenas inclinando-se diante do descobridor, ignorantes do
que os esperava; e virou à direita, detendo-se diante dos expositores
com instrumentos náuticos. A colecção era estupenda e admirou a
balestilha, os quadrantes, os cronómetros Arnold e a extraordinária
colecção de astrolábios, octantes e sextantes dos séculos XVIII e XIX
pelos quais, sem dúvida, alguém estaria disposto a pagar muito mais
do que ele tinha obtido pelo seu modesto Weems & Plath.
Havia poucos visitantes no museu, mais amplo e luminoso do que
julgava recordar. Um velhote estudava minuciosamente um grande
mapa oblongo de Gibraltar, um casal de jovens com aspecto
estrangeiro olhava para os expositores da Sala dos Descobrimentos, e
um grupo de colegiais ouvia as explicações do professor no aposento
ao fundo, dedicado ao resgate do galeão San Diego. A claridade
zenital das grandes clarabóias do tecto iluminou Coy, enquanto
deambulava pelo pátio central. Se não estivesse obcecado pela
lembrança da mulher que o tinha trazido até ali, teria apreciado
deveras os modelos de navios de linha e as fragatas, completamente
equipados ou em secções de meio casco, que mostravam a sua
complexa arquitectura interior; não voltara a vê-los desde a sua última
visita ao museu, há vinte anos, quando se acedia ao recinto pela Calle
Montalbán e ele era ainda estudante de náutica. Apesar do tempo
decorrido, reconheceu acto contínuo e com prazer o seu preferido
dessa altura: um navio do século XVIII de três pontes e cento e
cinquenta canhões, com quase três metros de comprimento,
conservado num expositor gigantesco; o modelo de um barco que não
chegou a sulcar os mares porque nunca se construiu. Aqueles eram
marinheiros, disse para consigo como tantas outras vezes o fizera,
estudando a enxárcia, o velame e a mastreação do barco à escala,
admirando as longas gáveas por onde homens duros e desesperados
deviam avançar mantendo o equilíbrio sobre cabos instáveis que
corriam ao longo delas, prendendo a vela a meio de temporais e de
combates, com o vento e a metralha silvando e o mar implacável em
baixo, junto ao convés que oscilava sob os mastros. Por um momento,
Coy deixou-se transportar para o navio, abstraído no sonho de longas
perseguições ao amanhecer, a uma luz indecisa, de velas fugitivas no
horizonte. Quando não existia o radar, nem os satélites, nem a sonda
eléctrica, e os barcos eram cascas de noz dançando na boca do inferno,
e o mar, um perigo mortal. Mas também, ainda, um refúgio
inexpugnável face a todas as coisas, aos problemas, às vidas já vividas
e por viver, às mortes pendentes ou consumadas que se deixavam
para trás, em terra. «Chegámos demasiado tarde a um mundo
demasiado velho», lera uma vez nalgum livro. Chegámos demasiado
tarde, evidentemente. Chegámos a barcos e a portos e a mares que são
demasiado velhos, quando os golfinhos moribundos fogem da proa
dos barcos, Conrad escreveu vinte vezes A Linha de Sombra, Long
John Silver é uma marca de whisky e Moby Dick se transformou na
baleia boa de um filme de desenhos animados.
Junto da réplica, à escala natural, de um pedaço de mastro do
navio Santa Ana, Coy cruzou-se com um oficial da marinha: vestia um
uniforme impecável da Armada, tinha bom aspecto e ostentava nos
punhos a coca(1) no terceiro galão dourado de capitão-de-fragata. O
marinheiro olhou fixamente para Coy, que susteve o olhar até o outro
desviar os olhos e os seus passos se afastarem em direcção ao fundo
da sala.
V - O MERIDIANO ZERO
Estabelecido o primeiro meridiano, coloquem-se todos os lugares
principais por latitudes e longitudes.
Mendonza y Rios. Tratado de Navegação
*2. Corrientes 348: direcção de uma rua de Buenos Aires que um tango do
mesmo nome tornou famosa. (N. da T.) 3. Calle de La Compania: Rua da
Companhia (de Jesus). (N. da T.)
Reverendo Padre:
Não há nada que eu ame tanto como o muito que odeio este jogo.
John MacPhee. Procurando Barco
*2. Referência a uma história infantil, «La ratita presumida», que fala de
uma ratinha que recusou todos os pretendentes e se casou com o que lhe
pareceu mais bonito, o gato, acabando por ser comida por este. (N. da T.)
*2. Ketama: região marroquina onde se produz o melhor haxixe. (N. da T.)
Este caminho difere dos de terra em três coisas: o da terra é firme, este é
flexível. O da terra é imóvel, este é móvel. O da terra, assinalado; o do mar,
ignoto.
