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O CEMITÉRIO DOS BARCOS SEM NOME

“A Carta Esférica” (PtBr)

ARTURO PÉREZ-REVERTE

TÍTULO ORIGINAL: “LA CARTA ESFÉRICA”

TRADUZIDO DO ESPANHOL POR: HELENA PITTA

ASA Editores S.A.


6ª edição: Julho de 2007

REVISÃO TÉCNICA: LUÍS DE MEDEIROS FERREIRA


Capitão-de-mar-e-guerra do Instituto de Defesa Nacional

Digitalização e Arranjo: Agostinho Costa

Nunca o mar e a História, a aventura e o mistério se tinham


combinado de um modo tão extraordinário. De Melville a Stevenson e
Conrad, de Homero a Patrick O'Brian, toda a grande literatura escrita
sobre o mar lateja nas páginas desta história fascinante e inesquecível,
assinada por um grande autor ibérico de projecção internacional.

MAIS DO QUE UM ROMANCE DE AMOR E AVENTURAS...


Um marinheiro sem barco, desterrado do mar, conhece uma
estranha mulher, que possui, talvez sem o saber, a resposta a
perguntas que certos homens fazem desde há séculos.
Arturo Pérez-Reverte o autor espanhol contemporâneo mais lido
no mundo inteiro, leva-nos, na companhia de Coy e Tanger, à procura
do Dei Gloria., um bergantim que há mais de duzentos anos repousa
nas águas profundas do Mediterrâneo. De Barcelona a Madrid, de
Cádiz a Gibraltar, ao longo das costas de Cartagena, o objectivo é
sempre um tesouro fabuloso, que talvez contenha a resposta a um dos
grandes enigmas da história de Espanha.

Uma carta náutica é muito mais do que um instrumento indispensável


para ir de um lugar a outro; é uma gravura, uma página da História, as vezes
um romance de aventuras.
Jacques Dupuet. Marinheiro

Observemos a noite. É quase perfeita, com a Estrela Polar visível


na sua posição exacta, cinco vezes para a direita do enfiamento
formado por Merak e Dubhé. A Estrela Polar vai continuar na mesma
posição durante os próximos vinte mil anos e qualquer navegante que
a contemplar sentir-se-á consolado ao vê-la no firmamento, porque é
bom alguma coisa continuar imutável algures, enquanto as pessoas
precisarem de traçar rumos sobre uma carta de navegação ou sobre a
paisagem difusa de uma vida. Se continuarmos a prestar atenção às
estrelas, acharemos Orion sem dificuldade, e depois Perseu e as
Plêiades. Isso é fácil porque a noite está muito limpa e não há nuvens;
nem sequer um sopro de brisa. O vento de sudoeste caiu ao pôr do
Sol, e a doca é um espelho negro que reflecte as luzes das gruas do
porto, os castelos iluminados sobre as montanhas e os relâmpagos —
verde à esquerda e vermelho à direita — dos faróis de San Pedro e
Navidad.
Aproximemo-nos agora do homem. Está imóvel, apoiado ao cimo
da muralha. Olha para o céu, que se anuncia mais escuro para leste, e
pensa que no dia seguinte soprará de novo o levante, levantando vaga
lá para fora. Parece também sorrir de uma forma estranha. Se alguém
conseguisse ver o seu rosto, iluminado a partir de baixo pela claridade
do porto, concluiria que existem sorrisos melhores do que aquele,
mais esperançados e menos amargos. Mas nós sabemos a causa.
Sabemos que, durante as últimas semanas, mar adentro e a poucas
milhas daqui, o vento e a ondulação foram decisivos na vida deste
homem. Embora já não tenham qualquer importância.
Não o percamos de vista, pois vamos contar a sua história.
Olhando com ele para o porto, veremos as luzes de um barco que se
afasta vagarosamente do molhe. O barulho das suas máquinas chega
até nós amortecido pela distância e pelos sons da cidade, com a
trepidação das hélices que batem na água negra, enquanto os
tripulantes metem a bordo os últimos metros de amarras. E quando,
da muralha, observa este barco, o homem sente dois tipos diferentes
de dor: um é na boca do estômago, feito da mesma tristeza que lhe
vem aos lábios com a careta que parece — depressa compreenderemos
que apenas parece — um sorriso. Mas há outra dor mais concreta e
aguda que vai e vem sobre o lado direito, ali onde a humidade fria lhe
cola a camisa ao corpo, o sangue goteja até à anca e empapa as calças
por dentro, a cada batimento do coração e a cada estremecimento das
veias.
Felizmente, pensa o homem, esta noite o meu coração bate muito
devagar.

I - O LOTE 307

Naveguei por oceanos e bibliotecas.


Herman Melville. Moby Dick

Poderíamos chamá-lo Ismael, mas na verdade chamava-se Coy.


Encontrei-o no penúltimo acto desta história, quando estava prestes a
converter-se noutro náufrago, desses que flutuam sobre um caixão
enquanto o baleeiro Raquel procura filhos perdidos. Nessa altura
estava à deriva há já algum tempo, incluindo a tarde em que acorreu à
leiloeira Claymore, em Barcelona, com a intenção de passar o tempo.
Tinha muito pouco dinheiro no bolso e, no quarto de uma pensão
próxima das Ramblas, alguns livros, um sextante e um título de
primeiro-piloto que, há quatro meses, a direcção-geral da marinha
mercante tinha suspendido por dois anos, depois de o Islã Negra, um
porta-contentores de 40 000 toneladas, ficar encalhado no oceano
Índico, às quatro e vinte da madrugada e durante o seu quarto de
serviço.
Coy gostava dos leilões de objectos navais, embora nessa época
não pudesse permitir-se licitar. Mas Claymore, situada num primeiro
andar da Calle Consell de Cent, dispunha de ar condicionado, serviam
uma bebida no fim, e a rapariga encarregada da recepção tinha longas
pernas e um sorriso bonito. Quanto aos objectos do leilão, gostava de
vê-los e de imaginar os naufrágios que os tinham levado daqui para
ali até encalharem na última praia. Durante toda a sessão, sentado
com as mãos nos bolsos do seu casaco azul-escuro de bombazina,
permanecia atento a quem levava os seus favoritos. O passatempo era,
com frequência, decepcionante: um magnífico escafandro de
mergulhador, cujo cobre amachucado e cheio de cicatrizes gloriosas
fazia pensar em naufrágios, bancos de esponjas e filmes de Negulesco,
com lulas gigantes e com Sofia Loren saindo da água moldada pela
blusa húmida, foi adquirido por um antiquário a quem nem sequer
tremeu o pulso ao levantar o cartão com o seu número. E um
compasso de distâncias Browne & Son, antigo, em boas condições e
dentro da sua caixa original, pelo qual Coy teria dado a alma nos seus
tempos de estudante de náutica, acabou adjudicado, sem ultrapassar a
base de licitação, a um indivíduo com aspecto de ignorar tudo sobre o
mar, excepto o facto de aquela peça poder ser vendida por dez vezes o
seu valor, se colocada numa montra de qualquer marina desportiva de
luxo.
O caso é que nessa tarde o leiloeiro rematou o lote 306 — um
cronometro Ulysse Nardin da Real Marinha italiana, ao preço base de
licitação — e consultou as suas notas ajustando os óculos com o
indicador. Era um tipo de maneiras suaves, gravata um pouco
atrevida e camisa cor de salmão. Entre cada licitação, bebia uns
golinhos de água, de um copo que tinha ao pé.
— Lote seguinte: Atlas Marítimo das Costas de Espanha, de
Urrutia Salcedo. Número trezentos e sete.
Tinha acompanhado o anúncio com um sorriso discreto que, Coy
sabia-o à força de o observar, reservava para as peças cuja importância
pretendia destacar. Jóia cartográfica do século XVIII, acrescentou após
a pausa adequada, sublinhando «jóia» como se lhe custasse desfazer-
se dela. O seu ajudante, um jovem vestido com um guarda-pó azul,
ergueu um pouco o volume de folhas grandes, para que o vissem na
sala, e Coy olhou-o com uma nota de melancolia: segundo o catálogo
da Claymore não era fácil encontrá-lo à venda, pois a maior parte dos
exemplares estavam em bibliotecas e museus. Aquele continuava em
perfeitas condições e o mais provável era nunca ter estado a bordo de
um barco, onde a humidade, as marcas de lápis e o trabalho sobre as
suas cartas de navegação deixavam vestígios irreparáveis.
O leiloeiro abria já a licitação, com um valor que teria sido
suficiente para Coy viver meio ano razoavelmente folgado.
Um homem de costas largas, testa alta e cabelo comprido e
grisalho apanhado num rabicho, que estava sentado na primeira fila e
cujo telemóvel tocara três vezes para irritação da sala, mostrou um
cartãozinho com o número onze. Outras mãos se ergueram, enquanto
a atenção do leiloeiro, que tinha o martelinho de madeira levantado, ia
de uns para outros e a sua voz educada repetia cada uma das ofertas,
sugerindo a seguinte com monotonia profissional. O preço base de
licitação estava prestes a duplicar e os aspirantes ao lote 307 iam
ficando pelo caminho. Mantinham-se na liça o indivíduo corpulento
de rabicho grisalho, outro, magro e barbudo, uma mulher, a quem só
conseguia ver um cabelo louro de corte médio e a mão que levantava
o cartão, e um homem careca e muito bem vestido. Quando a mulher
duplicou o preço inicial, o homem do rabicho grisalho voltou um
pouco o tronco, olhando na sua direcção com uma expressão irritada,
e Coy pôde ver uns olhos esverdeados e um perfil agressivo, um nariz
grande e um ar arrogante. A mão que levantava o cartão tinha vários
anéis de ouro. Não parecia estar habituado a que lhe disputassem
peças de leilão e, com um gesto brusco, acabou por se virar para a
direita, onde uma jovem morena bastante pintada que, sussurrando,
atendia o telefone cada vez que tocava, sofreu as consequências do seu
mau humor quando se pôs a repreendê-la asperamente, em voz baixa.
— Alguém cobre a oferta?
O homem do rabicho grisalho ergueu a mão e a mulher loura
contra-atacou levantando o seu cartão, que tinha o número setenta e
quatro. Isto aumentou a tensão na sala. O homem magro e barbudo
preferiu retirar-se da licitação e, após dois novos lances, o homem
careca e bem vestido começou a titubear. O homem do rabicho subiu a
oferta, provocando carrancas à sua volta quando o telefone se pôs
novamente a tocar e ele o tirou das mãos da secretária, encaixando-o
entre o ombro e o ouvido, a outra mão erguendo-se a tempo de cobrir
a oferta que a mulher loura acabava de fazer. Nesta altura da licitação,
a sala inteira estava ao lado da loura, desejando que o do rabicho
ficasse sem fundos ou sem bateria do telefone. O Urrutia tinha
triplicado o preço base, e Coy trocou um olhar divertido com o seu
vizinho de cadeira, um homenzinho moreno de bigode espesso e
escuro e cabelo muito esticado para trás com gel. O outro devolveu-
lhe o olhar com um sorriso cortês, as mãos cruzadas placidamente no
regaço, rodando os polegares, um sobre o outro. Era pequeno e
enfatuado, quase janota, com um laço de pintas vermelhas e um
casaco híbrido, entre príncipe-de-gales e escocês, que lhe dava o ar
extravagantemente britânico de um turco vestido na Burberrys. Tinha
os olhos melancólicos, simpáticos, um pouco salientes, como as
rãzinhas das histórias.
— Desejam subir a oferta?
O leiloeiro mantinha o martelo levantado e o seu olhar inquisitivo
apontava para o indivíduo do rabicho, que tinha devolvido o
telemóvel à secretária e o olhava contrariado. A última oferta,
exactamente o triplo do valor inicial, fora coberta pela mulher loura,
cujo rosto Coy não conseguia ver por mais que, curioso, espreitasse
entre as cabeças que tinha à frente. Tornava-se difícil garantir se era o
montante da licitação que desconcertava o do rabicho ou a
concorrência encarniçada da mulher.
— Senhoras e senhores, ninguém oferece mais? — perguntou o
leiloeiro, com muita calma.
Dirigia-se ao do rabicho, sem obter resposta. Toda a sala olhava na
mesma direcção, expectante. Incluindo Coy.
— Temos então este preço, que parece ser definitivo, um... Este
preço dois...
O do cabelo grisalho ergueu o cartão, com um gesto tão violento
como se empunhasse uma arma. Enquanto um murmúrio se
espalhava pela sala, Coy tornou a olhar para a mulher loura. O cartão
dela já estava no ar, cobrindo a oferta. Isso fez disparar novamente a
tensão e, como se de um combate de vida ou de morte se tratasse, os
presentes assistiram durante os dois minutos seguintes a um rápido
duelo a cujo ritmo intenso — o cartão número onze ainda não tinha
baixado já o setenta e quatro estava levantado — nem o leiloeiro
conseguiu furtar-se, tendo de fazer algumas pausas para levar aos
lábios o copo de água pousado junto do atril.
— Mais alguma oferta?
O Atlas de Urrutia atingira cinco vezes o seu preço base, quando o
número onze cometeu um erro. Talvez os nervos lhe tenham cedido,
embora o erro possa ter sido cometido pela secretária, cujo telemóvel
tocou com insistência, levando-a a passá-lo num momento crítico,
quando o leiloeiro estava com o martelo levantado esperando uma
nova oferta e o homem do rabicho grisalho hesitava como se
reformulasse a questão. O erro, se é que existiu, também podia ser
atribuído ao leiloeiro, que teria interpretado o gesto brusco do outro,
voltado para a secretária, como sendo de despeito e de abandono da
licitação. Ou talvez não tenha havido erro, porque os leiloeiros, como
qualquer outro cidadão, têm as suas simpatias e as suas fobias. E
aquele pode ter-se sentido inclinado a favorecer a parte contrária. O
caso é que três segundos bastaram para que o martelo caísse sobre o
atril e o Atlas de Urrutia fosse arrematado pela mulher loura, cujo
rosto Coy continuava sem conseguir ver.
O lote 307 era dos últimos e o resto da sessão prosseguiu sem
novas emoções e incidências, excepto o homem do rabicho não ter
voltado a licitar e, antes do fim, se ter levantado e abandonado a sala,
seguido pelo precipitado ruído dos tacões da secretária, não sem antes
dirigir um olhar furioso na direcção da loura. Esta também não voltou
a levantar o seu cartão. O indivíduo magro de barba acabou
adquirindo um telescópio marítimo muito bonito, e um cavalheiro de
ar seco e unhas sujas, sentado diante de Coy, conseguiu, por pouco
mais que o preço base, uma miniatura do San Juan Nepomuceno, com
quase um metro de comprimento e em muito bom estado. O último
lote, um conjunto de velhas cartas do Almirantado britânico, ficou por
rematar. Depois, o leiloeiro deu por terminada a sessão e toda a gente
se levantou, passando à salinha onde Claymore oferecia aos seus
clientes uma taça de champanhe.
Coy procurou a mulher loura. Noutras circunstâncias teria
dedicado mais atenção ao sorriso da jovem recepcionista, que se
aproximou de bandeja na mão oferecendo-lhe uma taça. A
recepcionista conhecia-o de outros leilões e, apesar de saber que nunca
licitava nada, era sem dúvida sensível às suas desbotadas calças de
ganga e às sapatilhas desportivas brancas que usava como
complemento do casaco azul-escuro de oficial da marinha, guarnecido
por duas filas paralelas de botões que noutros tempos tinham sido
dourados, com a âncora da marinha mercante, e que agora eram
pretos, de massa, mais discretos. Os punhos também revelavam as
marcas dos galões de oficial que tinham ostentado. Apesar disso, Coy
gostava muito daquele casaco. Talvez porque ao usá-lo se sentisse
vinculado ao mar. Sobretudo ao cair da tarde, quando rondava pelas
imediações do porto, sonhando com tempos em que ainda era
possível procurar desta forma um barco onde alistar-se e em que
existiam ilhas longínquas que davam asilo a um homem: repúblicas
justas que ignoravam tudo sobre suspensões por dois anos e onde
nunca chegavam citações de tribunais marítimos nem mandatos de
captura. Tinham-lhe feito o casaco à medida, com o boné e as calças
correspondentes, em Sucesores de Rafael Valls, há quinze anos, ao
aprovar no exame de segundo-piloto; e com ele navegou todo o
tempo, usando-o nas ocasiões, cada vez mais raras na vida de um
oficial da marinha mercante, em que ainda era preciso vestir-se
correctamente. Chamava àquela velha peça de vestuário o seu casaco
de Lord Jim — um nome bastante apropriado na sua situação actual
— desde o início daquela etapa que ele, leitor obstinado de literatura
náutica, definia como a sua época Conrad. Quanto a isso, Coy tivera
anteriormente uma época Stevenson e uma época Melville. E, das três,
em torno das quais ordenava a sua vida quando decidia dar uma vista
de olhos à esteira que qualquer homem deixa à popa, aquela era a
mais infeliz. Acabava de fazer trinta e oito anos, tinha pela frente vinte
meses de suspensão e um exame de capitão adiado indefinidamente,
estava encalhado em terra por um motivo que fazia franzir o sobrolho
a qualquer armador cujo umbral pisasse, e a pensão próxima das
Ramblas e a comida diária da Casa Teresa acabavam sem piedade
com as suas últimas poupanças. Mais algumas semanas e teria de
aceitar qualquer trabalho como simples marinheiro a bordo de um
desses barcos enferrujados, de tripulação ucraniana, capitão grego e
bandeira das Antilhas, que os armadores, para receberem o seguro,
deixavam afundar de vez em quando, muitas vezes com carga fictícia
e sem nos darem tempo de fazer as malas. Isso, ou renunciar ao mar e
tentar a vida em terra firme, ideia cuja simples consideração lhe dava
náuseas, pois Coy — embora a bordo do Islã Negra não lhe tivesse
servido de muito — possuía em alto grau a principal virtude de
qualquer marinheiro: um certo sentido de insegurança, entendido
como desconfiança, compreensível apenas por quem no golfo da
Biscaia vê um barómetro baixar cinco milibares em três horas, ou se
encontra no estreito de Ormuz atrás de um petroleiro de 500 000
toneladas e quatrocentos metros de comprimento que, pouco a pouco,
fecha a passagem. Era a mesma sensação imprecisa, esse sexto sentido
que o acordava à noite por uma alteração no regime das máquinas,
que o inquietava diante do aparecimento de uma longínqua nuvem
negra no horizonte, ou fazia que, de improviso, sem causa justificada,
o capitão resolvesse dar uma volta pela ponte, olhando para aqui e
para ali, como quem não quer a coisa. Situação comum, por outro
lado, numa profissão cujo gesto habitual de vigilância consiste em
comparar a toda a hora a girobússola com a agulha magnética. Ou,
dito de outra forma, verificar um falso norte mediante um norte que
também não é o verdadeiro. E no que a Coy se refere, esse sentimento
de insegurança acentuava-se, paradoxalmente, assim que deixava de
pisar o convés de um barco. Tinha a infelicidade, ou a sorte, de ser um
desses homens para quem o único lugar habitável se encontra a dez
milhas da costa mais próxima.
Bebeu um gole da taça que a recepcionista, coquete, lhe acabava de
oferecer. Não era um tipo atraente: a sua estatura, pouco mais que
mediana, fazia sobressair excessivamente a largura dos ombros, que
eram vigorosos, e as mãos largas e duras, herdadas do pai,
comerciante de artigos navais com pouca sorte e que, à falta de
dinheiro, lhe tinha deixado aquela forma de andar bamboleante,
quase desajeitada, de quem não está convencido de que a terra que
pisa seja digna de confiança. Mas as linhas toscas da sua boca ampla e
do seu nariz grande, agressivo, eram suavizadas por uns olhos
tranquilos, escuros e doces, que lembravam certos cães de caça
quando olham para os seus donos. Tinha também um sorriso tímido,
sincero, quase infantil, que por vezes lhe assomava aos lábios,
reforçando o efeito daquele olhar leal, um pouco triste, recompensado
pela taça e pelo gesto amável da recepcionista, que se afastava já entre
os clientes, com a inevitável saia sobre as pernas certas, julgando
sentir nelas o olhar de Coy.
Julgando. Porque nesse momento, ao mesmo tempo que levava a
taça aos lábios, ele dava uma vista de olhos em redor à procura da
mulher loura. Por um instante, deteve-se no homem baixinho dos
olhos melancólicos e do casaco aos quadrados, que lhe fez uma
inclinação de cabeça cortês. Depois, continuou a inspeccionar a sala
até encontrá-la: continuava de costas, a meio das pessoas,
conversando com o leiloeiro, e tinha uma taça na mão. Vestia um
casaco de camurça, saia escura e sapatos de tacão baixo. Aproximou-
se dela pouco a pouco, curioso, observando o cabelo dourado e liso,
cortado rente à nuca, mas caindo depois aos lados em direcção ao
queixo, em duas linhas diagonais assimétricas e, no entanto, perfeitas.
Enquanto conversava, o cabelo da mulher oscilava suavemente, com
as pontas a roçar-lhe a cara que só podia apreciar-se por trás, em
perspectiva. E após franquear dois terços da distância que o separava
dela, verificou que a linha despida do seu pescoço estava coberta de
sardas: centenas de minúsculas pintinhas ligeiramente mais escuras
que o pigmento da pele, não muito clara, apesar do cabelo louro, com
um tom que revelava sol, céu aberto e vida ao ar livre. E então,
quando se encontrava apenas a dois passos e se preparava para a
contornar disfarçadamente a fim de lhe ver a cara, a mulher despediu-
se do leiloeiro e deu a volta, ficando alguns segundos de frente para
Coy; o tempo necessário para pousar sobre uma mesa a taça que tinha
na mão, esquivá-lo com um leve movimento de ombros e de cintura e
afastar-se dali. Os seus olhos cruzaram-se nesse breve instante, e ele
teve tempo de reter uns insólitos olhos escuros de reflexos azulados.
Ou talvez fosse o contrário: olhos azuis de reflexos escuros, íris azul-
marinho que resvalaram sobre Coy sem prestar atenção, enquanto ele
comprovava que ela também tinha sardas na testa, no rosto, no
pescoço e nas mãos; que estava coberta de sardas e que isso lhe dava
uma aparência singular, atraente e quase adolescente, apesar de já
dever rondar os vinte e muitos anos. Pôde ver que usava no pulso
direito um relógio de homem em aço, grande e de mostrador preto.
Também que era meio palmo mais alta do que ele e que era muito
bonita.
Cinco minutos mais tarde, Coy dirigiu-se para a rua. A claridade
da cidade iluminava nuvens que corriam para sudeste pelo céu
escuro, e ele soube que o vento ia soprar e que talvez chovesse
naquela noite. Estava diante da entrada, com as mãos nos bolsos do
casaco, enquanto decidia se devia dirigir-se para a esquerda ou para a
direita, o que supunha a diferença entre uma sanduíche num bar
próximo, ou um passeio até à Plaza Real e dois Bombay azuis com
muita água tónica. Ou talvez um, rectificou rapidamente, recordando-
se do estado lastimável do seu porta-moedas. Havia pouco trânsito na
rua e, entre as folhas das árvores, uma prolongada linha de semáforos
ia passando do amarelo ao vermelho até perder de vista.
Depois de reflectir por alguns segundos, justamente no momento
em que o último semáforo ficou vermelho e o mais próximo mudou
novamente para verde, pôs-se a andar para a direita. Esse foi o seu
primeiro erro dessa noite.
LENC: Lei dos Encontros Nada Casuais. Baseando-se na conhecida
lei de Murphy — da qual tivera sérias confirmações nos últimos
tempos — Coy tendia a estabelecer, para consumo interno, uma série
de leis pitorescas que baptizava com absoluta solenidade técnica.
LDMF: Lei de Dançar com a Mais Feia, por exemplo; ou LTCSMB: Lei
da Torrada que Cai Sempre com a Manteiga para Baixo; e outros
princípios mais ou menos aplicáveis às funestas vicissitudes da sua
vida recente. Aquilo não servia de nada, evidentemente, a não ser às
vezes para sorrir. Sorrir de si próprio. De qualquer forma, sorrisos à
parte, Coy estava convencido de que, na estranha ordenação do
Universo, tal como no jazz — era um adepto fervoroso do jazz —
aconteciam acasos, improvisações tão matemáticas que uma pessoa
perguntava a si própria se não estariam escritas em qualquer lado. Era
aí que situava a sua recém-enunciada LENC. Porque, à medida que se
aproximava da esquina, viu primeiro um carro cinzento metalizado,
grande, estacionado junto do passeio com uma das portas aberta.
Depois, à luz de um candeeiro, conseguiu ver um pouco mais longe
um homem que conversava com uma mulher. Reconheceu primeiro o
homem, que estava de frente e, a poucos passos, quando conseguiu
distinguir a sua expressão furiosa, compreendeu que discutia com a
mulher, que agora deixava de estar escondida pelo candeeiro e era
loura, com o cabelo cortado na nuca, vestida com um casaco de
camurça e uma saia escura. Sentiu um formigueiro no estômago
enquanto se ria, surpreendido, para consigo. Às vezes, disse para si
próprio, a vida, de tão imprevisível, torna-se previsível. Hesitou um
pouco antes de acrescentar: ou vice-versa. Depois calculou a proa e o
abatimento. Se estava habituado a alguma coisa era a calcular por
instinto esse tipo de coisas; embora na última vez que se tinha
ocupado em traçar uma derrota — nunca tão acertado, isso da derrota
— esta o tivesse conduzido directamente a um tribunal marítimo. De
qualquer forma, alterou o seu rumo dez graus, a fim de passar o mais
perto possível do casal. Aquele foi o seu segundo erro: estava de
relações cortadas com o bom-senso de qualquer marinheiro, que
aconselha manter a distância de resguardo de qualquer costa ou
perigo.
O homem do rabicho grisalho parecia furioso. Ao princípio, não
conseguiu ouvir as suas palavras, porque falava em voz baixa, mas
viu que tinha uma mão levantada e um dedo apontado à mulher, que
se mantinha imóvel diante dele. Por fim, o dedo mexeu-se, batendo-
lhe no ombro com mais cólera que violência, e ela retrocedeu um
passo, como se aquilo a assustasse.
— ...as consequências. — Coy conseguiu ouvir o do rabicho dizer
— Compreende?... Todas as consequências.
Levantava o dedo, disposto a dar outra pancadinha no ombro, ela
afastou-se ainda mais e o tipo pareceu pensar melhor, pois o que fez
foi agarrá-la por um braço. Talvez não de modo violento, antes
persuasivo, intimidativo. Mas parecia tão irritado que, ao sentir a mão
dele no braço, a mulher deu um salto, assustada, e retrocedeu
novamente, livrando-se dele. Então o homem quis agarrá-la outra vez,
embora não tenha podido, porque Coy estava entre ele e ela, olhando-
o de muito perto; e o outro ficou com a mão no ar, uma mão com anéis
que brilhavam à luz do candeeiro, e com a boca aberta, porque se
preparava para dizer qualquer coisa à mulher. nesse instante, ou
porque não sabia de onde saíra aquele fulano com casaco de oficial da
marinha, ténis, ombros compactos e mãos largas e duras que pendiam
num falso abandono de ambos os lados, ao longo das pernas de umas
calças de ganga coçadas.
— Desculpe? — disse o do rabicho.
Tinha um leve sotaque indefinido, entre andaluz e estrangeiro.
Olhava para Coy surpreendido, curioso, como se tentasse, sem êxito,
situá-lo em tudo aquilo. A sua expressão já não era de irritação, mas
de estupefacção. Sobretudo quando pareceu compreender que o
intruso lhe era desconhecido. Era mais alto que Coy — quase toda a
gente o era naquela noite — e este viu-o dar uma olhadela por cima
dele, na direcção da mulher, como se esperasse um esclarecimento a
respeito de semelhante variante no programa. Coy não conseguia vê-
la, porque esta permanecia atrás de si sem se mexer e sem dizer uma
palavra.
— Que diacho...? — começou o do rabicho e interrompeu de
chofre, com a cara tão fúnebre como se tivessem acabado de lhe dar
uma má notícia. De pé à frente dele, com a boca fechada e as mãos
pendendo aos lados, Coy calculou as possibilidades do assunto.
Apesar de estar furioso, o outro tinha uma voz educada. Vestia um
fato caro, gravata e casaco, estava bem calçado e, na mão esquerda,
que era a dos anéis, ostentava um relógio caríssimo de ouro maciço e
design ultramoderno. Este indivíduo levanta dez quilos de ouro cada
vez que faz o nó da gravata, pensou Coy. Tinha bom aspecto, com
bons ombros e ar desportivo; mas não era o tipo de próximo, concluiu,
que anda aos murros a meio da rua, à porta dos leilões Claymore.
Continuava sem ver a mulher, que permanecia atrás dele, embora
pressentisse o seu olhar. Espero ao menos, disse para consigo, que não
desate a correr e tenha tempo de agradecer, se não me partirem a cara.
Mesmo se ma partirem. Por outro lado, o do rabicho voltara-se para a
sua esquerda, olhando para a montra de uma loja de modas, como se
esperasse que alguém saísse dali com uma explicação numa carteira
Armani. À luz do candeeiro e da montra, Coy verificou que o homem
tinha os olhos pardos; aquilo surpreendeu-o um pouco, por recordá-
los anteriormente esverdeados, no leilão. Depois, o homem voltou o
rosto na direcção contrária, da calçada, e pôde verificar que tinha um
olho de cada cor, pardo o direito, verde o esquerdo: bombordo e
estibordo. Também viu algo mais inquietante que a cor dos seus
olhos: a porta aberta do carro, que era um Audi enorme, iluminava o
interior, onde a secretária assistia à cena fumando um cigarro; e
também iluminava o motorista, um homenzarrão de cabelo bastante
frisado, vestido de fato e gravata, que nesse momento abandonava o
assento, ficando de pé junto à berma. O motorista não era elegante
nem tinha ar de ter a voz educada como o do rabicho: o nariz era
achatado, como o dos lutadores de boxe, e pareciam ter-lhe cosido e
voltado a coser a cara meia dúzia de vezes, deixando alguns bocados
de fora. Tinha uns laivos citrinos, quase berberes. Coy lembrava-se de
ter visto rufiões daquela catadura como porteiros de bordéis em
Beirute ou em salas de festa panamenses. Costumavam usar a navalha
de ponta e mola escondida na meia direita.
Aquilo não podia acabar bem, reflectiu resignado. LMAPD: Lei de
Muito Apanha e Pouco Dá. A ele iam partir-lhe alguns ossos
imprescindíveis e, enquanto isso, a rapariga fugiria a correr, como a
Gata Borralheira, ou como a Branca de Neve — Coy confundia sempre
estas duas histórias, porque não havia barcos — e nunca mais tornaria
a vê-la. Mas por agora continuava ali e sentia os olhos azuis com
reflexos escuros; ou talvez o contrário, recordou, escuros com reflexos
azuis. Sentia-os cravados nas suas costas. Não deixava de ter uma
graça mórbida estarem prestes a dar-lhe um enxerto por causa de uma
mulher a quem vira a cara durante dois segundos.
— Porque se mete no que não é chamado? — perguntou o do
rabicho.
Era uma boa pergunta. O seu tom de voz já não era furioso mas
concentrado, muito mais tranquilo e cheio de curiosidade. Pelo
menos, foi o que pareceu a Coy, que também não perdia de vista o
motorista pelo rabinho do olho.
— Isto é... Valha-me Deus! — concluiu o outro, ao ver que ele se
mantinha em silêncio. — Desapareça daqui.
Agora ela vai dizer a mesma coisa, imaginou Coy. Agora ela fica
de acordo com este indivíduo e pergunta-me quem me mandou
aparecer sem ser convidado e pede para eu ir à minha vida e não
meter o focinho onde não sou chamado. E eu gaguejo uma resposta
com as orelhas a arder, vou embora, dobro a esquina e corto os pulsos,
por bronco. Agora ela vai e diz que...
Mas a mulher não disse nada. Estava tão silenciosa como o próprio
Coy. Como se já não estivesse ali e tivesse fugido há que tempos; e ele
continuou quieto e sem dizer nada, entre os dois, vendo os olhos
bicolores que tinha adiante, um passo à sua frente e dois palmos
acima dos seus. Também não lhe ocorria mais nada e, se falasse, ia
perder a pequena vantagem que conservava. Sabia, por experiência,
que um homem calado intimida mais que um falador, porque é difícil
adivinhar o que lhe passa pela cabeça. Talvez o do rabicho fosse da
mesma opinião, porque olhava para ele pensativo. No fim, Coy julgou
vislumbrar incerteza nos seus olhos de dálmata.
— Vejam lá — disse o outro. — Saiu-nos... não é verdade? Um
herói da série B.
Coy continuou a olhar para ele sem dar um pio. Se me
despachasse, pensava, poderia dar-lhe um pontapé na bissectriz antes
de tentar a sorte com o berbere. A questão é ela. Interrogo-me que
diacho fará ela.
O do rabicho expirou ar de repente, com uma espécie de suspiro
que parecia um riso amargo, exagerado.
— Isto é ridículo — disse.
Parecia sinceramente confuso com aquela situação, fosse qual
fosse. Coy ergueu devagar a mão esquerda para coçar o nariz, onde
estava com comichão; fazia sempre isso quando reflectia. O joelho,
pensava. Direi qualquer coisa para o distrair e, antes de acabar, dou-
lhe uma joelhada nos tomates. O problema vai ser o outro, que ficará
prevenido. E com muito mau feitio.
Pela rua, passou uma ambulância com clarões cor de laranja.
Pensando que rapidamente precisaria de outra para si próprio, Coy
deu uma discreta vista de olhos em seu redor, sem encontrar nada a
que deitar a mão. De modo que aproximou os dedos do bolso das
calças de ganga, roçando com o polegar o volume das chaves da
pensão. Podia sempre tentar fazer ao motorista um corte na cara com
as chaves, como tinha feito uma vez a um alemão bêbado à porta do
clube Mamma Silvana de La Spezia, olá e adeus, quando o viu vir
para cima de si. Porque este filho da puta de certeza que lhe viria para
cima.
Então, o homem que tinha à sua frente levou uma mão à testa,
passando-a para trás, como se quisesse alisar ainda mais o cabelo
apanhado no rabicho, antes de balançar novamente a cabeça de um
lado para o outro. Tinha um sorriso estranho e pesaroso na boca, e
Coy decidiu que lhe agradava muito mais quando estava sério.
— Terá notícias minhas — disse à mulher por cima do ombro de
Coy. — ...Tê-las-á, evidentemente.
No mesmo instante olhou para o motorista, que já dava uns passos
na direcção deles. Como se aquilo fosse uma ordem, o outro parou. E
Coy, que pressentira o movimento e contraíra os músculos
bombeando adrenalina, descontraiu-se com disfarçado alívio. O do
rabicho olhou novamente para ele com muita atenção, como se
quisesse gravá-lo na memória: um olhar sinistro com legendas em
espanhol. Levantou a mão dos anéis e apontou-lhe o indicador ao
peito, da mesma forma que fizera anteriormente com a mulher, mas
sem chegar a tocá-lo. Limitou-se a deixar o dedo assim, apontado no
ar como uma ameaça. Depois deu meia volta e foi embora, como se
tivesse acabado de se lembrar que tinha um encontro urgente.
Depois, tudo se resolveu numa breve sucessão de imagens que
Coy observou atentamente: um olhar da secretária do assento traseiro
do carro, o cigarro desta que descreveu um arco antes de cair no
passeio, o bater da porta do homem do rabicho ao sentar-se ao lado
dela e o último olhar do motorista, de pé na berma: um olhar que lhe
dirigiu, longo e prometedor, mais eloquente que o do seu chefe, antes
do bater de outra porta e do ronronar suave do motor de arranque. Só
com o que este carro gasta ao arrancar, pensou Coy tristemente, eu
poderia comer comida quente por alguns dias.
— Obrigada — disse uma voz de mulher atrás dele.
Apesar das aparências, Coy não era um tipo pessimista. Para o ser
é imprescindível ver-se despojado da fé na condição humana, e ele
tinha nascido já sem aquela fé. Limitava-se a contemplar o mundo da
terra firme como um espectáculo instável, lamentável e inevitável; a
sua única preocupação era manter-se longe para limitar os danos.
Apesar de tudo, havia ainda nele uma certa inocência, naquela altura,
uma inocência parcial, referente às coisas e aos territórios alheios à sua
profissão. Quatro meses em doca seca não bastavam para lhe
arrebatar uma certa candura, própria do seu mundo aquático: o
distanciamento absorto, um pouco ausente, que alguns marinheiros
mantêm relativamente às pessoas que sentem terra firme sob os seus
pés. Nessa altura, ele ainda olhava para determinadas coisas à
distância, ou de fora, com uma ingénua capacidade de surpresa
parecida à que, em criança, o levava a colar o nariz nas montras das
lojas de brinquedos nas vésperas do Natal. Mas, agora com a certeza,
mais próxima do alívio que da decepção, de que nenhuma daquelas
inquietantes maravilhas lhe estava destinada. No seu caso, saber-se
fora do circuito, conhecer a ausência do seu nome na lista dos Reis
Magos(1), tranquilizava-o. Era bom não esperar nada das pessoas e ter
o saco de viagem suficientemente leve para o pôr ao ombro e ir até ao
porto mais próximo sem lamentar o que deixava para trás.

*1. Em Espanha, são os Reis Magos e não o Pai Natal quem dá as prendas
às crianças, que as recebem no dia 6 de Janeiro, dia de Reis. (N. da T.)
Bem-vindos a bordo. Existem, há milhares de anos, antes mesmo
de os côncavos navios zarparem rumo a Tróia, homens com rugas em
redor da boca e chuvosos corações de Novembro — aqueles cuja
natureza os determina, mais cedo ou mais tarde, a olhar com interesse
o buraco negro de uma pistola — para quem o mar significou sempre
uma solução e que pressentiram sempre quando era hora de partir. E
mesmo antes de saber que era um deles, Coy já o era por vocação e
por instinto. Uma vez, numa taberna de Vera Cruz, uma mulher —
eram sempre mulheres quem formulava este tipo de perguntas —
perguntara-lhe porque era marinheiro, e não advogado, ou dentista; e
ele limitou-se a encolher os ombros antes de responder passado algum
tempo, quando ela já não esperava resposta: «O mar é limpo.» E era
verdade. No alto mar o ar era fresco, as feridas cicatrizavam mais
depressa, e o silêncio tornava-se suficientemente intenso para tornar
suportáveis as perguntas sem resposta e justificar os próprios
silêncios. Noutra ocasião, no Restaurante Sunderland de Rosário, Coy
tinha conhecido o único sobrevivente de um naufrágio: um em
dezanove. Rombo às três da madrugada, fundeados a meio do rio,
todos a dormir, e o barco no fundo em cinco minutos. Gluglu. Mas o
que o tinha impressionado naquele indivíduo era o seu silêncio.
Alguém perguntou como era possível, dezoito homens ao fundo sem
se aperceberem. E o outro olhava-o calado, pouco à vontade, como se
fosse tudo tão óbvio que não valesse a pena explicar nada; e levava à
boca a sua caneca de cerveja. Para Coy, as cidades, com os seus
passeios cheios de gente e tão iluminados como as montras da sua
infância, também o faziam sentir-se pouco à vontade; desajeitado e
deslocado como um pato longe da água, ou como aquele tipo de
Rosário, tão calado como os outros dezoito que estavam ainda mais
calados. O mundo era uma estrutura muito complexa que só do mar
se podia contemplar; e a terra firme só adquiria proporções
tranquilizadoras de noite, durante o quarto de vigia, quando o
timoneiro era uma sombra muda e das entranhas do barco chegava a
trepidação suave das máquinas. Quando as cidades ficavam
reduzidas a pequenas linhas de luzes na distância e a terra era a
claridade trémula de um farol avistado na ondulação. Relâmpagos
que alertavam, que repetiam sem parar: cuidado, atenção, mantém-te
longe, perigo. Perigo.
Não viu esses relâmpagos nos olhos da mulher, quando voltou
para junto dela com um copo em cada mão, entre as pessoas que se
amontoavam no balcão de Boadas; e esse foi o terceiro erro da noite.
Porque não há listas de faróis, de perigos e de sinais para navegar
terra adentro. Não há roteiros específicos, cartas actualizadas, cartas
de baixos em metros ou braças, alinhamentos com este ou aquele
cabo, bóias vermelhas, verdes ou amarelas, nem regulamentos de
abordagem, nem horizontes limpos para calcular uma recta de altura.
Em terra, navega-se sempre por estima, às cegas, e só é possível ver os
recifes quando ouvimos o seu rumor a um cabo(2) da proa e vemos
clarear a escuridão na mancha branca do mar que quebra nas rochas à
superfície da água. Ou quando ouvimos a rocha inesperada — todos
os marinheiros sabem que existe uma rocha com o seu nome,
espreitando em qualquer parte — a rocha assassina, cortar o casco
com uma estridência que faz estremecer as anteparas, nesse momento
terrível em que qualquer homem ao comando de um barco prefere
estar morto.
— Foste rápido — disse ela.
— Sou sempre rápido nos bares.
A mulher olhou-o com curiosidade. Sorria um pouco, talvez por
ter observado a forma como Coy se aproximara do balcão, abrindo
caminho com a determinação de um pequeno e compacto rebocador
entre as pessoas que se amontoavam à frente, em vez de ficar atrás,
esperando chamar a atenção do empregado. Tinha pedido uma
genebra azul com água tónica para ele e um martini seco para ela,
trazendo-os de volta com um hábil movimento pendular das mãos e
sem derramar uma gota. O que em Boadas, e àquela hora, era digno
de mérito.
Ela observava-o através do copo. Azul muito escuro atrás do vidro
e da límpida transparência do martini.
— E o que fazes na vida, além de te mexeres bem pelos bares, de
ires a leilões náuticos e de socorreres mulheres indefesas?
— Sou marinheiro.
*2. Medida de 120 braças. (N. da T.)

- Ah!
— Marinheiro sem barco.
- Ah!
Tratavam-se por tu há apenas alguns minutos. Meia hora antes, à
luz do candeeiro, quando o homem do rabicho grisalho entrou para o
Audi, ela agradecera-lhe nas suas costas, e ele voltou-se para a ver
deveras pela primeira vez, parado no passeio, enquanto pensava no
seu íntimo que até ali tinha sido a parte fácil, e que já não dependia
dele conservar junto de si esse olhar pensativo e um pouco
surpreendido que o percorria de cima a baixo, como se tentasse
catalogá-lo nalguma das espécies de homem que ela conhecia. De
modo que se limitou a esboçar um sorriso prudente, um pouco
coibido. O mesmo sorriso que mostrava ao capitão quando se alistava
num novo barco, nesse momento inicial em que as palavras não
significam nada e os interlocutores sabem que o tempo porá cada
coisa no seu lugar. Mas a questão para Coy era precisamente ninguém
garantir a existência daquele tempo tão necessário, e nada a impedir
de agradecer novamente e de ir embora da forma mais natural do
mundo, desaparecendo para sempre. Foram dez longos segundos de
escrutínio que ele suportou silencioso e imóvel. LBA: Lei da Braguilha
Aberta. Espero não ter a braguilha aberta, pensou. Depois viu que ela
inclinava um pouco a cabeça para um lado, o suficiente para que o
lado esquerdo do seu cabelo louro e liso, cortado assimetricamente
com a precisão de um bisturi, roçasse a sua face cheia de sardas.
Depois disso, a mulher não sorriu nem disse nada, limitando-se a
andar devagar pelo passeio, rua acima, com as mãos nos bolsos do
casaco de camurça. Levava uma grande carteira de pele ao ombro, e
mantinha-a junto ao corpo com o cotovelo. O seu nariz era menos
bonito visto de perfil: um pouco achatado, como se o tivesse partido
alguma vez. Isso não diminuía o seu encanto, decidiu Coy, mas dava-
lhe um perfil de insólita dureza. Andava olhando para o chão à sua
frente e encostada à esquerda, como se lhe desse a ele a oportunidade
de ocupar esse lugar. Andaram em silêncio, a alguma distância um do
outro, sem olhares nem explicações ou comentários, até ela parar na
esquina, e Coy compreender que era o momento das despedidas ou
das palavras. A mulher estendia-lhe uma mão que apertou na sua,
grande e desajeitada, sentindo um aperto firme, ossudo, que
desmentia as sardas juvenis e estava mais de acordo com a expressão
tranquila dos olhos, que ele, finalmente, decidira serem azul-marinho.
E então Coy falou. Fê-lo com aquela timidez espontânea que era o
seu modo natural de dirigir-se a desconhecidos, encolhendo os
ombros com simplicidade e acompanhando as suas palavras com o
sorriso que, embora ele não o soubesse, lhe iluminava o rosto e
atenuava a sua rudeza. Falou e coçou o nariz e tornou novamente a
falar, ignorando se alguém a esperava nalgum sítio, se era desta
cidade ou de outra qualquer. Disse o que achou que devia dizer, e
depois ficou ali, baloiçando-se ligeiramente, com a respiração
suspensa, como uma criança que acaba de expor em voz alta uma
lição e aguarda sem grandes esperanças o veredicto da professora. E
então ela olhou-o outros dez segundos em silêncio, inclinou
novamente a cabeça, e o cabelo voltou a roçar-lhe a cara. E disse que
sim, porque não? Também lhe apetecia beber alguma coisa em
qualquer sítio. E assim, dirigiram-se para a Plaza Cataluña, depois
para as Ramblas e para a Calle Tallers. E quando ele manteve aberta a
porta de Boadas para a deixar passar, sentiu pela primeira vez o seu
aroma, indefinido e suave, que não parecia provir de águas-de-colónia
ou perfumes, mas da sua pele pintalgada em tons dourados, que
imaginou suave e cálida, com uma textura semelhante à pele das
nêsperas. E ao entrar, aproximando-se do balcão da parede,
comprovou que os homens e as mulheres que estavam no local
olhavam primeiro para ela e só depois para ele; e disse para consigo
que, por alguma estranha razão, os homens e as mulheres olham
sempre primeiro para uma mulher bonita e depois desviam o olhar
para o seu acompanhante de uma forma inquisitiva, para ver quem
será aquele fulano. Como se quisessem comprovar que a sua
aparência a merece, e que ele está à altura das circunstâncias.
— E o que faz um marinheiro sem barco em Barcelona?
Estava sentada num tamborete alto, com a carteira sobre os
joelhos, as costas contra o balcão de madeira que corria ao longo da
parede, sob as fotografias emolduradas e as lembranças do bar. Usava
duas pequenas bolinhas de ouro como brincos e nem um anel nas
mãos. Quase não usava maquilhagem. Pela gola entreaberta da blusa,
branca e com o botão superior desabotoado sobre centenas de sardas,
Coy via brilhar uma corrente de prata.
— Esperar — disse. Depois bebeu um gole de genebra azul e,
enquanto o fazia, viu que ela observava o seu velho casaco, e que
talvez se detivesse nas faixas mais escuras dos galões ausentes nos
punhos. — Esperar tempos melhores.
— Um marinheiro deve navegar.
— Nem todos são da mesma opinião.
— Fizeste alguma coisa errada?
Concordou com um meio sorriso triste. Ela abriu a carteira e tirou
um maço de tabaco inglês. As suas unhas não eram bonitas: curtas e
largas, de rebordos irregulares. Noutros tempos devia tê-las roído,
sem dúvida. Talvez ainda o fizesse. No maço restava um cigarro, e ela
acendeu-o com uma caixa de fósforos que tinha impresso um anúncio
de uma companhia de navegação belga que ele conhecia, a Zeeland
Ship. Viu que o fazia protegendo a chama com as mãos em concha,
num gesto quase masculino. A sua linha da vida era muito longa,
como se tivesse vivido muitas vidas na Terra.
— A culpa foi tua?
— Legalmente, sim. Aconteceu durante o meu quarto de serviço.
— Abordagem?
— Toquei no fundo. Havia uma rocha não assinalada nas cartas.
Era verdade. Um marinheiro nunca dizia encalhei, ou varei. O
verbo comum era tocar: toquei no fundo, toquei o molhe. Se a meio da
névoa do Báltico um barco partia outro ao meio e o metia a pique,
dizia: tocámos num barco. De qualquer forma, observou que ela
também tinha utilizado o termo marinheiro de abordagem, em vez de
choque ou colisão. O maço de cigarros estava sobre o balcão, aberto, e
Coy ficou a olhar para ele: a cabeça de um marinheiro, um salva-vidas
em jeito de orla e dois barcos. Há muito tempo que não via um maço
de Players sem filtro como aquele, dos de toda a vida. Não eram fáceis
de encontrar, e ignorava que ainda os fabricavam no seu invólucro de
cartolina branca, quase quadrada. Era engraçado ela fumar essa
marca: o leilão náutico, o Urrutia, ele próprio. LCA: Lei das
Coincidências Assombrosas.
— Conheces a história?
Apontava para o maço. Ela ficou a olhá-lo e depois levantou os
olhos, surpreendida.
— Que história?
— A de Héroe.
— Quem é Héroe?
Contou-lhe. Falou-lhe do nome na fita do gorro do marinheiro de
barba ruiva, da sua juventude, do veleiro que aparece num dos lados
da imagem, do outro barco, o vapor que foi o seu último barco. De
como o senhor Player e filhos compraram o seu retrato para o porem
nos maços de cigarros. Depois ficou calado, enquanto ela fumava — o
cigarro fora-se consumindo entre os dedos — e olhava para ele.
— É uma boa história — disse a mulher passado algum tempo.
Coy encolheu os ombros.
— Não é minha. Conta-a Dominó Vitali a James Bond em
Operação Relâmpago. Naveguei num petroleiro que tinha a bordo os
romances de Ian Fleming.
Também se lembrava de que esse barco, o Palestine, tinha passado
mês e meio bloqueado em Ras Tanura a meio de uma crise
internacional, com as pranchas do convés ardendo a sessenta graus
sob um sol infame, e os tripulantes deitados nos camarotes, sufocados
pelo calor e pelo tédio. O Palestine era um barco desgraçado,
agoirento, desses onde as pessoas se tornam hostis e se detestam e
desvairam: o chefe de máquinas resmungava delirando a um canto —
esconderam a chave do bar, e ele bebia às escondidas o álcool metílico
da enfermaria misturando-o com laranjada — e o primeiro-oficial não
dirigia a palavra ao capitão mesmo que o barco estivesse prestes a
encalhar. Coy teve tempo de sobra para ler esses romances e muitos
outros na sua prisão flutuante, naqueles dias intermináveis em que o
ar abrasador que entrava pelas escotilhas o fazia abrir a boca como um
peixe fora de água, e deixava, ao levantar-se, a silhueta do seu corpo
nu impressa em suor nos lençóis enxovalhados e sujos do beliche. Um
petroleiro grego tinha sido atingido a três milhas por uma bomba da
aviação, e durante alguns dias pôde ver do seu camarote a coluna de
fumo preto que subia directamente para o céu e, à noite, a claridade
que tingia o horizonte de vermelho e recortava as silhuetas escuras e
vulneráveis dos barcos atracados.
Durante esse tempo, acordou todas as noites aterrado, sonhando
que nadava num mar de chamas.
— Lês muito?
— Alguma coisa. — Coy esfregou o nariz. — Leio um pouco. Mas
sempre sobre o mar.
— Há outros livros interessantes.
— É capaz. Mas a mim só me interessam esses.
A mulher olhava-o, e ele encolheu novamente os ombros, antes de
se baloiçar um pouco sobre os pés. Então apercebeu-se de que não
tinham falado do tipo do rabicho grisalho, nem do que ela estava ali a
fazer. Nem sequer sabia o seu nome.
Três dias mais tarde, deitado de costas na cama do seu quarto da
pensão La Marítima, Coy olhava para uma mancha de humidade no
tecto. Kind of Blue. Nos auscultadores do seu walkman, depois de So
What, por onde o contrabaixo tinha estado a deslizar suavemente, o
trompete de Miles Davis acabava de entrar com o histórico solo de
duas notas — a segunda de uma oitava mais baixa que a primeira — e
Coy esperava, suspenso nesse espaço vazio, a descarga libertadora, a
única batida de bateria, o eco dos pratos e dos tambores preparando o
caminho lento, inevitável, assombroso, ao metal do trompete.
Considerava-se quase um analfabeto musical, mas amava o jazz, a
sua insolência e o seu engenho. Apaixonara-se por ele nos longos
quartos de serviço na ponte, quando navegava como terceiro-oficial a
bordo do Fedallah, um navio de transporte de fruta da Zoeline cujo
primeiro-oficial, um galego chamado Neira, possuía as cinco
gravações da Smithsonian Collection de jazz clássico. Isso incluía
desde Scott Joplin e Bix Beiderbecke até Thelonius Monk e Ornette
Coleman, passando por Armstrong, Ellington, Art Tatum, Billie
Holiday, Charlie Parker e os restantes. Horas e horas de jazz com uma
chávena de café nas mãos, olhando para o mar, com os cotovelos
apoiados numa das asas da ponte, de noite, sob as estrelas. O chefe
das máquinas, Gorostiola, natural de Bilbau, mais conhecido por
Torpedeiro Tucumán, era outro apaixonado por esta música; e os três
tinham partilhado jazz e amizade durante seis anos, numa rota
quadrangular que levou o Fedallah — depois passaram os três juntos
para o Tashtego, outro barco gémeo da Zoeline — com carga a granel
de fruta e sementes, entre Espanha, as Caraíbas, o Norte da Europa e o
Sul dos Estados Unidos. E aquela foi uma época feliz na vida de Coy.
Apesar da música dos auscultadores, através do pátio que fazia de
estendal, chegava o som do rádio da filha da patroa, que costumava
ficar a estudar até muito tarde. A filha da patroa era uma jovem tosca
e pouco bafejada pela beleza, a quem ele sorria educadamente sem
nunca obter em troca um gesto ou um olhar. La Marítima era uma
antiga casa de banhos públicos — 1844, garantia o dintel da porta,
aberta para a Calle Are del Teatre — reconvertida em pensão barata
de marinheiros. Estava a meio caminho entre o porto velho e o bairro
chinês e, sem dúvida, a mãe da rapariga, uma grosseira dama de
cabelo pintado num tom alaranjado, alertara-a para os perigos da sua
clientela habitual, gente rude e sem escrúpulos que coleccionava
mulheres em todos os portos, desembarcando sedenta de álcool,
droga e raparigas mais ou menos virgens.
Pela janela podia ouvir-se perfeitamente, entre o jazz do walkman,
Noel Soto cantando Noche de Samba en Puerto Espana; e Coy
aumentou o volume. Estava nu, à excepção de uns calções curtos, e,
pousado na barriga, tinha Capitão de Mar e Guerra, de Patrick
O'Brian, aberto e voltado para baixo. Mas o seu espírito andava muito
longe das andanças náuticas do capitão Aubrey e do doutor Maturin.
A mancha do tecto parecia-se com o traçado de uma costa, com os
seus cabos e enseadas, e Coy percorria com a vista uma rota
imaginária, entre duas das suas extremidades mais longínquas, no
mar amarelado do céu limpo. Naturalmente, pensava nela.
Chovia, quando saíram de Boadas. Uma chuva fina, que quase não
incomodava, que dourava com luzes cintilantes o asfalto e os passeios,
e pontilhava o feixe dos faróis dos automóveis. Ela não parecia
importar-se de que o seu casaco de camurça se molhasse, e foram
andando rua abaixo pelo passeio central, entre os quiosques de jornais
e revistas e os vendedores de flores que começavam a fechar. Um
mimo, estóico sob o molha-tolos que lhe fazia regueiros no pó branco
da cara imóvel, tão triste que deprimia todos os transeuntes vinte
metros em redor, seguiu-os com os olhos, quando a mulher se
inclinou um momento para deixar uma moeda no seu cestinho.
Andava da mesma forma que antes, um pouco adiantada e
olhando para o chão à sua esquerda, como se deixasse a Coy a opção
de ocupar esse espaço ou de se retirar discretamente. Ele
contemplava, às escondidas, o seu perfil duro entre o cabelo liso que
oscilava ao caminhar; os olhos azulados que, de vez em quando, se
voltavam para ele como um preâmbulo de um olhar pensativo ou de
um sorriso.
Em Schilling não estava muita gente. Voltou a pedir genebra azul
com água tónica e ela conformou-se apenas com água tónica. Eva, a
empregada brasileira, serviu as bebidas olhando-a com descaramento,
e depois arqueou uma sobrancelha em atenção a Coy, tamborilando o
balcão com as mesmas unhas compridas, pintadas de verde, que há
apenas três madrugadas cravara conscienciosamente nas suas costas
nuas. Mas Coy passou a mão pelo cabelo molhado e manteve o seu
sorriso inalterável, muito doce e tranquilo, até a empregada
murmurar «bastardo», sorrindo por sua vez e recusando-se a cobrar-
lhe a sua bebida. Depois, Coy e a mulher foram sentar-se numa mesa,
diante do espelho enorme que reflectia as garrafas colocadas na
parede. Aí prosseguiram a conversa intermitente. Ela não era faladora.
Por essa altura limitara-se a contar que trabalhava num museu, e cinco
minutos mais tarde ele pôde averiguar que se tratava do Museu Naval
de Madrid. Deduziu que tinha estudado História e que alguém, o seu
pai talvez, fora militar de carreira. Ignorava se isso tinha relação com o
seu aspecto de menina bem-educada. Também vislumbrou uma
firmeza contida, uma segurança interior, discreta, que o intimidava.
Coy não trouxe à baila o tipo do rabicho grisalho senão mais tarde,
quando passeavam sob as arcadas da Plaza Real. Ela tinha confirmado
que o Urrutia era uma peça valiosa, embora não fosse única; mas não
ficou claro se a aquisição tinha sido para o museu ou para ela. É um
atlas marítimo importante, comentou evasiva quando ele se referiu à
cena da Calle Consell de Cent, e há sempre alguém interessado nesse
tipo de coisas. Coleccionadores, acrescentou passado um instante.
Gente desse tipo. Depois inclinou um pouco a cabeça e perguntou
pela vida que ele fazia em Barcelona, de uma forma que tornava
evidente o seu desejo de mudar de conversa. Coy falou de La
Marítima, dos seus passeios pelo porto, das manhãs de sol na
esplanada do Universal, diante do comando da marinha, onde podia
estar três ou quatro horas sentado com um livro e o seu walkman pelo
preço de uma cerveja. Também falou do tempo que lhe restava pela
frente, da impotência de estar em terra sem trabalho e sem dinheiro.
Nesse momento julgou ver espreitar, na extremidade das arcadas, o
indivíduo baixinho de bigode, cabelo com gel e casaco aos quadrados
que, à tarde, estivera no leilão. Observou-o um momento para ter a
certeza, e voltou-se para ela, a fim de verificar se também tinha
reparado nessa presença. Mas os olhos dela estavam inexpressivos,
como se não vissem nada de particular. Quando Coy deu a volta para
olhar de novo, o homenzinho do casaco aos quadrados continuava ali,
passeando com as mãos atrás das costas, com um ar casual.
Estavam à porta do Club de la Pipa, e ele fez um cálculo rápido do
que ainda tinha na carteira, concluindo que podia permitir-se
convidá-la para mais um copo e que, no pior dos casos, Roger, o
encarregado, lhe fiaria. Ela mostrou-se surpreendida pelo lugar
insólito, pela campainha da porta, pelas velhas escadas e pelo local no
segundo andar, com o seu balcão estranho, o sofá e as gravuras de
Sherlock Holmes penduradas na parede. Não havia jazz nessa noite e
permaneceram de pé junto do balcão deserto, enquanto Roger fazia
palavras cruzadas na outra extremidade. Ela quis provar a genebra
azul, dizendo que gostava do seu aroma, e logo a seguir declarou-se
encantada com o sítio, acrescentando que nunca imaginara que
houvesse um lugar como aquele em Barcelona. Coy disse que estavam
prestes a encerrá-lo, porque os vizinhos se queixavam do ruído e da
música; pisavam um barco a caminho do desmantelamento. Ela tinha
ficado com uma gotinha de genebra com água tónica na comissura
dos lábios, e ele pensou que felizmente só tinha três copos no
estômago, pois com mais alguns teria estendido a mão para limpar
aquela gota com os dedos. E ela não parecia ser daquelas que deixam
um marinheiro que acabaram de conhecer, e a quem olham com uma
mistura de reserva, cortesia e agradecimento, limpar nada. Então, ele
perguntou, finalmente, o nome dela. Ela sorriu novamente — desta
vez passado um instante, como se tivesse de ter ido longe para o fazer
— e depois os seus olhos cravaram-se nos de Coy; ou seja, cravaram-
se literalmente durante um longo e intenso segundo, e disse o seu
nome. E ele considerou que era um nome singular tal como a sua
aparência, um nome que, no entanto, lhe ficava bem, e que
pronunciou uma vez só em voz alta, devagar, quando dos lábios dela
ainda não se tinha esfumado de todo o sorriso distante. Depois, Coy
pediu um cigarro a Roger para lho oferecer, mas ela não quis fumar
mais. E quando a viu levar o copo à boca e entreviu os seus dentes
brancos atrás do vidro, com o gelo a roçá-los num tilintar húmido,
baixou os olhos na direcção da corrente de prata que brilhava um
pouco naquela gola aberta da sua blusa, sobre a pele que, com aquela
luz, parecia mais cálida do que nunca, e interrogou-se se um homem
teria contado alguma vez todas aquelas sardas até à Finisterra. Se as
teria contado sem pressa, uma por uma, rumo ao sul, da mesma forma
que a ele lhe apetecia fazê-lo. Foi nessa altura que, ao erguer os olhos,
verificou que ela tinha interpretado o seu olhar e sentiu parar o
coração, quando a ouviu dizer que eram horas de ir embora.
No rádio da filha da patroa, a mesma voz acometia agora La Reina
del Barrio Chino. Coy desligou o seu walkman — Miles Davis
monologava Saeta, o quarto tema de Sketches of Spain — e deixou de
olhar para a mancha do tecto. O livro e os auscultadores caíram sobre
os lençóis quando se levantou e se pôs a andar pelo quarto estreito,
tão parecido à cela que uma vez ocupara durante dois dias em La
Guaira, daquela vez em que o Torpedeiro Tucumán, o galego Neira e
ele próprio, fartos de comer fruta, foram a terra comprar peixe fresco
para uma caldeirada, e Neira disse: — Esperem-me bebendo um café,
quinze minutos para uma rapidinha e estou de volta.
E passado pouco tempo ouviram-no a pedir socorro pela janela,
entraram e partiram o bar, destruíram-no todo, até as mesas, as
garrafas e as costelas do chulo que tinha ficado com a carteira do
galego, e o capitão, Dom Matías Norena, teve de ir, bastante mal-
humorado, tirá-los de lá, subornando dois polícias venezuelanos com
um maço de dólares que, mais tarde, descontou dos salários deles, até
ao último centavo.
Sentiu um início de nostalgia ao recordar tudo aquilo. O espelho
sobre o lavatório reflectia os seus ombros compactos e o rosto
cansado, por barbear. Deixou correr a água até estar bem fria e depois
jogou-a com as mãos para a cara e para a nuca, resfolegando e
sacudindo a cabeça como um cão sob a chuva. Esfregou-se
vigorosamente com uma toalha e ficou algum tempo olhando-se
imóvel, o nariz forte, os olhos escuros, as feições toscas, como se
avaliasse as probabilidades a seu favor. Tás feito, concluiu. Com essa
pinta não comes gaja nenhuma.
Abriu a gaveta da cómoda, tirando-a completamente, e tacteou por
trás até encontrar o sobrescrito onde guardava o dinheiro. Não era
muito, e nos últimos dias minguava perigosamente. Ficou algum
tempo sem se mexer, dando voltas à cabeça, e no fim foi até ao
armário e tirou o saco onde tinha os seus escassos pertences: alguns
livros bastante lidos, os galões de oficial cujos dourados começavam a
ficar verde-bolor, cassetes de jazz, uma carteira para fotografias — o
navio escola Estreita del Sur com as velas ao vento, o Torpedeiro
Tucumán e o galego Neira no balcão de um bar de Roterdão, ele
próprio com galões de primeiro-oficial, apoiado na amurada do Islã
Negra sob a ponte de Brooklyn — e a caixa de madeira onde guardava
o seu sextante. Era um bom sextante: um Weems & Plath de sete
filtros fumados, metal preto e arco de latão dourado, que Coy tinha
comprado em prestações, a partir do seu primeiro ordenado, mal
obtivera o seu título de piloto. Os sistemas de'posicionamento por
satélite sentenciavam a morte deste instrumento, mas qualquer
marinheiro que se prezasse conhecia a sua fiabilidade, à prova de
falhas electrónicas, para estabelecer a latitude ao meio-dia, quando o
Sol atingia o seu ponto mais alto no céu (meridiana), ou de noite com
uma estrela baixa no horizonte: efemérides náuticas, tábuas, três
minutos de cálculos. Da mesma forma que os militares cuidam e
mantêm limpas as suas armas, Coy tinha procurado ao longo de todos
aqueles anos que o sextante se mantivesse sem humidade salina ou
sujidade, limpando os seus espelhos e verificando possíveis erros
laterais e de índice. Mesmo agora, sem barco sob os pés, costumava
levá-lo nos seus passeios pela costa para calcular rectas de altura,
sentado numa rocha e diante do horizonte do mar aberto. Este hábito
datava do tempo em que navegava como aluno no Monte Pequeno, o
seu terceiro barco se contarmos com o Estrella del Sur. O Monte
Pequeno era um barco de 275 000 toneladas da Enpetrol, e o capitão,
Dom Agustín de La Guerra, gostava de dar solenidade ao momento
da meridiana, convidando para um copo de xerez, os oficiais, depois
de estes e de os jovens adjuntos conferirem os seus respectivos
cálculos, após terem estado numa das asas da ponte, o capitão de
relógio na mão e eles tangenciando o Sol no horizonte através dos
filtros fumados dos seus instrumentos. Aquele era um capitão da
velha escola; com um parafuso a menos, mas excelente marinheiro, do
tempo em que os grandes petroleiros iam ao Pérsico em lastro pelo
Suez e voltavam carregados rodeando África pelo Cabo. Uma vez
atirou um despenseiro por uma escada quebra-costas, porque este lhe
faltara ao respeito e, quando o sindicato se queixou, respondeu que o
despenseiro tinha sorte, porque há século e meio tê-lo-ia pendurado
no mastro grande. «No meu barco», disse em determinada ocasião a
Coy, «ou estão de acordo com o capitão ou calam-se.» Foi durante um
jantar de Natal no Mediterrâneo, com um péssimo tempo de proa, um
temporal duro de força dez que obrigava a moderar as máquinas
diante do cabo Bom. Coy, aluno de náutica estagiário a bordo, tinha
discordado de um comentário banal do capitão. Nessa altura, ele
atirou o guardanapo para cima da mesa e disse aquilo de que no seu
barco, etc. Depois mandou-o sair de quarto à ponte, para a asa da
ponte de estibordo, onde Coy permaneceu as quatro horas seguintes
na escuridão, açoitado pelo vento, pela chuva e pelos borrifos do mar
que batia contra o petroleiro. Dom Agustín de La Guerra era um raro
sobrevivente de outros tempos, despótico e duro a bordo; mas quando
um cargueiro panamense, com um oficial de quarto russo e bêbado,
lhe meteu a proa na popa, numa noite em que a chuva e o granizo
saturavam os radares no canal da Mancha, soube manter o petroleiro
a flutuar e governá-lo até Dover sem derramar uma gota de crude e
poupando à empresa o custo de rebocadores. Qualquer atrasado
mental, dizia, consegue agora dar a volta ao mundo apertando botões;
mas se a electrónica deixa de funcionar, ou os Americanos resolvem
desligar os seus malditos satélites, invenção do Maligno, ou um filho
da puta de um bolchevique nos rebenta o cu bem rebentado a meio do
oceano, um bom sextante, uma agulha magnética e um cronometro
continuarão a levar-nos a qualquer parte. De modo que pratica,
garoto. Pratica. Obediente, Coy tinha praticado sem descanso durante
dias, meses e anos, e passado mais tarde, e com aquele mesmo
sextante, por observações mais difíceis em noites cerradas e perigosas,
a meio de fortes temporais que percorriam o Atlântico de ponta a
ponta, agarrando-se empapado à amurada, enquanto a proa embatia
furiosamente e ele perscrutava desesperadamente, com um olho
colado ao visor, o aparecimento do ténue círculo dourado entre as
nuvens empurradas pelo vento de noroeste.
Sentiu uma suave melancolia quando susteve o peso familiar do
sextante nas mãos, fazendo correr a alidade móvel enquanto a ouvia
deslizar pela cremalheira dentada que numerava de 0 a 120 os graus
de qualquer meridiano terrestre. Depois calculou quanto pediria por
ele a Sergi Solàns, que admirava há anos aquele instrumento. Pois,
como costumava dizer Sergi quando bebiam juntos um copo no
Schilling, já não se fabricavam sextantes como aquele. Sergi era um
bom rapaz, que pagava quase todas as bebidas desde que Coy se vira
em terra sem dinheiro, e não lhe guardava rancor por ter ido para a
cama com Eva, naquela noite em que a brasileira ostentou uma
camisola diabolicamente cingida à medida 95 do soutien que nunca
usava, e Sergi estava demasiado bêbado para a disputar. Também
tinha estudado náutica com Coy, partilhado o barco alguns meses,
quando ambos navegavam estagiários no Migalota, um ro-ro da
Rodríguez & Saulnier, e agora preparava o seu exame de capitão
como primeiro-oficial de um ferry da Transmediterrânea que fazia
duas vezes por semana a linha Barcelona-Palma. É como conduzir um
autocarro, dizia. Mas com um sextante como esse no camarote, uma
pessoa continua a sentir-se marinheiro.
Centrou o braço a meio do arco e devolveu com cuidado o Weems
& Platb à sua caixa. Depois foi até à cómoda, abriu a sua carteira e
tirou de lá o cartão que a mulher lhe dera há três dias, ao despedir-se
na esquina das Ramblas. O cartão não tinha direcção nem telefone,
apenas o nome e um único apelido: Tânger Soto. Em baixo, com letra
redonda e precisa, com um círculo a fazer de ponto sobre o único «i»,
ela escrevera a direcção do Museu Naval de Madrid.
Quando fechou a tampa do sextante, Coy assobiava Nocte de
Samba en Puerto Espana.

II - A MONTRA DE TRAFALGAR

Em terra só há problemas.
D. Haeften. Como Enfrentar os Temporais

Depois soube que foi como saltar para o vazio; e isso era singular
no caso de Coy, que não recordava ter tomado um rumo precipitado
na sua vida. Era o tipo de pessoa que, na casa de pilotagem de um
navio, demora o tempo que for preciso para traçar conscienciosamente
qualquer rota sobre a carta náutica. Antes de se ver à força em terra e
sem barco, essa tinha sido fonte de satisfações numa profissão onde
essas coisas contavam na altura de definir um trajecto seguro entre
dois pontos situados em diferentes latitudes e longitudes geográficas.
Havia poucos prazeres comparáveis a passar um bom tempo entre
cálculos de rumo, abatimento e velocidade, prevendo que o cabo Tal
ou o farol Beltrano apareceriam dois dias mais tarde, por volta das
seis da manhã e a uns trinta graus pela amurada de bombordo, e
depois aguardar a essa mesma hora na amurada húmida pelo sereno
da madrugada, com os binóculos nos olhos, até ver aparecer,
exactamente no lugar previsto, a silhueta cinzenta ou a luz
intermitente que, uma vez cronometrada a frequência de relâmpagos
ou eclipses, confirmava a exactidão dos cálculos. Chegado esse
momento, Coy modulava sempre um sorriso para o seu íntimo; um
sorriso sereno e satisfeito. Depois, alegrando-se com a confirmação
daquela certeza obtida pela matemática, pelos instrumentos de bordo
e pela sua competência profissional, ia apoiar-se num ângulo da
ponte, junto à sombra silenciosa do timoneiro, ou servia-se de um café
quente do termos, contente por estar ali, num bom barco, em vez de
fazer parte daquele outro mundo incómodo, feito de terra firme,
felizmente reduzido a uma ligeira claridade atrás do horizonte.
Mas esse rigor na hora de pôr em prática movimentos sobre o
papel das cartas náuticas que dirigiam a sua vida não o tinha livrado
do erro nem do fracasso. Dizer terra à vista e verificar depois, de
forma táctil, a presença dessa mesma terra e as suas consequências
eram situações que nem sempre surgiam por essa ordem. A terra
existia, nas cartas ou fora delas, e tinha decidido manifestar-se de
improviso, como costuma acontecer neste tipo de coisas, penetrando
no frágil reduto — apenas um pouco de ferro flutuando no imenso
oceano — onde Coy julgava sentir-se a salvo. Seis horas antes de o Islã
Negra, um porta-contentores da companhia de navegação Mínguez
Escudero, encalhar a meio caminho entre o cabo e o canal de
Moçambique durante o seu quarto de serviço, Coy, primeiro-oficial a
bordo, tinha advertido o capitão de que a carta do Almirantado
britânico correspondente a essa zona mencionava, numa chamada
especial, algumas imprecisões nos levantamentos. Mas o capitão tinha
pressa e, além disso, tinha navegado por aquelas águas durante vinte
e cinco anos com as mesmas cartas e sem problemas. Também levava
dois dias de atraso por ter apanhado mau tempo no golfo da Guiné e
por ter sido obrigado, mais tarde, a evacuar de helicóptero um
tripulante que partira a coluna ao escorregar numa escada diante da
Costa dos Esqueletos. As cartas inglesas, dissera durante o jantar, são
tão minuciosas que é preciso trazê-las nas palminhas. A rota está
limpa, duzentas e quarenta braças nas extremidades dos baixios mais
altos e nem uma caganita de mosca no papel. De modo que
passaremos entre os ilhéus Terson e Mowett Grave. Foi o que disse:
folha de papel, caganita de mosca e direito entre os ilhéus. O capitão
era um galego de sessenta e alguns anos, franzino, de cara
avermelhada e cabelo grisalho. Além de confiar cegamente nas cartas
do Almirantado, chamava-se Dom Gabriel Moa, tinha quatro décadas
de mar nas rugas da cara e em todo esse tempo ninguém o vira perder
a compostura, nem sequer quando, no início dos anos noventa, dizia-
se, andou dia e meio adornado vinte graus, depois de perder onze
contentores a meio de um temporal do Atlântico. Era um desses
capitães pelos quais armadores e subalternos põem a mão no fogo:
seco na ponte, sério na casa de pilotagem, invisível em terra. Um
capitão à moda antiga, dos que tratavam oficiais e estagiários por
você, e a quem ninguém podia imaginar a cometer um erro. Por isso,
Coy manteve aquele rumo na carta inglesa que assinalava imprecisões
nos levantamentos; e também por isso, decorridos vinte minutos do
seu quarto de serviço, tinha ouvido ranger sobre uma rocha o casco de
aço do Islã Negra estremecendo sob os seus pés, antes de conseguir
recuperar do seu estupor e, precipitando-se sobre o telégrafo de
ordens, parasse as máquinas, e o capitão Moa aparecesse na ponte de
pijama e com o cabelo despenteado, olhando para a escuridão lá de
fora com uma expressão sonâmbula e estúpida que Coy nunca lhe vira
anteriormente. O capitão balbuciara apenas «não pode ser» três vezes,
uma atrás da outra, e depois, sempre perplexo como se não estivesse
ainda completamente acordado, murmurou um fraco «parem as
máquinas», quando as máquinas já estavam paradas há cinco
minutos, e o timoneiro continuava imóvel com as mãos na roda do
leme, observando-os alternadamente a ele e a Coy. E Coy olhava, com
a certeza terrível de quem obtém à sua custa uma revelação
inesperada, para aquele respeitável superior cujas ordens tinha
acatado sem vacilar meia hora antes, apesar de o conduzirem com o
radar desligado pelo estreito de Malaca, e que, de repente,
surpreendido e sem tempo de ajustar a máscara da sua falsa
reputação, ou talvez — os homens mudam com os anos e no seu
coração — a máscara do marinheiro eficiente que fora noutros tempos,
se mostrava agora tal como era na realidade: um velho aturdido e em
pijama, ultrapassado pelos acontecimentos, incapaz de dar uma
ordem adequada. Um pobre homem assustado que de repente via
esfumar-se a sua pensão de reforma, após quarenta anos de serviço. A
advertência da carta inglesa não era em vão: existia pelo menos uma
agulha por determinar no canal entre Terson e Mowett Grave, e um
brincalhão cósmico devia estar a rir-se às gargalhadas nalgum lugar
do Universo, porque aquela rocha isolada no vasto oceano se pusera
exactamente a meio da rota do Islã Negra, com a mesma exactidão que
o famoso icebergue do Titanic, durante o quarto de serviço do
primeiro-oficial Manuel Coy. De qualquer forma, ambos, capitão e
primeiro-oficial, tinham pago por isso. O tribunal de investigação,
composto por um inspector da companhia e dois marinheiros
mercantes, teve em conta o historial do capitão Moa, solucionando o
assunto com uma discreta reforma antecipada. Quanto a Coy, aquela
carta do Almirantado britânico tinha acabado por levá-lo para muito
longe do mar. Agora estava em Madrid, imóvel junto de uma fonte de
pedra onde um menino de sorriso hierático estrangulava um golfinho,
e parecia um náufrago recém-chegado a uma praia ruidosa em plena
época alta. Tinha as mãos nos bolsos e, entre a multidão de
automóveis e o estrépito de buzinadelas ferozes, olhava de longe para
o galeão de bronze que presidia a entrada do número cinco do Paseo
del Prado. Ignorava a precisão do levantamento hidrográfico na rota
que se propunha seguir, mas já tinha deixado bastante para trás, na
sua consciência, o ponto em que ainda é possível virar de bordo e
mudar um rumo. O sextante Weems & Plath, que o seu amigo Sergi
Solàns tinha finalmente adquirido a um preço razoável, fora suficiente
para lhe pagar o bilhete de comboio Barcelona-Madrid usado na noite
anterior, e para um fundo de sobrevivência com capacidade de
flutuação garantida para duas semanas, do qual uma parte avolumava
o bolso direito das suas calças de ganga, e a outra se encontrava no
saco de lona que tinha deixado no depósito da Estação de Atocha.
Agora eram doze e quarenta e cinco de um soalheiro dia de Primavera
e o tráfego fluía, colorido e ruidoso, em direcção à Plaza de La Cibeles,
junto ao Palácio dos Correios que ladeava o quartel-general da
Armada e as dependências do Museu Naval. Meia hora antes, Coy
tinha feito uma visita à direcção-geral da marinha mercante, situada
algumas ruas mais acima, para verificar se o seu recurso
administrativo ia avante. A encarregada do departamento, uma
mulher madura de sorriso amável que tinha um vaso com
sardinheiras em cima da mesa, deixou de sorrir quando, depois de
premir uma tecla do seu computador, o processo de Coy apareceu no
ecrã. Recurso indeferido, tinha dito então com uma voz impessoal.
Receberá a notificação por escrito. Depois desinteressou-se dele,
voltando aos seus assuntos. Talvez, daquele escritório, a trezentas
milhas náuticas da costa mais próxima, a mulher alimentasse um
conceito romântico do mar e não gostasse dos marinheiros que
tocavam no fundo com os seus barcos.
Ou talvez fosse apenas o contrário: uma funcionária objectiva,
desapaixonada, para quem um encalhe no oceano Índico pouco se
diferenciasse de um acidente na estrada; e um marinheiro suspenso
do emprego e na lista negra dos armadores não lhe parecesse
diferente de qualquer indivíduo privado da licença de condução por
um juiz rigoroso. O pior, pensava Coy enquanto descia as escadas em
direcção à rua, é que nesse caso a mulher não estava totalmente
errada. Num tempo em que os satélites marcavam rotas e posições, o
telemóvel varria das pontes capitães habilitados a tomar decisões, e
qualquer executivo podia comandar um transatlântico ou petroleiros
de 100 000 toneladas, de um escritório, a diferença entre um
marinheiro que encalhava um barco e um camionista, que saía da
estrada por perder os travões ou conduzir bêbado, era pouca.
Esperou, concentrado nos seus passos seguintes, até os
pensamentos amargos ficarem longe e à deriva. Nessa altura decidiu-
se, finalmente. Olhando para um lado e para outro, esperou que um
semáforo próximo fizesse diminuir a intensidade do tráfego e pôs-se a
andar com decisão sob os castanheiros cobertos de folhas novas,
atravessou a rua e foi até à porta do museu, onde dois infantes da
marinha, com franja vermelha nas calças, correagem e capacete
brancos, olharam com curiosidade para o seu casaco cruzado antes de
o fazerem passar sob o arco detector de metais. Sentia um formigueiro
no estômago quando subiu pela ampla escadaria, voltou à direita no
patamar e se viu, por fim, diante da montra da livraria do vestíbulo,
ao pé da enorme roda dupla do leme da corveta Nautilus. A esquerda
ficava a porta da administração e serviços e, à direita, a entrada para
as salas de exposições. Havia quadros e maquetas de barcos nas
paredes, um marinheiro de uniforme e de expressão aborrecida
sentado atrás de uma secretária, e um civil no outro lado do balcão
onde se vendiam livros, gravuras e lembranças do museu. Passou a
língua pelos lábios; de repente sentia uma sede espantosa. Depois
dirigiu-se ao civil.
— Procuro a menina Soto.
A boca seca enrouquecia a voz. Deu uma rápida vista de olhos à
porta da esquerda, receando vê-la aparecer ali, surpreendida ou
aborrecida. Que diacho fazes aqui, etc. Tinha passado a noite
acordado, com a cabeça apoiada no seu reflexo da janela, pensando no
que iria dizer. Mas agora tudo se lhe apagava da cabeça como uma
esteira na popa. De modo que, reprimindo o impulso de dar a volta e
desaparecer, se apoiou sobre um pé e depois sobre o outro, enquanto
o homem ao balcão o examinava. Era de meia-idade, com óculos
grossos e aspecto amável.
— Tânger Soto?
Anuiu com uma ligeira sensação de irrealidade. Era estranho,
pensou, ouvir aquele nome na boca de uma terceira pessoa. No fim de
contas, concluiu, ela tinha uma existência real. Havia gente que lhe
dizia olá, adeus e todas essas coisas.
— Isso mesmo — disse.
Não era estranha mas absurda, pensou de repente, aquela viagem,
e o seu saco no depósito de Atocha, e a sua presença ali para se
encontrar com uma mulher que vira apenas algumas horas numa
noite, em toda a sua vida. Uma mulher que nem sequer o esperava.
— Ela está à sua espera? Encolheu os ombros.
— Talvez.
O do balcão repetiu aquele «talvez», com ar pensativo. Observava-
o com desconfiança, e Coy lamentou não ter tido oportunidade de se
barbear de manhã. A barba, feita na noite anterior antes de sair para a
Estação de Sants, começava a escurecer-lhe o maxilar. Ergueu a mão
para o tocar, detendo o gesto a meio caminho.
— A senhora Soto saiu — respondeu o homem do balcão. Quase
aliviado, Coy anuiu. Pelo rabinho do olho viu que o marinheiro da
secretária, meio inclinado sobre uma revista, olhava para os seus
sapatos e para as suas coçadas calças de ganga. Felizmente, pensou,
tinha trocado as sapatilhas brancas por uns velhos sapatos de vela.
— Voltará hoje?
O homem deu uma rápida vista de olhos ao casaco de marinheiro,
tentando decidir se aquele pano escuro garantia alguma
respeitabilidade do seu interlocutor.
— É possível — disse, após ponderar um pouco. — Não fechamos
até à uma e meia.
Coy olhou para o seu relógio e depois apontou para a primeira
sala. Ao fundo viam-se dois grandes retratos de Alfonso XII e de
Isabel II, ao lado de uma porta que exibia expositores, modelos de
barcos e canhões.
— Então esperarei ali dentro.
— Como quiser.
— Avisa-a quando chegar?... Chamo-me Coy.
Agora sorria. A ausência dela significava um adiamento oportuno
e isso tranquilizava-o. O do balcão pareceu descontrair diante daquele
sorriso fatigado, sincero, resultado de seis horas de comboio e seis
cafés.
— Claro.
Atravessou a sala, os seus passos amortecidos pelas solas de
borracha sobre a madeira corrida do chão. O medo que lhe atazanara
os intestinos dava lugar a uma incerteza incómoda, semelhante à
sensação provocada pelo barco quando dá um solavanco e
estendemos uma mão à procura de um apoio que não se encontra
onde supostamente deveria estar. De modo que procurou
tranquilizar-se prestando atenção aos objectos que tinha à sua volta.
Passou junto de um quadro enorme, Colombo e os seus homens em
terra junto de uma cruz, bandeirolas ao fundo e o azul das Caraíbas
com os indígenas inclinando-se diante do descobridor, ignorantes do
que os esperava; e virou à direita, detendo-se diante dos expositores
com instrumentos náuticos. A colecção era estupenda e admirou a
balestilha, os quadrantes, os cronómetros Arnold e a extraordinária
colecção de astrolábios, octantes e sextantes dos séculos XVIII e XIX
pelos quais, sem dúvida, alguém estaria disposto a pagar muito mais
do que ele tinha obtido pelo seu modesto Weems & Plath.
Havia poucos visitantes no museu, mais amplo e luminoso do que
julgava recordar. Um velhote estudava minuciosamente um grande
mapa oblongo de Gibraltar, um casal de jovens com aspecto
estrangeiro olhava para os expositores da Sala dos Descobrimentos, e
um grupo de colegiais ouvia as explicações do professor no aposento
ao fundo, dedicado ao resgate do galeão San Diego. A claridade
zenital das grandes clarabóias do tecto iluminou Coy, enquanto
deambulava pelo pátio central. Se não estivesse obcecado pela
lembrança da mulher que o tinha trazido até ali, teria apreciado
deveras os modelos de navios de linha e as fragatas, completamente
equipados ou em secções de meio casco, que mostravam a sua
complexa arquitectura interior; não voltara a vê-los desde a sua última
visita ao museu, há vinte anos, quando se acedia ao recinto pela Calle
Montalbán e ele era ainda estudante de náutica. Apesar do tempo
decorrido, reconheceu acto contínuo e com prazer o seu preferido
dessa altura: um navio do século XVIII de três pontes e cento e
cinquenta canhões, com quase três metros de comprimento,
conservado num expositor gigantesco; o modelo de um barco que não
chegou a sulcar os mares porque nunca se construiu. Aqueles eram
marinheiros, disse para consigo como tantas outras vezes o fizera,
estudando a enxárcia, o velame e a mastreação do barco à escala,
admirando as longas gáveas por onde homens duros e desesperados
deviam avançar mantendo o equilíbrio sobre cabos instáveis que
corriam ao longo delas, prendendo a vela a meio de temporais e de
combates, com o vento e a metralha silvando e o mar implacável em
baixo, junto ao convés que oscilava sob os mastros. Por um momento,
Coy deixou-se transportar para o navio, abstraído no sonho de longas
perseguições ao amanhecer, a uma luz indecisa, de velas fugitivas no
horizonte. Quando não existia o radar, nem os satélites, nem a sonda
eléctrica, e os barcos eram cascas de noz dançando na boca do inferno,
e o mar, um perigo mortal. Mas também, ainda, um refúgio
inexpugnável face a todas as coisas, aos problemas, às vidas já vividas
e por viver, às mortes pendentes ou consumadas que se deixavam
para trás, em terra. «Chegámos demasiado tarde a um mundo
demasiado velho», lera uma vez nalgum livro. Chegámos demasiado
tarde, evidentemente. Chegámos a barcos e a portos e a mares que são
demasiado velhos, quando os golfinhos moribundos fogem da proa
dos barcos, Conrad escreveu vinte vezes A Linha de Sombra, Long
John Silver é uma marca de whisky e Moby Dick se transformou na
baleia boa de um filme de desenhos animados.
Junto da réplica, à escala natural, de um pedaço de mastro do
navio Santa Ana, Coy cruzou-se com um oficial da marinha: vestia um
uniforme impecável da Armada, tinha bom aspecto e ostentava nos
punhos a coca(1) no terceiro galão dourado de capitão-de-fragata. O
marinheiro olhou fixamente para Coy, que susteve o olhar até o outro
desviar os olhos e os seus passos se afastarem em direcção ao fundo
da sala.

*1. Coca: movimento helicoidal do terceiro galão dos capitães-de-fragata


da marinha mercante espanhola. (N. da T.)

Depois decorreram vinte minutos. Pelo menos uma vez em cada


minuto tentou concentrar-se nas palavras que iria pronunciar quando
ela aparecesse, se o chegasse a fazer. E nas vinte vezes acabou
bloqueado, entreaberta a boca como se deveras a tivesse pela frente,
incapaz de alinhavar o início de uma frase coerente. Estava na sala
dedicada à batalha de Trafalgar, sob um óleo que representava uma
cena de combate naval — o Santa Ana contra o Royal Sovereign — e
de improviso o formigueiro voltou a percorrer-lhe o estômago,
assestando-lhe, e essa era a palavra exacta, uma necessidade
imperiosa de fugir dali. Pica a amura, imbecil, disse para si próprio. E
com isso pareceu acordar de um sonho e quis sair espavorido escadas
abaixo, para meter a cabeça debaixo de uma torneira de água fria e
sacudi-la até desanuviar a confusão que reinava lá dentro. Maldito
seja eu, censurou-se. Maldito seja eu até à quinta geração. Senhora
Soto. Nem sequer sei se vive com um homem ou se é casada.
Deu a volta, retrocedendo indeciso. Os seus olhos detiveram-se
por acaso na inscrição de um expositor: Sabre de abordagem usado
por Dom Carlos de La Rocha no combate de Trafalgar, como
comandante do navio Antilla... Nessa altura ergueu os olhos e viu
Tânger Soto atrás de si, reflectida no vidro. Viu-a ali imóvel, calada,
sem a ter ouvido chegar, olhando-o com uma expressão entre
surpreendida e curiosa, tão irreal como da primeira vez. Tão
imprecisa como uma sombra que estivesse presa dentro do expositor,
e não fora dele.
Coy não era um homem sociável. E já dissemos que isso,
juntamente com alguns livros e uma visão precocemente lúcida dos
ângulos obscuros do ser humano, o levara desde muito cedo para o
mar. No entanto, esse ponto de vista, ou posição, não era de todo
incompatível com uma certa candura que às vezes despontava nas
suas atitudes, na sua forma de ficar quieto ou silencioso olhando para
os outros, na forma um pouco desajeitada de agir em terra firme, ou
na forma sincera, perplexa, quase tímida, do seu sorriso. Tinha
embarcado muito jovem, empurrado mais por intuições que por
certezas. Mas a vida não manobra com a precisão de um bom navio, e
as amarras foram caindo ao mar pouco a pouco, embrulhando-se às
vezes nas hélices, ou atraindo consequências. A esse respeito, houve
mulheres, evidentemente. E também houve algumas delas que
passaram para além da pele, até à carne, ao sangue e à consciência,
realizando no conjunto as operações físicas e químicas pertinentes,
bálsamos analgésicos e estragos indispensáveis. LPPC: Lei do
Pagamento Pontual do seu Custo. Por essa altura, aquela esteira já não
passava disso: pontadas indolores na memória do marinheiro sem
barco. Lembranças precisas, mas também indiferentes, mais parecidas
à melancolia dos anos longínquos — tinham decorrido oito ou nove
desde a última mulher importante para Coy — do que ao sentimento
de verdadeira perda material, ou de ausência. No fundo, aquelas
sombras só continuavam ancoradas à sua memória porque pertenciam
ao tempo em que, para ele, tudo estava no princípio. Quando, no seu
flamante casaco de tecido azul e nos ombros das suas camisas
brilhavam galões novos, quando passava muito tempo a admirá-los
da mesma forma que admirava o corpo de uma mulher nua, e a vida
era uma carta náutica nova e crepitante, com todos os avisos à
navegação actualizados, lustrosa superfície branca ainda não marcada
pelo lápis e pela borracha. Quando ele próprio, perante a visão da
linha do horizonte, sentia ainda, por vezes, o desejo vago de pessoas
ou de coisas que o esperavam aí. O resto, a dor, a traição, as censuras,
as noites intermináveis-acordado junto de costas silenciosas, eram
nesse tempo apenas rochas submersas, baixios assassinos que
espreitavam o seu momento inevitável, sem que nenhuma carta
informasse, em chamada à parte, a eventualidade da sua presença. A
verdade é que não sentia falta em concreto dessas sombras de mulher,
sentia falta de si próprio, ou melhor, do homem que era nessa altura.
Talvez aquela fosse a única razão pela qual essas mulheres ou essas
sombras, últimos portos conhecidos da sua vida, voltavam às vezes,
esfumadas no contorno da memória, em encontros fantasmagóricos ao
entardecer, quando ele dava longos passeios junto ao mar, em
Barcelona. Quando subia a ponte de madeira do Puerto Viejo,
enquanto o Sol poente avermelhava os cumes de Montjuich, a torre de
Jaime I, os molhes e as passadeiras de embarque da
Transmediterránea, e Coy procurava nos antigos molhes e cabeços de
amarração as cicatrizes deixadas sobre a pedra e sobre o ferro por
milhares de amarras e cabos de aço, por barcos afundados ou
despedaçados há décadas. Às vezes pensava naquelas mulheres, ou
na sua lembrança, quando rodeava pelo exterior o centro comercial ou
os cinemas Maremagnum, entre outros homens e mulheres solitários,
isolados, absortos no entardecer, que dormitavam nos bancos ou
sonhavam olhando para o mar, com as gaivotas a planar sobre a popa
de pesqueiros que passavam pela água vermelha sob a Torre do
Relógio; junto de uma escuna velhíssima sem velas nem enxárcia que
Coy recordava sempre no mesmo sítio, ano após ano, com as suas
madeiras gretadas, desbotadas pelo vento, o Sol, a chuva e o tempo. E
que o fazia pensar com frequência que barcos e homens deveriam
afundar e desaparecer na sua hora, no mar alto, em vez de
apodrecerem amarrados em terra.
Agora, Coy falava há cinco minutos, quase sem interrupção.
Estava sentado junto de uma janela do primeiro andar do Museu
Naval e, quando se voltava um pouco, os seus olhos abarcavam os
ramos verdes dos castanheiros estendendo-se ao longo do Paseo del
Prado, na direcção da Fonte de Neptuno. Deixava cair as palavras
como quem preenche um vazio que só é incómodo se os silêncios se
prolongam demasiado. Falava devagar e sorria levemente, quando se
calava por um instante antes de voltar a falar. A sua incerteza
esfumara-se mal entreviu o rosto no vidro. Fazia os seus comentários
num tom tranquilo, novamente senhor de si, com o objectivo de evitar
as pausas e adiar possíveis perguntas. Às vezes desviava os olhos para
o exterior e depois voltava-se novamente para a mulher. Um assunto
em Madrid, dizia. Uma diligência oficial, um amigo. Por casualidade,
o museu ficava ali. Dizia qualquer coisa, tal como fizera da primeira
vez em Barcelona, com a timidez franca que lhe era própria. E ela
ouvia e calava-se, a cabeça um pouco inclinada e as pontas
assimétricas do cabelo louro roçando-lhe o queixo. E os olhos escuros
com reflexos azulados, que pareciam novamente azul-marinho, fixos
em Coy. No leve sorriso, sincero, que desmentia a casualidade das
suas palavras.
— E é tudo — concluiu.
Isso não era nada, pois nada dissera ou fizera ainda, excepto
aproximar-se da doca com muito cuidado, as máquinas devagar a
vante, enquanto esperava que o piloto subisse a bordo. Não era nada,
e Tânger Soto sabia-o tão bem como ele.
— Não me digas...! —disse ela.
Estava apoiada na beira da mesa do seu escritório, com os braços
cruzados, continuando a olhá-lo pensativa, com a mesma fixidez
anterior; mas agora também sorria um pouco, como se quisesse
gratificar o seu esforço, ou a sua calma, ou a sua forma de encará-la
sem afastar os olhos, sem alardes presunçosos ou evasivas forçadas.
Como se apreciasse aquela forma de ficar diante dela, de pronunciar
as palavras imprescindíveis para justificar a sua presença, e depois
permanecer imóvel, com o olhar e o sorriso limpos, sem pretender
enganá-la ou enganar-se, esperando pelo veredicto.
E agora foi ela quem falou. Fê-lo sem afastar os olhos dele,
interessada em verificar o efeito das palavras, ou talvez do tom de voz
com que as ia pronunciando uma atrás da outra. Falou com
naturalidade e um vago reflexo de afecto, ou de agradecimento, a
roçar-lhe os lábios. Falou daquela noite estranha de Barcelona, do
prazer que sentia ao vê-lo de novo. E, por fim, ficaram a observar-se,
dito tudo o que era possível dizer até esse momento. E Coy soube
outra vez que tinha chegado o momento de ir embora, ou de arranjar
um assunto, um pretexto, alguma maldita coisa que lhe permitisse
prolongar a situação. Ou de ela o acompanhar à porta agradecendo-
lhe a visita, ou de lhe dizer que não fosse embora ainda. De modo que,
lentamente, se pôs de pé.
— Espero que aquele indivíduo não tenha voltado a incomodar-te.
— Quem?
Tinha demorado mais um segundo do que o necessário a
responder, e ele apercebeu-se.
— O do rabicho e dos olhos bicolores — levantou dois dedos que
levou à cara, apontando para os seus. — O dálmata.
— Ah, esse...
Não esclareceu mais nada de momento, mas Coy viu
endurecerem-se-lhe as linhas da boca.
— Esse — repetiu ela.
Tanto podia estar a pensar naquele indivíduo, como a ganhar
tempo para escapar à tangente. Coy meteu as mãos nos bolsos do
casaco e deu uma vista de olhos em redor. O escritório era pequeno e
luminoso, com uma pequena tabuleta ao pé da porta: Secção IV. T.
Soto. Investigação e aquisições. Havia uma gravura antiga com uma
paisagem marinha pendurada na parede, e uma grande prancha de
madeira num cavalete com gravuras, planos e cartas náuticas.
Também um armário envidraçado cheio de livros e arquivadores,
capas com documentos em cima da mesa de trabalho, e um
computador, cujo ecrã estava rodeado de pequenas folhas
autocolantes, escritas numa letra redonda, de colegial aplicada, que
Coy identificou facilmente — trazia o cartão dela no bolso — pelos
grandes círculos que pontuavam os «is».
— Não voltou a incomodar-me — acabou ela por concluir, como se
lhe tivesse sido necessário um esforço de memória.
— Não parecia resignar-se a perder o Urrutia.
Viu que ela semicerrava os olhos. A sua boca ainda se mantinha
dura.
— Encontrará outro.
Coy observava-lhe a linha do pescoço, que descia até à blusa
aberta de cor creme. A corrente de prata continuava a brilhar lá dentro
e ele perguntou a si próprio o que estaria pendurado na outra
extremidade. Se se trata de metal, pensou, deve estar diabolicamente
quente.
— Ainda não sei — disse — se o atlas era para o museu ou para ti.
A verdade é que aquele leilão foi...
Calou-se de súbito, porque tinha visto o Urrutia. Estava, com
outros livros de grande formato, dentro do armário envidraçado.
Reconheceu facilmente as suas capas de pele com adornos dourados.
— Era para o museu — respondeu ela. E passado um segundo
acrescentou: — Naturalmente.
Tinha seguido a direcção dos olhos de Coy e olhava também agora
para o atlas. A luz da janela traçava o contorno do seu perfil
pintalgado.
— Dedicas-te a isso?... A adquirir coisas?
Viu como se inclinava um pouco para a frente, fazendo oscilar as
pontas do cabelo. Vestia sobre a blusa um casaco de lã cinzento,
desabotoado, e sob a saia, comprida e escura, sapatos pretos de tacão
muito baixo e meias também pretas que a faziam parecer ainda mais
magra e alta do que era. Uma rapariga de boa cepa, confirmou ele,
apercebendo-se de que a via sob luz natural pela primeira vez. Mãos
fortes e voz educada. Sã, correcta. Tranquila. Pelo menos na aparência,
pensou olhando para os bordos rombos e irregulares das unhas.
— De certa forma, é esse o meu trabalho — concordou ela passado
um instante. — Ver catálogos de leilões, controlar o comércio de
antiguidades, visitar outros museus e viajar quando aparece alguma
coisa interessante... Depois, faço um relatório e os meus superiores
decidem. A fundação dispõe de um fundo bastante limitado para
investigação e novas aquisições e eu tento fazer que o invistam
convenientemente.
Coy fez uma careta. Recordava o duelo áspero no leilão de
Claymore.
— Pois o teu amigo dálmata morreu matando. O Urrutia custou-
vos os olhos da cara...
Viu que ela suspirava, o ar entre fatalista e divertido, e depois
anuía abanando a cabeça, voltando as palmas das mãos para cima
para indicar que tinha voado até o último cêntimo. Com este gesto,
Coy reparou novamente no insólito relógio masculino, de aço, que
usava no pulso direito. Não tinha mais nada, nem anéis, nem
pulseiras. Nem sequer os pequenos brincos de ouro que usara há três
dias, em Barcelona.
,— Custou-nos caríssimo. Não costumamos gastar tanto...
Sobretudo porque neste museu já temos muita cartografia do século
XVIII.
— É assim tão importante?
Ela inclinou-se novamente na beira da mesa e por um brevíssimo
instante permaneceu assim, cabisbaixa, antes de erguer o rosto com
uma expressão diferente. A luz matizou outra vez as marcas douradas
do seu rosto e Coy pensou que, se desse um passo em frente, poderia,
talvez, decifrar o aroma daquela geografia salpicada e enigmática.
— Imprimiu-o, em 1751, o geógrafo e marinheiro Ignacio Urrutia
Salcedo — explicava ela agora —, após cinco anos de trabalho. Foi a
melhor ajuda para os navegantes até ao aparecimento do Atlas
Hidrográfico de Tofirio, muito mais preciso, em 1789. Restam poucos
exemplares em bom estado, e o Museu Naval não tinha nenhum.
Abriu a porta envidraçada do armário, tirou o pesado volume e
colocou-o, aberto, em cima da mesa. Coy aproximou-se e observaram-
no em conjunto. E ele pôde confirmar o que pressentira desde o início.
Não havia rasto, decretou, de água-de-colónia ou de perfume.
Cheirava apenas a um corpo limpo e tépido.
— É um bom exemplar — disse ela. — Entre os alfarrabistas e os
antiquários abundam pessoas sem escrúpulos e, quando deparam com
um, destroem-no para vender as páginas soltas. Mas este está intacto.
Passava as grandes páginas com cuidado, e o papel estalava entre
os seus dedos, grosso, branco e bem conservado, apesar dos dois
séculos e meio decorridos desde a sua impressão. Atlas Marítimo das
Costas de Espanha, leu Coy no frontispício minuciosamente gravado
com uma paisagem marítima, um leão entre as colunas com a legenda
Plus Ultra e diversos instrumentos náuticos: Dividido em dezasseis
cartas esféricas e doze planos, desde Baiona em França até ao cabo de
Creux... Tratava-se de um conjunto de cartas de navegação e planos
de portos, tudo impresso em grande formato e encadernado para
facilitar a sua conservação e manuseamento. O volume estava aberto
na carta que abarcava o sector entre o cabo de San Vicente e Gibraltar,
traçado em pormenor, que incluía as respectivas medidas em braças e
uma minuciosa sinalização de indicações, referências e perigos. Coy
seguiu com o dedo o perfil da costa entre Ceuta e o cabo Espartel,
detendo-se no lugar marcado com o nome da mulher que tinha ao
lado. Depois subiu para norte, até à ponta de Tarifa e prosseguiu para
noroeste detendo-se novamente no baixo da Aceitera, muito mais bem
definido, com as suas cruzinhas marcando os perigos, do que a
passagem entre os ilhéus Terson e Mowett Grave nos levantamentos
modernos do Almirantado britânico. Conhecia bem as cartas do
estreito de Gibraltar. Quase tudo coincidia com bastante exactidão, e
não pôde deixar de admirar o rigor do traçado, mais que razoável
para os trabalhos hidrográficos da época, tão distantes ainda da
imagem por satélite e, mesmo, dos avanços técnicos dos finais do
século XVIII. Viu que cada carta tinha as escalas de latitude e
longitude pormenorizadas em graus e minutos, a primeira à direita e
esquerda da gravura, e a segunda graduada quatro vezes em relação a
quatro meridianos diferentes: Paris e Tenerife na parte superior, Cádis
e Cartagena na inferior. Naquele tempo, recordou, ainda não se tinha
adoptado como referência universal de longitude o meridiano de
Greenwich.
— Está muito bem conservado — admirou-se.
— Está perfeito. Ninguém navegou com este exemplar a bordo.
Coy folheou algumas páginas: Carta esférica da costa de Espanha
que compreende de Águilas e do monte Cope até a torre Herradora ou
Horadada com todos os seus baixos, pontos e enseadas... Também
conhecia de cor aquele cenário, que era o da sua infância. Uma costa
escarpada, hostil, de estreitas enseadas rochosas com escolhos entre
pequenos alcantilados. Percorreu as distâncias sobre o papel grosso:
cabo Tinoso, Escombreras, cabo de Agua... O traçado era quase tão
perfeito como na carta do estreito.
— Há um erro — disse de súbito. Olhou-o, mais interessada que
surpreendida.
— Tens a certeza?
— Claro.
— Conheces esta costa?
— Nasci aí. Até fiz mergulho, tirando ânforas e coisas do fundo.
— Também és mergulhador?
Coy deu um estalo com a língua, abanando a cabeça numa
negativa.
— Nada profissional — sorria um pouco, em jeito de desculpa. —
É os trabalhos de Verão e de férias.
— Mas tens experiência...
— Bom... — encolheu os ombros. — Quando era mais novo, talvez.
Mas há muito tempo que não me atiro à água.
Ela inclinara a cabeça, observando-o pensativa. Depois, voltou a
cravar os olhos no ponto da carta onde ele ainda tinha o dedo.
— E qual é o erro?
Disse-o. O levantamento de Urrutia situava o cabo de Paios dois
ou três minutos de meridiano mais a sul do que ficava na realidade.
Coy tinha dobrado tantas vezes aquele cabo que recordava bastante
bem a sua posição nas cartas. Os 37° 38' de latitude real — não podia
precisar nesse momento os segundos exactos — convertiam-se na
carta em 37° 36', mais ou menos. Sem dúvida, fora-se corrigindo em
traçados posteriores, mais pormenorizados e com melhores
instrumentos, até chegar à precisão actual. De qualquer forma,
acrescentou, algumas milhas náuticas de diferença não implicavam
nada importante numa carta esférica de 1751.
Ela mantinha-se em silêncio, com os olhos fixos na gravura. Coy
encolheu os ombros: — Suponho que essas imprecisões lhe dão
encanto... Tinhas um limite para licitar em Barcelona ou podias
continuar indefinidamente?
Continuava com as duas mãos apoiadas na mesa, ao lado dele,
olhando para a carta. Parecia absorta e demorou a responder à
pergunta.
— Havia um limite, evidentemente — acabou por dizer. — O
Museu Naval não é o Banco de Espanha... Felizmente, o preço estava
dentro do possível.
Coy riu-se um pouco, devagar, e ela levantou os olhos, inquisitiva.
— No leilão — disse ele — pensei que isto era para ti um assunto
pessoal... Refiro-me à tenacidade com que licitaste.
— Claro que era pessoal — agora parecia irritada. Voltava a olhar
para a carta como se alguma coisa nela lhe chamasse a atenção. — Este
é o meu trabalho — abanou ligeiramente a cabeça, para afastar algum
pensamento que não expressou em voz alta. — A aquisição do Urrutia
recomendei-a eu.
— E o que vão fazer com ele?
— Assim que o tiver completamente revisto e catalogado, farei
reproduções para uso interno. Depois, passará para a biblioteca
histórica do museu, como tudo o resto.
Soaram umas pancadinhas discretas na moldura da porta e Coy
viu o capitão-de-fragata com quem se cruzara anteriormente numa
das salas. Tânger Soto desculpou-se, foi até ao corredor e esteve
alguns instantes falando com ele em voz baixa. O recém-chegado era
maduro e bem-posto, e os botões dourados e os galões davam-lhe um
aspecto distinto. De vez em quando, voltava-se para observar Coy,
com uma curiosidade não isenta de receio. Este não apreciava esses
olhares, nem o sorriso excessivo com que condimentava a conversa.
De modo que suspirou amargamente para o seu íntimo. Como boa
parte dos marinheiros mercantes, não apreciava os da marinha de
guerra; pareciam-lhe demasiado engomados, praticavam a endogamia
casando-se com filhas de outros colegas da marinha de guerra,
atulhavam a igreja aos domingos e costumavam ter demasiados filhos.
Além disso, já não faziam abordagens nem batalhas nem nada, e
ficavam em casa com mau tempo.
— Tenho de deixar-te por alguns minutos — disse ela. — Não te
vás embora.
Caminhou pelo corredor na companhia do capitão-de-fragata, que,
antes de sair, dirigiu a Coy uma última e silenciosa olhadela. Este
permaneceu no gabinete, olhando em volta, primeiro, outra vez, a
carta de Urrutia e depois os objectos que estavam em cima da mesa, a
gravura da parede — Vista 4? do combate de Tolón — e o conteúdo
do armário. Ia sentar-se quando lhe chamou a atenção o grande
cavalete com documentos, planos e fotografias que estava junto da
mesa. Aproximou-se, sem outra intenção além de matar o tempo,
descobrindo que, por baixo de algumas gravuras colocadas na parte
superior, assomavam planos de barcos à vela: eram todos bergantins,
verificou depois de dar uma vista de olhos ao conjunto dos mastros.
Por baixo havia fotografias aéreas de lugares costeiros, reproduções
de cartas náuticas antigas e também uma moderna: a número 46A do
Instituto Hidrográfico da Marinha — do cabo da Gata ao cabo de
Paios — que correspondia, em parte, à que estava no atlas aberto em
cima da mesa. A coincidência fez Coy sorrir.
Um minuto depois ela estava de volta, desculpando-se com uma
careta resignada. O meu chefe, disse. Consultas de alto nível sobre os
turnos das férias. Tudo muito top secret.
— De modo que trabalhas para a marinha.
— Comoves... Observou-a, divertido.
— És, então, uma espécie de soldado.
— Nada disso. — O cabelo dourado movia-se de um lado para
outro ao negar com a cabeça. — O meu posto é de funcionária civil...
Depois de me licenciar em História, concorri. Estou aqui há quatro
anos.
Depois de dizer aquilo ficou pensativa, olhando pela janela.
Semicerrava novamente os olhos. Depois, muito devagar, como se
tivesse alguma coisa na cabeça de que não conseguia libertar-se
completamente, voltou à mesa, fechou o atlas e foi colocá-lo no
armário.
— O meu pai, sim. Era militar — acrescentou.
Havia uma nota de desafio, ou talvez de orgulho, nas suas
palavras. Coy concordou intimamente. Isso explicava algumas coisas:
uma certa forma de se mover, alguns gestos. Até aquela disciplina
serena, um pouco altiva, pela qual parecia reger-se às vezes.
— Da marinha de guerra?
— Militar. Reformou-se como coronel, depois de passar quase toda
a sua vida em África.
— Ainda é vivo?
— Não.
Falava sem vestígios de emoção. Era impossível saber se a
incomodava ou não falar desse assunto. Coy estudou as íris azul-
marinho e estas sustiveram o escrutínio, inexpressivas. Então, ele
sorriu.
— Por isso te chamas Tânger.
— Por isso me chamo Tânger.
Passaram sem pressas diante do Museu do Prado e do
gradeamento do Jardim Botânico antes de virarem à esquerda,
subindo a ladeira da Cláudio Moyano, deixando para trás o tráfego
ruidoso e a contaminação da praceta de Atocha. O Sol iluminava as
barracas cinzentas e as bancas de livros escalonadas rua acima.
— O que vieste fazer a Madrid?
Ele olhava para o chão à frente dos sapatos. Já tinha respondido a
essa pergunta assim que a vira no museu, antes que ela a formulasse.
Todos os lugares-comuns e pretextos fáceis estavam enunciados, de
modo que deu alguns passos sem dizer nada, e acabou por coçar o
nariz.
— Vim ver-te.
Agora também não pareceu surpreendida nem curiosa. Vestia um
casaco leve de bombazina, aberto sobre a blusa e, ao sair do gabinete,
amarrara à volta do pescoço um lenço de seda em tons outonais.
Voltando-se um pouco, Coy observou o seu perfil impassível.
— Porquê? — limitou-se ela a perguntar, num tom neutro.
— Não sei.
Percorreram mais um trecho do caminho sem quaisquer
comentários. Por fim, pararam por acaso diante de um expositor onde
se empilhavam romances policiais em segunda mão, como restos de
naufrágios numa praia. Os olhos de Coy passaram por cima dos
velhos volumes, sem prestar muita atenção: Agatha Christie, George
Harmon Coxe, Ellery Queen, Leslie Charteris. Tânger agarrou num
deles — Era Uma Senhora —, olhou-o um pouco com um ar ausente e
voltou a colocá-lo no sítio.
— Estás louco — disse.
Prosseguiram. As pessoas passeavam a meio das bancas,
procurando livros ou folheando-os. Os livreiros deixavam-nos fazê-lo,
de olhos abertos atrás dos seus expositores ou de pé à porta das
barracas. Vestiam guarda-pós, camisolas ou casacos, e tinham a pele
curtida por anos de chuva, sol e vento. A Coy pareceram-lhe rostos de
marinheiros encalhados num porto impossível, entre molhes de tinta e
papel. Alguns liam, alheios ao público, sentados entre montes de
exemplares usados. Alguns deles, os mais novos, cumprimentaram
Tânger, que respondeu chamando-os pelos nomes. Olá, Alberto.
Adeus, Boris. Um rapaz com tranças de hussardo e camisa aos
quadrados tocava flauta e ela pôs uma moeda na boina que ele tinha
aos pés, tal como Coy a vira fazer nas Ramblas, ao mimo cuja
maquilhagem a chuva borrava.
— Passo por aqui todos os dias a caminho de casa. Às vezes
compro alguma coisa... Não é curioso o que acontece com os livros
velhos?... Ao contrário dos outros, estes escolhem-te a ti. Escolhem o
seu comprador: olá, aqui estou, leva-me contigo. Dir-se-ia que estão
vivos.
Deu uns passos e parou diante de O Quarteto de Alexandria:
quatro volumes de capas deterioradas, a preço de saldo.
— Leste-o? — perguntou.
Coy fez um gesto negativo. Aquele Durrell com apelido de pilhas
alcalinas não o aquecia nem arrefecia. Era a primeira vez que reparava
em livros daquele fulano. Norte-americano, calculou. Ou inglês.
— Tem alguma coisa sobre o mar? — perguntou, mais cortês que
interessado.
— Não, que eu saiba — ela ria-se, baixinho e com suavidade. —
Embora de algum modo Alexandria não deixe de ser um porto...
Coy tinha lá estado e não recordava nada de especial: o calor dos
dias sem brisa, as gruas, os estivadores deitados à sombra dos
contentores, a água suja chapinhando entre o casco e o molhe, as
baratas que esmagava de noite ao descer a terra. Um porto como
qualquer outro, excepto quando o vento sul trazia nuvens de pó
avermelhado que se metia por toda a parte. Nada que justificasse
quatro tomos. Tânger tocava no primeiro com o indicador e ele leu o
título: Justine.
— Todas as mulheres inteligentes que conheço — disse ela —
quiseram ser Justine alguma vez.
Coy olhou para o livro com ar estúpido, ponderando se devia
comprá-lo ou não, e se o livreiro o obrigaria a adquirir os quatro. Na
realidade, os que lhe chamavam a atenção eram outros que estavam
perto: O Barco da Morte, de um tal B. Traven, e a trilogia da Bounty: O
Motim, Homens contra o Mar e A Ilha de Pitcairn num só volume.
Mas ela continuava a andar; viu-a sorrir novamente, dar mais alguns
passos e entreter-se folheando distraída outra maltratada edição em
brochura — O Bom Soldado, leu Coy; aquele Ford Madox Ford já lhe
soava, porque tinha escrito A Aventura a meias com Joseph Conrad.
Por fim, Tânger voltou-se para olhar fixamente para ele.
— Estás louco — repetiu.
Ele voltou a coçar o nariz e não disse nada.
— Não me conheces — acrescentou ela passado um momento. —
Ignoras tudo sobre mim.
Tinha novamente uma ponta de dureza na voz. Coy olhou para
um lado e para outro. Curiosamente não se sentia intimidado, nem
deslocado. Tinha ido vê-la, fazendo o que julgou que devia fazer. E
teria dado qualquer coisa para ser um homem elegante, de palavra
fácil; com alguma coisa para oferecer, nem que fosse o dinheiro certo
para comprar os quatro tomos do quarteto e para a convidar a jantar
nessa noite num restaurante caro, tratando-a por Justine ou pelo que
ela quisesse ser tratada. Mas não era o seu caso. Por isso se calava, ali
plantado com a maior simplicidade de que era capaz, limitando-se a
sorrir um pouco, daquela forma que era ao mesmo tempo sincera e
ausente, quase tímida. E isso não era muito, mas era tudo.
— Não tens qualquer direito de aparecer assim. De te pores à
minha frente com cara de bom rapaz... Já te agradeci pelo que
aconteceu em Barcelona. O que pretendes que faça agora?... Que te
leve para casa como um desses livros?
— As sereias — disse ele, de súbito. Olhou-o, surpreendida.
— O que se passa com as sereias?
Coy ergueu um pouco as mãos e deixou-as cair novamente.
— Não sei. Cantavam, diz Homero. Atraíam os marinheiros, não é
verdade?... E eles não conseguiam evitá-lo.
— Porque eram idiotas. Iam direitos aos recifes, despedaçando o
barco.
— Já lá estive — a expressão de Coy ensombrara-se. — Já estive
nos recifes e não tenho barco. Demorarei algum tempo para voltar a
tê-lo, e agora não tenho nada melhor para fazer.
Voltou-se para ele com brusquidão, abrindo a boca como se
quisesse dizer alguma coisa desagradável. As suas pupilas faiscavam,
agressivas. Aquilo durou um instante e, nesse espaço de tempo, Coy
despediu-se mentalmente da sua pele pintalgada e de todo o sonho
singular que o trouxera até ela. Talvez devesse ter comprado o dessa
Justine, disse tristemente para si próprio. Pelo menos tentaste-o,
marinheiro. Pena o sextante. Depois, dispôs-se a sorrir. Sorrirei em
qualquer caso, diga o que disser, mesmo quando me mandar para o
inferno. Ao menos, que seja essa a última coisa que recorde de mim.
Oxalá consiga sorrir como o chefe dela, aquele capitão-de-fragata de
botões reluzentes. Oxalá não me saia uma careta muito crispada.
— Valha-me Deus — disse ela então. — Nem sequer és um homem
bonito.

III - O BARCO PERDIDO

No mar podes fazer tudo bem, limitando-te às normas, e mesmo assim o


mar matar-te-á. Mas se fores bom marinheiro, saberás pelo menos onde te
encontras no momento de morrer.
Justin Scott. O Caçador de Barcos

Detestava café. Tinha bebido milhares de chávenas quentes ou


frias em vigílias intermináveis de madrugada, em manobras difíceis
ou decisivas, em horas mortas entre carga e descarga nos portos, em
momentos de tédio, tensão ou perigo; mas desagradava-lhe aquele
sabor amargo ao ponto de só conseguir suportá-lo com leite e açúcar.
Na realidade, usava-o como estimulante, da mesma forma que outros
bebem um copo ou acendem um cigarro. Mas ele já não fumava há
muito tempo. Quanto aos copos, muito raramente bebera álcool a
bordo de um barco; e em terra quase nunca ultrapassava a marca
Plimsoll, a linha de carga de umas duas genebras azuis. Só bebia de
forma deliberada e consciente quando as circunstâncias, a companhia
ou o lugar prescreviam grandes doses. Nesses casos, como boa parte
dos marinheiros que conhecia, era capaz de ingerir quantidades
extraordinárias de qualquer coisa, com as consequências que isso
acarretava em sítios onde os maridos velam pela virtude das suas
mulheres, os polícias mantêm a ordem pública, e os seguranças dos
clubes nocturnos procuram que os clientes se comportem
devidamente e não se esfumem sem abonar a conta.
Nessa noite não era o caso. Os portos, o mar e o resto da sua vida
anterior estavam muito longe da mesa atrás da qual estava sentado,
na porta da pensão da Plaza de Santa Ana, olhando para as pessoas
que passavam pelo passeio ou conversavam nas esplanadas dos bares.
Tinha pedido uma genebra com água tónica para apagar o sabor do
café da chávena pegajosa que tinha à frente — derramava-o sempre,
desajeitado, ao rodar a colherinha — e permanecia recostado na
cadeira, com as mãos nos bolsos do casaco e as pernas esticadas
debaixo da mesa. Estava cansado, mas adiava o momento de ir para a
cama. Telefono-te, dissera ela. Telefono-te esta noite, ou amanhã.
Deixa-me pensar um pouco. Tânger tinha um compromisso
incontornável naquela tarde, e um jantar à noite; de modo que teria de
esperar até vê-la novamente. Disse-o à hora de almoço, depois de a ter
acompanhado até ao cruzamento da Alfonso XII com o Paseo Infanta
Isabel e de se ter despedido ali mesmo, sem o deixar ir até à porta de
casa. Deixara-o plantado, voltando-se para ele bruscamente,
estendendo-lhe aquela mão firme que ele recordava bem, num aperto
vigoroso. Coy perguntou-lhe para onde diacho pensava telefonar-lhe,
se não tinha casa em Madrid, nem telefone, nem nada, e a sua
bagagem estava no depósito da estação. Então yiu Tânger rir pela
primeira vez desde que a conhecia. Um riso franco que lhe cercava os
olhos de rugas pequeníssimas e que, paradoxalmente, a rejuvenesciam
bastante, embelezando-a. Um riso simpático, como o de um garoto de
quem temos vontade de nos aproximar, intuindo que pode ser um
bom companheiro de brincadeiras ou de aventuras. Rira-se dessa
forma, com a mão de Coy na sua, e depois pediu desculpa pelo
despiste e olhou-o pensativa durante alguns segundos, com o último
traço daquele riso desvanecendo-se na boca. Depois disse o nome da
pensão da Plaza de Santa Ana onde vivera dois anos quando era
estudante, em frente ao Teatro Espanol. Um sítio limpo e barato.
Telefonar-te-ei, disse. Quer te veja ou não te veja nunca mais,
telefonar-te-ei hoje ou amanhã. Dou-te a minha palavra de honra.
E ali estava ele, diante da chávena de café e molhando já os lábios
na genebra com água tónica — não havia genebra azul no bar da
pensão — que a empregada de mesa acabava de colocar-lhe à frente.
Esperando. Não se mexera durante toda a tarde e jantou ali mesmo,
sanduíche de vitela demasiado passada e uma garrafa de água
mineral, depois de dizer onde o encontrariam caso lhe telefonassem.
Também era possível ela aparecer pessoalmente; e essa eventualidade
fazia-o vigiar a extremidade da praça, para a ver chegar pela Calle
Huertas, ou por qualquer uma das ruas que subiam desde o Paseo del
Prado.
No lado contrário ao dos automóveis estacionados na calçada,
entre os bancos da praça, alguns mendigos conversavam, fazendo um
círculo e passando entre si uma garrafa de vinho. Tinham estado a
pedir pelas mesas das esplanadas e agora faziam contas à noite. Eram
três homens e uma mulher, e um deles tinha um cãozinho aos pés. Da
porta do Hotel Victoria, um segurança travestido de Robocop não lhes
tirava os olhos de cima, com as mãos cruzadas atrás das costas e as
pernas abertas, pespegadas no exacto lugar de onde, há apenas um
instante, tinha enxotado a mulher que pedia esmola. Afastada pelo
Robocop, esta veio ziguezagueando entre as mesas até Coy. «Dá-me
qualquer coisa, colega», dissera numa voz apagada, olhando para a
frente sem ver. «Dá-me qualquer coisa». Ainda era jovem, pensou
agora vendo-a fazer a contabilidade com os seus companheiros e o
cachorro. Ao dar-lhe a moeda, apesar da sua pele cheia de marcas, do
cabelo louro acinzentado e dos olhos absortos no vazio, Coy tinha
divisado rastos de uma antiga beleza na boca bem delineada, na curva
do maxilar, na estatura, nas mãos magras, avermelhadas, com as
unhas grandes e sujas. A terra firme apodrece os seres humanos, disse
para consigo mais uma vez. Apodera-se deles e devora-os, tal como à
escuna abandonada do Puerto Viejo. Olhou para as suas próprias
mãos apoiadas nas pernas, descobrindo nelas os primeiros sintomas
de decomposição. A lepra inevitável que a contaminação das cidades,
o chão enganosamente sólido debaixo dos pés, o contacto com outras
pessoas, o ar desprovido de sal traziam consigo. Espero encontrar um
barco rapidamente, disse para si próprio. Espero encontrar alguma
coisa que flutue para embarcar e ir para longe enquanto estou a
tempo. Antes de contrair o vírus que corrompe os corações e lhes
desorienta a agulha e os atira desgovernados contra a costa a
sotavento e os perde.
— Chamam-no ao telefone.
Saltou da cadeira com uma celeridade que deixou a empregada
estupefacta e percorreu o corredor que conduzia ao vestíbulo da
pensão em grandes passadas. Um, dois. Contou mentalmente até
cinco antes de atender, a fim de serenar o pulso acelerado. Três,
quatro, cinco. Estou. Ela estava ao telefone e, na sua voz educada e
tranquila, desculpava-se por telefonar-lhe tão tarde. Não, respondeu
ele. Não era tarde, absolutamente. Estivera à espera do seu
telefonema. Uma sanduíche na esplanada e começava, precisamente
agora, com a sua genebra. Ela desculpou-se um pouco mais, ele
insistiu em que a hora era tão boa como qualquer outra, e depois
houve um breve silêncio do outro lado da linha telefónica. Coy apoiou
uma mão no balcão, olhando para o traçado dos seus tendões e
nervos, larga e achatada, os dedos muito abertos, curtos, fortes — uma
mão pouco aristocrática — e esperou que ela falasse novamente.
Estava deitada num sofá, pensou. Estava sentada numa cadeira.
Deitada na cama. Estava vestida ou despida, em pijama ou camisa de
dormir. Estava descalça, com um livro aberto ou com a televisão
ligada em frente. Estava de barriga para baixo ou de costas, e a sua
pele pintalgada tinha tons de ouro velho sob a luz de um candeeiro.
Lembrei-me de uma coisa, acabou ela por dizer. Lembrei-me de
uma coisa que talvez te interesse. Tenho uma proposta a fazer-te. E
pensei que talvez pudesses vir até a minha casa, agora.
Uma vez, navegando como terceiro-oficial, Coy cruzara-se com
uma mulher num barco. O encontro durou alguns minutos, o tempo
exacto que o iate — ela apanhava sol na popa — demorou a passar
junto do Otago, um navio em cuja asa da ponte Coy olhava para o
mar. Por todo o convés se ouvia o repicar monótono dos marinheiros
martelando o casco para tirar o óxido de ferro, antes de aplicar zarcão
e tinta. O navio mercante estava fundeado entre Malamocco e Punta
Sabbioni; no outro lado do Lido podia ver o brilho do sol na lagoa
veneziana e, ao fundo, a três milhas de distância, o Campanile e as
cúpulas de São Marcos, e os telhados da cidade, oscilantes na
reverberação da luz e da areia. Soprava um vento suave de poente, de
oito a dez nós, que encrespava um pouco o mar calmo fazendo oscilar
as proas dos barcos em direcção às praias salpicadas de guarda-sóis e
às casinhas multicores dos banhistas; e essa mesma brisa trouxe do
canal a escuna, amurada a estibordo com toda a branca elegância das
suas velas desfraldadas em cima, fazendo-a deslizar a cem jardas de
Coy. Este precisou dos binóculos para a ver melhor, admirando a
finura das linhas do casco de madeira envernizada, a projecção da
proa, a enxárcia e as ferragens reluzentes sob o Sol. Estava um homem
ao leme e, atrás dele, junto ao remate da popa, uma mulher sentada lia
um livro. Apontou para ela os binóculos: era loura, com o cabelo
apanhado sobre a nuca, e o seu aspecto evocava mulheres vestidas de
branco que facilmente poderíamos imaginar nesse mesmo lugar ou na
Riviera francesa, no início do século. Mulheres belas e indolentes,
protegidas sob a aba larga de um chapéu ou de uma sombrinha.
Esfinges que semicerravam os olhos contemplando o mar azul, que
liam ou silenciavam. Coy seguiu com avidez aquele rosto através do
círculo duplo das lentes zeiss, estudando o perfil, o queixo inclinado,
os olhos baixos concentrados na leitura, o cabelo esticado nas fontes.
Noutros tempos, pensou, os homens matavam ou arruinavam as suas
fortunas, vidas e reputação por mulheres como aquela. Quis ver as
feições de quem talvez a merecesse e procurou quem ia ao leme; mas
ele estava voltado para a outra borda, e só conseguiu ver um vulto
confuso, um cabelo grisalho e uma pele bronzeada. A escuna afastava-
se e, receoso de perder os últimos instantes, voltou a focar a mulher.
Um segundo mais tarde, ela ergueu o rosto e olhou directamente para
Coy através dos binóculos, através das lentes e da distância, cravando
os seus olhos nos dele. Dirigiu-lhe um olhar nem fugaz nem
demorado, nem curioso nem indiferente. Tão sereno e seguro de si
que não parecia humano. E Coy perguntou a si próprio quantas
gerações de mulheres seriam necessárias para olhar daquela forma.
Naquele momento, sentiu uma vergonha terrível e baixou os
binóculos, perturbado, por estar a observá-la tão de perto; até ter
comprovado, já à vista desarmada, que a mulher estava demasiado
longe para o ver a ele, e que aqueles olhos, que sentira penetrar até às
suas entranhas, não passavam de uma vista de olhos casual, distraída,
que ela dirigia de passagem ao barco ancorado que a escuna deixava
para trás ao entrar no Adriático. E Coy ficou ali, com os cotovelos
apoiados numa das asas da ponte vendo-a desaparecer. E quando,
finalmente, reagiu e voltou a focar os binóculos, só conseguiu ver já o
espelho da popa e o nome da embarcação pintado com letras pretas
numa ripa de teca: Riddle. Enigma.
Coy não era muito inteligente. Lia muito, mas só sobre o mar. No
entanto, tinha passado a sua infância entre avós, tias e primas, nas
margens de outro mar fechado e velho, numa dessas cidades
mediterrânicas onde, durante milhares de anos, as mulheres enlutadas
se reuniam ao entardecer para falar em voz baixa e observar os
homens em silêncio. Tudo aquilo lhe deixara um certo fatalismo
atávico, alguns raciocínios e muitas intuições. E agora, diante de
Tânger Soto, pensava na mulher da escuna. No fim de contas, disse
para consigo, talvez uma e outra sejam a mesma, e a vida dos homens
gire sempre em torno de uma só mulher: aquela onde se resumem
todas as mulheres do mundo, vértice de todos os mistérios e chave de
todas as respostas. A que maneja o silêncio como ninguém, talvez por
essa ser uma linguagem que, há séculos, fala na perfeição. A que
possui a lucidez sábia de manhãs luminosas, de ocasos vermelhos e
mares azul-cobalto, temperada de estoicismo, tristeza infinita e fadiga
para as quais — Coy tinha essa estranha certeza — uma única
existência não basta. Era necessário, além disso e sobretudo, ser fêmea,
mulher, para olhar com semelhante mistura de tédio, sabedoria e
cansaço. Para dispor daquela penetração aguda como uma lâmina de
aço, impossível de aprender ou de imitar, nascida de uma longa
memória genética de vidas incontáveis, viajando como despojo de
guerra no porão de naves côncavas e negras, com os músculos
ensanguentados entre ruínas fumegantes e cadáveres, tecendo e
desfazendo tapeçarias durante incontáveis Invernos, parindo homens
para novas Tróias e esperando o regresso de heróis exaustos; de
deuses com pés de barro a quem às vezes amava, amiúde temia e
quase sempre, mais cedo ou mais tarde, desprezava.
— Queres mais gelo? — perguntou ela.
Fez que não com a cabeça. Há mulheres, concluiu quase assustado,
que olham assim desde que nascem. Que olham como nesse momento
olhavam para ele na pequena sala de estar, cujas janelas se abriam
para o Paseo Infanta Isabel e para o edifício iluminado de tijolo e vidro
da Estação de Atocha. Vou contar-te uma história, tinha dito ela mal
abrira a porta, fechando-a atrás dele, antes de o levar para a sala de
estar escoltado por um cão labrador de pêlo curto e dourado que
agora estava ao pé, fixos em Coy os olhos escuros e tristes. Vou
contar-te uma história de naufrágios e barcos perdidos — tenho a
certeza de que gostas deste tipo de histórias — e tu não vais abrir a
boca até eu acabar de contá-la. Não vais perguntar-me se é real ou
inventada ou qualquer outra coisa, e vais ficar todo o tempo calado,
bebendo essa água tónica seca porque, lamento comunicar-te, não
tenho genebra na minha casa, nem azul nem de nenhuma outra cor.
Depois farei três perguntas, às quais responderás sim ou não. Depois
deixar-te-ei fazer uma pergunta, só uma, que será suficiente por esta
noite, antes de ires dormir para a tua pensão... E isso será tudo.
Estamos de acordo?
Coy respondera sem titubear, estamos de acordo, talvez um pouco
perplexo, mas encaixando o assunto com razoável sangue-frio. Depois
foi sentar-se onde ela lhe indicou: um sofá forrado num tecido cru
sobre um tapete com bom ar, na sala de paredes brancas ocupada por
uma cómoda, uma mesinha mourisca sob um candeeiro, um televisor
com vídeo, duas cadeiras, uma fotografia numa moldura, uma mesa
com um computador ao pé de um armário cheio de livros e de papéis,
e uma mini-aparelhagem de som em cujos altifalantes Pavarotti — se
calhar não era Pavarotti — cantava uma coisa semelhante a Caruso.
Deu uma vista de olhos às lombadas de alguns livros: Os Jesuítas e o
Motim de Esquilache. História da Arte e da Ciência de Navegar. Os
Ministros de Carlos III. Aplicações de Cartografia Histórica.
Mediterranean Spain Pilot. Exemplos de Uma Biblioteca. Navegadores
e Naufrágios. Catálogo de Cartografia Histórica de Espanha do
Museu Naval. Roteiro das Costas de Espanha no Mediterrâneo...
Também havia romances e literatura em geral: Isak Dinesen,
Lampedusa, Nabokov, Lawrence Durrell — o do Quarteto da Calle
Cláudio Moyano — um livro chamado Fogo Verde, de um tal Peter
W. Rainer, O Espelho do Mar de Joseph Conrad e outros mais. Coy
não lera absolutamente nada daquilo, excepto o de Conrad. Chamou-
lhe a atenção um livro em inglês com o mesmo nome do filme: The
Maltese Falcon. Era um exemplar usado, velho, e na capa amarela
havia um falcão preto e uma mão de mulher mostrando moedas e
jóias.
— É a primeira edição — disse Tânger, ao ver que se detinha aí —
...publicada nos Estados Unidos no Dia de São Valentim de 1930, ao
preço de dois dólares.
Coy tocou no livro. By Dashiell Hammet, dizia na capa. Au-thor
ofThe Dain Curse.
— Vi o filme.
— Claro que o viste. Toda a gente o viu — Tânger apontou para
uma prateleira. — Sam Spade teve a culpa de, pela primeira vez, eu
ter sido infiel ao capitão Haddock.
Na prateleira, um pouco afastado do resto, estava o que parecia
uma colecção completa de As Aventuras de Tintim. Junto da lombada
de pano dos volumes, estreitos e altos, viu uma pequena taça de prata
amolgada e um postal. Reconheceu o porto de Antuérpia, com a
catedral ao fundo. A taça não tinha uma asa.
— Leste-os em criança?...
Ele continuava a olhar para a taça de prata. Troféu de natação
infantil, 19... Era difícil ler a data.
— Não — disse. — Conheço-os e devo ter folheado algum, acho
eu. Um meteorito que cai no mar.
— A Estrela Misteriosa.
— Deve ser esse.
O apartamento não era luxuoso mas estava acima da média, com
poltronas de couro de boa qualidade e um quadro autêntico na
parede, um óleo antigo numa moldura ovalada com uma paisagem de
um rio e de uma barca bastante aceitável — apesar de levar, calculou,
pouca vela para aquele rio e para aquele vento — e cortinas de bom
gosto nas duas janelas que davam para a rua; e a cozinha, de onde ela
tinha trazido a água tónica, o gelo e dois copos, tinha um ar limpo e
luminoso, com um microondas à vista, um frigorífico, uma mesa e
bancos de madeira escura. Estava vestida quase como nessa manhã,
camisola fresca de algodão em vez de blusa, e não usava sapatos. Os
pés, metidos nas meias pretas, moviam-se silenciosos pela casa, como
os de uma bailarina, com o labrador pendente de cada passo. As
pessoas não aprendem a mover-se assim, pensou Coy. Isso não se
consegue aprender de uma forma consciente, nunca. Uma pessoa
desloca-se, ou não se desloca, de uma maneira ou de outra. Uma
mulher senta-se, fala, anda, inclina a cabeça ou acende um cigarro
desta ou daquela maneira.
Algumas aprendem-se, outras não. Modos e modos. Ninguém
consegue superar determinados limites mesmo que o queira, se não o
tiver lá dentro. Maneiras determinadas. Gestos. Formas.
— Sabes alguma coisa sobre naufrágios?
A pergunta mudou os seus pensamentos e fê-lo rir em surdina,
com o nariz dentro do copo.
— Nunca naufraguei completamente, se te referes a isso... Mas dá-
me algum tempo.
Ela franzia o sobrolho, alheia à ironia.
— Refiro-me a naufrágios antigos — continuava a olhá-lo nos
olhos. — De barcos afundados há muito tempo.
Coçou o nariz antes de responder que não muito. Lera alguma
coisa, claro. E fizera mergulho junto de alguns deles. Também
conhecia o tipo de histórias que costumam contar-se entre
marinheiros.
— Ouviste falar alguma vez do Dei Gloria?
Por um instante puxou pela memória. O nome era-lhe
desconhecido.
— Um veleiro de dez canhões — especificou ela. — Afundou-se
diante da costa sudeste espanhola a 4 de Fevereiro de 1767.
Coy pousou o copo na mesinha baixa, e o movimento fez o cão vir
lamber-lhe a mão.
— Vem cá, Xas — disse Tânger. — Não incomodes.
O cão nem se mexeu. Continuou ao pé de Coy, dando-lhe
lambidelas, e ela achou necessário desculpar-se. Na realidade não era
dela, disse. Era de uma amiga com quem partilhava o apartamento;
mas a amiga tivera de ir para outra cidade há dois meses, por motivos
de trabalho, e agora passava todo o tempo a viajar. Tânger herdara a
sua metade da casa e Zas.
— Não tem importância — interpôs Coy. — Eu gosto de cães. Era
verdade. Especialmente os de caça, que costumavam ser leais e
silenciosos. Durante algum tempo, na sua infância, teve um setter cor
de canela que tinha o mesmo olhar que este; e também tinha havido
um cão que subira para o Daggoo IV em Málaga, e que tinha ficado a
bordo até uma onda o ter levado por alturas do cabo Bojador.
Acariciou Zas atrás das orelhas, distraído, e o cão manteve-se perto da
sua mão, abanando alegremente a cauda. Então, Tânger contou a
história do barco perdido.
Chamava-se Dei Gloria, e era um bergantim. Tinha saído de
Havana a 1 de Janeiro de 1767, com vinte e nove tripulantes e dois
passageiros. A declaração da carga mencionava algodão, tabaco e
açúcar com destino ao porto de Valência. Embora oficialmente
pertencesse a um armador chamado Luis Fornet Palau, o Dei Gloria
era propriedade da Companhia de Jesus. Conforme se comprovou
mais tarde, aquele Fornet Palau era um testa-de-ferro dos jesuítas que
dirigiam, recorrendo à sua mediação, uma pequena frota mercante
encarregada de assegurar o tráfego de pessoas e o comércio que a
Companhia, bastante poderosa nessa altura, mantinha com as suas
missões, reduções e interesses nas colónias. O Dei Gloria era o melhor
barco dessa frota, o mais rápido e o mais bem armado para um tráfego
ameaçado pelos navios corsários ingleses e argelinos. Comandava-o
um capitão de confiança chamado Juan Bautista Elezcano, biscainho
de grande experiência, próximo dos jesuítas a ponto de o seu irmão, o
padre Salvador Elezcano, ser um dos principais assistentes do geral da
Ordem em Roma.
Após avançar os primeiros dias, dando bordos contra um vento
contrário de este, o bergantim encontrou rapidamente os do terceiro e
quarto quadrante, que o ajudaram a atravessar o Atlântico entre fortes
rajadas e aguaceiros. O vento aumentou a sudoeste dos Açores, até se
transformar num temporal que causou estragos nos mastros e fez que
as bombas de extracção de água trabalhassem sem descanso. Desta
forma, o Dei Gloria atingiu o paralelo 35 e continuou a navegar sem
mais novidades em direcção a leste. Mais tarde fez um bordo em
direcção ao golfo de Cádis, a fim de se resguardar dos levantes do
estreito e, sem tocar nenhum porto, chegou ao outro lado de Gibraltar
a 2 de Fevereiro. No dia seguinte dobrou o cabo da Gata, navegando
para norte à vista da costa.
A partir desse ponto, as coisas começaram a complicar-se. Na tarde
de 3 de Fevereiro avistara-se uma vela pela popa do bergantim.
Avançava com rapidez, aproveitando o vento sudoeste, e rapidamente
foi identificada por um chaveco que os alcançava. O capitão Elezcano
manteve a velocidade do Dei Gloria, que navegava com bujarrona e
velas recolhidas; mas estando o chaveco a pouco mais de uma milha
observou alguma coisa suspeita no seu comportamento, pelo que fez
largar mais vela. Nesse momento, o outro arriou a bandeira espanhola
e, revelando-se como corsário, prosseguiu a sua caçada sem
dissimulação. Era um barco com patente argelina, habitual nessas
paragens, que, de vez em quando, mudava de bandeira e utilizava
Gibraltar como base. Conforme se pôde determinar mais tarde, o seu
nome era Chergui, e comandava-o um antigo oficial da Armada
britânica, um tal Slyne, também conhecido por capitão Mizen, ou
Misián.
Naquelas águas, o corsário gozava de uma vantagem triplicada.
Por um lado, era mais rápido que o bergantim, ao qual as avarias
sofridas no velame e na enxárcia limitavam a velocidade. Também
navegava com o vento a favor, forçando o barlavento da sua presa
para se interpor entre ela e a costa. Mas o mais decisivo era tratar-se
de um barco de guerra de porte superior ao Dei Gloria, com uma
numerosa tripulação de combate e, pelo menos, doze canhões face aos
dez do bergantim, sendo estes de menor calibre e utilizados por
marinheiros mercantes. Ainda assim, a caçada prolongou-se durante o
resto do dia e da noite. De acordo com todos os indícios, não
conseguindo chegar ao abrigo de Águilas por o Chergui lhe cortar
essa rota, o capitão do Dei Gloria tentou chegar a Mazarrón ou
Cartagena, procurando a protecção da artilharia dos seus fortes, ou a
sorte de um barco de guerra espanhol que o socorresse. Mas a verdade
é que ao amanhecer o bergantim tinha perdido um mastaréu, tinha o
corsário em cima e não lhe restava outra opção senão arriar a bandeira
ou iniciar o combate.
O capitão Elezcano era um marinheiro duro. Em vez de se render,
o Dei Gloria abriu fogo assim que o corsário ficou na mira. O duelo de
artilharia teve lugar poucas milhas a sudoeste do cabo Tinhoso. Foi
breve e violento, quase penol a penol, e a tripulação do bergantim,
apesar de não ser gente de guerra, bateu-se resolutamente. Algum tiro
afortunado fez que a bordo do Chergui se declarasse um incêndio;
mas o Dei Gloria tinha perdido o mastro do traquete, e o corsário
tentou a abordagem. Os seus canhões causaram grandes prejuízos no
bergantim que, com muitos mortos e feridos, metia água
irremediavelmente. Nesse momento, por um dos acasos que
acontecem no mar, o incêndio fez que o Chergui, quase abalroado à
sua presa e com os homens na borda preparados para saltar,
explodisse da proa à popa. A explosão matou todos os seus
tripulantes e derrubou o outro mastro do bergantim, acelerando o seu
afundamento. E ainda com os restos fumegantes do corsário sobre o
mar, o Dei Gloria foi ao fundo como uma pedra.
— Como uma pedra — repetiu Tânger.
Tinha contado a história de uma forma precisa, sem inflexões nem
adornos. O seu tom de voz, pensou Coy, era tão neutro como o de um
noticiário da televisão. Não lhe passou despercebido o facto de ela ter
seguido sem vacilar o fio da narração, relatando os pormenores sem
uma única hesitação, nem sequer ao mencionar datas. Até a descrição
da perseguição do Dei Gloria estava tecnicamente correcta. De modo
que era evidente que, qualquer que fosse o motivo, ela tinha essa lição
bem aprendida.
— Não houve sobreviventes do navio corsário — prosseguiu. —
Quanto ao Dei Gloria, a água estava fria e a costa estava longe. Só um
ajudante de piloto, de quinze anos, conseguiu nadar até um bote
deitado à água antes do combate... Ficou à deriva, empurrado para
sudeste pelo vento e pelas correntes, e foi resgatado um dia mais
tarde, cinco ou seis milhas a sul de Cartagena.
Tânger fez uma pausa para procurar um maço de Players como o
de Barcelona. Coy reparou que tirava minuciosamente o invólucro e
colocava um cigarro na boca. Ofereceu-lhe e ele recusou com um
gesto.
— Conduzido a Cartagena — ela inclinava-se para acender o seu
cigarro com uma caixa de fósforos, protegendo a chama com as mãos
em concha — o sobrevivente contou o que acontecera às autoridades
da marinha. Mas não conseguiu averiguar-se muito mais, pois estava
afectado pelo combate e pelo naufrágio. E, no dia seguinte, quando ia
ser novamente interrogado, o rapaz desaparecera... De qualquer
forma, dera dados importantes para esclarecer o sucedido. Indicou,
também, com precisão, o local do afundamento, pois o capitão do Dei
Gloria tinha mandado situar-se ao alvorecer e o próprio rapaz foi
encarregado de anotar a posição no caderno da bitácula. Tinha mesmo
no bolso do casaco, e pôde mostrá-lo, o papel onde tinha apontado a
lápis os dados de latitude e de longitude... Disse também que as cartas
usadas a bordo, sobre as quais o piloto do barco efectuara os cálculos
desde que ficaram à vista da costa espanhola, eram as de Urrutia.
Parou novamente enquanto expelia o fumo, com uma mão
segurando o cotovelo do outro braço, erguido para suster o cigarro
entre os dedos. Fê-lo, como se pretendesse dar tempo a Coy para
imaginar o alcance daquela última referência, feita num tom de voz
tão desapaixonado como o restante. E ele coçou o nariz, sem dizer
nada. Então era isso, pensava, o que estava por trás daquela história:
um barco afundado e um mapa. Depois abanou a cabeça e esteve
prestes a desatar a rir em voz alta, não por incredulidade — aquelas
histórias podiam conter tanta verdade como quimera, sem que uma
excluísse outra —, mas por puro e simples prazer. A sensação era
quase física: um mar, um mistério. Uma mulher bonita contando-lhe
tudo isso com a maior das tranquilidades e ele ali sentado, ouvindo. O
menos importante era a história do Dei Gloria ser ou não o que ela
julgava que era. Para Coy tratava-se de outra coisa, de um sentimento
que o enternecia por dentro, como se, de repente, aquela mulher
estranha tivesse levantado uma ponta do véu, uma abertura por onde
espreitava um pouco da matéria singular com que se tecem certos
sonhos. Isso talvez tivesse muito a ver com ela e com as suas
intenções, que ele desconhecia. Mas, sobretudo, tinha muito a ver com
ele. Com o que leva certos homens a pôr um pé à frente do outro e a
percorrer os caminhos que conduzem ao mar, deambulando pelos
portos e sonhando pôr-se a salvo atrás do horizonte. Por isso, Coy
sorriu sem dizer nada e reparou que ela semicerrava os olhos um
pouco mais, como se lhe incomodasse o fumo do seu próprio cigarro.
Mas soube que o que a desconcertava era justamente aquele sorriso.
Ele não era um intelectual, nem um sedutor e carecia das palavras
adequadas. Tinha também consciência do seu físico tosco, das suas
mãos rudes e dos seus modos. Mas ter-se-ia levantado nesse
momento, indo até ela para lhe tocar no rosto, beijar os olhos, a boca,
as mãos, se não achasse que esse gesto seria pessimamente
interpretado. Para a deitar no tapete, aproximar os lábios do seu
ouvido e agradecer-lhe em voz baixa tê-lo feito sorrir como quando
era pequeno. Por ser uma mulher bonita e fasciná-lo daquela forma.
Por lhe ter recordado que existe sempre um barco afundado, uma ilha,
um refúgio, uma aventura, um lugar algures no outro lado do mar, na
linha difusa que mistura os sonhos com o horizonte.
— Esta manhã — disse ela — comentaste que conhecias bem essa
costa... É verdade?
Olhava-o inquisitiva, imóvel, com o cotovelo ainda apoiado numa
das mãos e o cigarro, levantado, entre os dedos. Gostaria de saber,
pensou ele, como cortará esse cabelo para ficar tão assimétrico e, ao
mesmo tempo, tão perfeito. Gostaria de saber como diacho o fará.
— Essa é a primeira das três perguntas?
— Sim.
Levantou um pouco os ombros.
— Claro que é verdade. Quando era miúdo nadava naquelas
enseadas e, mais tarde, percorri aquele litoral centenas de vezes, numa
navegação de cabotagem muito próxima da costa e também mar
adentro.
— Serias capaz de determinar uma posição com cartas antigas?
Prática. Essa era a palavra. Aquela era uma mulher prática: pão pão,
queijo queijo. Qualquer pessoa diria, considerou divertido, que estava
prestes a oferecer-lhe um emprego.
— Se te referes ao Urrutia, cada possível imprecisão de um minuto
na latitude ou na longitude significa uma milha de erro... — ergueu
uma mão movendo-a à sua frente, como se tirasse referências numa
carta imaginária. — No mar é sempre bastante relativo, mas posso
tentar.
Ficou a pensar sobre isso. As coisas começavam a posicionar-se,
pelo menos algumas delas. Zas voltou a dar-lhe uma lambidela,
quando estendeu a mão para o copo que estava em cima da mesinha.
— No fim de contas — bebeu um gole — é a minha profissão. Ela
tinha cruzado as pernas e balançava um dos pés descalços, cobertos
pelas meias pretas. Inclinava a cabeça um pouco para um lado,
olhando-o. E, por esta altura, Coy já sabia que esse gesto indicava
reflexão ou cálculo.
— Trabalharias para nós? — continuava a observá-lo intensamente
por entre o fumo do cigarro. — Quero dizer, pagando-te,
evidentemente.
Ele estava há quatro segundos com a boca aberta.
— Referes-te ao museu e a ti?
— É isso.
Pousou o copo, fechou a boca, contemplou os olhos leais de Zas e
depois passou os olhos pelo aposento. Lá em baixo, na rua, no outro
lado de uma bomba de gasolina Repsol e da Estação de Atocha,
distinguia-se, intermitentemente iluminado, o traçado complexo de
inúmeros carris.
— Pareces indeciso — murmurou ela, antes de sorrir
depreciativamente. — ...Pena.
Inclinou-se para deixar cair a cinza num cinzeiro, e o movimento
esticou-lhe a camisola, moldando-lhe o corpo. Deus do céu, pensou
Coy. Quase que dói olhá-la. Pergunto a mim próprio se também terá
sardas no peito.
— Não é isso — disse. — O que estou é atónito — retorceu a boca.
— Não creio que esse capitão-de-fragata, teu chefe...
— Isso é um problema meu — interrompeu ela. — Posso escolher
os meus colaboradores.
— Não creio que a marinha tenha falta disso. De gente competente
que não encalhe os seus barcos.
Observou-o demoradamente e ele disse para consigo: acabou-se,
amigo. Levanta-te e veste o casaco porque a senhora vai pôr-te na rua.
Coisa que mereces, por armares em engraçado e seres língua de
palmo. Por seres anormal e imbecil.
— Ouve, Coy — era a primeira vez que pronunciava o nome dele
olhando-o nos olhos, e ele verificou que gostava de ouvi-lo daquela
forma e naquela boca. — Eu tenho um problema. Investiguei, controlo
a teoria, possuo os dados... Mas falta-me o necessário para o resolver.
O mar é uma coisa que conheço através dos livros, do cinema, da
praia... Do meu trabalho. No entanto, existem páginas, ideias, que
podem ser tão intensas como ter vivido um temporal em alto-mar ou
encontrar-se com Nelson em Abukir ou Trafalgar... Por isso preciso de
mais alguém comigo... Alguém que me sirva de apoio prático. De
ligação à realidade.
— Isso eu posso compreender perfeitamente. Mas ser-te-ia muito
fácil pedir à marinha tudo o que fosse necessário.
— E foi o que fiz: pedir-te a ti. És civil e estás só — estudava-o,
apreciativamente, entre as espirais de fumo do cigarro. — Para mim
tens muitas vantagens. Se te contratar, controlo-te... Estou no
comando. Compreendes?
— Compreendo.
— Com militares isso seria impossível.
Coy concordou. Aquilo era óbvio. Ela não tinha galões no punho,
mas a menstruação cada vinte e oito dias. Porque de certeza que, além
disso, ela era desse tipo. Nem um dia a mais ou a menos. Bastava
olhar para ela, uma loura de ideias fixas. Para ela, dois e dois eram
sempre quatro.
— Mesmo assim — disse — imagino que terás de lhes prestar
contas.
— Claro. Mas enquanto isso disponho de autonomia, de um prazo
de três meses e de algum dinheiro para gastar... Não é muito, mas é
suficiente.
Coy tornou a dar uma vista de olhos pela janela. Lá em baixo, ao
longe, as luzes de um comboio aproximavam-se da estação como uma
longa serpente de janelinhas iluminadas. Pensava no capitão-de-
fragata e em Tânger, olhando-o como agora olhava para ele,
convencendo-o, com aquela panóplia de silêncios e de olhares que
manejava tão bem, para que intercedesse junto do almirante de
turno.,Um projecto interessante, Dom Fulano. Jovem competente.
Filha, a propósito, do coronel Beltrano. Rapariga bonita, diga-se de
passagem. Uma das nossas. Perguntou a si próprio a quantas
licenciadas em História, funcionárias de um museu por concurso,
dariam, assim, de bom grado, carta branca para procurar um barco
perdido.
— Porque não? — acabou por dizer.
Recostara-se na cadeira, acariciando novamente Zas atrás das
orelhas. Sorria, divertido com a situação. No fim de contas, três meses
junto dela significavam um lucro fabuloso em troca do sextante
Weems & Plath.
— No fim de contas — acrescentou, como se reflectisse — não
tenho nada melhor para fazer.
Tânger não parecia nem satisfeita nem decepcionada. Inclinara
apenas um pouco a cabeça, tal como noutras vezes, e as pontas dos
cabelos voltavam a roçar-lhe a cara. Os olhos dela não perdiam pitada
de Coy.
— Obrigada.
Disse-o por fim, quase em voz baixa, quando ele começava a
interrogar-se porque permanecia ela calada.
— De nada. — Coy coçava o nariz. — E agora é a minha vez...
Prometeste-me uma pergunta com a sua resposta... O que procuram
exactamente?
— Já o sabes. Procuramos o Dei Gloria.
— Isso é óbvio. A minha pergunta é porquê. Refiro-me ao que
procuras tu.
— Museu Naval à parte?
— Museu Naval à parte.
A luz do candeeiro incidia obliquamente no seu perfil pintalgado,
intensificando o efeito das espirais de fumo do cigarro quase
consumido. O jogo de luz e sombras dava ao seu cabelo tons de ouro
mate.
— Aquele barco anda a obcecar-me há muito tempo. E agora julgo
saber onde está.
Então era isso. Coy esteve prestes a dar uma palmada na testa pela
sua estupidez. Olhou para a fotografia na moldura. Tânger
adolescente, cabelo claro, sardas e uma camisola larga sobre umas
coxas morenas e nuas, encostada ao peito de um homem de meia-
idade, camisa branca, cabelo curto e pele bronzeada. Ele, com uns
cinquenta anos, calculou. Ela, talvez catorze. Via-se ao fundo uma
paisagem com praia e mar e também se tornava evidente uma grande
semelhança entre a rapariga da fotografia e aquele homem: a forma da
testa, o queixo decidido. Tânger sorria para a máquina fotográfica e a
expressão dos seus olhos na fotografia era muito mais luminosa e
clara do que aquela que lhe conhecia agora. Parecia expectante, como
se estivesse prestes a descobrir alguma coisa, um embrulho, um
presente ou uma surpresa. Coy tentou lembrar-se. LSM: Lei do Sorriso
Minguante. Talvez a vida sorria dessa forma aos catorze e depois o
tempo nos vá gelando a boca.
— Cuidado. Já não há tesouros afundados.
— Enganaste — olhava-o com severidade. — Às vezes há. Para o
convencer, falou durante algum tempo dos caçadores de tesouros.
Esses tipos existiam de facto, com os seus planos antigos e os seus
segredos, e iam e vinham procurando coisas escondidas no fundo do
mar. Podiam ser vistos no Arquivo das índias de Sevilha, inclinados
sobre velhos maços de papéis, ou aparecendo com ar casual nos
museus e nos portos, tentando sondar as pessoas sem dar pistas nem
levantar suspeitas. Ela própria tinha conhecido vários, que iam ao
número cinco do Paseo del Prado tentando dissimular as suas
intenções, à caça deste ou daquele indício, tentando ver alguma coisa
nos arquivos ou consultar antigas cartas marítimas, semeando uma
cortina de dados falsos para camuflar os seus verdadeiros objectivos.
Um deles, italiano e não muito agradável, tinha chegado ao extremo
de começar a namorar uma colega sua para ter acesso a documentos
reservados. Tratava-se de gente singular, interessante, aventureira à
sua maneira, sonhadora ou ambiciosa. Na sua maior parte pareciam
estudiosos ratos de biblioteca, gordinhos de óculos e tipos do estilo,
sem qualquer semelhança com os indivíduos musculosos, bronzeados,
cheios de tatuagens, que apareciam nos filmes e nas reportagens da
televisão. Nove em cada dez perseguiam sonhos impossíveis, e só um
em cada mil conseguia o seu objectivo.
Coy acariciou Zas novamente, contemplando os olhos fiéis do
animal. Sentia no pulso a sua respiração agradecida. Húmida.
— Esse barco não transportava nenhum tesouro, a não ser que me
tenhas mentido. Algodão, tabaco e açúcar, disseste.
— É verdade.
— E também disseste um em cada mil, não foi isso?
Ela concordava por entre o fumo. Deu outra passa no cigarro e
voltou a concordar. Olhava através de Coy como se não o visse.
— Ouve. O Dei Gloria também levava a bordo um mistério.
Aqueles dois passageiros, a intervenção do corsário... Compreendes?
Há mais qualquer coisa. Li a declaração do sobrevivente nos arquivos
da marinha... Algumas peças não encaixam. E depois, o seu
desaparecimento súbito... Esfumado no ar.
Tinha apagado o cigarro, esmagando-o no cinzeiro até à última
partícula de brasa se ter extinguido. É uma rapariga obstinada, disse
Coy para consigo. Nenhuma que não o fosse andaria de tal forma
metida nisto, nem teria aqueles olhos de jogadora de póquer, nem
apagaria os cigarros com tanto esmero como se os assassinasse. Esta
sabe perfeitamente o que quer. E eu, para bem ou para mal dos meus
pecados, estou no seu caminho.
— Há tesouros — disse ela — que não se traduzem em dinheiro.
Coy deu outra vista de olhos pela janela na direcção dos carris
intermitentemente iluminados na distância, e observou depois a
bomba de gasolina que havia em baixo, no outro lado da rua, a meio
caminho entre a entrada do prédio e a estação. Estava um homem
parado à frente da bomba de gasolina e pareceu-lhe que olhava para
cima. Mas de um quinto andar era difícil garanti-lo. No entanto,
alguma coisa na sua atitude ou na sua aparência lhe era familiar.
— Esperas alguém?
Ela estudou-o surpreendida, sem dizer nada, antes de se levantar e
de se dirigir devagar até ele. Observava-o com atenção, não à janela. E,
por fim, ao chegar, dirigiu o olhar para baixo. Ao fazê-lo, o cabelo
roçou-lhe o queixo escondendo-lhe a cara. Ergueu maquinalmente
uma mão para o afastar, e Coy ficou a olhar para o seu perfil, que o
nariz partido endurecia, iluminado pela claridade da rua. Parecia
preocupada.
— Esse homem está aí há um bocado — disse ele.
Tânger continuava a olhar para baixo, sem dizer nada. Sustinha a
respiração que acabou por expelir de chofre, em jeito de gemido ou
enfado. A sua expressão tornara-se sombria.
— Conhece-lo? — perguntou Coy.
Silêncio administrativo. Esfinge, caraça veneziana, máscara as-teca.
Muda, como os fantasmas do Chergui e do Dei Gloria.
— Quem era o tipo do rabo-de-cavalo?... Porque discutiam naquela
noite, em Barcelona?
Zas olhava alternadamente para um e para outro, abanando a
cauda com satisfação. Tânger manteve-se imóvel ainda alguns
segundos, como se não tivesse ouvido a pergunta. Agora apoiava uma
mão no vidro, deixando ali a marca dos seus dedos. Estava muito
próxima e Coy sentiu de novo o seu cheiro a carne morna e limpa.
Uma ligeira erecção começou a pressionar o bolso esquerdo das suas
calças de ganga. Imaginou-a nua, apoiada naquela mesma janela, com
a luz da rua iluminando-lhe a pele. Imaginou que lhe arrancava a
roupa e a voltava para ele, e que ela o deixava fazê-lo. Imaginou que
lhe pegava ao colo e a levava até ao sofá, ou até à cama que se
adivinhava no quarto ao lado, com Zas abanando a cauda,
afectuosamente, do umbral. Imaginou que enlouquecia e que a seguia
até ao farol do fim do mundo, entre ventos e naufrágios, e que ela
pretendia dele mais do que simplesmente usá-lo. Imaginou tudo isso e
muito mais, como uma sequência montada aos retalhos. Fê-lo rápida,
ardente, desesperadamente, até que, de repente, deu conta de que ela
estava a observá-lo e de que a expressão dos seus olhos era a mesma
que a da mulher a bordo da escuna, diante de Veneza, quando ele a
espiava através dos binóculos e julgou, apesar da distância, que lhe
penetravam no pensamento.
— Prometi-te apenas uma resposta — acabou ela por dizer — e já
houve suficientes por esta noite... O resto terá de esperar.
Queria ir para a cama com aquela mulher, pensou enquanto descia
pelas escadas saltando os degraus dois a dois. Queria fazê-lo não uma
mas muitas, infinitas vezes. Queria contar todas as sardas dela com os
dedos e com a língua e depois deitá-la de costas, abrir suavemente as
suas coxas, meter-se nela e beijá-la na boca enquanto o fazia. Beijá-la
devagar, sem pressa, sem angústias, até suavizar, tal como o mar
molda a rocha, aquelas linhas de dureza que tão distante a faziam
parecer às vezes. Queria pôr faíscas de luz e de surpresa nos seus
olhos azul-marinhos, alterar-lhe o ritmo da respiração, provocar o
latejar e o tremor da sua carne. E espreitar, atento na penumbra, como
um franco-atirador paciente, aquele momento feito de brevidade
fugaz, de intensidade egoísta, em que uma mulher fica absorta em si
própria e tem o rosto de todas as mulheres nascidas e por nascer.
Este era o estado de espírito de Coy quando chegou à rua já
passada a meia-noite, com a erecção recolhendo-se sem vontade ao
seu frio ninho de solteiro. Por isso não teve nada de estranho que, em
vez de seguir passeio abaixo pela sua direita, olhasse para um lado e
para outro do Paseo Infanta Isabel, atravessasse sob um dos semáforos
que nesse momento estavam vermelhos, e fosse direito ao homem que
continuava junto a um dos postes iluminados da bomba de gasolina.
No fundo — e na forma — Coy não era adepto de brigas. Durante as
mais estrepitosas das suas descidas a terra, naquele tempo feliz em
que ainda tinha barcos de onde descer, limitara-se a ser actor
involuntário, comparsa e camarada. Desses que estão com os amigos e
o ambiente aquece e, com um copo na mão, pensam «aqui vai haver
confusão, imersão, aú, aú, imersão», e poucos segundos depois se
vêem dando e recebendo socos sem quê nem porquê. Isso acontecia
sobretudo nos tempos do Torpedeiro Tucumán e da Tripulação
Sanders, quando Coy voltava para o barco com um olho negro, dia
sim, dia não, no frio amanhecer portuário, com a gola do casaco
levantada, andando por molhes húmidos que reflectiam luzes
amareladas junto dos telheiros, das gruas e das silhuetas escuras dos
barcos amarrados: três, quatro, dez homens sonolentos, cambaleantes,
carregando, às vezes, companheiros que arrastavam os pés e sempre
algum que ficava para trás à beira do coma etílico e que, perdida a
orientação, os seguia de longe, fazendo perigosos «S» junto aos
cabeços de amarração, à beira da água. Tripulação Sanders: Jan
Sanders era o desenhador das ilustrações humorísticas dos
calendários de pinturas navais Sigma, protagonizados por uma
tripulação de marinheiros bêbados, putanheiros e chungas que
odiavam o capitão, um pequeno tirano de grandes bigodaças, e que
passeavam as suas catástrofes, broncas e naufrágios por todos os
mares e por todos os bordéis do mundo. Fora dos calendários, a
Tripulação Sanders era composta pelo próprio Coy, o galego Neira e o
chefe das máquinas Gorostiola, aliás Torpedeiro Tucumán, quando os
três navegavam em barcos da Zoeline, entre a América Central e o
Norte da Europa, e tanto padeciam em ancoradouros e portos das
Caraíbas a ritmo tropical, como tiritavam de frio em Nova Iorque,
Hamburgo ou Roterdão, quando o vento gelado varria o convés e a
ponte, e o mercúrio desaparecia dos termómetros. Os três eram a
«tripulação» básica, de serviço, embora sempre se lhes associasse
alguém em função do porto visitado. Neira media dois metros e
pesava noventa e cinco quilos, e o Torpedeiro tinha poucos
centímetros a menos e alguns quilos a mais. Isso era útil e até
tranquilizador em lugares como o Panamá, onde, ao descer a terra, se
aconselhava a não ultrapassar a loja franca no fim do embarcadouro,
porque a partir daí havia sempre pistolas e navalhas à espera. Quando
ia entre aqueles dois energúmenos, Coy parecia um anão. Possuíam
braços como cabos de vinte polegadas, mãos como pás de hélices e
uma forte tendência para partir coisas, garrafas, bares, caras, a partir
do quinto whisky. Por onde passavam — com Coy a reboque — a erva
não voltava a crescer. Como naquele bar de Copenhaga cheio de
homens louros e de mulheres louras que no fim eram também homens
louros, onde o Torpedeiro Tucumán se tinha aborrecido porque, ao
meter a mão, deparou com umas boas quinhentas gramas do que não
esperava. E, depois de alguns minutos de refrega, ele e Neira
agarraram em Coy cada um pelo seu braço, suspendendo-o ao alto e,
com ele no ar, entre os dois empreenderam a fuga, a trote, rumo ao
porto e ao barco, com meia dúzia de polícias — inevitavelmente
louros — pisando-lhes os calcanhares. Juro-vos que pensei que era
uma gaja, repetira sem parar o Torpedeiro, uf, uf, uf, já sem fôlego a
meio do galope, enquanto do outro lado Neira escarnecia do assunto,
e até o próprio Coy dava gargalhadas, apesar do lábio recém-aberto,
com o Torpedeiro olhando-os de soslaio, bastante melindrado. Que
nem vos passe pela cabeça contá-lo a ninguém, entendido? Que nem
vos passe pela cabeça, uf, uf. Cabrões.
O caso é que agora o tipo da bomba de gasolina estava imóvel,
vendo-o aproximar-se. Coy dirigiu-se para ele, com as mãos nos
bolsos do casaco e sentindo uma intensa energia interior, uma
exaltação vital que lhe dava vontade de falar alto, de cantar com força,
ou de brigar, com Tripulação Sanders ou sem ela. Estava apaixonado
como um bezerro, tinha consciência da situação, e isso, em vez de o
inquietar, estimulava-o. Do seu ponto de vista, os marinheiros de
Ulisses, que tapavam os ouvidos com cera para não ouvirem o canto
das sereias, estavam longe de saber o que perdiam. No fim de contas,
contava o velho refrão, marinheiro sem nada que fazer, procura barco
ou procura mulher. E essa justificação valia o mesmo que qualquer
outra. A aventura, ou o que diabo aquilo fosse, incluía no mesmo
pacote um barco, mesmo que estivesse afundado, e uma mulher.
Quanto às consequências dos passos, actos e conflitos a que o barco, a
mulher e o seu próprio estado de espírito o conduziam
irremediavelmente, nesse instante — segundo os seus pensamentos
traduzidos em palavras — tudo isso lhe importava a ponta de um
corno.
Desta forma, chegou à bomba de gasolina e foi directo ao fulano
que montava guarda sob o poste iluminado e, à medida que diminuía
a distância, voltou a ter a certeza familiar que sentira ao observá-lo da
janela. E quando já estava quase ao lado dele, e o outro o via
aproximar-se com um receio evidente, começou a aduchar as amarras
e veio-lhe à memória o indivíduo baixinho do leilão, o mesmo que,
mais tarde, tinha julgado ver nas arcadas da Plaza Real e que agora,
sem sombra de dúvidas, estava novamente diante dele, com um
casaco a três quartos esverdeado, como se estivesse preparado para
uma imitação burlesca de uma manhã de caça em Sussex. Isso da
imitação burlesca era acentuado pela sua pequena estatura, bem como
pelas feições que Coy recordava bem: olhos esbugalhados, expressão
melancólica. Contrastava ainda mais com a indumentária inglesa o
seu aspecto marcadamente mediterrânico: os olhos e o bigode muito
pretos, o cabelo penteado com gel e reluzente nos lados, a pele citrina,
meridional.
— Que diacho pretendes?
Colocou-se um pouco de lado, por causa das coisas, as mãos um
pouco separadas do corpo e os músculos tensos, pois já vira mais de
uma vez como indivíduos baixinhos davam um salto e se
engalfinhavam com homenzarrões grandes como armários, ou
sacavam de uma navalha e retalhavam à má fila a femoral, antes de
estes terem tempo de abrir a boca. De qualquer forma, aquele estava
longe de ter o perfil, talvez porque a roupa lhe conferia um toque
entre formal e grotesco, como um cruzamento de Danny de Vito com
Peter Lorre acabado de vestir-se na Barbour para dar uma volta pela
campina inglesa num dia chuvoso.
— Perdão?
O fulano sorria, triste. Coy reparou num ligeiro sotaque sul-
americano. Argentino talvez. Ou uruguaio.
— Um encontro pode ser casualidade — disse. — Dois,
coincidência. Três, chateia-me como o caraças.
O outro pareceu pensar na questão. Reparou que usava um laço
com o nó muito bem feito e que os seus sapatos castanhos reluziam,
impecáveis.
— Não sei do que me está a falar — acabou por dizer.
Tinha sorrido um pouco mais. Uma careta cortês e um pouco
desgostosa. Tinha cara de boa pessoa, de tipo amável, que o bigode
tornava antiquada. Os seus olhos esbugalhados sorriam também, fixos
em Coy.
— Falo — disse este — de que estou farto de te ver em toda a
parte.
— Repito-lhe que não entendo a que se refere — o tipo continuava
a olhar para ele com muito aprumo. — ...Em qualquer caso, se de
alguma forma o incomodei, creia que o lamento.
— Vais lamentar ainda mais se não me disseres o que pretendes. O
outro ergueu as sobrancelhas, como se aquelas palavras o
surpreendessem. Parecia sinceramente magoado com a ameaça. Não é
próprio, dizia o seu semblante. Não é adequado um bom rapaz como
tu dizer essas coisas.
— Negociemos, Dom Inodoro(1) — disse.
— De que merda estás a falar?
— Quero dizer, cavalheiro, que não percamos a doçura do carácter.
Pronunciava «cavatchero», com «tche» em vez de «lh». E está a
gozar-me, pensou Coy. Este filho da puta está a rir-se no meu nariz.
Hesitou um instante entre dar-lhe um murro na cara, ali mesmo, ou
empurrá-lo para um canto e revistar-lhe os bolsos, para ver quem era
o sacana. Estava quase a decidir-se quando viu que o responsável da
bomba de gasolina tinha saído da sua guarita e os observava, curioso.
A ver se meto a pata na poça, disse para consigo. A ver se armo um
escândalo, e nos travamos de razões, não havendo maneira depois de
consertar a loiça partida. Olhou para cima, para as janelas do último
andar. Estavam todas apagadas. Ela desinteressara-se ou continuava
lá, sem luz que delatasse a sua presença, observando. Coy coçou o
nariz, perplexo. Mas que situação! Nessa altura, viu que o anão
melancólico se deslocara um pouco na direcção do passeio e mandava
parar um táxi. Tal como um peão de xadrez que mudasse de casa.
Ficou durante algum tempo diante do posto de gasolina,
contemplando as janelas apagadas do quinto andar. Estão a preparar-
me uma rasteira das boas, pensava. Com direito a público e picadores.
E eu deixo-me embarcar como um ucraniano bêbado.

*1. Dom Inodoro: É uma referência a Inodoro Pereyra, uma personagem


de banda desenhada humorística, criada pelo escritor argentino Roberto
Fontanarrosa, um anti-herói gaúcho sempre acompanhado pelo seu cão
Mendieta, cuja frase recorrente é «Negociemos, don Inodoro.» (N. da T.)

Calculou que Tânger ainda estava lá em cima, observando-o às


escuras, mas não conseguiu descobrir o mínimo movimento. Ainda
permaneceu imóvel um pouco mais, voltado para cima, de certeza que
ela tinha visto tudo, enquanto reprimia o impulso de subir novamente
para lhe pedir explicações. Trás, trás. Um par de galhetas com as
costas da mão, ela contra o sofá. Posso esclarecer tudo e, além disso,
amo-te. Depois, lágrimas e uma boa queca. Perdoa-me ter-te tomado
por um imbecil, etc. Blá, blá, blá.
Pestanejou voltando a si, a meio de um suspiro que foi quase um
gemido. Sem dúvida existem regras para tudo isto, aventurou. Regras
que eu não conheço, mas ela sim. Ou talvez regras que ela própria
estabelece. E talvez incluam que o momento de seguir em frente ou de
ir embora seja este: adeus tudo bem e apague a luz ao sair, ou mais
tarde não diga que não o avisámos, marinheiro. Fosse como fosse,
alguém até estava a ser nobre com ele. A questão era avisar de quê.
Avisar sobre quem.
Estava tão confuso que se pôs a andar na direcção da praceta
próxima e depois subiu devagar pela Calle de Atocha. No primeiro
bar aberto, à mão de semear — ali também não tinham genebra azul
— ficou imóvel ao balcão, olhando para a bebida que tinha pedido,
sem tocar nela. O bar era uma velha tasca com balcão de zinco,
cadeiras de fórmica, uma televisão ligada e fotografias de Rayo
Vallecano na parede. Não estava ninguém além do empregado, um
homem magro, tatuado no dorso de uma mão, a quem a camisa cheia
de nódoas dava um aspecto imundo enquanto varria com um ar
despeitado a serradura do chão, cheio de guardanapos amachucados e
cascas de gambás. Coy tinha à frente um espelho com publicidade da
cerveja San Miguel e a sua cara reflectia-se entre a lista de petiscos e
de doses escrita por cima com letras brancas. Via os seus olhos
exactamente entre as palavras magro com tomate e polvo de
escabeche, o que também não dava propriamente para levantar o
ânimo a ninguém. Estudavam-no com desconfiança, interrogando-o
sobre os passos que pensava dar nas próximas horas.
— Quero ir para a cama com ela — disse ao empregado.
— Todos queremos isso — respondeu o outro, filosoficamente,
sem deixar de varrer.
Coy concordou e acabou por levar o copo à boca. Bebeu um pouco,
voltou a olhar-se ao espelho e fez uma careta.
— O problema — disse — é que ela não joga limpo.
— Nunca o fazem.
— Mas é lindíssima. A grande cadela.
— Todas o são.
O empregado tinha deixado a vassoura num canto e, de regresso
ao balcão, servia-se de uma cerveja. Coy viu-o beber devagar, meio
copo sem respirar, e depois pôs-se a contemplar as fotografias de
Rayo, até acabar no cartaz de uma corrida de touros efectuada em Las
Ventas, há sete anos. Desabotoou o casaco e meteu as mãos nos bolsos
das calças. Tirou algumas moedas, alinhando-as em cima do balcão e
pôs-se a brincar, tentando introduzir uma entre duas sem mover uma
nem tocar na outra.
— Estou a meter-me numa embrulhada.
Desta vez, o empregado não respondeu imediatamente. Observava
a espuma da cerveja no rebordo do seu copo.
— De qualquer forma ela vale a pena — disse passado um
instante.
— Ainda não sei — Coy encolhia os ombros. — Há um barco
afundado, como nos filmes... E parece-me que até há maus.
O outro olhou para ele pela primeira vez. Parecia levemente
interessado.
— Perigosos?
— Não faço a mais pequena ideia.
Ficaram calados durante mais um bocado. Continuou a brincar e
bebeu alguns goles enquanto o empregado terminava a sua imperial,
encostado à extremidade do balcão. Depois tirou um maço de cigarros
da parte de baixo do balcão e pôs-se a fumar sem oferecer a Coy. A
sua mão tatuada tinha quatro pontos azuis entre os nós do polegar e
do indicador: uma marca prisional típica. Era jovem, de modo que não
podiam ter sido muitos anos. Dois ou três, calculou. Quatro ou cinco.
— Parece-me — disse Coy — que vou para a frente com isto. O
empregado concordou devagar e não disse nada. Então, Coy deixou
duas moedas no balcão, guardou as restantes e saiu para a rua.
IV - LATITUDE E LONGITUDE

Perguntas-me em que latitude e longitude me encontro; não faço ideia do


que é longitude e latitude, mas são duas palavras fantásticas.
Lewis Carroll. Alice no País das Maravilhas