Martin Cortês. Breve Compêndio da Esfera
O pior ainda não é errar nos acidentes do mar. Outros erram pelos maus
documentos que seguem.
JorgeJuan. Compêndio de Navegação para Guardas-Marinhas
O Dei Gloria não estava ali. Coy foi adquirindo essa convicção
pouco a pouco, à medida que a quadrícula traçada sobre a carta ia
ficando coberta sem encontrarem nada. Com sondagens entre os
sessenta e os vinte metros, a Pathfinder tinha já traçado quase todo o
relevo das duas milhas quadradas onde deveriam encontrar-se os
restos do bergantim. Os dias passavam e estavam cada vez mais
quentes e tranquilos, e o Carpanta navegava a dois nós, com o
ronronar do seu motor a gasóleo, por um mar plano e luminoso como
a superfície de um espelho, bordo para norte e bordo para sul com
precisão geométrica, com contínuas mudanças de posição por satélite,
enquanto o feixe da sonda varria o relevo sob a quilha e Tânger, Coy e
Piloto se revezavam, empapados em suor, diante do ecrã de cristal
líquido. Os símbolos de fundo, cor de laranja suave, cor de laranja
escuro, vermelho pálido iam-se sucedendo com exasperante
monotonia: lodo, areia, algas, cascalho, rochas. Tinham coberto
sessenta .e sete das setenta e quatro passagens previstas e efectuado
catorze imersões para fazer o reconhecimento de ecos suspeitos, sem
encontrar o menor indício dos restos de um barco submerso. Agora, a
esperança desvanecia-se com as últimas horas de busca. Ninguém
dizia em voz alta o veredicto fatídico, mas Coy e o Piloto dirigiam um
ao outro longos olhares, e Tânger, obstinadamente imóvel diante da
sonda, parecia cada vez mais carrancuda e silenciosa. A palavra que
flutuava no ar era fracasso.
Na véspera do último dia fundearam com trinta metros de amarra
em sete metros de água, entre a ponta e a ilha da Cueva de los Lobos.
Quando o Piloto parou o motor e a proa do Carpanta rodou devagar
em torno da âncora para aproar sem muita convicção para poente, o
Sol escondia-se atrás das fendas da serra parda, iluminando em tons
dourados e avermelhados as matas de tomilho, os palmitos e as
figueiras-da-índia. Ao pé das rochas, o mar estava quase imóvel,
agitando-se suavemente nas rochas próximas e na pouca areia, branca
entre as algas.
— Não está aí — disse Coy em voz baixa.
Não falou para ninguém em concreto. O Piloto tinha acabado de
ferrar a vela grande à espicha e Tânger estava sentada nos degraus de
popa, com os pés dentro de água, olhando para o mar.
— Tem que estar — respondeu ela.
Mantinha o olhar imóvel no mesmo sítio, a quadrícula imaginária
que tinham navegado quase sem descanso durante duas semanas.
Vestia uma camisola de manga curta de Coy que lhe ficava grande,
cobrindo-a até ao início das coxas, e mexia os pés devagar,
chapinhando suavemente como as crianças que brincam à beira-mar.
— Tudo isto é absurdo — comentou Coy.
O Piloto tinha descido à casa de pilotagem, e por uma portinhola
aberta chegavam os ruídos que fazia preparando o jantar. Quando
subiu novamente à coberta para abrir a caixa da botija de butano e
ligar o gás da cozinha, o seu olhar grave encontrou o de Coy. É
problema teu, marinheiro.
— Tem que estar — disse Tânger de repente.
Continuava como antes, agitando os pés na água. Coy estava um
pouco mais apoiado na bitácula, procurando alguma coisa adequada
para dizer ou para fazer. Como não lhe ocorria nada, foi à procura de
uma máscara de mergulho e atirou-se ao mar, da proa, para
comprovar o unhar da âncora. A água estava limpa, tépida e
agradável, e a luz decrescente permitia seguir a linha da amarra
espalhada sobre o fundo de areia com algumas rochas. A âncora, uma
CQR de vinte e cinco quilos, estava na posição correcta, livre de algas
que pudessem fazê-la desunhar, se o vento aumentasse durante a
noite. Desceu um pouco para a ver bem e depois subiu devagar,
regressando ao veleiro, nadando de costas apenas com o movimento
das pernas, sem pressa, desfrutando o mergulho. Desejava adiar o
mais possível o momento de encontrar-se novamente com Tânger cara
a cara.