Zas abanava a cauda deitado no chão, com a cabeça apoiada sobre


um sapato de Coy. Havia um raio de sol que entrava obliquamente
pela janela, fazendo brilhar o pêlo dourado do labrador, e também o
compasso de pontas, as réguas paralelas e o transferidor que estavam
em cima da mesa, comprados naquela mesma manhã na Livraria
Robinson. As paralelas e o transferidor eram Blundell Harling, e o
compasso um W & HC de latão e aço inoxidável que Coy tinha
pedido, com dois lápis, uma borracha, um caderno de folhas
quadriculadas e as últimas edições actualizadas da lista de faróis e o
Roteiro nº 2 do Instituto Hidrográfico da Marinha, relativo às costas
espanholas do Mediterrâneo. Tânger Soto tinha pago com o seu cartão
de crédito, e agora tudo aquilo estava em cima da mesa da sala de
estar da casa do Paseo Infanta Isabel. O Atlas de Urrutia também
estava ali, aberto na carta número doze, e Coy passava os dedos pela
superfície ligeiramente rugosa do papel grosso, branco e intacto,
sobrevivente a duzentos e cinquenta anos de guerras, catástrofes,
incêndios e naufrágios. De monte Cope até a torre Herradora ou
Horadada. O levantamento abarcava sessenta milhas da costa,
horizontal e para este na direcção do cabo de Paios, e vertical para
norte desde aí, como dois lados de um rectângulo, incluindo o lago de
água salgada do mar Menor, separado do Mediterrâneo pela estreita
franja de areia de La Manga. Excepto o erro que já tinha observado na
primeira vez que viu a carta — Paios uns dois minutos ao sul da sua
latitude real — o traçado da costa era rigoroso para a sua época: a
ampla baía arenosa de Mazarrón a poente do cabo Tifioso, a costa de
rochas e a enseada do Portús a levante, o porto de Cartagena com a
cruzinha ameaçadora que marcava o baixio da ilha de Escombreras no
canal, e depois, novamente, as rochas até à ponta de Paios e às
sinistras ilhas Hormigas, com o único resguardo da baía de Portman,
que a carta ainda mostrava isenta do lodo das minas que iriam entupi-
la anos mais tarde. A gravura era de uma qualidade extraordinária,
com pontilhados suaves e linhas finas para marcar os diversos
acidentes geográficos. E tinha, tal como o resto das ilustrações do
atlas, uma bela carteia situada no ângulo superior esquerdo:
Apresentada ao Rei Nosso Senhor pelo Exmo. Sr. D. Xenón de
Somodevilla, marquês da Ensenada, e construída pelo Sr. Capitão de
navio, Dom Ignacio Urrutia Salcedo. Além da data — Ano de 1751 —
a carteia continha também a indicação: Os números da sonda são
braças de duas varas castelhanas. Coy pousou o dedo nessa linha e
olhou interrogativamente para Tânger.
— Uma vara castelhana — disse ela — era formada por três dos
chamados pés de Burgos. Eram oitenta e três centímetros e meio...
Metade do que vocês, marinheiros, chamam braças. Seis pés davam
uma braça espanhola.
— Um metro e sessenta e sete centímetros.
— É isso.
Coy abanou a cabeça, voltando os olhos para a carta, a fim de
poder observar os minúsculos números que marcavam baixios de
profundidade nas proximidades de ancoradouros, cabos e recifes.
Agora, as sondas eram electrónicas e em meio segundo
proporcionavam um relevo exacto do fundo do mar com as suas
profundidades; mas em meados do século XVIII, aqueles dados só
podiam ser obtidos mediante a tarefa laboriosa de sondar à mão com
o prumo, uma retenida comprida com lastro de chumbo na
extremidade. Se as sondas marcadas no Urrutia eram braças, seria
necessário transformar em metros cada uma dessas indicações de
profundidade, para as fazer coincidir com as cartas espanholas
actuais. Cada duas unidades na carta de Urrutia convertia-se assim
em três metros e meio, aproximadamente.
Havia duas chávenas de café vazias num dos lados da mesa, junto
dos lápis e da borracha. Havia também um cinzeiro limpo e um maço
dos cigarros ingleses que ela fumava às vezes. Soava música na mini-
aparelhagem do armário, uma coisa antiga, talvez francesa ou italiana,
muito agradável; uma melodia que fez Coy pensar em jardins com
sebes recortadas geometricamente, fontes de pedra e palácios no fim
de avenidas rectas. Olhou para o perfil da mulher por cima da carta
náutica. Estava de acordo com ela, pensou. Aquela música era tão
apropriada como a larga camisa caqui que trazia aberta sobre uma
camisola de algodão branca, uma camisa masculina, militar, com
grandes bolsos. A roupa informal ficava-lhe tão bem como a formal,
com as calças de ganga que faziam pequenas pregas nas virilhas e ao
pé dos joelhos, deixando à mostra os tornozelos nus — também
cobertos de sardas, tinha verificado com delicioso estupor — por cima
dos ténis.
Inclinando-se com atenção, Coy estudou as escalas de latitudes e
longitudes. Desde que os Fenícios começaram a atravessar o
Mediterrâneo, toda a ciência náutica foi orientada no sentido de
facilitar ao marinheiro a sua posição na carta; estabelecida a posição,
era possível conhecer a rota a seguir e os seus perigos. As cartas, os
portulanos e os roteiros não passavam de guias úteis, manuais para
aplicar fisicamente os cálculos astronómicos, geográficos, crono-
métricos e a sua combinação, permitindo, de uma forma directa ou
por estimativa, obter a situação nos meridianos — latitude norte ou
latitude sul relativamente ao equador — e nos paralelos — longitude
este ou longitude oeste, relativamente ao meridiano correspondente.
A latitude e a longitude ajudavam a situar-se numa carta hidrográfica,
utilizando as escalas situadas na margem desta. Escalas que nas cartas
modernas eram pormenorizadas em graus, minutos e décimas, dos
quais cada minuto equivalia a uma milha náutica convencional de
1852 metros. A posição nos paralelos era estabelecida usando a escala
que figurava na parte superior e inferior de cada carta; e a posição nos
meridianos, mediante a que estava à direita e à esquerda. Depois, com
a ajuda dos azimutes da agulha e das réguas paralelas, faziam-se
cruzar as linhas de ambas as posições, e era na sua intersecção, se os
cálculos tivessem sido feitos correctamente, que estava o barco. A
questão complicava-se com factores adicionais, como a declinação
magnética, as correntes marítimas e outros elementos que exigiam
cálculos complementares. Havia também uma grande diferença entre
navegar com as cartas planas, usadas pelos antigos, onde meridianos e
paralelos mediam o mesmo no papel, e navegar com cartas esféricas,
mais ajustadas à forma real da Terra, com a distância entre meridianos
diminuindo à medida que se aproximavam dos pólos. De Ptolomeu a
Mercator, a transição tinha sido longa e complexa, e os levantamentos
hidrográficos só começaram a aperfeiçoar-se nos finais do século
XVIII, com a aplicação do cronometro marítimo para determinar a
longitude. Quanto à latitude, essa era estabelecida desde sempre pela
observação e declinação astronómica: a balestilha, o octante, o
moderno sextante.
— Qual era a posição do Dei Gloria ao afundar-se?
— 4o 51' de longitude este... a latitude era de 37° 32' norte.
Ela tinha respondido sem titubear. Coy fez um gesto afirmativo e
inclinou-se um pouco mais para estabelecer essas coordenadas na
carta aberta em cima da mesa. Ao sentir o movimento, Zas agitou-se
um pouco, levantou a cabeça e tornou a apoiá-la sobre o seu sapato.
— Deviam ter-se situado tirando azimutes a terra — disse Coy. —
É o mais provável, se navegavam à vista da costa... Não os imagino, a
meio da perseguição, medindo alturas do Sol com o octante. O nosso
problema seria que se tivessem situado por cálculo... Isso é bastante
relativo. Tem de ser calculada a velocidade, o rumo, o abatimento e as
milhas percorridas. O erro pode ser grande. Nos tempos da vela, os
marinheiros chamavam essa posição obtida por cálculo ponto de
fantasia.
Ela olhava para ele. Séria, pensativa. Pendente de cada palavra.
— Navegaste muito à vela?
— Sim. Sobretudo quando era jovem. Durante um ano fui aluno a
bordo do Estreita del Sur, uma escuna de velacho transformada em
navio-escola. Também passei muito tempo no Carpanta, o veleiro de
um amigo... E há os livros, claro. Romance e história.
— Sempre sobre o mar?
— Sempre.
— E a terra?
— A terra prefiro tê-la a vinte milhas do costado.
Tânger concordou, como se aquelas palavras confirmassem
alguma coisa.
— O combate foi depois do amanhecer — indicou por fim. — Já
havia luz.
— Então o mais provável é terem tomado referências de terra.
Marcações. Bastar-lhes-ia cruzar duas para se situarem... Suponho que
sabes como se faz.
— Mais ou menos — sorria, pouco segura. — Mas nunca vi um
marinheiro a sério fazê-lo.
Coy agarrou no transferidor, um quadrado de plástico
transparente que tinha impresso em volta a graduação dos 360° da
circunferência numerados de dez em dez. Isso permitia calcular os
rumos com exactidão, transferindo as indicações da agulha magnética
do barco para o papel das cartas náuticas.
— É fácil: procuras um cabo ou alguma coisa que possas identificar
— pôs a borracha em cima da carta, representando uma embarcação
imaginária e levou o transferidor até à costa mais próxima. — Depois
situa-lo com a agulha de bordo, a bússola, e dá-te, por exemplo, 45°
relativamente a norte. De modo que vais até à carta e traças uma linha
oposta desde esse ponto, em direcção aos 225°. Vês?... Depois pegas
noutra referência que esteja separada da primeira por um ângulo
evidente: outro cabo, um monte ou o que quer que seja. Se te der, por
exemplo, 315°, traças a oposta na carta, na direcção 135°. Onde se
cruzarem ambas as linhas está o teu barco. Se as referências de terra
forem claras, o método é seguro. E se o completares com uma terceira
marcação, melhor ainda.
Tânger tinha contraído os lábios, pensativa. Olhava para a
borracha com a mesma atenção com que o faria se ela fosse um barco
navegando ao longo daquela costa impressa sobre o papel. Coy
agarrou num lápis e percorreu o desenho da carta.
— Aquela costa tem praias baixas e arenosas — explicou —, mas
sobretudo zonas escarpadas, com rochas altas. Abundam referências
para situar-se à vista... Calculo que o piloto do Dei Gloria pôde fazê-lo
facilmente. Talvez o tenha feito durante a noite, se havia lua e a costa
estava bem recortada... Embora isso seja mais difícil.
Naquele tempo não havia faróis como agora. Uma torre com um
facho, quando muito. Mas duvido que houvesse alguma aí. Com
certeza que não, disse olhando para a carta. Com certeza que naquela
noite de 3 para 4 de Fevereiro de 1767 não havia nenhuma luz nem
qualquer outra referência animadora, nem fanal, nem nada de nada,
excepto, talvez, a linha da costa perfilada sob a Lua, pelas bandas de
bombordo. Podia imaginar a cena: todo o velame desfraldado, o barco
navegando a um largo, com o vento silvando na enxárcia e o convés
do bergantim escorado a estibordo, o rumor da água correndo junto à
borda e os reflexos da claridade lunar no mar picado a barlavento. Um
homem de confiança na roda do leme, a guarda tensa e alerta no
convés olhando para a escuridão, atrás. Nem uma única luz a bordo, e
o capitão de pé no tombadilho, com o rosto preocupado voltado para
o alto, na direcção da pirâmide fantasmagórica de lona branca
desfraldada, atento aos rangidos e interrogando-se se a mastreação e a
enxárcia, danificadas pelo temporal no Atlântico, aguentariam.
Calado, para que nenhum dos homens que confiam nele adivinhe a
sua inquietação, mas calculando mentalmente distância, rumo,
inclinações, bordos, com a angústia de quem sabe que uma decisão
errada conduzirá o barco e os seus tripulantes ao desastre. Sem
dúvida ignora ainda a sua posição exacta, e isso aumenta a
inquietação. Coy imagina os olhares que deita à linha negra da costa
que vai percorrendo a duas ou três milhas, próxima mas inalcançável,
tão perigosa na escuridão como os canhões do inimigo; voltado depois
para trás, como fazem os tripulantes, para a noite onde, invisível, às
vezes, difusamente perfilado, outras, como uma sombra vaga, navega
sulcando o mar o chaveco corsário que os persegue. E novos olhares
na direcção da costa, e a noite pela frente e o mar à popa, e depois
outra vez para o alto, atento ao ruído vindo de cima onde parecem
oscilar as estrelas, aos estalidos da enxárcia ou ao rangido de mastros
que gela o coração dos homens agrupados junto aos óvens de
barlavento, silhuetas negras e silenciosas na escuridão. Homens que,
tal como o próprio capitão, todos menos um, no dia seguinte a essa
hora estariam mortos.
— Que possibilidades achas que temos?
Coy pestanejou, como se acabasse de regressar nesse instante do
convés do bergantim. Tânger olhava-o com atenção, esperando uma
resposta. Era evidente que ela própria já tinha avaliado tudo do
direito e do avesso, mas desejava ouvi-lo da boca dele. Ele encolheu os
ombros: — O primeiro problema é que os tripulantes do Dei Gloria se
situaram baseados nesta carta, e não em cartas modernas. E nós
teremos de situar-nos recorrendo a cartas modernas, embora usemos
esta como ponto de partida... Conviria calcular as diferenças entre o
Urrutia e as cartas actuais. Medir os graus exactos e tudo isso. Já
sabemos que o cabo de Paios está no Urrutia alguns minutos mais a
sul — indicou a carta com o lápis. — ...Como podes ver, toda a linha
da costa desde o cabo de Agua foi desenhada considerando-a quase
horizontal, quando na realidade sobe um pouco obliquamente, assim,
para nordeste. Repara onde está o baixio da Hormiga no Urrutia, e
onde aparece na carta moderna.
Pegou no compasso, obteve a distância do cabo de Paios ao
paralelo mais próximo, e depois passou o compasso sobre a escala
vertical à esquerda da carta, para a medir em milhas. Ela seguia os
movimentos dele com atenção, com a mão imóvel sobre a mesa, muito
próxima do braço de Coy. O cabelo louro e liso caía-lhe de novo sobre
o rosto, roçando-lhe o queixo.
— Vamos calcular exactamente... — Com um lápis, Coy tomava
nota das cifras numa folha do caderno. — Vês?... Os 37°35' do Urrutia
transformam-se... É isso. Em 37°37' de latitude real. Na realidade,
37°37' e uns trinta ou quarenta segundos, que, expresso em cifras para
uma carta náutica moderna, onde os segundos figuram como uma
fracção decimal acrescentada aos minutos, nos dá 37°37,5'. O que
significa duas milhas e meia de erro aqui, na ponta do cabo de Paios.
Talvez também uma milha no cabo Tinoso. Essa diferença é
fundamental tratando-se de destroços... De um barco afundado. Pode
situá-lo perto da costa, a vinte ou trinta metros, onde é fácil aceder a
ele, ou demasiado longe, com profundidades que vão aumentando e
passam a cem, duzentos ou mais metros, tornando impossível descer
ou sequer localizá-lo.
Deteve-se, olhando para ela. Observava, com o rosto ainda
inclinado, os números de sonda marcados na carta. Era óbvio que
Tânger sabia de sobra tudo aquilo. Talvez precise de alguém que lho
confirme em voz alta, pensou Coy. Talvez pretenda que lhe digam
que é possível fazê-lo. A questão continua a ser: porquê eu?
— Achas que podes descer até cinquenta metros? — perguntou
ela.
— Suponho que sim. Cheguei um pouco abaixo dos sessenta,
embora o limite de segurança sejam quarenta. Mas nessa altura tinha
menos vinte anos... O problema é que a essa profundidade podemos
ficar muito pouco tempo submersos, pelo menos com equipamentos
normais de ar comprimido... Tu não mergulhas?
— Não. Tenho horror. E no entanto...
Coy continuava ligando amarras. Marinheiro. Mergulho.
Conhecimentos de navegação à vela. Era claríssimo, disse para
consigo, que ela não o tinha ali por gostar da conversa dele. De modo
que não tenhas ilusões, rapaz. Não lhe interessa a tua cara bonita.
Supondo que a tua cara tenha sido bonita alguma vez.
— Até onde calculas poder chegar? — quis saber Tânger.
— Vais permitir que desça sozinho, sem ver o que faço?
— Confio em ti.
— É isso que me faz desconfiar. Que confies tanto em mim. Ao
dizer «confio em ti» voltara-se finalmente para ele. Maldita, pensou.
Dir-se-ia que passa as noites planeando cada gesto. Observou a
corrente de prata que desaparecia no decote da camisola branda, em
direcção às protuberâncias sugestivas, visíveis sob a camisa aberta.
Não sem esforço, reprimiu o impulso de puxá-la para fora e dar uma
vista de olhos.
— A não ser que seja utilizado equipamento especial, o que um
mergulhador consegue descer sem problemas não vai além de oitenta
metros — explicou ele. — E é muita profundidade. Além disso,
trabalhando, cansa-se e consome mais ar, complicando tudo... É
preciso usar misturas e tabelas de descompressão pormenorizadas.
— Não está a muita profundidade. Pelo menos é o que julgo.
— Já fizeste os teus cálculos?
— Na medida das minhas possibilidades.
— Pois acho-te muito segura.
Coy sorria. Só um meio sorriso, de que ela pareceu não gostar.
— Se estivesse tão segura, não precisaria de ti.
Ele deixou-se cair para trás na cadeira. O movimento fez que Zas
se sentasse, dando-lhe afectuosas lambidelas no braço.
— Nesse caso — avaliou —, talvez haja possibilidade de descer.
Embora isso das posições seja sempre relativo, mesmo com as cartas
modernas e GPS. Não é fácil encontrar um barco, ou o que costuma
restar dele. E muito menos um barco afundado há dois séculos e
meio... Depende da natureza do fundo e de muitas outras coisas. A
madeira deve ter ido para o galheiro, ou o lodo pode cobrir os
destroços. E depois há as correntes, a má visibilidade...
Tânger tinha agarrado no maço de cigarros, mas limitava-se a fazê-
lo rodar entre os dedos. Contemplava as feições de Héroe.
— Tens muita experiência como mergulhador?
— Tenho alguma. Fiz um curso no Centro de Mergulho da
Marinha e, nalguns Verões, trabalhei limpando cascos de navios, com
uma escova de arame e sem ver nada um palmo diante do nariz. Nas
férias, também ia buscar ânforas romanas com Pedro, o Piloto.
— Quem é Pedro, o Piloto?
— O patrão do Carpanta. Um amigo.
— Isso agora é proibido.
— Ter amigos?
— Ir buscar ânforas.
Tinha largado o maço e olhava para Coy. Este julgou ver uma
faísca de especial atenção nos olhos dela.
— Nessa altura também o era — admitiu. — Mas a clandestinidade
acrescentava-lhe emoção. Além disso, nenhum polícia nos revista o
saco quando regressamos de uma imersão, num porto onde somos
conhecidos. Dizemos olá, ele diz olá, sorrimos e pronto. Naquela
época, diante de Cartagena, a costa era um campo imenso de restos
arqueológicos. Eu procurava sobretudo ânforas de gargalo, que são
muito bonitas, e vasilhas... Usava uma raqueta de pingue-pongue para
remover a areia que as cobria. E cheguei a ter dúzias.
— O que fazias com tudo isso?
— Oferecia-o às minhas namoradas.
Não era verdade, pelo menos não completamente. Uma vez em
terra, passadas discretamente debaixo do nariz dos carabineiros, essas
ânforas tinham sido vendidas pelo Piloto e por Coy a turistas e
antiquários, dividindo os lucros. Quanto às namoradas, Tânger não
perguntou se tinham sido muitas ou poucas. Na realidade, daquele
tempo, Coy só se lembrava com especial afecto de uma. Chamava-se
Eva e era norte-americana, filha de um técnico da refinaria de
Escombreras. Uma rapariga sã, loura e bronzeada, de dentes brancos e
costas de praticante de windsurf, junto de quem passou um Verão,
quando já era estudante de náutica. Ria às gargalhadas por tudo e por
nada, tinha umas ancas bonitas e era passiva e terna no amor, em
enseadas escondidas entre despenhadeiros de pedra escura, com o
mar lambendo-lhes as pernas, cobertos de salitre e areia em fins de
tarde cor de fogo. Durante algum tempo, Coy reteve nos dedos e na
boca o sabor da sua carne e do seu sexo, aromas de sal, iodo, de água
secando numa pele quente sob os raios de sol. Também guardou
durante alguns anos uma fotografia: ela junto ao mar, os seios nus, o
cabelo húmido, a cabeça inclinada para trás, bebendo de um pequeno
odre de vinho que lhe deixava regueiros cor de sangue entre os seios
pequenos, insolentes, de rapariguinha. Como boa gringa, a sua
memória histórica, reduzida a apenas duas ou três centúrias, tinha-lhe
colocado algumas dificuldades para aceitar, incrédula, que o
fragmento de barro com asas oferecido por Coy — uma elegante
ânfora de gargalo, olaria do século I, procedente dos despojos do
Capitãn — estava há dois mil anos no fundo do mar em cuja beira se
amaram naquele Verão.
— Nesse caso, conheces bem aquelas águas — disse Tânger. Não
era uma pergunta, mas uma reflexão em voz alta. Parecia satisfeita e
ele fez um gesto vago sobre a carta.
— Nalguns sítios, sim. Sobretudo entre o cabo Tiñoso e o cabo de
Paios. Cheguei mesmo a visitar alguns barcos naufragados... Mas
nunca ouvi falar do Dei Gloria.
— Nem tu nem ninguém. E várias razões explicam porquê. Em
primeiro lugar, havia algum mistério a bordo, como provam os
poucos dados obtidos junto do ajudante do piloto e o seu estranho
desaparecimento. Além disso, a posição que deu às autoridades da
marinha...
— Partindo do princípio de que era autêntica...
— Suponhamos que sim, visto não termos outra coisa.
— E se não for?
Tânger arqueava as sobrancelhas, recostando-se à cadeira com um
suspiro.
— Nesse caso, teremos perdido o tempo.
De repente parecia fatigada, como se a apreciação de Coy a levasse
a considerar a eventualidade de um fracasso. Foi só um momento,
durante o qual esteve inclinada para trás olhando para a carta. Depois,
apoiou uma mão firme na mesa, espetou o queixo e disse que havia
outras razões para o barco não ser procurado. A posição dada pelo
ajudante do piloto situava-o numa zona de difícil acesso em 1767.
Depois, a técnica facilitou esse tipo de imersões, mas o Dei Gloria já
estava sepultado entre papéis e pó, e mais ninguém se tornou a
lembrar dele.
— Até tu apareceres — insinuou Coy.
— É isso. Podia ter sido outro qualquer, mas fui eu. Encontrei o
documento e pus-me a trabalhar. Que outra coisa podia fazer?... —
roçou Héroe com as pontas dos dedos, quase afectuosamente, no seu
maço de cigarros. — Parecia-se com aquilo que sonhamos quando
somos crianças. O mar, o tesouro...
— Disseste que não há tesouros pelo meio...
— E é verdade, não há. Pelo menos em lingotes de prata, dobrões
ou moedas de oito reais em prata. Mas o encanto persiste... Vou
mostrar-te uma coisa.
Parecia diferente, mais jovem, quando se levantou e foi até à
estante dos livros, talvez por se mover com uma decisão cheia de
vigor que fazia ondular a fralda da camisa militar que usava aberta,
ou por os seus olhos estarem mais azul-marinhos do que nunca e
parecerem sorrir, quando regressou à mesa com dois álbuns do Tintim
nas mãos: O Segredo do Unicórnio e O Tesouro de Rackam, o Terrível.
— Há dias disseste-me que não eras grande conhecedor do Tintim,
não é verdade?
Coy afirmou com a cabeça perante tão estranha pergunta. E
repetiu que nem por isso, muito superficialmente. O seu interesse
tinha sido A Ilha do Tesouro, Jerry na Ilha e outros livros sobre o mar,
de Stevenson, Verne, Defoe, Marryat e London, antes de passar de
armas e bagagens para Moby Dick. Conrad veio depois, naturalmente,
com Linha de Sombra e com o tempo.
— É verdade que só lês livros sobre o mar?
— Sim.
— A sério?
— A sério. Esses, li-os todos. Ou quase todos.
— Qual é o teu favorito?
— Não tenho um favorito. Não há livros separados de outros.
Todos os livros que falam do mar, desde a Odisseia ao último
romance de Patrick O'Brian, estão interligados, como uma biblioteca.
— A biblioteca de Borges...
Ela sorria e Coy encolheu os ombros com simplicidade.
— Não sei. Nunca li nada desse Borges. Mas é verdade o que digo,
que o mar se parece a uma biblioteca.
— Os livros que falam das coisas da terra firme também são
interessantes.
— Se tu o dizes...
Então ela, que abraçava os dois livros contra o peito, começou a
rir-se, e parecia uma mulher muito diferente ao fazê-lo. Riu-se
francamente, com alegria, e depois disse: mil milhões de coriscos.
Disse isto engrossando a voz tal como o faria um pirata zarolho e
coxo com um papagaio ao ombro. E enquanto o Sol, que entrava pela
janela, lhe dourava mais as pontas assimétricas do cabelo, sentou-se
novamente ao pé de Coy, abriu os Tintins e folheou-os. Aqui também
há mar, disse. Olha. Aqui ainda é possível a aventura. Podemos
embebedar-nos milhares de vezes com o capitão Haddock — o whisky
Loch Lomond, caso não saibas, não tem segredos para mim. Também
saltei de pára-quedas sobre a Ilha Misteriosa com a bandeira verde da
FEIC nos braços, atravessei inúmeras vezes a fronteira entre a Sildávia
e a Bordúria, jurei pelos bigodes de Pleksy-Gladz, naveguei no
Karaboudjan, no Ramona, no Spedol Star, no Aurora e no Sirius —
com certeza em mais barcos do que tu — procurei o tesouro de
Rackam, o Terrível, sempre para oeste, e andei na superfície lunar,
enquanto Dupond e Dupont, com o cabelo em cores berrantes, faziam
de palhaços no circo de Hiparco. E quando me sinto sozinha, Coy,
quando me sinto muito, muito, muito sozinha, então acendo um
cigarro desses do teu amigo Héroe, faço amor com Sam Spade e sonho
com falcões malteses convocando para a minha beira, entre o fumo,
velhos amigos: Adballah, Alcázar, Serafim Lampião, Chester, Zorrino,
Pst, Oliveira de Figueira, enquanto na mini-aparelhagem se ouve a
ária das jóias de Fausto, numa antiga gravação de Bianca Casta-fiore...
Tinha colocado, enquanto falava, os dois álbuns sobre a mesa.
Eram edições antigas, um deles com a lombada azul, e outro com a
lombada verde. A capa do primeiro mostrava Tintim, Milu e o capitão
Haddock com um chapéu emplumado e um galeão navegando de
velas ao vento. No segundo, Tintim e Milu percorriam o fundo do mar
a bordo de um submergível em forma de tubarão.
— É o submarino do professor Girassol — disse Tânger. — ...Em
criança, poupava para comprar estes livros à base de aniversários,
santos(1) e presentes natalícios, como o teria feito o próprio Scrooge...
Sabes quem era Ebenezer Scrooge?
— Um marinheiro?
— Não. Um tacanho. O chefe do bondoso Bob Cratchit.
— Não faço ideia.
— É igual — prosseguiu ela. — Eu reunia moeda a moeda para ir
depois à livraria e sair com um destes livros na mão, sustendo a
respiração, gozando o tacto das suas capas duras de cartão, as cores
esplêndidas das capas... E mais tarde, a sós, abria as suas páginas e
sentia o odor a papel, a tinta fresca bem impressa, antes de mergulhar
na sua leitura. Assim, um por um, reuni os vinte e três... Sobre isso
passou muitíssimo tempo mas, mesmo agora, ao abrir um Tintim,
consigo sentir aquele aroma que, a partir dessa altura, passei a
associar à aventura e à vida. Com o cinema de John Ford e de John
Huston, com Las aventuras de Guillermo(2) e com mais alguns livros,
estes álbuns formataram para sempre a disquete da minha infância.
Tinha aberto O Tesouro de Rackam, o Terrível na página 40. Numa
grande ilustração central, Tintim, vestido de mergulhador,
aproximava-se, caminhando pelo fundo do mar, dos despojos
impressionantes do Unicórnio afundado.

*1. Em Espanha as pessoas comemoram o dia do seu santo, recebendo


presentes. (N. daT.) 2. Las aventuras de Guillermo: colecção de livros de
aventuras da escritora Richmal Crompton. (N. da T.)

— Olha bem para ela — disse solenemente. — Esta vinheta marcou


a minha vida.
Tinha apoiado a ponta dos dedos na página com extrema
delicadeza, como se receasse alterar as cores. Coy, que não olhava
para o álbum, mas para ela, verificou que continuava a sorrir, ausente,
com aquela expressão que a rejuvenescia e que era igual à da rapariga
abraçada pelo pai na fotografia da moldura. Uma expressão feliz,
pensou. Dessas que ainda têm o conta-quilómetros a zero. Atrás
estava a taça de prata amolgada e sem uma asa. Campeonato infantil
de natação. Primeiro prémio.
— Imagino — acrescentou ela passado um instante, com os olhos
ainda fixos no livro — que também sonhaste alguma vez.
— Claro.
Podia compreender. Não era o álbum, nem a taça de prata, nem a
fotografia, nem nada que tivesse a ver com o que ela tinha na
memória. Mas havia um ponto de contacto, um território onde era
fácil reconhecê-la. Talvez Tânger não fosse tão diferente, ao fim e ao
cabo. Talvez, pensou, de alguma forma ela também seja um dos
nossos. Embora, por definição, cada um dos nossos navegue, cace,
combata e se afunde sozinho. Barcos que passam na noite. Algumas
luzes na distância, à vista durante um bocado, frequentemente com
um rumo oposto. Às vezes, um rumor longínquo, som de máquinas.
Depois, novamente o silêncio quando desaparecem, e a escuridão, e o
brilho que se extingue no vazio negro do mar.
"— Claro — repetiu.
Não disse mais nada. A sua imagem, a vinheta no álbum da sua
memória, era a de um porto mediterrânico com três mil anos de
história nas suas velhas pedras, rodeado de montanhas e de castelos
com ameias que noutros tempos tiveram canhões. Nomes como forte
de Navidad, dique de Curra, farol de San Pedro. Cheiro a água
parada, a cabos húmidos, e o vento sudeste agitando as bandeiras dos
barcos ancorados e das bandeirolas nos palangres dos pesqueiros.
Homens imóveis, reformados ociosos em frente ao mar, sentados nos
velhos cabeços de ferro. Redes ao sol, costados ferrugentos de navios
mercantes atracados aos molhes. E aquele cheiro a sal, a breu e a mar
velho, denso, de portos que já viram ir e vir muitos barcos e muitas
vidas. Na memória de Coy havia um miúdo movendo-se entre tudo
aquilo, um miúdo moreno e magro, com a mochila às costas cheia de
livros da escola, que fugia das aulas para olhar o mar, para passear ao
pé dos barcos de onde via descerem homens louros e tatuados que
falavam línguas incompreensíveis. Para ver largar amarras que caíam
na água com uma pancada e eram recuperadas a bordo antes de o
costado de ferro se afastar do molhe e de o barco virar na direcção do
canal, entre os faróis, rumo ao mar alto, em busca desses caminhos
sem pegadas, apenas um leve sulco de espuma, por onde o miúdo
tinha a certeza de que iria também partir. Esse tinha sido o sonho, a
imagem que marcaria a sua vida para sempre: a nostalgia precoce,
prematura, do mar cuja via de acesso eram os portos velhos e sábios,
povoados de fantasmas que descansavam entre as suas gruas, à
sombra dos telheiros. Os ferros desgastados pelo roçar dos cabos. Os
homens sempre quietos, imóveis durante horas, para quem o fio, a
cana de pesca ou o cigarro eram apenas pretextos, sem que parecesse
importar-lhes outra coisa no mundo além de olhar para o mar. Os
avós que levavam os seus netos pela mão e, enquanto os miúdos
faziam perguntas ou apontavam para as gaivotas, eles, os velhos,
semicerravam os olhos para olhar os barcos atracados e a linha do
horizonte no outro lado dos faróis, como se procurassem na memória
alguma coisa esquecida: uma lembrança, uma palavra, uma
explicação de coisas passadas há demasiado tempo, ou de coisas que
talvez nunca tivessem acontecido.
— As pessoas são demasiado estúpidas — dizia Tânger. — Só
sonham com o que vêem na televisão.
Tinha devolvido os Tintins à estante. Estava de pé, com as mãos
nos bolsos das calças de ganga, olhando para ele. Agora, tudo nela
estava mais doce: a expressão dos olhos, o sorriso que tinha nos lábios.
Coy fez que sim com a cabeça, sem saber bem porquê. Talvez para a
animar e fazê-la continuar a falar, ou para mostrar que tinha
compreendido.
— O que queres encontrar no Dei Gloria, realmente? Encaminhou-
se na direcção dele, devagar, e, num momento de perplexidade, ele
julgou que ela lhe ia afagar a cara.
— Não sei. Juro-te que não sei — estava de pé ao seu lado, com
ambas as mãos apoiadas na mesa, olhando para a carta náutica. —
Mas quando li a declaração do ajudante do piloto, transcrita na
linguagem seca de um funcionário, senti... Aquele barco fugindo com
todas as velas desfraldadas, e o corsário perseguindo-o... Porque não
se refugiou em Águilas? Os roteiros da época indicam aí um castelo e
uma torre com dois canhões no cabo Cope, onde ele podia esperar
protecção.
Coy deu uma vista de olhos à carta. Águilas ficava fora dela, a
sudoeste de Cope.
— Tu sugeriste-o ontem, ao contar-me a história — disse. — Talvez
o corsário se tenha interposto entre ele e Águilas, e o Dei Gloria
tivesse de continuar navegando para este. O vento podia soprar e ser-
lhe desfavorável, ou talvez o capitão tenha tido receio do risco de uma
chegada nocturna. Há um monte de explicações para isso... De
qualquer forma, acabou afundando-se na enseada de Mazarrón.
Talvez tenha querido resguardar-se sob a torre de Azohía. Essa torre
continua lá.
Tânger abanou a cabeça. Não parecia convencida.
— Pode ser. Mas, de qualquer forma, era um bergantim mercante.
E, no entanto, ao ver-se perdido, combateu. Porque não arriou
bandeira?... O capitão era um homem teimoso, ou haveria a bordo
alguma coisa demasiado importante para entregar de mão beijada?...
Alguma coisa que valia a vida de todos os tripulantes e sobre a qual
nem sequer o rapaz sobrevivente disse uma palavra?
— Talvez o ignorasse.
- Talvez. Mas quem eram aqueles dois passageiros que a
declaração de embarque não identifica excepto pelas iniciais N.E. e
J.L.T.}
Coy coçou a nuca, admirado.
— Tens a declaração de embarque do Dei Gloria?
— O original, não. Mas uma cópia. Arranjei-a no Arquivo Geral da
Marinha de Viso del Marquês... Tenho lá uma boa amiga.
Calou-se, mas era evidente que alguma coisa não lhe saía da
cabeça. Contraía a boca e a sua expressão já não era doce. Tintim tinha
saído de cena.
— Além disso, há outra coisa.
Disse isso e ficou calada outra vez, como se a outra coisa não fosse
para ser contada. Esteve algum tempo imóvel e em silêncio.
— O barco — acabou por dizer — pertencia aos jesuítas, lembras-
te?... A um armador valenciano que era um testa-de-ferro, Fornet
Palau. Por outro lado, Valência era o porto de destino... E tudo isso
acontece no dia 4 de Fevereiro de 1767, dois meses antes de ser
publicada a real pragmática de Carlos III, ordenando «o desterro dos
jesuítas dos domínios espanhóis e a ocupação dos seus bens
eclesiásticos»... Tens alguma ideia do que significou isto?
Coy disse que não, que a história de Carlos III não era o seu forte.
Então, ela explicou-lhe. Fê-lo muito bem, em poucas palavras, citando
datas e factos fundamentais, sem se perder em pormenores
supérfluos. O motim popular de 1766 em Madrid contra o ministro
Esquilache, que fez oscilar a segurança da monarquia e que se diz ter
sido instigado pela Companhia de Jesus. A resistência da ordem
inaciana às ideias iluministas que percorriam a Europa. A inimizade
do monarca e o seu afã em livrar-se deles. A criação de um conselho
secreto, presidido pelo conde de Aranda, que preparou o decreto de
expulsão, e o golpe inesperado de 2 de Abril de 1767, com o desterro
imediato dos jesuítas, a expropriação dos seus bens e a extinção
posterior da Ordem pelo papa Clemente XIV... Esse era o contexto
histórico em que decorrera a viagem e a tragédia do Dei Gloria.
Evidentemente, nada permitia estabelecer uma relação directa entre
uma coisa e outra. Mas Tânger era historiadora, estava habituada a
avaliar factos e a relacioná-los, a formular hipóteses e a desenvolvê-
las. Poderia haver um vínculo ou não. De qualquer forma, o Dei
Gloria afundara-se. Pelo menos, e para resumir tudo, um barco
afundado era um barco afundado — stat rosa pristina nomine,
insinuou hermética. E ela sabia onde.
— Essa — concluiu — é uma justificação suficiente para procurá-
lo.
A expressão endurecia-se-lhe à medida que falava, como se, na
hora de manipular os dados, se desvanecesse o fantasma da
rapariguinha que assomara, um pouco antes, nas páginas do Tintim.
Agora, o sorriso desaparecera-lhe da boca e os olhos brilhavam,
resolutos, não evocadores. Já não era a rapariga da fotografia.
Afastava-se novamente e Coy sentiu-se irritado.
— E o que se passa com os outros?
— Que outros?
— O dálmata do rabicho grisalho. E o anão melancólico que
vigiava a tua casa ontem à noite. Não têm aspecto de historiadores,
nem nada que se pareça. Esses devem ter a expulsão dos jesuítas e
Carlos III muito mal sabidos.
Viu-a hesitar diante da grosseria. Ou talvez procurasse apenas
uma resposta adequada.
— Isso não tem nada a ver contigo — disse lentamente.
— Enganaste.
— Ouve. Se eu te pago por este trabalho...
Valha-me Deus, disse ele para consigo. Esse é um erro muito
grave, linda. Esse é um erro demasiado grave, indigno de ti. Nesta
altura do campeonato sais-me com uma dessas!
— Pagar?... De que merda estás a falar?
Viu perfeitamente como Tânger parava em seco, desconcertada, e
depois levantava uma mão pedindo calma, pronto, meti a pata na
poça, está bem. Vamos conversar. Mas ele estava furioso.
— Achas realmente que estou aqui sentado porque fazes tenções
de pagar-me...?
Disse aquilo de estar sentado, e imediatamente se sentiu ridículo
porque, efectivamente, estava. Pôs-se de pé, atirando a cadeira para
trás, com tanta brusquidão que Zas retrocedeu, inquieto. Não
percebeste, dizia ela. A sério que não. Dizia apenas que esses homens
não têm nada a ver.
— Nada a ver — repetiu.
Parecia mesmo assustada, como se de repente receasse vê-lo atirar
com a porta e ir embora, e nunca até esse momento tivesse
considerado semelhante possibilidade. Aquilo provocou em Coy uma
satisfação mórbida. No fim de contas, mesmo que fosse por interesse,
ela receava perdê-lo. Isso fê-lo divertir-se com a situação. Já era
alguma coisa.
— Tem tanto a ver que, ou me esclareces de uma vez ou terás de
procurar outro.
Era como um pesadelo que, no entanto, aumentava a sua auto-
estima. Tudo bastante amargo, movendo-se à beira da ruptura e do
fim, mas não podia voltar atrás.
— Não falas a sério — disse ela.
— Claro que falo a sério.
Ouviu-se a si próprio como se fosse um estranho a dizê-lo, um
inimigo disposto a atirar tudo pela borda fora e a afastar Tânger da
sua vida para sempre. O problema era que só ele podia ir a reboque.
Como quando o Torpedeiro Tucumán começava a partir coisas, e Coy
só podia inspirar, resignado, e agarrar no gargalo de uma garrafa,
partindo para a abordagem.
— Ouve — acrescentou. — Posso compreender que me aches um
pouco simplório... Até que me tenhas tomado por um imbecil. Em
terra não sou grande coisa, é verdade. Desajeitado como um pato. Mas
tu consideras-me um atrasado mental.
— Estás aqui...
— Sabes perfeitamente porque estou aqui. Mas a questão não é
essa e, se quiseres, podemos falar disso com tempo outro dia. Na
realidade, espero poder falar com tempo outro dia. Para já, limito-me
a exigir que me digas em que me estou a meter.
— Exigir? — olhava-o com um desprezo súbito. — Não me digas o
que devo ou o que não devo fazer... Todos os homens que conheci
pretenderam dizer-me sempre o que devia ou não devia fazer.
Riu entre dentes, sem humor, parecendo cansada, e Coy achou que
ela se ria com um fastio europeu. Uma coisa indefinida que tinha
bastante a ver com paredes velhas e caiadas, igrejas com fendas nos
frescos e mulheres vestidas de preto que olhavam para o mar entre
folhas de vinha e oliveiras. Poucas norte-americanas, pensou,
conseguiriam rir assim.
— Eu não te digo nada. Só quero saber o que pretendes de mim.
— Ofereci-te um trabalho...
— Oh, merda! Um trabalho...
Baloiçou-se nas pontas dos pés, entristecido, como se estivesse no
convés de um barco disposto a saltar para terra. Depois agarrou no
casaco e deu alguns passos na direcção da porta, com Zas colando-se-
lhe aos calcanhares num trotezinho alegre. Tinha gelo na alma.
— Um trabalho — repetiu, sarcástico.
Ela tinha ficado entre ele e a janela. Pareceu-lhe ver um clarão de
medo nos seus olhos. Era difícil ter a certeza, naquela contraluz.
— Pode ser que julguem — disse ela, e parecia pesar as palavras
cuidadosamente — que se trata de tesouros e coisas assim... Mas não é
um tesouro e, sim, um segredo. Um segredo que talvez não tenha
importância hoje, mas que a mim me fascina. Por isso me meti nisto.
— Quem são?
— Não sei.
Coy deu os últimos passos até à porta. Os seus olhos detiveram-se
um instante na pequena taça de prata amolgada.
— Foi um prazer conhecer-te.
— Espera.
Observava-o com muita atenção. Parecia, concluiu ele, um jogador
com cartas medíocres tentando calcular as do outro.
— Tu não vais embora — disse passado um momento. — É um
bluff.
Coy vestiu o casaco.
— Pode ser. Tenta prová-lo.
— Preciso de ti.
— Há mais marinheiros desempregados. E mergulhadores. Muitos
são tão tontos como eu.
— É de ti que eu preciso.
— Pois então sabes onde vivo. De modo que decide-te. Abriu a
porta devagar, com a morte no coração. Durante todo esse tempo, até
a ter fechado atrás de si, esteve à espera de que ela se lhe dirigisse, o
agarrasse por um braço, o obrigasse a olhá-la nos olhos, lhe contasse
qualquer coisa para o reter. Que agarrasse na sua cara entre as mãos e
lhe depositasse na boca um beijo longo e limpo, após o qual não lhe
importaria nada o dálmata e o anão melancólico, e estaria disposto a
mergulhar com ela e com o capitão Haddock e com o próprio diabo à
procura do Unicórnio, do Dei Gloria, ou do sonho mais impossível.
Mas ela ficou na contraluz dourada, e não fez nem disse nada. E Coy
deu por si descendo as escadas, deixando atrás o gemido de Zas que o
queria de volta. Ia com um vazio pavoroso no peito e no estômago,
com a garganta seca, com um formigueiro angustiante nas virilhas.
Com uma náusea que o fez parar no primeiro patamar, apoiado na
parede, levando à boca as mãos que lhe tremiam.
A terra, concluiu depois de dar-lhe muitas voltas, não passava de
uma ampla coligação determinada a aborrecer o marinheiro: tinha
escolhos que não apareciam nas cartas, recifes e barras de areia, e
cabos com restingas, traiçoeiras. Estava povoada, além disso, por uma
multidão de funcionários, empregados de alfândega, amarradores,
capitães de porto, polícias, juízes e mulheres de pele pintalgada.
Mergulhado em tão lúgubres pensamentos, Coy vagueou por
Madrid toda a tarde. Vagueou como os heróis feridos dos filmes e dos
livros, como Orson Welles em A Dama de Xangai, como Gary Cooper
em O Mistério do Barco Perdido, como Jim perseguido de porto em
porto pelo fantasma do Patna. A diferença consistiu em que nenhuma
Rita Hayworth nem nenhum capitão Marlowe lhe dirigiram palavra, e
andou inadvertido e silencioso entre as pessoas, com as mãos nos
bolsos do seu casaco azul, parando nos semáforos vermelhos e
atravessando nos verdes, tão anódi-no e cinzento como qualquer
outro. De repente sentia-se inseguro, deslocado, miserável. Caminhou
avidamente à procura dos molhes, do porto onde encontrar, ao
menos, no cheiro a mar e no bater da água nos cascos de ferro, o
consolo familiar. E, quando parou indeciso na Plaza de La Cibeles sem
saber que direcção tomar, demorou um bocado a aperceber-se de que
aquela cidade grande e ruidosa não tinha porto. A descoberta chegou
com a força de uma revelação desagradável e fê-lo fraquejar, quase
cambalear, a ponto de se sentar num banco, diante do gradeamento de
um jardim onde dois militares com cordões na farda, boinas
vermelhas e espingardas a tiracolo, o observavam com desconfiança.
Mais tarde, quando continuou a andar e o céu começou a ficar
avermelhado na extremidade das avenidas, para oeste, tornando-se
depois sombrio e cinzento no outro lado da cidade, recortando os
edifícios onde se acendiam as primeiras luzes, a sua desolação deu
lugar a uma irritação crescente, a uma fúria contida, feita de desdém
para com aquela imagem que o perseguia nos vidros das montras e de
ira para com aqueles que lhe passavam ao lado roçando-o,
empurrando-o ao pararem nas passadeiras, gesticulando como
imbecis, tagarelando pelos seus telemóveis, entorpecendo-lhe o passo
com sacos de grandes armazéns, o andar desajeitado, errático, os
grupos parados à conversa. Algumas vezes devolveu os empurrões,
colérico, e, num caso ou noutro, a expressão indignada de um
transeunte tornou-se confusão e surpresa ao encontrar o seu rosto
endurecido, o olhar perverso, ameaçador, dos seus olhos sombrios
como uma sentença. Nunca na sua vida, nem sequer na manhã em
que a comissão investigadora o condenou a dois anos sem barco, se
tinha parecido tanto à alma penada do Holandês Errante.
Uma hora depois estava bêbado, sem trâmites prévios de azul ou
de outra cor. Tinha entrado numa taberna perto da Plaza de Santa
Ana e, apontando com o dedo uma velha garrafa de Centenário Terry
que devia estar há meio século a dormir o sono dos justos numa
prateleira, retirou-se para um canto com ela e com um copo. As de
cognac são como levar com uma picareta na cabeça, dizia o
Torpedeiro, caindo de joelhos a vomitar os fígados, depois de ter
ingerido o suficiente para poder falar com conhecimento de causa. São
necessariamente mortais. Uma vez, em Puerto Limón, o Torpedeiro,
de tanto emborcar Duque de Alba, adormeceu, inconsciente, em cima
de uma puta pequenina que teve de pedir socorro aos gritos para lhe
tirarem de cima aqueles cem quilos que estavam quase a asfixiá-la. E,
mais tarde, ao acordar no seu camarote — foi preciso arranjar uma
furgoneta para o devolver ao barco — tinha passado três dias
largando lastro em forma de bílis, entre suores frios, pedindo aos
gritos que algum amigo acabasse com ele de uma vez. Coy não tinha
em cima de quem desmaiar naquela noite, nem barco aonde regressar,
nem amigos que o levassem de furgoneta ou sem ela — o Torpedeiro
estava nalgum lugar desconhecido e o galego Neira tinha rebentado o
fígado e o baço ao cair da espada de corda de um petroleiro, um mês
depois de conseguir lugar de piloto em Santander. Mas Coy fez honra
ao cognac, deixando-o escorregar vezes sem conta pela garganta até
tudo começar a distanciar-se um pouco, e a língua, as mãos, o coração
e as virilhas deixarem de doer-lhe, e Tânger Soto voltar a ser mais
uma entre os milhares de mulheres que todos os dias nascem, vivem e
morrem no vasto mundo. E ele pôde verificar que a mão que ia e
vinha da garrafa ao copo se movia cada vez mais em câmara lenta.
A garrafa estava a meio, precisamente um pouco abaixo da linha
de flutuação, quando Coy, que conservava um resto de prudência,
deixou de beber e olhou em volta. Tudo parecia estar num plano
ligeiramente adernado, até se dar conta de que era ele quem estava
com a cabeça caída em cima da mesa. Nada mais grotesco, pensou, do
que um fulano apanhando um pifo em público, só e como lhe apetece.
Então, levantou-se muito lentamente e saiu para a rua. Pôs-se a andar,
tentando dissimular o seu estado, seguindo discretamente com o
ombro encostado às paredes, de forma a manter a linha recta, paralela
à berma do passeio. Ao atravessar a praça, o ar fez-lhe bem. Parou,
sentado num banco sob a estátua de Cal-derón de La Barca, e daí
observou, com as palmas das mãos apoiadas nos joelhos, as pessoas
que passavam diante dos seus olhos, desfocadas. Viu os mendigos da
cerveja de litro, aqueles três homens e a mulher do outro dia que
bebiam sentados no chão, com o seu cãozinho, vigiados, da porta do
Hotel Victoria, pelo Robocop. Abanou a cabeça numa negativa
quando um magrebino lhe ofereceu uma dose de haxixe — passado
estou eu, colega — e, por fim, mais desanuviado, seguiu o seu
caminho até à pensão. Agora, o Centenário Terry tinha-se diluído o
suficiente nos pulmões, na urina ou onde quer que fosse, permitindo-
lhe ver as imagens com maior nitidez. E graças a isso pôde ver que o
dálmata, ou seja, o fulano de Barcelona com um rabicho grisalho e um
olho de cada cor, estava sentado numa mesa do bar junto à porta, com
um copo de whisky na mão e as pernas cruzadas, esperando-o.
— Compreenda — concluiu o tipo. — Elas querem que a gente as
foda. Ou melhor, querem que desejemos fodê-las. Mas, sobretudo,
querem que paguemos por isso. Com o nosso dinheiro, com a nossa
liberdade, com o nosso pensamento... No mundo delas, acredite em
mim, não existe a palavra grátis.
Continuava ali, com o whisky na mão como se não fosse nada com
ele, e Coy estava sentado à frente dele, ouvindo. Tinha deixado de
ficar surpreendido há muito tempo e agora ouvia com interesse,
diante de um copo de água tónica, gelo e limão que nem sequer tinha
tocado. O cognac ainda lhe escorria suavemente pelo sangue. Às
vezes, o dálmata fazia tilintar o gelo no copo, olhava para o conteúdo
e levava-o aos lábios, pensativo, para beber um pouco antes de
continuar a conversa. Coy confirmou que o seu espanhol tinha um
ligeiro sotaque estrangeiro, entre andaluz e britânico.
— E deixe-me que lhe diga uma coisa: quando elas decidem atirar-
se de cabeça, não há nada a fazer... Digo-lhe eu. Quando decidem
tomar uma decisão, seja qual for, tornam-se implacáveis. Garanto-lhe.
Já as vi mentir... Valha-me Deus! Garanto-lhe que já as vi mentir na
minha própria almofada, falando com o marido ao telefone, com um
sangue-frio... Incrível!
Havia uma loja de manequins ao lado e, às vezes, Coy olhava para
a montra. Corpos nus em diversas posições, sentados e em pé, homens
e mulheres sem sexo modelado, alguns com peruca, carecas outros, a
carne sintética brilhando sob os focos da montra. Várias cabeças
cortadas cerce sorriam numa prateleira. Os bonecos femininos tinham
seios com mamilos pontiagudos. Um decorador de montras com
sentido de humor, num toque beático, numa reminiscência clássica
casual ou consciente, fazia um dos manequins levantar o braço
articulado pelo cotovelo com o pulso na direcção do peito, pudico,
mantendo o outro sobre o suposto sexo. Vénus saindo directamente
de uma concha, disfarçada de replicadora Pris Nexus 6 em Blade
Runner.
— Também a teve a ela na sua almofada?
O dálmata olhou para Coy quase com reprovação. Tinha o cabelo
limpo e bem penteado para trás, preso com uma fita elástica preta. A
camisa era branca, com botões nas pontas do colarinho, e usava-a
aberta, sem gravata. Pele bronzeada sem exagero. Sapatos impecáveis,
cómodos, de boa pele. O relógio caro, pesado, de ouro, no pulso
esquerdo. Anéis de ouro. Mãos com unhas bem tratadas. Outro anel
no mindinho direito, grosso, também de ouro. Correntes do mesmo
espreitando no pescoço, com medalhas e um antigo dobrão espanhol.
Botões de punho em ouro, visíveis nas extremidades das mangas da
camisa. Este tipo, pensou Coy, parece uma montra da Cartier. Com o
que tinha em cima podiam fundir-se alguns lingotes.
— Não... Claro que não — o dálmata parecia sinceramente
escandalizado. — Não sei porque o pergunta. A minha relação com
ela...
Calou-se como se isso, o que quer que fosse, fosse evidente.
Passado um instante, deve ter dado conta de que não o era, porque fez
tilintar o gelo no copo e, desta vez sem beber nada, pôs Coy ao
corrente da história. Ou melhor, pô-lo ao corrente da versão da
história segundo Nino Palermo. Nino Palermo era ele próprio e isso
dava ao seu relato apenas um valor relativo. Mas aquele indivíduo era
a única pessoa que parecia disposta a contar algumas coisas a Coy.
Este não dispunha de outra versão mais autorizada e duvidava muito
que chegasse a dispor dela algum dia. De modo que permaneceu
imóvel, caladinho e atento, desviando os olhos para a montra dos
manequins só quando o outro insistia em olhar para ele por muito
tempo, ora o olho verde, ora o olho pardo — bicolora-ção incómoda
para se ter pela frente. Dessa forma soube que Nino Palermo era o
dono de Deadman's Chest, uma empresa dedicada ao resgate de
navios afundados e ao salvamento marítimo, com sede social em
Gibraltar. Talvez Coy, pois Palermo tinha ideia de que ele era
marinheiro, tivesse ouvido falar de Deadman's Chest, aquando dos
trabalhos de reflutuação do Punta Europa, um ferry afundado no ano
anterior com cinquenta passageiros na baía de Algeciras. Ou, noutro
tipo de coisas — acrescentou isso após uma curta pausa —, aquando
da recuperação do San Esteban, um galeão resgatado há cinco anos
nos escolhos da Florida com um carregamento de prata mexicana. Ou
no caso mais recente do navio romano descoberto com estátuas e
cerâmica, diante do rochedo de Calpe.
Nesse ponto, Coy pronunciou em voz alta as palavras «caçador de
tesouros», e o outro sorriu de forma a deixar ver um dente ou dois de
um lado da boca, antes de dizer que sim, de certa forma. Que isso dos
tesouros era um conceito muito relativo, dependia. E, além disso, meu
amigo, nem tudo o que brilha é ouro. Ou às vezes o que não brilha
acaba por sê-lo. Depois, entre mais frases deixadas a meio, Palermo
descruzou e voltou a cruzar as pernas, fez tilintar novamente o gelo
no copo, bebendo, desta vez sim, um longo gole que deixou os
cubinhos de gelo em seco no fundo.
— Não é uma aventura, é um trabalho — disse devagar, como se
pretendesse dar-lhe todas as oportunidades para compreender. —
Uma coisa é ir ao cinema, ou pretender viver como se estivéssemos na
fila catorze comendo pipocas com a namorada, e outra é investir
dinheiro, investigar e fazer trabalhos de prospecção com seriedade
profissional... Eu trabalho para mim e para os meus sócios, reúno o
capital necessário, obtenho resultados e divido lucros, dando a César...
Você sabe. O Estado, as suas leis e os seus impostos. Também
beneficio museus, instituições... Coisas dessas.
— Alguma coisa deve ficar-lhe no bolso.
— Evidentemente. E tento que seja... Valha-me Deus! Oiça, eu
tenho dinheiro. Tento arriscar o dos meus sócios, naturalmente, mas
também jogo o meu. Tenho advogados, investigadores,
mergulhadores experimentados que trabalham para mim... Sou um
profissional.
Dito isto, ficou calado durante uns instantes, com o seu olhar
bicolor cravado em Coy, espreitando o efeito. Mas Coy, que
permanecia inexpressivo, não lhe deve ter parecido muito
impressionado.
— O problema — prosseguiu — é que este meu trabalho necessita.
.. Uma pessoa não pode andar por aí contando a sua vida. Por isso é
preciso mover-se com cautela. Não falo de ilegalidades, embora às
vezes... Enfim... Você entende... A palavra-chave éprudência.
— E que tem ela a ver com tudo isto?
Palermo disselho e, enquanto o fazia, o seu ar aprazível endureceu,
e a cólera chegou-lhe de chofre aos olhos e à boca. Coy viu que
fechava um punho, o do anel grosso de ouro no mindinho, e ter-se-ia
desatado a rir diante daquele acesso de fúria, se não estivesse tão
interessado na história que o seu interlocutor ia contando num tom de
voz amargo, desabrido, que por vezes roçava o agressivo. Ele tinha
conseguido uma pista. A procura de antigos naufrágios começava
sempre por pistas simples, quase tontas às vezes, e ele tinha... Valha-
me Deus! O acaso, na forma de um rato de biblioteca chamado Corso,
um tipo que lhe fornecia material relacionado com o mar, cartas
náuticas antigas, roteiros e coisas assim — um aproveitador, diga-se
de passagem, que cobrava caríssimo — colocara-lhe nas mãos um
livro publicado em 1803 sobre a actividade marítima da Companhia
de Jesus. Chamava-se A Frota Negra: os Jesuítas nas índias Orientais e
Ocidentais, tinha sido escrito por Francisco José González,
bibliotecário do observatório da marinha de San Fernando e, nesse
livro, Palermo encontrou o nome do Dei Gloria.
— Ali havia... Valha-me Deus! Soube-o no mesmo instante. Uma
pessoa sabe quando há alguma coisa à sua espera — coçou o nariz
com o polegar. — Sente-o aqui.
— Suponho que se refere a um tesouro.
— Refiro-me a um barco. A um bom, velho e lindo barco
afundado. O tesouro vem depois, se vier. Mas não julgue que...
Imprescindível não é a palavra. Não é.
Inclinou a cabeça, olhando para o anel grande. Nesse momento,
Coy reparou deveras nele. Parecia outra moeda antiga, autêntica.
Talvez árabe, ou turca.
— O mar cobre dois terços do planeta — disse inesperadamente
Palermo. — Imagina tudo o que lá foi parar ao fundo nos últimos três
ou quatro mil anos? Cinco por cento dos barcos que navegaram... É
como lhe digo. Cinco por cento, pelo menos, está debaixo de água. O
mais extraordinário museu do mundo, ambição, tragédia, memória,
riqueza, morte... Objectos que valem dinheiro, se os trouxermos à
superfície, mas também... Compreende? Solidão. Silêncio. Só quem já
sentiu um arrepio de terror diante da silhueta escura de um casco
afundado... Falo da penumbra esverdeada lá de baixo, se sabe a que
me refiro... Sabe a que me refiro?
O olho verde e o olho pardo estavam cravados em Coy, animados
por um brilho súbito que parecia febril, ou perigoso, ou talvez as duas
coisas ao mesmo tempo. — Sei a que se refere.
Nino Palermo dirigiu-lhe um vago sorriso de apreço. Tinha
passado a vida, contou, metendo-se na água, primeiro por conta de
outros e mais tarde por conta própria. Tinha visitado destroços
cobertos de coral no mar Vermelho, descoberto um carregamento de
vidro bizantino em frente a Rodes, procurado libras esterlinas no
Carnatic e resgatado na Irlanda duzentos dobrões, três correntes de
ouro e um crucifixo de pedras preciosas do galeão Gerona. Tinha
trabalhado com as equipas de resgate dos barcos do mercúrio,
Guadalupe e Tolosa, e com Mel Fisher no Atocha. Mas também tinha
mergulhado entre os barcos espectrais da frota afundada a oitenta
metros da Martinica, junto ao monte Pelado, visitado o casco do
Yongala, no mar das Serpentes, e o do Andrea Dória, na sua tumba
aquática do Atlântico. Tinha visto o Royal Oak, de casco voltado no
fundo de Scapa Flow, e a hélice do navio corsário Emdem, no recife de
coral das ilhas Cocos. E, a vinte metros de profundidade, sob uma luz
fantasmagórica, dourada e azul, o esqueleto meio desfeito de um
piloto alemão, na cabina do seu FockeWulf afundado em frente a
Nice.
— Não me negará que é um bom curriculum. Calou-se e, fazendo
um gesto ao empregado, pediu outro whisky para ele e uma nova
água tónica para Coy, que nem sequer tinha tocado na outra. Deve ter
aquecido, disse. Procurar sob as águas era o seu modo de vida e a sua
paixão, prosseguiu depois, olhando-o como se o desafiasse a provar o
contrário. Mas nem todos os naufrágios eram importantes, explicou.
Na Antiguidade, os mergulhadores gregos já faziam resgates. Por isso,
os mais apetecíveis eram aqueles sem sobreviventes porque,
carecendo de informação sobre o lugar do afundamento,
permaneciam ocultos e intactos. E agora Palermo tinha encontrado
uma nova pista. Uma boa e bela pista virgem num livro antigo. Um
novo mistério, o desafio, e a possibilidade de procurar uma resposta.
— Então — tinha levantado o seu copo como se procurasse alguém
a quem atirar à cara — cometi o erro de... Compreende? O erro de
recorrer àquela cabra.
Quinze minutos mais tarde, a segunda água tónica continuava
intacta em cima da mesa, tão quente como a primeira. Quanto a Coy,
tinham-se-lhe dissipado um pouco mais os vapores do Centenário
Terry e estava ao corrente do invés da trama. Ou, pelo menos, da
versão mantida por Nino Palermo, cidadão britânico com residência
em Gibraltar, proprietário da empresa Deadman's Chest de Trabalhos
Subaquáticos e Salvamento Marítimo.
Há meio ano, Palermo tinha ido ao Museu Naval de Madrid, como
noutras ocasiões, à procura de informações. Esperava confirmar que
um bergantim saído de Havana e desaparecido antes de chegar ao seu
destino tinha naufragado nas proximidades da costa espanhola. O
barco não transportava carga conhecida valiosa, mas havia indícios
interessantes: o nome Dei Gloria estava, por exemplo, numa das cartas
expropriadas, aquando da dissolução da Companhia nos tempos de
Carlos III, que Palermo encontrou mencionada pelo bibliotecário de
San Fernando no seu livro sobre os barcos e a actividade marítima dos
jesuítas. A citação «mas a justiça de Deus não permitiu que o Dei
Gloria chegasse ao seu destino com as pessoas e o segredo que
transportava» foi cruzada por ele próprio com o índice de documentos
do Arquivo das índias de Sevilha, Viso dei Marquês e Museu Naval
de Madrid... E tlim, tlim. Prémio. No catálogo da biblioteca deste
último constava um relatório datado de Fevereiro de 1767 em
Cartagena «sobre a perda do bergantim Dei Gloria em combate com o
chaveco corsário que se presume seja o chamado Serguí». Isso levou-o
a pôr-se em contacto com o Museu Naval e com Tânger Soto que —
em má hora e maldita seja ela — era a encarregada desse
departamento. Após um primeiro contacto exploratório foram
almoçar ao Al-Mounia, um restaurante árabe da Calle Recoletos. Aí,
diante de um cuscuz de cordeiro com verduras, ele tinha representado
o seu número de forma convincente. Nada de abrir-lhe o coração,
evidentemente. Era uma rata velha e conhecia os riscos. Só trouxe à
baila o Dei Gloria entre outros assuntos, quase com a ponta dos dedos.
Ela, educada, eficiente, amável e maldita bruxa, tinha prometido
ajudá-lo. Isso dissera: ajudá-lo. Procurar para ele uma cópia dos
documentos, se estes continuassem no fundo confiado à instituição,
etc. Telefonar-lhe-ei, tinha garantido a cabra. E sem pestanejar, valha-
me Deus! Nem uma vez! Isso passara-se há meses e não só ela nunca
telefonara, como tinha utilizado a influência da marinha para lhe
bloquear qualquer via de acesso aos arquivos do museu. Até aos
documentos relativos à declaração de embarque do bergantim em
Havana, que ele tinha finalmente localizado no índice do Arquivo
Geral da Marinha de Viso del Marquês, mas que não pôde consultar
por se encontrar, conforme o informaram aí, sob estudo oficial do
Ministério da Defesa. Palermo tinha continuado a mexer-se,
evidentemente. Conhecia o meio e possuía dinheiro para gastar. A sua
averiguação paralela tinha decorrido razoavelmente, e estava agora
em condições de afirmar que o bergantim se tinha afundado perto de
Cartagena, e que transportava alguma coisa, objectos ou pessoas, de
suma importância. Talvez aquela acção do corsário Serguí — um
Chergui inglês com carta de corso argelina perdeu-se nas mesmas
águas e na mesma data — não fosse totalmente um acaso. Palermo
tentara falar inúmeras vezes com Tânger Soto para lhe pedir
explicações, mas sem resultado, silêncio total. Ela era muito esperta
evitando-o, ou tinha sorte, como em Barcelona, quando Coy se meteu
pelo meio. Oh, se tinha! No fim, Palermo acabou por compreender,
pobre estúpido, que ela não apenas o tinha enganado, como estava
mexendo as suas próprias peças pela calada. A suspeita transformou-
se em certeza quando a viu aparecer no leilão, atrás do Urrutia.
— A mosquinha-morta — concluiu Palermo — ...tinha decidido...
Valha-me Deus, você compreende?... O Dei Gloria por sua conta.
Coy abanou a cabeça, embora na realidade estivesse a digerir tudo
o que acabara de ouvir.
— Que eu saiba — particularizou — trabalha por conta do Museu
Naval.
O outro deu uma gargalhada bastante curta e bastante rude. Com
pouca vontade.
— Isso julgava eu. Mas agora... Aquela é das que mordem com a
boquinha fechada.
Coy coçou no nariz, sentindo-se ainda perplexo.
— Nesse caso — disse — ponha-se em contacto com os superiores
dela e rebente-lhe a operação.
Palermo fez tilintar o gelo do seu novo whisky.
— Isso seria rebentar também a minha... Não sou tão estúpido.
Tinha feito outra vez aquela careta rápida que lhe deixava a
descoberto alguns dentes parecidos aos de um tubarão. Este tipo,
pensou Coy, sorri como uma tintureira(3) diante de uma lula com dois
palmos.
— É como uma corrida de fundo, compreende? — acrescentou
Palermo. — Eu tenho melhores... Valha-me Deus! Ela partiu com
vantagem graças ao meu descuido. Mas aquele tipo de esforços... Já
recuperei terreno. Ainda ganharei mais.
Coy encolheu os ombros.
— Pois desejo-lhe sorte.
— Alguma dessa sorte depende de si. Basta-me olhar para a cara
de um homem para saber... — Palermo piscou-lhe o olho pardo. —
Você entende-me.
— Engana-se. Não o entendo.
— Para saber por quanto se vende.
Coy não gostou do olhar que tinha em frente. Ou talvez lhe
desagradasse o tom de voz confiante, cúmplice, com que o seu
interlocutor tinha pronunciado as últimas palavras.

*3. Tintureira ou quelha: peixe da família do tubarão, semelhante ao


cação, comum nas águas marroquinas. (N. da T.)

— Eu estou fora — disse friamente.


— Não me diga!
O tom de chacota do outro não contribuía para melhorar as coisas.
Coy sentiu reavivar a sua antipatia.
— Já vê... Terá de combinar com ela — tentou torcer a boca da
forma mais insolente possível. — Não experimentaram associar-se?...
Pelos vistos, pertencem à mesma laia.
Palermo não parecia, de todo, ofendido. Antes, avaliava a questão
com um ar imparcial.
— É uma possibilidade — ripostou. — Mas duvido que ela... Acha
que tem os ases na mão.
— Pois acaba de perder alguns. Pelo menos uma dama. Outra vez
em frente o sorriso de esqualo. Agora esperançado, o que não o
tornava mais agradável.
— Fala a sério? — Palermo reflectia, interessado. — ...Refiro-me a
não continuar com ela.
— Claro que falo a sério.
— Seria indiscreto perguntar-lhe porquê?
— Acabou de o dizer há um momento: não joga limpo. Mais ou
menos como você — de repente lembrou-se de uma coisa. — ...E pode
dizer ao seu anão melancólico que fique tranquilo. Já não terei de lhe
partir a cara se o encontrar.
Palermo, que se dispunha a beber, parou, olhando para Coy por
cima do copo.
— Que anão?
— Não se arme também você em espertinho. Sabe de quem estou a
falar.
Com o copo ainda a meio caminho, os olhos bicolores
semicerraram-se, astutos.
— Não deve interpretar mal...
Palermo começou a dizer aquilo, mas depois, pensando melhor,
calou-se, com o pretexto de levar a bebida aos lábios e tomar um gole.
Ao pousá-la em cima da mesa tinha mudado de conversa: — Não
consigo acreditar que a deixe, assim.
Agora coube a Coy a vez de sorrir. De certeza que eu não sorrio
como este fulano, mesmo que queira, disse para consigo. De certeza
que a mim não me sai cara de tubarão, mas de parvo. Sentia-se
vigarizado por toda a gente, a começar por si próprio.
— Eu também ainda não acredito — disse.
— Regressa a Barcelona?... O que se passa com o seu problema?
— Muito bem — abanava a cabeça, aborrecido. — Vejo que
também se interessou pelo meu curriculum.
O outro levantou a mão esquerda no ar, como se acabasse de ter
uma ideia. Tirou um cartão-de-visita de uma volumosa carteira cheia
de cartões de crédito, e escreveu alguma coisa. As luzes da montra dos
manequins faziam brilhar os anéis das mãos dele. Coy deu uma vista
de olhos ao cartão antes de o guardar no bolso: Nino Palermo.
Deadman's Chest Ltd. 42b Main Street. Gibraltar. Em baixo estava
apontado um número de telefone de um hotel de Madrid.
— Talvez possa compensá-lo de alguma forma. — Palermo fez
uma pausa, tossiu para limpar a garganta, bebeu um novo gole e
olhou-o de repente: — Preciso de alguém junto da senhora Soto...
Deixou também esta frase no ar, o tempo suficiente para que o seu
interlocutor acabasse de completá-la da forma adequada. Coy
permaneceu um bocado imóvel, observando-o. Depois inclinou-se
para a frente, até apoiar as palmas das mãos na mesa.
— Vá levar no cu.
» Perdão?
Palermo tinha pestanejado, com cara de quem esperava outra
coisa. Coy começou a levantar-se e, com um prazer secreto, verificou
que o outro se encostava ligeiramente para trás na cadeira.
— O que lhe disse. Sodomizar. Enrabar. Levar na anilha. Explico-
me? — Agora, as mãos que apoiava na mesa tinham-se fechado,
transformando-se em punhos — ...Ou seja, que lhe saltem para as
costas a si, ao anão e ao Dei Gloria. E a ela também.
O outro não o perdia de vista. O olho verde parecia ainda mais frio
e atento que o pardo, mais dilatado. Como se metade do corpo
representasse receio e a outra metade estivesse em guarda, avaliando.
— Pense bem — disse Palermo, e apoiou uma mão na manga de
Coy, como se quisesse convencê-lo, ou retê-lo. Era a mão do anel com
a moeda de ouro, e este sentiu-a com desagrado sobre os músculos
tensos do seu antebraço.
— Tire-me essa mão de cima — disse — ou arranco-lhe a cabeça.

V - O MERIDIANO ZERO
Estabelecido o primeiro meridiano, coloquem-se todos os lugares
principais por latitudes e longitudes.
Mendonza y Rios. Tratado de Navegação

Dormiu durante toda a noite e parte da manhã. Dormiu como se


nisso a vida se lhe esvaísse, ou como se desejasse manter a vida lá
fora, à distância, o máximo de tempo possível. E, uma vez acordado,
contumaz, continuou a tentá-lo. Deu voltas e voltas na cama, tapando
os olhos, tentando esquivar ao rectângulo de claridade na parede. Ao
acordar, tinha observado aquele rectângulo com desolação. O risco de
luz estava aparentemente imóvel e só, de forma imperceptível,
variava a sua posição à medida que decorriam os minutos. A vista
desarmada parecia estar tão imóvel como todas as coisas em terra
firme. E antes de se lembrar que se encontrava no quarto de uma
pensão, a quatrocentos quilómetros da costa mais próxima, soube, ou
intuiu, que nesse dia também não acordava a bordo de um barco, lá,
onde a luz que entra pelos postigos se move e oscila suavemente de
cima para baixo e de um lado para outro, enquanto o trepidar suave
das máquinas se propaga através das pranchas do casco, ronrom,
ronrom, e este balança no vaivém circular da ondulação.
Tomou um duche rápido e desagradável — depois das dez da
manhã, as torneiras da pensão só forneciam água fria — e saiu para a
rua sem se barbear, com as calças de ganga, uma camisa limpa e o
casaco sobre os ombros, à procura de uma dependência da Renfe, para
comprar um bilhete de volta para Barcelona. Tomou um café pelo
caminho, comprou um jornal que, folheado apenas, foi parar ao
caixote de lixo, e depois andou pelo centro da cidade sem rumo
definido até acabar sentado numa pequena praça da zona velha de
Madrid, num desses lugares com árvores de antigos conventos no
outro lado de um muro, casas de varandas com vasos e amplos
saguões para o gato e para a porteira. Estava um sol aprazível que
provocava uma preguiça agradável. Esticou as pernas, tirando do ]
bolso a maltratada edição brochada de O Barco da Morte, de Traven,
que acabara por comprar na Calle Moyano. Durante algum tempo
tentou concentrar-se na leitura, mas no preciso momento ] em que o
ingénuo marinheiro Pip pip, sentado no cais, imagina o Tuscaloosa no
mar alto voltando para casa, Coy fechou o livro e meteu-o novamente
no bolso. Tinha a cabeça muito longe daquelas páginas. Tinha-a
repleta de humilhação e de vergonha.
Passado um bocado levantou-se e, sem se apressar, empreendeu o
caminho de volta à Plaza de Santa Ana, com a expressão sombria
acentuada no queixo escurecido pela barba de dia e meio. De repente,
sentiu um mal-estar no estômago e lembrou-se de que não tinha
comido nada em vinte e quatro horas. Foi a um café, pediu uma fatia
de tortilha e uma imperial, e chegou à pensão já passava das duas. O
Talgo saía daí a hora e meia e a Estação de Atocha ficava perto. Podia
descer a pé e ir de comboio até à de Chamartín, de modo que arrumou
com calma a sua reduzida bagagem: o livro de Traven, uma camisa
limpa e outra suja que meteu num saco de plástico, alguma roupa
interior, uma camisola de lã azul. Enrolou os seus acessórios de
higiene pessoal numas calças caqui de trabalho e colocou tudo num
saco de lona. Calçou os ténis e guardou os velhos sapatos de vela.
Efectuou cada um desses movimentos com a mesma precisão
metódica que teria empregado para traçar um rumo, embora o diabo o
levasse se naquele momento tinha em mente qualquer rumo.
Limitava-se a pôr toda a sua concentração em não pensar. Depois
desceu, pagou e saiu para a rua com o saco ao ombro. Parou,
semicerrando os olhos devido aos raios de sol que incidiam
verticalmente na praça, para esfregar o estômago, incomodado. Olhou
para um lado, depois para o outro, e pôs-se a andar.
Grande viagem, pensava. Por uma sarcástica associação de ideias
vieram-lhe à cabeça os acordes de Noche de Samba en Puerto Espana.
Primeiro uma canção, dizia a letra. Depois a bebedeira e, no fim,
apenas um choro de guitarra. Assobiou meio estribilho quase sem dar
conta, calando-se de súbito. Lembra-te, disse para si próprio, de não
voltar a cantarolar isso no raio da tua vida. Olhava para o chão, e a
sombra parecia estremecer de riso diante dos seus passos. De todos os
atrasados mentais do mundo — e devia haver uns quantos — ela
escolhera-o a ele. Embora não fosse totalmente exacto. No fim de
contas, fora ele quem se pusera diante dela, primeiro em Barcelona e
depois em Madrid. Ninguém força o rato, lera uma vez nalgum lado.
Ninguém obriga esse roedor cretino a ir por aí metendo o nariz nas
ratoeiras, armado em macho. Sobretudo, sabendo de sobra que neste
mundo os ventos de proa sopram mais amiúde que os de popa.
Ainda não tinha chegado à esquina quando a gerente da pensão
saiu para a rua a correr, atrás dele, gritando o seu nome. Senhor Coy,
senhor Coy. Tinha um telefonema.
— Canalhas — disse Tânger Soto.
Era uma rapariga comedida e mal se lhe notava um ligeiro tremor
na voz, uma nota de insegurança que tentava controlar pronunciando
apenas as palavras necessárias. Ainda estava vestida para sair, com
saia e casaco, e apoiava-se na parede da salinha, com os braços
cruzados, o rosto um pouco inclinado, olhando para o cadáver de Zas.
Coy cruzara-se nas escadas com dois polícias fardados e encontrou
um terceiro guardando numa maleta os instrumentos utilizados para
procurar impressões digitais. Tinha o boné em cima da mesa, e o
radiotransmissor, pendurado no cinto, emitia um rumor apagado de
conversas. O agente deslocava-se com cuidado entre os móveis
remexidos da casa. Não havia muita desordem: uma gaveta aberta,
papéis e livros pelo chão e o computador com a caixa desaparafusada
e os cabos e ligações soltos.
— Aproveitaram eu estar no museu — murmurou Tânger.
Excepto por aquele tremor na voz, não parecia frágil, mas sombria.
A sua pele pintalgada ficara de um mate-pálido, mantinha os olhos
secos e a expressão endurecida, as mãos com os dedos cravados nos
braços, com tanta força que empalideciam os nós dos dedos. Não
afastava os olhos do cão. O labrador continuava de lado no tapete,
com os olhos vidrados e a boca entreaberta por onde saía um fiozinho
de espuma esbranquiçada que já começava a secar. De acordo com a
Polícia, tinham forçado a porta e, depois, antes de a abrirem
completamente, atiraram ao cão um bocado de carne preparado com
um veneno rápido, talvez etilenglicol. Quem quer que fosse, sabia o
que procurava e o que iria encontrar. Não tinham provocado estragos
inúteis, limitando-se a roubar alguns documentos das gavetas, todas
as disquetes e o disco rígido do computador. Era, sem dúvida, gente
que vinha com propósitos deliberados. Profissionais.
— Não precisavam de matar Zas — disse ela. — Não era um cão
de guarda... Brincava com qualquer um.
As últimas palavras suavizaram-se com uma nota de emoção que
imediatamente reprimiu. O polícia da malinha tinha acabado o seu
serviço, de modo que colocou o boné, cumprimentou e foi embora,
depois de dizer alguma coisa sobre os empregados municipais que
passariam para levar o cachorro. Coy fechou a porta — viu que a
fechadura ainda funcionava —, mas depois de dar mais uma vista de
olhos ao corpo de Zas, abriu-a novamente, deixando-a entreaberta,
como se fechar a casa com o cadáver do cão lá dentro fosse
improcedente. Ela permaneceu imóvel, apoiada à parede, quando ele
atravessou a sala e se dirigiu à casa de banho. Voltou com uma toalha
grande e inclinou-se sobre o labrador. Por instantes, olhou com afecto
para os olhos mortos do animal, lembrando-se das lambidelas do dia
anterior, da cauda agitando-se alegre à espera de uma carícia, do seu
olhar inteligente e fiel. Sentia uma profunda pena, uma piedade que
lhe revolvia as entranhas, incomodando-o com sentimentos quase
infantis que todos os homens adultos julgam esquecidos. Com Zas
tinha a impressão de ter perdido um amigo silencioso e recente;
desses que não se procuram porque são eles que nos escolhem. Do seu
ponto de vista, aquela tristeza estava deslocada. Só estivera com o cão
algumas vezes e nada fizera para ser merecedor da sua lealdade ou
para lamentar a sua morte. E, no entanto, ali estava, com uma angústia
estranha, uma comichão incomodativa no nariz e nos olhos. Sentia o
desamparo como seu, a desolação, a imobilidade do infeliz animal.
Talvez tivesse saudado os seus assassinos abanando alegremente a
cauda, à espera de uma palavra amável ou de uma carícia.
— Pobre Zas — murmurou.
Tocou com os dedos, por um instante, a cabeça dourada do
labrador, despedindo-se dele e cobriu-o depois com a toalha. Ao
levantar-se viu que Tânger olhava para ele. Continuava apoiada à
parede com os braços cruzados, sombria e imóvel.
— Morreu sozinho — disse Coy.
— Todos morremos sós.
Ficou durante aquela tarde e parte da noite. Primeiro, ficou
sentado no sofá depois de os funcionários municipais terem levado o
cão, vendo como ela ia e vinha remediando a desordem. Viu-a mover-
se quase sem dizer uma palavra, empilhando papéis, colocando livros
nas estantes, fechando gavetas. Parada diante do computador
estripado, com as mãos nas ancas avaliando o estrago,
pensativamente. Nada irreparável, dissera em resposta a uma das
poucas perguntas que ele colocou no início. Depois, continuou
ocupando-se da casa, até estar tudo em ordem. A última coisa que fez
foi ajoelhar-se no sítio onde Zas tinha estado e limpar com um pano e
água os restos de espuma esbranquiçada que tinha secado sobre o
tapete. Fez tudo isto com uma obstinação disciplinada, lúgubre, como
se a tarefa a ajudasse a controlar os seus sentimentos, dominando a
incerteza que ameaçava transparecer no seu semblante. As pontas do
cabelo dourado oscilavam-lhe junto do queixo, deixando entrever o
nariz e as maçãs do rosto cobertos de sardas, quando finalmente se
levantou e olhou em volta, para ver se estava tudo como devia. Nessa
altura foi até à mesa, agarrou no maço de Players e acendeu um
cigarro.
— Ontem à noite estive com Nino Palermo — disse Coy.
Não pareceu ter ficado minimamente surpreendida. Nem sequer
disse nada. Ficou de pé junto à mesa, com o cigarro entre os dedos e a
mão um pouco levantada, segurando o cotovelo com a outra.
— Contou-me que o enganaste — prosseguiu ele. — E que tentas
também enganar-me a mim.
Esperava desculpas, insolência ou desdém, mas só houve silêncio.
O fumo do cigarro subia rectilíneo até ao tecto. Nem uma espiral,
observou. Nem uma agitação, nem um estremecimento.
— Não trabalhas para o museu — acrescentou, espaçando
deliberadamente cada palavra —, mas para ti própria.
Parecia-se, descobriu de repente, com essas mulheres que nos
olham de alguns quadros. Olhares impassíveis, capazes de provocar
inquietação no coração de qualquer homem que as observe. A certeza
de que sabem coisas que não dizem, mas que, se nos detivermos à sua
frente o tempo suficiente, podemos intuir nas suas pupilas imóveis.
Arrogância dura, sábia. Lucidez antiga. O pensamento do primeiro
dia em que esteve naquela casa voltou a rondar-lhe a cabeça: havia
meninas que já olhavam daquela maneira, sem terem tido tempo
material que o justificasse, sem terem vivido o suficiente para
aprender a fazê-lo. Penélope devia olhar assim para Ulisses, quando
este lhe apareceu, vinte anos depois, reclamando o seu arco.
— Eu não te pedi que viesses a Madrid — disse ela. — Nem que
complicasses a minha vida e a tua em Barcelona.
Coy olhou para ela durante alguns segundos, ainda absorto, com a
boca entreaberta de uma forma quase estúpida.
— É verdade — admitiu.
— Foste tu quem quis jogar. Eu limitei-me a estabelecer algumas
regras. Se te convêm ou não, é problema teu.
Finalmente tinha mexido a mão que sustinha o cigarro e a brasa
deste brilhou entre os dedos ao levá-lo aos lábios. Depois ficou
novamente imóvel, e o fumo voltou a formar uma linha vertical fina e
perfeita.
— Porque me mentiste? — perguntou Coy.
Tânger suspirou com suavidade. Apenas um sopro de
aborrecimento.
— Eu não te menti — disse. — Contei-te apenas a versão que me
convinha contar... Lembra-te de que és um intruso e de que esta é a
minha aventura. Não podes exigir-me nada.
— Aqueles homens são perigosos.
A linha recta do fumo partiu-se em leves espirais. Ela ria-se em voz
baixa, de uma forma contida.
— Não é preciso ser muito inteligente para deduzir isso, não é
verdade?...
Ainda se riu mais um pouco até parar de chofre, diante da mancha
húmida do tapete. O azul-escuro dos seus olhos tornara-se mais
sombrio.
— O que vais fazer agora?
Ela não respondeu imediatamente. Mexera-se para apagar o
cigarro no cinzeiro. Fê-lo minuciosamente, sem comprimir demasiado,
pouco a pouco, até a brasa se ter extinguido. Só nessa altura esboçou
um gesto com a cabeça e com os ombros. Não olhava para Coy.
— Vou continuar a fazer a mesma coisa. A procurar o Dei Gloria.
Depois andou pelo aposento, lentamente, para comprovar que
tudo tinha voltado à sua antiga ordem. Alinhou um Tintim na sua
estante com os outros e depois rectificou a posição da moldura da
fotografia em que Coy reparara com frequência: a adolescente loura
junto do militar bronzeado, sorridente, em mangas de camisa. Agia,
observou ele, como se tivesse água fria nas veias. Mas de súbito viu-a
parar, reter o ar nos pulmões e expeli-lo, e era menos um gemido que
um bufar de fúria, enquanto batia na mesa com a palma da mão,
brusca e secamente, com uma violência inesperada que deve tê-la
surpreendido também, ou magoado muito, porque ficou imóvel.
Outra vez sem respirar, contemplando desconcertada a mão, como se
esta não fosse sua.
— Malditos sejam! — disse em voz muito baixa. Controlou-se, e
Coy pôde reparar no esforço que fazia para o conseguir. Os músculos
dos seus maxilares estavam tensos, a boca contraída, quando respirou
fundo pelo nariz, procurando novas coisas para pôr em ordem, como
se nada tivesse acontecido dez segundos antes.
— O que levaram?
— Nada imprescindível — continuava a olhar em volta. — Devolvi
o Urrutia esta manhã ao museu, e tenho duas boas reproduções da
carta esférica com que podemos trabalhar... As cartas modernas
deixaram-nas todas, menos uma que tinha anotações a Japis nas
margens. Também havia dados no disco rígido do computador, mas
não eram importantes.
Coy remexeu-se, pouco à vontade. Ter-se-ia sentido mais à
vontade com algumas lágrimas, alguns lamentos indignados ou coisa
parecida. Nesses casos, pensava, um homem sabe o que fazer. Ou pelo
menos julga sabê-lo. Cada um assume o seu papel, como no cinema.
— Deverias esquecer-te disto.
Voltara-se com extrema lentidão, como se de repente ele se tivesse
transformado num dos objectos da sala, cuja posição era necessário
rectificar.
— Ouve, Coy. Eu não te pedi que te metesses nos meus assuntos.
Também não te pedi agora que me dês conselhos... Entendes?
É perigosa, pensou de súbito. Talvez mesmo mais do que aqueles
que lhe puseram a casa de pernas para o ar e lhe mataram o cão. Mais
do que o anão melancólico e do que o dálmata caçador de tesouros.
Tudo isto acontece porque ela é perigosa, eles sabem-no, e ela sabe
que eles o sabem. Perigosa mesmo para mim.
— Entendo.
Abanou a cabeça, entre evasivo e resignado. Aquela mulher tinha
uma facilidade espantosa para o fazer sentir-se responsável e ao
mesmo tempo recordar-lhe a gratuitidade da sua presença ali. No
entanto, Tânger não parecia satisfeita com a resposta concisa de Coy.
Continuava a observá-lo como o lutador de boxe que ignora a
campainha ou a admoestação do árbitro.
— Quando era pequena adorava os filmes de cowboys — disse
inesperadamente.
O seu tom de voz estava longe de ser evocador ou terno. Parecia
mesmo conter uma leve troça de si própria. Mas estava mortalmente
séria.
— Gostavas desses filmes, Coy?
Olhou para ela sem saber o que dizer. Responder àquilo teria
exigido meio minuto de transição, mas ela não lhe deu tempo de
procurar uma resposta. Também não parecia importar-lhe.
— Vendo-os — prosseguiu — cheguei à conclusão de que existem
dois tipos de mulheres: as que se põem aos gritos quando os apaches
atacam, e as que agarram numa espingarda e disparam pela janela.
O seu tom de voz não era agressivo mas firme. E, no entanto, Coy
sentia aquela firmeza diabolicamente agressiva. Ela calou-se e parecia
não ir acrescentar mais nada. Mas, após um instante, parou Jiante da
fotografia na sua moldura e semicerrou os olhos. A sua voz soou
agora rouca e baixa: — Eu queria ser soldado e usar a espingarda.
Coy coçou o nariz. Depois esfregou a nuca e foi executando, um
após outro, os gestos que costumavam caracterizar a sua
perplexidade. Pergunto a mim próprio, disse para consigo, se esta
mulher adivinha os meus pensamentos, ou se é precisamente ela
quem mos põe cá dentro, baralhando-os depois e espalhando-os em
cima da mesa como se de um baralho de cartas se tratasse.
— Esse Palermo — acabou por dizer — ofereceu-me trabalho.
Susteve a respiração. Tinha tirado do bolso o cartão de visita com os
números de telefone do gibraltino. Levantou-o entre os dedos,
balançando-o um pouco. Ela não olhava para o cartão, mas para ele.
Fazia-o com tanta fixidez como se pretendesse perfurar-lhe o cérebro.
— E o que lhe disseste?
— Que ia pensar.
Ela mal sorriu. Um segundo de avaliação e dois segundos de
incredulidade.
— Estás a mentir — declarou. — Se assim fosse, não estarias agora
aqui sentado, olhando para mim — a voz dela pareceu suavizar-se. —
...Tu não és desses.
Coy desviou os olhos na direcção da janela, dando uma vista de
olhos lá para fora, para baixo e para a distância. Tu não és desses.
Num sítio poeirento da sua memória, Brutus perguntava a Popeye se
era um homem ou um rato, e este respondia: «Sou marinheiro.» Um
comboio aproximava-se lentamente da enorme pala que cobria os cais
de Atocha, com a sua prolongada articulação seguindo um caminho
misterioso traçado no labirinto de vias e sinais. Sentia um rancor
preciso como o fio de uma navalha. Tu não conheces, pensou, esses
aos quais pertenço. Olhou para o seu relógio de pulso. O Talgo, cujo
bilhete de segunda classe tinha no bolso interior do casaco, ia, desde
há algum tempo, a caminho de Barcelona. E ele ali novamente, como
se nada tivesse mudado. Olhou para o tapete onde Zas tinha estado.
Ou, talvez, reflectiu, estivesse outra vez ali precisamente por algumas
coisas terem mudado. Ou porque... diabos o levassem se fazia a mais
pequena ideia do porquê. De repente, estremeceu no seu íntimo e
alguma coisa lhe atravessou o espírito como um clarão cálido. E
soube, naturalmente, que estava ali porque um dia iria ensinar alguma
coisa àquela mulher. O pensamento agitou-o tanto que lhe aflorou ao
rosto, e ela olhou-o inquisitiva, surpreendida com a transformação
que acabara de verificar-se na sua expressão. Coy quase gaguejava no
seu próprio silêncio. Ia ensinar-lhe uma coisa que ela julgava saber e
não sabia. Uma coisa que ela não poderia controlar tão facilmente
como os gestos, as palavras, as situações e, aparentemente, como ele
próprio. Mas era preciso esperar, antes que esse momento chegasse.
Por isso estava ali e não tinha outra coisa senão a espera. Por isso,
ambos sabiam que desta vez ele já não partiria. Por isso estava preso,
comendo o bocadinho de queijo até ao arame. Clique. Trás! Homem
ou rato. Pelo menos, consolou-se, não doía. Talvez no fim, quando for
a minha vez, doa. Mas ainda não. Descruzou as pernas, voltou a
cruzá-las e encostou-se um pouco mais no sofá, com as mãos caídas
aos lados. Sentia a pulsação latejando-lhe devagar e com força nas
virilhas. Suponho, disse para consigo, que a palavra exacta é medo.
Uma pessoa sabe que há rochas pela frente, e isso é tudo. Navega,
olha para o mar, sente a brisa na cara e o salitre nos lábios, mas não se
deixa enganar. Sabe.
Tenho de dizer alguma coisa, pensou. Qualquer coisa que não
tenha nada a ver com o que sinto. Alguma coisa que a faça agarrar no
leme de novo, ou melhor, que me permita vê-la novamente aí. No fim
de contas, é ela quem manda, e ainda estamos longe do meu quarto de
serviço.
Rasgou o cartão aos bocados, deixando-os sobre a mesa. Não
houve comentários a esse respeito. Assunto encerrado.
— Continuo sem ver as coisas — disse Coy. — Se não há tesouro,
como pode interessar a Nino Palermo um barco afundado em 1767?
— Os caçadores de naufrágios não andam só atrás de tesouros. —
Agora Tânger tinha-se aproximado, sentando-se numa cadeira em
frente de Coy, inclinando o corpo para a frente, a fim de encurtar a
distância que a separava dele. — Um barco afundado há dois séculos e
meio pode ter muito interesse se estiver bem conservado. O Estado
paga pelo resgate... Fazem-se exposições itinerantes... Nem tudo se
resume ao ouro dos galeões. Há coisas que valem tanto como isso. Vê,
por exemplo, a colecção de cerâmica oriental que ia a bordo do San
Diego... O seu valor é incalculável. — Parou e permaneceu um pouco
em silêncio, com os lábios entreabertos, antes de prosseguir: — Além
disso, há outra coisa. O desafio. Entendes?... Um barco afundado é um
enigma que fascina muita gente.
— Sim. Palermo falou disso. A penumbra lá de baixo, disse. E tudo
o resto.
Tânger concordava muito séria e grave, como se conhecesse o
sentido dessas palavras. E, no entanto, era Coy quem tinha estado em
barcos afundados e em barcos encalhados e desencalhados. Não ela.
— Por outro lado — fez notar Tânger — ninguém sabe o que havia
a bordo do Dei Gloria.
Coy deu um suspiro.
— Talvez haja um tesouro, no fim de contas.
Ela imitou o suspiro de Coy, embora talvez não fosse pelo mesmo
motivo. Arqueava as sobrancelhas com ar misterioso, como quem
mostra o invólucro que esconde uma surpresa.
— Quem sabe?
Estava inclinada para a frente, perto dele, e a sua expressão
iluminava o rosto pintalgado com o ar cúmplice de um rapazinho
decidido, conferindo-lhe um encanto simples, notoriamente físico,
feito de carne, de células vivas e jovens, de tons dourados e de cores
suaves que exigiam imperiosamente a proximidade, o tacto e o
contacto da pele com a pele. O sangue voltou a latejar nas virilhas de
Coy e, desta vez, não se tratava de medo. Novamente, o clarão de luz.
Novamente, aquela certeza. De modo que se deixou levar
voluntariamente à deriva, sem concessões ao arrependimento ou aos
remorsos. No mar todos os caminhos são longos. E, no fim de contas
— essa era a sua vantagem —, ele não tinha tripulantes a quem tapar
os ouvidos com cera, nem ninguém que o amarrasse ao mastro para
resistir às vozes que cantavam nos recifes, nem deuses que pudessem
incomodá-lo, mais do que a conta, com os seus ódios ou com os seus
favores. Estava, calculou num balanço rápido, lixado, fascinado e só.
Nessas condições, aquela mulher era um rumo tão bom como
qualquer outro.
A tarde fora-se extinguindo, e a luz amarela que iluminou
primeiro as nuvens baixas e depois rastejou sobre a Estação de
Atocha, cobrindo de sombras longuíssimas e horizontais o intrincado
reflexo no labirinto de vias, enchia agora o aposento, o perfil de
Tânger inclinado sobre a mesa, a sua silhueta escura ao lado da de
Coy sobre o papel da carta náutica número 463A do Instituto
Hidrográfico da Marinha.
— Ontem — recapitulava ele — situámos uma latitude, que é de
37° 32 minutos norte... Isso permite-nos traçar uma linha aproximada,
sabendo que o Dei Gloria se encontrava, quando se afundou, nalgum
lugar dessa linha imaginária, entre Punta Calnegre e o cabo Tinoso, a
uma distância da costa que varia entre uma e três milhas., Talvez
mais. Isso pode dar-nos sondas de trinta a cem metros.
— Na realidade são inferiores — indicou Tânger.
Seguia as explicações de Coy sobre a carta com muita atenção.
Agora era tudo tão profissional como se estivessem na casa de
navegação de um navio. Tinham desenhado, com lápis e paralelas,
uma linha horizontal que saía da costa, milha e meia acima de Punta
Calnegre, e ia até ao cabo Tinoso sob o grande arco de areia formado
pelo golfo de Mazarrón. A profundidade, que era pequena e rasa no
lado oeste, aumentava à medida que a linha se aproximava da costa
rochosa situada mais a este.
— De qualquer forma — particularizou Coy —, se o barco estiver
muito fundo, não conseguiremos localizá-lo com meios limitados
como os nossos. E muito menos descer até ao que resta dele.
— Ontem dissete que calculo que esteja, no máximo, a cinquenta
metros...
Frio e silêncio, lembrou-se Coy. E aquela penumbra esverdeada à
qual Nino Palermo se referira. Conservava na pele a sensação do seu
primeiro mergulho profundo, há vinte anos, do reflexo prateado da
superfície vista de baixo, da esfera azulada e depois verde, da perda
paulatina das cores, do manómetro no seu pulso, com a agulha a
indicar o aumento gradual da pressão dentro e fora dos seus pulmões,
e do som da sua própria respiração no peito e nos tímpanos,
aspirando e expirando ar pelo regulador. Frio e silêncio, naturalmente.
E também medo.
— Cinquenta metros já é demasiado — disse. — Exige mergulhar
com um equipamento de que não dispomos, ou fazer imersões curtas
com longas descompressões, o que é incómodo e perigoso. Digamos
que a quota razoável de segurança, no nosso caso, é de quarenta. Nem
mais um metro.
Continuava inclinada sobre a carta, pensativa. Viu-a roer a unha
do dedo polegar. Os olhos dela iam percorrendo as sondas marcadas
ao longo da linha a lápis desenhada por Coy, que se prolongava por
quase uma vintena de milhas. Alguns dos números que indicavam a
profundidade estavam acompanhados por uma inicial: A, L, P...
Fundos de areia e de lodo, com algumas rochas. Demasiada areia,
demasiado lodo, pensava ele. Em dois séculos e meio, esses fundos
podiam cobrir muitas coisas.
— Julgo que será suficiente — disse ela. — Quarenta chegarão.
Gostaria de saber onde vai buscar semelhante segurança, pensou ele.
A única coisa garantida no mar — Coy dizia às vezes a mar, como
muitos marinheiros de língua espanhola, ao referir-se às suas
qualidades físicas, mas nunca lhe ocorrera atribuir-lhe um carácter
feminino — era não haver ali nada garantido. Se conseguissem fazer
bem as coisas e estivar a carga de forma correcta, pôr a amura
adequada ao mau tempo, moderar máquinas e não se atravessar com
ondas de rebentação e vento superior a nove na escala de Beaufort, o
velho e mal-humorado bastardo podia chegar a tolerar intrusos. Mas
não havia desafio possível. À força, ele vencia sempre.
— Não acho que esteja muito mais fundo — referiu Tânger.
Parecia ter-se esquecido completamente de Zas e da sua casa de
pernas para o ar, observou Coy, assombrado. Olhava concentrada
para as escalas com graus, minutos e décimas de minuto que
contornavam as cartas, e ele admirou uma vez mais aquela aparente
força de vontade. Ouvia-a pronunciar palavras precisas, sem alardes
nem rodeios supérfluos. Que me cortem os tomates se isto é normal,
disse para consigo. Nenhuma mulher, nenhum homem que eu
conheça, podem ser tão senhores de si como ela aparenta. Está
acossada, acabam de fazer-lhe um aviso sinistro, e continua toda
ufana, fazendo rabiscos numa carta náutica. Ou é uma esquizofréflica,
ou lá como se diz, ou é uma mulher extraordinária. De qualquer
forma, é óbvio que consegue. Que é capaz, depois de tudo o que
passou, de estar aqui de lápis e compasso de pontas na mão com o
sangue-frio de um cirurgião manipulando um bisturi. Talvez, no fim
de contas, a razão radique em que realmente é ela quem acossa. E
Nino Palermo, o anão melancólico, o motorista berbere, a secretária e
eu próprio não passamos de comparsas, ou vítimas.
Procurou concentrar-se na carta. Estabelecida a latitude com] o
paralelo horizontal que esta indicava, restava agora situar a longitude,
o ponto em que esse paralelo cortava o meridiano correspondente. A
questão era averiguar qual era o meridiano. Convencionalmente, do
mesmo modo que a linha do equador constituía o paralelo zero para
calcular a latitude para norte ou para sul, o meridiano universalmente
considerado como 0o era o de Greenwich. A longitude náutica
estabelecia-se também em graus, minutos e segundos ou décimas de
minuto, contando 180° para a esquerda de Greenwich para a
longitude oeste e 180° para a direita para a longitude este. O problema
era nem sempre ter sido Greenwich a referência universal.
— A longitude parece evidente — respondeu Tânger — 4 graus 51
minutos este.
— Eu não acho que seja tão evidente. Em 1767 os Espanhóis não
usavam Greenwich como primeiro meridiano...
— Claro que não. Primeiro foi o da ilha de Hierro, mas depois cada
país acabou usando o seu. Não se unificou em torno de Greenwich até
1884. Por isso, a carta de Urrutia, impressa em 1751, traz quatro
escalas de longitude diferentes: Paris, Tenerife, Cádis e Cartagena.
— Vejam só! — Coy olhava para ela com respeito. — Sabes muito
disto. Quase mais do que eu.
— Tratei de estudar. É o meu trabalho. Se procurares bem, podes
encontrar tudo nos livros.
Coy manteve-se em silêncio, mas tinha as suas dúvidas. Tinha lido
sobre o mar durante toda a sua vida, e nunca encontrara ali nada
sobre o grito de angústia de uma toninha que salta na água com o
flanco arrancado pela dentada de uma orca. Nem sobre a noite mais
curta da sua vida, com a aurora iniciando-se encadeada ao crepúsculo
no horizonte avermelhado da enseada de Oulu, a poucas milhas do
círculo polar árctico. Nem sobre o canto dos kroomen, os estivadores
pretos, no castelo de proa em noite de lua, diante de Pointe-Noire, no
Gabão, com os porões e a coberta cheios de troncos empilhados de
ocumé e cajueiro. Nem sobre o estrépito aterrador de um Cantábrico
onde céu e mar se confundem sob uma cortina de espuma cinzenta,
depressões de catorze metros e vento de oitenta nós, com as ondas
deformando os contentores, acorrentados na coberta como se fossem
de papel, antes de os arrancarem, levando-os borda fora; a tripulação
de vigia amarrada em qualquer sítio da ponte, aterrada, e os restantes
nos camarotes, rolando pelo chão contra as portas, vomitando como
porcos. Era como o jazz, no fim de contas: os improvisos de Duke
Ellington, o saxofone-tenor de John Coltrane ou a bateria de Elvin
Jones. Sobre isso também não se podia ler nos livros.
Tânger tinha desdobrado uma carta oceânica de pequena escala,
muito mais geral do que as outras, e marcava nela linhas verticais
imaginárias.
— Paris não pode ser — disse. — Esse meridiano passa pelas
Baleares, e nesse caso o barco ter-se-ia afundado a meio caminho entre
a Espanha e a Itália... Tenerife também não, pois situá-lo-ia em pleno
Atlântico. Assim, à primeira vista, restam Cádis e Cartagena...
— Cartagena não é — disse Coy.
Podia avaliá-lo com uma simples vista de olhos. Caso tivesse
afundado quase cinco graus a este desse meridiano, o Dei Gloria tê-lo-
ia feito demasiado longe, quase duzentas e cinquenta milhas para
vante, em fundos — aproximou-se um pouco da carta — de três mil
metros.
— Então, só pode ser Cádis — determinou ela. — Encontraram o
ajudante de piloto no dia seguinte, umas seis milhas a sul de
Cartagena. Calculando a longitude a partir daí, tudo coincide. A
perseguição. A distância.
Coy olhou para a carta, tentando estabelecer por cálculo a deriva
do náufrago no seu bote. Calculou distância, vento, correntes,
abatimento, antes de fazer um gesto afirmativo. Seis milhas era uma
distância lógica.
— Nesse caso — concluiu — o vento teria rodado para noroeste.
— É possível. Na sua declaração, o ajudante de piloto disse que o
vento mudou de direcção ao amanhecer... Isso é normal na zona?
— Sim. Os ventos de sudeste, que ali chamamos levante, mantêm-
se com frequência durante a tarde e às vezes também à noite, como
aconteceu, conforme dizes, no caso da perseguição do Dei Gloria. No
Inverno, o vento costuma rodar mais tarde para noroeste para vir de
terra pela manhã... Um vento de poente ou um mistral podiam tê-lo
empurrado para sudeste.
Observou-a de soslaio. Voltava a roer a unha do polegar com os
olhos cravados na carta. Coy deixou cair o lápis, que rolou sobre o
papel. Sorria.
— Além disso — disse —, temos de descartar tudo o que não se
ajusta à tua hipótese... Não é verdade?
— Não se trata da minha hipótese. O normal era calcularem a
longitude segundo o meridiano de Cádis. Repara.
Desdobrou, com estalido de papel, uma das reproduções da carta
de Urrutia que trouxera nessa manhã do Museu Naval. Depois, com
os seus dedos de unhas rombas, foi apontando o traçado vertical dos
diferentes meridianos, enquanto explicava a Coy que Cádis, primeiro
no observatório da cidade e mais tarde no de San Fernando, tinha sido
o meridiano principal usado pelos marinheiros espanhóis na segunda
metade do século XVIII e em boa parte do século XIX. Mas o
meridiano de San Fernando só começou a ser utilizado em 1801. De
modo que a referência em 1767 era ainda a linha de pólo a pólo que
passava pelo observatório situado no castelo dos guardas-marinhas de
Cádis.
— De modo que é natural o capitão do Dei Gloria ter utilizado
Cádis como meridiano para medir a longitude. Repara. Dessa forma,
todos os valores encaixam, especialmente aqueles 4 graus 51 minutos
que o ajudante de piloto deu como sendo a última posição conhecida
do Dei Gloria. Se contarmos do meridiano de Cádis para este, o ponto
do naufrágio fica situado aqui, vês?... Neste sítio, a este de Punta
Calnegre e a sul de Mazarrón.
Coy observou a carta. Não era a zona pior. Era relativamente
abrigada e perto da costa.
— Isso é no Urrutia — disse. — E nas cartas modernas?
— Aí as coisas complicam-se para nós porque, na época em que
Urrutia elaborou o seu Atlas Marítimo, a longitude estabelecia-se com
uma precisão menor que a latitude. Ainda não se tinha aperfeiçoado o
cronometro marítimo que permitiu calculá-la de uma forma exacta.
Por isso, os erros de longitude são mais apreciáveis. .. O cabo de
Paios, onde tu de imediato deste conta de um erro de alguns minutos
na latitude, está, no que se refere à longitude 0 graus 41,3 minutos a
oeste do meridiano de Greenwich. Para o situar relativamente ao
meridiano de Cádis nas cartas modernas é necessário subtrair essa
cifra da diferença de longitude que existe entre Cádis e Greenwich...
Não é verdade?
Coy concordou, divertido e expectante. Tânger não só tinha a lição
bem estudada, como conseguia calcular graus e minutos com a
desenvoltura de um marinheiro. Ele próprio teria sido incapaz de
memorizar aqueles dados. Compreendeu que ela precisava dele mais
para os aspectos práticos e para confirmar os seus próprios cálculos
do que para qualquer outra coisa. Não era a mesma coisa navegar em
cima de um papel, num quinto andar, diante da Estação de Atocha, ou
estar no mar, no convés oscilante de um barco. Prestou atenção às
anotações a lápis que ela fazia num bloco.
— Isso dá-nos — explicou Tânger — 5 graus 50 minutos de
situação de Paios relativamente ao meridiano de Cádis, nas cartas
modernas. Mas na carta de Urrutia, a situação é de 5 graus 34
minutos, vês?... Temos, então, uma margem de erro de dois minutos
de latitude e de dezasseis de longitude. Repara. Usei as tabelas
correctoras que figuram nas Aplicações de Cartografia Histórica de
Néstor Perona... Utilizando-as ao longo da costa, de Cádis ao cabo,
permitem situar cada posição do Urrutia relativamente a Cádis em
posições actuais relativamente a Greenwich.
A luz do crepúsculo já se retirara para as paredes e para o tecto do
aposento, enchendo a mesa de ângulos de sombras, e ela interrompeu
o que fazia para acender um candeeiro que reflectiu a sua luz no
centro da carta. Depois cruzou os braços e ficou a olhar para o traçado.
— Aplicando as correcções, a posição a este do meridiano de
Cádis, que o ajudante de piloto atribuiu ao Dei Gloria, estaria nas
cartas modernas no Io 21 minutos a oeste de Greenwich.
Evidentemente, não é de todo exacta, e teríamos nesse lugar uma
margem de erro razoável: um rectângulo de uma milha de altura por
duas de largura. É a nossa área de busca.
— Não é demasiado pequena?
— Tu próprio o referiste outro dia: sem dúvida ter-se-ão situado,
tirando azimutes a terra. Com a sua própria carta e uma bússola, isso
permite-nos afinar.
— Não é tão fácil. A sua agulha padrão podia ter erros, ignoramos
se nessa época era muita a declinação magnética, pode ter havi-do
uma leitura precipitada... Muitas coisas podem invalidar os teus
cálculos. Nada garante que irão coincidir com os deles.
— É preciso tentar, não é?... Disso se trata.
Coy estudou o lugar da carta, tentando traduzir aquilo em água do
mar. Calculava uma zona de busca de seis a dez quilómetros
quadrados. Uma tarefa difícil, caso as águas estivessem turvas ou o
tempo tivesse depositado demasiado lodo e areia sobre os restos do
Dei Gloria. Explorar a zona podia exigir-lhes, no mínimo, um mês.
Usou o compasso de pontas no Urrutia para calcular a longitude este
relativamente a Cádis, passou-a depois para a carta moderna 463A, a
fim de a transformar em longitude oeste de Greenwich e voltou
depois a transferir a estimativa para o Urrutia. Consultou as tabelas de
correcção feitas por Tânger. Continuava tudo dentro de margens
aceitáveis.
— Talvez possa fazer-se — disse.
Tânger não tinha perdido pitada dos movimentos dele. Agarrou
num lápis para traçar um rectângulo sobre a 463 A.
— A ideia é que o Dei Gloria está nalgum lugar dessa área. A uma
profundidade que vai dos vinte aos cinquenta metros.
— Que tipo de fundo tem?... Suponho que terás visto isso. Ela
sorriu antes de desdobrar uma carta de navegação costeira de média
escala, a nº 4631, correspondente ao golfo de Mazarrón desde Punta
Calnegre a Punta Negra. Coy reparou que se tratava de uma edição
recente, com correcções por avisos aos navegantes, datados daquele
mesmo ano. A escala era muito grande e pormenorizada, e cada sonda
era acompanhada pela sua correspondente descrição do fundo. Era o
que de mais preciso podia encontrar-se dessa zona.
— Lodo arenoso e alguma rocha. De acordo com as referências,
bastante limpo.
Coy levou o compasso de pontas na escala das latitudes,
calculando novamente a área. Uma milha por duas, diante de Punta
Negra e da Cueva de los Lobos. Considerando que nesse sítio um
minuto de longitude equivalia a 0,8 milhas, o sector ficava definido
entre 1 graus 19,5 minutos oeste e 1 graus 22 minutos oeste, e entre 37°
31,5 minutos norte e 37° 32,5 minutos norte. Observava com prazer a
costa ocre familiar, as franjas azuladas clareando nas extremidades à
medida que se escalonavam afastando-se da costa. Comparou aqueles
desenhos com as suas próprias recordações, situando mentalmente
referências de montanhas terra adentro, nas curvas de nível
topográfico que se concentravam no cabeço de Las Víboras, no cabeço
de Los Pájaros e no Morro Blanco.
— Tudo isto é muito relativo — disse passado algum tempo. —
Não teremos a certeza de nada até estarmos no mar, situando-nos com
as cartas e com as marcações que fizemos em terra... É inútil definir
daqui a área de busca. Até agora não temos mais do que um
rectângulo imaginário desenhado num papel.
— Quanto tempo demoraríamos a explorar isso? -Nós?
— Claro. — Ela fez a pausa precisa. — Tu e eu.
Outra vez aquele tu e eu. Coy mal esboçou um sorriso. Abanava a
cabeça.
— Precisaremos de mais alguém — disse. — Precisamos do Piloto.
— O teu amigo?
— Esse mesmo. E já escorreu mais água das camisolas dele do que
aquela em que eu naveguei em toda a minha vida.
Pediu-lhe que lhe falasse dele e Coy fê-lo muito por alto, ainda
com aquele meio sorriso ao recordar-se. Falou rapidamente da sua
juventude, do Cemitério dos Barcos Sem Nome, do primeiro cigarro e
do marinheiro queimado e magro, de cabelo prematuramente
grisalho, dos mergulhos à procura de ânforas, das saídas piscatórias
ao anoitecer ou ao amanhecer, ou da observação das lulas que iam
dormir a terra na Punta de La Podadera. E do Piloto, do seu odre de
vinho, do seu tabaco escuro e do seu barco balançando na ondulação.
Ou talvez não tenha falado tanto como julgou razê-lo, e se tenha
limitado a referir, conciso, alguns episódios desconexos, e as suas
lembranças tenham feito o resto, atropelando-se naquele meio sorriso.
E Tânger, que o olhava atenta sem perder uma expressão ou uma
palavra, compreendeu o que aquele nome significava para Coy.
— Disseste que tem um barco.
— O Carpanta, um veleiro de catorze metros, com poço central,
coberta à popa, motor de sessenta cavalos e compressor para garrafas
de ar.
— Achas que o alugaria?
— Fá-lo de vez em quando. Tem de viver.
— Refiro-me a nós. A ti e a mim.
— Claro. Até afundaria o barco se eu lhe pedisse. — Pensou um
pouco. — Bom, afundá-lo talvez não. Mas qualquer outra coisa, com
certeza.
— Oxalá não cobre muito. — Parecia inquieta. — Nesta primeira
fase, os recursos são escassos. Trata-se das minhas poupanças.
— Conseguiremos — tranquilizou-a Coy. — De qualquer forma, se
o barco está à profundidade que tu dizes, a equipa de busca será
mínima... Uma boa sonda de pesca e um aquaplano a reboque, que se
constrói com uma tábua de madeira e cinquenta metros de cabo,
devem bastar.
— Perfeito.
Não perguntou se o amigo dele era de fiar. Limitava-se a olhar
para ele como se a sua palavra fosse uma garantia.
— Além disso — disse Coy —, o Piloto foi mergulhador
profissional. Se lhe garantires um salário adequado para cobrir as
despesas e uma parte razoável se houver lucros, podemos contar com
ele.
— Evidentemente que o garanto. Quanto a ti...
Olhou-a nos olhos, esperando que prosseguisse, mas ela emudeceu
sustendo o seu olhar. Também há uma faísca de sorriso aí dentro,
disse para consigo. Ela também sorri, talvez porque agora tem dois
marinheiros e um barco e um rectângulo de uma milha por duas
traçado a lápis numa carta náutica. Ou talvez...
— Sobre mim falaremos depois — disse Coy. — Por agora, arcas
com os meus gastos, não é verdade?
Continuava imóvel, olhando-o com a mesma expressão e com
aquela luzinha que parecia bailar no fundo das suas íris azul-
marinhas. É só um efeito da luz, pensou ele. Talvez seja o entardecer,
ou o reflexo do candeeiro aceso.
— Claro — disse ela.
Decidiu ficar a dormir, e fê-lo sem que nenhum dos dois
pronunciasse demasiadas palavras a esse respeito. Trabalharam até
muito tarde e, por fim, ela esticou os cotovelos para trás, rodou o
pescoço como se lhe doessem as cervicais e dirigiu a Coy um pequeno
sorriso, fatigada e distante, como se tudo o que tivessem sob o cone de
luz do candeeiro de mesa — as cartas de navegação, as notas, os
cálculos — deixasse de lhe interessar. Então disse, estou cansada e não
aguento mais, levantando-se e olhando à sua volta com estranheza,
como se tivesse esquecido onde estava. De repente, os seus olhos
ficaram imóveis e escureceram quando se deteve no sítio onde tinha
estado o cadáver de Zas. Nessa altura pareceu recordar-se e, de súbito,
tal como quem entreabre uma porta por descuido, Coy viu-a
cambalear, apenas alguns milímetros, e conseguiu captar o arrepio
que lhe percorreu a pele como se uma corrente de ar tivesse acabado
de entrar pela janela: a mão apoiada num canto da mesa, o olhar
desamparado que vagueou pelo aposento, procurando onde abrigar-
se até se recompor, precisamente antes de chegar a Coy. Nessa altura
já parecia novamente senhora de si própria. Mas ele já tinha aberto a
boca para sugerir posso ficar aqui se quiseres, ou talvez seja melhor
não te deixar sozinha esta noite, ou alguma coisa do género. Ficou
assim, com a boca aberta, porque nesse momento ela encolheu os
ombros quase interrogante, olhando para ele. Então, manteve-se
calado um pouco mais, e ela repetiu o gesto, a forma deliberada de
encolher os ombros que parecia reservar para as perguntas cuja
resposta lhe era indiferente. Depois, ele disse talvez deva ficar, e ela
respondeu sim, claro, em voz baixa e com a frieza de sempre, e
abanou afirmativamente a cabeça como se considerasse adequada a
sugestão, antes de sair pela porta do quarto de dormir para trazer um
saco-cama militar: um verdadeiro saco-cama do exército, verde, que
estendeu no sofá, colocando por baixo um assento a fazer de
almofada. Depois, em poucas palavras, explicou onde era a porta da
casa de banho e onde tinha uma toalha limpa antes de se retirar e
fechar a porta.
Lá em baixo, ao longe, entre a escuridão que se estendia no outro
lado da estação, as luzes duradouras dos comboios deslocavam-se
enganosamente devagar. Coy dirigiu-se à janela e ficou ali quieto,
olhando para a claridade mortiça dos bairros mais afastados, para as
luzes da rua aos seus pés, para os faróis dos poucos carros que
transitavam pela avenida deserta. O cartaz do posto de gasolina
estava aceso mas não viu ninguém, além do empregado que saía da
sua guarita para atender um automobilista. Nem o anão melancólico
nem o caçador de naufrágios estavam à vista.
Ela tinha deixado música na aparelhagem. Era uma melodia muito
lenta e triste que Coy nunca tinha ouvido. Foi até lá e olhou para a
capa do disco: Après La pluie. Ignorava tudo sobre aquele E. Satie —
talvez fosse amigo de Justine —, mas o título pareceu-lhe apropriado.
A música fazia pensar no convés húmido de um barco imóvel num
mar cinzento e em calma, ainda visíveis na água os círculos
concêntricos das últimas gotas de chuva, pequenas ondulações
parecidas ao roçar de medusas à superfície ou minúsculas ondas de
um radar, e em alguém que olhava para tudo isso com as mãos
apoiadas numa amurada molhada, enquanto nuvens sombrias se
afastavam, negras e baixas, na linha do horizonte.
Sentia-se nostálgico, quando levantou os olhos procurando
inutilmente uma estrela. A claridade da cidade cobria o céu. Colocou
uma mão em pala para baixo e, quando os seus olhos se habituaram,
conseguiu ver algumas, débeis pontinhos luminosos à distância. Sobre
as cidades, quando era possível distinguir alguma, as estrelas
pareciam sempre mortiças, diferentes, desprovidas de brilho e de
significado. Sobre o mar, no entanto, eram referências úteis, caminhos
e companhia. Coy tinha passado longas horas de vigia em alto mar, de
cotovelos apoiados numa das asas da ponte, vendo desaparecer, na
Primavera, Sírius e as sete Plêiades no céu vespertino ocidental, para
depois aparecerem, no Verão, no outro lado da noite, no céu matutino
de levante. Devia, inclusivamente, a vida às estrelas. E durante uma
breve e intensa etapa da sua juventude, até o ajudaram a evitar a
prisão de Haifa. Porque, numa lúgubre madrugada de Agosto,
estando prestes a entrar em águas libanesas a bordo do Otago, um
pequeno cargueiro que navegava de Lárnaca para Sídon, sem luzes
para enganar o bloqueio israelita, antes de dobrar o farol de Ziri —
um relâmpago cada três segundos, visível a seis milhas — Coy tinha
avistado, enquanto aguardava o aparecimento de Castor e Pólux a
oriente do horizonte, a silhueta negra de uma lancha em fiscalização,
de vigia a coberto da linha escura, diante da costa para a qual se
dirigiam. O barco, 3000 toneladas com bandeira da Monróvia com
armador espanhol, capitão norueguês e tripulação grega e espanhola,
que oficialmente transportava sal entre Torrevieja, Trieste e Pireu,
tinha estado imóvel durante algum tempo até o capitão Raufoss, com
os binóculos nocturnos na cara e blasfemando entre dentes em
viquingue, confirmar essa história da lancha em fiscalização. Depois
deu a volta devagar, leme todo a estibordo, máquinas devagar a vante
e nem um cigarro aceso a bordo, afastando-se discretamente na
escuridão, eco não identificado no radar israelita, com rumo de
regresso ao cabo Greco. E a agudeza visual de Coy, nessa altura jovem
segundo-piloto com a tinta do cargo ainda fresca, tinha sido
recompensada por Raufoss com uma garrafa de cerveja Balvenie e
uma palmada nas costas da qual se ressentiu durante uma semana.
Sigur Raufoss tinha sido o seu primeiro capitão como oficial: largo,
sanguíneo, ruivo, excelente marinheiro. Como a maior parte dos
homens da sua nacionalidade, não possuía a arrogância dos capitães
ingleses e superava-os em competência profissional. Não se fiava nos
pilotos ainda sem cabelos brancos, era capaz de fazer passar o seu
barco pelo buraco de uma agulha, e nunca estava sóbrio ancorado
nem ébrio navegando. Coy fez com ele trezentos e sete dias de mar no
Mediterrâneo, mudando depois de barco mesmo a tempo, duas
viagens antes de a sorte ter acabado para o capitão Raufoss.
Transportando sucata a granel de Valência para Marselha, soltou-se-
lhe a carga a meio de um mistral de Inverno, com força dez, no golfo
de León. Deu a volta indo ao fundo com quinze homens lá dentro,
sem deixar qualquer rasto além de uma mensagem de emergência
captada pela rádio costeira de Mont Saint-Loup através do canal
dezasseis VHF: Otago em 42° 25 minutos norte e 3 graus 53,5 minutos
este. De capa no mar com forte abatimento. Mayday, mayday. Depois,
nem um vestígio flutuante, nem um salva-vidas, nem uma bóia. Nada.
Só o silêncio e o mar impassível que esconde os seus segredos há
séculos.
Olhou para o relógio, ainda não era meia-noite. A porta do quarto
de Tânger estava fechada e a música acabara. Coy sentiu o silêncio
que vinha depois da chuva. Deu alguns passos pelo aposento, sem
rumo definido, observando os Tintins nas prateleiras, os livros
alinhados, o postal de Antuérpia, a taça de prata, a fotografia
emoldurada. Já dissemos anteriormente que ele não era um tipo
brilhante e que o sabia, com a consciência agravada pelo seu estado de
espírito relativamente a Tânger Soto. No entanto, conservava um
sentido de humor particular, aquela facilidade natural para troçar de
si próprio ou da sua falta de jeito; um fatalismo mediterrânico que lhe
permitia tirar o melhor partido de qualquer situação. Essa consciência,
ou certeza, é natural que o tornasse circunstancialmente menos
estúpido do que qualquer outro homem teria sido numa situação
idêntica. Além disso, o hábito de observar o céu, o mar e o ecrã do
radar à procura de sinais para interpretar, tinha acentuado nele um
certo tipo de instintos, ou intuições tácticas. Nesse contexto, os
indícios à vista naquela casa pareciam-lhe cheios de significados.
Eram, determinou, marcos reveladores de uma biografia rectilínea,
sólida, desprovida de fendas na aparência. E, no entanto, alguns
daqueles objectos, ou o ângulo frágil da sua proprietária que
revelavam como a parte visível de um icebergue, também podiam
inspirar ternura. Mas ao contrário das atitudes, das palavras e das
manobras que ela esgrimia para a obtenção dos seus fins, nas
pequenas pistas disseminadas pela casa, na sua relevância equívoca,
em todas as circunstâncias que tinham Coy por testemunha, actor e
vítima, era evidente a ausência de calculismo. Aqueles indícios não
estavam à vista deliberadamente. Eram parte de uma existência real e
tinham muito a ver com um passado, com recordações não explícitas,
mas que, sem dúvida, suportavam o resto, o vigamento e a aparência:
a criança, o soldado, os sonhos e a memória. Na moldura, a rapariga
loura sorria sob o braço protector do homem bronzeado da camisa
branca. E o sorriso tinha um parentesco óbvio com outros que Coy
conhecia nela, mesmo com os perigosos, mas também registava uma
manifesta frescura que a tornava diferente. Alguma coisa luminosa,
radiante, de vida cheia de possibilidades não descobertas, de
caminhos por percorrer, de felicidade possível e talvez provável. Era
como se naquela fotografia ela sorrisse pela primeira vez, da mesma
forma que o primeiro homem acordou no primeiro dia e viu à sua
volta o mundo recém-criado, quando estava tudo por viver partindo
de um único meridiano zero, e não existiam os telemóveis, nem as
marés negras, nem o vírus da sida, nem os turistas japoneses, nem os
polícias.
No fundo, era essa a questão. Eu também já sorri assim, pensou. E
aqueles modestos objectos disseminados pela casa, a taça amolgada, a
fotografia da rapariga coberta de sardas, eram os restos do naufrágio
daquele sorriso. Adivinhá-lo fez que alguma coisa lhe gotejasse no
íntimo, como se a música que já não soava escorregasse devagarinho
pelas suas entranhas humedecendo-lhe o coração. Então sentiu-se
desamparado, como se fosse ele e não Tânger quem sorria na
fotografia com o homem da camisa branca. Ninguém consegue
proteger alguém para sempre. Reconhecia-se naquela imagem, e isso
fê-lo sentir-se órfão, solidário, melancólico e furioso. Primeiro, foi um
sentimento de desolação pessoal, de extrema solidão que lhe subiu
pelo peito até à garganta e aos olhos. Depois, uma cólera pura,
intensa. Olhou para o lugar onde tinha estado Zas e depois os seus
olhos encontraram o cartão de Nino Palermo rasgado em pedaços em
cima da mesa. Ficou assim um tempo, imóvel. Depois consultou
novamente o relógio, juntou os pedaços e agarrou no telefone. Marcou
o número sem se apressar e, passado pouco tempo, ouviu a voz do
caçador de naufrágios. Estava no bar do seu hotel e, evidentemente,
teria muito gosto em encontrar-se com Coy dentro de quinze minutos.
O porteiro fardado estudou com desconfiança as suas sapatilhas
brancas e as calças de ganga coçadas sob o casaco de marinheiro
quando o viu franquear a porta dupla envidraçada, introduzindo-se
no vestíbulo do Palace. Nunca tinha lá estado, de modo que subiu os
degraus, atravessou-o pisando os tapetes e o chão de mármore branco
e parou um instante, indeciso. A direita havia uma grande tapeçaria
antiga e à esquerda a porta do bar. Continuou em frente até à rotunda
central e parou outra vez sob as colunas que circundavam o recinto.
Ao fundo, um pianista invisível tocava Cambalache, e a música diluía-
se no discreto rumor das conversas. Era tarde, mas havia gente em
quase todas as mesas e sofás. Gente bem vestida, casacos, gravatas,
senhoras com jóias, mulheres atraentes, empregados impecáveis que
se moviam silenciosamente. Um carrinho mostrava várias garrafas de
champanhe arrefecendo no gelo. Tudo muito elegante e correcto,
apreciou. Como no cinema.
Deu alguns passos na rotunda, fez caso omisso do empregado que
lhe perguntou se desejava uma mesa e dirigiu-se, leme a meio, rumo a
Nino Palermo, cujo perfil acabava de avistar num sofá, sob o grande
lustre central que pendia da cúpula envidraçada. Estava
acompanhado pela mesma secretária do leilão de Barcelona, agora
vestida de escuro, saia curta, pernas visíveis até meia coxa e
educadamente juntas nos joelhos, inclinadas obliquamente para um
lado, com sapatos de tacão alto. Manual da secretária perfeita em
serão com o chefe, secção indumentária, página cinco. Estava sentada
entre Palermo e dois indivíduos com aspecto nórdico. O caçador de
naufrágios não viu Coy até este estar muito perto dele. Nessa altura
pôs-se de pé, abotoando o casaco assertoado. O seu rabicho estava
apanhado com uma fita preta. Vestia um fato cinzento-antracite,
gravata de seda sobre camisa azul-clara, e os sapatos pretos, as
correntes de ouro e o relógio brilhavam muito mais do que o seu
sorriso. Também brilhou o anel com a moeda antiga, quando estendeu
a mão para apertar a de Coy.
— Folgo que se tenha tornado razoável — disse Palermo.
O tom amistoso gelou-se-lhe na boca a meio da frase, com a mão
inutilmente estendida. Olhou para ela um momento, surpreendido
por a ver assim vazia, e depois retirou-a devagar, desconcertado,
estudando interrogativamente o recém-chegado com os seus olhos
bicolores.
— Você foi demasiado longe — disse Coy.
A careta perplexa do outro intensificou-se de repente, arrogante.
— Continua com ela? — perguntou com frieza.
— Isso não lhe interessa.
Palermo parecia reflectir. Fez tenções de olhar de soslaio para os
dois homens que esperavam no sofá.
— Você ontem disse que estava... Não foi? Fora disto. E quando
telefonou há bocado... Valha-me Deus! Achei que aceitava trabalhar
para mim.
Coy reteve o ar nos pulmões. O outro tinha alguns palmos de
altura a mais e ele observava-o de baixo, com as mãos largas
pendendo-lhe de ambos os lados. Balançou-se um pouco sobre a
ponta dos pés.
— Você foi demasiado longe — repetiu.
A íris esverdeada estava mais dilatada que a parda, mas as duas
pareciam blocos de gelo. Palermo voltou a observar de soslaio os seus
acompanhantes. Agora torcia a boca, com desprezo.
— Não imaginei que viesse incomodar-me — disse. — Você... Um
palhaço, é o que é. Porta-se como um palhaço.
Coy abanou afirmativamente a cabeça por duas vezes. As mãos
tinham-se separado um pouco mais do corpo e sentia os músculos dos
ombros, braços e estômago tensos tal como nós de pescador bem
apertados. Palermo dera meia volta, como se quisesse terminar a
conversa.
— Vejo — disse — que aquela cabra o seduziu bem.
Dita a última palavra fez tenções de voltar ao sofá; mas não passou
disso, de uma intenção, porque Coy já tinha feito os seus cálculos com
rapidez e sabia que o outro era mais alto, não era fraco e não estava só,
e que é melhor bater num homem quando ainda está a falar porque os
seus reflexos são menores. De modo que se balançou novamente sobre
a ponta dos pés, devorou mentalmente uma lata de espinafres,
esboçou um sorriso rápido para tornar Palermo confiante e, no mesmo
impulso, assestou-lhe uma joelhada rápida nos testículos, tão brutal
que, um segundo depois, quando o outro se inclinava sobre o
estômago com o rosto congestionado e falta de ar, conseguiu atingi-lo
sem grande esforço com um segundo golpe, uma cabeçada no nariz
que estalou sob a sua testa como se alguém tivesse partido um móvel.
Tinha aprendido aquilo com precisão coreográfica durante uma
refrega no bairro marítimo de Hamburgo. O terceiro movimento, no
caso improvável de o adversário rabear, consistia em dar-lhe outra
joelhada na cara; e, para rematar, enchê-lo de porrada. Mas verificou
que não era necessário. Palermo tinha caído de joelhos, branco e
abatido como um saco de batatas, com a cara apoiada numa coxa de
Coy, manchando-lhe as calças de ganga com o sangue
escandalosamente vermelho que lhe jorrava do nariz.
Depois, tudo se complicou diabolicamente em cinco segundos. A
secretária pôs-se a gritar atirando-se para trás no sofá, e perdeu a
compostura dando pontapés até mostrar as cuecas, que eram pretas.
Os dois estrangeiros, inicialmente estupefactos, levantaram-se para
socorrer o caído. Por outro lado, Coy viu pelo rabinho do olho como
todos os empregados da sala e alguns clientes se atiravam para cima
de si, antes de dar consigo a estrebuchar, agarrado por várias mãos
vigorosas que o levantavam pelo ar, arrastando-o para a porta como
se o fossem linchar diante do olhar indignado ou atónito de
empregados e clientes. As portas de vidro abriram-se, alguém gritou
alguma coisa sobre chamar a Polícia e, nesse momento, Coy viu
sucessivamente a fachada iluminada do edifício das Cortes, as luzes
verdes dos táxis estacionados à porta e, também, o anão melancólico
que o observava admirado do semáforo mais próximo. Não conseguiu
ver mais porque o tinham preso pela cabeça, mas ainda avistou a cara
endurecida do motorista berbere — toda a gente parecia estar no
Palace naquela noite — antes de sentir um furioso puxão de cabelo
que lhe atirou a cabeça para trás, e depois um, dois, três, quatro socos
profissionais no plexo solar que lhe cortaram a respiração de chofre.
Nessa altura caiu para o chão, com os pulmões vazios e abrindo a
boca como um peixe fora de água. LAA: Lei do Ar Ausente, ou nunca
estás quando preciso de ti. Daí ouviu uma sirene da Polícia e disse
para consigo: fizeste das boas, marinheiro. Desta vez levas seis anos e
um dia, e a pequena terá de mergulhar sozinha. Depois, após várias
tentativas infrutíferas, conseguiu respirar um pouco melhor, embora o
ar, que finalmente marcou presença, lhe doesse ao entrar e ao sair dos
pulmões. As costelas de baixo pareciam mover-se por conta própria, e
pensou que deveria ter alguma partida. Vida madrasta. Continuava
no chão, de barriga para baixo, e alguém lhe pôs umas algemas que
fizeram clique, clique nos pulsos, atrás das costas. Consolava-o o
pensamento de que Nino Palermo iria recordar-se de Tânger Soto,
dele e do pobre Zas cada vez que se olhasse ao espelho nos próximos
dias. Depois levantaram-no de repente e uma luz cintilante bateu-lhe
na cara. Sentia a falta do galego Neira, do Torpedeiro Tucumán e da
restante Tripulação Sanders. Mas eram outros tempos e outros portos.
VI - SOBRE CAVALEIROS E ESCUDEIROS