Uma vez a bordo, esfregou-se com uma toalha, contemplando a
costa, que o Sol-poente ia tornando totalmente avermelhada,
prolongada em arco para este: a rota do mármore, das legiões
romanas e dos deuses. Desta vez, no entanto, a visão não lhe causou
qualquer prazer. Pôs a toalha a secar e desceu pela escotilha,
sentando-se nos últimos degraus da escada. O Piloto ocupava-se com
as caçarolas na cozinha, preparando uma travessa de macarrão, e
Tânger estava sentada na casa de pilotagem, com as cartas náuticas
abertas em cima da mesa de navegação.
— Não há engano possível — garantiu ela, antes que Coy lhe
dissesse alguma coisa.
Tinha o seu lápis na mão e indicava as coordenadas de latitude e
longitude sobre as diversas cartas, marcando milhas nas escalas das
latitudes para as transportar com o compasso de pontas para o
rectângulo quadriculado da zona, tal como ele a ensinara a fazer.
— Tu próprio reviste os cálculos — acrescentou. — Alinhamentos
para Mazarrón, Cabezo de Las Víboras, Punta Percheles, cabo Tinoso
— inclinava-se muito séria, mostrando-lhe os resultados, como uma
estudante que quisesse convencer o professor. — ... 37° 32 minutos a
norte do equador e 4° 51 minutos a este de Cádis nas cartas esféricas
de Urrutia, correspondem a 37° 32 minutos de latitude norte e 1°
21minutos de longitude oeste relativamente ao meridiano de
Greenwich... Estás a ver?
Coy fingiu rever os números. Tinha efectuado aquelas operações
tantas vezes que as sabia de cor. As cartas estavam cheias de
anotações feitas pela sua mão.
— As tabelas de correcção podem estar erradas...
— Não estão — ela abanava energicamente a cabeça. — Já te disse
que provêm das Aplicações de Cartografia Histórica de Néstor
Perona. Aí, até o erro de 17minutos de longitude de Cádis
relativamente a Greenwich que tinham as cartas de Urrutia foi
corrigido. São precisas em cada minuto e segundo... Graças a elas
encontrou-se há dois anos o Caridad e o São Rico.
— A posição dada pelo ajudante de piloto podia estar errada. Com
a pressa, alguém pode ter cometido um erro.
— Não. Isso não pode ser. — Tânger continuava a negar com as
reticências de quem ouve o que não deseja ouvir. — Era tudo
demasiado exacto. O ajudante de piloto falava mesmo da proximidade
do cabo, a nordeste... Lembras-te?
Olharam ao mesmo tempo pela porta aberta por estibordo, em
direcção à mole avermelhada que se perfilava no extremo do arco da
costa, para lá da baía de Mazarrón e do cabo Falcó. Tendo já avistado
o cabo, tinha declarado o ajudante de piloto, de acordo com o
relatório.
— Também pode acontecer — acrescentou Tânger — que o Dei
Gloria esteja muito enterrado na areia e tenhamos passado por ele sem
o detectarmos...
Era possível, disse Coy. Embora pouco provável. Nesse caso,
explicou, a sonda teria assinalado pelo menos diferentes densidades
na estrutura do fundo. Mas estivera durante todo o tempo indicando
cangadas de areia e lodo com, pelo menos, dois metros. Era
demasiada profundidade para não ter detectado nada.
— Alguma coisa teria de haver aí — concluiu —, nem que fosse
apenas o metal dos canhões. Dez canhões juntos são uma massa de
ferro importante... E a esses dez é preciso acrescentar, embora possam
ter ficado dispersos pela explosão, os doze do corsário.
Tânger tamborilava na carta com o lápis. Tinha a outra mão na
boca, roendo a unha do dedo polegar. A sua testa tinha agora rugas
como cicatrizes. Coy esticou uma mão para a colocar no pescoço dela,
na esperança de apagar aquela carranca, mas ela permaneceu
insensível à carícia, pendente das cartas que tinha à frente. Os planos
do bergantim e do chaveco também estavam à vista, presos com fita-
cola a uma das anteparas da casa de pilotagem. Tinham mesmo
calculado nas cartas a área de dispersão dos canhões do corsário,
tendo em conta a explosão, a deriva e a distância relativamente ao
fundo.
— O ajudante de piloto — sugeriu Coy, retirando a mão — pode
ter mentido.
Tânger voltou a abanar a cabeça negativamente e as marcas na sua
testa tornaram-se mais pronunciadas.
— Demasiado jovem para urdir um engano desse calibre. Referiu-
se ao cabo próximo, à costa a algumas milhas... E trazia no bolso,
anotados a lápis, os dados de latitude e longitude.
— Então não me lembro de mais nada... A não ser que o meridiano
não seja o de Cádis.
Tânger dirigiu-lhe um olhar sombrio.