Há uma vasta variedade de adivinhas relativas a uma ilha onde alguns


habitantes dizem sempre a verdade e outros mentem sempre.
R. Smullyan. Como se Chama este Livro?

A cigana afastou-se depois de insistir ainda um pouco mais, e Coy


pensou, vendo-a partir, que talvez a devesse ter deixado ler-lhe a mão
e o futuro. Era uma mulher de meia-idade, com a cara morena sulcada
por uma infinidade de rugas, e que prendia o cabelo com uma
peineta(1) de prata. Grande, matrona, agitava a roda da saia ao
menear-se com graça, parando para oferecer raminhos de alecrim às
pessoas que passavam, a caminho da avenida ladeada de palmeiras
que percorria as traseiras do Castelo de Santa Catalina, em Cádis.
Antes de ir embora, despeitada pela recusa de Coy em aceitar um
pouco de alecrim a troco de algumas moedas ou permitir que lhe lesse
a sina, a cigana murmurara uma maldição, meio a brincar meio a
sério, que agora pusera este a matutar: só há uma viagem que farás
gratuitamente. Não era um marinheiro supersticioso — no tempo do
Meteosat e do GPS, poucos do seu ofício ainda o eram —, mas
conservava ainda algumas apreensões próprias da vida no mar.
Talvez por isso, quando a cigana desapareceu sob as palmeiras da
Avenida Duque de Nájera, Coy olhou com inquietação para a palma
da mão esquerda, antes de observar disfarçadamente Tânger que,
sentada na mesma mesa da esplanada, conversava com Lúcio
Gamboa, director do observatório de San Fernando, onde os três
tinham passado uma parte do dia. Gamboa era capitão de navio da
Armada mas vestia-se à paisana, com camisa aos quadrados, calças
caqui e umas alpergatas de lona muito velhas e desbotadas. Nada nele
denunciava a sua filiação castrense: gorducho, careca, loquaz, com
uma barba descuidada e grisalha e uns olhos claros de normando,
tinha um aspecto desmazelado e cordial. Falava há horas sem
demonstrar sinais de fadiga, enquanto Tânger fazia perguntas,
aprovava ou tomava notas.
*1. Peineta: pente convexo, hoje já pouco usado pelas mulheres
espanholas, que lhes segurava o cabelo servindo-lhes também de adorno. (N.
da T.)

Só há uma viagem que farás gratuitamente. Coy voltou a olhar


para as linhas da mão, dizendo uma vez mais para consigo que talvez
devesse ter deixado que a cigana as lesse. No caso de o prognóstico
não lhe agradar, pensou, podia sempre rectificar a seu gosto as linhas
com uma lâmina de barbear, como aquele marinheiro de papel e tinta,
Corto Maltese, alto, bonito e com o seu brinco de ouro na orelha, com
quem não se teria importado nada de parecer cada vez que via, fixos
nele, os olhos de Tânger. Olhos que às vezes deixavam de prestar
atenção às explicações de Gamboa para pousarem em Coy um
momento, inexpressivos, serenos, constatando que ele continuava ali e
que nada estava fora de controlo.
Sentiu uma pontada nas costelas baixas do lado esquerdo, ainda
doridas pelos punhos do motorista berbere. O incidente tinha-se
saldado por trinta e duas horas num calabouço do comissariado do
Retiro e uma denúncia da gerência por escândalo e agressão, que se
resolveria judicialmente nos próximos meses. Nada o impedia, por
isso, de viajar até Cádis com Tânger. Quanto a Nino Palermo, após
abandonar a clínica onde lhe foi efectuado um tratamento de urgência
ao nariz, que o corpo médico definiu como lesionado mas sem
fractura, tinha tido o cuidado de não recorrer aos seus advogados para
instaurar qualquer procedimento legal. Isto estava longe de ser
tranquilizador, pois, como disse Tânger, quando Coy saiu do
comissariado e a encontrou esperando-o à porta, Palermo era o tipo de
pessoa que não precisa de polícias ou de tribunais para resolver os
seus assuntos.
Tornou a estudar a mão. Ao contrário de Tânger, com aquela linha
longa e definida que lhe atravessava a mão, as suas linhas da vida e da
morte, do amor e do que diacho fosse todo o resto, entre-cruzavam-se
desordenadamente, em jeito de adriças de um veleiro depois de uma
manobra difícil com vento forte e ondulação, como se alguém as
tivesse agitado num copo de dados, atirando-as depois de qualquer
maneira. De modo que insinuou um sorriso no seu íntimo. Nem a
cigana mais perspicaz do mundo teria tirado a limpo o que quer que
fosse de tudo aquilo. As chaves da viagem, fosse grátis ou com
pagamento pontual do seu custo, não se escondiam nessas linhas, mas
no olhar que sentia pousar-se nele de vez em quando. Esse, concluiu
resignado, era o verdadeiro périplo que Atena lhe determinara.
Olhou para baixo da mesa. Tânger tinha as pernas cruzadas entre a
saia azul rodada, e balançava lentamente um dos pés calçados com
sandálias de cabedal. Observou os tornozelos pintalgados e depois o
perfil da mulher, que nesse momento se inclinava sobre o caderninho
onde tomava notas com a sua caneta de prata. Atrás dela, dourando-
lhe quase até ao branco as pontas recortadas do cabelo, o Sol estava
em declive a uma hora e meia do horizonte sobre o Atlântico, diante
da praia de La Caleta, exactamente entre os castelos que a limitavam
de um lado e do outro. Contemplou as velhas paredes com as ameias
vazias, as guaritas de cúpula esférica situadas nos ângulos, a marca
negra da água, que a preia-mar lambia nas pedras corroídas pela
ondulação. Mantendo uma distância prudente da restinga de San
Sebastián, uma vela movia-se devagar ao longe, em direcção ao norte,
empurrada pelo sudoeste fresquinho. Força cinco na escala de
Beaufort, calculou ao avistar os carneirinhos que eriçavam um pouco
o mar e levantavam pequenos salpicos de espuma sobre o istmo que
unia a terra firme ao castelo, com o enorme farol atrás das paredes
ameadas das antigas baterias. Céu e água estavam impecavelmente
azuis, de uma luminosidade que feria a vista, e rapidamente
começariam a tingir-se com os tons avermelhados que antecediam o
ocaso.
— Há algumas coisas — disse Gamboa — muito pouco usuais na
vossa história.
Coy deixou de contemplar o mar e prestou atenção. Tânger e o
director do observatório conheciam-se telefonicamente por motivos
profissionais.
Tinham ido vê-lo a San Fernando, assim que chegaram de Madrid,
de comboio até Sevilha e de carro alugado até Cádis, para que lhes
facultasse documentação sobre o Dei Gloria e o corsário Chergui e
lhes esclarecesse alguns pontos obscuros. Depois, Gamboa
acompanhou-os à zona velha da cidade, convidando-os para umas
tortilhas de camarões no Ca Felipe, na Calle de La Palma, onde o peixe
fresco era exposto aos clientes debaixo do cartaz: Quase todos estes
peixes actuaram como figurantes nos filmes do comandante Cousteau.
Tinham acabado diante do mar, naquela esplanada de La Caleta.
— Oxalá fosse só algumas coisas — suspirou Tânger. Gamboa, que
fumava um cigarro, riu-se, e os olhos nórdicos infantilizaram-lhe o
rosto barbudo. Tinha os dentes desiguais, amarelados pela nicotina,
com os incisivos bastante separados um do outro. Possuía um riso
fácil, ria-se por qualquer coisa e abanava a cabeça de cima para baixo
ao fazê-lo, como se qualquer pretexto fosse bom. Apesar dos seus
preconceitos de marinheiro da marinha mercante a respeito da
Armada, Coy gostou de Gamboa. Mesmo a sua forma amável,
desenvolta, de namoriscar Tânger — um gesto, um olhar, a maneira
como lhe oferecia os cigarros que ela recusava — era inofensiva,
simpática. Quando o visitaram ao fim da manhã no seu gabinete do
observatório, Gamboa também se riu com agrado ao descobrir, disse-o
sem rodeios, como era bonita a colega de Madrid com quem até essa
altura só mantivera, para sua desgraça, contactos telefónicos e
epistolares. Depois observou Coy atentamente antes de lhe apertar
demoradamente a mão, como se o contacto lhe permitisse calcular o
género de relação que podia existir entre a sua colega do Museu Naval
e aquele inesperado indivíduo silencioso, baixo e espadaúdo, de mãos
grandes e andar desajeitado, que a escoltava. Ela limitara-se a
apresentá-lo como um amigo que a ajudava na parte técnica do
problema. Um marinheiro com muito tempo livre.
— Esse bergantim — prosseguiu Gamboa — vinha da América
sem escolta... E é estranho, porque devido aos Ingleses, aos corsários e
aos piratas, as ordenanças mandavam que qualquer navio mercante
atravessasse o Atlântico em comboio.
Falava quase sempre dirigindo-se à rapariga, embora por vezes se
voltasse para Coy para evitar, talvez, que se sentisse deslocado.
Suponho que não te importas, dizia o gesto. Não sei qual o teu
papel nesta história, camarada, mas suponho que não te incomodas
que fale com ela e lhe sorria. Compreende, estão de visita por pouco
tempo e ela é atraente. Marinheiro com tempo livre ou em
exclusividade, ou o que quer que sejas, ignoro o que há entre os dois,
mas só quero apreciá-la um pouco. Algumas cervejas e umas risotas,
já sabes, para carregar as baterias. Ah! Ah! É o que penso cobrar-vos
pelos meus serviços. Dentro de pouco tempo será novamente toda tua,
ou o que calhar, e poderás continuar a tentar a tua sorte. No fim de
contas, a vida é breve e só de vez em quando nos põe pela frente
mulheres como esta. Pelo menos a mim não mas põe.
— Havia paz com a Inglaterra nesse momento — comentou
Tânger. — Talvez a escolta não fosse necessária.
Gamboa, que acabava de acender o seu enésimo cigarro, deixou o
fumo sair por entre os incisivos e fez um gesto de concordância. Além
da sua categoria de militar, era historiador naval. Antes de ser
destacado para o observatório tinha estado encarregado do
património histórico da marinha em Cádis.
— Pode ser uma explicação — admitiu. — Mas continuo a achar
estranho... Em 1767, Cádis tinha o monopólio do comércio americano.
Só onze anos depois é que Carlos III, com a carta de liberalização
comercial, alterou a norma segundo a qual Cádis era o único porto a
que se podia chegar em rumo directo desde a América... De modo que
a viagem desse bergantim desde Havana pecou por alguma
ilegalidade, se levarmos as ordens reais à letra. Ou, pelo menos, por
alguma irregularidade — deu duas longas passas no cigarro,
pensativo. — O normal é que antes de seguir viagem para Valência,
ou qualquer que fosse o seu destino final, tivesse feito escala aqui —
outra passa. — E, pelos vistos, não o fez.
Tânger tinha uma resposta para isso. De facto, Coy já se apercebera
disso, ela parecia ter respostas para quase tudo. Era como se, mais do
que indagar novos dados, tentasse confirmar os velhos.
— O Dei Gloria — explicou ela — beneficiava de um estatuto
especial. Não te esqueças de que pertencia aos jesuítas e de que estes
conservavam alguns privilégios. Os seus barcos tinham isen-Ções
particulares, navegavam para a América e para as Filipinas com
capitães, pilotos, roteiros e cartas náuticas da Companhia, e
rodeavam-se daquilo que hoje poderíamos chamar opacidade fiscal...
Essa foi uma das questões que se moveram contra eles no processo de
expulsão que se preparava em segredo. Gamboa ouvia-a bastante
atento.
— Com que então, os jesuítas, eh?
— Exactamente.
— Isso explicaria várias coisas inexplicáveis.
Ela passou muitas horas, disse Coy para consigo, nessa casa que
conheço, diante da linha férrea da Estação de Atocha, dando voltas a
isso. Passou dias e meses deitada naquela cama que, por vezes,
entrevi, sentada diante da mesa repleta de livros e de documentos,
juntando os cabos na sua cabeça impassível, como quem joga xadrez
com os movimentos seguintes previstos de antemão. Traçando rumos
que nos incluem a todos. Estou convencido de que esta conversa, este
tipo barbudo e sorridente, esta paisagem de La Caleta, e talvez mesmo
a hora da maré alta e da maré baixa, já os calculou com antecipação. A
única coisa que se limita a fazer agora é preparar bem o barco,
esmiuçar até ao último pormenor antes de se fazer ao mar. Porque ela
é das que não se esquecem de nada em terra. Talvez nunca tenha
navegado, mas tenho a certeza de que na sua imaginação já desceu
dezenas de vezes aos destroços do Dei Gloria.
— De qualquer forma — disse Gamboa — é uma pena não
dispormos de mais documentação — voltou-se um pouco na direcção
de Coy. — ...O arquivo de Cádis é o único que não foi enviado para o
Arquivo Geral da Marinha de Viso del Marquês, onde se
centralizaram quase todos os documentos importantes que havia em
El Ferrol e Cartagena, posteriores aos conservados no Arquivo das
índias de Sevilha... Aqui, um almirante teimoso recusou separar-se
dele. Resultado: o fundo documental completo queimou-se num
incêndio, com todos os papéis dos séculos XVIII e XIX, incluindo
alguns mapas originais da cartografia de Tofino.
Chegado a esse ponto, Gamboa deu outra passa no cigarro e soltou
uma gargalhada jovial dirigida a Tânger.
— Não podia faltar, não é verdade? O incêndio da praxe. Ah! Ah!
Mas suponho que isso dá um encanto aventureiro ao teu trabalho.
— Nem tudo se perdeu — esclareceu ela.
— Nem tudo, efectivamente. Há alguns documentos perdidos por
aí. Mas ninguém sabe quais. Os planos do Dei Gloria, por exemplo,
estavam esquecidos num sítio inimaginável, sob pilhas de papéis
poeirentos, num paiol de instrumentos náuticos do arsenal de La
Carraca... Entre material de barcos desmantelados, diários de bordo,
cartas e uma infinidade de coisas por catalogar. Vi-os por acaso há
cerca de um ano, quando procurava outra coisa. E ao receber o teu
telefonema, lembrei-me... Foi uma sorte esse barco ter sido construído
aqui.
Na realidade, esclareceu Gamboa em atenção a Coy, não se tratava
dos planos do próprio Dei Gloria, mas do Loyola, seu irmão gémeo,
pois foram ambos construídos em Cádis entre 1760 e 1762, com pouco
tempo de diferença. A sorte, no entanto, não acompanhou nenhum
dos dois. Antes do seu irmão de estaleiro, o Loyola perdeu-se em 1763
durante um violento temporal, no lugar de Sancti Petri. Coisas da
vida: muito perto do sítio onde foi largado, apenas um ano antes.
Havia barcos com muito má sorte, como, sem dúvida, Coy sabia por
experiência profissional. E esses dois bergantins tinham má estrela.
Tinha proporcionado a Tânger uma cópia dos planos depois de
lhes mostrar as instalações do observatório, a fachada branca com as
colunas e a cúpula que resplandecia ao sol, os corredores caiados com
os antigos instrumentos em expositores, os livros de náutica e de
astronomia, a linha no chão que indicava o local exacto do meridiano
de Cádis, e a magnífica biblioteca de madeira escura e estantes
repletas. Aí, sobre uma mesa com expositor que continha obras de
Kepler, Newton e Galileu, a Viagem a América Meridional e as
Observações de Jorge Juan e António de Ulloa, e outros livros sobre as
expedições do século XVIII para medir um grau de meridiano,
Gamboa tinha aberto planos e documentos. Algumas cópias eram
destinadas a Tânger, e o resto, originais de difícil reprodução, foram
fotografados por ela, um após outro, com uma pequena máquina
fotográfica que tirou do saco de cabedal. Tinha gasto dois rolos de
trinta e seis fotografias, com o flash reflectindo-se nos quadros da
parede e no vidro dos expositores, enquanto Coy, por curiosidade
profissional, dava uma vista de olhos às antigas listas de efemérides
náuticas e aos instrumentos de precisão que havia em todo o lado,
vestígios do tempo em que o observatório de San Fernando era
referência necessária na Europa do Iluminismo: um octante Spen-cer,
um relógio Berthoud, um cronometro Jensen, um telescópio Dollond.
Quanto ao Dei Gloria, Coy teve-o à sua frente quando Gamboa, após
uma pausa premeditada e teatral, mostrou quatro planos à escala 1:55
que mandara fotocopiar para Tânger: um esbelto bergantim de trinta
metros de comprimento e oito de boca, com dois mastros, velas
quadrangulares, uma carangueja no mastro maior, e artilhado com
dez canhões de ferro de quatro libras. Estas cópias estavam agora à
frente deles, em cima da mesa da esplanada.
— Era um bom barco — disse Gamboa, contemplando a vela
distante que já tinha passado diante da praia e desaparecia para lá do
Castelo de Santa Catalina. — Como podem ver nos planos, de linhas
muito simples e fácil de manobrar. Um barco moderno para a sua
época, construído em coração de carvalho e teca, com o habitual
convés corrido e com os canhões sobre este, com cinco portalós em
cada bordo. Rápido e fiável. Se um chaveco conseguiu apanhá-lo, é
porque, sem dúvida, já sofrera muito durante a travessia do Atlântico.
Ah! Ah! Caso contrário... — agora o director do observatório olhava
para Tânger com uma atenção risonha. — Essa é outra das pontas do
mistério, não é verdade?... Porque não aportou em Cádis para
reparações.
Tânger não respondeu. Brincava com a sua caneta de prata,
abstraída nas cúpulas brancas da estância balnear que se erguia à
esquerda, em estacas sobre a praia.
— E o Chergui} — perguntou Coy.
Gamboa, que observava a rapariga, voltou-se lentamente. O que se
relacionava com o corsário era transparente, respondeu. E eles tinham
tido muita sorte, pois entre a nova documentação havia material
valioso. Como uma cópia da descrição do Chergui, cujo original tinha
localizado na Secção de Corso e Presas, do Viso del Marquês.
Infelizmente, não os planos desse barco, mas o de um chaveco de
características semelhantes, o Halconero, de comprimento, armamento
e aprestos idênticos.
— Ignoramos o lugar e ano da construção — explicou Gamboa,
tirando um papel dobrado do bolso da camisa —, embora saibamos
que operava usando Argel e Gibraltar como bases. Mas há descrições
pormenorizadas do seu aspecto, feitas pelas vítimas ou por gente que
se cruzou com ele durante as suas escalas ostentando pavilhão
britânico, que depois mudava de acordo com as suas conveniências,
pois os seus armadores eram, a meias, um maltês estabelecido em
Períón e um comerciante argelino... Existe escrituração documentada
das suas andanças entre 1759 e 1766. Mas o relatório mais minucioso
— o director do observatório consultou as notas que trazia no papel —
pertence a Dom Josef Mazarrasa, capitão do místico Podenco, que
conseguiu escapar de um chaveco que identificou como sendo o
Chergui em Setembro de 1766, após uma escaramuça por alturas de
Fuengirola. E, como esteve prestes a ser abordado, conseguiu observá-
lo, infelizmente, muito de perto. No castelo de proa estava um
europeu, descrição que pode coincidir com a do inglês conhecido
como Slyne, ou capitão Mizen, e a tripulação, numerosa, parecia ser
composta por mouros e europeus, estes últimos, sem dúvida, ingleses.
— Gamboa voltou a consultar as suas notas — ...O Chergui era um
chaveco de portalós e clássica meia coberta alta no castelo de popa,
com os mastros grande e de mezena aparelhados de polaca, e o
traquete com vela latina, bastante rápido entre os do seu tipo, com
cerca de trinta e cinco metros de comprimento e oito ou nove de boca.
Segundo o capitão Mazarrasa, a quem o recontro deixou cinco mortos
e oito feridos a bordo, o seu porte era de quatro canhões compridos de
seis libras, outros oito de quatro e, pelo menos, quatro morteiros. Ao
que parece tinha sido artilhado em Argel com boas peças de bronze,
antigas mas eficazes, de uma velha corveta francesa capturada, a
Flamme... Esse armamento tornava-o temível contra navios de menor
porte e linhas mais frágeis, como eram o Podenco e o Dei Gloria... No
caso de, efectivamente, se ter encontrado com este último.
— Tenho a certeza disso — disse Tânger. — Encontraram-se. Tinha
deixado de contemplar a estância balnear e franzia um pouco o
sobrolho, com um ar obstinado. Gamboa dobrou novamente o papel e
entregou-lho. Depois ergueu uma mão, como se não tivesse nada a
objectar.
— Nesse caso, o capitão do Dei Gloria devia ser um homem de
muita coragem. Aguentar a perseguição, não se refugiar em Cartagena
e travar combate com o Chergui penol a penol, não era qualquer um
que o fazia. E essa viagem sem escalas desde Havana... — estudou
Coy e depois a rapariga, sorrindo perspicaz. — Suponho que se trata
disso, não é verdade?
Coy encostou-se para trás na cadeira, de cujas costas pendia o seu
casaco. É a mim que perguntas isso?... revelava a sua expressão. É ela
que está ao comando.
— Há coisas que quero esclarecer — disse Tânger, após um breve
silêncio. — É tudo.
Guardava na sua carteira, com muito cuidado, o papel com as
notas. Gamboa dirigiu-lhe um olhar penetrante. Por um momento, a
expressão plácida do director do observatório pareceu perder a sua
inocência.
— Um bonito trabalho, de qualquer forma — insinuou, cauteloso.
— Além disso, talvez houvesse a bordo... Não sei.
Procurava o seu maço de cigarros no bolso das calças. Coy reparou
que empregava nisso mais tempo do que o necessário, como se tivesse
uma coisa na cabeça que hesitava contar.
— A verdade — acabou por dizer — é que nem o barco, nem o
rumo, nem a época são próprios de tesouros.
— Ninguém está a falar em tesouros — disse ela, muito
lentamente.
— Claro que não. Nino Palermo também não me falou disso.
Houve um silêncio. Até eles chegavam as vozes dos pescadores que,
ao pé da esplanada, no molhe, trabalhavam nos barcos varados ou
remavam entre as pequenas embarcações ancoradas de proa ao vento.
Um cão corria pela praia, perseguindo com latidos uma gaivota que
planou impassível antes de se afastar em direcção ao mar alto.
— Nino Palermo esteve aqui?
Tânger olhava para a gaivota a afastar-se, e a sua pergunta só
surgiu quando a ave já estava muito longe. Gamboa inclinava-se para
acender um novo cigarro, protegendo a chama do isqueiro com as
mãos em concha. A brisa levou o fumo por entre os seus dedos,
enquanto os seus olhos claros faiscavam, divertidos.
— Claro que esteve aqui. Ah! Ah! A puxar-me pela língua, como
vocês.
O vento sudoeste tinha aumentado alguns nós, calculou Coy. O
necessário para levantar salpicos de espuma no molhe que
acompanhava a antiga muralha sul da cidade. Gamboa contava a Sua
história devagar, divertindo-se dessa maneira. Era óbvio que lhe
agradava a companhia e que não tinha pressa. Fumava, andando entre
os seus dois acompanhantes, demorando-se de vez em quando para
passar os olhos pelo mar, pelas casas do Bairro de Vina, pelos
pescadores que, imóveis junto das suas canas presas entre as pedras,
contemplavam o Atlântico.
— Veio ver-me há coisa de um mês... Apareceu como aparecem
eles, tudo muito ambíguo, com muitas cortinas de fumo. Perguntando
pelo barco e pelo documento tal. Coisas diferentes que nos impedem
de fazer uma ideia exacta do que realmente procuram — às vezes
Gamboa sorria para Tânger e os seus incisivos separados acentuavam-
lhe a expressão. — Trouxe uma lista de compras bastante extensa e
nela, em oitavo ou nono lugar, camuflado entre outras coisas, estava o
Dei Gloria... Eu sabia que tu andavas atrás disso, porque tínhamos
falado várias vezes pelo telefone. E era evidente que Palermo ofegava
atrás de uma pista fresca.
Ficou calado, olhando para o peixe que se debatia na ponta de uma
linha de pesca. Um sargo. O pescador, um tipo magro de grandes
patilhas e camisola branca de alças, soltou-o delicadamente do anzol,
deitando-o para um balde, onde ficou a agitar-se, batendo debilmente
a cauda, entre outros reflexos de prata.
— O que lhe contaste do Dei Gloria} — perguntou Tânger.
O vento colava-lhe às coxas o tecido leve da saia e fazia esvoaçar o
colarinho da sua blusa entreaberta. Estava bastante favorecida, mas
não desempenhava a personagem de rapariga atraente, constatou
Coy. Nem a de desamparada. Parecia serena, competente. Franca, de
igual para igual, com Gamboa: para que vamos enganar-nos entre nós,
colega, de parceiro para parceiro; somos funcionários num mundo
hostil, etc, o que posso contar que tu não saibas; a vida é dura e cada
qual navega como pode; evidentemente que te trarei informado; e
devo-te isso.
Era esperta, concluiu. Era muito esperta, ou talvez doentiamente
intuitiva, com um sentido rigoroso dos mecanismos que regem os
homens. Recordou o capitão-de-fragata do Museu Naval de Madrid, a
expressão dele ao falar com ela no corredor, diante do gabinete. Sem
dúvida um dos nossos, almirante. E saltava à vista que também com o
director do observatório as coisas funcionavam do mesmo modo. Um
dos nossos.
Agora Gamboa voltava a sorrir, como se a pergunta que ela tinha
formulado fosse escusada.
— Contei-lhe o necessário — disse. — Ou seja, nada. Se acreditou
em mim, isso já não sei... De qualquer forma, foi muito prudente a este
respeito — voltou-se um pouco para Coy, como se esperasse a
confirmação das suas palavras. — Suponho que conhece Nino
Palermo.
— Conhece-o bem — disse ela.
Demasiado rápida a concretizar, disse Coy para consigo.
Observava Tânger e ela estava consciente de que o fazia, porque
desviou, com uma atenção excessiva, os olhos na direcção do mar.
Talvez eu conheça Palermo, repetiu ele para si próprio, embora não
demasiado bem. Mas tu confirmaste-o um pouco depressa de mais,
linda. Confirmaste-o talvez um segundo antes do devido. E isso não é
bom. Não numa rapariga esperta como tu. Pena que nesta altura ainda
cometas esse tipo de erros. Ou que me tomes por tonto.
— Nem tanto — respondeu Coy a Gamboa. — Na realidade, não
conheço esse sujeito tanto quanto gostaria.
— Pois você deve ser o único neste ofício.
— Ele não é deste ofício — disse Tânger.
O director do observatório ficou a olhar para eles. Novamente
parecia reflectir sobre a relação existente entre eles os dois. Finalmente
dirigiu-se a Coy: — Gibraltino de pai maltês e mãe inglesa, ou seja,
tradição pirata completa. Conheço Palermo há muito, desde o tempo
em que eu trabalhava na ordenação dos arquivos do museu de
Cádis... Uma das tentativas de resgatar o Santísima Trinidad, talvez a
mais séria, foi feita por ele. O Trinidad foi no seu tempo o navio de
guerra maior do mundo, um navio de quatro pontes e cento e
quarenta canhões, que se afundou aquando da batalha de Trafalgar,
enquanto os Ingleses tentavam rebocá-lo para Gibraltar. — Apontou
para um ponto impreciso do mar, na direcção sudeste: — ... Está aí
mesmo, a pouca distância de Punta Camarinal. Queria consegui-lo,
como os Suecos conseguiram o Wasa ou os Ingleses o Mary Rose; mas
a tentativa, como a maior parte destas coisas, tropeçou com a falta de
entusiasmo da administração espanhola, que é...
— Como cão de moleiro... — comentou Tânger.
— Exacto. Nem come nem deixa comer.
Gamboa atirou o cigarro consumido para a espuma que batia nas
rochas do molhe, e continuou a contar. Palermo era uma
personalidade naquela zona, com aquele toque mafioso, tão
mediterrânico, Coy entendia com certeza ao que se estava a referir.
Marrocos estava perto, a poucas milhas, podia avistar-se de Gibraltar
e Tarifa nos dias claros. Aquela era a fronteira da Europa. Palermo
fundara Deadman's Chest há seis ou oito anos, e era conhecido pela
sua falta de escrúpulos. Tinha interesses em Ceuta, Marbella e
Sotogran-de, e trabalhava com gente perigosa de ambos os lados do
estreito, assessorado por um gabinete de advogados especialistas em
contrabando e sociedades fantasmas que lhe tiravam as castanhas do
fogo quando ele ia demasiado longe.
— Não se conseguiu provar, mas atribui-se-lhe, entre outros
desmandos, o saque clandestino dos restos do Nuestra Senora de
Cillas, um galeão de Veracruz que naufragou em 1675 na enseada de
Sanlúcar com um carregamento de lingotes de prata. — Gamboa
torceu o nariz. — Não era uma grande fortuna, mas, ao tirá-la, os seus
mergulhadores destruíram o barco, deixando-o imprestável para
qualquer resgate arqueológico sério... Atribuímos-lhe várias
canalhices desse tipo...
— É eficaz? — quis saber Coy.
— Palermo?... O mais eficaz possível! — Gamboa olhou para
Tânger como se esperasse que esta confirmasse as suas palavras, mas
ela permaneceu em silêncio. — ...Talvez o melhor dos que andam por
aqui. Trabalhou em naufrágios de todo o mundo, e fez dinheiro
combinando essa actividade com a recuperação e desmantelamento de
navios afundados... Há algum tempo, quis associar-se a um projecto
do pessoal de Fisher, com quem esteve a mergulhar no resgate do
Atocha. Pretendiam fazer uma série de operações na foz do
Guadalquivir, onde calcularam oitenta naufrágios de barcos que iam
descarregar a Sevilha com mais ouro lá dentro, ah! ah! que o Banco de
Espanha. Mas isto não é a Florida! Faltou a autorização oficial...
Também houve outros problemas. Palermo é dos que defendem a
doutrina clássica dos caçadores de tesouros: já que o trabalho é feito
por eles e o Estado só dá as licenças, oito décimas Partes do lucro
devem ser para os resgatadores. Mas em Madrid disseram que nem
pensar, e também não tiveram sorte com a Junta de Andaluzia.
Gamboa deliciava-se com a conversa. Era loquaz e era o seu
terreno. Esclareceu demoradamente Coy sobre o papel de Cádis na
história dos naufrágios. De 1500 a 1820, entre duas a três centenas de
barcos, contendo dez por cento do total de metais preciosos trazidos
da América, tinham-se afundado ali. As águas turvas, a areia e o lodo
que os cobriam e a desconfiança do Estado espanhol eram o problema.
A própria marinha, acrescentou com uma careta, tinha um bom
número de despojos perfeitamente localizados. Mas alguns velhos
almirantes consideravam os naufrágios tumbas que não deviam ser
violadas.
— Como decorreu a entrevista com Palermo? — perguntou Coy.
— Cordial e cautelosa de ambas as partes. — O director do
observatório estudou Tânger por um instante antes de se dirigir
novamente a Coy: — ...Conhece-o, deveras?
Coy, que caminhava com as mãos nos bolsos, encolheu os ombros.
— Ela exagerou um pouco. Na realidade, tratou-se de um contacto
superficial.
Gamboa olhava-o com atenção, interessado. , — Um contacto, eh?
— Sim.
— E, superficial, como?
— Pois isso mesmo — Coy encolheu os ombros outra vez. —
Limitado à superfície.
— Deu-lhe uma cabeçada no nariz — disse Tânger.
Tinha um meio sorriso, entre o cabelo dourado que a brisa do mar
lhe alvoroçava em volta da cara. Gamboa parara para poder observá-
los alternada e fixamente.
— No nariz?... Ora, ora, não me diga — agora dirigia-se a Coy com
um respeito renovado. — Tem de contar isso, camarada. Estou a
morrer de curiosidade!...
Coy contou-lhe em poucas palavras, sem floreados. Cão, hotel,
nariz, comissariado. Quando terminou, Gamboa estudava-o
pensativo, divertido, coçando a barba.
— Caramba! E, no entanto, mesmo para quem não conheça o seu
historial, Palermo é um homem perigoso... E, além disso, há aquele
olhar que nos desconcerta, porque não sabemos de que olho ocupar-
nos.
— Ficou novamente a olhar para Coy, como se avaliasse a sua
capacidade de bater nos narizes das pessoas. — ...Com que então, um
contacto superficial, não é verdade?...Ah! Ah! Superficial.
Riu-se ainda um pouco mais, enquanto Coy estudava Tânger e ela
sustinha o olhar, ainda com um sorriso na boca.
— Folgo que alguém tenha dado uma lição a esse cabrão arrogante
— acabou Gamboa por dizer, quando começaram novamente a andar.
—Já vos contei que apareceu por aqui como eles costumam fazer.
Fumo e pistas falsas: escolhos da Florida, Zahara de los Atunes, Sancti
Petri, baixios do Chapitel e do Diamante... Até a ria de Vigo e os seus
famosos galeões...
Tinham deixado o mar para trás e internavam-se pelas velhas ruas
perto da catedral, junto da torre de tijolo e dos muros da Igreja de
Santa Cruz. A praça baixava em declive, com um Cristo num nicho,
lampiões, sardinheiras e persianas nas varandas das casas muito
antigas, cuja cal, como a de quase toda a cidade, era descascada pelo
vento e pela humidade do mar próximo. Ali quase tudo eram
sombras, e a luz poente retirava-se sobre os telhados. O chão daquela
praça, contou Gamboa em honra de Coy, tinha sido empedrado com
pedras americanas: o lastro dos navios que faziam a rota das índias.
— Como disse — prosseguiu —, e voltando a Nino Palermo, eu
andava desconfiado... De modo que o deixei rondar sem lhe dar pistas
que valessem a pena.
— Agradeço-te — disse ela.
— Não foi só por ti. Esse velhaco já me trocou as voltas há tempos,
quando foi atrás do rasto das quatrocentas barras de ouro e prata,
embora outros falem de meio milhão de moedas de prata de oito reais,
do San Francisco Javier... Mas nestes casos, em vez de armar um
escândalo que não beneficia ninguém, o melhor é fazer de conta e
esperar. Ah! Ah! Há-de chegar a hora...
Andaram por entre os carros estacionados que dificultavam a
passagem, cruzando-se com alguns tipos de má catadura. A zona
fervilhava de tascas modestas cheias de pescadores desempregados,
fura-vidas e mendigos. Um jovem, de ténis e com um ar de quem
corria muito rapidamente os cem metros livres, seguiu-os durante
uma parte do trajecto, pendente da carteira de Tânger, até Coy se
voltar, pespegando-se a meio da rua com cara de poucos amigos e
fazendo o rapaz decidir mudar de ares. Prudente, Tânger mudou a
carteira de sítio. Agora colocou-a junto a um dos lados.
— O que te pediu Palermo, exactamente?
Gamboa parou para acender o cigarro que ela e Coy tinham
acabado de recusar. O fumo saiu através da sua mão em concha.
— O mesmo que tu. Procurava planos — guardou o isqueiro,
voltando-se para Coy. — Em qualquer trabalho sobre naufrágios, os
planos são importantíssimos. Com eles pode estudar-se a estrutura do
barco, calcular medidas e tudo o mais... Debaixo de água não é fácil
orientarmo-nos porque o que encontramos, ao contrário do que
acontece nos filmes, costuma ser um monte de madeiras podres,
muitas vezes cobertas de areia. Saber onde está a proa, ou a extensão
do convés, ou onde ficava o porão, já é um progresso notável. Com os
planos e uma fita métrica, lá em baixo uma pessoa pode governar a
vida razoavelmente — olhou intencionalmente para Tânger. —
...Evidentemente, consoante o que espera encontrar.
— Não se trata de procurar lá em baixo, em princípio — disse ela.
— Isto é só uma investigação. A fase operativa virá depois, se é que
vem.
Gamboa deixou sair um fiozinho de fumo por entre os seus
incisivos amarelos.
— Claro. Ah! Ah! A fase operativa — os olhos dele semicerravam-
se, maliciosos. — ... Qual era a carga do Dei Gloria?
Tânger também se riu com suavidade, pousando-lhe uma mão no
braço.
— Algodão, tabaco e açúcar de Havana. Sabes de sobra.
— Está bem. — Gamboa coçava a barba. — De qualquer forma, se
alguém localizar o barco e passar... Como disseste?... À fase operativa,
tudo depende também daquilo que se procura. Se são documentos ou
material perecível, não há nada a fazer.
— Evidentemente — disse ela, tão imperturbável como uma
jogadora de póquer.
— O papel molha-se, e plufe. Arrivederci.
— Claro.
Gamboa voltou a coçar-se antes de dar outra passa no cigarro.
— Com que então algodão, tabaco e açúcar de Havana, não é
verdade?...
O tom de voz era escarninho. Ela ergueu ambas as mãos, como
uma miúda inocente: — É o que diz a relação de embarque. Não é
uma maravilha, mas permite fazer uma ideia bastante aproximada.
— Tiveste sorte ao encontrá-la.
— Muita. Veio para Espanha com os papéis da evacuação de Cuba,
em 1898. Não para Cádis, onde se teria perdido no incêndio, mas para
El Ferrol. Daí passou para Viso del Marquês, onde pude consultá-la na
Secção de Navegação Mercantil.
— Tiveste muita sorte.
— Fui ver se encontrava alguma coisa e, de repente, apareceu-me
diante dos olhos. Barco, data, porto, carga, passageiros... Tudo.
Gamboa examinou-a intensamente.
— Ou quase tudo — zombou.
— O que é que o leva a pensar que há mais alguma coisa? —
perguntou Coy.
O outro sorria placidamente. Abanou a cabeça: — Eu não penso,
camarada. Limito-me a observar esta jovem senhora... E a constatar o
interesse de Nino Palermo no mesmo assunto. E também a dar-me
conta, porque estou nisto há anos e não nasci ontem, de que aquela
viagem Havana-Valência, sem escala em Cádis, por muito manifesto
havanês de carga que ela tenha visto em Viso del Marquês limpo de
pó e de palha, cheira a operação encoberta... E se levarmos a data em
consideração, e, por último, o armador que o fretava, a conclusão é
óbvia: havia gato no Dei Gloria. O que aquele corsário afundou era
tudo menos um barco inocente.
Dito isto, o director do observatório piscou um olho e riu-se
novamente, expelindo o fumo do cigarro entre o espaço dos dentes.
— Ela também não o é — acrescentou.
Olhava para Tânger. E nessa altura, Coy viu-a rir-se por sua vez,
tal como antes, com muita suavidade e com um ar inteligente,
misterioso e cúmplice. Gamboa não parecia minimamente
incomodado, mas divertido, tolerante relativamente a uma rapariga
travessa que por alguma razão gozava da sua simpatia. E Coy
verificou que, como em tantas outras coisas, ela também sabia rir da
forma adequada, de modo que voltou a sentir um vago despeito,
achando-se fora de tudo aquilo, deslocado e incómodo. Oxalá já
estivéssemos lá, pensou. No mar, longe de todos, a bordo de um barco
onde ela não tenha outro remédio senão olhar para mim durante todo
o tempo. Ela e eu. Procurando barras de ouro, lingotes de prata ou o
que lhe der na veneta.
Gamboa pareceu intuir a sua incomodidade, porque lhe dirigiu
uma careta amistosa: — Não sei o que ela procura — disse. — Nem
sequer sei se você saberá. Mas, de qualquer forma, poucas coisas
resistem dois séculos e meio na água. Os bichos xilófagos atacam a
madeira, o ferro corrói-se e cobre-se de aderências...
— E o que acontece ao ouro e à prata? Gamboa observou-o com
ronha: — Ela disse que não estava à procura disso.
Tânger ouvia em silêncio. Por um momento, os olhos de Coy
cruzaram-se com o seu olhar sereno, mas ela parecia indiferente à
conversa.
— O que acontece com eles? — insistiu.
— A vantagem do ouro e da prata — explicou Gamboa — é que o
mar os afecta muito pouco. A prata escurece, e o ouro... Bom. O ouro é
bastante gratificante nos naufrágios. Não se oxida, nem fica verde,
nem perde o brilho ou a cor. Tiramo-lo tal qual foi para o fundo —
deu outra piscadela de olho, interrompendo-se, e depois voltou-se
para Tânger. — ...Mas estamos a falar de tesouros, e isso já fia mais
fino, não é verdade?
— Ninguém falou de tesouros — disse ela.
— Claro, ninguém. Palermo também não o fez. Mas um abutre
como ele não se mexe por amor à arte.
— Isso é com Palermo, não comigo.
— Claro. Ah! Ah! — Gamboa, jovial, dirigia-se agora a Coy. —
Claro.
Callejón(2) de los Piratas, leu este de repente numa fachada.

*2. Callejón: azinhaga, beco. (N. da T.)

Aquela rua estreita e de paredes brancas deterioradas chamava-se


nada mais, nada menos que Callejón de los Piratas. Releu a inscrição
de azulejos, ainda incrédulo, confirmando que não se tratava de um
erro. Tinha estado em Cádis outras vezes, conhecia a zona do porto,
em especial os bares já desaparecidos da Calle Plocia, bastante
frequentados nos tempos da Tripulação Sanders, mas não esta parte
da cidade. Não aquele beco, indubitavelmente, cujo nome pitoresco
esteve quase a fazê-lo dar uma gargalhada. Embora não tão pitoresco,
afinal de contas. Nada mais adequado, raciocinou, para um sítio como
este e para um grupo como o seu: um marinheiro sem barco e uma
caçadora de tesouros na antiga Gadir fenícia, a cidade milenar de
onde tantos barcos e tantos homens tinham zarpado ano após ano,
século após século, para não mais voltar. Ao fim e ao cabo, fazia
sentido. Se os passos de piratas e corsários ressoavam sobre aquelas
pedras redondas e escuras, antigo lastro de barcos que traziam o ouro
da América, o fantasma do Dei Gloria e dos seus tripulantes perdidos
no fundo do mar, Tânger e ele próprio, talvez despertassem também
os ecos adequados. Talvez aquilo que parecia relegado para certas
páginas e imagens, território da infância, âmbito exclusivo dos sonhos,
ainda fosse possível de alguma forma. Ou talvez o fosse porque certo
tipo de sonhos continuava a espreitar entre sussurros de pedra e
papel, em lápides e velhas paredes carcomidas pelo tempo, em livros
que eram como portas abertas para a aventura, em maços de papéis
amarelados que podiam significar começos de viagens apaixonantes,
perigosas, capazes de multiplicar uma vida em mil vidas, com as suas
respectivas etapas Stevenson e Melville, e a sua inevitável etapa
Conrad. «Naveguei por oceanos e bibliotecas», lera uma vez, há muito
tempo, nalgum sítio. Também podia acontecer, simplesmente, que
tudo aquilo fosse abordável de uma forma determinada e não de
outra, porque uma mulher lhe dava sentido. E porque, a partir de um
dado momento, quando se dobrava esta ou aquela ponta de terra e
uma parte da vida de um homem ficava em franquia, uma mulher, a
mulher, era talvez o único motivo para olhar para trás. A única
tentação possível.
Olhou para Tânger, que caminhava no outro lado de Gamboa, com
a carteira presa debaixo do cotovelo, os olhos baixos, observando o
chão diante das suas sandálias de cabedal, alheia ao nome da rua
porque não precisava dele — ela pisava as suas próprias ruas — com
o cabelo ainda despenteado pela brisa do mar. O problema, disse para
consigo, é que a ciência náutica não serve para nada na hora de
navegar em terra, ou em redor de uma mulher. Não há cartas planas
ou esféricas que as descrevam. Depois perguntou a si próprio que
ouro procuraria Tânger, se o ouro mágico dos sonhos, ou o mais
concreto, metálico e amarelo, que sobrevivia inalterável ao tempo e
aos naufrágios.
— De qualquer forma — estava Gamboa a dizer, em atenção a Coy
—, qualquer resgate de objectos no mar é ilegal sem uma autorização
administrativa.
A legislação sobre barcos afundados, explicou seguidamente,
contemplava aspectos muito diversos: propriedade do barco e da sua
carga, direitos históricos, águas territoriais ou internacionais,
património cultural e outros pormenores. A Grã-Bretanha ou os
Estados Unidos costumavam ser permissivos para com a iniciativa
privada, mais orientada para o negócio do que para a cultura. O
princípio anglo-saxão, resumiu, consistia em «procura, encontra e
paga-me». Mas em Espanha, tal como em França, Grécia e Portugal, o
Estado era muito restritivo, com uma legislação que remontava ao
Direito Romano e ao código das Siete Partidas(3).
*- Tecnicamente — concluiu — resgatar sem licença um pedaço de
ânfora é delito. O próprio acto de procurar já o é.
Tinham chegado à praça da catedral, com as suas torres brancas e a
sua fachada neoclássica dominando o adro. Sob as palmeiras
passeavam casais de velhotes, mães com carrinhos de bebé, e crianças
que corriam entre as mesas das esplanadas próximas. A medida que a
última claridade ia desaparecendo, as pombas voavam para os beirais,
instalando-se para passarem a noite entre pilastras jónicas. Uma delas
esvoaçou muito perto da cara de Coy.
— Nesta fase não há problema — disse Tânger. — Investigar não
prejudica nada.
Gamboa mostrou os dentes amarelos noutro dos seus plácidos
sorrisos. Era evidente que estava a apreciar o seu bocado. A mim,
dizia a sua expressão, não me enganas. Com a minha idade e com a
rodagem que tenho...!

*3. Siete Partidas: legislação elaborada em Castela, no tempo de Afonso X,


o Sábio. (N. da T.)

— Claro que não — disse.


— Nada em absoluto.
— Foi o que eu disse.
Tânger deu alguns passos, imperturbável. Continuava pendente
do chão à sua frente. Coy observou a linha inclinada do pescoço dela,
a sua nuca. O seu aspecto enganosamente frágil. Quando se voltou
para Gamboa, viu que este o examinava com interesse.
— Talvez mais à frente — disse ela sem levantar a cabeça —, se
obtivermos resultados, possamos propor um plano de prospecções
sérias...
Coy ouviu Gamboa rindo-se baixinho. Continuava a olhar para ele.
— Isso se Palermo não se adiantar.
— Não se adiantará.
Passaram diante de um antigo casarão de paredes decrépitas, com
uma varanda de ferro oxidado sobre a porta principal. Coy leu a placa
de mármore aparafusada a uma parede: Faleceu nesta casa D.
Federico Gravina y Nápoli, capitão-geral da real armada, em
resultado da ferida que recebeu a bordo do navio Príncipe de Asturias
no memorável combate de Trafalgar...
— Adoro as raparigas seguras de si próprias — estava Gamboa a
dizer.
Coy voltou-se para o observar. Gamboa tinha falado para ele, não
para ela, e não gostou da ironia amistosa que os seus olhos de
normando insinuavam. Tu lá sabes no que te meteste, diziam. De
qualquer forma, saibas ou não, se eu estivesse no teu lugar, abria os
olhinhos, camarada. Ou seja: devagar a vante e com prumo de mão.
Aqui há poucas braças sob a quilha, rochas por todo o lado, e salta a
vista que esta mulher sabe o que procura, mas duvido que para ti isso
seja tão claro. Basta comparar as palavras dela e os teus silêncios.
Basta olhar para a tua cara e para a cara dela.
Tinham-se despedido de Gamboa e caminhavam pela zona velha
da cidade, procurando um sítio onde pudessem comer qualquer coisa.
O Sol escondera-se há já algum tempo, deixando um rasto de
claridade no oeste, atrás dos telhados, que desciam em escada na
direcção do Atlântico.
— Era este o lugar — disse Tânger.
Desde que estavam novamente sozinhos, a sua atitude parecia
diferente. Mais relaxada e natural, como se baixasse umas defesas
imaginárias. Agora conversava, parando de vez em quando para
indicar este ou aquele lugar, a carteira pendurada ao ombro e presa
com o cotovelo, a saia azul rodada oscilando à cadência dos seus
passos, pelos becos de paredes arruinadas. Quando se voltava para
olhá-la, ele via cintilar a luz indecisa dos candeeiros nas suas íris
escuras.
— Aqui ficava o castelo dos guardas-marinhas — disse ela.
Tinham parado numa rua inclinada que subia em direcção ao teatro
romano e à antiga muralha, junto de umas paredes arruinadas onde se
apoiavam colunas de pedra e dois arcos ogivais que já não
suportavam qualquer tecto. Havia um terceiro arco de volta inteira
um pouco mais acima, dando entrada a um beco estreito. Cheirava ao
ar salobro do mar vizinho, que podia ouvir-se batendo nas muralhas
atrás dos edifícios, e também a pedra antiga, a urina e a sujidade.
Cheirava, disse Coy para consigo, como os velhos recantos dos portos
em decadência, aqueles que ainda não eram iluminados por baterias
de luzes halogéneas na extremidade de torres de cimento, e por onde
a tecnologia e o plástico pareciam ter passado ao largo, atolando-os
em tempos mortos como a água imóvel ao pé dos molhes, entre gatos
e baldes de lixo, candeeiros avermelhados, pontas de cigarros na
sombra, garrafas partidas no chão, cocaína a bom preço, mulheres a
tanto o quarto de hora, cama à parte. Nem sequer o porto de Cádis, no
outro lado da cidade, tinha já nada a ver com tudo aquilo, e os antigos
bordéis e pensões eram ocupados agora por bares e pensões
respeitáveis. Não havia cascas de banana junto dos telheiros e das
gruas, nem tripulantes bêbados à procura do seu barco ao amanhecer,
nem patrulhas da Polícia Marítima, nem marinheiros ianques
apunhalados numa esquina. Esses cenários tinham sido transferidos
para outros lugares do mundo e, mesmo aí, as coisas eram diferentes.
Ainda restavam sítios como Buenaventura, com as suas ruas estreitas,
os seus quiosques de frutas, o bar Bamboo, os bordéis e as mestiças
com roupas tão justas e leves que pareciam pintadas sobre os seus
corpos. Ou Guayaquil, com os seus cocktails de lagostins e com as
iguanas trepando pelas árvores no centro da cidade, ao ritmo das
badaladas dos quatro relógios da catedral, e as aborrecidas rondas
nocturnas de guarda com uma lanterna e uma pistola de fulminantes
à cintura, prevendo os assaltos piratas. Mas essas eram as excepções.
Agora, na sua maior parte, os portos estavam longe do centro das
cidades e tinham-se transformado em descampados para estacionar
camiões. Os barcos atracavam o tempo necessário à descarga dos
contentores, e os marinheiros filipinos e ucranianos ficavam a bordo
vendo televisão, para pouparem.
— Onde temos agora os pés passava o primeiro meridiano de
Cádis — explicou Tânger. — Só se situou aqui de forma oficial
durante vinte anos, a partir de 1776, antes de ser deslocado para San
Fernando. Mas, desde meados do século, nas cartas de navegação
espanholas, substituía oficiosamente o meridiano tradicional da ilha
de Hierro, que os Franceses já tinham trocado por Paris e os Ingleses
por Greenwich... Isso significa que, se a longitude que naquela manhã
estabeleceram a bordo do Dei Gloria se referia a este lugar, o
bergantim afundou-se a 4 graus 51 minutos do sítio onde nos
encontramos agora. Se aplicarmos as correcções das tabelas de Perona,
exactamente a 5o 12', longitude este.
— Duzentas e cinquenta milhas — disse Coy.
— É isso.
Deram alguns passos, internando-se sob o arco. Um candeeiro com
o vidro partido derramava uma luz amarelada sobre uma janela
gradeada. No outro lado, a céu aberto, Coy conseguiu distinguir
restos de colunas e mais ruínas. Tudo tinha um aspecto de desolação e
abandono.
— Foi Jorge Juan quem fundou aqui o primeiro observatório
astronómico — disse ela. — Num torreão hoje desaparecido que
ficava ali, na esquina ocupada por este colégio...
Tinha falado em voz baixa, como se o lugar a intimidasse. Ou
talvez fosse a escuridão, atenuada apenas pelo candeeiro estragado.
— Este arco — prosseguiu — é tudo o que resta do velho castelo.
Construíram-no sobre o recinto de um antigo anfiteatro romano e
albergava a companhia de guardas-marinhas... Os seus Professores e
os encarregados do observatório eram marinheiros ilustrados, homens
de ciência: Jorge Juan e António de Ulloa tinham publicado os seus
trabalhos sobre a medição de um grau de meridiano no equador,
Mazarredo era um excelente táctico naval, Malaspina estava prestes a
realizar a sua famosa viagem, Tofino preparava-se para fazer o
levantamento do atlas hidrográfico definitivo das costas espanholas —
rodou sobre si própria, atenta ao que se passava à sua volta, e a sua
voz soou triste: — ...Tudo acabou em Trafalgar.
Internaram-se um pouco no beco. Havia roupa branca estendida lá
em cima, entre as varandas, como sudários imóveis na noite.
— Mas em 1767 — prosseguiu Tânger — este lugar tinha o seu
significado. Naquele tempo fecharam o colégio de navegação mantido
pelos jesuítas, e a biblioteca náutica do observatório enriqueceu-se
com os seus livros e com outros comprados em Paris e em Londres.
— Os livros desta manhã — disse Coy.
— Esses mesmo. Viste-os ali, nos seus expositores. Tratados de
navegação, de astronomia e viagens. Livros magníficos que ainda
escondem segredos.
As suas sombras tocavam-se na parede, entre os tijolos nus e as
velhas pedras. Uma gota de água de um lençol estendido caiu na cara
de Coy. Ergueu o rosto e viu uma estrela solitária brilhando
intensamente no rectângulo negro-azulado do céu. Pela hora e pela
posição calculou que podia tratar-se de Régulo, as garras dianteiras da
constelação do Leão, que nessa época do ano já devia ter atravessado
o eixo norte-sul.
— O castelo — continuava Tânger a contar — foi ocupado pelos
guardas-marinhas até serem transferidos para outro sítio e, mais
tarde, para a ilha de León, hoje San Fernando. Mas o observatório
continuou neste sítio durante mais alguns anos, até 1798. Nessa altura,
o meridiano de Cádis deixou de passar por aqui, deslocando-se vinte
quilómetros para este.
Coy tocou numa parede. O estuque desfez-se-lhe nos dedos.
— O que aconteceu ao castelo?
— Transformou-se num quartel e depois numa prisão. Por fim,
demoliram-no e dele restam apenas algumas velhas paredes e um
arco... Este arco.
Tinham voltado para trás e contemplavam novamente a abóbada
escura e baixa.
— O que procuras? — perguntou ele.
Ouviu o riso suave dela, entre as sombras que lhe velavam a cara.
— Já sabes. O Dei Gloria.
— Não me refiro a isso. Nem me refiro a tesouros e coisas assim...
O que pergunto é o que procuras tu.
Esperou pela resposta, que não veio. Ela calava-se, imóvel. No
outro lado do arco, os faróis de um automóvel iluminaram um trecho
da rua antes de se afastarem novamente. A claridade recortou por um
momento o perfil dela na parede sombria.
— Tu sabes o que procuro — acabou por dizer.
— Eu não sei nada — suspirou ele.
— Sabes. Vi-te observar a minha casa. Vi-te observares-me a mim.
— Não jogas limpo.
— E quem o faz?
Movera-se como se fosse afastar-se bruscamente, mas acabou por
permanecer quieta. Estava a um passo dele, que quase podia sentir a
calidez da sua pele.
— Há um velho enigma — acrescentou ela após um silêncio. —
...És bom a decifrar enigmas, Coy?
— Não muito.
— Eu sou. E este é um dos meus preferidos... Há uma ilha. Um
lugar habitado apenas por dois tipos de pessoas: cavaleiros e
escudeiros. Os escudeiros mentem e traem sempre, e os cavaleiros
nunca... Compreendes a situação?
— Claro. Cavaleiros e escudeiros. Entendo.
— Bom. Então, um habitante dessa ilha diz a outro: mentir-te-ei e
trair-te-ei... Compreendes? Mentir-te-ei e trair-te-ei. E a pergunta é: se
quem fala é cavaleiro ou escudeiro... Tu o que achas?
Coy coçou o nariz, perplexo.
— Não sei. Teria de pensar com calma.
— Claro — ela observava-o fixamente. — Pensa. Continuava muito
próxima. Coy sentiu formigueiros na ponta dos dedos. A voz saiu-lhe
rouca:
— O que queres de mim?
— Que respondas ao enigma.
— Não falo disso.
Tânger inclinou um pouco a cabeça. Encolhia os ombros.
— Quero ajuda — desviou os olhos. — Não consigo fazê-lo
sozinha.
— Há outros homens no mundo.
— Pode ser — fez uma longa pausa. — Mas tu possuis algumas
virtudes.
— Virtudes? — A palavra desconcertava-o. Tentou responder
alguma coisa, mas tinha a cabeça em branco. — Creio que...
E ficou-se por ali, com a boca entreaberta, franzindo o sobrolho na
sombra. Então Tânger falou novamente: — Não és pior do que a
maior parte dos homens que conheço. E, após uma curta pausa,
acrescentou: — .. .E és melhor que alguns deles.
Não é esta a conversa, pensou ele irritado. Não era essa a conversa
que queria manter naquele momento. Não era de todo e, na realidade,
decidiu que não queria manter conversa alguma. Era melhor estar
calado junto dela, pressentindo a calidez da sua carne pintalgada. Era
melhor abrigar-se a sotavento dos silêncios, embora essa, a do silêncio,
fosse uma linguagem que Tânger dominava muito melhor do que ele.
Uma linguagem que ela falava há milhares de anos.
Voltou-se, verificando que ela o observava. Tinha dois reflexos
azul-marinhos a meio do rosto, sob a mancha clara do cabelo.
— E tu o que queres, Coy?
— Talvez te queira a ti.
Sobreveio um longo silêncio, e ele descobriu que era mais fácil
dizê-lo assim, naquela penumbra que velava as caras e parecia
também velar as vozes. Era tão fácil que tinha ouvido as suas próprias
palavras antes de pensar sequer em pronunciá-las, e só se sentiu
depois um pouco perplexo consigo próprio. Um ligeiro rubor que,
sem dúvida, Tânger não via.
— És demasiado previsível — sussurrou ela.
Disse aquilo sem retroceder, imóvel mesmo, quando o viu
adiantar-se um pouco e erguer uma mão devagar até ao seu rosto.
Depois pronunciou o nome dele como uma advertência, como uma
cruzinha ou um pingo azul sobre o branco de uma carta náutica. Coy,
disse. E depois repetiu: Coy. Mas este abanou suavemente a cabeça,
de um lado para outro, de uma forma lenta e muito triste.
— Irei contigo até ao fim — disse ele.
— Eu sei.
Nesse momento, já prestes a roçar-lhe o cabelo, olhou por cima do
ombro dela e estacou. Uma silhueta miúda e vagamente familiar
recortava-se sob o arco, no fim do beco. Estava ali de pé, tranquila,
esperando. Nessa altura, os faróis de outro automóvel iluminaram
fugazmente a rua, a sombra oscilou sob o arco de parede a parede, e
Coy reconheceu sem dificuldade o anão melancólico.

VII - O DOBRÃO DE AHAB

Isso dirão na ressurreição, quando chegarem a pescar este velho mastro e


encontrarem um dobrão de ouro metido nele.
Herman Melville. Moby Dick

Quando o empregado do Restaurante-bar Terraza colocou a


cerveja em cima da mesa, Horacio Kiskoros levou-a aos lábios e deu
um gole prudente, olhando para Coy de soslaio. A espuma
embranquecia-lhe o bigode.
— Tinha sede — disse.
Depois deitou um olhar satisfeito à praça. A catedral estava agora
iluminada, as suas torres brancas e a grande cúpula do cruzeiro
sobressaíam na escuridão do céu. Ainda havia gente passeando sob as
palmeiras ou sentada nas esplanadas vizinhas. Um grupo de jovens
bebia cerveja e tocava viola na escadaria, sob a estátua de frei
Domingo de Silos. A música parecia interessar a Kiskoros que, de vez
em quando, observava o grupo e abanava a cabeça com um ar
nostálgico.
— Uma noite magnífica — acrescentou.
Coy apenas sabia o seu nome há um quarto de hora, e era difícil
acreditar que estavam ali sentados os três, bebendo como velhos
amigos. Nesse curto espaço, de tempo, o anão melancólico tinha
ganho nome, origem e personalidade própria. Chamava-se Horacio
Kiskoros, era de nacionalidade argentina e tinha, conforme disse
quando lhe foi possível fazê-lo, um assunto urgente a colocar à
consideração da dama e do cavalheiro. Todos esses pormenores não
surgiram de imediato, uma vez que o seu aparecimento inesperado
sob o arco dos guardas-marinhas precedeu uma reacção de Coy que
até a testemunha mais favorável teria qualificado de violenta. Para
sermos exactos, quando a oscilação da sombra sob os faróis do
automóvel lhe permitiu reconhecer a personagem, tinha ido direito a
ele sem mais formalidades e sem vacilar, nem sequer quando ouviu
Tânger pronunciar o seu nome atrás de si.
— Coy, por favor — chamava. — Espera.
Não esperou. Na realidade não queria esperar, nem saber por que
raios devia esperar, mas fazer exactamente aquilo que fez: dar oito ou
dez passos bombeando adrenalina, respirar fundo pelo caminho
algumas vezes, agarrar no outro pelos colarinhos e levá-lo de rastos
contra a parede mais próxima, à luz amarela do candeeiro.
Necessitava fazer isso com urgência, e não outra coisa. Necessitava
rebentar-lhe a cara aos murros antes que ele se esfumasse como
acontecera no posto de gasolina em Madrid. Por isso, ignorando as
palavras de Tânger, obrigou o outro a levantar-se nas pontas dos pés,
quase perdido o contacto com o solo, e, esborrachando-o contra a
parede com uma mão, levantou a outra com o punho fechado,
disposto a esmagá-lo na cara dele. Uma cara onde, entre o brilho do
cabelo esticado para trás com gel e o espesso bigode preto, um par de
olhos escuros e esbugalhados o examinavam fixamente. Já não
pareciam os de uma rãzinha simpática. Havia surpresa naqueles
olhos, pensou. Até uma censura pesarosa.
— Coy! — tornou ela a chamar.
Ouviu, em baixo, à esquerda, o clique da navalha de ponta e mola
e, ao olhar, viu o reflexo de aço despido num dos lados do corpo. Um
desagradável formigueiro percorreu as suas virilhas. Uma punhalada
de baixo para cima, àquela distância, era a pior maneira de terminar
tudo aquilo. Em semelhante posição, implicava o argumento
definitivo para soltar amarras sem viagem de volta. Mas já tinham
querido apunhalar Coy outras vezes, de modo que, por instinto, antes
sequer de se ver a reflectir sobre isso, desviou o corpo e deu uma
palmada no braço do outro, como se uma cobra lhe tivesse saído do
bolso.
— Vem aqui, cabrão — disse.
Mãos nuas diante da navalha. Aquilo soava bem. Evidentemente
que estava a fazer bluff, mas estava suficientemente irritado para o
manter. Tinha tirado o casaco da mesma forma que, uma vez, em
Port-au-Prince, o Torpedeiro Tucumán lhe ensinara: enrolando-o
algumas vezes em volta do braço esquerdo, esperando o seu
adversário com o corpo ligeiramente dobrado para a frente, o braço
com o casaco estendido para proteger o ventre, e o outro pronto para
bater. Estava furioso e sentia os músculos dos ombros e das costas
paralisados, tensos, duros de sangue latejando rápida e
compassadamente no seu interior. Como nos velhos tempos.
— Vem aqui — repetiu — Para te partir os cornos.
O outro segurava na navalha e não lhe tirava a vista de cima, mas
parecia perplexo. Com a sua baixa estatura, o cabelo e a roupa
desalinhados pela escaramuça e empalidecido por aquela luz amarela,
parecia a meio caminho entre o sinistro e o grotesco. Sem navalha,
concluiu Coy, não valeria nada. Viu como o fulano compunha um
pouco o blusão, puxando-o para baixo pela parte inferior, antes de
passar uma mão pelo cabelo, alisando-o para trás. Apoiou-se depois
sobre um pé e depois sobre o outro, ergueu um pouco o corpo e
baixou a mão armada.
— Negociemos — disse.
Coy calculou distâncias. Se conseguisse aproximar-se o bastante
para lhe dar um pontapé a meio das pernas, o anão ia negociar com a
puta que o pariu. Deslocou-se um pouco para o lado, e o outro
retrocedeu um passo, prudente. A lâmina metálica continuava a
brilhar na sua mão.
— Coy — chamou Tânger.
Aproximara-se por trás e estava agora ao seu lado. A voz soava
serena.
— Eu conheço-o — acrescentou ela.
Coy anuiu com um gesto breve da cabeça, sem deixar de vigiar o
outro e, no mesmo instante, atirou o pontapé que estava esperando e
que o da navalha só encaixou a meias, porque previu o movimento
pela metade e estava a afastar-se para o evitar. Mesmo assim foi
atingido num joelho e cambaleou, antes de rodar sobre si próprio,
apoiando-se à parede. Nessa altura, Coy aproveitou para se lançar a
ele, protegendo-se, primeiro, com o braço enrolado no casaco e,
depois, com um murro que atingiu o adversário na base do pescoço e
o fez cair de joelhos.
— Coy!
O grito aumentou a sua cólera. Tânger quis agarrá-lo por um braço
e ele sacudiu-o, violentamente. Para o caraças! Alguém tinha de pagar
e aquele tipo era a pessoa indicada. Mais tarde, ela poderia dar todas
as explicações que quisesse, explicações que não tinha a certeza de
querer ouvir. Enquanto lutasse não haveria ocasião para palavras, de
modo que atirou ao fulano um segundo pontapé, mas o outro girou
num palmo de terreno e Coy sentiu a navalha roçar-lhe, como um
raio, o braço envolto no casaco. Tinha menosprezado o anão,
compreendeu imediatamente. Era rápido, o tipo. E bastante perigoso.
De modo que retrocedeu dois passos e respirou um pouco, avaliando
a situação. Calma, marinheiro. Acalma-te ou nem sequer a lata de
espinafres te livrará desta. Não importa a estatura. Qualquer tipo, por
mais baixinho que seja, é suficientemente alto para cortar uma artéria.
Além do mais, vira uma vez um anão verdadeiro, autêntico, escocês,
com os dentes aferrados à orelha de um estivador enorme, que corria
fazendo uma gritaria pelo cais de Aberdeen sem conseguir arrancá-lo
de cima, como se fosse uma carraça. De modo que muito juizinho,
disse para consigo. Não há inimigos pequenos nem punhalada que
não lixe. Respirava sufocado e, entre inalação e exalação, ouvia o
ofegar agitado do outro. Nessa altura viu-o erguer a navalha, como se
a quisesse mostrar, e levantar, também devagar, a mão esquerda, com
a palma aberta, o gesto conciliador.
— Trago uma mensagem — disse o anão.
— Pois bem podes metê-la no cu.
O outro moveu um pouco a cabeça. Não me compreendeste bem,
dizia o gesto.
— Uma mensagem do senhor Palermo.
Então era isso. Reunião de velhos conhecidos. O clube social
completo dos caçadores de naufrágios. Aquilo explicava algumas
coisas e obscurecia outras. Inspirou uma, duas vezes, e deu um Passo
na direcção do seu adversário, o punho pronto para bater.
— Coy.
De repente, Tânger interpunha-se impedindo-lhe a passagem e
olhando-o fixamente. Estava muito séria, dura e firme como nunca a
vira antes.
Coy abriu a boca para protestar, mas ficou assim, contemplando-a
estupidamente. Subitamente acabrunhado. Indeciso, porque ela lhe
tocava na cara como quem tenta tranquilizar um animal furioso ou
uma criança fora de si. E, por cima do ombro dela, atrás das pontas
douradas do seu cabelo, viu que o anão melancólico fechava a
navalha.
Coy não tocou na sua cerveja. Com o casaco nos ombros, as mãos
nos bolsos e encostado às costas da cadeira, via beber o homem
sentado diante dele.
— Tinha muita sede — repetiu o outro.
No caminho do beco até à praça, depois de Tânger ter agarrado em
Coy até conseguir serená-lo e ele acabar por aceder mecanicamente,
com a sensação de estar a mover-se numa névoa irreal, o anão
melancólico alisara novamente o cabelo e compusera a indumentária.
Além de um leve rasgão no bolso superior do blusão, que tinha
descoberto com os olhos magoados e uma careta acusadora, voltava a
ter uma aparência respeitável, sempre um pouco excêntrica, com
aquele aspecto meridional e estrambolicamente inglês.
— Trago uma proposta do senhor Palermo. Uma proposta
razoável.
O seu sotaque de Buenos Aires era tão forte que parecia
propositado. Horacio Kiskoros, tinha dito quando as águas
regressaram ao seu leito. Horacio Kiskoros, ao seu serviço. Este último
sublinhado por uma leve inclinação de cabeça, num tom cortês
desprovido de ironia, quando ele e Coy estavam a recuperar o fôlego,
após a refrega. Expressava-se no espanhol escrupuloso e um pouco
anacrónico falado por alguns hispano-americanos, com palavras que,
deste lado do Atlântico, há muito tempo tinham caído em desuso.
Utilizava muito «senhor», «desculpe» e «teria a amabilidade de». O
caso é que tinha dito isso: ao seu serviço, enquanto passava as mãos
pela roupa desalinhada e endireitava o laço que a agitação arrastara
para um lado do pescoço. Sob o blusão usava uns curiosos
suspensórios com riscas verticais: duas azuis dos lados e uma branca
ao centro.
— O senhor Palermo quer chegar a um acordo.
Coy voltou-se para Tânger. Acompanhara-os calada durante todo
o tempo e agora continuava sem pronunciar uma palavra. Evitava,
verificou ele, olhar para a cara que apenas alguns minutos antes tocara
pela primeira vez. Talvez para não ser obrigada a dar explicações
inevitáveis.
— Um acordo — matizou Kiskoros — em termos razoáveis para
todos. — Examinou Coy e fez um gesto com o polegar para cima,
apontando o nariz para lhe recordar a cena do Palace. — Sem
rancores.
— Não há qualquer motivo para fazer acordos com alguém. Ela,
finalmente, falara. Tão fria, observou Coy, como se a voz se lhe
filtrasse entre pedrinhas de gelo. Olhava directamente para os olhos
esbugalhados e tristes de Kiskoros, com a mão direita apoiada na
mesa. O relógio de aço dava uma insólita aparência masculina aos
dedos longos, de unhas curtas e irregulares.
— Ele não é da mesma opinião — respondeu o argentino. —
Dispõe de recursos de que os senhores carecem: meios técnicos,
experiência... Dinheiro.
Um empregado trouxe uma travessa de lulas à romana e ovas
fritas e o anão melancólico agradeceu-lhe educadamente.
— Muito dinheiro — repetiu, examinando com interesse o
conteúdo da travessa.
— E o que espera em troca?
Kiskoros tinha agarrado num garfo e espetava-o delicadamente
numa rodela de lula.
— Você investigou bastante — mastigou deleitado o que tinha na
boca, até deixar de ter a boca cheia. — Possui dados valiosos, não é
verdade?... Pormenores que o senhor Palermo não conseguiu
localizar. Isso levou-o a pensar que uma associação seria bastante
agradável para ambas as partes.
— Não confio nele — disse Tânger.
— Ele também não confia em si. Poderão aliar-se.
— Ele nem sequer sabe o que estou a procurar.
Kiskoros parecia ter apetite. Tinha tentado a sorte com as ovas e
agora voltava às lulas entre uns golinhos de cerveja. Voltou-se um
pouco, ouvindo a viola que vinha da escadaria da catedral, e sorriu,
contente.
— Talvez saiba mais do que julga — disse. — Mas esses
pormenores devem ser discutidos com ele. Eu sou só um mensageiro,
como sabe.
Coy, que até essa altura não tinha aberto a boca, dirigiu-se a
Tânger: — Desde quando conheces este indivíduo?
Ela demorou três segundos exactos a voltar o rosto na direcção
dele. A mão sobre a mesa tinha fechado os dedos. Retirou-a devagar,
pousando-a no colo, em cima da saia.
— Há algum tempo — disse com muita calma. — A primeira vez
que Palermo me ameaçou, ele acompanhava-o.
— É verdade — confirmou Kiskoros.
— Tem estado a usá-lo para me pressionar.
— Isso também é verdade.
Coy não ligou ao argentino. Continuava pendente dela.
— Porque não mo contaste?
O suspiro de Tânger foi quase inaudível.
— Tu aceitaste jogar de acordo com as minhas regras.
— Que outras coisas não me contaste?
Ela olhou para a mesa e depois para a praça. Por fim, voltou-se
novamente para Kiskoros.
— O que propõe Palermo?
— Uma entrevista. — O argentino observou Coy antes de
prosseguir, e este julgou detectar um toque trocista nos seus olhos de
rã. — Negociar. Nos termos que você considerar adequados. Ele está
nestes dias no seu escritório em Gibraltar. — Tirou do bolso um
cartão, estendendo-o por cima da mesa. — Podem encontrá-lo aqui.
Coy levantou-se. Deixou o casaco pendurado nas costas da cadeira
e, sem olhar para um ou para o outro, pôs-se a caminhar pela praça,
na direcção da escadaria da catedral. Ardia-lhe o cérebro e,
encolerizado, crispava os punhos dentro dos bolsos. Sem ter intenção,
chegou perto do grupo de jovens que tocavam viola e que faziam
passar entre eles uma garrafa de cerveja. Havia duas jovenzinhas e
quatro rapazes, com ar de estudantes. O da viola era magro e bonito,
aciganado, com um cigarro consumindo-se no canto da boca. Uma das
raparigas acompanhava o compasso da música com movimentos de
cintura, apoiada no seu ombro. A outra reparou em Y, sorrindo-lhe.
Os restantes observaram-no com receio quando ela lhe passou a
garrafa. Bebeu um gole, agradeceu e ficou ali perto, limpando a boca
com as costas da mão, sentado num degrau da escadaria, ouvindo a
música. O guitarrista era desajeitado, mas a melodia soava bem
àquelas horas da noite, na praça quase vazia, com as palmeiras e a
catedral iluminada sobre as suas cabeças. Olhou para o chão. Tânger e
Kiskoros tinham abandonado a mesa do bar e aproximavam-se. Ela
trazia nos braços, dobrado, o casaco de Coy. Grande merda, pensou
ele. Estou metido até ao pescoço nesta merda.
— Bonita cidade — disse Kiskoros, observando os jovens com um
sorriso. — Faz-me lembrar Buenos Aires.
Tânger estava calada, em pé junto de Coy. Este não se levantou.
— Julgo que você é marinheiro, não é verdade? — prosseguiu o
outro. — ...Eu também fui. Marinha argentina. Sargento na reforma
Horacio Kiskoros — franzia o sobrolho com nostalgia, como que
atento a um som longínquo e familiar que lhe escapasse. — ...Também
estive nas Malvinas, com os mergulhadores militares.
— E que diacho fazes tão longe?
Os olhos esbugalhados intensificaram a sua melancolia. O tipo
metera uma mão no bolso das calças, revelando um pouco os
suspensórios e, de repente, Coy compreendeu o que significavam
aquelas riscas azuis e brancas: a bandeira argentina. Aquele filho da
puta usava uns suspensórios com a bandeira argentina.
— Algumas coisas mudaram na minha pátria.
Sentara-se ao pé de Coy, no mesmo degrau da escadaria. Antes de
o fazer, puxou um pouco para cima as joelheiras das calças, com
muito cuidado, para não deformar o vinco.
— Ouviu falar da guerra suja? Coy fez uma careta sarcástica.
— Claro. Os Tupamaros e tudo isso.
— Os Montoneros — Kiskoros especificava levantando um dedo.
— Os Tupamaros eram do Uruguai.
Ouviu-o suspirar, evocador. Impossível dizer se lamentava ou
sentia falta daquilo.
— O caso — acrescentou passado um momento — é que havia
uma guerra na Argentina, embora não fosse oficial. Compreende?...
Eu cumpri o meu trabalho. E há quem não admita isso.
— Não me digas! — disse Coy.
Kiskoros não parecia desanimado com a atitude do seu
interlocutor.
— Vi-me obrigado a viajar — prosseguiu. — Já disse que tinha
curriculum como mergulhador... Conheci o senhor Palermo durante
os trabalhos de resgate do Agamemnon, o barco de Nelson que se
afundou no rio da Prata.
Coy voltou-se, com dureza.
— A tua vida importa-me a ponta de um corno. Os olhos de
rãzinha pestanejaram, magoados.
— Bom, senhor. Há apenas uns momentos, naquele beco, estive
prestes a matá-lo. Achei que...
— Desaparece e que te fodam.
Kiskoros ficou calado, ruminando a grosseria. Coy levantou-se.
Tânger estava diante dele, observando-o.
— Matou o Zas — disse ela.
Houve um longo silêncio, enquanto Coy evocava no seu braço o
hálito quente do labrador. Lembrou-se — decorrera apenas uma
semana - do seu focinho húmido e do seu olhar fiel. Depois interpôs-
se, sombria, a imagem do cão imóvel em cima do tapete, com os olhos
vidrados e entreabertos. Aquilo fê-lo revolver-se por dentro, sentiu
uma estranha angústia e olhou em volta, incomodado, para as luzes
da catedral e para os candeeiros acesos. Ao lado, as notas da viola
pareciam escorregar pelos degraus da escadaria. A jovenzinha que lhe
sorrira beijava um dos rapazes. Outro colocou a garrafa de cerveja no
chão.
— Pois sim — Kiskoros levantava-se também, sacudindo as calças.
— E creia que o lamento, senhor. Aprecio... garanto-lhe. Aprecio os
animais domésticos. Tive mesmo um doberman.
Sobreveio mais silêncio. O argentino pôs uma cara de
circunstância.
— À minha maneira — insistiu —, continuo a ser um militar,
compreendem?... Tinha ordens. E isso incluía a casa da senhora.
Compunha um ricto triste, do estilo compreendam e tudo isso.
Mendieta, disse de súbito. O meu cão chamava-se Mendieta.
Enquanto isso, Coy dava uma vista de olhos à garrafa que continuava
ao lado dos seus pés, na escadaria. Durante um segundo deu consigo
a calcular as possibilidades de a partir na cara do outro. Ao erguer os
olhos encontrou os olhos melancólicos do argentino.
— Você é impulsivo, parece-me — disse Kiskoros numa voz
amável. — Isso traz problemas. A senhora, pelo contrário, parece mais
doce de carácter. De qualquer maneira, não é bom uma senhora andar
nestas embrulhadas... Lembro-me de um caso em Buenos Aires. Uma
montonera matou dois dos meus colegas quando fomos buscá-la.
Aquela miúda defendeu-se como uma loba, e só conseguimos acabar
com ela atirando-lhe granadas. Depois o que acontece é que tinha um
bebezinho escondido debaixo do colchão da cama...
Fez uma pausa e estalou a língua, evocador. Sob o bigode
porteno(1) espreitava uma careta que talvez fosse um sorriso.
— Há mulheres muito machas, garanto-lhe — prosseguiu. —
Embora mais tarde, na ESMA, serenassem bastante, já sabe ao que me
refiro — analisou Coy com atenção. — ...Não, acho que não sabe.
Estupendo. Talvez seja melhor assim.
Os olhos de Coy encontraram-se com os de Tânger, mas os dela
olhavam sem ver, como se acabassem de contemplar horrores
remotos. Passados alguns instantes, pareceram focar a realidade,
voltando a si, e neles ficou um vazio escuro. Viu-a apertar o seu casaco
contra o peito, como se de repente sentisse frio.
— A ESMA — disse ela — era a Escola de Mecânica da Armada...
O centro de tortura da marinha, durante a ditadura militar.
— Sim — admitiu Kiskoros, olhando em volta com um ar distraído
— Receio que alguns pacóvios o chamem dessa forma.
A bateria de Shelly Manne tinha introduzido suavemente Man m
Love, e Eddie Heywood ouvia-se já ao piano no primeiro solo. De pé,
com o tronco nu, apoiado na janela aberta do seu quarto no Hotel de
Francia y Paris, o espírito de Coy adiantava-se aos compassos da
melodia. Tinha colocado os auscultadores e abanava um pouco a
cabeça ao confirmar uma passagem esperada e grata.

*1. Porteno: relativo a Buenos Aires. (N. da T.)

Três andares abaixo, a pequena praça estava na sombra, com os


grandes lampiões apagados, escuras as copas das laranjeiras,
recolhido o toldo do Café Parisien. Tudo parecia deserto, e perguntou
a si próprio se Horacio Kiskoros continuaria a rondar por ali. Mas na
vida real os maus também descansam, pensou. Na vida real não
acontece como nos romances e nos filmes. Talvez nesse momento o
argentino roncasse a sono solto, nalgum hotel ou pensão próxima,
com os seus suspensórios cuidadosamente pendurados num cabide.
Sonhando com tempos felizes de entrecosto assado, Corrientes 348 (2)
e correntes de 1500 volts a cinquenta ciclos nas caves da ESMA.
Dong-dong, dong. Terminava o segundo solo, o do baixo, e Coy
aguardou expectante a entrada do terceiro, o saxofone-tenor de
Coleman Hawkins, que era o melhor daquela peça com os seus
tempos médios e rápidos, forte-leve, forte-leve, e as correspondentes
surpresas rítmicas quando essa cadência se quebrava de modo
esperadamente inesperado. Man in Love. Acaba de dar conta do título
e isso fá-lo sorrir às sombras da praça antes de passar os olhos pelo
tecto. Tânger estava ali, no quarto andar, no quarto exactamente em
cima do seu. Talvez dormisse, talvez não. Talvez estivesse como ele,
acordada à janela, ou sentada à mesa com as suas notas, revendo as
informações que Lúcio Gamboa lhes fornecera. Considerando os prós
e os contras da proposta de Nino Palermo.
Já tinham conversado. Fizeram-no demoradamente depois de
Horacio Kiskoros se despedir deles com um «até à vista», que teria
parecido amistoso a quem desconhecesse os antecedentes de que Coy
estava agora ao corrente. Tinham-no deixado com os seus olhinhos
enganadores de rãzinha melancólica vendo-os afastarem-se; e quando
estavam prestes a sair da praça, ele continuava ainda no mesmo sítio,
imóvel diante da catedral, como um turista noctívago e inofensivo.
Coy voltara-se para trás para o ver e depois levantou o rosto para ler o
letreiro da rua para onde se encaminhavam: Calle de La Compania(3).
Naquela cidade, disse para consigo, tudo eram sinais e símbolos e
marcas, tal como nas cartas náuticas.

*2. Corrientes 348: direcção de uma rua de Buenos Aires que um tango do
mesmo nome tornou famosa. (N. da T.) 3. Calle de La Compania: Rua da
Companhia (de Jesus). (N. da T.)

A diferença estava em que estas, as que se referiam ao mar, eram


muito mais precisas, com os seus baixios pintados e as suas escalas de
milhas nas margens, em vez de pedras velhas e encontros
aparentemente inesperados e letreiros com estranhos nomes de ruas
nas esquinas. Sem dúvida, sinais e perigos estavam nelas à vista, tal
como nas cartas impressas no papel, mas aqui faltavam sempre
códigos para as interpretar.
— Rua da Companhia de Jesus — dissera ela ao vê-lo olhar para o
nome. — Aqui ficava a escola de navegação dos jesuítas.
Nunca dizia nada de uma forma casual, de modo que Coy olhou
em volta, para o velho edifício à esquerda, para a decrépita Casa de
Gravina atrás, à direita. Suspeitava de que mais tarde precisaria, por
alguma razão, de recordar tudo aquilo. Depois tinham andado um
bocado sem dizer nada, subindo devagar até à Plaza de Las Flores.
Duas vezes se voltou para observá-la, e ela continuara a andar
impávida, com os olhos fixos em frente, a carteira presa a um lado,
compassados o baloiçar da saia azul e as pontas oscilantes do cabelo
junto ao queixo obstinado, a boca silenciosa, até ele a agarrar pelo
braço, fazendo-a parar. Para sua surpresa, ela não resistiu e deparou-
se de súbito com a cara dela, próxima, depois de se voltar com
suavidade, como se estivesse apenas à espera desse pretexto.
— Há muito tempo que Kiskoros me vigia por conta de Nino
Palermo — disse, sem que ele tivesse necessidade de perguntar nada.
— É um homem mau e perigoso...
Calou-se um momento, como que perguntando a si própria se
haveria mais alguma coisa para dizer.
— Há bocado, no arco dos guardas-marinhas — acrescentou —,
temi por ti.
Disse-o de uma forma concisa e seca, sem emoção. E depois de
dizer aquilo, ficou novamente calada, olhando por cima do ombro de
Coy na direcção da praça, dos quiosques de flores fechados e do
edifício dos Correios, das mesas dos cafés nas esquinas, onde se
demoravam os últimos fregueses do dia.
— Desde que foi visitar-me com Palermo — acabou por concluir
—, aquele homem tornou-se o meu pesadelo.
Não pretendia comover e, talvez por isso mesmo, Coy não pôde
deixar de se sentir comovido. Continuava a haver alguma coisa de
infantil, concluiu, naquela maturidade obstinada, no aprumo com que
ela encarava as consequências da sua aventura. Novamente, a
fotografia na moldura. Novamente, a taça de prata, a menina rodeada
pelo braço protector do homem desaparecido, o abandono nos olhos
que riam no umbral do tempo onde são possíveis todos os sonhos.
Continuava a reconhecê-la, apesar de tudo. Ou, para ser mais exacto,
quanto mais tempo passava junto dela, mais a reconhecia.
Reprimiu a carícia que sentia vibrar na ponta dos dedos e, com a
mesma mão, apontou para um bar que tinha atrás de si. Los Gallegos
Chico, chamava-se. Vinhos da terra, bebidas, bom café, admitem-se
comidas de fora: tudo isso anunciavam os letreiros sobre a porta e a
janela. Mas, naquele momento, a Coy bastava-lhe a palavra «bebidas»,
e compreendeu que ela precisava de um copo tanto quanto ele. De
modo que entraram. E, uma vez aí, de cotovelos em cima do balcão de
zinco, pediu uma genebra com água tónica para ele — não viu nada
azul em nenhum sítio — e, sem perguntar, outra para ela. A genebra
dava-lhe reflexos húmidos à boca quando o olhou e falou novamente,
quando contou minuciosamente a primeira visita de Palermo, branda
e amistosa, e a segunda, mais tarde, já com as cartas à mostra e a
presença sinistra de Kiskoros como adereço, as pressões e as ameaças.
Palermo tinha querido que ela identificasse bem o argentino, que
conhecesse a sua história e retivesse o seu aspecto e o seu rosto para,
mais tarde, ao encontrá-lo ao pé da janela, andando pela rua, ou nos
seus pesadelos ao fechar os olhos, recordasse permanentemente a
embrulhada em que se estava a meter. Para que soubesse, tinha dito o
caçador de tesouros, que as meninas más não podem atravessar o
bosque impunemente, sem se exporem a encontros perigosos.
— Foi isso que disse — o sorriso vago, um pouco amargo,
endurecia-lhe a boca. — Encontros perigosos.
Nesse momento, Coy, que ouvia e bebia em silêncio, interrompeu-
a para perguntar porque não fora à polícia. Então ela riu-se baixinho,
com um riso surdo, suavemente rouco, tão cheio de desdém como
vazio de humor. Na realidade, disse, eu sou, sim, uma rapariga má.
Tentei enganar Palermo, e em relação ao Museu, ajo por minha conta.
Se nesta altura ainda não te apercebeste disso, és mais inocente do que
eu pensava.
— Não sou inocente — respondera ele, pouco à vontade, fazendo
rodar o copo frio entre os dedos.
— De acordo — ela olhava-o nos olhos e a boca não sorria, mas
estava menos dura. — Não és.
Deixou a sua bebida praticamente sem tocar nela. Coy acabou a
genebra, chamou a atenção de um empregado e pôs uma nota em
cima da mesa. Uma das últimas, constatou desolado.
— Pagarão por tudo o que fizeram — disse.
Não tinha a mais pequena ideia de como iria cumprir aquela
declaração, nem de que forma podia ajudar. Mas achou adequado
dizê-lo. Há coisas, pensou, frases analgésicas, consolos, lugares-
comuns que se dizem nos filmes, e nos romances, e que servem
também para a própria vida. Dirigiu-lhe uma olhadela inquieta, de
soslaio, receando vê-la troçar. Mas ela mantinha a cabeça inclinada
para um lado, absorta nos seus próprios pensamentos.
— É-me indiferente que paguem ou não. Isto é uma corrida,
entendes?... A única coisa que me interessa é chegar lá antes deles.
O saxofone estava prestes a entrar. E Tânger era como o jazz,
concluiu Coy. Melodia base e variações inesperadas. Mudava todo o
tempo em torno de uma aparente ideia fixa, como uma estrutura de
temas AABA; mas seguir de perto essas evoluções requeria uma
atenção constante que não excluía em absoluto a surpresa. De repente
soava AABACBA e entrava um tema secundário que ninguém teria
imaginado ali. Não havia outra maneira de segui-la senão com a
improvisação, onde quer que isso a levasse. Segui-la sem partitura. Às
cegas.
Um relógio próximo deu três badaladas na praça. Coy ouviu-as
abafadas pelos auscultadores e pela música, e depois sentiu chegar
finalmente o saxofone de Hawkins: o terceiro solo que ligava toda a
peça de fio a pavio. Semicerrou os olhos, contente com a cadência das
notas familiares, tranquilizadoras como costuma ser a repetição do
que se espera. Mas Tânger introduzira-se na melodia, alterando a sua
delicada estrutura. Perdeu o fio à meada, e pouco depois tinha
carregado no botão do walkman e estava com os auscultadores na
mão, perplexo. Por um momento, julgou ter ouvido passos em cima,
da mesma forma que os tripulantes do Pequod ouviam o som da
perna de osso de baleia, enquanto o seu capitão ruminava obsessões a
sós, de noite, no convés. Ficou assim, imóvel e atento, à espreita.
Depois atirou o walkman para a cama ainda por desfazer, num gesto
irritado. Aquilo não era procedente e misturava os géneros sem
pudor. A etapa Melville, tal como a anterior — a etapa Stevenson —
tinham ficado para trás há muito tempo. Teoricamente, Coy
encontrava-se claramente na etapa Conrad, e todos os heróis
autorizados a mover-se por esse território eram heróis cansados, mais
ou menos lúcidos, conscientes do perigo de sonhar com a mão no
leme. Adultos encalhados na resignação e no tédio, em cuja insónia já
não flutuavam aos pares intermináveis procissões de cetáceos
escoltando, a meio de todos, um fantasma embuçado como um monte
de neve...
E, no entanto, o «Se...» condicional na porta do oráculo de Delfos,
que Coy conhecia por Melville, mas que este fora, por sua vez, buscar
a outros livros que ele não tinha lido, continuava a vibrar no ar tal
como o temporal tocava a harpa na enxárcia, mesmo depois de o mar
se cerrar sobre o albatroz preso pelo martelo e pela bandeira, e de o
Raquel resgatar outro órfão. De súbito, para sua íntima surpresa, Coy
descobria que as etapas livrescas ou vitais, independentemente do
modo como são chamadas, nunca se fecham de uma forma perfeita. E
que, embora os heróis tenham perdido a inocência e estejam
demasiado exaustos para acreditar em navios fantasmas e em tesouros
submersos, o mar continua inalterável, cheio da sua própria memória
que, ela sim, acredita em si própria. Ao mar é indiferente que os
homens percam a fé na aventura, na caçada, no barco afundado, no
tesouro. Os enigmas e as histórias que contém possuem vida
autónoma, bastam-se sozinhos e continuarão ali mesmo depois de a
vida se ter extinguido para sempre. Por isso, até ao último instante,
haverá sempre homens e mulheres interrogando o cachalote
agonizante, enquanto este volta a cara na direcção do Sol e expira.
De modo que, apesar de toda a lucidez possível, ali estava ele,
novamente chamando-se Ismael depois de ter sido náufrago e se ter
chamado Jim, temperando outra vez, na sua idade, o arpão com o seu
próprio sangue e com o velho grito de rigor: que ao último o levem a
bebida ou o diabo, de modo que venham o bote esburacado e o corpo
esburacado, etc. Contemplando, fascinado pela certeza de um destino
inevitável — por tê-lo lido cem vezes —, a mulher de pele pintalgada
cravar o seu dobrão de ouro espanhol na madeira do mastro: clique,
claque. E não só aquilo martelava na sua imaginação. Tinha-se
aproximado outra vez da janela, em busca da brisa do mar próximo e,
ao ouvir o ruído, voltou a olhar para o tecto. Agora sim, julgava sentir
passos inquietos em cima, no convés. Clique, claque. Clique, claque.
Pelos vistos, ela também não descansava, à caça dos seus próprios
fantasmas brancos, carruagens fúnebres com velhos ferros retorcidos
nas costas. E ele nunca sonhara, em nenhum dos seus barcos, livros,
portos, vidas anteriores e inocentes, com um Ahab tão sedutor
levando-o a navegar sobre a sua tumba.
Foi até à cama e deitou-se de barriga para cima. Até ao último
porto, lembrou-se antes de adormecer, vivemos todos envoltos em
cordas de arpão de baleias.
— Há uma ligação directa — disse Tânger — entre a viagem do
Dei Gloria e a expulsão dos jesuítas de Espanha. Uma ligação que
ultrapassa quaisquer dúvidas.
Era domingo, e tomavam o pequeno-almoço sob o toldo do Café
Parisien, diante do hotel, pão branco quente, cacau, café e sumo de
laranja. Havia uma brisa suave, muita luz e pombas que passeavam
pelo rectângulo de sol da praça, entre os pés das pessoas que saíam da
missa. Coy tinha na mão meio pãozinho untado com azeite e, às vezes,
entre uma dentada e outra, contemplava a fachada branca e ocre e o
campanário da Igreja de São Francisco.
— Em 1767 reinava em Espanha Carlos III, que antes fora rei de
Nápoles... Desde o princípio do seu reinado, os jesuítas manifestaram
a sua aversão a respeito dele, entre outras coisas porque nesse
momento se desenrolava a batalha das novas ideias e a companhia de
Santo Inácio era a mais influente de todas as ordens religiosas... Isso
criara-lhe inimigos em toda a parte. Em 1759, os jesuítas tinham sido
expulsos de Portugal e, em 1764, de França.
Bebia Colação num copo grande e, cada vez que levava o copo aos
lábios, ficava com uma linha de espuma no lábio superior. Tinha
chegado à rua recém-saída do duche, com o cabelo húmido ainda a
gotejar a camisa de quadradinhos azuis e vermelhos que levava por
fora das calças de ganga, com as mangas dobradas nos punhos, e o
cabelo secava agora um pouco ondulado, dando-lhe um aspecto fresco
à pele. Às vezes, Coy olhava para a linha de cacau na boca dela e
estremecia por dentro. Doce, pensava. Lábios doces, e, além disso, ela
adoçara a bebida com um pacotinho de açúcar. Interrogou-se a que
saberiam aqueles lábios na sua língua.
— Em Espanha — prosseguiu ela — as tensões entre jesuítas e
ministros iluministas de Carlos III iam num crescendo. O quarto voto
de obediência ao Papa colocava a Companhia no centro da polémica
entre o poder religioso e o poder real. Também era acusada de
manipular muito dinheiro e influenciar demasiado o ensino
universitário e a Administração. Além disso, era muito recente o
conflito das missões do Paraguai e a guerra guarani — inclinou-se por
cima da mesa na direcção de Coy, com o copo na mão. — ...Viste
aquele filme de Roland Joffé, A Missão}... Os jesuítas fazendo causa
comum com os indígenas.
Coy lembrava-se vagamente do filme: um vídeo a bordo, desses
que acabavam por ver três ou quatro vezes, aos bocados, durante uma
longa travessia. Robert de Niro, julgava recordar. E talvez Jeremy
Irons. Nem sequer retivera o facto de serem jesuítas.
— Tu4o isso — acrescentou Tânger — tinha colocado os jesuítas
espanhóis sobre um barril de pólvora, só faltando alguém que
acendesse o pavio.
Não havia rasto de Horacio Kiskoros, comprovou Coy, dando uma
olhadela em volta. Na mesa contígua sentava-se um jovem casal de
turistas com duas crianças louras, o mapa desdobrado e a máquina
fotográfica. Os miúdos brincavam com fisgas de plástico, parecidas
com as que, na sua infância, ao fugir do colégio para vaguear pelo
cais, ele próprio fabricava com materiais casuais: um pedaço de
madeira em V, tiras de velhas câmaras-de-ar, um pedaço de couro e
um palmo de arame. Agora, pensou com nostalgia, essas bodegas
vendiam-se em lojas e custavam uma pipa de massa.
— O pavio — continuava Tânger a contar — foi o motim de
Esquilache. Embora não esteja provada a intervenção directa dos
jesuítas na algazarra, a verdade é que nessa mesma época tentavam
boicotar os ministros iluministas de Carlos III... Esquilache, que era
italiano, propôs, entre outras coisas, suprimir os chapéus amplos e as
capas com que os Espanhóis se embuçavam, e esse foi o pretexto de
desordens gravíssimas. A calma regressou, o ministro foi suspenso,
mas os jesuítas foram apontados como tendo sido os instigadores. O
rei decidiu expulsar a Companhia e expropriar Os seus bens.
Coy concordou mecanicamente. Tânger falava mais do que o
costume, como se tivesse preparado o assunto durante a noite. Era
lógico, disse para consigo. Com o aparecimento em cena de Kiskoros e
com o encontro sugerido por Nino Palermo, não tinha outro remédio
senão compensá-lo com mais informações. A medida que se
aproximavam do objectivo, ela compreendia que ele já não se
contentava com migalhas. No entanto, avarenta no fundo, continuava
a administrar o seu capital a conta-gotas. Talvez por isso, e para
decepção de Coy, naquela manhã ele não conseguia sentir o mesmo
interesse das outras vezes. Tivera também uma longa noite para
reflectir. Demasiados dados, pensava agora. Demasiado prolixa e, no
entanto, poucas coisas concretas. Tudo o que me contas, cara linda,
estudei-o há vinte anos no colégio. Pretendes tourear-me com palha
histórica sem ir ao miolo da questão. Aparentas mostrar com uma
mão o que escondes no punho.
Estava farto e desprezava-se a si próprio por continuar ali. E, no
entanto, aquela linha de espuma sobre o lábio superior, o reflexo de
luz da manhã luminosa no azul-marinho das suas íris, as pontas
louras do cabelo emoldurando-lhe as sardas, conseguiam um efeito
singular, quase calmante. Cada vez que olhava para aquela
desconhecida, Coy tinha a certeza de que tinha ido demasiado longe,
de que se internava tanto na parte obscura da carta náutica da sua
vida que era já impossível voltar para trás antes de conhecer as
respostas. Cavaleiros e escudeiros: mentir-te-ei e trair-te-ei. Na
realidade, o mistério do barco perdido não o preocupava. Era ela, a
sua obstinação, a sua busca, tudo o que estava disposta a empreender
por um sonho, o que o mantinha no rumo certo, apesar de ouvir o
inequívoco rumor do mar nas rochas perigosamente próximas. Queria
aproximar-se dela o mais que pudesse, ver a sua expressão
adormecida, senti-la acordar e olhá-lo, tocar naquela pele tépida e
reconhecer nela, na fundura dessa pele e da carne que recobria, a
menina sorridente da fotografia da moldura de prata.
Tinha deixado de falar e olhava-o desconfiada, perguntando-lhe
sem palavras se continuava a prestar atenção ao que dizia.
Com algum esforço, Coy afastou os pensamentos, receoso de que
ela os conseguisse ler na sua cara, e deu outra olhadela aos pombos.
Entre eles, um pombo galã e bastante seguro de si, pavoneava-se entre
as pequenas fadas do lar emplumadas, que faziam círculos e o
observavam de soslaio, cacarejando, ou arrulhando, ou como quer que
se denomine o grito das pombas. E, nesse momento, as crianças da
mesa vizinha lançaram-se com gritos de guerra contra as pacíficas
aves. Coy observou o pai, muito calmamente ocupado com o jornal.
Depois observou a mãe, para comprovar que deslizava um olhar
lânguido pela praça. Por fim, voltou-se novamente para Tânger. De
costas para a cena, esta prosseguia o seu relato: — Preparou-se tudo
em Madrid com o maior segredo. Por ordem directa do rei criou-se
um grupo reduzido que excluía qualquer pessoa que fosse partidária
da Companhia, ou simplesmente imparcial. O objectivo era reunir
evidências e preparar o decreto de expulsão... O resultado do que se
chamou Pesquisa Secreta foi um parecer fiscal que acusava os jesuítas
de conspiração, defesa da doutrina do tiranicídio, moral dissoluta, afã
de riqueza e poder, e actividades ilegítimas na América.
Aquilo da Pesquisa Secreta soava bem e Coy sentiu o seu interesse
espicaçado, enquanto voltava a observar as crianças. Tinham acabado
de apanhar o pombo desprevenido em plena corte e, de uma pedrada,
tinham-lhe cortado em seco o idílio e a digestão de migalhas
debicadas ao pé das mesas. Animados pelo êxito, os miúdos atiravam
às pombas com a precisão letal de franco-atiradores sérvios.
— Em Janeiro de 1767 — continuou Tânger contando —, reunido
de forma secretíssima, o Conselho de Castela aprovou a expulsão. E
entre a noite de 31 de Março e a manhã de 2 de Abril, numa operação
militar bastante eficaz, as cento e quarenta e seis casas dos jesuítas em
Espanha foram cercadas... Foram todos obrigados a embarcar; Roma
teve de encarregar-se deles e, seis anos mais tarde, Clemente XIV
dissolveu a Companhia.
Fez uma pausa para acabar o seu Colação e limpou depois a boca
com uma mão. Voltara-se um pouco para assistir com indiferença à
gritaria dos miúdos e das pombas, antes de olhar novamente para
Coy. Não a imagino com filhos, disse este para consigo-E sei que,
aconteça o que acontecer, nunca envelhecerei junto dela.
Só consigo imaginá-la chegando a velha entre livros e papéis,
magra e elegante, apesar das unhas roídas. Solteirona com classe e
com rugas em volta dos olhos, tirando recordações do baú: uma luva
comprida e vermelha, uma velha carta náutica, um leque partido, um
colar de azeviche, um disco de canções italianas dos anos cinquenta, a
fotografia de um antigo amante. A minha fotografia, aventurou. Oxalá
fosse a minha fotografia...
Prestou atenção, porque ela continuava a falar. O que aconteceu
após a expulsão dos jesuítas dos domínios da coroa de Espanha, disse
para consigo, já não lhes interessava, nem a ela, nem a ele. O período
importante era o ano decorrido entre o Domingo de Ramos de 1766,
dia do início do motim de Esquilache, e a noite de 31 de Março de
1767, quando foi aplicado o decreto de expulsão dos jesuítas
espanhóis. Nesse período, de uma forma que fazia lembrar o que
acontecera com os templários no século XIV, a Companhia passou do
papel de uma potência respeitada, temível e poderosa, a proscrita e
prisioneira...
— Não te parece interessante?
— Muito.
Ela examinou-o, avaliando-o, como se tivesse captado a ironia do
comentário. Coy manteve o rosto impassível. Eventualmente, acabará
por me contar alguma coisa que, deveras, valha a pena, pensava.
Olhou por cima do ombro de Tânger. Os miúdos regressavam suados,
vencedores, trazendo, como um troféu, penas da cauda do pombo que
àquelas horas, calculou, devia voar a cento e oitenta quilómetros por
hora a caminho da cidade do Cabo. Talvez, disse para consigo, nem
tudo o que Herodes degolou fosse inocência.
Tânger calara-se novamente, como se considerasse se valeria a
pena continuar a falar. Tinha o rosto inclinado e os seus dedos
tamborilavam na beira da mesa, num movimento que talvez fosse de
impaciência.
— Interessa-te mesmo o que te estou a contar?
— Claro que me interessa.
Por alguma razão, a irritação que ela demonstrava reconciliou-o
consigo próprio. Instalou-se melhor na cadeira, com uma expressão
atenta e Tânger, após uma última hesitação, prosseguiu o seu relato.
Quando Carlos III tinha decidido criar o gabinete da Pesquisa Secreta,
pôs à frente Pedro Pablo Abarca de Bolea, conde de Aranda: um
aragonês de Huesca, duas vezes grande de Espanha, que já tinha sido
militar e diplomata. Era capitão-geral de Valência quando, em pleno
motim de Esquilache, o rei o chamou a Madrid para lhe confiar o
governo, a presidência do Conselho de Castela e a capitania geral de
Castilla La Nueva. Inteligente, culto, iluminista, passou à história
como mação, embora nunca tenha sido provada a sua adesão a
nenhuma loja e os historiadores modernos neguem a sua filiação. Pelo
contrário, há a certeza de ter sido um homem ecléctico e, entre todos
os componentes do gabinete secreto, talvez quem melhor conhecesse
os jesuítas, com quem se tinha educado e entre os quais conservava
muitos amigos, incluindo um irmão jesuíta. Comparado com
antijesuítas ferozes como o fiscal Campomanes, o ministro da Justiça,
Roda, e José Mofiino, futuro conde de Floridablanca, Aranda podia ser
descrito como moderado na sua atitude relativamente à Companhia.
Mas mesmo assim, aceitou dirigir o gabinete e referendar as suas
conclusões. A pesquisa iniciou-se em Madrid a 8 de Junho de 1766,
presidida por Aranda. Era acompanhado por Roda, Mofiino e outros
antijesuítas indiscutíveis, ou como então se dizia, tomistas, em
oposição aos pró-jesuítas ou amigos do quarto voto. E a investigação
foi levada a cabo com tanta cautela que nem o confessor do rei ficou
ao corrente.
— No entanto — prosseguiu Tânger —, havia uma ligação
importante entre um homem do gabinete secreto e um destacado
jesuíta... Paradoxalmente, um dos melhores amigos do conde de
Aranda era um jesuíta de Múrcia, o padre Nicolás Escobar. As
relações entre ambos tinham-se esfriado um pouco, mas a verdade é
que, até Aranda ter abandonado a capitania geral de Valência a
pedido do rei, os dois foram íntimos. Embora, mais tarde, Aranda
tenha feito desaparecer a sua correspondência com o padre Escobar,
conservam-se algumas cartas que provam essa relação.
— Viste essas cartas?
— Sim. Existem três e estão na biblioteca da universidade de
Múrcia, assinadas pela mão <de Aranda. Consegui cópias graças ao
catedrático de Cartografia, Néstor Perona, quando o consultei por
telefone sobre as correcções que devíamos aplicar ao Urrutia.
Outro seduzido, pensou Coy. Imaginava o efeito de Tânger,
mesmo por telefone, num catedrático do que quer que fosse.
Devastador.
— Devo reconhecer que trabalhaste a fundo.
— Nem sabes até que ponto! Por isso não estou disposta a admitir
que alguém mo tire das mãos.
Aquilo, admitiu Coy, começava a revelar indícios interessantes. A
história saía dos compêndios, internando-se na letra miudinha. Cartas
daquele fulano, Aranda. Quem sabe se, afinal de contas, com a sua
história banal de gabinetes secretos e de reis implacáveis, ela não
estava realmente a dirigir-se para algum lado.
— Nicolás Escobar — continuou Tânger — era um jesuíta
importante, relacionado com os círculos de poder e com o seminário
de Nobres, que se deslocava entre Roma, Madrid, Valência e
Salamanca. Duas décadas antes, tinha sido director do colégio jesuíta
desta última cidade, praça-forte da Companhia, em cuja imprensa, e
isto é apenas uma das coincidências, foi impresso...
Ficou calada. Adivinha a surpresa, etc. Coy não pôde deixar de
sorrir. Apresentara as coisas de forma demasiado fácil e era
impossível decepcioná-la. Uma equipa, de acordo. Tu e eu somos uma
equipa. Tu o dizes e eu acredito.
— O Urrutia — disse. Ela concordou, satisfeita.
— É isso. O Atlas Marítimo de Urrutia, impresso no colégio dos
jesuítas de Salamanca em 1751 sob a protecção de outro ministro
amigo, o marquês de Ensenada, impulsionador da marinha e dos
estudos de navegação em Espanha. E, na época em que se forma o
gabinete secreto, o padre Escobar, amigo de marinheiros ilustres como
Jorge Juan e António de Ulloa, está em Valência. Adivinhas onde?...
— Não. Receio que desta vez não consiga adivinhar.
— Em casa de um velho conhecido nosso. Sobretudo meu: Luis
Fornet Palau, amigo do quarto voto, testa-de-ferro da frota dos
jesuítas e armador do Dei Gloria.
Calou-se, satisfeita com a expressão de Coy. Depois inclinou-se,
pouco a pouco, na direcção dele, por cima da mesa, olhando-o nos
olhos intensamente e deixando vislumbrar dentro dos seus uma
ambição dura e simples como um pedaço de pedra escura, polida,
muito brilhante. O sonho deixara de o ser há muito tempo,
compreendeu. Agora restava uma obsessão sólida, concreta. Enquanto
ela aproximava uma mão, pousando-a na dele, procurou
desesperadamente o termo adequado para a definir. Sentiu o peso da
mão cálida, dos dedos que se entrelaçavam com os seus. Calor suave,
firme, tão segura de si que o gesto parecia ser o mais natural do
mundo. Aquela mão não pretendia consolar-se, nem animar, nem
fingir. Nesse momento era sincera: partilhava. E a palavra da
obsessão, que ele acabou por encontrar, era «implacável».
— O Dei Gloria, Coy — disse em voz baixa, inclinada sobre a
mesa, a mão na sua. — Estamos a falar do bergantim que sai de
Valência rumo à América a 2 de Novembro, quando o gabinete secreto
já leva cinco meses de reuniões, e regressa às costas espanholas
poucas semanas antes de assestarem aos jesuítas o golpe final — a
pressão dos dedos tornou-se maior. — Juntas alguns fios?... O resto,
ou seja, o quê ou quem viajava a bordo e para quê, contar-te-ei a
caminho de Gibraltar. Ou, como diziam os velhos folhetins, no
próximo capítulo.

VIII - O PONTO ESTIMADO

Chama-se ponto estimado àquele em que efectivamente se encontra o


navio por um juízo prudente, ou por dados que podem compreender muita
incerteza.
Gabriel Ciscar. Curso de Navegação

Brilhavam os pequenos canhões polidos da praça. A esplanada do


Ungry Friar estava cheia de gente e havia grupos de turistas anglo-
saxões fotografando o render da guarda no Convento, visivelmente
encantados por a Britânia ainda ter colónias de onde pudesse
governar os mares. Sob a bandeira que ondulava preguiçosa no
mastro, uma sentinela permanecia firme como uma estátua,
enquadrada com a sua espingarda Enfield na arcada gótica, fiel à cena
e ao cenário, enquanto o sargento encarregado da rendição lhe
vociferava as ordens regulamentares em gíria castrense, aos gritos, a
um palmo da cara: ordem, santo-e-senha e coisas assim. Até à última
gota do teu sangue, e a Inglaterra espera que cumpras o teu dever,
conjecturou Coy, que os observava. Depois esticou as pernas debaixo
da mesa antes de se inclinar para acabar com o resto do seu copo de
cerveja e de olhar para cima, piscando os olhos. O Sol rondava o seu
zénite e estava bastante calor, mas no alto do Rochedo o penacho de
nuvens começava a desfazer-se. O vento mudara de levante para
poente e, dentro de algumas horas, a temperatura seria mais
suportável. Pagou a cerveja e levantou-se, cruzando-se com as pessoas
que enchiam a praça, em direcção à esquina de Main Street.
Suando, focado por dúzias de câmaras de vídeo e objectivas
fotográficas, o sargento continuava dando terríveis gritos marciais à
sentinela impassível. Enquanto se afastava dali, Coy fez uma careta
trocista para o seu íntimo. Esta manhã, disse para consigo, calhou ao
surdo fazer a guarda.
Andou pela rua principal de Gibraltar, com a multidão que
deambulava pelas lojas sucessivas: pijamas chineses, camisolas com
imagens do Rochedo e dos macacos, mantilhas, rádios, bebidas,
máquinas fotográficas, perfumes, porcelanas de Lladró e
Capodimonte, cabeças reduzidas de cerâmica Bossom. Coy atracara
em Gibraltar noutro tempo, quando a colónia britânica era ainda um
porto convencional, dos antiquados, base de contrabandistas de
tabaco e de haxixe marroquino através do estreito, e ainda não se
tinha transformado numa colmeia turística e retaguarda financeira
dos traficantes de droga em grande escala e dos milhares de ingleses
radicados na Costa do Sol. Na realidade, qualquer sítio próximo do
Mediterrâneo era, nesta altura, um desatino turístico, mas em
Gibraltar, junto dos restaurantes de hambúrgueres e de comida rápida
e bebida em copos de plástico, as lojas de indianos e de judeus
alternavam, ao longo de Main Street, com fachadas de bancos e casas
com discretas chapas aparafusadas junto à porta, gabinetes de
advogados, sociedades imobiliárias, sociedades de export-import,
sociedades anónimas, sociedades limitadas, sociedades fantasmas —
havia mais de dez mil registadas ali — onde se branqueava dinheiro
espanhol e inglês e se realizava todo o tipo de negócios. A bandeira
azul com estrelas da Comunidade Europeia ondulava na fronteira,
turismo e subterfúgios de paraíso fiscal tinham substituído o
contrabando como fonte principal de receitas, advogados jovens e
maus, que falavam um inglês perfeito com sotaque andaluz, tomavam
o lugar dos capos mafiosos locais, e a velha plebe de toda a vida, lobos
do mar com aros de ouro nas orelhas e braços tatuados, última escória
pirata do Mediterrâneo ocidental, definhava em prisões espanholas ou
marroquinas, servia hambúrgueres no McDonald's ou mandriava pelo
porto, olhando com saudade as quinze milhas que separavam a
Europa de África, distância que, há uma década, nas noites sem lua,
atravessava com motores fora de borda de 90 cavalos que faziam
planar as suas Phantom pintadas de preto a quarenta nós acima da
água, entre Punta Carnero e Punta Cires.
Coy pôs-se a andar pelo passeio que mais sombra oferecia, com a
camisa colada às costas pelo suor, olhando para os números das
portas. Tânger tinha cumprido a sua palavra, pelo menos em parte.
Entre Cádis e Gibraltar, enquanto ele conduzia o Renault de aluguer
pelas curvas e contracurvas da estrada que subia as encostas de Tarifa
e os despenhadeiros sobre o estreito, ela acabou de contar a história
dos jesuítas e do Dei Gloria. Ou, pelo menos, a parte da história que
ela achava conveniente dar-lhe a conhecer: por que razão viajou o
bergantim para a América e porque regressava de Havana.
— Queriam parar o golpe — resumiu.
Depois, com os olhos fixos na estrada, expôs a sua teoria em honra
de Coy. O gabinete da Pesquisa Secreta não foi tão secreto, afinal de
contas. Houve uma infiltração, um indício do que se preparava.
Talvez os jesuítas tivessem lá um informador, ou intuíram a manobra.
— De todos os membros do gabinete — explicou Tânger — só um
deles não era tomista puro: o conde de Aranda podia ser considerado,
se não amigo do quarto voto, pelo menos mais favorável aos jesuítas
que os radicais Roda, Campomanes e outros. Talvez tenha sido ele
próprio quem deixou cair as palavras oportunas no ouvido do seu
amigo, o padre Nicolás Escobar... Não deve ter passado de uma
confidência, ou de uma palavra. Mas entre aquelas pessoas feitas de
astúcias e diplomacias, até um silêncio podia ser lido como uma
mensagem.
Tânger calou-se por uns instantes, deixando a Coy o trabalho de
imaginar época e personagens. A sua mão esquerda descansava em
cima do joelho esquerdo, sobre a saia de algodão azul, a escassos
centímetros do manípulo das velocidades. Coy roçava-a às vezes, ao
passar de quarta para quinta nas rectas, ou quando abrandava, antes
de rodar o volante.
— E então — prosseguiu ela — a direcção dos jesuítas espanhóis
idealizou um plano.
Voltou novamente a calar-se, com aquilo no ar. Deveria escrever
romances, pensou ele, admirado. Domina como ninguém as
reticências. E, além disso, não sei o que haverá de real nas suas
certezas, mas nunca vi ninguém afirmá-las com esta gravidade. Sem
contar com a forma como vai soltando o carreto pouco a pouco, lasso
quanto baste para o peixe não fugir, tenso quanto baste para que se
mantenha enganchado até lhe cravar um arpão nas guelras.
— Um plano arriscado — continuou, por fim, Tânger — que nem
sequer tinha êxito garantido... Mas que se baseava no conhecimento
da condição humana e da situação política espanhola. Evidentemente,
também no conhecimento de Pedro Pablo Abarca, conde de Aranda.
Em poucas palavras, com o tom de voz objectivo de quem
enumera dados, sem afastar os olhos do asfalto que parecia ondular
diante deles por efeito do calor, Tânger tinha definido o ministro de
Carlos III: aristocrata com direitos de sangue, carreiras militar e
diplomática brilhantes, afrancesado por razões intelectuais e sociais,
pragmático, iluminista, enérgico, impetuoso, levemente insolente.
Uma grande cabeça à frente do Conselho de Castela e do gabinete
para a Pesquisa Secreta. Também amigo do luxo, das carruagens caras
com esplêndidos cavalos e criados de libré, de teatro e touros em carro
descoberto, popular, ambicioso, esbanjador, amigo dos seus amigos.
Rico e, no entanto, sempre necessitado de mais fundos para suportar o
alto nível de vida que, às vezes, roçava a extravagância.
— Essas eram as palavras — prosseguiu Tânger. — Dinheiro e
poder. Aranda era sensível a elas e os jesuítas sabiam-no. Não fora
aluno deles em vão e era íntimo dos seus dirigentes.
O plano, continuou ela, foi concebido com minuciosa audácia.
O melhor barco da Companhia, o mais rápido e seguro, com o seu
melhor capitão, zarpou secretamente rumo à América. Levava o padre
Escobar como passageiro. Não havia informação oficial da sua saída
de Valência, porque não se conservaram os documentos de embarque
do Dei Gloria para essa etapa da viagem, mas o jesuíta estava, sim, a
bordo na viagem de volta. As suas iniciais, com as do outro
acompanhante, o padre José Luis Tolosa, constavam do relatório do
bergantim — N.E. eJ.L.T. — quando saiu de Havana, a 1 de Janeiro de
1767. E com eles traziam uma coisa: documentos, objectos. Chaves
para influenciar a vontade do conde de Aranda.
Com as mãos no volante, Coy riu-se baixinho.
— Falando curto e grosso: queriam comprá-lo.
— Ou chantageá-lo — replicou ela. — De uma forma ou de outra, a
verdade é que a missão do Dei Gloria, do capitão Elezcano e dos dois
jesuítas, era trazer alguma coisa que alteraria o curso dos
acontecimentos.
— De Havana?
— Isso mesmo.
— E que importância tem Cuba em tudo isto?
— Não sei. Mas embarcaram aí alguma coisa que podia convencer
Aranda a manipular a Pesquisa Secreta... Alguma coisa que deteria a
tempestade que ia abater-se sobre a Companhia.
— Podia tratar-se de dinheiro — sugeriu Coy. — O famoso
tesouro.
Sorria para tirar importância às suas palavras, mas sentiu um
estremecimento ao pronunciar a palavra tesouro. Tânger continuava a
olhar para a frente como uma esfinge.
— Podia, efectivamente — disse ela passado um instante. — .. .Mas
nem sempre é dinheiro o que está pelo meio.
— E é isso que pretendes averiguar.
Continuava a voltar-se de vez em quando para observá-la, sem
desviar completamente a sua atenção da estrada, antes de voltar a
olhar para a frente. Ela mantinha os olhos fixos no asfalto.
— Pretendo localizar o Dei Gloria, em primeiro lugar. Depois saber
o que transportava... O que, por azar ou por premeditação dos
inimigos da Companhia, nunca chegou ao seu destino.
Coy reduziu a velocidade devido a uma curva apertada. No outro
lado de uma vedação havia touros verdadeiros, pastando sob um
imenso cartaz com um imenso touro preto a fingir.
— Queres dizer que aquele chaveco corsário não apareceu ali por
casualidade?
— Qualquer coisa é possível. Talvez outro bando estivesse ao
corrente da operação e quisesse antecipar-se. Talvez o próprio Aranda
jogasse com um pau de dois bicos... Ou, se o Dei Gloria trazia alguma
coisa para ser usada contra ele, pode ter querido neutralizá-lo.
— Então, consoante o que for, é possível que não tenha resistido
dois séculos e meio no fundo do mar. Lúcio Gamboa disse...
— Lembro-me perfeitamente do que ele disse.
— Então já sabes. Tesouros, talvez. Outra coisa, esquece.
A estrada descia agora entre prados inesperadamente verdes,
antes de subir novamente. Havia uma povoação branca em cima, à
direita, suspensa no pico de uma montanha. Vejer de La Frontera, leu
Coy numa placa rodoviária. Outra seta indicava o mar: cabo Trafalgar,
16 quilómetros.
— Oxalá seja um tesouro — disse. — Ouro espanhol. Prata em
lingotes... Talvez esse Aranda fosse realmente subornável. —
Permaneceu pensativo durante algum tempo, mordendo o lábio
inferior. — ...Como poderíamos tirá-lo sem que ninguém soubesse?
Sorria, divertido com a ideia. O tesouro dos jesuítas. Barras de
ouro amontoando-se num porão. Desembarques nocturnos numa
praia, entre o rumor das pedras arrastadas pela levadia. Dobrões,
Deadman's Chest e uma garrafa de rum. Acabou rindo-se em voz alta.
Tânger mantinha-se em silêncio e ele voltou-se, olhando-a por
diversas vezes, sem perder de vista a estrada pelo rabinho do olho.
— Com certeza que já tens um plano — acrescentou. — Tu és do
tipo de pessoas que tem sempre um plano.
Tinha roçado acidentalmente a mão dela ao mudar a velocidade e,
desta vez, ela retirou-a. Parecia irritada.
— Tu não sabes que tipo de pessoa sou.
Ele riu-se novamente. A ideia do tesouro, de tão absurda, pusera-o
de bom humor. Rejuvenescia trinta anos: Jim Hawkins fazia-lhe
caretas de uma estante cheia de livros, na Pousada do Almirante
Benbow.
— Às vezes julgo sabê-lo — disse, sincero —, e outras vezes não
sei. De qualquer forma, não te tiro a vista de cima... Com tesouro ou
sem ele. E espero que tenhas pensado em reservar a minha parte.
Sócia.
— Não somos sócios. Trabalhas para mim.
— Ah, diacho! Tinha-me esquecido.
Coy assobiou alguns compassos de Body and Soul. Estava tudo em
ordem. Ela orquestrava o canto das sereias, o dobrão de ouro espanhol
brilhava cravado no mastro diante dos olhos do marinheiro sem barco
e, enquanto isso, o Renault alugado deixava Tarifa para trás, o seu
vento perene e as fantasmagóricas asas giratórias das suas torres de
energia eólica. O motor aquecia demasiado nas subidas, de modo que
pararam num miradouro sobre o estreito. O dia estava claro, no outro
lado da barra azul avistavam a costa marroquina e, um pouco mais
longe, à esquerda, o monte Hacho e a cidade de Ceuta. Coy observava
a progressão lenta de um petroleiro que navegava em direcção ao
Atlântico: desviara-se um pouco do dispositivo de separação de
tráfego que regulava a passagem nas duas direcções e, sem dúvida,
teria de alterar o rumo para permitir a manobra de um cargueiro que
se aproximava da proa, em sentido contrário. Imaginou o oficial de
quarto à ponte — a essa hora seria o terceiro de bordo — atento ao
ecrã do radar, esperando até ao último minuto a ver se tinha sorte e o
outro se desviava antes.
— Além disso, Coy, tu vais muito depressa. Eu nunca falei de
tesouros.
Tinha permanecido calada pelo menos cinco minutos. Agora tinha
saído do carro e estava ao seu lado, olhando para o mar e para a
vizinha costa de África.
— É verdade — admitiu ele. — Mas o tempo está a acabar. Terás
de contar-me o resto da história enquanto estamos aqui.
Lá em baixo, no estreito, a esteira branca deixada pelo petroleiro
traçava uma ligeira curva na direcção da margem europeia. O oficial
de quarto tinha achado prudente manter alguma distância do navio
mercante. Dez graus a estibordo, calculou Coy a olho. Nenhum oficial
podia manejar as máquinas sem autorização do capitão, mas corrigir
dez graus e depois voltar ao rumo era razoável.
— Ainda não estamos lá — disse ela em voz baixa.
Os escritórios de Deadman's Chest Ltd. ficavam no número 42b de
Main Street, no rés-do-chão de um edifício de aspecto colonial, com
paredes brancas e janelas pintadas de azul. Coy olhou para a placa
aparafusada na porta e, após uma pequena hesitação, tocou na
campainha que havia por baixo. Não estava muito sossegado, mas
Tânger recusava entrevistar-se com Nino Palermo no gabinete dele.
De modo que ele estava encarregado da missão exploratória e de
combinar, se os sinais fossem favoráveis, um encontro posterior
naquele mesmo dia. Tânger dera-lhe instruções precisas, tão
pormenorizadas como para uma operação militar.
— E se me partem a cara? — tinha perguntado, lembrando-se da
sala circular do Palace.
— Palermo antepõe os negócios às questões pessoais — foi a
resposta. — Não creio que pretenda ajustar contas. Não ainda.
De modo que ali estava ele, olhando para a sua cara mal barbeada
na placa de latão, inspirando como se estivesse a preparar-se para um
mergulho perigoso.
— O senhor Palermo está à minha espera.
O berbere parecia mais mal-encarado à luz do dia, no outro lado
da porta aberta, com aqueles olhos fúnebres que dissecavam Coy,
reconhecendo-o, antes de se afastar para lhe permitir a passagem. O
vestíbulo era pequeno, forrado de madeiras nobres, com alguns
toques navais: uma enorme roda de leme, um escafandro de
mergulho, a maqueta de uma trirreme romana numa urna de vidro.
Havia uma mesa de design moderno onde se sentava a secretária que
Coy recordava do leilão de Barcelona e da sala circular do Palace.
Havia também uma poltrona e uma mesinha baixa com as revistas
Yachting e Bateaux, e uma cadeira a um canto. Na cadeira estava
sentado Horacio Kiskoros.
Não era uma freguesia que desse para desejar os bons-dias a sorrir.
De modo que Coy nem sorriu nem deu os bons-dias, nem fez mais
nada senão permanecer imóvel no vestíbulo, na expectativa, enquanto
o berbere fechava a porta atrás de si. Os três pares de olhos fixos em si
não transmitiam excessivo calor humano. O berbere aproximou-se por
trás, como um tonto, sem gestos ameaçadores e, de uma forma
mecânica e eficiente, inclinou-se até aos tornozelos de Coy, fazendo-
lhe uma revista rápida.
— Nunca usa armas — antecipou-se Kiskoros da sua cadeira, num
tom de voz quase amável.
E é agora que começam a sacudir-me, pensou Coy, recordando nas
suas costelas a sólida eficácia do berbere. Agora começam a malhar
como se eu fosse um polvo, pumba, pumba, até me porem no ponto
de ir para a grelha, e acabam por me tirar daqui, se é que saio, com os
dentes num cartucho de papel de jornal. LOADAL: Lei de Onde As
Dão As Levam. De certeza que até essa das cuecas pretas se vingará.
— Ora, ora... — disse uma voz.
Nino Palermo estava na porta que acabava de abrir-se no outro
lado. Calças castanhas, camisas às riscas azuis com as mangas
arregaçadas e sem gravata. Mocassins caros.
— Tenho de reconhecer... — disse, olhando surpreendido para
Coy. — Valha-me Deus! Você tem tomates.
— Esperava-a a ela?
— Claro que a esperava a ela.
O olhar bicolor do caçador de naufrágios era desabrido, com a
imobilidade de uma serpente. Coy reparou que o nariz conservava um
leve inchaço, com ténues círculos escuros por baixo dos olhos. Sentiu
atrás de si os passos suaves do berbere e o olhar que Palermo lhe
dirigia por cima do ombro, e contraiu involuntariamente os músculos.
Na nuca, pensou. Este cabrão vai-me bater na nuca.
— Entre — disse Palermo.
Entrou, e o seu anfitrião fechou a porta e foi apoiar-se na beira de
uma mesa de caoba coberta de livros, papéis e cartas náuticas cheias
de anotações a lápis que cobriu discretamente com o Gibraltar
Chronicle. Havia também, como pisa-papéis, um lingote de prata
antigo, de uns dois quilos. Coy ficou de pé, olhando, para olhar
alguma coisa sem ser a cara de Palermo, uma pintura a óleo
pendurada na parede: uma batalha naval entre um navio norte-
americano e outro inglês. Duas fragatas disparando os canhões com a
mastreação destruída. Tinha uma placa na parte inferior da moldura.
Combate dajava e da Constituição, leu. O fumo dos tiros de canhão ia
para o bordo apropriado, de acordo com as nuvens, com as ondas e
com a orientação das velas. Era um bom quadro.
— Porque o manda sozinho?... Ela deveria estar aqui.
O olho verde e o olho pardo observavam-no com mais curiosidade
que rancor. Coy não sabia a que olho dirigir-se, de modo que acabou
decidindo-se pelo pardo. Parecia-lhe menos inquietante.
— Não se fia. Por isso vim eu. Antes de o ver quer saber o que
pretende.
— Está em Gibraltar?
— Está onde deve estar.
Palermo abanou a cabeça devagar, numa negativa. Tinha agarrado
numa pequena bola de borracha de cima da mesa e apertava sem
parar.
— Eu também não me fio nela.
— Aqui ninguém se fia em ninguém.
— Você é um... Valha-me Deus! — A mão esquerda, carregada
com os anéis e com o enorme relógio de ouro, contraía-se a cada gesto
dos músculos do antebraço. — Um idiota, é o que é. Ela manipula-o
como a um fantoche.
Coy continuava pendente do olho pardo.
— Meta-se nos seus assuntos — disse.
— Este é o meu assunto. Era-o, e só meu, até aquela cabra se ter
intrometido. A minha boa vontade...
— Pare de me apalpar os colhões com a sua boa vontade. — Coy
decidiu passar ao olho verde. — Eu vi o que o seu anão fez ao cão
dela.
Palermo deixou de abrir e fechar a mão com a bola e mudou de
posição na beira da mesa. De repente, parecia pouco à vontade.
— Garanto-lhe que eu, nunca... Valha-me Deus! Horacio excedeu-
se. Ele está habituado a formas... Lá, na Argentina... Bom — ficou a
olhar para a bola, como se de repente lhe desagradasse e colocou-a
novamente em cima da mesa, junto de um abre-cartas de marfim cujo
punho era uma mulher nua. — Creio que no país dele passou um
pouco das marcas... Depois aconteceu o assunto das Malvinas.
Horacio saiu na capa da revista Time com os prisioneiros ingleses.
Tem muito orgulho nessa capa e tem sempre consigo uma fotocópia
colorida... Aquando da democracia, teve de... Imagine. Demasiadas
pessoas o reconheceram, graças a essa bendita fotografia, como aquele
que lhes colocava eléctrodos nos genitais.
Calou-se e depois encolheu ligeiramente os ombros, dando a
entender que naquela época Kiskoros não era um problema seu. Coy
assentiu. O outro não lhe tinha oferecido cadeira e continuava de pé.
— E você deu-lhe trabalho.
— Era um bom mergulhador — admitiu Palermo. — E aí onde o
vê, tão pequenino, é um indivíduo bastante eficaz para certo tipo de...
Bom — voltou a mudar de posição na beira da mesa, e tilintaram as
correntes de ouro e as medalhas. — O que posso dizer que você não
saiba? Além disso, sempre preferi contratar assalariados eficientes em
vez de voluntários entusiastas... Um mercenário bem pago não nos
deixa em maus lençóis.
— Depende de quem pague mais.
— Eu pago mais.
Fez uma pausa para observar a moeda de ouro que tinha no anel
da mão direita. Depois esfregou-a na camisa, num gesto maquinal.
— Horacio é um completo filho da puta — prosseguiu. — Um ex-
militar argentino de pai grego e mãe italiana, que fala espanhol e se
julga inglês... Mas é um filho da puta bastante correcto. E eu gosto de
gente correcta. Até tem a sua velha mãe em Rio Gallegos, e manda
todos os meses dinheiro para a velhinha. Tal como nos tangos, não é
verdade?... Que coisas.
Ergueu a mão alguns milímetros como se fosse tocar na cara, mas
deteve o gesto apenas começado.
— E quanto a você...
Agora o olho pardo revelava rancor e o verde, ameaça. Mas aquilo
durou apenas um instante.
— Oiça — prosseguiu. — Tudo isto passou das marcas de uma
forma absurda. Estamos chegando demasiado longe, certo?... Todos.
Ela. Eu próprio, talvez. Até Horacio mata cachorros, o que já é...
Valha-me Deus! O cúmulo. E você, evidentemente. Você...
O caçador de naufrágios ficou novamente em suspenso, tentando
descobrir uma palavra que definisse o papel de Coy naquela
embrulhada.
— Olhe — tinha agarrado numa chave e aberto uma gaveta,
tirando de lá uma moeda reluzente de prata que atirou para a mesa.
— Sabe o que é isto?... O que no meu ofício chamamos um colunário:
oito reais de prata cunhados em Potosi em 1739 por ordem do rei
Felipe V... Está à sua frente... Repare. É uma das famosas «peças de
oito», protagonistas de todas as histórias de piratas e tesouros...
Tirou outra diferente, maior, atirando-a para junto da anterior.
Desta vez tratava-se de uma medalha comemorativa: três figuras, uma
delas ajoelhada, com a inscrição: The pride of Spain humbled by A.
Vernon. O orgulho de Espanha humilhado, traduziu Coy, segurando-
a entre os dedos. No reverso, vários navios e outra inscrição: They
took Carthagena April 1741. Tomaram Cartagena — das índias,
calculou Coy — em Abril, etc. Colocou a medalha na mesa, junto dos
oito reais.
— Era um bluff, porque não chegaram a conquistá-la — explicou
Palermo. — O almirante Vernon retirou-se derrotado, sem conseguir
saquear a cidade como pretendia... Quem se supõe estar ajoelhado na
medalha é o espanhol Blas de Lezo, que nunca chegou a ajoelhar-se,
entre outras coisas, porque era manco e coxo. Mesmo assim, defendeu
a cidade com unhas e dentes, fazendo os Ingleses perderem seis
barcos e nove mil homens... Foi preciso fazer desaparecer as medalhas
que Vernon já trazia cunhadas para comemorar o acontecimento...
Excepto as que se afundaram na baía. Difíceis de encontrar.
Meteu a mão na gaveta e tirou um punhado de moedas diversas,
que sopesou com a mão, antes de as deixar cair outra vez com um
tilintar metálico. O ouro e a prata brilhavam ao escorregar-lhe pelos
dedos carregados de anéis.
— Eu tirei essa de um barco inglês afundado — disse o caçador de
tesouros. — ...Essa, esta e muitas outras: moedas de prata de quatro e
oito reais, colunários, macuquinas(1), dobrões de ouro, lingotes, jóias...
Sou um profissional, compreende?... Conheço palmo a palmo os nove
quilómetros de prateleiras do Arquivo das índias, e também os
arquivos do Almirantado inglês, do palácio da Inquisição de
Cartagena das índias, Simancas, Viso del Marquês, Medina Sidonia...
E não estou disposto a tolerar que um par de amadores me... Valha-
me Deus! Rebentem com o trabalho de toda a minha vida...
Agarrou na moeda de oito reais e na medalha de Vernon,
devolvendo-as à gaveta. O seu sorriso era tão simpático como o de um
tubarão-branco a quem tivessem acabado de contar uma anedota de
náufragos.
— Por isso vou até ao fim — acabou por declarar. — Sem piedade
e sem remédio. Vou até... Juro-lhe. E quando acabar com isto, essa
mulher... Vai ver. Quanto a si, deve estar louco — fechou a gaveta e
meteu a chave no bolso. — Não faz a mais remota ideia das
consequências.
Coy coçou a cara por barbear.
— Mandou aquele cabrão do anão a Cádis para nos fazer vir até
aqui e dizer-nos isso?

*1. Macuquinas: moeda de ouro ou prata, cortada sem serrilha, que


circularam até ao século XIX. (N. da T.)
— Não. Fi-los chamar para lhes propor um derradeiro acordo. A
última possibilidade. Mas você...
Deixou a frase por terminar, embora fosse bastante clara. Não o
considerava qualificado para essa negociação. Coy também achava o
mesmo, e isso ambos o sabiam.
— Só vim para ver como estão as coisas — disse. — Ela aceita vê-
lo.
Palermo semicerrou os olhos. Uma luz de interesse brilhava atrás
das suas pálpebras, à espreita.
— Quando e onde?
— Aqui em Gibraltar parece-lhe bem. Mas não virá ao escritório.
Prefere um terreno neutro.
O sorriso seco revelou agora alguns dentes sãos e muito brancos. O
tubarão nadava em águas próprias, pensou Coy. Farejando.
— E o que é que essa entende por terreno neutro?
— O miradouro do Perion, que dá para o aeroporto, serviria bem.
Palermo reflectia.
— Old Willis?... Porque não? A que horas?
— Hoje, às nove.
O outro deu uma olhadela ao relógio e reflectiu um pouco mais. O
sorriso cruel começou novamente a despontar.
— Diga-lhe que lá estarei... Você também irá?
— Sabê-lo-á quando for.
Os olhos pouco amistosos examinaram Coy de cima a baixo, e o
caçador de tesouros riu-se de forma desagradável. Não parecia nada
impressionado.
— Achas-te um duro, não é verdade?... — O tuteio brusco tornava
o tom de voz bastante mais desagradável. — Valha-me Deus! És uma
marioneta, como todos. É isso que és. Elas usam-nos como... Usar e
deitar fora, é isso. É assim que fazem. E tu... Estou a par da tua
situação. Tenho meios para investigar... Bom. Tu entendes. Estou a par
do teu problema. Depois de Madrid encarreguei-me de investigar.
Aquele barco no Índico. Dois anos de suspensão é muito tempo, não é
verdade? Eu, no entanto... Quero dizer que tenho amigos com barcos
que precisam de oficiais. Poderia ajudar-te.
Coy franziu o sobrolho. Tudo aquilo lhe dava a sensação de um
intruso revistando as suas gavetas. Voltar-se para a janela e verificar
que está lá alguém a espiar.
— Não preciso de ajuda.
— Hum, estou a ver — Palermo observava-o com muita atenção.
— Mas não enganas ninguém, sabes?... Deves achar-te um tipo
original, mas... Valha-me Deus! Já te vi cem vezes antes. Abre os
olhos. Se calhar, julgas-te o único que leu livros e foi ao cinema. Mas
estes não são os portos da Ásia, nem tu és... Nem sequer servirias para
um filme medíocre. Peter O'Toole tinha muito mais classe. E quando
ela... Bom. Vai deixar-te ao deus dará, como esses barcos fantasmas
saqueados e sem tripulantes... Neste romance não há segundas
oportunidades, vê se entendes. Neste mistério do barco perdido, o
capitão perde o título definitivamente. E a rapariga... foda-se. Aquela
cadela cospe-lhe na cara... Não, não me olhes assim. Não tenho dotes
de adivinho. Acontece, apenas, que o teu caso é tão elementar que dá
vontade de rir.
No entanto, não se riu. Estava sombrio, ainda na beira da mesa,
com uma mão de cada lado. Os olhos pardo e verde olhavam através
de Coy, absortos.
— Conheço-as bem — disse. — Cabras.
Agora abanava a cabeça. Esteve assim um pouco, sem abrir a boca.
Depois olhou em volta, como se tentasse reconhecer o sítio onde
estava. O seu próprio gabinete.
— Jogam com armas — acrescentou — que nós até ignoramos que
existem. E são... Valha-me Deus. São muito mais espertas do que nós.
Enquanto passávamos séculos falando em voz alta e bebendo cerveja,
indo para as Cruzadas ou para o futebol com os amigalhaços, elas
ficavam lá atrás, cosendo, cozinhando, observando...
O ouro tilintou-lhe, enquanto se dirigia a um pequeno armário e
tirava uma garrafa de Cutty Sark e dois copos largos e baixos, de
cristal pesado. Colocou gelo num balde, deitou uma generosa dose de
whisky em cada um e voltou com eles.
— Eu compreendo o que estás a passar — disse. Conservou um
copo na mão e colocou o outro na mesa, diante de Coy.
— Foram e ainda são nossas reféns, compreendes? — Bebeu um
gole e outro logo a seguir, sem deixar de o observar por cima do copo.
— ...Isso faz que a moral delas e a nossa sejam... Não sei. Diferentes.
Tu e eu podemos ser cruéis por ambição, por luxúria, por estupidez
ou por ignorância... Para elas, no entanto... Chama-lhe calculismo, se
quiseres. Ou necessidade... Uma arma defensiva, vê lá se me entendes.
São más, porque arriscam tudo e têm de sobreviver. Por isso lutam até
à morte, quando o fazem. Essas putas não têm retaguarda.
Tinha recuperado o sorriso de tubarão. Apontou para o pulso com
o indicador da outra mão.
— Imagina um relógio... Um relógio que é preciso fazer parar. Tu e
eu pará-lo-íamos como qualquer homem: à martelada. A mulher não.
Quando tem oportunidade, o que faz é desmontá-lo peça por peça.
Tirar tudo cá para fora, de modo a que ninguém volte a ser capaz de o
reconstruir. Que nunca mais volte a bater as horas... Valha-me Deus!
Já as viste... Sim. Desmontam para sempre o mecanismo de homens
capazes com um gesto, um olhar ou uma simples palavra.
Bebeu novamente e torcia a boca ao fazê-lo. Uma tintureira
rancorosa. Sedenta.
— Elas matam-nos e continuamos a andar sem sabermos que
estamos mortos.
Coy reprimiu o impulso de estender a mão para o copo que
continuava intacto em cima da mesa. Não pelo simples facto de beber,
que era o menos, mas para o fazer com o homem que tinha diante de
si. A Tripulação Sanders estava demasiado longe, o velho ritual
masculino tentava-o e, afinal de contas, reflectiu, era lógico que assim
fosse. Nesse momento, sentia outra vez saudades desesperadas de
bares cheios de tipos que pronunciavam palavras incoerentes com a
língua entumecida pelo álcool, garrafas vazias de gargalo para baixo
nos baldes de gelo, mulheres que não sonhavam com barcos
afundados ou que tinham deixado de acreditar nisso. Louras que não
eram jovens, mas que eram audazes, como na canção O Marinheiro e
o Capitão, dançando sozinhas sem se importarem que as tirassem à
sorte. Refúgios e esquecimento a tanto à hora. Mulheres sem
fotografias de meninas em molduras de prata, quando a terra firme se
convertia num lugar habitável durante algum tempo, em jeito de
escala, esperando o momento de regressar, entre as gruas e os
telheiros cinzentos pela madrugada, a qualquer barco prestes a largar
amarras, enquanto os gatos e as ratazanas brincavam ao jogo dos
quatro cantinhos no cais. Desci a terra, dissera uma vez em Veracruz o
Torpedeiro Tucumán. Desci a terra e só cheguei até ao primeiro bar.
— Às nove, no miradouro — disse Coy.
Albergava uma fúria desolada, incómoda, dirigida contra si
próprio. Cerrou os dentes, sentindo endurecerem-se-lhe os músculos
das mandíbulas. Nessa altura rodou sobre os calcanhares,
encaminhando-se para a porta.
— Achas que estou a mentir? — perguntou Palermo atrás de si. —
...Valha-me Deus. Depressa hás-de ver... Maldição. Devias ter
continuado no mar. Este não é sítio para ti. E hás-de pagar,
naturalmente — agora a sua voz soava exasperada. — Pagamos todos,
mais cedo ou mais tarde, e há-de chegar a tua vez. Pagarás por aquilo
do Palace e pagarás por não teres querido ouvir-me. Pagarás por ter
acreditado nessa puta embusteira. E, nessa altura, já não será uma
questão de encontrares barco, mas de encontrares um buraco onde
esconder-te... Quando ela, por seu lado, e eu, por outro5 tivermos
acabado contigo.
Coy abriu a porta. Só farás uma viagem gratuitamente, recordou.
O berbere estava ali imóvel e ameaçador, cortando-lhe a passagem. A
secretária espreitava com curiosidade da sua mesa e, ao fundo,
sentado na cadeira, Kiskoros cortava as unhas como se nada daquilo
fosse com ele. Após consultar o seu chefe, inquisitivo e silencioso, o
berbere afastou-se para um lado. Enquanto atravessava o vestíbulo a
caminho da rua, Coy ouviu ainda as últimas palavras do caçador de
tesouros: — Continuas a não acreditar em mim, não é verdade?...
Então pergunta-lhe pelas esmeraldas do Dei Gloria. Grande imbecil.

Ponto estimado, diziam os manuais de navegação, era quando


todos os instrumentos de bordo iam para o maneta, e não havia
sextante, nem lua, nem estrelas, e era preciso posicionar o barco
recorrendo à última posição conhecida, à bússola, à velocidade e às
milhas percorridas. Dick Sand, o capitão de quinze anos idealizado
por Júlio Verne, tivera de governar dessa forma a goleta Pilgrim no
decurso da sua acidentada viagem de Auckland a Valparaíso. Mas o
traidor Negoro colocou um pedaço de ferro na bitácula, desviando a
agulha. Dessa forma, o jovem Dick, entre furiosos temporais, tinha
passado junto ao cabo Horn sem o ver e, confundindo Tristão da
Cunha com a ilha da Páscoa, acabara encalhado na costa de Angola,
julgando estar na Bolívia. Um semelhante erro de cálculo não conhecia
comparação nos anais do mar, e Júlio Verne, concluíra Coy quando
lera aquele livro, sendo aluno de náutica, não tinha a mais remota
ideia da prática da navegação. Mas a lembrança longínqua dessa
leitura veio-lhe agora à cabeça com a força de uma advertência.
Navegar às cegas, baseando-se em cálculos, não colocava demasiados
problemas, se um piloto fosse capaz de posicionar-se a partir da
distância percorrida, do abatimento e da deriva, levando-os à carta
para estabelecer o suposto local em que se encontrava. O problema,
relativo no mar alto, convertia-se em grave na hora de se
aproximarem de terra: a entrada num porto. Às vezes, os barcos
perdiam-se no mar, mas muito mais amiúde os barcos e os homens
perdiam-se em terra. Colocavam um lápis sobre um ponto da carta e
diziam: estou aqui. E na realidade estavam ali, em cima de um baixio,
de recifes, uma costa a sotavento, e de súbito ouviam o ranger do
casco fendendo-se sob os seus pés. Craque! E aí tudo se acabava.
Evidentemente, havia um traidor a bordo. Ela tinha colocado um
pedaço de ferro na bitácula e, uma vez mais, ele vira-se calculando
mal os indícios de que dispunha. Mas o que antes tinha menos
importância, e dava mesmo emoção ao jogo, agora, na incerteza da
entrada próxima no porto, parecia inquietante. Todas as luzes de
alarme piscavam, vermelhas, no instinto marinheiro de Coy, enquanto
este caminhava pelo pequeno cais de Marina Bay, entre os iates
atracados nas proximidades da pista do aeroporto. Havia uma brisa
de levante que corria sobre o istmo e retinia contra os mastros e nas
adriças dos veleiros, servindo de pano de fundo à voz tranquila de
Tânger. Ela falava de esmeraldas e fazia-o com uma serenidade
incrível, tão fria como se aquele fosse um tema corrente ao qual se
referisse a todo o instante. Tinha ouvido em silêncio as recriminações
de Coy, sem responder aos sarcasmos que este preparou na
caminhada desde o escritório de Nino Palermo até ao porto
desportivo onde ela esperava notícias. Depois, quando ele esgotou a
sua argumentação e ficou a olhar para ela, contendo-se com
dificuldade e bastante furioso, à espera de uma explicação que o
impedisse de pegar na trouxa e sair porta fora nesse mesmo instante,
Tânger pusera-se a falar de esmeraldas com a maior naturalidade do
mundo, como se, durante aqueles dias, só tivesse estado à espera da
pergunta de Coy para lhe contar tudo. Embora, vá-se lá saber? se
aquele tudo, desta vez, era realmente tudo.
— Esmeraldas — dissera, em jeito de introdução, pensativa, como
se a palavra lhe recordasse alguma coisa. E depois ficou calada
durante algum tempo, contemplando o mar que se estendia, como um
semicírculo dessa mesma cor, pela baía de Algeciras. Depois, antes
que Coy blasfemasse pela terceira vez, pusera-se a falar da mais
preciosa e da mais delicada das pedras. Da mais frágil e da que mais
dificilmente reunia os atributos necessários: cor, limpeza, brilho e
tamanho. Ainda teve tempo de explicar que, com o diamante, a safira
e o rubi, constituía o grupo das quatro principais pedras preciosas e
que era, tal como as outras, mineral em forma cristalizada. Mas
enquanto o diamante era branco, a safira azul e o rubi vermelho, a cor
da esmeralda era um verde tão extraordinário e único que para o
definir era preciso recorrer ao seu próprio nome.
Depois de ela ter dito tudo isto, Coy parou e foi nessa altura que
blasfemou pela terceira vez. Uma blasfémia grosseira de marinheiro,
rotunda e seca, que invocava o nome de Deus em vão.
— E tu és uma trapaceira do caraças — acrescentou.
Ficou a olhar para ele fixamente, com muita atenção. Parecia pesar,
uma por uma, aquelas sete palavras. Os olhos estavam novamente
duros, não como a frágil pedra que acabara de descrever com total
sangue-frio, mas como a pedra escura, afiada como um punhal, à
espreita entre as ondas que quebram nos escolhos. Depois, ela olhou
para o lado, para a extremidade do cais, onde o mastro do Carpanta se
erguia a meio dos outros, com a vela maior cuidadosamente presa à
espicha. Quando retornaram a Coy, os olhos dela estavam diferentes.
A brisa agitava-lhe o cabelo sobre a cara pintalgada.
— O bergantim transportava esmeraldas, seleccionadas nas minas
que os jesuítas controlavam nas jazidas colombianas de Muzo e
Coscuez...
Foram embarcadas em Cartagena das índias com destino a Havana
e, mais tarde, levadas para bordo no maior segredo.
Coy desviou a vista para os pés, depois para o chão de tábuas do
cais, e deu alguns passos ao acaso, antes de ficar imóvel novamente.
Olhava para o mar. As proas dos barcos ancorados na baía curvavam-
se lentamente, acompanhando a brisa do Atlântico. Abanou a cabeça
de um lado para outro, como se estivesse a negar alguma coisa. Estava
tão surpreendido que continuava a não querer admitir a sua própria
estupidez.
— A esmeralda — prosseguia ela — tem dois pontos fracos: a sua
fragilidade, que a torna vulnerável ao talhamento, e o jardim: zonas
opacas, pontos de carvão por cristalizar que às vezes aparecem no seu
interior e a tornam mais feia... Isso significa, por exemplo, que uma
peça de um quilate vale mais que uma de dois quilates, se a primeira
tiver melhores atributos.
Falava agora com suavidade, quase com doçura. Como alguém
que explica uma coisa complicada a um rapaz pouco esperto. Um
avião militar descolou da vizinha pista do aeroporto, atroando o ar
com os seus motores. O ruído apagou por alguns instantes as palavras
de Tânger.
— ...para o talhe em facetas que é feito depois pelos joalheiros
especializados. E, dessa forma, uma esmeralda de vinte quilates,
desprovida de jardins, é uma das mais valiosas e procuradas que
existe — fez uma pausa e acrescentou: — Pode valer duzentos e
cinquenta mil dólares.
Coy ainda contemplava o mar, por cima do qual o avião tomava
lentamente altura. No outro lado do arco da baía fumegavam as
chaminés da refinaria de Algeciras.
— O Dei Gloria — disse Tânger — transportava duzentas
esmeraldas perfeitas, de vinte a trinta quilates cada uma.
Fez uma nova pausa. Movia-se, colocando-se diante dele. Agora
olhava-o de muito perto.
— Esmeraldas por lapidar — insistiu. — Grandes como nozes.
Coy tinha podido jurar que, desta vez, a voz dela tremia
ligeiramente. Grandes como nozes. Foi só uma impressão passageira,
pois quando prestou atenção viu-a tão senhora de si como sempre.
Continuava indiferente às censuras, sem necessidade de pronunciar
uma única palavra de justificação. Era o seu jogo e as suas regras.
Foi sempre assim, desde o princípio, e ela sabia que Coy o sabia.
Mentir-te-ei e trair-te-ei. Naquela ilha dos cavaleiros e dos escudeiros,
ninguém tinha prometido que o jogo seria limpo.
— Aquele carregamento — especificou ela — valia o resgate de um
monarca... Ou, para sermos mais exactos, o resgate dos jesuítas
espanhóis. O padre Escobar queria comprar o conde de Aranda.
Talvez também o gabinete da Pesquisa Secreta... Talvez o próprio rei.
Quase sem querer, Coy sentia que a curiosidade ia ocupando o
lugar da sua fúria. A pergunta surgiu antes mesmo de pensar em
formulá-la: — Estão lá em baixo, no fundo?
— Podem estar.
— Como sabes?
— Não sei. Temos de descer até ao bergantim para o averiguar.
Temos. Aquele plural soava como um bálsamo numa ferida e Coy
estava consciente disso.
— Ia contar-te quando estivéssemos lá... Não compreendes?
— Não. Não compreendo.
— Ouve. Tu conheces os riscos. Com toda essa gente atrás, eu não
sabia o que te poderia acontecer... Nem sequer agora o sei. Não podes
censurar-me por isso.
— Nino Palermo sabe. Sou o último a ficar a par, tal como os
maridos.
— Palermo pensa que há esmeraldas, mas ignora quantas.
Também não sabe como são nem por que estavam no bergantim.
Ouviu apenas uns boatos.
— Pois a mim parece-me muito bem informado.
— Ouve. Passei anos com aquele barco na cabeça, mesmo antes de
confirmar a sua existência. Nem Palermo nem ninguém sabem sobre o
Dei Gloria o que eu sei... Queres que te conte a minha história?
Não quero que me contes outra fiada de mentiras, teve Coy na
ponta da língua. Mas calou-se, porque realmente queria ouvir.
Precisava de mais peças, novas notas que desenhassem com precisão a
melodia estranha que ela traçava em silêncio. E, dessa forma, imóvel
no cais e com a brisa de levante que soprava atrás de si e continuava a
agitar o cabelo da rapariga, dispôs-se a ouvir a história de Tânger
Soto.
Havia uma carta, disse ela. Uma simples carta, uma folha
amarelada escrita de ambos os lados. Foi enviada por um jesuíta a
outro e, depois, esquecida por todos, ficou misturada com um monte
de papéis requisitados aquando da dissolução da Companhia de
Jesus. A carta estava escrita em código e vinha com a sua transcrição,
realizada por mão anónima, possivelmente a de um funcionário
encarregado de investigar os documentos expropriados à Companhia.
E junto a muitas outras de temas diversos e com transcrições
similares, tinha adormecido um sonho de dois séculos no fundo de
um arquivo catalogado como Clero Jesuítas Vários n°. 356. Ela
encontrou-a por acaso, quando fazia investigação no Arquivo
Histórico Nacional, preparando um trabalho universitário sobre a
Machinada de Guipúzcoa, em 1766. A carta era assinada pelo padre
Nicolás Escobar, nome que naquele momento não significava nada
para ela, e era dirigida a outro jesuíta, o padre Isidro López:

Reverendo Padre:

Desarmados dos nossos auxílios, caluniados perante o Rei e o Santo Padre


e objecto do ódio das pessoas fanáticas que Vossa Paternidade conhece de
sobra, muito perto estamos da bem traçada Catástrofe que com tanto sigilo se
industria. Os próprios eclesiásticos que são adversos à Companhia não se
recatam de ser corredores e proxenetas das calúnias que circulam
impunemente. Desta forma vamos sendo reduzidos as nossas próprias forças
por aqueles que tudo julgam lícito para atingir os seus fins e sequestram a
vontade, não só do Nosso Soberano, que por maus avisos de nós suspeita, mas
também dos nossos antigos amigos.
Tudo pressagia, Reverendo Padre, um golpe contra a nossa Ordem do
modo nefasto como se realizou o crime em França e em Portugal do ímpio
Pombal. Por canal seguro e directíssimo o menorita G. confirmou-nos a
relação conhecida por V. P. sobre os indivíduos que preparam a manobra e de
que modo se artificia a sua espécie. Mas nesse vasto negócio, disfarçado de
Averiguação Secreta, resta um resquício de esperança. Escrevo-vos a
presente, que vos chegará pelo canal seguro que nos é habitual, afim de vos
alentar a resistir enquanto realizamos a empresa que talvez disponha em
nossa justiça a vontade dos mais poderosos.
Com consulta prévia aos nossos superiores, e em atenção ao desígnio que
V. P já conhece, disponho-me a viajar na esperança de que, Ad Maiorem Dei
Gloriam (com esse nome e com esse amparo me disponho a embarcar), o vento
sopre nas boas direcções. Duzentos argumentos a modos de chamas de fogo
verde sem talhar, perfeitas e grandes como nozes (íris do Diabo, chama-os o
bom menorita) esperam em Cartagena das índias sob custódia do padre José
Luis Tolosa, que é jovem seguro e mui de fiar. Eu estarei em Havana, com a
ajuda de Deus, para finais do mês; e do mesmo modo espero regressar ao
Nosso Porto o mais cedo possível, com tanto sigilo e tão directamente quanto
os privilégios da Companhia nos permitam, evitando perigosas escalas
intermédias. O nosso dilecto Dom P. P. prometeu ao menorita esperar, e
apesar de tudo e das suas novas disposições e ambição, ainda podemos
considerá-lo indivíduo favorável; pois muito é o que tem por benefício neste
negócio.
Acrescentarei a V. P. a feliz nova que soube ontem pelo nosso querido
menorita que alguns amigos próximos do círculo da chorada Rainh,a-Mãe
continuam a ser-nos tão propícios como também o são o digno V. e também
H.; embora de este último nunca nos possamos fiar completamente pela sua
natureza intriguista. Quanto ao menorita, continua nas graças das pessoas
reais e movendo em nosso benefício os fios do negócio, e conta-nos que Dom
P. P. se mantém bastante receptivo ao que nos ocupa. Até ao meu regresso,
portanto, não resta senão Tacere et Fideri. E que a Divina Providência
disponha.
Receba Vossa Paternidade o mais respeitoso cumprimento do seu irmão
em Cristo
Nicolás Escobar Marchamalo, S. J.
No porto de Valência,
No primeiro de Novembro, A. D. de 1766

Com o tempo, Tânger tinha identificado todas as personagens


citadas na carta. A rainha-mãe Isabel Farnesio, bastante favorável à
Companhia de Jesus, tinha morrido meio ano antes. O destinatário era
o padre Isidro López, o mais influente dos jesuítas espanhóis, que
gozou de excelente posição na corte do rei Carlos III e que faleceria em
Bolonha dezoito anos depois de extinta a Companhia, sem ter
conseguido regressar do desterro. Quanto às iniciais, estas não
colocavam dificuldades para alguém habituado a manejar livros de
História: P. P. era Pedro Pablo Abarca, conde de Aranda. Atrás da
inicial H. ocultava-se apenas o nome de Lorenzo Hermo-so, um índio
de Caracas residente em Espanha, intriguista e conspirador, que
esteve implicado no motim de Esquilache e que, após a queda dos
jesuítas, acabou preso e mais tarde desterrado, depois de o fiscal ter
pedido para ele tormento tanquam in cadavere. A pessoa designada
como V. era Luis Velázquez de Velasco, marquês de Valdeflores,
literato e íntimo da Companhia, que haveria de pagar essa amizade
com dez anos de prisão nos presídios de Alicante e Alhucemas. E a
inicial G. referia-se ao menorita Gándara, conhecido na corte de Carlos
III como o principal apoio dos jesuítas perto do rei, a quem
acompanhava como escopeteiro nas suas caçadas. O seu verdadeiro
nome era Miguel de La Gándara, e a sua infeliz personagem poderia
ter inspirado O Conde de Monte Cristo ou A Máscara de Ferro. Preso
pouco antes da queda da Ordem, viveu na prisão os dezoito anos que
lhe restavam de vida e morreu na cadeia de Pamplona, sem que
ninguém tivesse determinado com clareza os motivos da sua
condenação.
A personagem do menorita Gándara tinha fascinado Tânger, ao
ponto de acabar por fazer sobre ele a sua tese de licenciatura. Isso
levou-a a investigar todos os papéis sobre os seus processos e prisão,
conservados na Secção Graça e Justiça do Arquivo Nacional de
Simancas. Descobriu inclusivamente o nome do barco jesuíta que só se
mencionava veladamente na carta: Dei Gloria. Dessa forma, pôde
comprovar que a despedida do padre Nicolás Escobar ao padre
López, onde mencionava Gándara, foi escrita um dia antes da
detenção deste, efectuada a 2 de Novembro de 1766; a mesma data em
que Escobar zarpava para a América a bordo do bergantim com o qual
desapareceria no mar durante a viagem de regresso. A tese de Tânger
chamou-se O menorita Gándara, conspirador e vítima e valeu-lhe uma
excelente qualificação académica para a sua licenciatura em História.
Abundava em dados sobre a sua longa prisão, os interrogatórios e os
processos judiciais do menorita, encerrado em Batres e mais tarde em
Pamplona, onde ficaria recluso até à sua morte, sem que ninguém
conseguisse nunca esclarecer as razões da sanha que lhe dedicaram
Aranda e os outros ministros de Carlos III, excepto a sua amizade com
a Companhia de Jesus, cujos membros — entre eles o destinatário da
famosa carta — foram detidos cinco meses depois da prisão do
menorita, desterrados para Itália e extinta a Ordem. Quanto à viagem
do padre Escobar para Havana, e àquelas duzentas chamas de fogo
verde a que cifradamente aludia, nunca se obteve resposta de
Gándara, apesar de alguns interrogatórios mencionarem o tema. O
segredo do Dei Gloria morreu com ele.
Depois, a vida seguiu o seu curso e Tânger teve outras coisas com
que se ocupar. O concurso para o Museu Naval e o trabalho
concentraram a sua atenção, e novos assuntos se atravessaram na sua
vida. Até que um dia lhe apareceu Nino Palermo. Farejando em livros
e catálogos, o caçador de tesouros tinha encontrado a referência de um
relatório do departamento marítimo de Cartagena, datado de 8 de
Fevereiro de 1767, sobre a perda do Dei Gloria em combate com um
corsário. O índice referia-se a documentos enviados para o Museu
Naval de Madrid, de modo que Palermo foi até lá à procura de
informações, e o acaso colocou Tânger no seu caminho. Foi ela a
encarregada de ouvir as petições do gibraltino. Este tinha abordado o
tema à maneira do seu ofício, ou seja, camuflado entre pistas falsas,
sem, aparentemente, lhe dar importância. Mas de repente, em plena
conversa, ela ouviu o nome do Dei Gloria. Um bergantim perdido,
disse Palermo, na rota de Havana para Cádis. Aquilo reavivou as
lembranças de Tânger, criando conexões precisas entre o que, até esse
momento, eram fios soltos. Tinha escondido a sua emoção,
dissimulando o mais que pôde. Mais tarde, depois de se livrar do
caçador de naufrágios com promessas vagas, verificou que o
documento pelo qual ele se interessara tinha sido enviado, há algum
tempo, para o Arquivo Geral da Marinha em Viso del Marquês. No
dia seguinte estava lá e, na Secção de Corso e Presas, encontrou o
nome do barco: Relação sobre a perda do bergantim Dei Gloria, a 4 de
Fevereiro de 1767, em combate com o chaveco corsário que se
presume seja o chamado Serguí... Ali estava tudo o que, oficialmente,
se sabia sobre o naufrágio, com a declaração do único sobrevivente.
Era a resposta ao mistério, o desenlace da aventura cujo início ela
tinha vislumbrado há anos, na carta do jesuíta.
Ali estava a razão pela qual o bergantim nunca chegara ao porto, e
o menorita Gándara tinha sido interrogado até à sua morte na prisão.
Ali se esclarecia o destino das duzentas chamas de fogo verde, que
deviam ter convencido os membros do gabinete da Pesquisa Secreta e
talvez mesmo o próprio rei a não aniquilar os inacianos.
Estava estupefacta, fascinada e também furiosa. Ela tivera tudo
diante dos olhos, tempos atrás, e não soubera ver. Não estava
preparada. Mas inesperadamente, como num quebra-cabeças
complicado cuja peça mestra se descobre, tudo ia ocupar o seu lugar
na paisagem. Tânger voltou para trás, para os seus cadernos e para os
seus velhos apontamentos de licenciatura, unindo-os aos novos.
Agora, a tragédia do menorita Gándara — que nem sequer o núncio
de Roma conseguiu explicar ao Papa na sua correspondência da época
— estava esclarecida. O menorita sabia que carga transportava o Dei
Gloria. A sua proximidade ao rei, a sua presença na corte, convertiam-
no em intermediário idóneo para a gigantesca operação de suborno
preparada pelos jesuítas. Fora ele o encarregado de negociar com o
conde de Aranda. Mas alguém tinha querido impedir a manobra, ou
apoderar-se directamente da presa, e Gándara foi preso e interrogado.
Depois, o corsário Chergui entrou em cena de forma casual ou
premeditada, e tudo acabou por sair mal para todos. Expulsos os
jesuítas, afundado o barco em circunstâncias não esclarecidas,
Gándara era a pedra angular do assunto. Por isso o tinham mantido
nas suas garras durante dezoito anos, interrogando-o sem descanso.
Agora, indícios soltos entre as actas dos diferentes processos faziam
sentido. Até ao fim quiseram que revelasse o que sabia sobre o
bergantim. Mas o menorita tinha-se mantido calado, levando o
segredo consigo para o túmulo. Só ergueu a ponta do véu numa
ocasião, numa determinada carta interceptada, escrita por ele em 1778,
anos depois dos acontecimentos, ao missionário jesuíta Sebastián de
Mendiburu, exilado em Itália: «Perguntam por íris do Diabo, grandes
e perfeitas, com jardins limpos como a minha consciência. Mas eu
calo-me, e, sendo eu o atormentado, é isso que na sua ambição os
atormenta.»
Com todo este material, Tânger tinha conseguido reconstituir
quase passo a passo a história das esmeraldas e a viagem do Dei
Gloria. O padre Escobar zarpou de Valência a 2 de Novembro,
ignorando, paradoxalmente, que nesse mesmo dia o menorita
Gándara era detido em Madrid. O bergantim, comandado pelo
capitão Elezcano — irmão de um dos superiores da Companhia —
atravessou o Atlântico, chegando a Havana a 16 de Dezembro. Aí se
encontrou com o padre Tolosa, o jesuíta «jovem, seguro e mui de fiar»
que tinha sido enviado à frente com a missão de reunir em segredo
duzentas esmeraldas procedentes das minas controladas na Colômbia
pela Companhia. Tratava-se de pedras por talhar, as maiores e as
melhores em cor e pureza. Tolosa tinha cumprido a sua missão e
embarcado depois em Cartagena das índias a bordo de outro navio. A
sua viagem atrasou-se devido a ventos contrários sofridos entre Gran
Caimán e a ilha de Los Pinos e quando, finalmente, conseguiu dobrar
o cabo San António e passar sob os canhões do Castelo Del Moro, o
Dei Gloria já esperava, ancorado na baía de Havana, num discreto
ancoradouro entre a enseada de Barrero e Cayo Cruz. O transbordo
do carregamento fez-se certamente de noite, ou camuflado entre as
mercadorias declaradas na lista de embarque. Os padres Escobar e
Tolosa figuravam como passageiros, com uma tripulação de vinte e
nove homens que incluía o capitão Dom Juan Bautista Elezcano, o
piloto Dom Carmelo Valcells, o ajudante de piloto com quinze anos
Dom Ignacio Palau, ajuno de náutica e sobrinho do armador
valenciano Fornet Palau, e vinte e seis marinheiros. O Dei Gloria
zarpou de Havana a 1 de Janeiro, percorreu a costa da Florida até ao
paralelo 30, subiu mais cinco graus de latitude, navegando para
levante entre o sul das Bermudas e os Açores, e nesse trajecto sofreu o
temporal que causou estragos na mastreação e tornou necessárias as
bombas de extracção de água. O bergantim seguiu rumo para este,
evitou o porto de Cádis, de cuja escala obrigatória o punham a salvo
os privilégios ainda vigentes da Companhia, e passou diante de
Gibraltar entre 1 e 2 de Fevereiro. No dia seguinte, quando já tinha
dobrado o cabo da Gata e rumava para nordeste em busca do cabo de
Paios e de Valência, o Chergui iniciou a perseguição.
A actuação do chaveco corsário era um enigma que talvez nunca
se viesse a esclarecer. Estar de atalaia, era alguma enseada escondida
da costa andaluza ou no próprio rochedo de Gibraltar, pode ter sido
casual ou não. Estava documentado que o Chergui navegava com
cartas de corso inglesas ou argelinas, consoante as circunstâncias, e
que Gibraltar era um dos seus poisos habituais, embora nessa data
continuasse em vigor uma paz precária entre Espanha e Inglaterra.
Talvez tenha escolhido o Dei Gloria como presa por acaso. Mas a sua
tenacidade na perseguição, a sua presença no momento e no local
adequados eram demasiado oportunas para serem casuais. Não era
difícil atribuir ao corsário um lugar no complexo jogo de interesses e
cumplicidades da época. O próprio conde de Aranda ou qualquer um
dos membros do gabinete da Pesquisa Secreta que ordenaram a
detenção do menorita Gándara — alguns deles adversários políticos
do próprio Aranda — podiam ter dados sobre o assunto e pretender
ficar com o tesouro dos jesuítas, mesmo antes de este lhes ser
oferecido, matando dois coelhos com um só tiro.
De qualquer forma, os perseguidores não contavam com a
tenacidade do capitão Elezcano, a qual não devia ser alheia à presença
a bordo dos dois resolutos jesuítas. Travou-se combate, ambos os
barcos foram a pique, e as esmeraldas ficaram no fundo do mar. A
informação fornecida pelo ajudante de piloto sobrevivente era
satisfatória, e as autoridades da marinha encarregadas da investigação
inicial não tinham motivos para indagar demasiado. Um barco
afundado por um corsário era habitual naquele tempo. Mais tarde,
quando chegou a ordem de Madrid para investigar mais a fundo, a
testemunha tinha-se esfumado, um desaparecimento misterioso e
oportuno, organizado pelos jesuítas, que nessa altura ainda gozavam
de cumplicidades entre as autoridades locais. Sem dúvida, a
Companhia estudou a possibilidade de um resgate clandestino do
bergantim, mas já era tarde: veio o golpe, a prisão e a diáspora. Tudo
se perdeu no marasmo que se seguiu à queda da Ordem e à sua
posterior extinção. O silêncio do menorita Gándara, o desterro e a
morte daqueles que estavam a par do segredo, foram velando ainda
mais o mistério. Ficou demonstrada a existência de duas tentativas
oficiais de busca do navio naufragado, por parte das autoridades da
marinha, ainda com o conde de Aranda no poder, mas nenhuma deu
resultado. Depois, novos acontecimentos sacudiram a Espanha e a
Europa, e o Dei Gloria acabou por ser esquecido. Além da menção
concisa no livro A Frota Negra, escrito pelo bibliotecário de San
Fernando em 1803, só ficou demonstrada uma última e curiosa
proposta feita dois anos mais tarde a Manuel Go-doy, primeiro-
ministro do rei Carlos IV, para a procura «de certo barco que, com
esmeraldas de Cuba, se dizia ter afundado», conforme o próprio
Godoy citava nas suas Memórias. Mas a ideia não prosperou e, nas
anotações manuscritas à margem da proposta, cujo original Tânger
tinha examinado no Arquivo Histórico Nacional, manifestava-se o
cepticismo de Godoy «pela inconsistência da ideia e porque, como é
sabido, em Cuba nunca houve esmeraldas». E depois disso, durante
quase dois séculos, o Dei Gloria afundou-se outra vez no
esquecimento e no silêncio.
Tânger e Coy tinham parado numa ponta do cais, junto à proa de
uma pequena escuna. Ela olhava para a baía, em cuja extremidade se
destacavam nitidamente os edifícios de Algeciras. A água estava
tranquila, de um azul esverdeado levemente encrespado pela brisa de
poente. Agora havia mais nuvens no céu, deslocando-se devagar em
direcção ao Mediterrâneo. Diante do porto, sob a massa de rocha, os
barcos ancorados pontilhavam a água. Talvez o Chergui tivesse saído
dali mesmo para a sua última viagem, depois de esperar ao abrigo das
baterias inglesas do Rochedo. Um vigia com um óculo lá em cima,
uma vela avistada no horizonte, na direcção oeste-leste, uma âncora
levantada com rapidez e sigilo. E a caça.
— Nino Palermo sabe que há esmeraldas — concluiu Tânger. —
Não sabe quantas há nem como são, mas sabe-o. Viu alguns dos
mesmos documentos que eu. É inteligente, conhece o seu ofício e sabe
juntar os fios... Mas ignora tudo o que eu sei.
— Pelo menos sabe que o enganaste.
— Não sejas ridículo. Não se enganam tipos como ele. Batemo-nos
contra eles com as suas próprias armas.
Voltou-se para a outra extremidade do cais, onde estava amarrado
o Carpanta. Entre os mastros e aparelhos dos barcos vizinhos, Coy
conseguia ver a cabeça do Piloto afadigando-se no convés. Tinha
chegado pela manhã, sonolento e por barbear, com a sua pele morena
e gretada pelo sol, as mãos rudes, ásperas ao contacto, e os olhos que
pareciam sempre da cor do mar no Inverno. Três dias de navegação
desde Cartagena. Os vapores, contava — o Piloto chamava sempre
vapores aos barcos da marinha mercante — não o tinham deixado
pregar olho durante toda a viagem. Já ia ficando velho para navegar
sozinho. Demasiado velho.
— Eu investiguei, entendes? — prosseguia Tânger. — Palermo não
fez mais do que, acidentalmente, provocar o clique mental que
colocou cada coisa no seu lugar. Ordenar na minha cabeça coisas que
já estavam aí, à espera... Aqueles dados que, por alguma razão,
desconfiamos que um dia significarão alguma coisa e que, até essa
altura, guardamos num recanto da nossa memória.
Agora era sincera e Coy apercebia-se disso. Agora, ela tinha
contado a sua história real e ainda falava acerca disso. E, pelo menos
no que se referia a factos concretos, não restava nada oculto. Ele já
possuía as chaves, a relação dos acontecimentos, o que jazia no fundo
do mar e do mistério. No entanto, não estava completamente
tranquilo nem aliviado. Mentir-te-ei e trair-te-ei. Uma nota
desconhecida, por identificar, vibrava nalgum lado, como a mudança
quase imperceptível de rotações num motor diesel ou a intervenção
melódica de um instrumento cuja oportunidade não é possível
estabelecer de imediato, deliberado ou improvisado, misterioso até
chegar o final e ser possível situá-lo adequadamente. Recordava-lhe
uma peça de Thelonius Monk Quartet, um blues clássico que se
chamava precisamente assim: Misterioso.
— Intuição, Coy — disse ela. — Essa é a palavra... Sonhos que
temos a certeza de que um dia se materializarão — continuava a
contemplar o mar como se resumisse aquele sonho, a saia agitando-se
na brisa, os pés calçados com sandálias, o cabelo na cara. — ...Eu
trabalhei nisto, mesmo antes de saber aonde me levaria, com um
empenho que não podes imaginar. Queimei as pestanas. E de repente,
um dia... Tudo fez sentido.
Voltou-se e tinha um sorriso na boca. Um sorriso pensativo, quase
expectante, quando olhou para ele semicerrando um pouco os olhos
devido ao efeito da luz. Um sorriso feito de pele pintalgada em redor
da boca e dos pómulos, tão cálido que podia sentir-se o seu calor
expandindo-se pelo pescoço, pelos ombros, pelos braços e sob a
roupa.
— Como um pintor — acrescentou — que levasse um mundo as
costas e, de súbito, uma pessoa, uma frase, uma imagem fugaz
desenhassem um quadro completo na sua cabeça.
Sorria com aquela expressão de mulher bonita e sábia, serena,
porque consciente de si própria. Havia carne sob aquele sorriso,
pensou ele, inquieto. Havia uma curva que se enlaçava com outras
linhas perfeitas, prodígio de complicadas combinações genéticas. Uma
cintura. Umas coxas cálidas que escondiam o único dos verdadeiros
mistérios.
— Esta é a minha história — concluiu Tânger. — Estava-me
destinada, e toda a minha vida, os meus estudos, o meu trabalho no
Museu Naval me encaminhavam para ela, antes de eu mesma o
saber... Por isso Palermo não é mais do que um intruso. Para ele trata-
se apenas de um barco, de um tesouro possível entre muitos —
desviou os olhos de Coy, olhando novamente para o mar. — Para
mim é o sonho de toda uma vida.
Ele coçou, desajeitadamente, o queixo por barbear. Depois coçou a
nuca e por fim o nariz. Procurava palavras. Alguma coisa vulgar,
quotidiana, que afastasse da sua própria carne a impressão daquele
sorriso.
— Mesmo que o encontres — insinuou — não poderás ficar com o
tesouro. Há leis. Ninguém pode resgatar um navio naufragado sem
mais nem menos.
Tânger continuava atenta à baía. As nuvens que continuavam a
deslocar-se para este escureciam, pouco a pouco, o mar. Uma réstia de
sol deslizou sobre eles, antes de se afastar sobre a água dos molhes,
com tons de esmeralda.
— O Dei Gloria pertence-me — respondeu ela. — E ninguém mo
vai tirar. É o meu falcão de Malta.