— Também pensei nisso — disse. — Foi a primeira coisa que fiz,
entre outras coisas, porque em O Tesouro de Rackam, o Terrível,
Tintim e o capitão Haddock cometem um erro semelhante, ao
confundir a longitude de Paris com a de Greenwich...
Às vezes, pensava Coy ouvindo-a, pergunto a mim próprio se não
estará a gozar comigo. Ou se tudo isto não passa de uma peripécia
infantil, imaginada num livro de histórias aos quadradinhos. Porque
não é sério. Ou não o parece. Ou não o pareceria, rectificou, se não
andasse pelo meio aquele anão argentino com a sua navalha, colado às
nossas sombras, e aquele dálmata do seu chefe. O sonho de uma
menina que brincava procurando barcos afundados. Com tesouros e
com maus.
— Mas nós conhecemos bem todos os meridianos usados na época
— disse. — Temos a posição fornecida pelo ajudante de piloto, e
podemos confirmá-la na carta, dispondo mesmo do sítio onde o
recolheram após o naufrágio... Não pode tratar-se de Hierro, nem de
Paris nem de Greenwich.
— Claro que não — ela indicava a escala na parte superior de uma
das cartas. — A longitude é relativa a Cádis, sem a menor dúvida:
com ela tudo coincide. O meridiano zero da nossa busca é o castelo
dos guardas-marinhas, já o era em 1767 e continuou a sê-lo até 1798.
Longitude antiga de Cádis ao naufrágio: 4 graus 51minutos este.
Longitude actual, uma vez corrigida: 5graus 12minutos Este.
Correspondência com Greenwich: 1graus 21minutos oeste. Nenhum
outro meridiano permite situar o Dei Gloria no Urrutia e nas cartas
modernas de uma forma tão perfeita.
— Tudo isso está muito bem. De uma forma perfeita, dizes. Mas
falta-nos o mais importante: o barco.
— Alguma coisa devemos ter feito mal.
— Isso é evidente. Agora diz-me o quê.
Ela tinha atirado o lápis para cima da mesa. Levantava-se, olhando
para a carta. Coy observou os seus pés descalços sobre as tábuas do
chão, as coxas longas e pintalgadas sob a camisola que se adaptava às
formas do peito. Voltou a acariciar-lhe o pescoço e, desta vez, ela
encostou-se um pouco contra ele. O seu corpo firme, morno, cheirava
levemente a suor e a sal.
— Não sei — disse, pensativa. — Mas se há um erro, cometemo-lo
nós. Tu e eu... Se amanhã terminarmos a busca sem resultados, será
preciso começar de novo.
— Como?
— Não sei. Pela aplicação das correcções cartográficas, suponho.
Um erro de meio minuto significa quase meia milha. E embora as
tabelas de Perona sejam bastante exactas, os nossos cálculos podem,
em vez disso, não o ser. Bastaria uma pequena imprecisão na latitude
e na longitude do ajudante de piloto; dez segundos ou algumas
décimas de minuto inestimáveis com os sistemas de posicionamento
da altura, mas decisivas quando transferimos tudo para a carta...
Talvez o bergantim esteja uma milha mais a sul, ou mais a este. Talvez
nos tenhamos enganado ao reduzir tanto a área de busca.
Coy suspirou o mais fundo que pôde. Aquilo era razoável, mas
significava começar de novo. Em todo o caso, também significava
continuar junto dela. Rodeou-lhe a cintura com os braços. Ela voltara-
se para ele e olhava-o de muito perto, inquisitiva, com a boca
entreaberta. Tem medo, compreendeu ele, resistindo à tentação de
beijá-la. Tem medo que o Piloto e eu digamos basta.
— Não dispomos de uma eternidade — disse. — O tempo pode
piorar novamente... Até agora tivemos sorte com a guarda civil, mas
podem começar a aborrecer-nos um dia destes. Perguntas e mais
perguntas. E depois, Nino Palermo e a sua gente — apontou para o
Piloto, que levantava a mesa para colocar a toalha, fingindo não estar
a ouvir a conversa. — .. .Também é preciso pagar-lhe.
— Não me angusties — libertara-se devagar, com suavidade, das
mãos que lhe enlaçavam a cintura. — Preciso de pensar, Coy. Preciso
de pensar.
Sorria um pouco, distante, embaraçada, como se pretendesse
dulcificar o gesto. De repente voltava a ficar a milhas de distância, e
Coy sentiu que uma tristeza escura lhe escorregava pelas veias.
Embora fale do Meridiano como um só, não é assim, pois são muitos;
porque todos os homens ou navios têm meridianos distintos, cada um o seu
particular.
Manuel Pimentel. Arte de Navegar
XV - AS ÍRIS DO DIABO
*1. Granizado: refresco feito com gelo picado e fruta esmagada. (N. da T.)
Data da digitalização