IX - MULHERES DE CASTELO DE PROA

Não há nada que eu ame tanto como o muito que odeio este jogo.
John MacPhee. Procurando Barco

— Está na hora — disse Tânger. Abriu os olhos e viu-a junto dele,


esperando. Estava sentada num dos bancos de teca do poço do
Carpanta e olhava-o atenta, como se tivesse passado algum tempo a
observá-lo, antes de lhe sacudir o ombro. Coy estava deitado no outro
banco, coberto com o seu casaco, a cabeça em direcção à proa e os pés
junto do leme e da bitácula. Não havia vento, e só se ouvia o
chapinhar suave das pequenas vagas entre os cascos dos barcos
amarrados ao molhe de Marina Bay. Lá em cima, no céu e para lá do
mastro que oscilava suavemente, os cúmulos mais altos adquiriam
tons rosados.
— Está bem — respondeu, rouco.
Conservava o costume de acordar imediatamente, completamente
lúcido. Muitos quartos de serviço à ponte tinham-no habituado a isso.
Levantou-se, afastando o casaco, e fez alguns movimentos para
desentorpecer o pescoço dorido. Depois desceu para passar a cara e o
cabelo por água e subiu penteando-se para trás com as mãos, entre
sacudidelas de cão molhado. A barba picava-o no queixo. Com a
longa sesta, conveniente porque se propunham navegar de noite,
tinha-se esquecido de se barbear. Ela continuava no mesmo sítio, e
esquadrinhava agora o cimo do Rochedo com o ar preocupado de um
montanhista que se dispusesse a escalar a rocha. Tinha trocado a saia
comprida de algodão azul por umas calças de ganga e uma camisola
de manga curta e levava uma camisola preta amarrada à cintura. Coy
chegou ao convés rodeado pelo grito das gaivotas ao entardecer. Viu
aí o Piloto a polir os amarelos com um pano e com as mãos negras de
Sidol — cuida do barco, costumava dizer, que ele cuidará de ti. O
Carpanta era um veleiro clássico com poço central, de um só mastro,
construído em La Rochela quando o plástico não tinha substituído
ainda o iroco, a teca e o cobre. — Piloto — chamou.
Os olhos cinzentos, rodeados por centenas de rugas morenas,
olharam-no por baixo das sobrancelhas frondosas com uma piscadela
amistosa e tranquila. De acordo com as suas próprias palavras,
embora não fosse muito dado a elas, o Piloto navegava a caminho dos
sessenta anos com o vento na alheta. Tinha sido corneteiro de ordens
do cruzador Canárias quando nos cruzadores as ordens se davam com
clarim, e também pescador, marinheiro, contrabandista e
mergulhador. Tinha o cabelo da mesma cor acinzentada dos olhos,
crespo, muito curto, a pele curtida como couro velho e umas mãos
ásperas e hábeis. Há menos de dez anos, era ainda tão bem-parecido
que teria podido encarnar um galã de cinema num filme de aventuras,
de pescadores de esponjas ou de piratas, com Gilbert Roland e Alan
Ladd. Agora tinha engordado um pouco, mas conservava os ombros
largos, a cintura razoavelmente estreita e os braços fortes. Na sua
juventude foi um excelente dançarino e, naquele tempo, as mulheres
dos bares do Molinete rivalizavam para dançar um bolero ou um
pasodoble com ele. Às turistas maduras, que alugavam o Carpanta
para ir à pesca, tomar uns banhos ou dar umas voltas pelos arredores
do porto de Cartagena, ainda lhes tremiam as pernas quando ele as
colocava entre os braços para que agarrassem a roda do leme.
— Tudo bem?
— Tudo bem.
Conheciam-se desde que Coy era criança e fugia do colégio para
vagabundear pelos molhes, entre barcos de bandeiras estranhas e
marinheiros que falavam línguas incompreensíveis. O Piloto, filho e
neto de outros marinheiros que também se chamaram Piloto, podia
encontrar-se pela manhã encostado a qualquer tasca do porto, honesto
mercenário do mar, esperando clientes para o seu velho veleiro. Além
de passear turistas a quem dava uma palmada no rabo para subirem a
bordo, naquele tempo o Piloto mergulhava para desembaraçar cabos
das hélices, raspar cascos sujos e resgatar motores fora de borda
caídos à água. Nos tempos livres dedicava-se, como toda a gente na
época, ao pequeno contrabando. Agora, os seus ossos já não estavam
capazes de ficar muito tempo a demolhar, e ganhava a vida passeando
famílias domingueiras, tripulantes de petroleiros ancorados diante de
Escombreras, pilotos em dia de temporal, marinheiros ucranianos
cheios até acima de jumilla que largavam lastro pela borda, a
sotavento, depois de lhes terem partido as fuças nos bares da cidade.
Ele e o Carpanta já tinham visto de tudo: o Sol no zénite, sem um
sopro de brisa, fazendo arder os cabeços de amarração do porto. O
mar batendo a sério, quando Deus se aborrecia. O levante vibrando na
enxárcia como nas cordas de uma harpa. E o entardecer
mediterrânico, longo e cor de fogo, quando a água parecia um espelho
e a paz do mundo parecia a própria paz, e compreendíamos que não
passávamos de uma gotinha minúscula em três mil anos de mar
eterno.
— Estaremos de volta dentro de umas duas horas. — Coy deu uma
olhadela ao alto do Rochedo, para onde Tânger continuava a olhar —
Largamos amarras logo a seguir.
O outro concordou sem deixar de polir um dos cunhos de bronze.
Ao seu lado, adolescente, Coy tinha aprendido algumas coisas sobre
os homens, sobre o mar e sobre a vida. Juntos recuperaram ânforas
romanas para as venderem por baixo da mesa, pescaram lulas ao
entardecer na Punta de La Podadera, imperadores, marraxos e
tintureiras com palangre, em frente a Cope, e meros de dez quilos com
espingarda de elástico, entre as rochas negras do cabo de Paios,
quando no cabo de Paios ainda havia meros para pescar. No
Cemitério dos Barcos Sem Nome, onde as velhas embarcações
terminavam a sua última viagem para serem desmanteladas e
vendidas como sucata, o Piloto ensinara-o a identificar cada uma das
partes que compunham um barco, enquanto temperavam amêijoas e
ouriços crus com sumo de limão, muito antes de Coy ir para a escola
de náutica tornar-se marinheiro. E naquela paisagem desolada de
pranchas oxidadas, de enormes arcaboiços encalhados na praia, de
chaminés apagadas para sempre e cascos como baleias mortas ao sol,
o Piloto tinha tirado de um maço de Celtas sem filtro o primeiro
cigarro da vida de Coy, acendendo-o com um isqueiro de torcida, de
latão, que tinha um cheiro acre, a morrão queimado.

*1. Jumilla: vinho seco e doce produzido em Jumilla, na província de


Múrcia. (N. da T.)

Agarrou no casaco e saltou para o molhe. Tânger juntou-se-lhe,


levando a carteira a tiracolo.
— Que tempo teremos esta noite? — perguntou ela.
Coy deu uma olhadela ao mar e ao céu. Algumas nuvens isoladas
começavam a desvanecer-se, expondo filamentos em várias direcções.
— Bom tempo. Com pouco vento. Talvez um pouco de ondulação
quando passarmos por Punta Europa.
Surpreendeu, divertido, um brevíssimo gesto de contrariedade
quando ela ouviu a palavra ondulação. Teria graça, pensou, que
enjoasse num barco. Até esse momento nunca tinha considerado a
possibilidade de a ver enjoada como uma pescada, macilenta,
apoiando-se abatida na amurada.
— Tens biodramina?... Talvez devesses tomar uma pastilha antes
de largarmos.
— Esse não é um problema teu.
— Enganaste. Se enjoares a bordo, serás um traste inútil. E isso já é
um problema meu.
Não obteve resposta e Coy encolheu os ombros. Caminharam pelo
molhe até ao Renault estacionado no terreno da marina. O Sol-poente,
visível atrás das nuvens paradas sobre Algeciras, avermelhava a
parede vertical do Rochedo, revelando os buracos escuros das antigas
frestas de artilharia escavadas na rocha. Duas decrépitas lanchas
contrabandistas reformadas do mar, com a pintura azul e preta caindo
aos bocados, apodreciam sobre cavaletes, entre motores oxidados e
bidões vazios. O rumor da cidade foi-se intensifi" cando à medida que
se aproximavam do estacionamento. Um entediado funcionário
aduaneiro via televisão na sua guarita. Uma longa fila de automóveis
fazia bicha para atravessar a fronteira na direcção de La Línea de La
Concepción.
Foi ela quem ficou ao volante. Conduziu com cuidado, com a
carteira no colo, segura e sem pressa, pela rua que continuava atrás
dos baluartes fronteiros à baía, virando depois à esquerda, na direcção
da rotunda do cemitério de Trafalgar. Não dissera uma palavra até
esse momento. Então parou o carro, puxou o travão, consultou o
relógio e parou o motor.
— Qual é o plano? — perguntou Coy.
Não havia plano nenhum, respondeu ela. Iam subir ao miradouro
Old Willis e ouvir o que Nino Palermo tinha para dizer. Iam fazer
exactamente isso e depois regressariam ao porto, deixariam o carro no
estacionamento e as chaves na caixa de correio da Avis, e largariam
como estava previsto.
— E se houver complicações?
Coy pensava em Horacio Kiskoros e no berbere. Palermo não era
tipo para fazer uma proposta e se conformar com a resposta vamos
ver e até logo. Por isso, antes de descer a terra, munira-se de uma
navalha náutica Wichard bem afiada, com uma lâmina de meio
palmo, e uma chave de manilha, que o Piloto tinha para cortar adriças
em caso de emergência. Sentia-a cravada no bolso traseiro das calças
de ganga, entre a nádega direita e o assento. Aquilo não era grande
coisa, mas sempre era melhor que fazer vida social de mãos a abanar.
— Não creio que haja complicações — respondeu ela. Olhava para
a porta fechada do cemitério. Depois do almoço, dando um passeio,
tinham passado por ali e Tânger esteve muito tempo diante de uma
das lápides: a do capitão de infantaria da marinha Thomas Norman,
que morrera a 6 de Dezembro de 1805 das feridas recebidas a bordo
do navio Mars, em Trafalgar. Depois tinham subido até ao miradouro
para estudar o sítio onde iam encontrar-se com Palermo ao anoitecer.
Aí Coy continuou a observá-la, enquanto caminhava sobre as velhas
estruturas de betão desprovidas de canhões. Tânger examinava tudo
com muita atenção, a estrada de acesso e a que subia até aos túneis do
Grand Asedio, os barracões militares caiados e vazios, a bandeira
britânica sobre Morish Castle, o istmo onde ficava o aeroporto, a
extensa praia de Atunara que se estendia para nordeste, em território
espanhol. Parecia um militar estudando o terreno antes de um
combate. E Coy deu consigo próprio a calcular possibilidades, abrigos
e perigos, como quando se estuda em cartas ou roteiros uma costa
perigosa onde se chega de noite.
— Aconteça o que acontecer — disse Tânger — não intervenhas.
Agora apoiava as mãos no volante, sem afastar os olhos da porta
do cemitério. Isso é fácil de dizer, pensou Coy. De modo que
continuou calado. Tinha pensado em pedir ao Piloto que os
acompanhasse também até lá acima. Dependendo da necessidade, três
era um número melhor do que dois. Do que ele e ela sozinhos. Mas
não queria implicar demasiado o seu amigo. Ainda não.
Tânger consultou outra vez o relógio. Depois meteu uma mão na
carteira e tirou o maço de Players. Desde Madrid que não a via fumar
e, se calhar, era o mesmo maço, porque só restavam quatro cigarros.
Pressionou o isqueiro do tablier e pôs-se a fumar devagar, travando o
fumo muito tempo antes de o expelir.
— Tens mesmo a certeza? — quis saber ele.
Assentiu em silêncio. No seu pulso direito, o ponteiro dos minutos
tinha passado das quinze para as nove para as dez para as nove. A
brasa do cigarro já lhe roçava as unhas curtíssimas. Então abriu a
janela e atirou a beata para a rua.
— Vamos lá.
Era como um daqueles filmes de que ela gostava, concluiu Coy,
admirado. Henry Fonda apoiado na vedação sob um amanhecer a
preto e branco, preparando-se para ir até ao O.K. Corral. E, no
entanto, alguma coisa na sua atitude era tão diabolicamente real, tão
firme aquela forma de ligar novamente o motor e subir pela encosta
do Rochedo, passando junto do Hotel Rock e reduzindo a marcha à
medida que a inclinação da estrada se tornava mais pronunciada, que
tirava qualquer possível artifício à situação. Aquilo era
completamente real, e Tânger não interpretava nenhum papel em sua
honra. Não pretendia impressioná-lo. Era ela própria quem conduzia,
quem tentava manter o carro afastado da perigosa berma e dos
precipícios, quem fazia as curvas estreitas com uma calma fria, segura,
uma mão no volante e outra no manípulo das velocidades, olhando de
vez em quando para o cimo da montanha com uma expressão atenta.
E, por fim, ao chegar lá acima, no terreno aberto junto do miradouro,
ainda manobrou o carro de modo a deixá-lo voltado novamente para
a estrada, ladeira abaixo. Pronto para sair zunindo, pensou Coy
inquieto, enquanto ela abria a porta e saía do carro com a camisola
amarrada à cintura e a carteira nas mãos.
Havia um Rover estacionado perto, junto à muralha do antigo
baluarte. Foi a primeira coisa que Coy viu ao sair do carro: o Rover e o
motorista berbere apoiado ao guarda-lamas. Depois, o seu olhar
descreveu um arco para a esquerda, para a estrada dos túneis, para a
encosta em direcção ao cimo escarpado do Rochedo, para as
casamatas abandonadas e para o mirante sobre o aeroporto, com o
istmo e Espanha ao fundo, montanhas sombrias, céu escuro, mar
cinzento a oeste e negro a este, e a iluminação de La Línea acendendo-
se em baixo, ao lusco-fusco. Feio sítio para conversar, disse para
consigo. E depois olhou para o parapeito do miradouro, onde Nino
Palermo os esperava.
Tânger já lá estava. Foi atrás dela aspirando o aroma que
anunciava o Mediterrâneo, sal, tomilho e resina, na brisa que fazia
mover os arbustos e as copas das árvores. Deu outra vista de olhos em
redor, sem ver Horacio Kiskoros em lado nenhum. Palermo
permanecia encostado ao parapeito, com as mãos nos bolsos de um
blusão leve, sem colarinho. Aquela peça de roupa fazia-o parecer
ainda mais corpulento do que era.
— Boa noite — disse.
Coy murmurou um «boa noite» automático e Tânger não disse
nada. Estava imóvel diante do caçador de tesouros, observando-o.
— Qual é a proposta? — perguntou.
Como se ela não estivesse ali, Palermo dirigiu-se a Coy.
— Algumas vão directas ao assunto, não é verdade?
Coy não respondeu, recusando aceitar a cumplicidade que ele lhe
oferecia. Ficou mais atrás, um pouco afastado mas atento, ouvindo.
Ela era a chefe, e naquela noite ele participava mais como guarda-
costas do que como outra coisa qualquer. Sentia o peso da navalha no
bolso de trás e disse para consigo que o berbere não era um tipo muito
eficiente, apesar de tudo, vigiando-o ao longe. Revistava-o quando ia
limpo e não o revistava quando o devia fazer. Talvez agora acatasse
ordens de Palermo, a quem convinha mostrar-se diplomático.
O caçador de tesouros voltou a olhar para Tânger. A luz
decrescente começava a apagar-lhe as feições.
— É ridículo brincar às escondidas — disse. — Andamos a perder
tempo, quando vamos acabar por nos encontrar todos no mesmo sítio.
— E que sítio é esse? —perguntou Tânger.
A voz saía-lhe serena, nem provocadora nem inquieta. Palermo
riu-se um pouco, baixinho.
— Os destroços, naturalmente. E se eu lá não estiver, estará a
Polícia. A legislação vigente...
— Eu conheço a legislação vigente.
Palermo fez um movimento com os ombros, dando a entender que,
nesse caso, havia pouco a acrescentar.
— Você tem uma proposta — disse Tânger.
— Isso. Tenho... Valha-me Deus! Claro que tenho uma proposta!
Vamos passar uma esponja no que aconteceu, menina. Você fodeu-me
e eu fodia-a — fez uma pausa. — Em sentido metafórico, entenda-se.
Estamos quites.
— Não sei onde foi buscar a ideia de que estamos quites. Tinha
falado num tom de voz tão baixo que o outro se inclinou para a.
frente, inclinando um pouco a cabeça para ouvir melhor. Aquele gesto
dava-lhe um ar inesperadamente cortês.
— Tenho meios que vocês nunca terão — disse. — Experiência.
Tecnologia. Contactos adequados.
— Mas não sabe onde está o Dei Gloria.
Desta vez, ela falara alto e claro. Palermo soprou.
— Já poderia saber se você não se tivesse dedicado a colocar-me
pedrinhas nos sapatos. A bloquear-me a passagem entre essa máfia de
arquivistas e bibliotecários... Maldita! Aproveitou-se da minha boa-fé.
— Você não sabe o que é boa-fé desde que abandonou o bi-berão.
O caçador de naufrágios voltou-se para Coy.
— Estás a ouvi-la? — perguntou. — ...Eu podia gostar desta tipa,
juro-te. Eu... Valha-me Deus! Vocês já...? Diacho — troçava
entredentes, com o ruído de um mastim ofegante depois de uma
corrida. — Aproveita, amigo, antes que ela te esprema também como
um limão e te deixe de lado.
As estrelas começavam a acender-se no céu como se alguém
estivesse a acender interruptores. As sombras fechavam-se cada vez
mais sobre o rosto do caçador de tesouros, e agora era a claridade das
luzes de La Línea, em baixo e atrás dele, o que escurecia a sua silhueta
no parapeito.
— Esmeraldas, vê lá tu — continuou dizendo a Coy. — O tesouro
dos jesuítas. Suponho que nesta altura ela não teve outro remédio
senão contar-to... Um carregamento de esmeraldas vale... Deus. Uma
fortuna em qualquer sítio, incluindo no mercado negro. Isso, claro, se
ela conseguir apoderar-se dele e tirá-lo de águas espanholas sem que o
Estado lhe caia em cima.
A mesma claridade que contornava a silhueta das costas largas de
Palermo iluminava o rosto de Tânger desde o queixo. Isso endurecia-
lhe as feições, recortando-lhe o perfil entre a cortina clara do cabelo.
— Se isso fosse verdade — disse arrogante — não teria motivos
para partilhar nada consigo.
— Esquece-se de que eu a pus na pista — insurgiu-se o outro. — E
de que estou a trabalhar nisto há muito tempo. Esquece-se de que
tenho meios para impor uma associação proveitosa para todos... E
esquece-se também de que a ambição desgraçou a ratinha
sabichona(2).
Por cima deles, como um pano de fundo perfurado por alfinetadas
luminosas, o céu estava já completamente negro. O Sol devia estar uns
quinze graus abaixo do horizonte, calculou Coy, vendo aparecer a
Ursa Menor sobre a cabeça de Palermo e a Ursa Maior sobre o seu
ombro direito.
— Oiçam — dizia o caçador de naufrágios. — Quero propor uma
coisa... Valha-me Deus! Uma coisa razoável. A caça ao tesouro não é
chegar e abrir o cofre. Mel Fisher demorou vinte anos a encontrar o
Atocha... Eu disponibilizo os meus meios e os meus contactos. Isso
inclui as ligações e os subornos para que ninguém interfira... Até
tenho mercado para as esmeraldas. Isso significa...

*2. Referência a uma história infantil, «La ratita presumida», que fala de
uma ratinha que recusou todos os pretendentes e se casou com o que lhe
pareceu mais bonito, o gato, acabando por ser comida por este. (N. da T.)

Dá-se conta? — dirigia-se agora apenas a Tânger. — Muitíssimo


dinheiro para nós. Para todos nós.
— Em que termos?
— Cinquenta por cento. Metade para si e metade para mim. Ela
voltou um pouco o rosto na direcção de Coy.
— E ele?
— Ele é... Bom. Problema seu, não é verdade?... Não me compete a
mim pagar-lhe.
Troçou novamente, baixinho, novamente o riso de cão grande e
exausto. Continuava imóvel no parapeito, com as luzes longínquas em
baixo, atrás.
— Tem apenas de fornecer-me dois dados: latitude e longitude,
para os colocar nas cartas esféricas de Urrutia... Acompanhados,
naturalmente, do manifesto da carga e do relatório oficial sobre o
naufrágio.
Tânger ficou calada por um momento. Parecia estar a considerar a
proposta.
— Pode consultar tudo isso nos arquivos — disse. Palermo
blasfemou sem o menor complexo.
— Sabe muito bem que... Raios a partam! Vedaram-me o acesso
aos arquivos, da mesma forma que em Barcelona me tirou o Urrutia
debaixo do nariz. Mesmo assim, consegui uma reprodução da carta.
Também fui informar-me sobre os malditos arquivos, e disseram-me...
— reteve o ar nos pulmões e suspirou ruidosamente. — Já sabe. Esses
documentos desapareceram... Retirados para estudo, dizem as fichas.
E ponto.
— É uma pena.
Palermo estava longe de apreciar aquela demonstração de pesar.
— Não — disse irritado. — É uma manobra suja da qual você é
responsável.
— Era isso que procuravam na minha casa?
— Era isso que Horacio devia obter. — O caçador de naufrágios
hesitou alguns instantes. — Quanto ao cão, garanto-lhe...
— Esqueça o cão.
Cada sílaba era uma gota gelada. Coy reparou que Palermo se
mexia, pouco à vontade. Agora a claridade vinda de baixo marcava os
seus traços graves. Um empurrão, pensou. Bastaria um empurrão para
que este fulano desse um passeio de cem ou duzentos metros pelas
rochas abaixo. Pumba! Algo enunciável como LGO: Lei da Gravidade
Oportuna. Depois lembrou-se do berbere postado ao pé do carro e
reflectiu sobre a possibilidade de o empurrão serem eles a dá-lo. LGI:
Lei da Gravidade Incómoda.
— Juntando os seus conhecimentos aos meus — estava dizendo
Palermo — e sem nos aborrecermos mais uns aos outros,
comprometo-me a peneirar esses destroços em menos de um mês...
Deadman's Chest tem um barco equipado com sonar de detecção
lateral, penetrador de fundos, sondas, magnetómetros, detector de
metais, equipas de mergulho e tudo o que for necessário... Depois,
uma vez lá em baixo, é preciso trabalhar com os planos, marcar, medir
e dividir em quadrículas, retirar areia e lodo... Sobre isso não fazem a
mais pequena ideia. Além disso, as esmeraldas são frágeis...
Imaginem: aderências para eliminar, limpeza adequada... Vocês nem
sabem sequer o que é um banho electrolítico para limpar uma simples
moeda de prata... Nem quero pensar nos destroços. Vão fazer uma
porcaria. São amadores.
Ria-se novamente entredentes, sem rasto de humor. De repente,
um brilho inesperado cegou Coy, que tinha ainda o pensamento num
alvoroço com empurrões dados e levados. Isso fê-lo dar um salto.
— Além disso, é preciso contactos. — Palermo levava a chama do
isqueiro ao cigarro. — Conhecer o mercado clandestino onde colocar o
achado... E eu controlo — o cigarro nos lábios deformava-lhe a voz —
...Valha-me Deus! Oitenta por cento do tráfico de esmeraldas no
mundo é clandestino, dirigido pelas máfias judias da Bélgica e de
Itália... Julga que não sei porque viajou até Antuérpia?
Antuérpia. Coy tinha lá estado tal como em muitos outros lugares:
um porto imenso, quilómetros de gruas, barracões e barcos. Que
Tânger também tivesse lá estado era uma surpresa, pensou. Embora,
de repente, lhe tenha vindo à memória aquele bilhete-postal junto da
taça de prata, no apartamento do Paseo de La Infanta Isabel. De modo
que se dispôs a ouvir com muita atenção, sem criar demasiadas
ilusões. Em relação àquela mulher, não havia uma única novidade que
fosse tranquilizadora, nem agradável.
— Não me digas que ela não te falou de Antuérpia. — A brasa do
cigarro brilhava como um olho irónico apontado para Coy na boca do
caçador de tesouros. — Deveras?... Pois ficas a saber: antes de se
conhecerem em Barcelona, ela fez uma viagenzinha discreta. Algumas
visitas que... ora, ora — baixou a voz para evitar que o motorista o
ouvisse. — Incluindo uma certa direcção da Ru-benstraat: Sherr e
Cohen. Especialistas em talhar pedras para alterar o seu aspecto e
apagar vestígios... Eu também conheço gente que me conta coisas.
Coy sentia o cheiro a tabaco. O fumo cinzento-claro deslizava à
contraluz antes de se desfazer, afastando-se da silhueta de Palermo.
— De modo que também não te falou disso. É incrível. Vendi a
alma, pensava Coy. Vendi a alma a esta gaja e, entre todos, vão-me
enrabar e bem. Ela, este. Até o berbere. Isto é como querer nadar entre
marraxos esfomeados. Se eu fosse esperto, e nesta altura das coisas é
evidente que não sou, punha-me agora a correr pelo monte abaixo,
saltava para bordo do Carpanta, dizia ao Piloto que largasse e
desaparecia daqui a toda a pressa. O olho avermelhado olhava
novamente para Coy.
— Ainda não te falou das esmeraldas?... Não te disse que é a mais
rendível das pedras preciosas?... Eu já vi muitas. Consegui várias nos
meus tempos com Fisher. E garanto-te que em Antuérpia pagarão o
que for preciso por um lote dessas pedras antigas e em bruto. A tua
amiguinha... Ela sabe-o muito bem.
— E se eu não aceitar?
Tânger apertava a carteira contra o peito e o seu perfil dava
tesouradas masculinas à penumbra. Não me admirava nada, pensou
Coy, que levasse uma pistola no raio da carteira.
— Colar-nos-emos a vocês como se fôssemos as vossas sombras. —
A brasa do cigarro mexia-se enquanto Palermo fazia o aviso num tom
de voz objectivo, como quem recita um manual de instruções. — A
zona entre o cabo da Gata e o cabo de Paios... Bom. Não é muito
grande e, assim que identificar aí a vossa embarcação, posso usar um
helicóptero... Localizá-los, compreendem, em plena actividade. E se
dermos o negócio por perdido, arranjo as coisas de forma a receberem
a visita de um barco patrulha da guarda civil.
O riso canino deu sinal de si pela terceira vez. Havia estrelas
fugazes que caíam do céu ao longe, como anjos caídos, ou almas
penadas, ou mísseis cansados. Aí vou eu, pensava Coy. Deixem
passar.
— Se eu não entrar — acrescentou Palermo — não têm quaisquer
possibilidades. Não esquecendo certos riscos físicos.
Fez-se um longo silêncio e, depois, ela disse: — Você assusta-me.
Não parecia absolutamente nada assustada. Pelo contrário, aquilo
soava de uma forma arrogante, fria como uma farpa de gelo e também
muito perigosa. Palermo tinha tirado a beata da boca e dirigia-se a
Coy: — Tem raça, não é verdade?... É uma cabra com muita raça. Não
me admira que te tenha preso pelos tomates.
Levou a beata à boca e a brasa tornou-se mais intensa. Aquele
fulano, pensou Coy quase agradecido, tinha a rara virtude de
proporcionar-lhe válvulas de escape no momento apropriado, de
tornar-lhe as coisas mais fáceis. E ainda sentia aquela vaga de gratidão
quando tomou impulso, assestando-lhe o primeiro murro na cara.
Para conseguir acertar-lhe bem, uma vez que Palermo era bastante
mais alto, ergueu um pouco o cotovelo e disparou o braço com toda a
sua alma, de baixo para cima e um pouco na diagonal, esmagando-lhe
a brasa do cigarro na boca. Ouviu o grito sufocado de Tânger à sua
direita, que tentava contê-lo, mas nesse momento ele já abanava outra
vez o gibraltino, com uma nova pancada que o deitou de rins sobre o
parapeito. Também não é preciso caíres, pensou com uma réstia de
lucidez. Não te quero matar, de modo que não me faças a sacanice de
te despenhares agora. Por isso quis agarrá-lo pela roupa para evitar
que caísse lá para baixo, quis atraí-lo a si e sacudi-lo uma terceira vez,
sem que ele caísse monte abaixo gritando, como acontece a todos os
maus dos filmes. Mas nesse intervalo, Palermo pareceu espevitar,
ergueu os punhos e Coy sentiu que alguma coisa explodia entre o
pescoço e a sua orelha esquerda. As estrelas do céu misturavam-se
com as que fabricaram, acto contínuo, os seus sentidos maltratados.
Aquilo parecia um identificador de estrelas, e caiu para trás aos
tropeções.
— Cafrão! — mastigava Palermo — Cafrão!
O «f», em vez do «b» correspondente, indicava que o caçador de
tesouros devia ter o cigarro incrustado nas gengivas. Isso foi um
pequeno consolo para Coy. Mas, enquanto tentava conservar o
equilíbrio, ouviu os passos do berbere correndo rapidamente sobre o
piso de betão e compreendeu que, com efes ou com bês, as suas
possibilidades chegavam ao zero nesse instante e que ele próprio ia ter
graves dificuldades de pronunciação daí a nada. LPTD: Lei da
Porrada a Torto e a Direito. De modo que perdido por cem, perdido
por mil. Respirou fundo, agachou a cabeça e atirou-se novamente
contra Palermo, baixo e compacto como era, com a fúria cega de um
touro. Se chegar antes que o maricas do teu mouro, pensou,
acompanhas-me parapeito abaixo, ou eu não me chame Coy.
Não chegou. O que bate primeiro, bate duas vezes. Mas o que o
ditado não especifica é que depois dessas duas vezes, podemos
apanhar duzentas. O berbere caçou-o pelas costas a meio caminho,
Coy ouviu rasgar-se o seu casaco por uma costura e, nessa altura,
Palermo já tinha o punho preparado, de modo que foi uma questão de
segundos ficar sem respiração, de joelhos no chão, com as têmporas
cheias de zumbidos, os tímpanos a vibrar e um olho negro. Estava
furioso consigo mesmo e perguntava a si próprio por que razão os
joelhos e os braços não obedeciam às suas ordens de levantar-se e
lutar. Quis tentá-lo vezes sem conta, mas desfalecia sempre antes de o
conseguir. Paraplégico, pensou. Estes cabrões deixaram-me
paraplégico. Parecia ter passado a língua sobre ferro velho, tal o sabor
que tinha na boca. Cuspiu, sabendo que cuspia sangue. Estão a pôr-
me, disse para consigo, lindo de morrer.
Estava enjoado e começou tudo a andar às voltas. Nessa altura,
ouviu a voz de Tânger e pensou: pobrezinha, chegou a vez dela.
Ainda quis levantar-se, mais uma vez, para deitar a mão àquela
bruxinha malvada. Para impedir que tocassem num fio da roupa dela,
enquanto ele tivesse forças para fechar os punhos. O problema é que
já não estava em condições de fechar os punhos, nem de fechar nada
que não fosse o olho pisado e deitar-se de barriga para cima, como um
jogador de boxe fora de combate. Mas não podia abandoná-la assim.
Não nas mãos de Palermo e do berbere; embora, no seu estilo, ela
fosse pior que os dois juntos. De modo que, com um último e supremo
esforço, resignado, desesperado, afogou um gemido enquanto
conseguia, finalmente, pôr-se de pé. Nessa altura lembrou-se da
navalha do Piloto, tacteou o bolso de trás à procura dela, enquanto
passava os olhos em volta com uma expressão de apalermado e viu os
dois fulanos um ao pé do outro.
Olhavam para Tânger, que continuava imóvel junto do parapeito;
eles também estavam muito quietos, como se alguma coisa atraísse
poderosamente a sua atenção. Coy observou melhor, com o olho são.
O que tanto atraía o interesse daqueles dois era um objecto que Tânger
tinha na mão, como se estivesse a mostrá-lo. E ele disse para consigo
que devia estar muito mal, muito apalermado, porque aquele objecto
tinha reflexos metálicos e parecia — não se atreveu a asseverar
completamente semelhante barbaridade — um pistolão ameaçador,
enorme.
Ela não disse nada até terem voltado a passar pela rotunda deserta,
diante do cemitério de Trafalgar. Ou, pelo menos, não disse nada
expressamente dirigido a Coy, depois das breves palavras que
pronunciara lá em cima, no miradouro, enquanto se afastava com ele
em direcção ao carro, deixando os outros no parapeito como
pastorinhos de Belém, exemplarmente petrificados diante da visão da
ferramenta que Tânger acabara por exibir quase com fastio. É por tua
culpa, disse a Coy, num tom mais informativo que reprovador,
enquanto manejava o volante e o manípulo das velocidades encosta
abaixo, com a carteira no regaço, e os faróis iluminavam as curvas
apertadíssimas nas encostas do Rochedo, e ele tossia como os
tuberculosos dos filmes. Tossia como Margarita Gautier, e umas
gotinhas de sangue que se coagulavam na boca passavam entre os
kleenex e iam parar ao pára-brisas. Um bruto. Era um bruto e nada
daquilo era necessário, tinha acrescentado ela depois. Não era de todo
necessário e, além disso, complicava as coisas. Coy franzia o sobrolho
quando os hematomas o permitiam, enfurecido. Quanto aos últimos
parágrafos do diálogo que Tânger tinha mantido com Nino Palermo
debaixo do sombrio nariz do berbere silencioso, estes tinham sido do
género esse tipo está louco, por parte do caçador de tesouros,
enquanto ela tentava retirar a carga emocional ao assunto. Coy é um
tipo impulsivo e costuma funcionar conforme lhe apetece, etc.
— E você, Palermo, é um imbecil.
O revólver, um 357 Magnum pesado e achatado que Coy nunca
tinha visto antes nas mãos de Tânger, ajudou o outro a digerir aquilo
sem torcer demasiado o nariz. O que se passa com o acordo, disse
nessa altura. Passa-se que tenho de pensar no que se passa, acabou
por responder ela. Nesse momento, precisou, não podia dizer que sim
nem que não, antes pelo contrário. Então Palermo, que parecia ter
recuperado o uso dos efes e dos bês, disse-lhe que, por favor, ela e a
mãe dela fossem levar na crica. Foi exactamente isso que ele disse: ela
e a mãe dela e, desta vez, parecia deveras furioso. A mim não me vais
levar à certa, cachorra, pespegou-lhe do parapeito, perdendo
visivelmente as estribeiras diante da aprovação silenciosa do
motorista. Isso, vocalizado a alguns metros de um canhão de bolso
com seis chumbos do tamanho de bolotas no tambor, situava os
tomates de Palermo numa cota admirável, quase digna. E Coy, apesar
de estar aturdido e com a cara num oito, soube apreciar o gesto por
simples reflexo de solidariedade masculina. Mesmo assim, far-lhe-ei
chegar a minha resposta, tinha dito ela, muito educada com a sua
camisola preta na cintura, e teria dado a impressão de nunca ter
partido um prato, se não continuasse com aquele ferro-velho
ameaçador na mão. Recordou-se de ter ouvido Palermo dizer uma vez
que ela era das que mordiam com a boca fechada. Segurava naquelas
oitocentas gramas de ferro sem apontar, com o braço caído, o canhão
para o chão, o ar quase enfastiado. E isso, curiosamente, dava mais
credibilidade ao gesto do que se tivesse adoptado poses de filme
policial. Depois dir-lhe-ei se há acordo ou não, disse. Seja bonzinho e
dê-me alguns dias. E Palermo, que continuava sem acreditar e talvez
nunca mais acreditasse, ou talvez captasse a ironia, pusera-se a
despejar uma fiada de imprecações bastante barrocas e muito
mediterrânicas, sem dúvida aparentadas com o seu sangue maltês. A
mais branda era que ao seu marinheiro louco lhe ia cortar as
pendurezas. Ficou tudo a flutuar no ar nas costas de Tânger, enquanto
esta se encaminhava para o Renault, depois de pôr uma mão no
ombro de Coy e de obter um grunhido como resposta à sua pergunta
de como estava.
— Numa merda — disse ele mais tarde, quando Tânger lhe
perguntou pela segunda vez, já na estrada que descia a encosta. E
então, ela pusera de lado o ar sério e desatara-se a rir. Um riso de
rapaz, contido e alegre, quase feliz, que ele ouviu com assombro
olhando com o olho são o seu perfil iluminado pelo brilho dos faróis.
— És um tipo incrível — disse. — Estiveste quase a estragar tudo,
mas és um tipo incrível — riu-se outra vez, e ainda se ria admirada
quando voltou o rosto para lhe dirigir um olhar rápido de simpatia. —
...Às vezes acho que adoro ver-te lutar.
O reflexo dos faróis punha lâminas de aço nos seus olhos, mas esse
aço brilhava como sob a luz do Sol. Então, ela tirou a mão do
manípulo das velocidades e apoiou-a no pescoço de Coy. Apoiou o
dorso dos dedos, os nós dos dedos, como se acariciasse o queixo por
barbear, entumecido pelas pancadas de Palermo e do berbere. E Coy,
exausto, desconcertado, encostou a nuca no apoio da cabeça. Sentia
um calorzinho agradável no sítio onde ela mantinha a mão e também
onde as telenovelas dizem que se tem o coração. E teria sorrido como
uma criança desajeitada, se a sua boca inchada o permitisse.
Largado o último cabo, o Carpanta afastou-se devagar do molhe.
Depois, o convés vibrou suavemente, enquanto o veleiro ficava imóvel
entre os reflexos de luz na água, e o motor aumentou as rotações
devagar a vante com o Piloto ao leme. Os candeeiros do porto
desfilavam agora lentos, ficando para trás à medida que a embarcação
ganhava velocidade, com a proa ao mar alto e as luzes de La Línea, da
refinaria de San Roque e da cidade de Algeciras limitando ao longe o
contorno da baía. Coy acabou de colher em aduchas o cabo à proa,
apertou bem o chicote e dirigiu-se depois para o poço central,
lançando mão aos óvens quando, já fora da protecção do porto, o
barco se pôs a cabecear na ondulação. As luzes de Gibraltar ainda
iluminavam o veleiro, revelando a silhueta do Piloto na roda do leme,
avermelhados os traços inferiores do rosto devido à claridade da
bitácula onde a agulha magnética rodava pouco a pouco para sul.
Coy aspirava a brisa com deleite, pressentindo a iminência do mar
alto. Desde a primeira vez que pisou o convés de um barco, o
momento da partida provocava-lhe sempre uma sensação de calma
singular, muito próxima da felicidade. A terra ficava para trás, e tudo
o que poderia vir a precisar viajava com ele a bordo, circunscrito aos
limites estreitos da embarcação. No mar, pensava, os homens
viajavam com a casa às costas, como a mochila de um explorador, ou a
concha que se desloca com o caracol. Bastavam alguns litros de
gasóleo e de óleo, algumas velas e o vento adequado, para que tudo o
que a terra firme continha se tornasse supérfluo, prescindível. Vozes,
ruídos, gente, odores, tirania dos ponteiros do relógio deixavam de
fazer aqui qualquer sentido. Mover-se até deixar a costa bem lá atrás,
à popa, era já um fim. Diante da presença ameaçadora e mágica do
mar omnipresente, dores, anseios, vínculos sentimentais, ódios e
esperanças diluíam-se na esteira de espuma, enfraquecendo até
parecerem distantes, sem sentido, porque o mar tornava os seres
humanos egoístas e absortos em si mesmos. Havia coisas intoleráveis
em terra, pensamentos, ausências, angústias, que só podiam suportar-
se no convés de um barco. Nunca existiu analgésico tão potente como
aquele. E ele tinha visto sobreviver, a bordo de barcos, homens que
noutro lado teriam perdido para sempre a razão e a calma. Rumo,
vento, ondulação, posição, singra-dura, sobrevivência: ali, só essas
palavras significavam alguma coisa. Porque era verdade que a
liberdade verdadeira, a única possível, a verdadeira paz de Deus,
começava a cinco milhas da costa mais próxima.
— Tudo bem, Piloto?
— Tudo bem. Dentro de meia hora dobraremos Punta Europa.
Imóvel na coberta de popa, Tânger observava as luzes que
deixavam para trás. Tinha vestido a camisola e agarrava-se a um dos
brandais, junto da bandeira que ondulava suavemente na brisa.
Olhava para cima, para o cimo da massa escura do Rochedo, como se
não conseguisse deixar para trás coisas que a preocupavam, ou que
talvez tivesse querido levar consigo. O Carpanta governava enfiado a
sul, e pelo lado de bombordo iam ficando para trás as grinaldas
luminosas do porto principal, os barcos amarrados aos molhes, a linha
negra das docas e os relâmpagos brancos, um a cada dois segundos,
do farol principal do dique sul.
O Piloto manobrou para evitar um grande navio mercante
ancorado e depois pôs o regime do motor em duas mil e quinhentas
rotações. Sobre a bitácula, o ponteiro do odómetro indicava a
velocidade de cinco nós, e o balanço tornou-se um pouco mais
intenso. Coy desceu à casa de pilotagem para ligar o rádio Sailor VHF,
pôs os canais nove e dezasseis em dupla escuta e depois foi até à
coberta da popa, para junto de Tânger. O farol de popa iluminava com
tons fosforescentes a esteira rectilínea que o barco deixava na água.
— Palermo tem razão — disse Coy.
— Não me aborreças — replicou ela.
Não acrescentou mais nada. Continuava atenta ao cimo do enorme
rochedo escuro, que se assemelhava a uma nuvem ameaçadora
suspensa sobre a cidade.
— Pode dar cabo de nós se decidir fazê-lo — prosseguiu Coy. — E
é verdade ele ter os meios para localizar o Dei Gloria. A oferta dele...
— Ouve — finalmente voltara-se e observava-o, perfilhada na
claridade que deixavam a bombordo, na direcção da alheta do veleiro.
— Eu fiz todo o trabalho. Vê se me entendes de uma vez. E aquele
barco é meu.
— Nosso. Aquele barco é nosso. Teu e meu — apontou para o
Piloto. — E agora também é dele.
Tânger pareceu reflectir sobre aquilo.
— Claro — disse, passado um instante. — E ele deve ocupar-se dos
seus assuntos e tu dos teus... Mas Palermo não é um problema vosso.
— Se houver problemas, Palermo será um problema de todos nós.
— És o único que esteve prestes a causar problemas. Tu e os teus
impulsos varonis — agora ria-se sem vontade e Coy não conseguiu
ver-lhe a expressão. — Só pareces estar bem quando te partem a cara.
Vejam só, pensou ele. LCE: Lei das Compensações Evidentes.
Primeiro uma cenoura, depois uma paulada. Agora não me pões a
mão no pescoço nem sorris, lindinha. Não, agora. Não, quando
arrefeces e te pões a pensar e descobres que a minha estupidez altera
os teus planos.
— Estou a ver — limitou-se a dizer. — ...Continuas a achar que
podes manipular toda a gente, não é verdade?
— Continuo a achar que sei muito bem o que estou a fazer.
Mantinha os olhos nalgum ponto acima do rochedo escuro.
Coy olhou por sua vez. Por baixo da encosta parecia subir um
minúsculo clarão azul. Um pouco mais acima havia uma claridade
avermelhada, como uma fogueira. Oxalá, pensou, o berbere se tenha
despenhado com o carro e estejam os dois esturricando como pipocas.
— E essa pistola? — Pronunciar a palavra «pistola» fê-lo sentir um
formigueiro de rancor. — ...Não podes andar a passear-te com ela,
assim sem mais nem menos.
— Estás a ver que, de facto, posso.
Coy esfregou o olho dorido, voltado para a esteira luminosa do
Carpanta, tentando encontrar uma resposta adequada. Na primeira
oportunidade que se lhe apresentasse, decidiu, aquele mamarracho ia
sair borda fora. Chap! Não gostava de pistolas, nem de espingardas,
nem de armas em geral. Nem sequer gostava de navalhas, apesar de
ter ainda consigo, no bolso de trás das calças de ganga, a inútil
Wichard do Piloto. Quem anda com este tipo de ferramentas, pensava,
fá-lo com a intenção inequívoca de perfurar, cravar ou cortar. O que
significa que está muito assustado ou tem muito maus fígados.
— As armas — concluiu em voz alta — trazem sempre problemas.
— Também te livram deles quando te portas como um idiota.
Voltou-se um pouco. Picado.
— Olha lá, disseste que gostavas de me ver lutar.
— Disse isso?
Agora, a claridade da cidade distante e o farol de popa na esteira
revelavam um ângulo do sorriso entre as pontas luminosas do cabelo
revolto. Coy sentiu que o seu rancor se misturava com muitas outras
coisas.
— Calma — ela começou-se a rir. — Não penso usar aquela pistola
contra ti.
O farol meridional já era visível pelo lado de bombordo:
relâmpago de cinco segundos e cinco segundos de escuridão. A
ondulação do mar alto fazia balançar o Carpanta com maior violência
e, no alto do mastro, debilmente desenhadas pela luz de navegação a
motor, o cata-vento e a pá do anemómetro giravam desmaiadas, ao
capricho da oscilação do barco e da falta de vento. Coy calculou por
instinto a distância a que se encontravam de terra e depois deu uma
vista de olhos à alheta de estibordo, por onde um navio mercante que
tinha estado a aproximar-se de este estava já safo. Com as mãos no
leme — uma roda clássica de madeira com seis malaguetas e quase
um metro de diâmetro, situada no poço atrás de uma pequena cabina
com capuchana e toldo de lona — o Piloto mudava pouco a pouco o
rumo, orientando a proa para levante com a luz do farol à vista. Sem
necessidade de consultar o repetidor do GPS ligado sobre a bitácula
ao pé do piloto automático, do odómetro e da sonda, Coy soube que
estavam nos 36° 6 minutos norte e 5° 20 minutos oeste. Tinha traçado
demasiadas vezes rumos para ou desde aquele farol nas cartas
náuticas — quatro do Almirantado britânico e duas espanholas —
para conseguir esquecer-se da latitude e da longitude de Punta
Europa.
— O que te parece? — perguntou ao Piloto.
Não se voltou para olhá-la. Ela continuava imóvel na popa,
agarrada aos brandais, contemplando o rochedo preto que deixavam
para trás. O Piloto esteve algum tempo sem responder. Coy não sabia
se reflectia sobre a pergunta ou se atrasava voluntariamente a
resposta.
— Suponho — acabou por dizer — que sabes o que fazes. Coy
torceu o nariz na penumbra.
— Não te pergunto por mim, Piloto. Pergunto-te por ela.
— É das que mais convém que fiquem em terra.
Coy esteve prestes a dizer o que era óbvio: ela não ficou em terra.
Também podia ter acrescentado: é aquela de que todos os marinheiros
falam ou inventam diante dos seus companheiros, no camarote ou nos
antigos castelos de proa. Aquela que todos eles conheceram, ou
conhecemos, neste ou naquele porto. Esteve prestes a dizer isso, mas
não disse. Em vez disso, contemplou o céu negro por cima do mastro
oscilante. A maior parte das estrelas deviam estar à vista, embora a
claridade da proximidade da costa as apagasse.
— Pode haver problemas, Piloto.
O outro não respondeu. Continuava a corrigir o rumo, malagueta a
malagueta, mantendo alguma distância de resguardo da costa. Só
passado algum tempo inclinou um pouco a cabeça, como se
verificasse a sonda.
— No mar há sempre problemas — disse.
— Desta vez não serão só por causa do mar.
O silêncio do Piloto indicava preocupação.
— Há o risco de perder o barco?
— Não creio que as coisas cheguem a tanto — tranquilizou-o Coy.
— Eu refiro-me a problemas em geral.
O Piloto parecia reflectir.
— Disseste que também pode haver algum dinheiro — acabou por
insinuar. — Isso vinha a calhar... Agora há pouco trabalho.
— Vamos à procura de um tesouro.
A revelação não alterou o Piloto. Continuava atento à roda do leme
e à luz do farol.
— Um tesouro — repetiu, com voz neutra.
— Isso mesmo que ouviste. Esmeraldas antigas. Valem um
dinheirão.
O outro concordou, dando a entender que todas as esmeraldas
antigas deviam valer um dinheirão, mas que não era nisso que estava
a pensar. Depois deixou a roda do leme livre, o tempo necessário para
agarrar no odre de vinho que tinha pendurado à bitácula, deitar a
cabeça para trás e beber um longo gole. Voltou a empunhar as
malaguetas, após limpar a boca com as costas de uma mão, enquanto
com a outra, passava o odre a Coy.
— Um dia, lembra-me — disse — que te conte as histórias de
tesouros que já ouvi na minha vida.
Coy bebia como o Piloto, com o odre levantado, tentando fazer que
o balanço do barco não lhe derramasse vinho para cima. Reconhecia o
sabor. Era um clarete aromático e fresco, do campo de Cartagena.
— Esta história não é totalmente inverosímil — replicou antes do
último gole. — E julgo que conseguiremos localizar o naufrágio.
— Um naufrágio de quando?
— De há duzentos e cinquenta anos — tapou o odre e pendurou-o
no sítio. — Baía de Mazarrón. A pouca profundidade.
O Piloto abanava a cabeça, céptico.
— Isso deve ter-se desintegrado. Os pescadores devem ter levado
toda a vida a prender as redes nos vestígios, a areia deve ter coberto
tudo... O que houver para tirar, ou já o tiraram ou está perdido.
— És homem de pouca fé, Piloto. Como os teus colegas do lago
Tiberíades. Até verem o outro a andar sobre as águas não o levaram a
sério.
— Não te imagino caminhando sobre as águas.
— Não. Suponho que não. E eu a ela também não. Voltaram-se os
dois para a observar, ainda imóvel na coberta da popa, recortada pela
claridade vinda de terra. O Piloto tinha tirado um cigarro do blusão
para o pôr na boca, sem acender.
— Além disso — disse sem que viesse a propósito —, estou a ficar
velho.
Ou talvez, pensou Coy, viesse a propósito. O Piloto e o Carpanta
envelheciam da mesma forma que aquela escuna apodrecia no porto
de Barcelona, ou no Cemitério dos Barcos Sem Nome as carcaças dos
navios mercantes desmantelados se oxidavam ao sol e à chuva, roídas
pelo salitre, lambidas pela água na areia suja da praia. Tal como o
próprio Coy tinha estado a apodrecer enquanto vagueava pelo porto,
atirado para terra por uma rocha não assinalada pelas cartas no
oceano Índico. Embora, como o mesmo Piloto — ou talvez já não fosse
o mesmo — lhe tinha dito há vinte e muitos anos: os homens e os
barcos deveriam ficar para sempre no mar alto, afundando-se aí com
dignidade.
— Não sei — disse, com sinceridade. — A verdade é que não sei.
Pode ser que fiquemos, no fim, de beiça caída. Tu e eu, Piloto. Talvez
mesmo ela.
O outro fez um gesto lento e afirmativo com a cabeça, como se
aquela conclusão lhe parecesse a mais lógica. Depois tirou do bolso o
isqueiro de torcida, bateu na rodinha com a palma aberta, soprou a
mecha e aproximou-a da extremidade do cigarro que tinha na boca.
— Mas não se trata de dinheiro, não é verdade? — murmurou.
— ...Pelo menos tu não estás aqui por isso.
Coy sentia o cheiro do tabaco misturado com o fumo acre da
torcida, que a brisa, que começava a aumentar atrás de Punta Europa,
levava rapidamente para poente.
— Ela precisa... — calou-se de repente, sentindo-se ridículo.
— Bom. Pode ser que ajuda não seja a palavra.
O Piloto aspirou uma longa passa do seu cigarro.
— Se calhar és tu quem precisa dela.
Na bitácula, a agulha magnética marcava 70°. O Piloto carregou na
tecla correspondente na repetidora do piloto automático, transferindo-
lhe o rumo.
— Conheci mulheres assim — acrescentou. — ...Hum! Conheci
algumas.
— Uma mulher assim... Assim, como?... Não sabes nada dela,
Piloto. Eu próprio não sei muitas coisas.
O outro não respondeu. Tinha largado a roda do leme e verificava
o comportamento do piloto automático. Sob os seus pés sentiam o
rumor do sistema de direcção corrigindo o rumo grau a grau na
ondulação.
— É má, Piloto. Má que se farta.
O patrão do Carpanta encolheu os ombros, sentando-se no banco
de teca para fumar protegido da brisa que continuava a aumentar na
proa. Voltava-se para a figura imóvel à popa.
— Tem frio na mesma, só com aquela camisola.
— Já se agasalhará.
O Piloto esteve a fumar em silêncio durante algum tempo. Coy
continuava de pé encostado à bitácula, com as pernas um pouco
abertas e as mãos nos bolsos. O relento da noite começava a molhar o
convés, filtrando-se pelas costuras descosidas nas costas do seu
casaco, a que tinha levantado a gola e as lapelas. Apesar de tudo,
desfrutava do balanço familiar da embarcação e só lamentava que o
vento soprasse de proa, impedindo-os de soltar as velas. Isso
atenuaria o vaivém, eliminando o incomodativo ronronar do motor.
— Não há mulheres más — disse de repente o Piloto. — Tal como
não há barcos maus... São os homens a bordo quem os torna de uma
maneira ou de outra.
Coy não disse nada, e o Piloto manteve-se calado outro bocado.
Uma luz verde deslizava com rapidez entre eles e a terra,
aproximando-se pela alheta de bombordo. Quando ficou na contraluz
do farol, Coy reconheceu a silhueta longa e baixa de uma lancha turbo
HJ, de vigilância aduaneira espanhola. Base em Algeciras, patrulha
rotineira à caça de haxixe de Marrocos e de contrabandistas do
Rochedo.
— O que procuras nela?
— Quero contar-lhe as sardas, Piloto. Já reparaste...? Tem milhares,
e quero contá-las a todas, uma por uma, percorrendo-a com o dedo
como se fosse uma carta náutica. Quero traçar rumos de cabo a rabo,
ancorar nas enseadas, fazer navegação costeira na sua pele...
Compreendes?
— Compreendo. Queres fodê-la.
Da lancha aduaneira brotou um feixe de luz que procurou o nome
do Carpanta, o seu porto de registo e matrícula escritos nos bordos.
Da popa, Tânger perguntou o que era aquilo e Coy disse-lhe.
— Sacanas —murmurou o Piloto fazendo pala com a mão,
encegueirado.
Nunca falava mal, e Coy raras vezes o ouvira dizer um palavrão.
Tinha a velha educação das pessoas humildes e honradas, mas não
suportava os guardas alfandegários. Tinha jogado demasiado com
eles ao gato e ao rato, desde os tempos longínquos em que remava
com o seu botezinho de vela latina, o Santa Lucía, para arredondar a
jorna recolhendo caixas de tabaco americano que lhe atiravam navios
mercantes de passagem, aos quais fazia sinais com uma lanterna,
escondido atrás da ilha de Escombreras. Uma parte para ele, outra
para os guardas-civis do cais, a principal para quem o empregava e
nunca corria riscos. Ao Piloto o tabaco podia tê-lo enriquecido se
trabalhasse por conta própria; mas sempre lhe bastara o facto da
mulher poder estrear um vestido novo no Domingo de Ramos, ou
poder tirá-la da cozinha para a levar a comer uma parrilhada de peixe
nas cantinas do porto. E, às vezes, quando os amigos insistiam muito e
havia demasiado sangue pulsando e demasiados diabos por expulsar,
o fruto de uma noite inteira de risco e trabalho, labutando num mar
infame, derretia-se nalgumas horas, de música, copos, ancas
mercenárias e complacentes, nos bares de má fama do Molinete.
— Não é isso, Piloto — Coy continuava olhando para Tânger na
popa, iluminada agora pelo foco dos aduaneiros. — Pelo menos, não é
só isso.
— Claro que é. E até a conseguires comer não terás o tombadilho
claro... Partindo do princípio que alguma vez o conseguirás.
— Esta tem tomates. Juro-te.
— Todas têm. Olha para mim. Quando me dói alguma coisa, é a
minha mulher quem me leva à consulta do médico: «Senta-te aqui,
Pedro, que o doutor já vem»... Já a conheces. No entanto, ela pode
rebentar, mas cala-se. Há mulheres que, se fossem bezerras, paririam
touros bravos.
— Não é só isso. Vi uma fotografia antiga, sabes?... E uma taça de
prata amolgada. Também havia um cão que me lambia a mão e que
agora está morto.
O Piloto tirou o cigarro da boca e deu um estalo com a língua.
— Aqui está a mais tudo o que não possa escrever-se num caderno
de bordo — disse. — ...O resto, temos de deixá-lo em terra. Caso
contrário, perdem-se os barcos e os homens.
A lancha da polícia, terminada a inspecção, mudava de rumo. A
luz verde do seu estibordo tornou-se branca à popa, e depois
vermelha quando guinou até mostrar o lado de bombordo, antes de as
apagar para prosseguir a caçada nocturna com mais discrição.
Instantes depois não era mais do que uma sombra que se deslocava
rapidamente para oeste, em direcção a Punta Carnero.
O barco deu um solavanco e Tânger apareceu no poço. Movia-se
com a falta de jeito de uma garotinha no balanço da ondulação,
procurando agarrar-se com prudência para manter o equilíbrio antes
de dar cada passo. Ao passar junto deles apoiou uma mão no ombro
de Coy, e este perguntou a si próprio se ela estaria enjoada. Por
alguma razão perversa, a ideia divertiu-o imenso.
— Tenho frio — disse ela.
— Lá em baixo há um casacão — ofereceu o Piloto. — Pode vesti-
lo.
— Obrigada.
Viram-na desaparecer pela escotilha. O Piloto continuou a fumar
em silêncio durante um bocado. Olhava para Coy sem dizer nada e,
no fim, falou como se retomasse uma conversa interrompida: — Leste
sempre demasiados livros... Isso não podia trazer nada de bom.

X - A COSTA DOS CORSÁRIOS

Coloca-se a vida a três ou quatro dedos da morte, que é a grossura da


tábua do navio.
Garcia de Palácios. Instrução Náutica

O vento de levante rodou para terra antes do amanhecer, embora


tenha voltado a soprar da proa quando o Sol se levantou um pouco no
horizonte. Não era muito forte, apenas dez ou doze nós, mas bastou
para transformar a ondulação na pequena vaga de vento, curta, picada
e incomodativa do Mediterrâneo. Dessa forma, cabeceando impelido
pelo motor, entre pequenos salpicos que às vezes deixavam rastos de
sal na capuchana do poço, o Carpanta passou a sul de Málaga, chegou
ao paralelo 36° 30' e aí rumou directo a oeste.
Ao princípio, Tânger não mostrou sinais de enjoo. Coy tinha
estado a observá-la na escuridão, sentada e imóvel numa das cadeiras
de madeira que o barco tinha presas à balaustrada da coberta de popa,
metida no casacão marinheiro do Piloto, cujas lapelas levantadas lhe
cobriam meia cara. Pouco depois da meia-noite, quando a ondulação
aumentou, foi levar-lhe um colete salva-vidas auto-insuflável e um
conjunto de segurança, cujo mosquetão ele próprio prendeu ao
brandal. Perguntou-lhe como se sentia, ela respondeu perfeitamente,
obrigada, e ele sorriu no seu íntimo, lembrando-se da caixa de
biodramina que, há pouco, ao descer em busca do casaco e dos
equipamentos de protecção, tinha visto aberta em cima do beliche que
o Piloto lhe atribuíra nos camarotes da popa. De qualquer forma, estar
sentada ali com a brisa nocturna na cara fá-la-ia sentir-se menos
incomodada. Mesmo assim, disse-lhe, embora te sintas perfeitamente,
eu se fosse a ti sentar-me-ia no outro lado, a bombordo, longe da saída
de gases do motor que fica aí debaixo. Tânger replicou que estava bem
ali. Ele encolheu os ombros, regressando ao poço, e ela aguentou dez
minutos antes de mudar de lugar.
Às quatro da manhã, o Piloto entrou de quarto e Coy desceu para
descansar. Deitou-se no seu estreito camarote à popa, que tinha
espaço apenas para um beliche e um cacifo. Deitou-se vestido, em
cima de um saco-cama e, minutos depois, dormia embalado pelo
balanço. Uma sonolência profunda, desprovida de sonhos, onde
vagueavam sombras difusas parecidas a barcos, mergulhadas numa
fantasmagórica penumbra verde. Por fim, despertou-o um raio de sol
que entrava pela gaiuta, subindo e descendo com o vaivém da
ondulação. Ficou sentado no beliche, esfregando o pescoço e o olho
dorido, com a barba a picar-lhe na palma da mão. É melhor barbeares-
te de uma vez, disse para si próprio. De modo que passou pelo
corredor estreito em direcção à casa de banho e, de caminho, olhou
para dentro do outro camarote à popa, que tinha a porta e a vigia
abertas para fazer corrente de ar. Tânger estava a dormir de barriga
para baixo no beliche, ainda com o colete salva-vidas e o arnês postos.
Não lhe via o rosto, porque o cabelo louro e despenteado o cobria. Os
pés, calçados com ténis, saíam para fora do beliche. Apoiado no
umbral da porta, Coy esteve a ouvir a respiração dela, às vezes
interrompida por um sobressalto ou por um leve gemido. Depois foi
barbear-se. O olho inchado não estava muito mal, e a mandíbula só
doía muito quando bocejava. Apesar de tudo, meditou consolando-se,
não se saíra muito mal da entrevista em Old Willis. Animado com a
ideia, ligou a bomba de água para se lavar um pouco, aqueceu café no
microondas e, tentando que não se derramasse com o balanço, bebeu
uma chávena e levou outra ao Piloto. Ao assomar a cabeça pela
escotilha encontrou-o sentado no poço, com um gorro de lã na cabeça
e pêlos cinzentos de barba na cara acobreada. A costa andaluza
adivinhava-se para além da neblina, cerca de duas milhas por
bombordo.
— Mal foste dormir, ela vomitou pela borda — informou o Piloto,
agarrando na chávena quente. — Despejou tudo. Até a primeira papa.
A cabra orgulhosa, pensou Coy. Lamentava ter perdido o
espectáculo: a rainha dos mares e dos naufrágios, com toda a sua
grande e manifestada superioridade, agarrada ao guarda-mancebos e
chamando pelo gregório. Maravilhoso.
— Não posso acreditar!
Era evidente que acreditava. O Piloto observava-o, pensativo.
— Parecia que só estava à espera que desaparecesses...
— Sobre isso não tenhas a menor dúvida.
— Mas não se queixou nem uma vez. Quando fui perguntar-lhe se
precisava de alguma coisa, mandou-me para o diabo. Depois, mais
calma, desceu para se deitar, como uma sonâmbula.
O Piloto bebeu alguns goles de café e estalou a língua, como fazia
cada vez que chegava a uma conclusão.
— Não sei porque sorris — disse. — Essa pequena tem raça.
— Demasiada, Piloto. — Coy deixou escapar por entre os dentes
uma gargalhada amarga. — Demasiada raça.
— Até a vi levantar-se tacteando à procura do sotavento, antes de
despejar tudo... Não se precipitou, ao contrário, foi até lá devagar, sem
perder as boas maneiras. E depois, ao passar ao meu lado, olhei para a
cara dela à luz da casa de pilotagem e estava branca, mas ainda teve
forças para me dar as boas-noites.
Dito isto, o Piloto ficou calado durante um bocado. Parecia
reflectir.
— Tens a certeza de que ela sabe o que faz?
Oferecia a Coy a chávena, ainda a metade. Este bebeu um golinho
antes de lha devolver.
— Eu só de ti tenho a certeza.
O outro coçou-se por baixo do gorro e, passado algum tempo,
concordou. Não parecia muito convencido. Semicerrava os olhos para
contemplar a difusa linha de terra, uma mancha alongada e parda,
difícil de precisar, a norte, entre a bruma.
Cruzaram-se com poucos barcos à vela. A temporada turística na
Costa do Sol ainda não tinha começado, e as únicas embarcações
desportivas avistadas foram um francês de um só mastro e, mais
tarde, um ketch holandês, que navegavam a um largo na direcção do
estreito. À tarde, e por alturas do Motril, uma escuna de casco preto
passou em sentido contrário, muito perto, a sessenta braças, com a
bandeira inglesa no penol da carangueja do mastro grande. Os outros
eram pesqueiros na faina, que o Carpanta com frequência teve de
evitar. O regulamento para evitar abalroamentos ordenava que
qualquer barco desse resguardo aos pesqueiros com os utensílios de
pesca submersos, de forma que durante os seus quartos à ponte — ele
e o Piloto revezavam-se de quatro em quatro horas — Coy teve de
desligar o piloto automático e passar a leme manual para evitar
palangreiros e arrastões. Fê-lo com muito má vontade, porque não
simpatizava com os pescadores. Devia-lhes horas de incerteza na
ponte dos navios mercantes em que navegara, quando de noite as suas
luzes pontilhavam o horizonte, saturando os ecrãs do radar e as
paragens toldadas pela chuva ou pelo nevoeiro. Além disso, achava-
os carrancudos e egoístas, dispostos a arrasar sem remorsos qualquer
pedaço de mar ao seu alcance. Mal-humorados por uma existência de
perigos e sacrifícios, viviam dia a dia, exterminando espécie atrás de
espécie sem lhes importar um futuro que, para eles, não ia além do
lucro de cada jornada. Entre todos, os mais impiedosos eram os
japoneses. Com a cumplicidade de comerciantes espanhóis e perante a
passividade suspeita das autoridades da marinha e da pesca, estavam
a aniquilar o atum-vermelho no Mediterrâneo com sonares
ultramodernos e avionetas. De qualquer forma, os pescadores não
eram os únicos culpados. Naquelas mesmas águas, Coy tinha visto
mais de um rorqual asfixiado por ter engolido sacos de plástico à
deriva, e cardumes inteiros de golfinhos enlouquecidos pela
contaminação suicidando-se nas praias, entre miúdos e voluntários
que choravam impotentes, empurrando-os para um mar aonde se
negavam a voltar.
Foi um longo dia de manobras entre pesqueiros de
comportamentos imprevisíveis, que tanto navegavam a toda a
velocidade como guinavam de repente para bombordo ou estibordo
para largar ou recolher as redes. Coy dirigia entre eles, alterando o
rumo com paciência profissional* enquanto pensava que a bordo de
um navio mercante, em alto mar ou em países com menor vigilância
das suas águas, os marinheiros agiam com menos consideração.
Embarcações à vela e pesqueiros na faina tinham, teoricamente,
prioridade de passagem. Mas, na prática, mais lhes valia manterem-se
afastados de um navio mercante com máquinas avante toda a força,
com tripulação reduzida por razões de poupança do armador,
bandeira de conveniência, indianos, filipinos ou ucranianos dirigidos
por oficiais mercenários, uma rota o mais directa possível para
economizar tempo e combustível e, às vezes, de noite, uma vigilância
mínima na ponte: máquinas não assistidas e um oficial sonolento,
confiante quase por completo nos aparelhos de bordo. E se de dia era
pouco frequente tocar nas máquinas ou no leme para alterar a
velocidade ou o rumo, de noite um barco destes convertia-se numa
ameaça letal para qualquer embarcação pequena que se cruzasse no
seu caminho, tivesse ou não direito a rumo. A vinte nós, o que
equivalia a vinte milhas percorridas numa hora, um navio mercante
para além do horizonte podia passar-lhes por cima em dez minutos.
Uma vez, na rota de Dakar para Tenerife, o barco em que Coy
navegava como segundo-oficial tinha abalroado um pesqueiro.
Passavam cinco minutos das quatro da madrugada, ele acabava de
sair do seu quarto à ponte no Hawaiian Pilot, um cargueiro de dois
mastros de 7000 toneladas e, quando descia pelas escadas em direcção
ao seu camarote, pareceu-lhe ouvir um ruído surdo a estibordo, como
se alguma coisa rangesse da proa à popa. Espreitou pela borda a
tempo de ver uma sombra escura afundando-se na vaga do barco,
com uma luz fraca, parecida à de uma lanterna de pouca intensidade,
que se agitava loucamente antes de se apagar de repente. Regressou
rapidamente à ponte, onde o primeiro-oficial estava a verificar
tranquilamente na repetidora da agulha-padrão o rumo da agulha
giroscópica. Acho que abalroámos um pesqueiro, disse Coy. E o
primeiro, um indiano fleumático e triste chamado Gujrat, ficou a olhar
para ele sem dizer uma palavra. No teu quarto ou no meu? — acabou
por perguntar. Coy respondeu que às quatro e cinco tinha ouvido o
ruído e visto a luz apagar-se. O primeiro ainda olhou para ele durante
algum tempo, pensativo, antes de ir até a uma das asas da ponte dar
uma olhadela rápida à popa e verificar depois no radar, onde os ecos
das ondas não indicavam nada de especial. No meu quarto não há
novidade, concluiu, voltando a ocupar-se da giroscópica. Depois,
quando o primeiro-oficial levou as suspeitas de Coy ao conhecimento
do capitão — um inglês arrogante, que fazia listas da tripulação onde
separava os súbditos britânicos dos estrangeiros, incluindo os oficiais
— este aprovou não se ter feito constar o incidente no livro de bordo.
Estamos em alto mar, disse. Para quê complicarmos a vida?
Às dez da noite chegaram aos 3 graus de longitude a oeste de
Greenwich. Excepto em raras aparições na coberta, sempre com o seu
ar de sonâmbula, Tânger ficou quase todo o tempo recolhida no seu
camarote e, nas poucas vezes que Coy passou por lá, encontrando-a
adormecida, verificou que os comprimidos da caixa de biodramina
diminuíam rapidamente. No resto do tempo, quando estava acordada,
voltava a sentar-se à popa, quieta e silenciosa, diante da linha da costa
que passava devagar por bombordo. Mal tocou na comida que o
Piloto preparou, embora tenha aceitado jantar um pouco melhor,
quando este lhe disse que isso lhe acalmaria o estômago. Foi dormir
cedo, mal escureceu, e os dois homens permaneceram no poço vendo
aparecer as estrelas. O vento soprou de proa toda a noite, obrigando-
os a navegar a motor. Isso fê-los decidir entrar no porto de Almerimar
às seis da manhã do dia seguinte, para meter gasóleo, descansar um
pouco e comprar provisões em terra.
Largaram às duas da tarde com vento favorável, um su-sueste
fresquinho que, mal deixaram a safo a bóia de Punta Entinas, lhes
permitiu finalmente desligar o motor e soltar primeiro a vela grande e
depois a genoa amurada a estibordo, navegando à bolina a uma
velocidade razoável. A ondulação tinha diminuído e Tânger sentia-se
bastante melhor. Em Almerimar, amarrados junto de um antiquado
pesqueiro báltico transformado pelos ecologistas para seguirem
cetáceos no mar de Alborán, tinha estado a ajudar o Piloto a lavar a
coberta à mangueira. Parecia dar-se bem com ele, que a tratava com
uma mistura de atenção e respeito. Depois de almoçarem no clube
náutico estiveram a beber café num bar de pescadores, e aí Tânger
explicou as vicissitudes da viagem do Dei Gloria, que tinha seguido,
disse, uma rota semelhante à que eles percorriam.
O Piloto interessou-se pelas características marinheiras do
bergantim, e ela respondeu a todas as suas perguntas com o aprumo
de quem tinha estudado o assunto ao pormenor. Uma rapariga
esperta, comentou o Piloto num aparte, quando regressavam ao
veleiro carregados de pacotes de comida e garrafas de água. Coy, que
a via caminhar à frente deles pelo cais, calças de ganga, camisola de
manga curta e sapatilhas desportivas, a cintura esbelta e o cabelo
agitado pela brisa, um saco de supermercado em cada mão, mostrou-
se de acordo. Talvez demasiado esperta, esteve prestes a dizer. Mas
não o disse.
Ela não voltou a enjoar. O Sol começava a descer no horizonte, à
popa, e o Carpanta navegava a toda a vela e com quatro nós na barca,
diante do golfo de Adra, com o vento rodando agora para sul. Coy,
cujo olho tumefacto já estava razoavelmente aliviado, vigiava a proa.
E, no poço, com as mãos experientes em remendar redes e velas, o
Piloto cosia com agulha e linha as costuras descosidas do casaco pelo
incidente de Old Willis, sem dar um ponto em falso, apesar do
balanço. Tânger espreitou pela escotilha, perguntou a posição e Coy
disse-lhe. Passado algum tempo, veio sentar-se entre eles com uma
carta náutica na mão. Quando a desdobrou ao abrigo da pequena
cabina, Coy viu que era a 774 do Almirantado britânico: de Motril a
Cartagena, incluída a ilha de Alborán. Para utilizar em longas
distâncias, as cartas inglesas de pequena escala eram mais cómodas
que as espanholas: tinham todas o mesmo tamanho e eram muito
manejáveis.
— Foi por aqui, e mais ou menos a esta hora, que do Dei Gloria
viram as velas do corsário — explicou Tânger. — Navegava seguindo
a sua esteira, encurtando a distância pouco a pouco. Podia tratar-se de
um barco qualquer, mas o capitão Elezcano era um homem
desconfiado e pareceu-lhe suspeita essa aproximação depois de
deixarem Almería para trás, e só tendo por diante uma longa costa
desprovida de refúgios para o bergantim... De modo que ordenou
largar mais pano e manter a vigilância.
Indicava a posição aproximada na carta, oito ou dez milhas a
sudoeste do cabo de Gata. Coy conseguiu imaginar a cena sem
esforço: os homens, na coberta inclinada, esquadrinhando a popa, o
capitão no tombadilho estudando o seu perseguidor através do óculo,
os rostos preocupados dos padres Escobar e Tolosa, o cofre de
esmeraldas fechado à chave na câmara. E de repente o grito, a ordem
de largarem mais pano, que leva os marinheiros enfrechates acima
para desfraldarem mais lona; as velas da proa ondulando sobre o
gurupés, antes de se enfunarem com o vento, o barco afogando mais
algumas tábuas do costado ao sentir em cima o aumento de pano. O
sulco de espuma rectilíneo no mar azul e, atrás dele, na direcção do
horizonte, as velas brancas do Chergui iniciando abertamente a
caçada.
— Faltava pouco para o anoitecer — prosseguiu Tânger, depois de
dar uma olhadela ao Sol que continuava baixando na direcção da
popa do Carpanta. — Mais ou menos como agora. E o vento soprava
de sul, e mais tarde de sudoeste.
— É o que está a acontecer — disse o Piloto, que tinha acabado de
coser o casaco e observava o mar encrespado e o aspecto do céu. —
Ainda rodará algumas quartas para a popa antes de cair a noite e
teremos levante fresco ao dobrar o cabo.
— Magnífico — disse ela.
Os olhos azul-marinhos iam da carta ao mar e às velas,
expectantes. Tinha as narinas dilatadas, verificou Coy, e respirava
profundamente com a boca entreaberta como se, nesse momento,
estivesse a contemplar as velas na mastreação do Dei Gloria.
— De acordo com o relatório do ajudante de piloto sobrevivente —
prosseguiu Tânger —, o capitão Elezcano hesitava inicialmente em
içar todas as velas. O barco tinha sofrido durante o temporal dos
Açores e os mastros superiores não estavam de fiar.
— Referes-te aos mastaréus — insinuou Coy. — Os mastros
superiores chamam-se mastaréus. E se, conforme dizes, estavam em
mau estado, um excesso de vela podia acabar por parti-los... Se o
bergantim tinha o vento como nós pela alheta, suponho que largaria
velas da proa, velas baixas de estai, carangueja, traquete, e talvez a
gávea e o velacho, bem orientadas a sotavento e reservando as velas
altas, as joanetes, para não correr riscos... Pelo menos de momento.
Tânger concordou com um movimento de cabeça. ContempW" va
o mar à popa como se o corsário estivesse ali.
— Devia voar sobre o mar. O Dei Gloria era um barco rápido. Coy,
por sua vez, olhou para trás.
— Pelos vistos, o outro também era.
Agora transferia-se com a imaginação para a coberta do corsário.
Segundo as características do barco que lhes tinha sido descrito por
Lúcio Gamboa em Cádis, o Chergui, chaveco semelhante à polaca,
navegaria nesse momento com todas as velas, a enorme vela latina do
traquete bem enfunada pelo vento e presa no gurupés, velas do
mastro grande desfraldadas, latina e gávea na mesma mezena,
sulcando o mar com as suas linhas afiadas de barco construído para o
Mediterrâneo, os portalós fechados, mas a tripulação de guerra
preparando os canhões, pronta para combater, e aquele fulano inglês,
o capitão Slyne, ou Misián, o grande filho da puta, de pé no
tombadilho alto e inclinado, sem afastar os olhos da sua presa. A
caçada pela popa costumava ser caçada longa, o bergantim
perseguido também era rápido, e a tripulação corsária devia encarar
as coisas com calma, consciente de que, excepto se a presa partisse
alguma coisa, não estariam próximos até depois do amanhecer. Coy
conseguia imaginá-los perfeitamente: renegados, escória perigosa dos
portos. Malteses, gibraltinos, espanhóis e norte-africanos. O pior de
cada casa, prostíbulo e taberna, piratas qualificados que navegavam e
combatiam sob uma cobertura tecnicamente legal, a carta de corso,
que, teoricamente, os punha a salvo de serem pendurados numa
corda, caso fossem capturados. Populaça afoita e cruel, desesperados
sem nada a perder e tudo a ganhar, sob o comando de capitães sem
escrúpulos que faziam o corso com cartas dos reizinhos mouros ou de
sua majestade britânica, conforme as circunstâncias, com cúmplices
em qualquer porto onde as vontades se comprassem com dinheiro.
Espanha também tivera gente assim, oficiais expulsos da marinha,
privados do seu título ou caídos em desgraça, aventureiros à procura
de fortuna ou de continuarem a pisar a coberta de um navio, que se
punham ao serviço de qualquer um, frequentemente sociedades
comerciais que armavam barcos e vendiam o produto das presas,
cotando tranquilamente na bolsa. Noutro tempo, pensava Coy com
íntimo sarcasmo, oficial desonrado e sem trabalho, talvez ele próprio
tivesse acabado como corsário. Com as vicissitudes do mar, podia
encontrar-se quer a bordo da presa quer a bordo do caçador, há dois
séculos e meio, navegando naquelas mesmas águas, a todo o pano e
com a silhueta parda do cabo de Gata adivinhando-se no horizonte.
— Nunca saberemos se foi ou não um encontro casual — disse
Tânger.
Contemplava o mar, pensativa. Incursão de um corsário à procura
de presa ao acaso, ou o dedo de Madrid, guiando o rumo do Chergui
para interceptar o Dei Gloria, sabotar a manobra dos jesuítas e roubar
o carregamento de esmeraldas. Alguém podia estar a fazer jogo duplo
no gabinete da Pesquisa Secreta. Mas aquele era talvez o único
mistério que jamais seria resolvido.
— Talvez o tenha seguido desde Gibraltar — disse Coy,
percorrendo horizontalmente a carta com o dedo.
— Ou talvez o esperasse escondido em qualquer enseada —
replicou ela. — Durante vários séculos, toda esta costa foi frequentada
por corsários... Aproximavam-se muito de terra, refugiando-se em
praias escondidas para se protegerem dos ventos ou se abastecerem
de água e, sobretudo, à espreita de presas. Vêem? — indicou um lugar
na carta, entre a Punta de los Frailes e a Punta de La Polacra. — ...Esta
enseada aqui e que agora se chama dos Escullos, no início do século
XIX ainda se chamava enseada de Mahomet Arráez, e como tal é
mencionada nas cartas e roteiros da época. E um «arráez» era, entre
outras coisas, o capitão de um barco corsário mourisco... E reparem
neste outro sítio: ainda se chama Isleta dei Moro. É por essa razão que
todas as povoações se construíam no interior ou nas alturas, para se
protegerem das incursões piratas...
— Mouros na costa — referiu Piloto.
— Sim, a frase feita vem daí. Por isso está cheia de antigas torres
de vigilância, atalaias encarregadas de alertar os moradores.
O Sol, cada vez mais baixo pela popa, começava a dar tons
avermelhados à sua pele pintalgada. A brisa fazia esvoaçar a carta
náutica que tinha nas mãos. Observava a costa próxima com
concentrada avidez, como se os acidentes geográficos estivessem a
revelar-lhe velhos segredos.
— Naquela tarde de 3 de Fevereiro — prosseguiu — ninguém teve
de alertar o capitão Elezcano. Ele conhecia os perigos de sobra e devia
estar prevenido. Por isso, o corsário não conseguiu surpreendê-lo e a
perseguição foi longa — agora Tânger percorria o litoral traçado na
carta, em direcção ascendente. — ...Durou toda a noite, com o vento
pela popa, e o corsário só pôde atacar quando, ao içar mais pano, o
mastro do traquete do Dei Gloria se partiu.
— Com certeza — sugeriu Coy — por ter decidido largar os
joanetes. Se o fez, apesar da mastreação em mau estado, é porque
devia ter o corsário mesmo em cima. Um recurso desesperado,
suponho — consultou o Piloto. — Demasiado pano.
— Devia querer tentar chegar a Cartagena — disse o outro. Coy
observou o seu amigo com curiosidade. A habitual fleuma deste
parecia dar lugar a um interesse que raras vezes vira nele. Como se
também, pensou assombrado, o ambiente estivesse a contagiá-lo.
Pouco a pouco, à medida que se intensificava o fascínio do mistério
próximo, Tânger alistava-os a todos naquela estranha tripulação
seduzida pelo fantasma de um barco envolto em penumbra verde.
Cravado no coto do seu mastro apodrecido, o dobrão de ouro do
capitão Ahab brilhava para todos.
— Claro — afirmou Coy. — Mas não chegou a sítio nenhum.
— E porque não se rendeu, em vez de lutar?
Como de costume, Tânger tinha uma explicação para isso: — Se os
corsários fossem berberes, o destino dos marinheiros capturados teria
sido acabarem como escravos. E caso fossem ingleses, o facto de nesse
momento Espanha estar numa paz relativa com Inglaterra, piorava as
coisas para a tripulação do Dei Gloria... Aquele tipo de acções
costumava terminar com o extermínio das testemunhas, para não
deixar provas. Além disso, havia as esmeraldas... De modo que não é
estranho o capitão Elezcano e os seus homens lutarem até ao fim.
Com o odre de vinho na mão, o Piloto estudava a carta. Bebeu um
gole e estalou a língua.
— Já não há marinheiros como esses — disse.
Coy estava de acordo. À crueldade do mar e à sua dureza, às
condições abjectas da vida a bordo, os marinheiros daquele tempo
deviam somar os perigos da guerra, os tiros de canhão, as abordagens.
Se já era terrível enfrentar um temporal, pior teria de ser enfrentar um
barco inimigo. Recordava as aulas práticas como aluno no Estreita del
Sur e tremia só de imaginar-se trepando pela enxárcia oscilante de um
barco para ferrar uma vela entre a metralha e os tiros de canhão, com
as adriças partidas e os estilhaços saltando por todo o lado.
— O que já não há — murmurou Tânger — é homens como
aqueles.
Contemplava o mar e as velas do Carpanta enfunadas pelo vento
e, na sua voz, latejava a nostalgia de tudo o que não conhecera, do
enigma descoberto entre velhos livros e cartas náuticas, alertando-a,
como o relâmpago longínquo de um farol na ondulação, de que havia
ainda mares por navegar, naufrágios por descobrir, perseguições a
todo o pano, esmeraldas e sonhos para trazer à luz do dia. Entre as
pontas dos cabelos que lhe batiam na cara, os seus olhos pareciam
absortos, evocando cobertas inclinadas, rumor da água, sulco de
espuma, aquela caça que, de repente, parecia reviver dramaticamente
diante dos seus olhos e que também os arrastava aos dois: ao
marinheiro sem barco e ao marinheiro sem sonhos. E Coy
compreendeu de súbito que, nesse longínquo entardecer de 3 de
Fevereiro de 1767, Tânger Soto teria gostado de estar num daqueles
dois barcos. Não tinha era a certeza se a bordo da presa, se do caçador.
Embora talvez desse no mesmo.
Tal como prognosticara o Piloto, o vento saltou um pouco para a
popa antes do anoitecer e ainda mais quando dobraram o cabo de
Gata, já ao lusco-fusco e com o Sol abaixo do horizonte, o feixe do
farol iluminando de vez em quando as paredes rochosas da
montanha. De modo que arriaram a vela grande e seguiram rumo a
nordeste, frouxa a escota da genoa fixa agora a bombordo. Antes que
escurecesse completamente, os dois marinheiros prepararam o barco
para a navegação nocturna: cabos de segurança a cada bordo, coletes
salva-vidas auto-insufláveis com arnês de segurança, binóculos,
lanternas e foguetes de sinalização ao alcance da mão. Depois, o Piloto
preparou um jantar rápido à base de fruta, ligou o radar, o candeeiro
vermelho da mesa de cartas e as luzes de navegação à vela e foi
dormir um bocado, deixando Coy de vigia no poço.
Tânger ficou com ele. Embalada pelo balanço do barco, com as
mãos nos bolsos do casacão do Piloto, a gola levantada, olhava para as
luzes que, às vezes, apareciam ao longe pontilhando a costa de
Almeria, cujo perfil escarpado podia adivinhar-se na pouca claridade
do céu de poente. Passado pouco tempo, manifestou a sua estranheza
por ver tão poucas luzes e Coy disse-lhe que aquele sector, do cabo de
Gata ao cabo de Paios, era o único do litoral mediterrânico espanhol
ainda não invadido pela praga de cimento das urbanizações turísticas.
Demasiadas montanhas, costa rochosa e poucas estradas obravam
o milagre de o manter quase virgem. Por agora.
Mar dentro, no lado oposto à terra, pequenos pontos de claridade
atrás do horizonte denunciavam a presença de navios mercantes que
seguiam rumos paralelos ao Carpanta. As suas rotas mais abertas que
a do veleiro mantinham-nos longe, mas Coy tentava não os perder de
vista e, intervaladamente, fazia marcações mentais das suas
respectivas posições: marcação constante e distância a diminuir,
segundo o velho princípio marinheiro, significava colisão certa.
Inclinou-se sobre a bitácula para verificar o rumo e barca. O Carpanta
navegava com a proa de 40° da magnética, a quatro nós. Impelido
pelo levante bonançoso, com o rumor da água ao longo do casco, o
barco deslizava facilmente sobre o mar encrespado, sob a abóbada
escura onde já podiam reconhecer-se as estrelas. A Polar estava no seu
sítio, sentinela imutável do norte, na vertical da amura de bombordo.
Tânger seguiu o olhar dele para o alto.
— Quantas estrelas conheces? — perguntou.
Coy encolheu os ombros, antes de responder que conhecia trinta
ou quarenta. As imprescindíveis para o seu trabalho. Aquela era a
estrela mestra, a Polar, disse. À sua esquerda podia ver-se a Ursa
Maior, com a sua forma de papagaio invertido e, um pouco acima,
estava Cefeu. O grupo em forma de W era Cassiopeia. W de whisky.
— E como consegues localizá-las, entre tantas?
— A determinada hora e conforme as épocas do ano, umas são
mais visíveis que outras. Se tomares a Polar como ponto de partida e
fores traçando linhas e triângulos imaginários, consegues identificar
as principais.
Tânger olhava para cima, interessada, o rosto iluminado apenas
pela claridade avermelhada que saía da escotilha. A luz das estrelas
reflectia-se nos olhos dela e Coy lembrou-se de uma toada da sua
juventude: A cantar a una nina yo la ensenaba...
Sorriu na penumbra. Quem diria, vinte e tal anos atrás.
— Se formares um triângulo — disse — com as duas estrelas mais
baixas da Ursa Maior e com a Polar, no terceiro vértice, vês?...
encontras Capela. Ali, sobre o horizonte. A esta hora ainda a vemos
muito em baixo, embora mais tarde suba, porque essas estrelas giram
para poente em volta da Estrela Polar.
— E aquele montinho luminoso?... Parece um cacho de uvas.
— São as Plêiades. Brilharão mais quando estiverem mais altas. Ela
repetiu «as Plêiades» em voz baixa, contemplando-as por muito
tempo. Aquelas luzinhas nas pupilas, pensou Coy, faziam-na parecer
espantosamente jovem. Novamente a fotografia na moldura, a taça
amolgada vaguearam pela sua memória, envoltas na velha canção:
Nombres de las estrellas
saber queria.

— Aquela tão luminosa é Andrómeda — indicou. — Está junto ao


quadrado de Pégaso, que os antigos astrónomos imaginavam como
um cavalo alado visto ao contrário... E ali mesmo, se reparares, um
pouco à direita, está a Nebulosa... Vês?
— Sim... Vejo-a.
Havia uma suave excitação na sua voz, a descoberta de alguma
coisa nova. Uma coisa inútil, inesperada e bela.

Que noche aquella,


en que le di mil nombres
a cada estrella.

Coy cantarolava entre dentes, baixinho. O balanço do barco, a


noite cada vez mais intensa, a presença próxima dela, mergulhavam-
no num estado muito próximo da felicidade. Vamos ao mar, pensava,
para vivermos momentos assim. Passara-lhe os binóculos de 7 x 50 e
Tânger observava o céu, as Plêiades, a Nebulosa, procurando pontos
luminosos que ele ia apontando com o dedo.
— Ainda não se consegue ver Orion, que é a minha favorita. Orion
é o Caçador, com o seu escudo, o seu cinto e a bainha da sua espada...
Tem uns ombros que se chamam Betelgeuse e Belatriz e um pé que se
chama Rigel.
— Porque é a tua favorita?
— É o mais impressionante que existe lá em cima. Mais do que a
Via Láctea. E uma vez salvou-me a vida.
— Não me digas! Conta-me isso.
— Não há muito que contar. Eu devia ter treze ou catorze anos e
tinha saído para pescar, com um barquinho à vela. Começou o mau
tempo, muito cerrado, e a noite surpreendeu-me no mar. Não levava
bússola e não conseguia orientar-me... De repente abriram-se um
pouco as nuvens e reconheci Orion. Marquei o rumo e cheguei ao
porto.
Tânger ficou algum tempo calada. Talvez esteja a imaginar-me,
aventurou Coy. Um menino perdido no mar, à procura de uma
estrela.
— O Caçador, o cavalo Pégaso — ela voltava a percorrer o céu. —
... És capaz, deveras, de ver todas essas figuras lá em cima?
— Claro. É fácil quando olhas durante anos e anos... De qualquer
forma, depressa as estrelas brilharão inutilmente sobre o mar, porque
os homens já não precisam delas para procurar o seu caminho.
— Isso é mau?
— Não sei se é mau. Sei que é triste.
Havia uma luz muito ao longe na direcção da popa, pela amurada
de estibordo, que aparecia e desaparecia sob a sombra escura da vela.
Coy deu uma vista de olhos atenta. Talvez fosse um pesqueiro, ou um
navio mercante que navegava perto da costa. Tânger olhava para o
céu e ele ficou algum tempo a pensar sobre luzes: brancas, vermelhas,
verdes, azuis ou de qualquer outra cor, ninguém, alheio ao mar, podia
suspeitar o que significavam para um marinheiro. A intensidade da
sua linguagem de perigo, de aviso, de esperança. O que significava a
sua busca e identificação em noites difíceis, entre ondas tempestuosas,
em arribadas calmas, com os binóculos colados à cara, tentando
distinguir a cintilação de um farol ou de uma bóia entre milhares de
odiosas, estúpidas, absurdas luzes acesas em terra. Existiam luzes
amigas e luzes assassinas, e até luzes vinculadas ao remorso. Como
daquela vez em que Coy, segundo-oficial a bordo do petroleiro
Palestine, na rota de Singapura para o Pérsico, julgou ver às três da
manhã dois foguetes de sinalização vermelhos, lançados não muito
longe. Apesar de não ter a certeza absoluta de que fossem sinais de
socorro, tinha acordado o capitão. Este subiu à ponte meio vestido,
sonolento, para dar uma vista de olhos. Mas não se viram mais
foguetes e o capitão, um basco de Guipúzcoa seco e eficiente chamado
Etxegárate, não achou oportuno desviar-se da rota, já tinham perdido,
disse, demasiado tempo, deixando para trás o farol Raffles e o estreito
de Malaca com o seu tráfego diabólico. Naquela noite, Coy passou o
resto do quarto de serviço atento ao canal dezasseis da rádio, a ver se
captava a chamada de um barco em apuros. Não aconteceu nada, mas
nunca conseguiu esquecer-se dos dois foguetes vermelhos, talvez a
provisão de emergência que um marinheiro angustiado disparava na
escuridão, como uma última esperança.
— Conta-me — disse Tânger — como foi aquela noite a bordo do
Dei Gloria.
— Achei que já o sabias de sobra.
— Há coisas que eu não posso saber.
O tom da sua voz não tinha nada a ver com o de outras vezes. Para
sua surpresa verificou que soava muito próximo, quase doce. Isso fê-
lo remexer-se pouco à vontade no banco de teca e, ao princípio, não
soube o que responder. Ela esperava, pacientemente.
— Bom — acabou ele por dizer —, se o vento fosse o mesmo que o
nosso neste momento, quase de popa arrasada, o mais lógico é que o
capitão...
— O capitão Elezcano — lembrou ela.
— Sim... é isso... Que o capitão Elezcano tenha mandado arriar as
velas da proa e as velas de estai, se as levava. Certamente deixaria
também sem velas o mastro grande, para que a grande vela
carangueja não forçasse o leme, nem tapasse o vento ao velacho e ao
traquete, ou talvez se tenha limitado a tirar a carangueja, deixando
desfraldada a gávea. Também podia ter largado as varredeiras,
embora duvide que o fizesse de noite... O mais certo é que,
conhecendo o seu barco, o tenha posto com capacidade de fugir o
mais possível, sem que um excesso de pano lhe partisse um mastro.
O vento refrescava um pouco, sempre pela popa, levantando uma
pequena ondulação. Deu uma olhadela ao anemómetro e depois
observou a enorme sombra da vela. Colocou a manivela no alvéolo do
molinete de estibordo, caçou um pouco a escota e o Carpanta escorou
alguns graus, ganhando meio nó.
— Segundo me contaste — prosseguiu depois de pôr a manivela
no sítio e colher em aduchas o chicote da escota —, o vento devia ser
um pouco mais forte do que o que temos agora. Temos dezasseis nós
de vento real, o que é força quatro na escala de Beaufort... Eles
possivelmente teriam entre vinte e vinte e tal nós, o que significa força
cinco a seis. Algo para os fazer correr, evidentemente. Iriam mais
rapidamente do que nós, ligeiramente amurados a estibordo, com o
vento chegando-lhe de igual forma, muito longo, desde a popa.
— O que faziam os homens ?
— Dormiriam pouco, em especial os teus dois frades. Com certeza
estariam todos atentos ao perseguidor, que mal conseguiriam
distinguir de noite. Se a essa hora houvesse lua, talvez, de vez em
quando, avistassem a sombra da sua vela à popa... Um e outro iriam
sem luzes, para não revelar a sua posição. O pessoal de quarto estaria
agrupado no pé dos mastros, dormitando um pouco ou olhando
preocupados pela borda, à espera das ordens para subirem
novamente para manobrar o pano... Os restantes, ao pé dos canhões,
prevenidos, caso o corsário lhes caísse em cima de repente. O capitão
no tombadilho todo o tempo, atento atrás ao ranger da mastreação e
ao embate das velas contra os mastros lá em cima. Um timoneiro ao
leme, mantendo o rumo... Sem dúvida, nessa noite dirigia o melhor
timoneiro.
— E o ajudante de piloto?
— Perto do capitão e do piloto, atento às suas ordens. Anotando
no livro de bordo as ocorrências, as horas, as manobras... Era um
rapaz novo, não é verdade?
— Quinze anos.
Reparou numa nota de comiseração na voz de Tânger. Quase uma
criança, queria dizer. Pelo menos, pensou, tinha vivido para contar.
— Naquele tempo, embarcavam desde os dez ou doze anos para
aprender o ofício... Suponho que estaria excitado com a aventura.
Nessa idade não nos assustamos facilmente. E aquele rapaz já era
veterano. Pelo menos, atravessara o Atlântico uma vez em ambas as
direcções.
— O seu relato foi bastante preciso. Era um rapazinho esperto...
Graças a ele podemos reconstituir aproximadamente o que se passou.
E graças a ti.
Coy fez uma careta.
— Eu só posso imaginar como terá acontecido o que tu me contas.
A luz avermelhada que saía pela escotilha continuava a iluminar o
rosto de Tânger. Ela ouvia com avidez as explicações de Coy, com
uma atenção que este nunca a vira dedicar-lhe em terra.
— E o corsário? — perguntou ela.
Coy tentou evocar a situação a bordo do chaveco. Caçadores
profissionais em plena faina.
— Com este rumo e com este vento — aventurou —, talvez tivesse
a vantagem da sua grande vela latina no traquete. Era um barco
desenhado para navegar no Mediterrâneo, adaptando-se às mudanças
de vento e à pouca força com que este soprava... Naquela noite, essa
vela à proa fê-lo sem dúvida ir muito depressa. O seu aparelhamento
de polaca permitir-lhe-ia, além do mais, levar alguma gávea
desfraldada e talvez o joanete do mastro grande. Creio que levaria um
rumo que o situasse pouco a pouco entre o Dei Gloria e a costa, para
cortar ao bergantim a possibilidade de se refugiar em Águilas, quando
o vento rondou ao amanhecer.
— Deve ter sido angustiante.
— Claro que sim.
Olhou para a linha um pouco mais sombria da costa, atrás da qual
se escondia já a luz do farol de Gata. Pelo bordo, uma ponta de terra
sombria começava a revelar a enseada luminosa de San José. Com
essas duas referências fez alguns alinhamentos mentais, situando-se
sobre uma carta imaginária. Pensou na tripulação do bergantim
subindo às escuras aos mastros, ferrando ou largando a vela de acordo
com o vento e as necessidades da manobra, a lona áspera nos dedos
entumecidos, o estômago apoiado nas vergas, os pés oscilantes no
vazio com o único apoio dos guarda-mancebos.
— Julgo que terá acontecido mais ou menos assim — concluiu. —
E a esperança do capitão Elezcano de deixar o chaveco para trás
durou toda a noite. Talvez tenha tentado alguma manobra evasiva,
como mudar de rumo e tentar despistá-lo na escuridão, mas aquele tal
Misián devia sabê-las todas... Ao nascer o dia, os tripulantes do Dei
Gloria deviam ter ficado destroçados quando viram o Cbergui ainda
ali, entre eles e a terra, diminuindo a distância... Talvez nessa altura,
enquanto o piloto se encarregava de calcular a posição, o capitão do
bergantim tenha tomado a decisão mais desesperada: largar mais
pano, desfraldando joanetes. Então partiu-se o mastaréu e o corsário
caiu-lhes em cima.
E falando em cair em cima, observou Coy, a luz à proa que a genoa
escondia de vez em quando parecia estar mais perto, na mesma
posição que antes. De modo que agarrou nos binóculos Steiner e
andou pelo lado de barlavento, agarrando-se aos ovéns, até à
balaustrada da proa, junto à amarra mordida pelo gato de escape. A
luz tinha uma forma estranha, demasiado forte para um simples
pesqueiro, mas não conseguia identificá-la com uma forma definida.
Se fosse um barco navegando ao rumo inverso, talvez um navio
mercante pela quantidade e pelo tamanho das suas luzes, deveria
avistar a luz vermelha de bombordo ou a verde de estibordo, ou as
duas, no caso de o outro ter a proa apontada para eles, ou seja roda a
roda. Mas não conseguia ver nada disso. E, no entanto, decidiu,
inquieto, parecia demasiado perto.
Navegar de noite era uma merda do caraças, disse para consigo
aborrecido, regressando ao poço. Tânger olhava para ele
interrogativamente.
— Põe o colete salva-vidas — disse ele.
Alguma coisa não estava bem e o seu instinto de marinheiro
começava a tocar para o combate. Desceu à casa de pilotagem, pôs a
funcionar o radar que estava em espera e no ecrã verde apareceu um
eco negro. Mediu a distância e marcação, verificando que estava a
duas milhas e que vinha directamente na direcção deles. Um eco
grande e ameaçador.
— Piloto! — chamou.
Não sabia que diacho era aquilo, mas dentro de pouco tempo iam
tê-lo em cima. Enquanto subia a escada da escotilha fez cálculos
rápidos. Nas imediações do cabo de Gata, o dispositivo de separação
do tráfego ordenava aos navios mercantes em rota para sul a
manterem-se a cinco milhas da costa. O Carpanta navegava perto
desse limite, de modo que podia tratar-se de um navio navegando
mais junto a terra do que o habitual. A sua velocidade seria de uns
quinze nós. Unidos aos cinco do Carpanta, isso fazia vinte milhas
percorridas em sessenta minutos. Duas milhas em seis: era esse o
tempo de que dispunham para um ou outro manobrarem, antes da
colisão. Seis minutos. Talvez menos.
— O que se passa? — perguntou Tânger.
— Problemas.
Comprovou que ela tinha vestido o colete salva-vidas auto-
insuflável, provido de uma luz estroboscópica que se acendia em
contacto com a água. Começou a vestir o seu, agarrou na lanterna e
voltou para a proa, iluminado ao passar pela luz vermelha de
bombordo situada nos ovéns. As outras luzes, ameaçadoras, estavam
cada vez mais próximas, sem alterar o rumo. Acendeu a lanterna,
fazendo sinais intermitentes na direcção delas e depois repetiu a
mesma coisa, iluminando a grande vela desfraldada do Carpanta.
Qualquer marinheiro na ponte de um navio mercante devia ver
aquilo. Iluminou um instante a esfera do relógio. Meia-noite menos
cinco. Aquela era a pior hora do mundo. A bordo do barco que se
aproximava deviam estar prestes a mudar o pessoal de quarto.
Certamente, confiado no radar, o oficial estava sentado na mesa de
cartas, escrevendo as ocorrências no diário náutico antes de ser
substituído, e o responsável pelo quarto seguinte ainda não estava na
ponte. Talvez houvesse um sonolento timoneiro filipino, ucraniano ou
indiano mandriando em qualquer lado, ou na retrete. Os grandes
canalhas.
Regressou apressadamente ao poço. O Piloto já lá estava,
perguntando o que se passava. Coy apontou para as luzes à proa.
— Jesus! — murmurou o Piloto.
Tânger observava-os desconcertada, com a grossa faixa vermelha
do colete salva-vidas ajustada sobre o casacão.
— É um barco?
— É um filho da puta e vem a direito.
Ela tinha o mosquetão do arnês de segurança na mão e olhava para
um e para outro, como se não soubesse o que fazer. Coy achou-a
insolitamente indefesa.
— Não te prendas a nada — aconselhou. — Por causa das coisas...
Não era bom estar amarrado a um barco que podia ser partido em
dois. Voltou a meter-se pela escotilha e colou-se ao ecrã do radar.
Navegavam à vela e teoricamente tinham prioridade de passagem,
mas isso e nada era a mesma coisa. Por outro lado, estavam já
demasiado perto para manobrarem, afastando-se da rota do outro. E
do que não havia dúvidas era de que se tratava de um barco grande.
Demasiado grande. Amaldiçoava-se pelo descuido, por não ter
previsto antes o perigo. Continuava sem ver luzes vermelhas ou
verdes e, no entanto, o navio mercante estava ali, em linha recta na
direcção deles, a uma escassa milha. Sentiu estremecer o motor do
Carpanta ao iniciar a marcha. O Piloto acabara de ligá-lo. Veio
novamente cá fora.
— Não nos vê — disse.
E, no entanto, tinham as suas luzes de navegação acesas, tinham
feito sinais luminosos e o Carpanta arvorava no cimo do mastro um
bom repetidor de sinais de radar. Coy acabou de ajustar o colete salva-
vidas. Estava furioso e baralhado. Furioso consigo próprio por se ter
distraído com as estrelas e com a conversa, e não ter previsto o perigo.
Baralhado, porque continuava sem ver as luzes vermelha e verde
daquilo que lhes vinha para cima.
— Não podem avisá-lo por rádio? — perguntou Tânger.
— Já não há tempo.
O Piloto tinha desligado o piloto automático e governava
manualmente, mas Coy sabia qual era o problema. A manobra evasiva
mais lógica era guinar para estibordo, porque, se o navio mercante os
avistasse no último momento, também ele deveria guinar para o seu
estibordo. O problema era que, navegando tão perto da costa, o
estibordo deste podia levá-lo para muito perto de terra e era possível
que, em vista disso, o oficial da ponte fizesse a manobra contrária,
procurando o seu bombordo e o mar alto. LPPA: Lei do Pior que Pode
Acontecer. Assim, ao querer afastar-se da rota do outro, o Carpanta
acabaria exactamente a meio desta.
Tinham de se fazer ver. Coy agarrou num dos foguetes de
sinalização brancos que estavam no poço e voltou para a proa. As
luzes pareciam um arraial, luzes por toda a parte, uma claridade que
devia estar já a menos de meia milha. Do mar chegava agora um
rumor surdo, constante e sinistro: o ruído das máquinas do navio
mercante. Agarrou-se à balaustrada da proa e deu uma última
olhadela, tentando compreender, ao menos, o que estava a acontecer,
antes do outro lhe passar por cima. E então, a apenas duzentas jardas
de distância, recortada como um fantasma sombrio no esplendor da
sua própria luz, conseguiu distinguir uma massa negra, alta e terrível:
a proa do navio mercante. Agora, as suas luzes permitiam distinguir
numerosos contentores empilhados na coberta. E de súbito,
finalmente, Coy compreendeu o que tinha acontecido. De longe, as
luzes vermelha e verde tinham ficado escondidas pelas outras, mais
fortes. De perto, da posição mais baixa do veleiro, era a própria proa e
o casco largo do navio mercante que impedia vê-las.
Tinha menos de um minuto. Segurando-se com os joelhos contra a
balaustrada da proa, pondo o corpo para fora do estai da genoa, tirou
a tampa superior do foguete, fez girar a base, afastou-o bem do corpo,
estendendo o braço o mais a sotavento que pôde, e bateu com força no
disparador usando a palma da outra mão. Desde que não esteja
caducado, pensou. Então ouviu-se um sopro forte, uma fumarada
saltou do foguete e uma claridade ofuscante iluminou Coy, a vela e
uma boa porção de mar em volta do Carpanta. Agarrado ao estai e
com a outra mão erguida, encegueirado pelo brilho intenso, viu como
a proa do navio mercante ainda mantinha o rumo alguns instantes e
depois começava a virar a estibordo, a menos de cem metros. E a luz
já agonizante do foguete avisou-o da enorme onda do barco, uma
crista branca que se lançava sobre o veleiro. Atirou o foguete ao mar,
agarrando-se com as duas mãos, enquanto o Piloto metia toda a roda
do leme do Carpanta para estibordo. Agora, o costado preto,
iluminado em cima como numa festa, passava muito perto, entre o
estrépito das máquinas, e o veleiro, atingido pela onda, bailava
enlouquecido. Então a enorme genoa, apanhada pelo vento do outro
lado, ficou de repente totalmente exposta ao vento, a vela mareada no
bordo oposto atingiu Coy e este viu-se projectado por cima da
balaustrada da proa, mergulhando no mar.
Estava fria. Estava demasiado fria, pensou aturdido, enquanto a
água negra lhe cobria a cabeça. Sentiu as turbulências da hélice do
veleiro quando quando o casco passou junto dele, afastando-se, e
depois outras maiores, que faziam borbulhar em seu redor a esfera
escura e líquida onde onde se agitava: as grandes hélices do navio
mercante.
A água atroava com o ruído das máquinas, e nesse instante
compreendeu que ia afogar-se irremediavelmente, porque a
turbulência puxava para baixo as suas calças e o seu colete e, de um
momento para outro, teria de abrir a boca para respirar, para encher
os pulmões de ar, e o que ia lá entrar não era ar, muito pelo contrário,
era água salgada criminosa e abundante. Pela sua cabeça não passou
toda a sua vida em imagens rápidas, mas uma fúria cega por acabar
daquela forma absurda, e o desejo de nadar para cima, de sobreviver a
qualquer custo. O problema era a turbulência o embrulhar na maldita
esfera negra, e em cima e em baixo serem conceitos demasiado
relativos, mesmo supondo que ele estivesse em condições de nadar
em direcção a algum sítio. A água começou a entrar-lhe pelo nariz,
com uma sensação incómoda e bastante aguda, e ele disse para
consigo: já está, estou a afogar-me. Já estou feito. De modo que abriu a
boca para blasfemar com o último sorvo e, para sua surpresa,
encontrou ar limpo, estrelas no céu e a luz estroboscópica do colete
salva-vidas auto-insuflável lampejando-lhe junto da orelha, com
clarões brancos que lhe cegavam o olho direito. E com o olho
esquerdo, menos ofuscado que o outro, viu a claridade do navio
mercante que se afastava e, no outro lado, a sessenta braças de
distância, com a luz verde de estibordo aparecendo e desaparecendo
atrás da enorme sombra da genoa que ondulava ao vento, a silhueta
escura do Carpanta.
Tentou nadar na direcção dele, mas o colete salva-vidas entorpecia
os seus movimentos. Sabia de sobra que um barco pode passar cem
vezes junto de um homem na água, de noite, e não o ver. Procurou o
apito de emergência que devia estar ao pé da luz estroboscópica, mas
não estava aí. E gritar àquela distância era inútil. A ondulação era
incómoda, com vagas que o faziam subir e descer, tapando-lhe a vista
do veleiro. Também o escondiam a ele, pensou desolado. Depois pôs-
se a nadar devagar, às braçadas, evitando cansar-se demasiado, com o
objectivo de encurtar a distância. Calçava sapatilhas desportivas que o
tolhiam pouco, de modo que decidiu mantê-las calçadas. Não sabia
quanto tempo ia passar na água e serviriam para protegê-lo um pouco
mais. O Mediterrâneo não era um mar de baixas temperaturas e,
naquela época do ano, de noite, um náufrago vestido e de boa saúde
podia manter-se vivo várias horas.
Continuava a ver as luzes do Carpanta, onde pareciam estar a
recolher a genoa. Pela sua posição relativamente a ele e ao navio
mercante, Coy compreendeu que, mal o vira cair à água, o Piloto tinha
atravessado as velas, parando, e agora preparava-se a fim de voltar
para trás a fim de tentar aproximar-se do ponto onde caíra. Sem
dúvida, ele e Tânger estavam cada um do seu lado do veleiro,
procurando-o entre o movimento do mar. Talvez tivessem deitado à
água o salva-vidas de emergência com a bóia luminosa amarrada à
extremidade de uma espia, dirigindo-se agora na sua direcção para
ver se ele tinha conseguido encontrá-la. Quanto à sua própria luz, a do
colete, certamente a ondulação continuava a tapá-la.
A luz verde de estibordo passou diante dele, perto, e Coy gritou,
agitando inutilmente o braço. O gesto fê-lo mergulhar no meio de uma
crista e, quando veio com a cabeça à tona, soprando a água salgada
que lhe ardia no nariz, nos olhos e na boca, a luz verde passara para a
branca de popa: o veleiro dava-lhe a popa, afastando-se.
Tudo isto é demasiado absurdo, pensou. Começava a ter frio, e
aquela luz que cintilava no seu ombro parecia invisível para todos,
menos para ele. O colete insuflado à volta do pescoço mantinha-lhe a
maior parte do tempo a cabeça fora de água. Agora não via a luz do
Carpanta, só o brilho do navio mercante, muito ao longe. E existe,
disse para consigo, a possibilidade de não me encontrarem. Existe a
possibilidade de esta maldita luz gastar as pilhas e apagar-se, e eu
ficar aqui às escuras. LAV: Lei de Apaga e Vamos. Uma vez, jogando
às cartas, um velho maquinista disse-lhe: «Há sempre um tonto que
perde. E se olhares em volta e não vires nenhum, é porque o tonto és
tu.» Olhou à sua volta, o mar escuro que chapinhava contra a gola
insuflada do colete salva-vidas. Não viu ninguém. Às vezes há alguém
que morre, acrescentou no seu íntimo. E se não vires mais ninguém,
quem morre podes ser tu. Observou os pontos das estrelas lá no alto.
Podia estabelecer a direcção da costa com a sua ajuda, mas não servia
de nada: estava demasiado longe para alcançá-la a nado. Se o Piloto,
que devia ter anotado a posição da sua queda no mar, lançasse via
rádio um may-day de homem ao mar, a busca efectiva só começaria
ao amanhecer. E nessa altura ele já podia ter cinco a seis horas de
molho, com todas as rifas no bolso para apanhar uma perigosa
hipotermia. Não havia nada que pudesse fazer, excepto poupar forças
e fazer que a perda de calor se verificasse o mais devagar possível.
Posição HELP, lembrou-se. Heat Escape Lessening Posture, diziam os
manuais.
Ou uma coisa do género. De modo que tentou adoptar uma
postura fetal, colocando as coxas dobradas junto ao ventre com os
braços cruzados em cima do peito. Isto é ridículo, pensou. Linda
postura, na minha idade. Mas enquanto a luz estroboscópica
continuasse a cintilar, havia esperança.
Luzes. À deriva, agitado pela ondulação, com os olhos fechados e
mexendo-se apenas de vez em quando para conservar o calor e, ao
mesmo tempo, economizar energias, com os lampejos brancos por
cima do ombro que o cegavam intermitentemente, Coy continuava a
pensar em todo o tipo de luzes, até à obsessão. Luzes amigas e luzes
inimigas, de popa, de atracação, de bombordo e estibordo, lanternas
verdes, azuis, brancas, bóias, estrelas. Diferenças entre a vida e a
morte. Uma nova crista de uma onda fê-lo girar sobre si próprio, como
uma bóia na água, submergindo-lhe novamente a cabeça. Emergiu
esbracejando, a pestanejar para expulsar o sal que lhe abrasava os
olhos. Outra crista fê-lo girar novamente e, nessa altura, ali mesmo, a
menos de dez metros, viu duas luzes: uma vermelha e outra branca. A
vermelha era a de bombordo do Carpanta e a branca era o foco da
lanterna com que Tânger, na proa, o mantinha iluminado, enquanto o
Piloto manobrava devagar para se colocar a barlavento.

Deitado no beliche do seu camarote, Coy ouvia o rumor da agua


no casco. O Carpanta navegava novamente para nordeste, com vento
favorável. E o náufrago que já não era náufrago tinha adormecido com
o balanço, debaixo do cálido aconchego dos cobertores e do saco-cama
que o cobriam. Tinham-no içado a bordo pela popa, depois de lhe
passarem o laço de um cabo sob os ombros, esgotado e desajeitado
com o colete e com as roupas molhadas e com a luz que continuou a
piscar no seu ombro até, já na coberta, ele próprio a ter arrancado do
colete e atirado ao mar. As pernas fraquejaram-lhe mal pisou o poço.
Pusera-se a tiritar violentamente e, entre o Piloto e Tânger, desceram-
no até ao camarote, depois de o terem coberto com um cobertor. Aí,
aturdido, dócil como um recém-nascido sem vontade e sem forças,
tinha-se deixado despir e secar com toalhas, embora o Piloto tentasse
não esfregar demasiado, a fim de impedir que o frio que lhe
entorpecia braços e pernas avançasse pelos vasos sanguíneos em
direcção ao coração e à cabeça. Enquanto o despojavam da última
peça de roupa, deitado de barriga para cima no beliche como na
neblina de uma estranha dormência, tinha sentido o toque áspero das
mãos do Piloto e também o tacto das de Tânger sobre a sua pele nua.
Sentiu os dedos dela tomando-lhe primeiro a pulsação, que latejava
debilmente, com lentidão. Depois, segurando-lhe no tronco enquanto
o Piloto lhe tirava a camisola, nos pés para lhe tirar as meias e,
finalmente, na sua cintura e coxas quando lhe tiraram as cuecas
empapadas. Nesse momento, a palma da mão dela apoiara-se por um
instante na anca de Coy, no início da coxa, ficando ali, leve e cálida,
alguns segundos. Depois fecharam o saco-cama empilhando
cobertores em cima, apagaram a luz e deixaram-no sozinho.
Vagueou através da penumbra esverdeada que o chamava lá de
baixo e fê-lo em quartos de serviço intermináveis de nevoeiros,
neblinas e ecos no radar. Marcava com lápis de cera rumos rectilíneos
no indicador panorâmico de radar; enquanto na coberta havia cavalos
comendo contentores de madeira que diziam conter cavalos, e
capitães silenciosos percorriam a ponte para cima e para baixo sem lhe
dirigirem a palavra. A água cinzenta e tranquila parecia chumbo
ondulado. Chovia sobre o mar, os portos, as gruas e os cargueiros.
Sentados nos cabeços de amarração, homens e mulheres imóveis,
empapados pelo aguaceiro, permaneciam absortos em sonhos
oceânicos. E lá em baixo, junto de um sino de bronze silencioso, no
centro de uma esfera azul, havia cetáceos dormindo aprazivelmente
com uma prega em forma de sorriso na boca, de cabeça para baixo e
cauda na vertical, suspensos sem se afundarem no sono leve das
baleias.
O Carpanta balanceou um pouco, acentuando o seu abatimento.
Coy entreabriu as pálpebras na escuridão do camarote, aconchegado
naquele calor reconfortante que devolvia pouco a pouco a vida ao seu
corpo entumecido, encaixado pelo abatimento entre o beliche e o
casco. Estava ali, a salvo, e tinha conseguido escapar às fauces do mar,
tão impiedoso nos seus caprichos como imprevisível na sua
clemência.
Estava a bordo de um bom barco governado por mãos amigas e
podia dormir o que quisesse sem se preocupar com nada, porque
outros olhos e outras mãos velavam o seu sono, guiando-o para além
do fantasma do barco perdido que aguardava nas trevas onde estivera
prestes a mergulhar para sempre. As mãos de mulher que o tocaram
ao tirar-lhe a roupa tinham voltado mais tarde, para o destapar um
pouco antes de postar-se à sua frente e tomar a pulsação. E agora, a
lembrança daquele toque, da palma da mão imóvel na primeira vez
sobre a sua anca nua, fê-lo ter uma lenta, cálida erecção, ao abrigo das
coxas que recuperavam o calor. Isso fê-lo sorrir para consigo, imóvel e
sonolento, quase com surpresa. Era bom estar vivo. Depois adormeceu
novamente, franzindo o sobrolho, porque o mundo já não era imenso
e o mar encolhia-se. Sonhou que sentia saudades desesperadas de
mares proibidos e costas bárbaras, ilhas onde nunca chegavam ordens
de captura, nem sacos de plástico, nem latas vazias. E vagueou de
noite por portos sem barcos, entre mulheres acompanhadas por outros
homens. Mulheres que olhavam para ele por não serem felizes, como
se quisessem contagiar-lhe a sua desgraça.
Chorou em silêncio, com os olhos fechados. Para se consolar,
apoiava a cabeça no costado de madeira do barco, sentindo o rumor
do mar no outro lado das tábuas de três centímetros de grossura que o
separavam da Eternidade.

XI - O MAR DOS SARGAÇOS

No Mar dos Sargaços, onde os ossos emergem para branquear-se, mentir e


troçar dos navios que passam.
Thomas Pynchon. Arco-íris de Gravidade

Quando subiu à coberta, o barco estava imóvel no amanhecer, sem


um sopro de brisa, com a abrupta linha da costa muito próxima e o
céu sem nuvens passando, a oeste, do cinzento-escuro ao azul,
vermelha a pedra, vermelho o mar a levante, vermelhos os raios que o
Sol dirigia horizontalmente para o mastro do Carpanta sobre a
superfície da água parada.
— Foi aqui — disse Tânger.
Tinha uma carta náutica aberta em cima dos joelhos e, ao seu lado,
o Piloto fumava um cigarro, com uma chávena de café na mão. Coy
foi até à coberta da popa. Vestira umas calças secas e uma camisa de
manga curta, e o cabelo despenteado e os lábios tinham restos de sal
do mergulho nocturno. Olhou em volta, entre as gaivotas que
planavam grasnando antes de pousarem na água. A costa estava a
pouco mais de uma milha para oeste e depois abria-se para cima em
forma de enseada. Reconheceu Punta Percheles, Punta Negra, o
cabeço e a ilha de Mazarrón à distância. E, ao longe, umas oito milhas
a este, a mole escura do cabo Tinoso.
Regressou ao poço. O Piloto tinha descido para lhe trazer uma
chávena de café quente, e Coy bebeu-a de um gole, fazendo ma cara
ao saborear as últimas gotas da bebida amarga. Tânger apontava na
carta a paisagem que tinham diante dos olhos. Conservava a camisola
preta vestida e estava descalça. Madeixas louras fugiam-lhe do cabelo,
coberto pelo gorro de lã do Piloto.
— É este o sítio — disse — onde o Dei Gloria partiu o mastro e
teve de combater.
Coy concordou sem deixar de observar a costa próxima, enquanto
ela explicava os pormenores do drama. Tudo o que tinha investigado,
os pormenores reunidos aqui e ali em papéis amarelados, em
manuscritos, nas antigas cartas náuticas do Urrutia, tomava forma na
voz tranquila, tão segura como se ela também tivesse lá estado. Nunca
tinha ouvido ninguém tão convicto do que dizia. E ouvindo-a, com os
olhos fixos no arco da costa parda que se afastava para nordeste, Coy
tentou reconstruir a sua própria versão dos factos: o que acontecera,
ou, mais exactamente, o que poderia ter acontecido. Invocava para
isso os livros que lera, a sua experiência de marinheiro, os dias e as
noites da sua juventude impelida por velas silenciosas através daquele
mar a que ela o trouxera de volta. Por isso pôde imaginar facilmente.
E quando Tânger interrompia o seu relato e olhava para ele, e os olhos
azuis do Piloto também o olhavam, Coy encolhia um pouco os
ombros, coçava o nariz e preenchia os buracos da narração. Dava
pormenores, aventurava situações, descrevia manobras, situando-as
naquele amanhecer de 4 de Fevereiro de 1767, quando o vento virou
para norte ao nascer do Sol, pondo o caçador e a presa a navegar à
bolina. Nessas circunstâncias, disse, o vento aparente somava-se ao
vento real, e o bergantim e o chaveco tinham de limitar-se a sete ou
oito nós, com carangueja, vela grande, velas de proa, gáveas, e as
vergas bem braceadas a sotavento, no Dei Gloria; latinas de traquete e
mezena tensas como lâminas de navalha, no corsário, e este ganhando
barlavento melhor que a sua presa. Muito inclinados ambos para
estibordo, com a água escorrendo-lhes pelos embornais de sotavento,
e os timoneiros atentos à roda do leme, os capitães dependentes do
vento e das velas, numa corrida onde o primeiro que cometesse um
erro perderia a partida.
Erros. No mar, tal como na esgrima — Coy ouvira-o nalgum lado
— tudo se resumia em manter o adversário à distância, prevendo os
seus movimentos. A nuvem negra que se desenhava plana e baixa à
distância, na zona levemente escura da água encrespada, a espuma
quase imperceptível contra a rocha à tona de água, auguravam
estocadas mortais que só a vigilância perpétua permitia esquivar. Isso
convertia o mar em símile perfeito da vida. A altura de colher os rizes
à vela, dizia o sensato princípio marinheiro, era justamente quando
nos interrogávamos se não seria a altura certa de colher os rizes à vela.
O mar escondia um velho canalha, perigoso e obstinado, cuja aparente
camaradagem só esperava pelo momento de desferir uma patada ao
menor descuido. Matava facilmente, sem piedade, os descuidados e os
estúpidos. E o melhor dos marinheiros podia aspirar, quando muito, a
que o tolerasse entre as suas ondas, sem incomodar. A passar
despercebido. Porque o mar carecia de sentimentos e, tal como o Deus
bíblico, nunca perdoava, excepto por acaso ou por capricho. As
palavras caridade, compaixão e muitas outras também ficavam em
terra, quando soltavam amarras. E de certa forma, pensava Coy, era
justo que assim fosse. O erro, concluiu, acabara por cometê-lo o
capitão Elezcano. Ou talvez não tenha havido erro e tenha acontecido
que a lei do mar se inclinou naquela ocasião a favor do corsário. Cada
vez mais perto do inimigo, que o impedia de pôr-se a salvo ao abrigo
dos canhões da torre artilhada de Mazarrón, o bergantim teria caçado
os joanetes, apesar do mau estado dos mastaréus. Não era difícil
adivinhar o resto: o capitão Elezcano olhando para cima, angustiado,
enquanto os marinheiros, balançando-se nos guarda-mancebos,
suspensos sobre o mar a estibordo, soltam os envergues das velas
superiores e estas se desfraldam com um breve bater da lona nos
mastros, esticando ao subir as vergas e ao caçar escotas. E o ajudante
de piloto que se aproxima do tombadilho com a latitude e a longitude
obtidas pelo piloto, e a ordem distraída de anotá-las no diário náutico
dada pelo capitão, que não afasta os olhos de cima. O ajudante de
piloto ao seu lado, voltado por sua vez para cima, enquanto mete no
bolso o papel com as coordenadas escritas a lápis. E de súbito, craque!,
o ranger sinistro da madeira partindo-se, as adriças e a lona caindo a
sotavento enredadas pelo vento sobre a gávea do velacho, e o barco
dando uma guinada suicida, e o coração na boca de todos os homens a
bordo, que nesse instante compreendem que a sua sorte está decidida.
Devia haver marinheiros lá em cima, cortando a enxárcia inútil e
atirando os restos do mastaréu e da vela ao mar, enquanto em baixo o
capitão Elezcano dava a ordem de abrir fogo. Os portalós dos canhões
estariam abertos desde as primeiras horas do dia, carregadas as suas
bocas, com os artilheiros preparados. Talvez o capitão tenha decidido
cair de improviso para um bordo para apanhar de surpresa o
perseguidor próximo, dando-lhe sem dúvida de estibordo, com os
homens inclinados atrás dos canhões, esperando que o casco e as velas
do chaveco aparecessem diante deles. Combate quase penol a penol,
dizia o relatório escrito pelas autoridades da marinha, baseado no
testemunho do ajudante de piloto. Isso significava que os barcos
estariam muito próximos, prontos os do corsário para a descarga dos
canhões e abordagem, quando o Dei Gloria mostrou o seu estibordo
com os portalós abertos, atrás dos quais fumegavam as mechas, e
atirou uma descarga à queima-roupa, cinco canhões cuspindo balas de
quatro libras. Teve de causar estragos. Mas nesse momento, o corsário
devia estar guinando também a estibordo, só que as suas velas latinas
lhe permitiram continuar no rumo, bolinando, e cortar a esteira do
bergantim, atirando-lhe por sua vez uma descarga vingativa,
mortífera, que varresse a coberta da popa à proa. Dois canhões longos
de seis libras e quatro de quatro libras: quinze a vinte quilos de ferro e
metralha partindo cabos, madeiras e carne humana. Depois, enquanto
a bordo do corsário os artilheiros gritavam de júbilo, vendo os feridos
e moribundos do adversário arrastando-se pelas cobertas
escorregadias de sangue, os dois barcos foram-se aproximando cada
vez mais, lentamente, até ficarem quase imóveis, um ao pé do outro,
disparando com ferocidade.
O capitão Elezcano era um biscainho tenaz. Decidido a não
oferecer em vão o pescoço ao machado do verdugo, devia percorrer
de cima a baixo a borda do bergantim, animando os seus
desesperados artilheiros. Devia haver canhões destruídos, estilhaços,
metralha, balas de canhão e de mosquete voando por toda a parte,
pedaços de cabos, mastros e velas que caíam de cima. Por essa altura,
os dois jesuítas já estariam mortos, ou talvez tenham descido até à
câmara para defenderem até ao último instante o cofre das
esmeraldas, ou para o atirarem ao mar. As últimas descargas do
corsário foram, sem dúvida, devastadoras. O mastro do traquete, com
as suas velas caídas como sudários, rangeu antes de se desmoronar na
coberta do bergantim, palco de uma carnificina. E talvez o capitão
Elezcano já estivesse morto nessa ocasião. O barco estava à deriva,
arrasado e sem governo. Talvez, acocorado entre rolos de cabos com
um sabre de combate na mão que lhe tremia, o assustado ajudante de
piloto de quinze anos esperasse o fim, vendo aproximar-se entre o
fumo os mastros do Chergui pronto para a abordagem. Mas via-se um
fogo a bordo. Os tiros de canhão dados à queima-roupa pelo
bergantim, ou os do próprio chaveco, tinham incendiado algumas das
suas velas baixas, que não tiveram tempo de recolher pelo inesperado
da manobra. E agora aquela lona ardia, caindo sobre a coberta do
navio corsário, talvez perto de uma carga de pólvora, ou da escotilha
aberta do paiol de pólvora. Azares do mar. E de repente houve uma
labareda e um estampido seco que bateu no agonizante bergantim,
derrubando-lhe o segundo mastro, como um punho de ar, e enchendo
o céu de fumo preto, de estilhaços e faúlhas, de restos humanos que
caíram por toda a arte. Então, levantando-se sobre a borda coberta de
sangue, ensurdecido pela explosão e desorbitados os olhos de horror,
o ajudante de piloto pôde ver que onde estivera o navio corsário só
restavam madeiras fumegantes que crepitavam afundando-se no mar.
Nesse momento, o Dei Gloria escorou por sua vez, com a água
invadindo as entranhas do seu casco desgarrado, e o ajudante de
piloto deu consigo a flutuar entre restos de madeiras e cordames.
Estava só, e perto dele flutuava o bote que o capitão Elezcano tinha
mandado deitar à água para libertar o convés, minutos antes de dar
início ao combate.
— Deve ter acontecido mais ou menos assim — disse Tânger.
Estavam os três calados, diante do mar imóvel como a laje de um
túmulo. Lá em baixo, em algum lugar e parcialmente escondidos na
areia do fundo, estavam os ossos de quase uma centena de homens
mortos, os restos dos barcos e uma fortuna em esmeraldas.
— O mais lógico — prosseguiu ela — é o Chergui ter-se desfeito
com a explosão e os seus restos estarem espalhados. O bergantim, no
entanto, afundou-se intacto, excepto os mastros partidos. Como a
profundidade não é muita, o normal é que assentasse sobre a quilha,
ou sobre um bordo.
Coy estudava a carta, calculando distâncias e profundidades. O Sol
começava a aquecer atrás de si.
— O fundo é lodo e areia — disse. — E algumas rochas. É possível
que esteja tão enterrado que não possamos escavar.
— É possível — Tânger inclinou-se sobre a carta, tão perto que as
suas cabeças se roçaram. — Mas isso só o saberemos depois de
estarmos lá em baixo. A parte coberta estará melhor que a exposta à
ondulação e às correntes. Os teredos já terão feito o seu trabalho
roendo a madeira... O que a areia não protegeu, estará desfeito. O
ferro, oxidado. Também depende de a água ser mais ou menos fria...
Um barco pode permanecer intacto a baixas temperaturas, ou
desaparecer em pouco tempo em águas quentes.
— Aqui não são muito frias — insinuou o Piloto. — Excepto
alguma corrente.
Mantinha-se interessado mas um pouco à parte, com a sua cara
inexpressiva sulcada pelo vento, pelo Sol e pelo salitre. Fazia e
desfazia nós mecanicamente, com um pedaço de adriça nos dedos
calosos, de unhas tão curtas e partidas como as de Tânger. As suas
íris, desbotadas por anos de luz mediterrânica, iam de um para o
outro, tranquilas. Um olhar estóico que Coy conhecia bem: a do
pescador ou do marinheiro que nada espera, excepto encher
razoavelmente as redes e regressar ao porto com o necessário para
continuar a viver. Ele não era dos que tinham ilusões. O mar
quotidiano diluía as quimeras e, no fundo, a palavra esmeraldas
parecia-lhe ser tão indefinida como o sítio onde o arco-íris se apoia no
mar.
Tânger tinha tirado o gorro de lã. Agora apoiava inadvertidamente
uma mão no ombro de Coy.
— Até termos situado o casco com a ajuda dos planos e sabermos
onde se encontra cada parte, não teremos a certeza de nada... O
importante é a zona da popa estar acessível. Aí estavam os aposentos
do capitão e as esmeraldas.
A sua atitude era cada vez mais distinta da que mantinha em terra
firme. Natural e menos arrogante. Coy sentia a suave pressão da mão
dela no seu ombro e a proximidade do seu corpo. Cheirava a mar e a
pele aquecida pelo Sol, que subia devagar no céu. Agora precisas de
mim, pensou. Agora precisas mais de mim, e nota-se.
— Talvez tenham atirado as esmeraldas ao mar — disse.
Ela negava com a cabeça, a sombra encolhendo muito devagar
sobre a carta 463A. Depois calou-se um pouco e disse que talvez. Isso
era impossível sabê-lo ainda. De qualquer forma, o cofre estava
perfeitamente descrito: uma caixa de madeira, ferro e bronze, de vinte
polegadas de comprimento. O ferro não resistia bem debaixo de água
e estaria convertido numa massa escurecida e irreconhecível. O
bronze aguenta melhor, mas a madeira teria desaparecido. Lá dentro,
as esmeraldas estariam soldadas umas às outras com aderências. O
aspecto seria mais ou menos o de um bloco de pedra escura, um
pouco avermelhada, com veios esverdeados do bronze. Teriam de
procurá-lo entre os despojos e não seria fácil.
Evidentemente que não. Coy achava dificílimo. Uma agulha num
palheiro, como tinha sugerido em Cádis, entre duas gargalhadas e
dois cigarros, Lúcio Gamboa. E se os destroços estavam enterrados,
seriam necessárias mangueiras extractoras para o lodo e para a areia.
Nada discreto.
— De qualquer forma — concluiu Tânger —, primeiro temos de
localizá-lo.
— O que se passa com a sonda? — perguntou Coy. O Piloto
terminava um nó duplo de calabre.
— Nenhum problema — disse. — Instalam-na esta tarde em
Cartagena, e também um repetidor do GPS para a cabina — olhou
para Tânger com uma gravidade desconfiada. — Mas será necessário
pagar tudo isso...
— Claro — disse ela.
— É a melhor sonda de pesca que consegui encontrar — o Piloto
dirigia-se a Coy. — Uma Pathfinder Optic de três faces, como me
pediste... O transductor pode instalar-se no espelho de popa sem
muito trabalho.
Tânger olhou para ele interrogativamente. Coy explicou que, com
aquela sonda, podiam cobrir um leque de 90 graus sob o casco do
Carpanta. Usava-se para localizar bancos de peixes, mas também dava
uma visão clara do fundo, com o perfil bastante pormenorizado da
superfície deste. O importante era que, graças a utilização de diversas
cores no ecrã, a Pathfinder diferenciava os fundos de acordo com a
sua densidade, dureza e estrutura, detectando qualquer
irregularidade. Uma rocha isolada, um objecto submerso, até as
mudanças de temperatura, apareciam nitidamente. Até o metal, o
ferro ou o bronze dos canhões, se sobressaíssem na areia, ver-se-iam
numa cor intensa, mais escura. A sonda de pesca não era tão precisa
como os sistemas profissionais que Nino palermo podia utilizar, mas a
uma profundidade de vinte a cinquenta metros devia bastar. Dessa
forma, navegando devagar até passar a pente fino a área de busca e
atribuindo coordenadas a cada objecto submerso que chamasse a
atenção, podiam traçar um mapa da zona com os lugares possíveis do
naufrágio. Numa segunda fase explorariam cada ponto com o
aquaplano: uma tábua rebocada que mantinha um mergulhador à
vista do fundo.
— É estranho — disse o Piloto.
Tinha tirado da bitácula o odre de vinho que estava lá pendurado
e bebia inclinando a cabeça para trás, de olhos abertos para o céu. Coy
sabia no que ele estava a pensar. Com um naufrágio em tão pouco
fundo, as redes dos pescadores prender-se-iam aí. Tinha de saber-se. E
nesta altura, alguém já teria dado uma vista de olhos lá em baixo, para
bisbilhotar. Qualquer mergulhador amador podia fazê-lo.
— Sim. Pergunto a mim próprio por que razão nenhum pescador
falou de um naufrágio por aqui. Costumam conhecer estes fundos
melhor que o corredor das suas casas.
Tânger mostrou-lhe a carta: A, F, P. As pequenas iniciais estavam
disseminadas por toda a parte, junto aos números da sonda.
— Também há rochas, vêem?... E isso pode ter protegido os
destroços.
— Protegê-lo dos pescadores, talvez — replicou Coy. — Mas um
barco de madeira afundado entre rochas não aguenta muito. Com tão
pouco fundo, a ondulação e as correntes destroem o casco. Nenhum se
conserva como na tua ilustração de O Tesouro de Rackam, o Terrível.
— Talvez — disse ela.
Contemplava o mar com uma expressão obstinada, e os olhos do
Piloto e de Coy encontraram-se. De repente, mais uma vez, tudo
aquilo parecia absurdo. Não vamos encontrar nada, dizia a expressão
do marinheiro, enquanto passava o odre a Coy. Estou aqui porque sou
teu amigo e, além disso, pagas-me, ou é ela quem o faz, o que, no fim
de contas, é o mesmo. Mas a ti esta mulher desviou-te a agulha
magnética. E o mais engraçado é que nem sequer estás a comê-la.
Estavam em Cartagena. Tinham navegado perto da costa, sob a
parede escarpada do cabo Tinoso, e agora o Carpanta entrava no canal
do porto, já utilizado por gregos e fenícios. Carta-Hadath: a Nova
Cartago das gestas de Aníbal. Reclinado numa cadeira de teca na
popa do veleiro, Coy observava a ilha de Escombreras. Aí, sob a
abertura da face sul, tinha tirado ânforas romanas na sua juventude.
Recipientes para vinhos e azeites, de gargalos elegantes, com pegas
alongadas e marcas em latim dos seus fabricantes, algumas ainda
seladas como quando se afundaram. Há vinte anos, aquela zona era
um imenso campo de resíduos procedentes de naufrágios e, também,
diziam, de navegantes que atiravam oferendas ao mar à vista de um
templo dedicado a Mercúrio. Coy tinha mergulhado ali muitas vezes,
para subir imediatamente, sem exceder nunca a velocidade das suas
próprias bolhas de ar, na direcção da silhueta escura do Carpanta que
esperava em cima, no tecto polido da superfície, com a linha de água
curvada para as profundezas. Uma vez, a primeira que baixou a
sessenta metros — sessenta e dois marcava o batímetro no seu pulso
— Coy tinha descido lentamente, com pausas para compensar o
aumento de pressão nos tímpanos, deixando-se cair no interior
daquela esfera esverdeada onde as cores iam desaparecendo até se
converterem numa luz fantasmagórica, difusa, e só restarem diversos
tons de verde. Tinha perdido de vista a superfície e depois caído,
sempre muito devagar, de joelhos sobre o fundo de areia limpa, com o
frio das profundezas subindo-lhe pelos músculos e pelo ventre sob o
casaco de neopreno. 7,2 atmosferas, pensou, surpreendido com a sua
própria audácia. Mas tinha dezoito anos. A sua volta, até perder-se de
vista no círculo verde, espalhadas de qualquer maneira sobre a areia
lisa, semienterradas nela ou agrupadas em pequenos montículos, via
dúzias de ânforas partidas ou intactas, gargalos e bases pontiagudas,
barro milenário que ninguém tinha tocado ou exposto à luz em vinte
séculos. Bocas alongadas, redondas, largas e estreitas por onde
moreias mal-encaradas assomavam as cabeças e nadavam peixes
escuros. Embriagado pelo mar sobre a sua pele, fascinado por aquela
penumbra e pelo vasto campo de vasos imóveis como golfinhos
adormecidos, Coy afastou a máscara do rosto, mantendo o bocal de ar
preso entre os dentes, para sentir na cara toda a tenebrosa grandeza
que o envolvia. Depois, subitamente alarmado, colocou novamente a
máscara, esvaziando a água com ar expelido pelo nariz. Nesse
momento, o Piloto, prolongado pelas suas barbatanas de borracha,
convertido noutra silhueta verde-escura que descia do cimo da esfera
na extremidade de um longo e recto penacho de bolhas de ar, tinha
chegado ao pé dele, movendo-se com a lentidão dos homens nas
profundezas, apontando com uma expressão severa para o batímetro
que tinha no pulso e depois para uma das têmporas com um dedo,
perguntando-lhe silenciosamente se tinha perdido o juízo. Subiram
juntos, muito devagar, atrás das medusas de ar que os precediam,
levando cada um deles uma ânfora nas mãos. E quando já estava
quase à superfície, e o Sol começava a filtrar os seus raios pelo esmeril
turquesa sobre as suas cabeças, Coy tinha levantado a sua, invertendo-
a, e um rasto de areia fina derramou-se do seu interior, brilhante como
ouro em pó na contraluz da água, envolvendo-o numa nuvem que
parecia um sonho dourado.
Amava aquele mar, que era tão velho, céptico e sábio como as
inúmeras mulheres que latejavam na memória genética de Tânger
Soto. As suas margens tinham a marca dos séculos, pensou,
contemplando a cidade sobre a qual escreveram Virgílio e Cervantes,
resguardada no fundo do porto natural entre as altas paredes rochosas
que, durante três mil anos, a tornaram quase inexpugnável aos
inimigos e aos ventos. Apesar da sua decadência, das fachadas
decrépitas e sujas, dos terrenos de casas arruinadas e por reconstruir
que às vezes lhe davam o aspecto estranho de uma cidade em guerra,
era bonita vista do mar, e pelas suas ruelas estreitas ressoavam ecos
de homens que tinham lutado como troianos, pensado como gregos e
morrido como romanos. Já podia distinguir-se o antigo castelo sobre
uma elevação acima da muralha, no outro lado do quebra-mar que
protegia o canal e a entrada para o arsenal. Os velhos fortes
abandonados de Santa Ana e Navidad passavam lentamente a
bombordo e a estibordo do Carpanta, ainda com um esgar de ameaça
nas suas ameias vazias que, como olhos cegos, continuavam a apontar
para o mar.
Aqui nasci, pensou Coy. E deste porto acedi aos livros e aos
oceanos pela primeira vez. Aqui me atormentou o desafio das coisas
remotas e a nostalgia prematura do que não conhecia. Aqui sonhei em
remar até à baleia com a faca nos dentes e o arpoador preparado na
proa. Aqui pressenti, antes de falar inglês, a existência do que o
Mariners Weatber Log chama ESW: Extreme Storm Wave, onda de
tempestade extrema. E soube que qualquer homem tem sempre, dê ou
não dê com ela, uma ESW esperando-o nalgum lugar. Aqui vi lápides
de marinheiros mortos em túmulos vazios, e compreendi que o
mundo é um barco em viagem de ida e que essa viagem não tem
regresso. Aqui descobri, antes de precisar disso, o substituto da
espada de Catão, do veneno de Sócrates. Da pistola e da bala.
Sorria de si próprio, dos seus pensamentos, enquanto olhava para
Tânger de pé junto da âncora, segura com uma mão à genoa enrolada
no seu estai, e o barco demandava porto, navegando a motor. No
poço, o Piloto dirigia à mão por umas águas onde podia perfeitamente
navegar às escuras. Uma corveta cinzenta da Armada, fazendo-se ao
mar do dique de San Pedro, passava por estibordo, com os jovens
marinheiros inclinados sobre a borda para observar a mulher imóvel
na proa do veleiro, como uma figura de proa dourada. Chegava até ao
Carpanta, trazido pela brisa da terra, o cheiro dos montes próximos:
despidos, secos e calcinados pelo Sol, com tomimo, alecrim, palmito e
figueira-da-índia entre as suas fragas pardas, barrancos secos onde
cresciam figueiras e amendoeiras em terraços protegidos por
murinhos de pedra. Apesar do cimento, do vidro, do aço e das
escavadoras, da sucessão interminável de luzes bastardas que
maculavam as suas margens de costa a costa, todo o Mediterrâneo
continuava ali, por pouca atenção que se prestasse ao ténue rumor da
memória: azeite e vinho tinto, Islão e Talmude, encruzilhadas,
pinheiros, ciprestes, túmulos, igrejas, poentes cár-deos como o sangue,
velas brancas ao longe, pedras talhadas pelos homens e pelo tempo,
hora singular da tarde em que tudo permanecia imóvel e em silêncio,
excepto o canto da cigarra, noites à luz de uma fogueira feita com
madeira à deriva no mar, enquanto a Lua subia devagarinho sobre um
mar de ilhas sem água. E também espetadas de sardinhas, louro e
azeitonas, cascas de melancia flutuando imóveis no suave ondular
vespertino da praia, rumor de calhaus na ressaca do amanhecer,
barcas pintadas de azul, branco e vermelho, encalhadas em margens
com moinhos em ruínas e oliveiras cinzentas, e uvas que
amadureciam nas latadas. E à sua sombra, perdidos os olhos no azul
intenso que se estendia para levante, homens imóveis olhando para o
mar, heróis queimados e barbudos que sabiam de naufrágios em
enseadas designadas por deuses cruéis, ocultos sob a aparência de
mutiladas estátuas que dormiam, com os olhos abertos, um silêncio de
séculos.
— O que é isso? — perguntou Tânger.
Tinha vindo à popa e apontava para bombordo, atrás do dique de
Navidad, junto dos grandes túneis gémeos de betão destinados,
noutros tempos, a albergar submarinos. Ali, a praia preta do
Espalmador estava coberta pelos restos dos navios desmantelados.
— É o Cemitério dos Barcos Sem Nome.
O Piloto voltara-se para Coy. Tinha um cigarro meio consumido na
boca e olhava para ele com olhos onde afloravam as lembranças, à
espreita de algum sentimento que evitou exteriorizar. Na margem,
meio submersos na água os seus cascos oxidados, entre esqueletos,
pontes, cobertas e chaminés, elanguesciam barcos abertos como
grandes cetáceos desventrados, mostrando cavernas metálicas e
divisórias despidas, pranchas de aço cortadas e amontoadas na praia
ao pé das gruas. Era ali que os navios condenados à morte,
desprovidos já de nome, matrícula e bandeira, se submetiam à última
viagem, antes de acabarem sob o maçarico. Os novos planos
urbanísticos da cidade condenavam aquele lugar a desaparecer, mas
demoraria meses a concluir os últimos desmantelamentos e a limpar o
lugar dos restos disseminados por toda a parte. Coy viu um velho
bulkcarrier de que só restava a popa, parcialmente afundada no mar e
cujos dois terços anteriores já tinham desaparecido entre um caos de
ferros na praia. Havia peças desmontadas por toda a parte, uma dúzia
de grandes âncoras gotejando ferrugem na areia escura, três chaminés
absurdamente conservadas, umas ao pé das outras, visíveis ainda os
restos de pintura com a bandeira dos seus armadores, e o quase
centenário esqueleto de um paquete russo ou polaco, o Korzeniowski,
que estava um pouco mais longe, junto da torre de vigia, desde que
Coy se lembrava: uma ponte de ferro oxidado com restos de pintura
branca, tábuas apodrecidas e a cabina quase intacta, a bordo do qual
sonhava, rapaz ainda, em sentir o movimento de um navio debaixo
dos seus pés, e o mar aberto diante dos olhos.
Aquele tinha sido durante muitos anos o seu local favorito
propenso aos sonhos oceânicos, quando passeava a caminho do
quebra-mar com uma cana de pesca ou a espingarda de elástico e as
barbatanas, ou quando mais tarde ajudava o Piloto a limpar o casco
do Carpanta encostado ao Espalmador, em pouca água. Aí, no
interminável entardecer do porto, quando o Sol se ia escondendo atrás
dos esqueletos inertes dos velhos barcos, o Piloto e ele tinham
conversado com palavras ou silêncios sobre a crença, partilhada por
ambos, de que os barcos e os homens deveriam terminar sempre
dignamente, no mar, em vez de se verem desmantelados em terra. E
mais tarde, muito longe dali, na ilha Decepción, a sul de Horn e do
estreito de Drake, Coy tinha sentido idêntico estado de espírito
quando desembarcou na areia de uma praia que era negra como
aquela, entre milhares de ossos de baleia que a embranqueciam até
perder de vista. O espermacete desses animais convertera-se em óleo
queimado em candeeiros muitíssimo antes de ele ter nascido, mas os
ossos continuavam ali como um embuste, naquele estranho mar dos
Sargaços antárctico. Havia entre os restos um velhíssimo ferro de
arpão oxidado, e Coy viu-se de pé diante dele, olhando-o com
repugnância. No fim de contas, ilha Decepção era um bom nome para
aquele sítio. Baleias desfeitas, barcos desfeitos. Homens desfeitos. O
arpão cravava-se na mesma carne, porque se tratava sempre da
mesma história.
Atracaram no porto de recreio e andaram pelo cais, sentindo, como
acontecia sempre que pisavam terra, que esta oscilava suavemente sob
os seus pés. No cais comercial, no outro lado do clube náutico, havia
um cargueiro de mastros: o Felix von Luckner, da Zeeland Ship, que
Coy conhecia por fazer habitualmente a rota Cartagena-Antuérpia. A
sua mera visão evocava longas esperas sob a chuva, o vento e a luz
amarelada do Inverno, as silhuetas fantasmagóricas das gruas sobre a
terra plana, a comporta e as manobras intermináveis no Escalda. E,
apesar de ter conhecido sítios do mundo muito mais confortáveis, Coy
não conseguiu evitar uma pontada de nostalgia.
Foram os três à esplanada do bar Valência, junto ao azulejo
centenário com os versos que Miguel de Cervantes tinha dedicado à
cidade na sua Viaje del Parnaso, ao pé da muralha construída por
Carlos III, quando o Dei Gloria estava apenas há três anos jazendo no
fundo do mar, e beberam grandes canecas de cerveja fria, de frente
para o relógio da Câmara, das palmeiras agitadas pelo levante que
aumentava de intensidade ao meio-dia, e do pináculo do monumento
aos marinheiros mortos em Cuba e Cavite, com dúzias de nomes
gravados em placas de mármore juntamente com os de barcos que
estavam, tal como eles, há cem anos singrando o silêncio das
profundezas. Depois o Piloto foi encarregar-se da sonda e Tânger
acompanhou Coy pelas ruas estreitas e desertas da cidade velha, sob
varandas com sardinheiras e vasos de manjericão e os mirantes
envidraçados onde, às vezes, se podia ainda ver uma mulher sentada,
com um bordado nas mãos, que os via passar com curiosidade. Agora
a maior parte daquelas varandas estava fechada e os mirantes vazios,
com vidros desprovidos de cortinas, em casas de janelas condenadas e
portas onde se acumulava a sujidade. E Coy procurava nelas,
inutilmente, uma cara conhecida, uma música familiar atrás das
persianas verdes, um miúdo a brincar na esquina ou na praça mais
próxima, no qual reconhecesse alguém, ou se reconhecesse.
— Fui feliz aqui — disse ele de repente.
Estavam parados numa rua escura, diante do terreno de uma casa
arruinada entre outras duas que ainda se mantinham de pé. Os
pedaços de parede despida conservavam tiras de papel, pregos
enferrujados de onde não pendiam quaisquer quadros, marcas de
móveis, fios eléctricos desfiados. Percorreu-as com o olhar, tentando
recuperar o que contiveram noutro tempo: estantes com livros, móveis
de nogueira e caoba, corredores de azulejos, quartos com clarabóias
ovais no cimo, retratos amarelados, rodeados por uma aura
esbranquiçada que intensificava o seu ar fantasmagórico. Já não
existia a relojoaria do rés-do-chão, nem as lojas de carvão e a
mercearia no fim da rua, nem a taberna com uma fonte de mármore
ao centro, anúncios de Anis del Mono e cartazes tauromáquicos na
Parede, que exalava um cheiro a vinho quando se passava à frente da
porta, e em cuja montra costas de homens taciturnos, inclinados sobre
copos vermelhos, deixavam correr as horas. E o menino de calças
curtas que andava por aquela mesma rua com uma garrafa de sifão
em cada mão, ou colava o nariz, maravilhado, nas montras cheias de
brinquedos iluminadas para o Natal, há muito que o mar o tinha
levado.
— Porque partiste? — perguntou Tânger.
A sua voz soava estranhamente doce. Coy continuava a
contemplar as paredes da casa inexistente. Fez um gesto apontando
para trás, em direcção ao porto do outro lado da cidade.
— Havia um caminho ali — voltou-se devagar. — Quis fazer o que
outros sonham.
Ela inclinou a cabeça, em sinal de concordância. Observava-o
daquela maneira singular que tinha às vezes, como se estivesse a vê-lo
pela primeira vez.
— Andaste longe — sussurrou.
Parecia invejá-lo, ao dizer aquilo. Coy encolheu os ombros com um
sorriso de tempo e de naufrágios. Uma careta deliberada, consciente
de si própria.
— Há algumas linhas — disse, contemplando novamente as
paredes da casa que já lá não estava. — Uma página que li ali em
cima.
Recordou em voz alta, sem dificuldade:
«Vem aqui, tu, o do coração partido. Aqui há outra vida sem o
intermédio da morte. Aqui podem conhecer-se, sem morrer,
maravilhas sobrenaturais. Eu provoco mais esquecimento que a Parca.
Vem, levanta a tua lápide sepulcral no cemitério e casa-te comigo.»
Ouvindo esta voz a este e a oeste, da madrugada ao anoitecer, a alma
do ferreiro respondeu: "Sim, para aí vou." E assim, Perth foi para a
caça da baleia...»
Encolheu novamente os ombros, quando terminou, e ela
continuava a olhar para ele da mesma forma. As íris azul-marinhas
estavam fixas na boca dele.
— Foste o que quiseste ser — disse.
A voz dela soava ainda como um sussurro pensativo. Coy ergueu
um pouco as palmas das mãos.
— Fui Jim Hawkins, e depois fui Ismael, e durante algum tempo
julguei ser Lord Jim... Depois soube que nunca fui nenhum deles. Isso
aliviou-me, de certa forma. Como se me livrasse de amigos
incomodativos. Ou de testemunhas.
Dirigiu uma última olhadela às paredes despidas. Havia sombras
escuras que o cumprimentavam de cima: mulheres enlutadas
conversando na luz decrescente da tarde, uma lamparina de óleo
diante da imagem de uma virgem, o crepitar aprazível de bilros
tecendo uma renda, uma tabaqueira de cabedal preto com iniciais de
prata e o cheiro a tabaco de um bigode branco. Gravuras de barcos
que navegavam de velas ao vento, entre o ranger do papel das
páginas de um livro. Fugi, pensou, para um lugar que já não existia,
de um lugar que já não existe. Voltou a sorrir para o vazio: — Como
costuma dizer o Piloto, nunca sonhes com a mão no leme.
Ela permaneceu em silêncio depois de ouvir aquilo, e não disse
mais nada. Tinha tirado da carteira o maço com a efígie de Héroe e
acendia um cigarro com o maço ainda nas mãos, tão devagar como se
aquele bocado de cartolina pintada a consolasse dos seus próprios
fantasmas.
Jantaram michirones(1) e ovos estrelados com batatas na Posada
de Jamaica, no outro lado do antigo túnel da Calle Canales. O Piloto
juntou-se-lhes aí, com as mãos manchadas de óleo e a notícia de que a
sonda estava instalada e funcionava bem. Havia rumor de conversas,
fumo de tabaco formando estratos cinzentos no tecto, e Rocio Jurado
cantava ao fundo, na rádio, La Lola se Va a los Puertos. A veterana
casa de pasto tinha sido reformada e, em vez das toalhas de oleado
que Coy toda a vida vira, havia agora toalhas de pano e talheres
novos, azulejos, enfeites e até quadros nas paredes, embora a clientela
continuasse a ser a mesma, sobretudo à hora do almoço: moradores
do bairro, pedreiros, mecânicos de uma oficina próxima, reformados
atraídos pela comida caseira e económica. De qualquer forma, como
disse a Tânger, servindo-lhe mais vinho tinto com gasosa, só o nome
do local fazia que valesse a pena lá ir.

*1. Michirones-guisado típico da zona de Múrcia, feito à base de favas


secas, carnes salgadas e enchidos de porco. E muitas vezes servido como
petisco. (N. da T.)

A sobremesa, enquanto o Piloto descascava uma tangerina,


definiram o plano de busca. Largariam de madrugada, para começar a
peneirar a zona a meio da manhã. O sector de busca inicial ficava
definitivamente estabelecido entre os 1 graus 20 minutos e 1 graus 22
minutos de longitude oeste e os 37° 31,5 minutos e 37° 32,5 minutos de
latitude norte. Abordariam esse rectângulo de uma milha de
comprimento por duas de largura na sua parte exterior, desde a maior
à menor profundidade, com sondas que iriam diminuindo a partir dos
cinquenta metros. Conforme Coy fez notar, isso tinha a vantagem de,
ao começarem longe da costa, os movimentos do Carpanta
demorarem mais a chamar a atenção vistos de terra, da qual se iriam
aproximando pouco a pouco. A uma velocidade de dois a três nós, a
Patbfinder permitia-lhes sondar em pormenor franjas paralelas de uns
cinquenta a sessenta metros de largura. A zona de exploração estava
dividida em setenta e quatro dessas franjas, de modo que, contando o
tempo perdido nas manobras, percorrer cada uma delas levaria uma
hora, e cobrir a área completa, umas oitenta. Isso dava cerca de cem
ou cento e vinte horas reais de trabalho, e precisariam de dez a doze
dias para cobrir a área de busca. Sempre e desde que o tempo
ajudasse.

— A previsão meteorológica é boa — disse o Piloto — Mas


perderemos com certeza alguns dias.
— Duas semanas — calculou Coy. — Esse é o prazo mínimo.
— Talvez três.
— Talvez.
Tânger ouvia atentamente, com os cotovelos em cima da mesa e os
dedos entrelaçados sob o queixo.
— Disseste que podíamos chamar a atenção, vistos de terra... Isso
despertaria suspeitas?
— Inicialmente, não acredito. Mas à medida que nos
aproximarmos, talvez. Nesta época, já há gente que vai à praia.
— Também há pesqueiros — disse o Piloto, com um gomo de
tangerina na boca. — E Manzarrón fica perto.
Tânger olhou para Coy. Tinha agarrado numa das cascas do prato
do Piloto e partia-a aos bocadinhos. O aroma perfumava a mesa.
— Há alguma forma de nos justificarmos?
— Suponho que sim. Podemos estar a pescar ou a procurar alguma
coisa perdida.
— Um motor — sugeriu o Piloto.
— É isso. Um motor fora de borda caído ao mar. Temos a nosso
favor o facto de o Piloto e o Carpanta serem bastante conhecidos na
zona e chamarem pouco a atenção... No que se refere a terra, não há
problema. Podemos atracar uma noite em Mazarrón, outra em
Águilas, outras em Cartagena, e nas outras fundear longe da zona.
Um casal que aluga um barco para quinze dias de férias não tem nada
de estranho.
Troçava ao dizer aquilo, mas Tânger não parecia achar o
comentário divertido. Ou talvez fosse a palavra casal. Inclinava a
cabeça com a casca de tangerina nos dedos, avaliando a situação.
Lavara o cabelo à tarde, antes de descer a terra, e as pontas louras e
assimétricas voltavam a roçar-lhe o queixo.
— Há lanchas-patrulha? — perguntou, impassível.
— Duas — disse o Piloto. — A de vigilância aduaneira e a da
guarda civil.
Coy explicou que a H. J. da Alfândega costumava operar de noite e
ocupava-se em vigiar o contrabando. Não era necessário
preocuparem-se com ela. Quanto à da guarda civil, a sua missão era
vigiar a costa e fazer cumprir as leis de pesca. Em princípio, o
Carpanta não era problema seu, mas havia a possibilidade de que, ao
vê-lo ali um dia após o outro, se aproximassem para bisbilhotar.
— A vantagem é o Piloto conhecer toda a gente, incluindo os
guardas. Agora as coisas mudaram, mas na sua juventude associou-se
a alguns deles. Podes imaginar: tabaco americano, bebidas, uma
percentagem dos lucros — olhou-o com afecto. — ...Sempre soube
ganhar a vida.
O Piloto fez uma expressão fatalista e sábia, antiga como o mar
onde navegava, herança de inúmeras gerações de ventos contrários.
— Vive e deixa viver — disse com simplicidade.
O próprio Coy acompanhara-o algumas vezes noutros tempos,
desempenhando as funções de grumete em expedições clandestinas e
nocturnas perto do cabo Tinoso ou na direcção do cabo de Paios, e
recordava aqueles episódios com a excitação própria dos seus poucos
anos. Às escuras, com a luz do farol próximo brilhando na noite, à
espera das luzes de um navio mercante que diminuía a marcha,
parando o tempo necessário para que alguns fardos descessem para a
coberta do Carpanta. Caixas de tabaco americano, garrafas de whisky,
aparelhos electrónicos japoneses. E depois, o caminho de regresso na
escuridão, talvez o desembarque do contrabando numa enseada
discreta, passando-o para as mãos de sombras que avançavam com a
água até ao peito. Para o jovem que Coy era nessa altura não havia
diferença entre aquilo e o que lia, bastando isso para justificar a
aventura. Do seu ponto de vista, aquelas velhas páginas, Moonfleet,
David Balfour, A Flecha de Ouro e todas as outras — esperar por um
tiroteio na escuridão foi, durante muito tempo, o seu desejo mais
íntimo — proporcionavam pretextos suficientes. O problema era que,
mais tarde, ao voltarem ao porto e atirarem para terra um cabo
inocente para lhe dar volta no cabeço de amarração, havia sempre
algum guarda civil ou um oficial da marinha que ficava com a parte
de leão. E ao Piloto, após ter arriscado o seu barco e a sua liberdade,
ficava-lhe o estritamente necessário para chegar ao fim do mês,
enquanto outros enriqueciam à sua custa. Vive e deixa viver, mas há
sempre alguém que vive melhor do que nós. Ou à custa dos outros.
Uma vez, no bar Taibilla, enquanto comiam sanduíches de lombo de
porco com tomate, alguém levou Piloto à parte e lhe propôs fazer uma
viagem um pouco mais complicada, indo ao encontro, numa noite
sem lua, de um pesqueiro procedente de Marrocos. Ketama(2) puro,
disse. Cinquenta quilos. E aquilo, explicou o sujeito a meia voz, podia
fazê-lo ganhar mil vezes o que tirava das suas esporádicas excursões
nocturnas. Da mesa, com a sanduíche na mão, Coy viu como o Piloto
ouvia com muita atenção, acabava a cerveja sem se apressar, deixava
depois o copo vazio em cima do balcão antes de levar o outro, à
bofetada, do bar até à Calle Mayor.

*2. Ketama: região marroquina onde se produz o melhor haxixe. (N. da T.)

Tânger pagou o jantar e saíram. A temperatura estava agradável, e


foram andando devagar em direcção às portas de Múrcia e à cidade
velha. Estava um soldado de infantaria da marinha, imóvel diante da
porta branca da capitania: o mesmo edifício, comentou Tânger, onde
foi interrogado o ajudante de piloto do Dei Gloria. Também se viam
luzes verdes de taxistas aborrecidos à porta do Cinema Mariola e
gente sentada nas esplanadas. Às vezes, Coy cruzava-se com um rosto
conhecido e trocava um cumprimento silencioso, um movimento de
cabeça, olá, até logo, como estás, pronunciados por um e por outro
sem intenções de se verem mais tarde nem nunca, nem de esperarem
pela resposta. Já não havia nada em comum sobre o que falar. Viu
uma antiga namorada de juventude convertida em matrona
respeitável, com duas crianças pela mão e outra num carrinho,
acompanhada por um marido de cabelo grisalho e escasso, que
lembrava vagamente a Coy um colega de escola. Passou inexpressiva
à luz dos pavorosos candeeiros pós-modernos que obstruíam os
passeios, sem dar sinais de reconhecimento. Mas conheces-me bem,
pensou ele, divertido. LQTVQTV. Lei de Quem Te Viu e Quem Te Vê.
Eu esperando-te na Porta de San Miguel, o roçar das mãos no Café
Mastia. Aquela farra na noite de fim de ano em casa dos teus pais que
estavam de viagem: Je t'aime, moi non plus, e os pares abraçados com
pouca luz, enquanto Serge Gainsbourg e Jane Birkin faziam aquilo no
gira-discos. E o canto escuro, e a cama do teu irmão com uma
bandeirola do Atlético de Madrid pregada com tachas à parede, e
como ficou o teu pai quando chegou, de improviso, estragando a festa
e encontrando-nos aí, a brincar aos médicos. Pois claro que me
conheces!
— A fase da busca — disse — preocupa-me menos do que
encontrarmos o Dei Gloria... Nesse caso, e mesmo que dissimulemos
com idas e vindas, a nossa imobilidade será mais suspeita à medida
que passarem os dias. — Voltou-se para Tânger: — ...O que não sei é
quanto tempo pode levar isso.
— Eu também não.
Tinham subido pela Calle del Aire até à Taberna del Macho. Os
degraus da ladeira da Baronesa subiam até às ruínas da catedral velha
e do teatro romano, entre entradas de ruas estreitas, já quase todas
desaparecidas, mas cujo traçado permanecia indelével na memória de
Coy. Mais além, o bairro popular de operários portuários e pescadores
que recordava apinhado sob o castelo, com roupa estendida de
varanda a varanda, surgia agora meio destruído, povoado de
imigrantes africanos que olhavam das esquinas, carrancudos ou
cúmplices. Haxixe do bom, meu. Recém-chegado de Marrocos. Havia
gatos deslizando junto às paredes como comandos em plena incursão
nocturna, sob gradeamentos antigos com vasos. Das tascas vizinhas
saía um cheiro a vinho e a anchovas fritas, e uma puta solitária
passeava-se ao longe, tal como uma sentinela aborrecida, sob a
lanterninha que iluminava um nicho com a Virgen de la Soledad.
— Será preciso tirar medidas dos destroços comparando-as com os
planos — disse Tânger — para situar a proa e a popa. E depois
peneirar o lugar onde deve estar situada a câmara do capitão.. Ou o
que dela restar.
— E se estiver enterrado?
— Nesse caso, sairemos daí e voltaremos com os meios adequados.
— Tu mandas. — Coy evitava os olhos do Piloto, que sentia fixos
nele. — Tu lá sabes.
A Taberna del Macho já não se chamava assim, nem cheirava a
azeitonas e a vinho barato, mas conservava o balcão antigo, as pipas
de carvalho escuro e o aspecto de antiga adega de que Coy se
lembrava. O Piloto bebia cognac Fundador, e a mulher nua tatuada no
seu antebraço esquerdo movia-se lascivamente cada vez que contraía
os músculos ao levantar o copo. Coy tinha visto aqueles traços azuis
irem ficando mais desbotados com o passar do tempo. O Piloto tinha
feito a tatuagem muito novo, aquando de uma visita do Canárias a
Marbella, e depois ficara com febre durante três dias. O próprio Coy
estivera quase a fazer uma tatuagem em Beirute, quando navegava
como terceiro-oficial no Otago: uma serpente alada muito bonita,
escolhida entre os modelos expostos na parede pelo gravador. Mas já
com o braço nu estendido e a agulha prestes a tocar-lhe na pele,
arrependeu-se. De modo que pôs dez dólares em cima da mesa e foi-
se embora com o antebraço intacto.
— Há outro inconveniente: Nino Palermo. Se calhar, já tem alguém
por aqui, vigiando-nos. Não me surpreenderia que nos deixasse
procurar, e aparecesse assim que déssemos com os destroços.
Bebeu um gole da sua genebra azul com água tónica, deixando-a
escorregar, fresca e aromática, pela garganta. Ainda sentia o gosto de
sal do banho nocturno.
— É um risco que temos de correr — disse ela.
Segurava entre dois dedos, polegar e indicador, um cálice de
moscatel que mal provara. Coy observou-a por cima do rebordo do
seu copo. Pensava no 357 Magnum. Tinha revistado a bagagem dela,
blasfemando em voz baixa, sem o encontrar. Estava disposto a atirá-lo
ao mar, mas só encontrou os cadernos de apontamentos, óculos de sol,
roupa, alguns livros. Também uma caixa de tampões e uma dúzia de
cuequinhas de algodão.
— Espero que saibas o que estás a fazer.
Tinha olhado para o Piloto antes de se dirigir a ela. Era melhor o
marinheiro ignorar aquilo do revólver, pois não ia achar graça
nenhuma navegar com o Carpanta artilhado. Graça nenhuma.
— Soube-o sempre — respondeu Tânger, glacial. — Vocês
preocupem-se em encontrar o barco e deixem que eu me preocupe
com Palermo.
Tem cartas na manga, disse Coy para consigo. A grande cabra tem
cartas na manga que só ela conhece, caso contrário, não estaria tão
segura de si quando trazemos à baila o cabrão do dálmata. Aposto o
meu pescoço como já avaliou todas as hipóteses: as possíveis, as
prováveis e as perigosas. O único problema é saber em qual delas é
que eu entro.
— Resta ainda um assunto. — Havia poucos clientes e o taberneiro
estava na outra extremidade do balcão, mas mesmo assim baixou a
voz ao falar: — ... As esmeraldas.
— O que se passa com elas?
Nos olhos do Piloto, Coy leu que o seu amigo também pensava o
mesmo: se um dia jogares ao póquer, tenta não fazê-lo com ela.
Embora jogues há bastante tempo.
— Suponhamos que aparecem — respondeu. — Que encontramos
o cofre. É verdade o que Palermo disse?... Que já te encarregaste de as
colocar?... Será preciso limpá-las, sei lá. Coisa de especialistas.
Ela franziu o sobrolho. Olhava para o Piloto de soslaio.
— Não acho que seja o momento...
Coy fechou um punho em cima do balcão. A sua irritação ia em
crescendo e, desta vez, não se incomodou em disfarçá-la.
— Ouve. O Piloto está metido nisto até ao pescoço, tal como tu e
como eu. Arrisca o barco e também problemas com a justiça. É preciso
garantir-lhe...
Tânger levantou uma mão. A mim tremer-me-ia às vezes, pensou
Coy. De facto, tremem-me quase todo o maldito tempo. A ela, em
compensação...
— Para já, o valor que paguei justifica os riscos que corre. Mais
tarde, com as esmeraldas, todos seremos compensados e satisfeitos.
Tinha sublinhado todos, voltando-se para Coy com dureza.
Depois, enquanto ele perguntava a si próprio, uma vez mais, com
quantas peças ela tinha construído a sua personagem, levou o cálice
de moscatel aos lábios, molhando-os apenas, e colocou-o no balcão.
Inclinava o rosto como se estivesse a avaliar a conveniência de
acrescentar mais alguma coisa ou não. Verónica Lake, pensou Coy
admirando a cortina assimétrica que lhe tapava metade do rosto.
Tânger tinha falado de O Falcão de Malta, mas era mais Kim
Bassinger em L.A. Confidencial, que tinha visto milhares de vezes no
camarote do Fedallah. Ou Jessica Rabbit em Quem Tramou Roger
Rabbit? Na realidade não sou má. Desenharam-me assim...
— Quanto às esmeraldas — acrescentou Tânger passado uns
instantes —, posso dizer-vos que tenho um comprador. Falei com ele,
como disse Palermo... Alguém virá aqui para se encarregar delas,
assim que as tirarmos do mar. Sem trâmites nem complicações — fez
outra pausa e desafiou-os olhando-os fixamente. — Com dinheiro
suficiente para todos.
Não ia ser tão fácil, pressentia Coy olhando-lhe para as sardas. Ou,
para ser mais exacto, sabia que não seria tão fácil. Continuam na ilha
dos escudeiros e dos cavaleiros, e o último cavaleiro há séculos que
estava morto e enterrado. A sua caveira mumificada conservava a
expressão perplexa de um tanso.
— Dinheiro — repetiu mecanicamente, pouco convencido. Coçou o
nariz antes de consultar interrogativamente o Piloto, que ouvia com
aparente indiferença. Passado um instante, viu que este semicerrava
os olhos, concordando.
— Estou a ficar velho — comentou o Piloto. — O Carpanta está a
dar as últimas e eu nunca descontei para a Segurança Social...
Comprava um barquinho pequeno, a motor, para levar o meu neto a
pescar aos domingos.
Quase sorria, levando a mão à cara por barbear, coberta de pêlos
grisalhos. O neto tinha quatro anos. Quando iam passear de mão dada
pelo porto, o miúdo contava escrupulosamente as cervejas que ele
bebia, por ordem da avó, e depois bufava ao chegar a casa.
Felizmente, só tinha aprendido a contar até cinco.
— Hás-de comprar esse barquinho, Piloto — disse Tânger. —
Prometo-te.
Tinha apoiado uma mão no seu antebraço com um gesto
espontâneo. Um gesto de camaradagem, quase masculino.
Exactamente, observou Coy, sobre a tatuagem desbotada da mulher
nua.

Como o titubear de uma viola rouca, as primeiras notas de Lady be


good pontilhavam as luzes da cidade nos reflexos da água negra,
entre a popa do Carpanta e o molhe. Pouco a pouco, o velho swing
das cordas do baixo foi coberto pela complexa entrada dos restantes
instrumentos, os trompetes de Killian e McGhee, os solos de piano de
Arnold Ross e o saxofone-tenor de Charlie Parker. Coy ouvia tudo isto
atentamente, com os auscultadores nos ouvidos, olhando para os
pontinhos luminosos da água como se as notas que inundavam a sua
cabeça se materializassem naquela superfície negra e oleosa. O metal
de Parker, decidiu, cheirava a álcool e a mangas de camisa fumadas
de tabaco e a agulhas de relógio cravadas, verticais, como navalhas no
ventre da noite. Aquela melodia, como todas as outras, sabia a escala
em terra, a mulheres sozinhas no canto de um balcão de um bar. Sabia
a silhuetas titubeantes ao pé de caixotes de lixo e também a neón
vermelho, verde e azul iluminando, parcialmente, caras vermelhas,
verdes e azuis de homens indecisos, sonolentos e embriagados. A vida
simples, olá e adeus, sem mais complicações, além da tolerância do
estômago e do outro, aguenta que é serviço. Não havia tempo para
cortejar a princesa do Mónaco, caramba, como você é bonita, menina,
permita-me convidá-la para um chá, eu também leio Proust. Por isso,
Roterdão, ou Antuérpia, ou Hamburgo tinham cinemas pornográficos,
bares topless, matronas de ocasião que faziam ponto no outro lado de
montras com cortinas, gatos com ar filosófico observando a passagem
da Tripulação Sanders, ziguezagueando de passeio em passeio,
vomitando aguarrás rótulo negro(3) à espera do momento em que os
devolvesse ao ronronar das pranchas de aço, aos lençóis enxovalhados
de um beliche, à luz cinzenta do amanhecer filtrando-se entre as
cortinas da escotilha. Tararará. Dong. Tarará.

*3. Aguarrás rótulo negro: álcool de muito má qualidade, engarrafado


com rótulos de marca. (N. da T.)

O saxofone de Charlie Parker continuava sublinhando a ausência


de compromisso, o carácter quase autista do invento. Era como os
portos da Ásia, Singapura e tudo o resto, quando ficávamos fora
ancorados, bordejando em volta da âncora, com a costa no outro lado
do cimo da amurada onde apoiávamos os braços, esperando a lancha
com a Mamã San e as meninas da Mamã San e o seu chilrear de
passarinhos agitados ao subirem a bordo ajudadas pelo terceiro-
oficial, com Mamã San anotando a giz na porta de cada camarote, tal
como um empregado de mesa no mármore da sua tasca: uma cruz,
uma rapariga; duas cruzes, duas raparigas. Peles de cetim
complacentes e frágeis, coxas flexíveis, bocas obedientes. Não
problema, marinheiro, olá e adeus. Ninguém o fez como deve de ser,
dizia o Torpedeiro Tucumán, até o ter feito aqui com três ao mesmo
tempo. Nenhum marinheiro parecia deprimido quando a Ásia ou as
Caraíbas ficavam à proa, entre os olhos dos escovéns. Pelo contrário.
Coy vira homens, fortes como rochedos, chorando na rota contrária,
apenas porque regressavam a casa.
Ergueu a vista dirigindo o olhar para o outro lado do cais, mais
além. Os tripulantes de um veleiro sueco jantavam no poço, à luz de
um candeeiro em redor do qual esvoaçavam borboletas nocturnas. De
vez em quando, apesar da música, chegava até ele uma frase dita em
voz muito alta ou um riso. Eram todos louros e enormes, tamanho
XXL, com crianças pequenas que durante o dia passeavam nuas pela
coberta, amarradas com um arnês ao guarda-mancebos. Louros,
recordou, como o piloto do porto de Stavanger que tinha conhecido,
quando o Monte Pequeno passou aí dois meses sem carga útil. Era
uma beleza nórdica como as das fotografias e dos filmes, grande e
alta. Uma norueguesa de trinta e quatro anos com o posto de capitão
da marinha mercante que, da lancha, em alto mar, subiu a bordo,
desenvolta, pela escada de corda, cortando a respiração a todos os
homens que estavam na ponte, e depois dirigiu a manobra fiorde
adentro num inglês impecável, orientando os rebocadores com um
walkie-talkie que trazia pendurado ao pescoço, enquanto Dom
Agustín de La Guerra a olhava de soslaio e o timoneiro olhava para
ele «Stop her. Dead slow ahead. Stop her. A little push now. Stop.»
Depois bebeu com o capitão um copo de whisky e fumou um cigarro,
antes de Coy, então um jovem estagiário de vinte e dois anos, a
acompanhar ao portaló, atlética dentro das calças de lona e do grosso
anoraque vermelho, sorrindo-lhe antes de se ir embora. «So long,
officer.» Encontrou-a três dias mais tarde no Ensomhet, enquanto a
tripulação do petroleiro enlouquecia com aquelas escandinavas de
sonho: um bar luxuoso e triste junto das casas vermelhas do molhe
Strandkaien, cheio de homens e mulheres para quem uma farra
equivalia a emborcar durante horas sem abrir a boca, como atuns, até
apanharem um pifo de calibre nove Parabellum. Tinha entrado no bar
por acaso e ela, que estava com um norueguês barbudo e impassível
que parecia recém-licenciado de um drakkar viquingue, reconheceu-o
como o jovem do portaló do petroleiro. O pequeno espanhol, disse em
inglês. «The shorty spanish boy.» Depois sorriu, antes de o convidar
para um copo. Uma hora mais tarde, o viquingue impassível
continuava apoiado no balcão do mesmo bar, imaginava Coy,
enquanto ele, nu, empapado em suor, sentindo o ar frio da
madrugada que entrava por uma janela aberta para o fiorde e para os
cumes nevados sobre o mar, arremetia contra a sólida presença da
mulher, costas largas e coxas musculosas e olhos claros que o olhavam
fixamente da penumbra, enquanto os seus lábios, cada vez que a boca
de Coy os deixava livres, emitiam estranhos sussurros numa língua
bárbara. Chamava-se Ingá Horgen e, nos dois meses em que o Monte
Pequeno esteve em Stavanger, Coy, invejado por toda a tripulação,
desde o ajudante de cozinheiro até ao capitão, passou com ela todo o
seu tempo livre. De vez em quando bebiam cerveja e aquavita com o
viquingue impassível, que nunca colocou objecções ao facto de, todas
as noites, quando a mulher se afastava do balcão com os olhos
brilhantes e alguma indecisão na forma de andar, o shorty spanish
boy se esfumar na companhia daquela valquíria cuja estatura o
ultrapassava em quase três palmos. Com ela conheceu Lysefi-jord e
Bergen, o koldtbord, algumas palavras íntimas em norueguês e alguns
segredos úteis sobre anatomia feminina. Aprendeu, mesmo, a julgar-
se apaixonado, e também que nem todas as mulheres se dão ao
trabalho, ou à precaução, de antes se apaixonarem. Também aprendeu
que, às vezes, quando uma pessoa se aproxima o bastante e presta
atenção, a mulher de máscara ausente, cujos olhos entreabertos
vagueiam perdidos pelo tecto, enquanto abrimos caminho entre o
mais profundo, tem o rosto de todas as mulheres que durante séculos
povoaram o mundo. E, finalmente, numa noite em que houve um
problema a bordo e foi para terra mais tarde do que o habitual, o
shorty spanish boy foi directamente para a casa de troncos negros e
janelas brancas, e encontrou aí o viquingue impassível, tão bêbado
como ao balcão do bar do costume, com a diferença de que desta vez
estava nu. Ela também estava e olhou para Coy com um sorriso fixo e
indiferente, turva de álcool, antes de pronunciar algumas palavras que
não lhe chegaram aos ouvidos. Talvez lhe tenha dito vem, ou talvez
vai embora. Então ele fechou a porta devagar e regressou ao seu
barco.
Dong, dong. Dong. Charlie Parker, que ia morrer daí a pouco,
tinha deixado o saxofone no chão e descansava exausto bebendo um
copo ao balcão ou — o que era mais provável — metia alguma coisa
na casa de banho dos homens. Agora destacava-se solitário o dedilhar
do baixo de Billy Hadnott que, nesta última parte, era novamente
dono da melodia. E foi naquele momento que o Piloto subiu da casa
de pilotagem juntando-se a Coy e sentando-se na outra cadeira de teca
presa à varanda da popa. Tinha na mão a garrafa de cognac que
trouxera da Taberna del Macho para acabar de bebê-la a bordo.
Ofereceu-a com um gesto e, quando Coy abanou a cabeça numa
negativa, ao compasso da música que se ia extinguindo nos seus
ouvidos, o outro bebeu um gole antes de a colocar muito direita no
colo. Coy desligou os auscultadores, tirando-os dos ouvidos.
— O que está Tânger a fazer?
— Está a ler no camarote.
Os faróis de San Pedro e Navidad pestanejavam no outro lado do
espigão do molhe, balizando a entrada do porto. Verde e vermelho,
grupos de relâmpagos de dez em dez e de catorze em catorze
segundos, luzes familiares que para Coy sempre ali tinham estado,
desde que conseguia lembrar-se. Olhou para cima, sobre os muros de
sombras que circundavam o porto. Nas montanhas, os castelos
iluminados de San Julián e Galeras pareciam suspensos no ar como
nos quadros dos pintores antigos. A claridade da cidade matava as
estrelas.
— O que achas, Piloto?
O relógio da Câmara deu onze badaladas antes do outro
responder.
— Ela sabe o que faz. Ou, pelo menos, comporta-se como se o
soubesse... a pergunta é se tu o saberás.
Coy enrolava à volta do gravador o fio dos auscultadores. Tinha
um meio sorriso no reflexo das luzes oleosas da água.
— Trouxe-me de volta ao mar. O Piloto ficou a olhar para ele.
— Se é um pretexto, está bem — disse. — Mas não me venhas com
histórias.
Bebeu outro gole e passou a garrafa a Coy. Este pôs o gargalo à
boca.
— Já to disse uma vez: quero contar-lhe aquelas sardas — limpava
a boca com as costas da mão. — Contá-las todas.
O outro não disse nada, limitando-se a recuperar a garrafa. Um
vigilante nocturno passou pelo embarcadouro, fazendo ressoar as
tábuas do molhe flutuante. Trocou um cumprimento com eles e
continuou o seu caminho.
— Ouve, Piloto. Os homens vão pela vida aos tropeções, de cá para
lá... Costumamos envelhecer e morrer sem compreender bem o que se
passa. Mas elas são diferentes.
Fez uma pausa, esticando-se para trás na cadeira, com os braços
estendidos. A cabeça roçou na bandeira que pendia flácida do mastro,
junto à antena em forma de seta do GPS. A noite estava tão tranquila
que quase podiam ouvir-se os parafusos da balaustrada da proa a
oxidarem.
— Às vezes olho para ela e penso que sabe coisas de mim que eu
próprio não sei.
O Piloto ria-se, baixinho, com a garrafa nas mãos.
— A minha mulher diz a mesma coisa.
— Falo a sério. Elas são diferentes. Lúcidas como se a lucidez fosse
uma doença, entendes?
— Não.
— É uma coisa genética... Até acontece às estúpidas.
O Piloto ouvia atentamente, com boa vontade, mas o gesto da sua
cabeça um pouco inclinada para a frente era céptico. De vez em
quando dava uma vista de olhos em redor, ao mar e às luzes da
cidade, como se procurasse alguém que trouxesse sensatez a tudo
aquilo.
— Estão ali caladas, olhando-nos — prosseguiu Coy. — Há séculos
que olham para nós, entendes?... Aprenderam olhando-nos.
Ficou calado e o Piloto também. Do barco dos suecos chegava o
rumor das suas vozes levantando a mesa antes de irem dormir.
Depois, o relógio da Câmara deu a primeira badalada dos quartos de
hora. A água estava tão imóvel que parecia sólida.
— Esta é perigosa — acabou por dizer o Piloto. — Como aquele
mar onde se atolavam os navios até apodrecerem...
— O mar dos Sargaços.
— Tu disseste-me que ela era má. Eu digo apenas que é perigosa.
Tinha-lhe passado novamente a garrafa de cognac, que Coy
segurava na mão, sem beber.
— Foi o que disse Nino Palermo, Piloto. O que achas?... No dia em
que falei com ele em Gibraltar.
O Piloto encolheu os ombros. Esperava, paciente.
— Não sei o que te diga. Coy deu um gole na garrafa.
— Nós, os homens, somos maus por estupidez, Piloto. Por
desonestidade. Somos por ambição, por luxúria ou por ignorância...
Entendes?
— Mais ou menos.
— Quero dizer que elas são diferentes.
— Elas não são diferentes. São apenas sobreviventes.
Coy ficou calado, surpreendido pela exactidão do comentário.
— Foi também o que Palermo disse.
Depois apontou para o outro com a mão que agarrava a garrafa,
mas não disse mais nada. O Piloto inclinou-se para lhe tirar a garrafa
das mãos: — Demasiados livros.
Depois de dizer aquilo bebeu um último gole, colocou a tampa e
deixou a garrafa na coberta. Agora olhava para Coy, esperando que
este deixasse de rir.
— De que se defende ela? — perguntou.
Coy ergueu as mãos, evasivo. Como diacho, dizia o gesto, te
poderei contar?
— Ela luta — disse — por uma menina que conheceu há muito
tempo. Uma menina protegida, sonhadora, que ganhava concursos de
natação. Que cresceu feliz até deixar de o ser e saber que todos
morremos sozinhos... Agora recusa-se a deixá-la desaparecer.
— E qual é o teu papel nisto?
— Entesa-me tanto como a qualquer outro, Piloto.
— É mentira. Isso tem remédio, e nada a ver com ela.
Tem razão, disse Coy para consigo. No fim de contas, já estive de
pau feito outras vezes e nunca andei por aí armado em idiota. Não
mais do que o habitual.
— Talvez tenha alguma relação com os barcos que passam de noite
— disse. — Já reparaste?... Estás na amurada e passa um barco do qual
ignoras tudo: nome, bandeira, para onde se dirige... Vês apenas umas
luzes, e pensas que lá também deve estar alguém apoiado na amurada
olhando nesse momento para as tuas luzes.
— De que cor são as luzes que vês?
— O que importa a cor? — Coy encolhia os ombros, irritado. — Eu
sei lá... Vermelhas, brancas.
— Se forem vermelhas, o outro tem prioridade. Guina para
estibordo.
— É uma metáfora, Piloto... Entendes?
O Piloto não disse se compreendia ou não. O seu silêncio era
eloquente, pouco favorável às metáforas de barcos, ou de noites, ou de
qualquer outra coisa. Não baralhes a agulha magnética, dizia a sua
austeridade de palavras. Estás pelo beicinho e ponto final. Mais cedo
ou mais tarde, acaba tudo passando por aí. A causa é problema teu; a
mim o que me inquietam são as consequências.
— E o que vais fazer? — acabou por perguntar.
— Fazer? — Coy coçou o nariz. — Não faço ideia... Ficar aqui,
suponho. Observá-la.
— Pois então lembra-te do ditado: a mulher e o vento querem
muito tento.
Depois de dizer aquilo, o Piloto mergulhou noutro silêncio
carrancudo. Contemplava as luzes do porto na água oleosa.
— Foi uma pena, aquilo do teu barco — acrescentou passado um
bocado. — Ali estava tudo resolvido. Em terra só há problemas.
— Estou apaixonado por ela.
O outro levantara-se. Esquadrinhava o céu, interrogando-o sobre o
tempo que faria no dia seguinte.
— Há mulheres — disse como se não tivesse ouvido nada — que
têm coisas estranhas na cabeça, tal como outras têm gonorreia. E
acontece que tas pegam.
Inclinara-se para agarrar na garrafa e, ao levantar-se, as luzes da
cidade iluminaram-lhe os olhos, muito próximos.
— No fim de contas — disse — talvez a culpa não seja tua. Com as
rugas fazendo-lhe sombras na cara, e o cabelo curto e grisalho que a
penumbra tornava cinzento, parecia um Ulisses cansado; indiferente
às sereias e às harpias e às jovenzinhas púberes à espreita em praias
tentadoras, e aos olhares turvos, vem ou vai, depreciativos ou
indiferentes. De repente, Coy invejou-o com todas as suas forças: na
idade dele, já era difícil que uma mulher valesse para um homem a
vida ou a liberdade.

XII - SUDOESTE QUARTA AO SUL

Este caminho difere dos de terra em três coisas: o da terra é firme, este é
flexível. O da terra é imóvel, este é móvel. O da terra, assinalado; o do mar,
ignoto.
Martin Cortês. Breve Compêndio da Esfera

Ao amanhecer do quarto dia, o vento, que tinha estado a soprar


suavemente de oeste, começou a rodar para sul. Inquieto, Coy olhou
para a oscilação do anemómetro e depois para o céu e para o mar. Era
um dia anticiclónico convencional, de princípio de Verão. Tudo
parecia tranquilo na aparência, a água encrespada e o céu azul, com
alguns cúmulos. Mas podiam distinguir-se cirros médios e altos
deslocando-se à distância. O barómetro também mostrava tendência
em baixar: três milibares em duas horas. Ao acordar, depois de dar
um mergulho na água azul e fria e de ouvir o boletim meteorológico,
tinha anotado no caderno da mesa de cartas a formação de um centro
de baixas pressões que se deslocava em cunha pelo Norte de África,
perto de um centro de altas pressões de 1012 milibares, imóvel sobre
as Baleares. Se as isóbaras de um e de outro se aproximassem
demasiado, os ventos soprariam fortes vindos do mar, e o Carpanta
teria de se refugiar num porto e interromper a busca.
Desligou o piloto automático, passou a leme manual e fez o veleiro
guinar 180°. A proa apontou novamente para norte, para a costa
iluminada pelo Sol sob a franja escura do cabeço das Víboras,
iniciando a exploração do sector que, na carta de busca, era designado
como a passagem número quarenta e três. Aquilo significava que a
Pathfinder já tinha coberto mais de metade da área, sem resultado. A
parte positiva era ter ficado fora de pesquisa na carta o sector de
maiores fundos, onde as imersões teriam sido complicadas e
profundas. Coy olhou para bombordo na direcção de Punta Percheles,
onde um pesqueiro lançava redes tão perto de terra que parecia
disposto a levar as conchas da praia. Calculou rumo e distância,
concluindo que não se aproximariam demasiado um do outro, embora
o comportamento errático dos pesqueiros fosse imprevisível. Depois
deu mais uma vista de olhos ao céu, ligou o piloto automático e
desceu à casa de pilotagem, onde o ronronar monótono do motor,
situado sob a escada, se tornava mais intenso.
— Passagem quarenta e três — disse. — Rumo norte.
O Sol estava no meridiano e fazia calor, apesar das escotilhas
abertas. Sentada diante da mesa de cartas, junto à sonda, ao radar e ao
repetidor do sistema de posicionamento por satélite, GPS, Tânger
vigiava o ecrã numa atitude de aluna aplicada, anotando latitude e
longitude cada vez que o fundo revelava alguma irregularidade. Coy
olhou para o indicador da sonda e da velocidade: trinta e seis metros,
2,2 nós. À medida que o Carpanta seguia a rota traçada pelo piloto
automático, no ecrã da Pathfinder modificava-se o contorno preciso
do fundo do mar. Tinham feito ali turnos suficientes para serem
capazes de identificar, sem dificuldade, os diferentes tons que o
instrumento atribuía às características do fundo: cor de laranja suave
era areia e lodo, cor de laranja escuro, algas, vermelho pálido indicava
rocha solta e cascalho. Os bancos de peixes constituíam manchas
móveis castanho-avermelhadas com veios verdes e rebordos azulados,
e as irregularidades importantes, grandes rochas soltas, até os restos
metálicos de um velho pesqueiro afundado e assinalado nas cartas,
pormenorizavam-se com a aparência de lombas pontiagudas numa
intensa cor vermelha.
— Nada — disse ela.
Areia e algas, indicava o ecrã. Só em duas ocasiões o eco se tornara
vermelho-sangue, com cristas significativas no relevo submarino, ecos
duros em sondagens respectivas de quarenta e oito e de quarenta e
três metros. Não foram capazes de esperar, de modo que anotaram as
posições, regressando na manhã seguinte, muito cedo, depois de
terem passado a noite, como de costume, fundeados entre Punta
Negra e a Cueva de los Lobos. Coy estava sob os últimos efeitos de
uma constipação, pequena lembrança do mergulho nocturno, mas
suficiente para o impedir de compensar a pressão nos tímpanos e nos
seios frontais; de modo que foi o Piloto quem se equipou com o seu
remendado fato de neopremo preto e se deixou cair ao mar, com a
garrafa de ar comprimido nas costas, colete auto-insuflável, faca na
barriga da perna direita e uma corda de cem metros amarrada com
um lais de guia à cintura. Coy permaneceu em cima, nadando à
superfície com barbatanas, tubo e máscara, vigiando o rasto de bolhas
que subia do arcaico regulador Snark Silver III com dupla traqueia de
borracha que o Piloto continuava empenhado em usar, porque não se
fiava no plástico moderno e aquelas bagatelas de antigamente, dizia,
nunca te deixavam ficar mal. Os ecos do fundo, informou ao emergir,
procediam de uma rocha enorme com restos de redes enganchadas e
de três bidões metálicos grandes, cobertos de ferrugem e de algas.
Num deles ainda podia ler-se Campsa.
Por cima do ombro de Tânger, Coy olhou para o traçado plano do
fundo que a sonda ia desenhando. Ela mantinha os olhos fixos no ecrã
de cristal líquido, a caneta de prata nos dedos, a carta quadriculada à
frente, os braços pintalgados sob as mangas curtas da camisola de
algodão branco, as costas molhadas de suor. O balanço do barco fazia
oscilar, como de costume, as pontas húmidas do seu cabelo, que
prendia com um lenço à volta da testa. Vestia umas calças curtas de
caqui e tinha as pernas cruzadas debaixo da mesa. Sentado no fundo
da casa de pilotagem, junto de uma escotilha que fazia incidir um raio
de sol nos curtos caracóis grisalhos, o Piloto talingava no fio de pesca
um anzol de corrica, com um penacho artesanal que acabara de
fabricar com restos de adriça. De vez em quando erguia os olhos do
seu trabalho e olhava-os.
— O tempo pode mudar — disse Coy.
Sem afastar os olhos do ecrã, Tânger perguntou se isso os obrigaria
a interromper a busca. Coy respondeu que talvez fosse necessário, se
houvesse vento ou ondulação forte, uma vez que a sonda daria falsos
ecos e, além disso, iriam ficar bastante incómodos dançando por ali
fora. Nesse caso, o melhor seria descansarem em Águilas ou
Mazarrón. Ou voltar a Cartagena.
— Cartagena fica a vinte e cinco milhas — disse ela. — Prefiro ficar
por aqui.
Continuava pendente da Pathfinder e da carta quadriculada.
Apesar de fazerem turnos diante da sonda, era ela quem passava a
maior parte do tempo olhando para as curvas e para as cores que
evoluíam no ecrã, até os olhos avermelhados ficarem injectados de
sangue e ter de ceder o lugar. Quando a ondulação se tornava um
pouco mais intensa, levantava-se, pálida, com o cabelo colado à cara
suada e sinais visíveis de que o balanço e o ronronar constante do
motor de gasóleo a afectavam mais do que a conta. Mas nunca dizia
nada, nem se queixava. Obrigava-se a comer qualquer coisa, sem
vontade, e viam-na desaparecer a caminho da casa de banho, onde
lançava água pela cara, antes de ir deitar-se um pouco no seu
camarote. O seu pacote de biodramina, observou Coy, tinha cada vez
mais espaços vazios. Outras vezes, ao finalizar uma série de passagens
ou quando já estavam todos demasiado fartos do calor e ruído
contínuos, paravam o barco e ela, da popa, atirava-se ao mar, nadando
para longe, em linha recta, com longas braçadas de crawl, lentas e,
seguras. Nadava com um ritmo e com uma respiração correctas, sem
levantar desnecessariamente água com os pés, cravando as palmas
das mãos como facas em cada braçada. Às vezes, Coy atirava-se ao
mar para acompanhá-la um bocado, mas ela tentava manter-se à
distância, de uma forma que, só na aparência, era casual. Por vezes
via-a nadar debaixo de água, com amplos movimentos dos braços e o
cabelo ondulante junto de bancos de peixes que se afastavam à sua
passagem. Nadava com um fato de banho inteiro, preto com alças
finas e um decote profundo na parte de trás que estreitava em V as
suas costas acobreadas e lhe ficava muito bem. Depois subia a bordo
pela escada da popa, secando-se muito bem e sacudindo o cabelo que
lhe pingava nos ombros. Tinha umas pernas longas e esbeltas, talvez
um pouco magras — demasiado alta e magrizela, tinha opinado o
Piloto num aparte. Os peitos não eram grandes, mas arrogantes como
ela própria. Quando tirava o fato de banho no seu camarote e tinha o
corpo molhado, os bicos imprimiam no algodão da camisola círculos
de humidade que, ao evaporar-se, deixavam um rasto de sal. E,
finalmente, Coy pôde averiguar o que pendia na extremidade da
corrente que ela tinha ao pescoço: uma chapa de identificação em aço,
com o nome, o BI e o grupo sanguíneo: «O» negativo. Uma chapa de
soldado.
A sonda registou uma alteração no tom avermelhado do fundo, e
Tânger inclinou-se para anotar latitude e longitude. Mas tratava-se de
um falso alarme. Deixou-se cair novamente para trás na cadeira da
mesa de cartas, com o lápis entre os dedos de unhas mordiscadas que,
agora, nos seus intensos quartos de vigia, roía a todo o instante.
Conservava aquela expressão grave, concentrada, de aluna-modelo da
turma, que Coy se divertia em observar. Com frequência, vendo-a
absorta com o bloco-notas, com a carta ou o ecrã, tentava imaginá-la
de peúgas brancas, uniforme e tranças louras. Tinha a certeza de que,
antes de se esconder nas casas de banho a fumar e de se tornar
insolente com as freiras, antes de sonhar com o tesouro de Rackam, o
Terrível, com cartas esféricas e com presas de corsários, alguém lhe
colocara alguma vez a faixa de menina exemplar. Não era difícil
entrever a sua expressão obstinada recitando rosa-rosae, SO4H2, e
tudo o resto num lugar de La Mancha. Com flores a Maria.
Apoiou-se na mesa junto dela, para ver a quadrícula em que
tinham dividido a área de busca marcada na carta. Na parede o rádio
ouvia-se rouco e baixinho, ligado em escuta dupla: uma fragata da
Armada pedia pessoal de amarração, e o pessoal de amarração não
aparecia em lado nenhum. De vez em quando, marinheiros
ucranianos ou pescadores marroquinos mantinham longas conversas
na sua língua. O patrão de um pesqueiro queixava-se de que um
vapor lhe tinha cortado os palangres. Um barco patrulha da guarda
civil estava bloqueado, devido a uma avaria na ponte, no porto Tomás
Maestre.
— Podemos perder dois ou três dias — disse Coy. — Na realidade
sobra-nos tempo.
Ela anotava alguma coisa e deixou de o fazer, o lápis suspenso a
alguns milímetros da cara.
— Não nos sobra nada. Precisamos de todas as horas de que
dispomos.
O tom era severo, quase de censura, e Coy voltou a sentir-se
irritado. A meteorologia, pensou, está-se nas tintas que tu precises das
horas disponíveis.
— Se soprar vento forte não poderemos trabalhar — explicou. — O
mar ficará picado e a sonda perderá eficácia.
Viu-a entreabrir a boca para replicar e depois morder os lábios.
Agora, o lápis tamborilava sobre a carta. Na antepara, junto ao
barómetro, dois relógios indicavam a hora local e a hora do meridiano
de Greenwich. Ela ficou a olhar para eles e depois consultou o relógio
de aço no seu pulso direito.
— Quando acontecerá isso? Coy coçou o nariz.
— Não há certezas... Talvez esta noite. Ou amanhã.
— Então, por agora, continuaremos aqui.
Voltava a concentrar-se no ecrã da Pathfinder para dar o assunto
como encerrado. Coy ergueu a vista, deparando-se com o olhar do
Piloto. Tu próprio, diziam os olhos plúmbeos. Tu decides. Havia
muita troça naquele olhar, e Coy desviou a vista com o pretexto de
subir à coberta. Aí pôs-se a observar novamente o céu, ao longe, onde
as nuvens altas revelavam franjas fibrosas e desfiadas como caudas de
égua branca. Oxalá, pensava, o tempo piore a sério e tenhamos de sair
daqui com fogo no rabo, com a biodramina dela acabada, e eu possa
vê-la na amurada, despejando a bílis. A grande cabra. , As previsões
cumpriram-se, pelo menos em parte. A biodramina de Tânger não se
acabou mas, no dia seguinte, o Sol brilhou pouco tempo entre um halo
de nuvens avermelhadas que mais tarde ficaram escuras e cinzentas, e
o vento rodou para sudeste levantando carneirinhos brancos no mar.
Ao meio-dia, a ondulação era incomodativa, a pressão tinha descido
outros cinco milibares e o anemómetro indicava força seis. E a essa
mesma hora, depois de ter apontado cuidadosamente a última posição
na zona de busca quadriculada da carta — passagem 56 —, o
Carpanta navegava com rizes na vela grande e na genoa, amurado a
bombordo, rumo ao porto de Águilas.
Coy tinha desligado o piloto automático e governava
manualmente, sudoeste quarta ao sul na bússola e a grande rocha do
cabo Cope no horizonte cinzento, as pernas abertas para compensar a
inclinação, sentindo nas malaguetas da roda do leme a pressão da
porta na água e a força do vento nas velas, com o caturrar poderoso
do veleiro a cortar a ondulação. Por cima da bitácula, o anemómetro
marcava vinte e dois-vinte e quatro nós de vento real. Às vezes, a proa
do Carpanta investia contra uma crista e os salpicos de água
chegavam até ao poço, enchendo a capuchana de espuma. Cheirava a
sal e a mar, e o assobio subia de oitava em oitava na enxárcia, fazendo
repicar as adriças contra o mastro a cada balanço.
Era óbvio que Tânger não precisava de biodramina. Estava sentada
na braçola do poço com as pernas para fora, para o lado de
barlavento, vestida com as calças impermeáveis vermelhas que o
Piloto lhe tinha emprestado e, apreciava sem dúvida, a navegação.
Para surpresa de Coy, não se mostrara muito contrariada, quando o
vento os obrigou a interromper a busca. Parecia que nos últimos dias
se tinha adaptado melhor aos altos e baixos do mar, assumindo o
fatalismo próprio da sorte variável do marinheiro. No mar, o que não
podia ser, não podia ser, e mais que isso era impossível. Agora,
sentada ali, o peitilho folgado, as alças largas, a camisola de manga
curta, o lenço amarrado em redor da testa, os pés descalços davam-lhe
um aspecto singular, e Coy tinha dificuldade em afastar os olhos dela
para prestar atenção ao rumo e às velas. Reclinado no poço, protegido,
o Piloto fumava tranquilamente. De vez em quando, depois de ficar
um bocado a observar Tânger, Coy tropeçava com os olhos do seu
amigo fixos nele. O que queres que te diga, respondia em silêncio. As
coisas são como são e não como gostaríamos que fossem.
O anemómetro marcou entre vinte e cinco e vinte e nove nós e uma
rajada endureceu o tacto da roda do leme nas mãos de Coy. Força sete.
Era forte, mas não muito. O Carpanta tinha enfrentado temporais de
força nove, com quarenta e seis nós uivando na enxárcia e ondas de
seis metros curtas e rápidas. Como naquela vez em que o Piloto e ele
tiveram de correr vinte milhas com mar de popa e as velas recolhidas,
depois de se ter partido o mastaréu do gurupés. Apesar do motor,
passaram à justa a entrada do porto de Cartagena, apenas a cinco
metros das rochas e, uma vez atracados, o Piloto ajoelhou-se muito
sério para beijar a terra. Comparado com tudo isso, vinte e nove nós
não era muito. Mas quando Coy olhava para cima, para o céu cinzento
sobre o mastro oscilante, via que os cirros altos avançavam à esquerda
do vento que soprava ao nível do mar, e que, para levante, começava
a definir-se uma linha de nuvens escuras, de aspecto ameaçador,
baixo e sólido. Daí viria o vento dentro de pouco tempo. De modo
que, concluiu, era melhor ficar de olhos abertos.
— Eu colho o segundo rize, Piloto.
Disse-o quando o outro olhava para a vela grande, consciente de
que pensava a mesma coisa. Mas o Piloto era o patrão a bordo e
incumbia-lhe aquele tipo de decisões, de modo que Coy ficou na
expectativa até o ver fazer um gesto com a cabeça, atirar o cigarro para
sotavento e levantar-se. Ligaram o motor para dar a proa ao mar e ao
vento, a genoa grivando com um terço da sua vela enrolada no estai.
Tânger agarrou no leme, mantendo o rumo, e enquanto o Piloto
puxava a espicha para o centro e depois arreava a adriça da vela
grande, deixando que caísse batendo contra o mastro até ao segundo
rize, Coy meteu alguns envergues nos bolsos, segurou outro com os
dentes e foi para junto do mastro, tentando evitar que o balanço
violento do barco o atirasse ao mar pela segunda vez numa semana.
Aí, segurando-se com os joelhos contra a capuchana do poço,
encaixou o olhal do segundo rize no gancho de barlavento. Depois,
quando o Piloto esticou novamente, Coy deslocou-se para a popa,
inclinando o corpo ao compasso dos movimentos do barco, e passou
um envergue por cada olhal da vela, amarrando-os sob a espicha para
ferrar a lona sobrante. Nesse momento, uma vaga espessa quebrou-se
sobre a coberta empapando-lhe as costas e Coy fugiu de um salto para
o poço, para junto de Tânger. Os seus corpos chocaram com o balanço
e, para não cair, ele teve de se agarrar a roda do leme, em volta dela,
cingindo-a num abraço involuntário.
— Já podes arribar — disse ele. — Deixa-o cair pouco a pouco para
sotavento.
O Piloto olhava para eles divertido, aduchando a adriça da vela
grande. Ela rodou as malaguetas da roda do leme para estibordo e as
velas deixaram de grivar. E, um pouco antes de o Carpanta ganhar
velocidade, o mar sacudiu-o de través, fazendo oscilar o mastro e
fazendo também Tânger estremecer entre os braços e o peito de Coy,
que a ajudava a fazer a volta precisa do leme. Finalmente, a rocha do
cabo Cope, cinzenta entre as nuvens baixas, ficou novamente na
amurada de estibordo, sob a vela inchada da genoa; e a agulha da
barquilha estabilizou nos cinco nós. Nessa altura veio uma vaga mais
forte do que as anteriores, que quebrou em cima deles molhando-lhes
a cara, as mãos e a roupa. Coy reparou que a água fria eriçava a pele
do pescoço e dos braços da rapariga e que esta, com o rosto voltado
para ele, mais perto do que alguma vez estivera, sorria de uma forma
estranha, feliz e doce, como se, por alguma razão, lhe devesse a ele
esse momento. Os salpicos de água multiplicavam até ao infinito as
sardas do rosto, e a boca entreabria-se como se fosse pronunciar
palavras que certos homens há séculos esperam ouvir.
Na esplanada do restaurante, um alpendre de madeira, canas,
gesso e folhas de palma cujos dois andares se erguiam sobre a praia, a
orquestra tocava música brasileira. Eram dois rapazes e uma rapariga
que faziam uma boa imitação de Vinícius de Morais, Toquinho e
Maria Bethânia. Cantavam levando alguns clientes, sentados às mesas,
a moverem-se nas suas cadeiras ao ritmo da melodia. A rapariga, uma
mulata bastante bonita, de olhos grandes e boca africana, batia
ritmicamente os bongos enquanto cantava olhos nos olhos do
guitarrista, um jovem barbudo e sorridente: A Tonga da Mironga do
Kabuleté. Havia caipirinhas e rum nas mesas, e palmeiras
contornando a beira-mar, e Coy pensou que a cena podia adequar-se
ao Rio ou à Baía.
Olhou para o outro lado da balaustrada de madeira aberta à praia,
onde ainda viam o Piloto afastando-se a caminho do porto de recreio
cujo pequeno bosque de mastros se erguia um pouco mais ao longe,
atrás de um pequeno espigão. Ao fundo da enseada, sobre a rocha alta
que protegia os molhes e lota pesqueira, o Castelo de Aguilas estava
rodeado de um penacho cinzento que o entardecer escurecia aos
poucos. Na outra extremidade, a ondulação quebrava na língua de
terra e na ilha cuja forma dava nome ao porto. Mas o vento tinha
parado e um chuvisco fino e quente imprimia reflexos na areia
cinzenta-escura da praia, onde a água estava calma. Nesse momento
viu acender-se o farol principal, visível ainda à luz incerta, com a sua
torre pintada às riscas brancas e pretas. Ficou a observar a cadência
até conseguir estabelecê-la: dois relâmpagos brancos de cinco em
cinco segundos.
Quando se voltou novamente para Tânger, esta olhava-o. Ele tinha
estado a falar, contando-lhe uma história casual relacionada com a
música e com a praia. Tinha começado a contá-la sem muita
convicção, para preencher um silêncio incómodo depois de o Piloto ter
bebido o seu café e se ter despedido, deixando-os diante um do outro
com a música e a última claridade cinzenta apagando-se devagar na
baía. Tânger parecia esperar que ele continuasse com a sua história,
mas esta tinha acabado há algum tempo, e Coy não sabia o que trazer
à baila para preencher o silêncio. Felizmente havia a música, as vozes
da rapariga e dos seus acompanhantes, o clima da melodia
intensificado pela proximidade da praia e a chuvinha miúda que
sussurrava nas folhas de palma do telhado. Podia manter-se calado
sem que isso fosse uma violência, de modo que estendeu uma mão em
direcção ao copo de vinho branco e levou-o aos lábios. Tânger sorriu.
Movia um pouco os ombros ao compasso da música. Ela passara, há já
algum tempo, para a caipirinha que lhe brilhava nas íris azul-
marinhas fixas em Coy.
— O que estás a ver?
— Observo-te.
Constrangido, ele voltou-se novamente na direcção da praia e
depois deitou mais vinho no copo, embora estivesse quase cheio. Os
olhos continuavam diante dele, perscrutadores.
— Conta-me — disse ela — o que mudou no mar.
— Eu não disse nada disso.
— Claro que disseste. Diz-me por que razão agora é diferente.
— Não é agora. Já era diferente quando comecei a navegar.
Continuava a olhar para ele com atenção, parecendo realmente
interessada. Vestia a sua saia comprida e ampla de algodão azul e
uma blusa branca que sublinhava o bronzeado dos últimos dias. O
cabelo estava sedoso e limpo tal como uma simples cortina de ouro.
Vira-a lavá-lo durante a tarde. Para a ocasião, substituíra o relógio
masculino por umas escravas de prata, cujos sete aros brilhavam à luz
da vela que ardia no gargalo de uma garrafa, num dos lados da mesa.
— Isso quer dizer que o mar já não presta?
— Também não é isso — Coy fez um gesto vago. — Presta. O que
acontece é que... Bom. Já não é fácil manter-se longe.
— Longe de quê?
— Há telefone, fax e Internet... Entramos para a escola náutica
porque... Não sei. Porque queremos partir. Queremos conhecer muitos
lugares, muitos portos e muitas mulheres...
Os seus olhos distraídos pousaram na cantora mulata. Tânger
seguiu a direcção do olhar.
— Conheceste muitas mulheres?
— Neste momento não me lembro.
— Muitas putas?
Encarou-a, irritado. Como aprecias o teu maldito jogo, pensava.
Agora tinha pela frente uns olhos de ferro azulado que olhavam para
ele implacáveis. Pareciam divertidos mas também curiosos. Coçou o
nariz.
— Algumas — respondeu.
Tânger examinou a cantora de soslaio.
— Negras?
Ele bebeu um gole de vinho, esvaziando meio copo de uma vez.
Fez barulho ao colocá-lo novamente sobre a mesa.
— Sim — disse. — Negras. E chinesas. E mestiças... Como dizia o
Torpedeiro Tucumán, o melhor das putas é não nos pedirem
conversa, mas dólares.
Tânger não parecia aborrecida. Olhou novamente para a cantora.
Sorria pensativa e ele não viu nada agradável naquele sorriso.
— E como são as negras?
Observava agora os antebraços fortes de Coy, nus sob as mangas
arregaçadas da camisa. Ele ficou a contemplá-la um instante e depois
deixou-se cair para trás, recostando-se na cadeira. Tentava imaginar
uma barbaridade adequada.
— Não sei o que dizer-te. Algumas têm a cona cor-de-rosa.
Viu-a pestanejar, entreabrindo a boca. Por um momento, reparou
maldosamente satisfeito, o sorriso parecia desconcertado. Tou-ché,
cabrinha. Depois voltou a encontrar o olhar sereno, a careta irónica, o
metal azul-marinho reflectindo a luz da vela.
— Porque gostas de te armar em grosseiro e em duro?
— Não me armo. — Bebeu o que restava no copo de vinho. Fê-lo
demorando o seu tempo e depois ergueu um pouco os ombros. —
Uma pessoa pode ser grosseira, pode ser dura e, além disso, pode ser
idiota... Nessa tua ilha, tudo isso parece ser compatível.
— Já chegaste à conclusão se sou cavaleiro ou escudeiro? Ficou
pensativo, tocando no copo vazio.
— O que tu és — disse — é uma maldita bruxa má.
Não se tratava de um insulto, mas de um comentário. O enunciado
de uma circunstância objectiva, que ela encaixou sem mexer um
músculo da cara. Olhava-o tão fixamente que Coy acabou por
perguntar a si próprio se acaso estaria a olhar para ele.
— Quem é o Torpedeiro Tucumán?
— Era.
— Quem era o Torpedeiro Tucumán?
Meu Deus, pensou. Como é contida e esperta! Como é
diabolicamente esperta! Depois colocou novamente os braços em cima
da mesa e abanou a cabeça, rindo-se quase para si próprio. Um riso
resignado que fez desaparecer a sua irritação tal como o vento dissipa
a névoa. Quando ergueu os olhos viu que ela continuava a olhá-lo,
mas que a sua expressão tinha mudado. Também sorria, mas desta
vez o sarcasmo já não estava ali. Era um sorriso franco. Não é nada
pessoal, marinheiro. E ele sabia que, no fundo, era verdade. Não se
tratava de nada pessoal. De modo que pediu à empregada de mesa
uma genebra azul com água tónica e depois pôs uma cara de quem
recorda: cara de Popeye evocador diante de um copo. Aquelas noites
com Olívia, etc. E como se tratava exactamente disso, e ela estava à
espera, e não havia nada para inventar porque estava tudo ali, na sua
memória, colocou sobre a toalha, sem esforço, a própria personagem,
deixando-a correr ao sabor da genebra na sua língua. De modo que
falou do Torpedeiro, e da Tripulação Sanders, e do cavalinho de feira
que roubaram uma noite num parque de atracções de Nova Orleães, e
do Anita's, de Guayaquil e do Happy Landers, de El Callao, e do
bordel mais austral do mundo, que era o bar La Turca, de Ushuaia. E
da bronca de Copenhaga, e de outra com polícias em Trieste, quando
o Torpedeiro e o galego Neira também se puseram em fuga depois de
meterem para dentro a mandíbula de um polícia: pernas para que te
quero, com Coy suspenso como de costume entre ambos, um em cada
braço, e ele balançava os pés no ar sem tocar no chão, e assim
chegaram a salvo ao barco. E também contou a Tânger, que o ouvia
muito atenta e inclinada para a frente na mesa, a mais fabulosa briga
que jamais viram os portos do mundo: a do rebocador de Roterdão
que levava marinheiros e estivadores de molhe em molhe e de barco
em barco, sentados em bancos compridos, quando um estivador
holandês completamente entornado caiu sobre o Torpedeiro e a luta
se desencadeou como um regueiro de pólvora — viva Zapata, gritava
o galego Neira —, e oitenta homens cheios de álcool envolveram-se
aos murros, na camarinha. Coy foi para a coberta apanhar ar e, de vez
em quando, o Torpedeiro espreitava por uma escotilha, respirava e
voltava a meter-se lá dentro. E tudo acabou com o rebocador arriando,
no fim da viagem, marinheiros e estivadores inconscientes, tumefactos
e cheirando a álcool, atirando-os como fardos para aqui e para ali,
cada qual no seu molhe e no seu barco, tal como um distribuidor de
telepizas.
De telepizas, repetiu. Depois ficou calado, com um sorriso vago na
boca. Tânger estava imóvel, como se receasse deitar abaixo um castelo
de cartas.
— O que mudou, Coy?
— Tudo. — Deixou de sorrir, bebeu mais um pouco e o aroma da
genebra azul foi-lhe escorregando pela garganta, anestesiante. — Já
não há viagem, porque já quase não há barcos a sério... Agora, um
barco é como um avião: não viajamos, transportam-nos do ponto A ao
ponto B.
— E antes era diferente?
— Claro que sim. A solidão do viajante era possível. Estávamos
entre A e B, suspensos no meio, e o trajecto era longo... íamos com
pouca bagagem e o desenraizamento não importava.
— O mar continua a ser o mar. Tem segredos e perigos.
— Mas não como antes. Agora é como chegar demasiado tarde a
um molhe vazio e ver o fumo da chaminé afastando-se no horizonte...
Quando somos alunos, usamos o vocabulário correcto, bombordo e
estibordo, e tudo o resto. Tentamos conservar tradições, confiamos no
capitão como em criança confiávamos em Deus... Mas já não
funciona... Eu sonhava em ter um bom capitão, como o MacWhirr do
Tifón. E sê-lo também, algum dia.
— O que é um bom capitão?
— Alguém que sabe o que faz. Que nunca perde a cabeça. Que
sobe até à ponte durante o nosso quarto de serviço e vê um barco
obstruindo-nos por um bordo e, em vez de dizer mete tudo a
estibordo que vamos abalroar, cala-se, olha para nós e espera que
façamos a manobra correcta.
— Tiveste bons capitães?
Coy fez uma careta. Aquela era uma boa pergunta. Virou
mentalmente as páginas de um álbum de fotografias antigas com
manchas de água do mar. Também havia manchas de merda.
— Tive de tudo — disse. — Miseráveis, bêbados, cobardes, mas
também gente estupenda. Mas confiei sempre neles. Toda a minha
vida, até há pouco tempo, a palavra capitão me inspirou respeito. Já te
contei que a associava com aquele capitão que Conrad descreve: «O
temporal cruzara-se com aquele homem taciturno e só conseguiu
arrancar-lhe algumas palavras...» Lembro-me de um temporal duro de
noroeste, o primeiro da minha vida, no golfo da Biscaia, com ondas
enormes que cobriam a proa do Migalota até à ponte. Tínhamos
escotilhas McGregor com problemas de juntas que não encaixavam
bem. Entrava água a cada vagalhão, e a carga era de minério que, ao
molhar-se, desliza facilmente... E cada vez que a proa afundava na
água parecendo que não ia voltar a sair, o capitão, Dom Ginés Sáez,
que estava agarrado à temoneira, murmurava «Deus» muito baixinho,
entredentes... Na ponte estavam quatro ou cinco pessoas. Mas eu, que
estava ao lado dele, era o único que conseguia ouvi-lo. Ninguém mais
se deu conta. E quando olhou de soslaio e viu que eu estava por perto,
não tornou a abrir a boca.
Os três artistas tinham terminado a sua actuação e despediam-se
entre aplausos. Foram substituídos por música enlatada, através de
altifalantes situados no tecto. Uma guitarra fez-se ouvir. Alguns casais
começaram a dançar. Partes porque eu quero que partas. Bolero. Por
um milésimo de segundo teve a tentação de a convidar para a pista de
dança. Ah! Os dois ali, abraçados, as caras próximas. E quero que
outros lábios te beijem, dizia a canção. Imaginou-se com uma mão na
cintura dela, pisando-lhe os pés como um pato. Além disso, de certeza
que ela era daquelas que interpunham os cotovelos.
— Antes — prosseguiu, esquecendo-se do bolero —, um capitão
tinha de tomar decisões. Agora fica assinando os documentos em
segurança, há uma diferença de meia tonelada, e aí o temos
telefonando ao armador. Assino os papéis, não assino os papéis ?
E num gabinete há três tipos, três lixos com gravata, que lhe dizem
não assines. E ele não assina.
— E o que resta do mar?... Quando te sentes ainda marinheiro?
Nos problemas, explicou ele. Quando tinham um ferido a bordo, ou
quando se quebrava alguma coisa, as pessoas costumavam portar-se
bem. Uma vez, contou, uma onda tinha arrancado a porta do leme do
Palestine, diante do Cabo. Estiveram dia e meio desgovernados, até
chegarem os rebocadores. E os tripulantes voltaram a parecer
marinheiros a sério. No geral não passavam de camionistas do oceano
e funcionários sindicalizados, mas com a crise retornava o
companheirismo. Uma deslocação da carga, uma avaria grave. O mau
tempo e tudo isso. Os temporais.
— Soa terrivelmente essa palavra: temporal.
— Há más e há piores. O mais desagradável para um marinheiro é
quando calcula o seu rumo e o do temporal, e se dá um empate...
Quero dizer, quando chegam os dois ao mesmo tempo e ao mesmo
sítio.
Fez uma pausa. Havia coisas que nunca conseguiria explicar-lhe,
decidiu. Ventos de força onze diante da Terra Nova, muralhas de
água cinzenta e branca fervendo numa névoa de espuma que a funde
com o céu, pancadas e rangidos do casco, tripulantes gritando de
medo amarrados aos beliches dos seus camarotes, a rádio saturada de
maydays de barcos em apuros. E alguns homens com a cabeça
tranquila na ponte, ou atando a carga solta nos porões, ou lá em baixo
nas máquinas entre caldeiras, turbinas e tubagens, sem saber o que
está a acontecer lá em cima, pendentes dos controlos, das luzes de
alarme e das ordens, preocupados com a agitação do gasóleo nos
depósitos, com a fissura no casco que pode meter água no
combustível, com a avaria nos queimadores que os deixe à mercê do
mar. Marinheiros tentando salvar um barco e com ele as suas vidas,
acelerando nas descidas para manter o controlo, moderando
precisamente antes das cristas, procurando espaços para virar entre as
ondas maiores, quando o barco já não aguenta de proa. É o momento
angustiante em que, em plena manobra, aparece um recife assassino
que bate no casco de través e o inclina quarenta graus, enquanto as
pessoas, agarradas ao que podem, se entreolham aterrorizadas,
perguntando a si próprias se o barco acabará direito ou não.
— Nesses casos — concluiu Coy em voz alta — tudo volta a ser
como antes.
Soava demasiado nostálgico, receava. Era impossível sentir
saudades do horror. Ele referia-se à nostalgia do comportamento de
alguns homens no horror. Mas isso era impossível de explicar à mesa
de um restaurante ou em qualquer outro sítio. De modo que
resfolegou um pouco, olhando incomodado para um lado e para
outro. Estava a falar de mais, pensou de repente. Falar não tinha nada
de mal, mas ele não estava habituado a contar a sua vida dessa
maneira. Apercebeu-se de que Tânger era daquelas pessoas que
faziam falar com facilidade, aquelas cuja conversa consistia em colocar
as perguntas adequadas e os silêncios suficientes para que o outro se
encarregasse do assunto. Um truque habilidoso: aprendem e ainda
por cima ficam bem sem se comprometerem. Ao fim e ao cabo, toda a
gente gostava de falar de si própria. És um óptimo conversador,
diziam depois. E não tinham aberto a boca. Cretinos. Ele próprio era,
de cima a baixo, um cretino e uma língua de palmo e meio. E, no
entanto, mesmo consciente de tudo isso, reparava que falar daquilo,
mesmo falar sozinho, com Tânger à frente a ouvir, fazia-lhe bem.
—"Agora — disse momentos depois —, a navegação romântica
com que sonhávamos em criança vai ficando reduzida a esses
pequenos barcos de pavilhões esquisitos que ainda andam fazendo
cabotagem por aí, ferrugentos, com o nome pintado por cima do
anterior, com capitães sujos de óleo e mal pagos... Eu, acabado de ser
nomeado segundo-piloto, andei num porque não encontrei trabalho
noutro. Chamava-se Otago e poucas vezes naveguei com tanto prazer
como nessa altura. Nem sequer nos barcos da Zoeline... Mas isso
descobri-o mais tarde.
Ela disse que talvez fosse por nessa época Coy ser jovem. E ele
reflectiu um pouco; depois mostrou-se de acordo. Sim, admitiu, é
provável que fosse feliz nessa altura por ser jovem. Mas com as
bandeiras de conveniência, os capitães funcionários e os armadores
para quem um barco não diferia muito de um camião com reboque,
fora tudo para o caraças. Alguns barcos levavam tão pouca tripulação
que necessitavam a bordo de gente de terra para amarração. Filipinos
e indianos eram agora tripulantes de elite, e capitães russos, a
abarrotar de vodka, destruíam os seus petroleiros um pouco aqui e ali.
A única possibilidade de o mar continuar a parecer-se com o mar era
num veleiro. Aí ainda se tratava dele e de nós. Mas já não se
conseguia viver de um veleiro, acrescentou. Aí estava o exemplo do
Piloto.
No copo dela só restava gelo. Os seus dedos de unhas roídas
brincavam lá dentro, fazendo-o tilintar. Coy fez tenções de chamar a
empregada, mas Tânger abanou a cabeça, recusando.
— Na outra noite, na proa com o foguete de sinalização,
impressionaste-me.
Depois de dizer isto, calou-se, olhando-o. E o seu sorriso era mais
intenso. Ele riu-se baixinho, novamente de si próprio.
— Não me admiro. Mais impressionado fiquei eu quando caí à
água.
— Não estou a falar disso. Estava paralisada vendo aquelas luzes
que vinham para cima de nós. Não sabia como agir... Mas tu ias
fazendo umas coisas atrás das outras, sem sequer pensar. Uma espécie
de rotina diante do desastre. Não perdeste a calma nem alteraste a
voz. Nem o Piloto. Parecia uma espécie de fatalismo. Como se fizesse
parte do jogo.
Coy encolheu um pouco os ombros, com simplicidade. Olhava
para as suas próprias mãos largas e desajeitadas. Nunca imaginara ter
de falar dessas coisas com alguém. No seu mundo, ou no mundo
aquático de onde fora expulso há pouco tempo, era tudo demasiado
óbvio. Só em terra pediam explicações.
— São as regras — disse. — Lá fora assumimos que o desastre está
incluído. Não de bom grado, claro. Rezamos ou blasfemamos e, se
tivermos garra, lutamos até ao fim. Mas aceitamo-lo. O mar é isso.
Podes ser o melhor marinheiro do mundo, mas o mar vem e liquida-
te. O único consolo é fazermos o melhor que soubermos... Imagino
que assim se devia ter sentido o capitão do Dei Gloria.
A menção do bergantim obscureceu a expressão de Tânger. De
repente inclinava a cabeça para o lado, distraída. Tinha os cotovelos
em cima da mesa, o queixo apoiado nas mãos. O recorte do cabelo
roçava-lhe um ombro.
— Não parece um grande consolo — comentou.
— A mim serve-me. Talvez a ele também lhe tenha servido.
Tinham-se acendido os candeeiros que iluminavam o contorno da
baía, e a água da beira-mar tinha reflexos amarelados sob a chuva
miudinha, interrompidos por estremecimentos prateados como se
bancos de peixes minúsculos nadassem perto da superfície. A luz do
farol estava mais precisa, com o feixe prolongado, que a humidade
tornava quase corpóreo, girando sem parar na direcção do negrume
cerrado que rastejava sobre o mar.
— Deve estar muito escuro lá fora — disse ela.
Um tremor involuntário insinuava-se na sua voz e isso levou Coy a
observá-la atentamente: ela tinha os olhos fixos na noite.
— Cair ao mar na escuridão — acrescentou ela, após uns instantes
— deve ser terrível.
— Não é agradável.
— Tiveste muita sorte.
— É verdade. Quando caímos assim, o normal é não nos
encontrarem.
Tânger colocou a mão direita em cima da mesa, com um tilintar
das escravas de prata. Pô-la muito perto do braço de Coy, sem chegar
a tocá-lo, mas este sentiu os seus pêlos eriçarem-se.
— Eu já sonhei com isso — estava ela a dizer. — Sonhei com isso
durante anos... Caio numa escuridão espessa, densa e negra.
Examinou-a com interesse, um pouco perplexo com o tom
confidencial e também com a forma como se voltava de vez em
quando na direcção das sombras.
— Suponho que se trata da morte — prosseguiu Tânger, em voz
baixa.
Ficou em silêncio, muito quieta, olhando com apreensão para a
chuvinha, por cima da balaustrada. Parecia, pensou ele, olhar para
além do mar em sombras.
— Morrer sozinha como Zas. Às escuras.
Tinha pronunciado aquelas palavras, após um silêncio enorme,
num tom que era quase um sussurro, quase inaudível. De repente
parecia realmente assustada, ou perturbada, e Coy agitou-se um
pouco na cadeira, desconcertado, com uma confusão de sentimentos.
Ergueu uma mão para apoiá-la na dela, mas tornou a deixá-la cair
para o lado, sem concluir o gesto.
— Se alguma vez acontecer — disse — gostaria de estar perto de ti
para te segurar a mão.
Ignorava como aquilo soaria, mas era-lhe indiferente.
Estava a ser sincero. De súbito via uma menina com medo da
noite, aterrada em viajar sozinha através da escuridão infinita.
— Não serviria de nada — respondeu ela. — Ninguém pode
acompanhar ninguém nessa viagem.
Tinha-o observado atentamente quando ele dissera o que dissera:
estar perto e à mão. Muito séria, muito absorta, analisando o que
acabara de ouvir. Mas agora abanava a cabeça como se menosprezasse
aquilo com resignação, ou derrota.
— Ninguém.
Depois de dizer aquilo, ficou calada. Olhava-o de súbito com tanta
intensidade que Coy voltou a contorcer-se na cadeira, pouco à
vontade. Teria dado tudo o que tinha — na realidade não tinha nada
— para ser um tipo atraente, com classe, ou, pelo menos, com dinheiro
suficiente para sorrir seguro de si próprio, antes de pousar a sua mão
sobre a dela, protector. Para lhe dizer eu cuidarei de ti, pequena,
àquela mulher a quem apenas há instantes chamara maldita bruxa e
que de repente voltava a recordar-lhe a miúda sardenta que sorria nos
braços do pai na fotografia emoldurada. A campeã do concurso
infantil de natação, vencedora da taça de prata que agora, amolgada e
sem uma asa, escurecia numa prateleira. Mas Coy era apenas um
pária com um saco ao ombro a bordo de um veleiro que também não
era seu, e estava tão longe dela que nem sequer podia aspirar a servir-
lhe de consolo, ou de derradeira mão que se aperta, antes de uma
viagem hipotética no fim da noite. Por isso sentiu uma impotência
muito amarga quando ela contemplou a distância que separava as
mãos de ambos sobre a toalha e sorriu tristemente, como se o fizesse
às sombras, fantasmas e remorsos.
— Tenho medo disso.
Disse. Então Coy, desta vez sem pensar, esticou a mão até tocar na
dela. Ela, sem deixar de o olhar nos olhos, retirou-a muito devagar. E
ele virou o rosto para o lado, para que ela não o visse corar,
atrapalhado pelo seu deslize, ou pela sua escorregadela. Mas passado
meio minuto pensou que, às vezes, a vida proporciona-nos situações
singulares com a precisão de uma coreografia rigorosa ou com a má
intenção de um brincalhão escondido na toca da eternidade. Porque,
no preciso momento em que se voltava na direcção da balaustrada e
da praia, envergonhado da sua mão desajeitada e solitária em cima da
toalha, viu uma coisa que veio em seu auxílio de uma forma tão
oportuna que teve de conter-se para não exteriorizar o seu júbilo: um
impulso cego, totalmente irracional, que de repente o fez contrair os
músculos dos braços e das costas e projectou um feixe de intensa
lucidez no seu cérebro. Porque lá em baixo, perto das luzes que
contornavam a praia, sob o alpendre de um quiosque de bebidas já
fechado, acabava de reconhecer a silhueta pequena, inconfundível,
quase íntima já, de Horacio Kiskoros, ex-oficial da Marinha argentina,
sicário de Nino Palermo e anão melancólico.
Desta vez ninguém lhe arrebataria o atum do anzol. De modo que
aguardou trinta segundos, desculpou-se pretextando uma visita à casa
de banho, e desceu os degraus de dois em dois, saiu pela porta das
traseiras, entre baldes de lixo, e foi fazendo uma volta na direcção
contrária ao restaurante e à praia. Caminhava com cuidado sob as
palmeiras e os eucaliptos, pensando como fazê-lo: um lado a estibordo
e um lado a bombordo. A chuvinha miudinha começou a molhar-lhe o
cabelo e a camisa, refrescando-lhe o vigor que afinava o seu corpo,
tenso do prazer acre da expectativa. Atravessou a estrada até um
descampado, andou entre o funcho da valeta e tornou a atravessar a
estrada com a escuridão pelas costas, apoiando-se num contentor de
lixo. Assopra para aí, disse para consigo. Estava a barlavento da presa
que, alheia ao que a esperava, fumava, protegendo-se da chuvinha
molha-tolos sob um alpendre de madeira e canas. Estava um carro
estacionado junto ao passeio, um Toyota pequeno, branco, com a
matrícula de Alicante e com o autocolante de aluguer no vidro
traseiro. Coy deu a volta ao carro e viu que Kiskoros mantinha os
olhos fixos na esplanada iluminada e na porta principal do
restaurante. Vestia um casaco leve, lacinho, e o seu cabelo preto,
penteado para trás, reluzia de brilhantina à luz do candeeiro mais
próximo. A navalha, pensou Coy, lembrando-se do arco dos guardas-
marinhas. Tenho de ter cuidado com a navalha dele. Depois sacudiu
as mãos e fechou os punhos, evocando em sua ajuda os fantasmas do
Torpedeiro Tucumán, do galego Neira e do resto da Tripulação
Sanders. Os ténis ajudaram-no a dar oito passos silenciosos, num
sigilo feroz, antes que o outro ouvisse o ruído sobre o cascalho e
começasse a voltar-se para verificar quem chegava por trás. Coy viu
os olhos de rãzinha simpática perderem a simpatia, abrindo-se
desmesuradamente, e o cigarro cair da boca transformada num buraco
escuro, com o último fumo ainda enredado em espirais no bigode.
Nessa altura saltou, cobrindo a distância que lhe faltava e o primeiro
murro atingiu Kiskoros em pleno rosto e fez claque, atirando-lhe a
cabeça para trás como se acabasse de quebrar-lhe o pescoço, enquanto
o projectava contra a parede do quiosque, justamente por baixo do
cartaz: «Quiosque Costa Azul. Especialidades de polvo.»
A navalha, continuava a pensar obcecado, enquanto lhe batia sem
parar, sistematicamente e com eficácia, em silêncio. Agora soava a
glória: pumba e claque, e também plafe. E Kiskoros, incapaz de
manter-se de pé diante da arremetida, escorregava encostado à
parede, procurando desesperadamente o bolso. Mas Coy adivinhou-
lhe o desejo, de modo que se afastou um pouco, tomou impulso e o
pontapé que assestou no braço do argentino fê-lo soltar, pela primeira
vez, um prolongado uivo de dor, como um cão a quem tivessem
pisado a cauda. Nessa altura agarrou-o pelas lapelas do casaco e
puxou por ele com violência, fazendo-o atravessar a calçada em
direcção à areia da praia. Puxava e parava para lhe bater e puxava
outra vez. E o outro emitia uma série de grunhidos surdos, agónicos,
debatendo-se para tentar levar a mão ao bolso e, de cada vez, Coy
batia-lhe novamente. Naquela noite feliz não necessitava de
espinafres. Agora és meu, pensava atropeladamente, com aquela
estranha lucidez que costumava conservar a meio do arrebatamento e
da violência. Agora tenho-te inteirinho e não há árbitro, nem
testemunhas, nem polícias, nem ninguém que me diga o que devo ou
não devo fazer. Agora vou amassar-te até ficares numa polpa de
merda e as costelas partidas te espetarem por dentro e engolires seis a
seis os teus dentes partidos, não te restando fôlego nem para assobiar
um tango.
Tal como um touro que procurasse a barreira para cair, Kiskoros já
quase não se debatia. Tinha o lacinho na orelha. A navalha, que
acabou por conseguir tirar do bolso, tinha escorregado pelos seus
dedos desajeitados e estava na areia, depois de Coy a ter afastado com
um pontapé. A luz dos candeeiros vizinhos dava densidade à
chuvinha que continuava a cair sobre eles enquanto, à patada, Coy
fazia o argentino, coberto de areia húmida, rolar até à beira da água.
Pumba! Ai! Pumba! Ai! Deu os últimos golpes quando o outro já
chapinhava na beira-mar, gemendo dorido, numa tentativa para
manter a boca fora da água. Pumba! Meteu-se nela até aos tornozelos
para desfechar-lhe um último pontapé que o fez rolar um metro,
imergindo-o por completo nos reflexos amarelados e na miragem da
chuvinha sobre a água negra.
Voltou para trás sentando-se na areia, perto da beira-mar.
Enquanto recuperava o fôlego, a tensão dos seus músculos começava
a decair. Doíam-lhe os tornozelos de tantas patadas e as costas da mão
direita, até ao antebraço e ao cotovelo, pareciam ter os tendões cheios
de nós. Nunca na minha vida, disse para consigo, enchi alguém de
pancada com tanto gosto. Nunca. Esfregava os dedos para os
desintumescer, levantando a cara para que a chuva fina lhe molhasse
a testa e os olhos fechados. Assim, imóvel, respirando profundamente
com a boca muito aberta, esperou que o galope violento que sentia no
peito diminuísse. Ouviu um ruído à sua frente e abriu os olhos.
Escorrendo água que o fazia brilhar entre os reflexos, Kiskoros
arrastava-se pela beira-mar. Coy ficou sentado na areia, observando os
seus esforços. Podia ouvir a respiração entrecortada e os grunhidos
sombrios de besta espancada, o chapinhar desajeitado de mãos e
pernas incapazes de se levantarem.
Era bom lutar, pensava. Era como limpar sentinas. Era óptimo para
a circulação do sangue e dos sucos gástricos colocar nos punhos toda a
angústia, mau humor e desesperança que lastravam a alma. Era quase
terapêutico que a acção desse tréguas por algum tempo ao
pensamento, e os impulsos atávicos, que faziam o ser humano
escolher entre a morte ou a sobrevivência, reclamassem a sua parte no
jogo da vida. Talvez por isso o mundo estivesse agora como estava,
reflectiu. Os homens tinham deixado de lutar, porque era mal visto e
isso estava a enlouquecê-los.
Continuava a esfregar a mão dorida. A sua cólera desvanecia-se.
Há muito tempo que não se sentia tão bem, tão em paz consigo
próprio. Viu que o argentino, de gatas, tirava parte do corpo da água e
voltava a desmoronar com água da cintura para baixo. A luz
amarelada revelava-lhe o cabelo e o bigode manchados de areia, que
escuros regueiros de sangue avermelhavam ao correr por ela.
— Cabrão — disse Kiskoros da beira-mar, sufocado, gemendo
como se cada letra lhe doesse.
— Desaparece e vai levar no cu.
Ficaram os dois em silêncio. Coy sentado, olhando. O argentino de
barriga para baixo, respirando com dificuldade, um gemido em voz
baixa de vez em quando, ao querer mudar de posição. Finalmente,
conseguiu arrastar-se para a frente com os cotovelos, deixando um
sulco na areia até conseguir tirar as pernas da água. Parecia uma
tartaruga prestes a desovar, e Coy continuava a observá-lo
desapaixonadamente. A sua cólera tinha desaparecido, ou quase. Não
sabia muito bem o que fazer agora.
— Faço apenas o meu trabalho — murmurou Kiskoros passado
algum tempo.
— O teu é um trabalho perigoso.
— Limitava-me a vigiar.
— Pois vai vigiar a puta que te pariu na pampa. Levantou-se sem
pressas, sacudindo a areia das calças de ganga.
Depois dirigiu-se ao argentino, que tentava levantar-se com muita
dificuldade, e ficou a olhar para ele durante um bocado até decidir
arremessar-lhe outro soco, desta vez menos impulsivo e mais
funcional, derrubando-o novamente de barriga para cima. Pequeno,
molhado, tumefacto e coberto de areia, Kiskoros parecia um croquete
patético. Inclinou-se para ele, ouvindo-lhe a respiração — milhares de
silvos assobiando-lhe nos pulmões — e revistou-o minuciosamente.
Levava um telemóvel, um maço de cigarros empapado e as chaves do
automóvel de aluguer. Atirou as chaves e o telemóvel ao mar. A
carteira era grande e estava cheia de dinheiro e de papéis. Foi até ao
candeeiro mais próximo dar uma vista de olhos: um documento de
identidade espanhol com a fotografia e o nome de Horacio Kiskoros
Parodi, cartões-de-visita alheios, dinheiro espanhol e britânico, um
cartão Visa e outro American Express. Também a fotocópia a cores de
uma página de revista, que desdobrou com precaução, pois já tinha
sido muito manuseada e estava ensopada de água do mar. Sob o
título: «Os nossos mergulhadores tácticos humilham a Inglaterra»,
uma fotografia mostrava vários soldados da Marinha inglesa de
braços no ar, guardados por três soldados argentinos com a cara
enfarruscada que lhes apontavam pistolas-metralhadoras. Um desses
três era de pequena estatura, com olhinhos esbugalhados de rãzinha e
bigode inconfundível.
— Olha, tinha-me esquecido. O herói das Malvinas.
Meteu o documento de identidade e os cartões na carteira, juntou o
recorte, guardou o dinheiro e atirou a carteira para cima de Kiskoros.
— Conta-me coisas, anda.
— Não tenho nada para dizer.
— O que quer Palermo?... Está aqui perto?
— Não tenho nada para...
Interrompeu-se quando Coy lhe desfechou outro murro na cara.
Fê-lo desapaixonadamente, quase sem vontade, e ficou a ver como o
argentino, tapando o rosto com as mãos, se contorcia como uma
minhoca. Depois foi sentar-se outra vez na areia, sem deixar de o
observar. Nunca se tinha enfurecido com ninguém daquela maneira, e
espantava-o não sentir compaixão. Mas sabia quem era o homem que
estava no chão, não conseguia esquecer-se de Zas, envenenado sobre o
tapete, e estava a par do destino que mulheres como Tânger tinham
sofrido nas mãos do oficial Horacio Kiskoros e companhia. De modo
que aquele fulano podia fazer um canudo com o seu recorte das
Malvinas e metê-lo cuidadosamente na anilha.
— Diz ao teu chefe que me estou a cagar para as esmeraldas. Mas
se alguém lhe toca, a ela, mato-o.
Disse-o com uma simplicidade insólita, quase com modéstia, e
nem sequer chegou a soar como uma ameaça. Era só uma informação
desprovida de ênfase ou de matizes. Um aviso à navegação. De
qualquer forma, até o ouvinte menos atento teria compreendido que,
tratando-se de Coy, aquilo era uma informação verídica. Kiskoros
grunhiu de uma forma sombria ao mexer-se sobre um dos lados.
Tacteou à procura da carteira, guardando-a com mãos desajeitadas.
—És um estúpido — mastigou. — E estás muito enganado com o
senhor Palermo e comigo... Também estás enganado com ela.
Fez uma pausa para cuspir sangue. Agora olhava para Coy por
entre o cabelo despenteado, húmido e sujo, que lhe caía sobre a cara.
Os olhinhos de rãzinha já não estavam simpáticos: brilhavam de ódio
e de desejo de vingança.
— Quando chegar a minha vez...
Sorriu de uma forma horrível com a sua boca inchada, deixando a
frase no ar, ameaçador e grotesco ao mesmo tempo, interrompido por
um acesso de tosse.
— Estúpido — repetiu com rancor, novamente a cuspir sangue.
Coy ficou a olhar para ele sem dizer nada, antes de se levantar
novamente, devagar, quase de má vontade. Não posso fazer mais
nada dele, disse para consigo. Não posso matá-lo agora à pancada,
porque há coisas que receio perder, e ainda me importam a minha
liberdade e a minha vida. Isto não é um romance nem um filme, e na
vida real há polícias, juízes e gente assim. Nenhum barco me espera, a
fim de levar-me depois rumo às Caraíbas, para me refugiar em
Tartaruga, entre os Irmãos da Costa(1), e fazer vinte presas, apesar do
inglês. Hoje, os Irmãos da Costa reciclaram-se em construtores de
apartamentos, e o governador da Jamaica recebe as ordens de busca e
captura por fax.
E continuava assim, entre aborrecido e indeciso, calculando a
oportunidade de dar a Kiskoros outro murro na cara ou não lhe bater,
quando viu Tânger de pé junto da estrada, sob a luz amarelada do
candeeiro. Estava imóvel, olhando para eles.
Na extremidade da baía, o feixe de luz do farol girava
horizontalmente, rectilíneo na noite quente de chuvinha miúda. Os
intervalos luminosos pareciam estreitos cones de bruma ao passarem
repetidamente, recortando de cada vez os troncos esbeltos e as copas
imóveis das palmeiras, grávidas de água e de reflexos. Coy deu uma
olhadela a Kiskoros, antes de se afastar pela beira-mar na peugada de
Tânger. O argentino conseguira chegar até ao carro, mas não levava
consigo a chave atirada ao mar, de modo que estava sentado no chão,
com as costas apoiadas numa roda, empapado de água e sujo de areia,
vendo-os afastarem-se. Desde o aparecimento da mulher não voltara a
abrir a boca e ela também não tinha dito nada, limitando-se a observar
ambos em silêncio. Mesmo quando Coy, que ainda estava um pouco
fora de si, lhe perguntou se não queria aproveitar a conjuntura para
enviar cumprimentos a Nino Palermo.

*1. Irmãos da Costa: confraria de flibusteiros do século XVII que actuava


sobretudo na zona das Caraíbas, cuja base em terra era a ilha Tartaruga.
Libertários por essência, para quem o mais importante era a sua condição de
homens livres, não admitiam a propriedade individual e viviam em liberdade
e fraternidade sem preconceitos de nacionalidade ou religião. (N. da T.)

Ou talvez, acrescentou, lhe apetecesse interrogar o sudaca(1). Disse


isso mesmo, interrogar o sudaca, sabendo que, por muitas patadas
que continuassem a dar-lhe, já não havia quem conseguisse arrancar
uma palavra a Kiskoros. Sem responder, ela pôs-se a caminhar pela
praia, afastando-se dali. E Coy, após uma breve hesitação, dirigiu um
último olhar ao maltratado sicário e pôs-se a andar atrás dela.
Alcançou-a em meia dúzia de passos e estava furioso. Já não pelo
aparecimento do argentino, que no fim de contas fora oportuno para
despejar a bílis que lhe amargava o estômago e a garganta, mas pela
forma como ela parecia voltar as costas à realidade, quando lhe
interessava. Olá, não gosto, e adeus. Tudo o que não encaixava nos
seus planos, os aparecimentos imprevistos, os inconvenientes, as
ameaças, as irrupções do mundo real no sonho aparente da sua
aventura, era negado, adiado, posto de parte como se nunca tivesse
existido. Como se a sua mera consideração atentasse contra a
harmonia de um conjunto cuja perspectiva real só ela conhecia.
Aquela mulher, concluiu enquanto caminhava mal-humorado pela
areia, defendia-se do mundo recusando-se a ver. E não era ele quem
podia censurá-la.
E, no entanto, pensou, alcançando-a e agarrando-a por um braço,
voltada de repente para ele à luz turva dos candeeiros longínquos,
nunca na sua vida maldita tinha visto uns olhos que olhassem tão
profundamente e tão longe, quando queriam. Agarrou-a com uma
brusquidão quase excessiva, fazendo-a parar, e ficou diante dela
observando o cabelo húmido sob a chuva, os reflexos nos olhos dela,
as gotas de água multiplicando-lhe as pintas da pele.
— Tudo isto — disse ele — é uma loucura. Nunca conseguiremos...

*2. Sudaca: termo depreciativo com que os espanhóis designam os latino-


americanos. (N. da T.)

De repente verificou, surpreendido, que ela estava assustada e


tremia. Viu que os lábios entreabertos se agitavam e que um tremor
lhe percorria os ombros, quando a luz do farol deslizou sobre eles,
marcando os contornos de ambos no seu estreito feixe de luz branca.
Viu tudo isso de súbito, com o relâmpago e, alguns segundos mais
tarde, a contraluz seguinte iluminou a chuva quente que de repente
começava a tornar-se grossa e intensa. E ela continuava a tremer,
enquanto a água lhe caía no cabelo e na cara, colando-lhe a blusa
empapada ao corpo, molhando também os ombros e os braços de Coy
quando este os abriu para a acolher entre eles, quase sem reflectir. E a
carne tépida, trémula sob a noite e a chuva como se a cintilação da luz
fosse névoa fria, veio sem reticências refugiar-se de encontro ao corpo
dele de modo preciso, deliberado. Veio directamente para ele, para o
seu peito e Coy manteve por um instante os braços abertos, ainda sem
a abraçar, mais surpreendido que indeciso. Depois fechou-os
apertando-a com suavidade, sentindo latejarem os músculos, o sangue
e a carne sob a blusa molhada, as coxas longas e firmes, o corpo
esbelto que continuava a tremer contra o seu. E a boca entreaberta
muito próxima, a boca cujo tremor serenou com os seus lábios, de
uma forma prolongada, até ter deixado de estremecer e se tornar de
repente bastante quente e suave, abrindo-se mais. E depois foi ela
quem apertou o abraço em torno das costas fortes de Coy que ergueu
uma mão até à nuca dela, uma mão larga, forte, que segurou o seu
pescoço e a sua cabeça, sob o cabelo a pingar de toda aquela chuva
que aumentava com um intenso rumor sobre a areia. Dessa forma, as
duas bocas abertas procuraram-se com uma ânsia inesperada, como se
estivessem ávidas de saliva, de oxigénio e de vida, os dentes
entrechocaram-se e as línguas húmidas enlaçaram-se batendo
impacientes. Até, finalmente, Tânger se afastar um instante e alguns
centímetros para respirar, os olhos abertos olhando-o de muito perto,
insolitamente confusos. E depois foi ela quem se lançou para a frente
com um gemido prolongadíssimo, semelhante ao de um animal a
quem doesse muito uma ferida. E ele manteve-se firme esperando-a,
abraçando-a novamente para apertá-la tanto que receou partir-lhe
algum osso. E depois andou às cegas com ela suspensa nos seus
braços até se aperceber de que estavam metidos no mar, que a chuva
caía com uma intensidade atroadora, espessa, e que apagava os
contornos da paisagem, enquanto os salpicos crepitavam como se a
baía fervesse à sua volta. Os seus corpos sob as roupas empapadas
continuavam a procurar-se violentamente, chocando-se em fortes
abraços, em beijos desesperados que o desejo precipitava, lambendo a
água da cara, os lábios cheios de chuva e de sabor a pele molhada
sobre carne quente.
E ela fazia deslizar na boca do homem o seu queixume
interminável de animal ferido.
Foram para o barco a pingar água, procurando-se
desajeitadamente até tropeçarem na escuridão. Chegaram abraçados,
beijando-se a cada passo, apressados no resto do caminho, deixando
regueiros de água na escada e no chão da casa de pilotagem. E o
Piloto, que fumava às escuras, viu-os descer pela escotilha e
desaparecer no corredor a caminho dos camarotes da popa. E talvez
tenha sorrido quando os dois se voltaram na direcção da brasa do seu
cigarro para lhe desejarem boa-noite. Depois, Coy guiou Tânger
levando-a à frente, as mãos na cintura dela, enquanto a mulher se
voltava a todo o instante para o beijar avidamente na boca. Tropeçou
numa sandália que ela acabava de descalçar e depois noutra e na
porta dos camarotes Tânger parou e apertou-se contra ele, e
abraçaram-se esmagados contra a antepara de teca, as bocas
procurando-se novamente com urgência, às cegas na penumbra,
reconhecendo os seus corpos sob a roupa que já arrancavam um ao
outro: botões, cinto, a saia caindo ao chão, as calças de ganga abertas
pelas ancas de Coy, a mão de Tânger entre elas e a pele dele, o calor
da mulher, o triângulo de algodão branco quase arrancado das coxas
dela, o tilintar da chapa metálica de soldado. E o vigor masculino, o
reconhecimento mútuo fascinado, o sorriso dela, a suavidade incrível
dos seus peitos despindo-se lisos, erectos. Homem e mulher cara a
cara, arquejos que soavam a desafio. O gemido animador dela e o
impulso dele para a frente, na direcção do beliche, através do
camarote estreito e das últimas peças de roupa molhadas num lado e
noutro, revoltas sob os corpos cobertos de chuva que empapava os
lençóis, numa busca mútua pela enésima vez, olhando-se de perto,
sorridentes, absortos, cúmplices. Matarei quem se interpuser agora,
pensava Coy. Quem quer que seja. A sua pele, a sua saliva e a sua
carne abriam caminho, sem dificuldade, noutra carne cada vez mais
húmida, mais quente e mais acolhedora, profundamente, muito
profundamente, para lá de onde todos os enigmas tinham a sua chave
oculta, e onde a passagem dos séculos forjou a única verdadeira
tentação, na forma de resposta ao mistério da morte e da vida.
Muito depois, às escuras, com a chuva ouvindo-se em cima, na
coberta, Tânger rodou até ficar de lado, com o rosto afundado na
concavidade do ombro de Coy e uma mão entre as coxas dele. Ele,
aplacado, sentia o corpo nu colado ao seu, a mão da rapariga quente e
imóvel sobre a sua carne exausta, ainda molhada e com o cheiro dela.
Tinham encaixado um no outro como se durante as suas vidas
respectivas e anteriores não tivessem feito outra coisa a não ser
procurar-se. Era bom sentir-se bem-vindo, pensou, e não apenas
tolerado. Era boa aquela cumplicidade imediata, instintiva, que não
precisava de palavras que justificassem o inevitável. Aquele percurso
feito por cada um da parte do caminho que lhe competia, sem falsos
pudores. Aquele presságio do vem aqui não pronunciado; aquele
duelo estreito, cerrado, ofegante, intenso, cuja naturalidade, nessa
noite, quase tinha roçado os maus-tratos, de igual para igual, sem
necessidade de pretextos, nem de quaisquer justificações. Sem passar
a factura, sem equívocos, sem condições. Sem enfeites nem remorsos.
Era bom que no fim tivesse acontecido tudo aquilo, exactamente como
tinha de acontecer.
— Se acontecer alguma coisa — disse ela de repente — não me
deixes morrer sozinha.
Permaneceu quieto, com os olhos abertos na escuridão. De repente,
o rumor da chuva parecia sinistro. O seu estado de sonolenta
felicidade ficou em suspenso e tudo se tornou novamente agridoce.
Sentia a respiração dela no seu ombro, lenta e quente.
— Não fales disso — murmurou. Sentiu que ela mexia a cabeça,
grave.
— Tenho medo de morrer às escuras e só.
— Isso não vai acontecer.
— Isso acontece sempre.
A mão continuava imóvel entre as coxas de Coy, a cara na
concavidade do ombro, os lábios sussurravam de encontro à pele. Ele
sentiu frio. Rodou a cara para o lado, afundando-a no cabelo ainda
molhado da rapariga. Não lhe conseguia ver o rosto, mas soube nesse
momento que era o mesmo da fotografia da moldura de prata. Todas
as mulheres, sabia-o agora, tiveram esse rosto alguma vez.
— Estás viva — disse. — Sinto latejar o teu pulso contra mim. Tens
carne e sangue que a percorre. És bonita e estás viva.
— Um dia não estarei mais aqui.
— Mas ainda estás.
Sentiu-a encostar-se mais ainda. Aproximar a boca do seu ouvido.
— Jura... que não me deixarás... morrer só.
Disse-o muito devagar, e a sua voz era um sussurro. Coy
permaneceu imóvel por um tempo, com os olhos fechados, ouvindo a
chuva. Depois abanou a cabeça afirmativamente.
— Não te deixarei morrer só.
— Jura.
— Juro.
Sentiu que o corpo dela, nu, montava em cima do seu, com as
coxas abertas sobre as suas ancas, o roçar dos peitos e a boca
procurando a sua. Então, uma lágrima quente e grossa caiu-lhe na
cara, vinda de cima. Abriu os olhos surpreendido, para se deparar
com um rosto feito de sombras. E enquanto lhe beijava, confuso, os
lábios entreabertos e húmidos, apercebeu-se de que por eles deslizava
outra vez, ténue como um suspiro, aquele longo, doloroso queixume
de fêmea ferida.
XIII - O MESTRE CARTÓGRAFO

O pior ainda não é errar nos acidentes do mar. Outros erram pelos maus
documentos que seguem.
JorgeJuan. Compêndio de Navegação para Guardas-Marinhas

O Dei Gloria não estava ali. Coy foi adquirindo essa convicção
pouco a pouco, à medida que a quadrícula traçada sobre a carta ia
ficando coberta sem encontrarem nada. Com sondagens entre os
sessenta e os vinte metros, a Pathfinder tinha já traçado quase todo o
relevo das duas milhas quadradas onde deveriam encontrar-se os
restos do bergantim. Os dias passavam e estavam cada vez mais
quentes e tranquilos, e o Carpanta navegava a dois nós, com o
ronronar do seu motor a gasóleo, por um mar plano e luminoso como
a superfície de um espelho, bordo para norte e bordo para sul com
precisão geométrica, com contínuas mudanças de posição por satélite,
enquanto o feixe da sonda varria o relevo sob a quilha e Tânger, Coy e
Piloto se revezavam, empapados em suor, diante do ecrã de cristal
líquido. Os símbolos de fundo, cor de laranja suave, cor de laranja
escuro, vermelho pálido iam-se sucedendo com exasperante
monotonia: lodo, areia, algas, cascalho, rochas. Tinham coberto
sessenta .e sete das setenta e quatro passagens previstas e efectuado
catorze imersões para fazer o reconhecimento de ecos suspeitos, sem
encontrar o menor indício dos restos de um barco submerso. Agora, a
esperança desvanecia-se com as últimas horas de busca. Ninguém
dizia em voz alta o veredicto fatídico, mas Coy e o Piloto dirigiam um
ao outro longos olhares, e Tânger, obstinadamente imóvel diante da
sonda, parecia cada vez mais carrancuda e silenciosa. A palavra que
flutuava no ar era fracasso.
Na véspera do último dia fundearam com trinta metros de amarra
em sete metros de água, entre a ponta e a ilha da Cueva de los Lobos.
Quando o Piloto parou o motor e a proa do Carpanta rodou devagar
em torno da âncora para aproar sem muita convicção para poente, o
Sol escondia-se atrás das fendas da serra parda, iluminando em tons
dourados e avermelhados as matas de tomilho, os palmitos e as
figueiras-da-índia. Ao pé das rochas, o mar estava quase imóvel,
agitando-se suavemente nas rochas próximas e na pouca areia, branca
entre as algas.
— Não está aí — disse Coy em voz baixa.
Não falou para ninguém em concreto. O Piloto tinha acabado de
ferrar a vela grande à espicha e Tânger estava sentada nos degraus de
popa, com os pés dentro de água, olhando para o mar.
— Tem que estar — respondeu ela.
Mantinha o olhar imóvel no mesmo sítio, a quadrícula imaginária
que tinham navegado quase sem descanso durante duas semanas.
Vestia uma camisola de manga curta de Coy que lhe ficava grande,
cobrindo-a até ao início das coxas, e mexia os pés devagar,
chapinhando suavemente como as crianças que brincam à beira-mar.
— Tudo isto é absurdo — comentou Coy.
O Piloto tinha descido à casa de pilotagem, e por uma portinhola
aberta chegavam os ruídos que fazia preparando o jantar. Quando
subiu novamente à coberta para abrir a caixa da botija de butano e
ligar o gás da cozinha, o seu olhar grave encontrou o de Coy. É
problema teu, marinheiro.
— Tem que estar — disse Tânger de repente.
Continuava como antes, agitando os pés na água. Coy estava um
pouco mais apoiado na bitácula, procurando alguma coisa adequada
para dizer ou para fazer. Como não lhe ocorria nada, foi à procura de
uma máscara de mergulho e atirou-se ao mar, da proa, para
comprovar o unhar da âncora. A água estava limpa, tépida e
agradável, e a luz decrescente permitia seguir a linha da amarra
espalhada sobre o fundo de areia com algumas rochas. A âncora, uma
CQR de vinte e cinco quilos, estava na posição correcta, livre de algas
que pudessem fazê-la desunhar, se o vento aumentasse durante a
noite. Desceu um pouco para a ver bem e depois subiu devagar,
regressando ao veleiro, nadando de costas apenas com o movimento
das pernas, sem pressa, desfrutando o mergulho. Desejava adiar o
mais possível o momento de encontrar-se novamente com Tânger cara
a cara.
Uma vez a bordo, esfregou-se com uma toalha, contemplando a
costa, que o Sol-poente ia tornando totalmente avermelhada,
prolongada em arco para este: a rota do mármore, das legiões
romanas e dos deuses. Desta vez, no entanto, a visão não lhe causou
qualquer prazer. Pôs a toalha a secar e desceu pela escotilha,
sentando-se nos últimos degraus da escada. O Piloto ocupava-se com
as caçarolas na cozinha, preparando uma travessa de macarrão, e
Tânger estava sentada na casa de pilotagem, com as cartas náuticas
abertas em cima da mesa de navegação.
— Não há engano possível — garantiu ela, antes que Coy lhe
dissesse alguma coisa.
Tinha o seu lápis na mão e indicava as coordenadas de latitude e
longitude sobre as diversas cartas, marcando milhas nas escalas das
latitudes para as transportar com o compasso de pontas para o
rectângulo quadriculado da zona, tal como ele a ensinara a fazer.
— Tu próprio reviste os cálculos — acrescentou. — Alinhamentos
para Mazarrón, Cabezo de Las Víboras, Punta Percheles, cabo Tinoso
— inclinava-se muito séria, mostrando-lhe os resultados, como uma
estudante que quisesse convencer o professor. — ... 37° 32 minutos a
norte do equador e 4° 51 minutos a este de Cádis nas cartas esféricas
de Urrutia, correspondem a 37° 32 minutos de latitude norte e 1°
21minutos de longitude oeste relativamente ao meridiano de
Greenwich... Estás a ver?
Coy fingiu rever os números. Tinha efectuado aquelas operações
tantas vezes que as sabia de cor. As cartas estavam cheias de
anotações feitas pela sua mão.
— As tabelas de correcção podem estar erradas...
— Não estão — ela abanava energicamente a cabeça. — Já te disse
que provêm das Aplicações de Cartografia Histórica de Néstor
Perona. Aí, até o erro de 17minutos de longitude de Cádis
relativamente a Greenwich que tinham as cartas de Urrutia foi
corrigido. São precisas em cada minuto e segundo... Graças a elas
encontrou-se há dois anos o Caridad e o São Rico.
— A posição dada pelo ajudante de piloto podia estar errada. Com
a pressa, alguém pode ter cometido um erro.
— Não. Isso não pode ser. — Tânger continuava a negar com as
reticências de quem ouve o que não deseja ouvir. — Era tudo
demasiado exacto. O ajudante de piloto falava mesmo da proximidade
do cabo, a nordeste... Lembras-te?
Olharam ao mesmo tempo pela porta aberta por estibordo, em
direcção à mole avermelhada que se perfilava no extremo do arco da
costa, para lá da baía de Mazarrón e do cabo Falcó. Tendo já avistado
o cabo, tinha declarado o ajudante de piloto, de acordo com o
relatório.
— Também pode acontecer — acrescentou Tânger — que o Dei
Gloria esteja muito enterrado na areia e tenhamos passado por ele sem
o detectarmos...
Era possível, disse Coy. Embora pouco provável. Nesse caso,
explicou, a sonda teria assinalado pelo menos diferentes densidades
na estrutura do fundo. Mas estivera durante todo o tempo indicando
cangadas de areia e lodo com, pelo menos, dois metros. Era
demasiada profundidade para não ter detectado nada.
— Alguma coisa teria de haver aí — concluiu —, nem que fosse
apenas o metal dos canhões. Dez canhões juntos são uma massa de
ferro importante... E a esses dez é preciso acrescentar, embora possam
ter ficado dispersos pela explosão, os doze do corsário.
Tânger tamborilava na carta com o lápis. Tinha a outra mão na
boca, roendo a unha do dedo polegar. A sua testa tinha agora rugas
como cicatrizes. Coy esticou uma mão para a colocar no pescoço dela,
na esperança de apagar aquela carranca, mas ela permaneceu
insensível à carícia, pendente das cartas que tinha à frente. Os planos
do bergantim e do chaveco também estavam à vista, presos com fita-
cola a uma das anteparas da casa de pilotagem. Tinham mesmo
calculado nas cartas a área de dispersão dos canhões do corsário,
tendo em conta a explosão, a deriva e a distância relativamente ao
fundo.
— O ajudante de piloto — sugeriu Coy, retirando a mão — pode
ter mentido.
Tânger voltou a abanar a cabeça negativamente e as marcas na sua
testa tornaram-se mais pronunciadas.
— Demasiado jovem para urdir um engano desse calibre. Referiu-
se ao cabo próximo, à costa a algumas milhas... E trazia no bolso,
anotados a lápis, os dados de latitude e longitude.
— Então não me lembro de mais nada... A não ser que o meridiano
não seja o de Cádis.
Tânger dirigiu-lhe um olhar sombrio.
— Também pensei nisso — disse. — Foi a primeira coisa que fiz,
entre outras coisas, porque em O Tesouro de Rackam, o Terrível,
Tintim e o capitão Haddock cometem um erro semelhante, ao
confundir a longitude de Paris com a de Greenwich...
Às vezes, pensava Coy ouvindo-a, pergunto a mim próprio se não
estará a gozar comigo. Ou se tudo isto não passa de uma peripécia
infantil, imaginada num livro de histórias aos quadradinhos. Porque
não é sério. Ou não o parece. Ou não o pareceria, rectificou, se não
andasse pelo meio aquele anão argentino com a sua navalha, colado às
nossas sombras, e aquele dálmata do seu chefe. O sonho de uma
menina que brincava procurando barcos afundados. Com tesouros e
com maus.
— Mas nós conhecemos bem todos os meridianos usados na época
— disse. — Temos a posição fornecida pelo ajudante de piloto, e
podemos confirmá-la na carta, dispondo mesmo do sítio onde o
recolheram após o naufrágio... Não pode tratar-se de Hierro, nem de
Paris nem de Greenwich.
— Claro que não — ela indicava a escala na parte superior de uma
das cartas. — A longitude é relativa a Cádis, sem a menor dúvida:
com ela tudo coincide. O meridiano zero da nossa busca é o castelo
dos guardas-marinhas, já o era em 1767 e continuou a sê-lo até 1798.
Longitude antiga de Cádis ao naufrágio: 4 graus 51minutos este.
Longitude actual, uma vez corrigida: 5graus 12minutos Este.
Correspondência com Greenwich: 1graus 21minutos oeste. Nenhum
outro meridiano permite situar o Dei Gloria no Urrutia e nas cartas
modernas de uma forma tão perfeita.
— Tudo isso está muito bem. De uma forma perfeita, dizes. Mas
falta-nos o mais importante: o barco.
— Alguma coisa devemos ter feito mal.
— Isso é evidente. Agora diz-me o quê.
Ela tinha atirado o lápis para cima da mesa. Levantava-se, olhando
para a carta. Coy observou os seus pés descalços sobre as tábuas do
chão, as coxas longas e pintalgadas sob a camisola que se adaptava às
formas do peito. Voltou a acariciar-lhe o pescoço e, desta vez, ela
encostou-se um pouco contra ele. O seu corpo firme, morno, cheirava
levemente a suor e a sal.
— Não sei — disse, pensativa. — Mas se há um erro, cometemo-lo
nós. Tu e eu... Se amanhã terminarmos a busca sem resultados, será
preciso começar de novo.
— Como?
— Não sei. Pela aplicação das correcções cartográficas, suponho.
Um erro de meio minuto significa quase meia milha. E embora as
tabelas de Perona sejam bastante exactas, os nossos cálculos podem,
em vez disso, não o ser. Bastaria uma pequena imprecisão na latitude
e na longitude do ajudante de piloto; dez segundos ou algumas
décimas de minuto inestimáveis com os sistemas de posicionamento
da altura, mas decisivas quando transferimos tudo para a carta...
Talvez o bergantim esteja uma milha mais a sul, ou mais a este. Talvez
nos tenhamos enganado ao reduzir tanto a área de busca.
Coy suspirou o mais fundo que pôde. Aquilo era razoável, mas
significava começar de novo. Em todo o caso, também significava
continuar junto dela. Rodeou-lhe a cintura com os braços. Ela voltara-
se para ele e olhava-o de muito perto, inquisitiva, com a boca
entreaberta. Tem medo, compreendeu ele, resistindo à tentação de
beijá-la. Tem medo que o Piloto e eu digamos basta.
— Não dispomos de uma eternidade — disse. — O tempo pode
piorar novamente... Até agora tivemos sorte com a guarda civil, mas
podem começar a aborrecer-nos um dia destes. Perguntas e mais
perguntas. E depois, Nino Palermo e a sua gente — apontou para o
Piloto, que levantava a mesa para colocar a toalha, fingindo não estar
a ouvir a conversa. — .. .Também é preciso pagar-lhe.
— Não me angusties — libertara-se devagar, com suavidade, das
mãos que lhe enlaçavam a cintura. — Preciso de pensar, Coy. Preciso
de pensar.
Sorria um pouco, distante, embaraçada, como se pretendesse
dulcificar o gesto. De repente voltava a ficar a milhas de distância, e
Coy sentiu que uma tristeza escura lhe escorregava pelas veias.

O vazio dos olhos azul-marinhos intensificou-se quando estes


voltaram à porta aberta sobre o mar.
— E, no entanto, está aí, nalgum lado — murmurou ela. Apoiava-
se à porta com ambas as mãos, inclinada para fora, de costas para Coy.
Este passou uma mão pela cara mal barbeada, apalpando a sua
própria desolação. De repente, ela parecia novamente isolada,
sozinha, egoísta. Voltava para a nuvem de onde todos estavam
excluídos, e ele nada podia fazer para mudar as coisas.
— Sei que está lá em baixo, perto — acrescentou Tânger em voz
muito baixa. — A minha espera.
Coy não disse nada. Sentia uma raiva surda, impotente. A de um
animal debatendo-se numa armadilha. E soube que passaria aquela
noite acordado na escuridão, junto ao muro intransponível de umas
costas silenciosas.
E é agora que eu estou prestes a aparecer nesta história, embora
brevemente. Ou que, para sermos mais exactos, nos aproximamos da
parte mais ou menos decisiva que eu tive na resolução — para a
designar de alguma forma — do enigma sobre o naufrágio do Dei
Gloria. Na realidade, como talvez algum leitor perspicaz tenha
reparado, fui eu próprio quem esteve, durante todo este tempo, a
contar-vos tudo isto, o capitão Marlowe do romance, se admitirem a
comparação. Com a reserva de que, até agora, não achei necessário
sair da cómoda posição que utilizei, quase sempre, na terceira pessoa.
São, dizem, as regras da arte. Mas alguém referiu uma vez que os
relatos, tal como os enigmas e a própria vida, são sobrescritos
fechados que contêm outros sobrescritos fechados no seu interior.
Além disso, a história do barco perdido, de Coy, o marinheiro
desterrado do mar, e de Tânger, a mulher que o devolveu a ele,
seduziu-me desde o momento em que os conheci. Já quase não
acontecem, que eu saiba, histórias como esta. E muito menos são
aqueles que as contam, mesmo enfeitando-as um pouco, tal como os
antigos cartógrafos decoravam as zonas brancas ainda inexploradas. E
talvez não as contem, porque já não existem caramanchões rodeados
de buganvílias onde escurece devagar, enquanto empregados malaios
servem genebra — Bombaym azul-safira, naturalmente e numa
cadeira de baloiço um velho capitão desfia a sua história envolto no
fumo do seu cachimbo. Há muito tempo que os caramanchões, os
empregados malaios, as cadeiras de baloiço e mesmo a genebra azul
são propriedade dos operadores turísticos. Além disso, não é
permitido fumar, nem cachimbo nem qualquer outra coisa. É difícil,
portanto, fugir à tentação de brincar às velhas histórias, contadas
como sempre se contaram. De modo que, retomando o assunto,
chegou o momento de abrirmos o penúltimo embrulho: aquele que
me traz, modestamente, para primeiro plano. Sem essa voz narrativa,
compreendam-no, não haveria aroma clássico. Deste modo diremos
apenas, em jeito de prelúdio imediato, que o veleiro que naquela tarde
atravessou a entrada do porto de Cartagena era um barco derrotado.
Como se, em vez de regressar de uma viagem de apenas algumas
milhas a sudoeste, voltasse tosquiado, depois de ir buscar lã, do
encontro real com um corsário que o tivesse despojado de ilusões. Na
mesa das cartas, a quadrícula sobre a carta náutica 4631 estava cheia
de cruzinhas inúteis, tal como um cartão de bingo usado,
decepcionante e imprestável. Durante aquela vinda, falou-se pouco a
bordo do Carpanta. Os seus tripulantes ferraram em silêncio as velas,
pairando diante dos esqueletos oxidados do Cemitério dos Barcos
Sem Nome e depois dirigiram-se a motor para um dos molhes do
porto de recreio. Desceram juntos a terra, balançando pela falta de
hábito de pisarem terra firme, passaram junto ao Felix von Luckner, o
porta-contentores belga da Zeeland Ship, que se preparava para largar
do molhe comercial, e começaram pelo Valência e pelo Taibilla,
continuaram com o Gran Bar, o bar Sol e a Taberna del Macho, e
acabaram a via-sacra três horas mais tarde em La Obrera, uma
pequena tasca portuária situada num ângulo atrás da antiga câmara
municipal. Naquela noite, recordar-se-ia Coy mais tarde, pareciam
três camaradas, três marinheiros que desciam a terra, depois de uma
longa e azarada viagem. E beberam até se lhes turvar a vista: um e
mais um e mais outro ainda, que tem de ser, o penúltimo, em
uníssono e sem complexos. O álcool distanciava as coisas, as palavras
e os gestos. De modo que Coy, consciente disso, assistia ao serão,
incluindo ao seu próprio espectáculo, com uma curiosidade perversa
que era simultaneamente atónita e culpada. Aquela também foi a
primeira e a última vez que viu Tânger beber bastante, e fazê-lo de
uma forma deliberada, intensa. Sorria como se, de repente, o Dei
Gloria fosse um pesadelo deixado para trás, e apoiava a cabeça no
ombro de Coy. Bebeu o mesmo que ele, genebra azul com gelo e um
pouco de água tónica, enquanto o Piloto os acompanhava com
valentes pancadas de cognac Fundador moderadas com copos de
cerveja. O Piloto contava histórias curtas e incoerentes de portos e de
barcos, com aquele ar sério e a voz muito lenta e cuidadosa que punha
quando o álcool lhe tornava a língua insegura, e semicerrava os olhos
que brilhavam divertidos, pícaros, amistosos. Às vezes, Tânger ria-se
e beijava-o, e o Piloto, encavacado, sempre tranquilo, baixava um
pouco a cabeça, ou olhava para Coy e sorria novamente, com os
cotovelos apoiados na desengonçada mesa de fórmica. Parecia estar
bem, e Coy também: acariciava a cintura tensa de Tânger, a curva
esbelta das suas costas, sentindo o corpo dela encostado ao seu, os
lábios dele na orelha e no pescoço dela. Tudo poderia ter acabado ali,
e não era um mau final para um fracasso. Porque tudo era grotesco e
lógico ao mesmo tempo, concluiu. Não tinham encontrado o
bergantim e, no entanto, era a primeira vez que os três se riam juntos
sinceramente, sem problemas, soltos e ruidosos. Aquilo parecia
exactamente uma libertação. E com esse estado de espírito beberam o
tempo todo como se interpretassem papéis sobre si próprios,
conscientes do ritual que as circunstâncias exigiam.
— Pela tartaruga — disse Tânger.
Ergueu o copo, tocando no de Coy, e esvaziou o que restava de um
gole, com o gelo arrefecendo-lhe os lábios que depois pousou
longamente nos dele. Tinham-na avistado a caminho de Cartagena, à
tarde, uma milha a sul da Islã de Las Palomas: um chapinhar na água,
ao longe. Tânger perguntou o que era aquilo e Coy deu uma vista de
olhos com os binóculos: uma tartaruga-marinha debatendo-se numa
rede de pesca. Tinham aproado na sua direcção, observando os
esforços do animal para tentar libertar-se. A rede envolvia a carapaça
e as patas ensanguentadas, estrangulando a cabeça que se esforçava
por manter-se fora de água, à beira da asfixia. Era raro encontrar
tartarugas naquelas águas e a sua própria situação revelava bem
porquê. A rede era uma daquelas intermináveis, submersas por todo o
Mediterrâneo: centenas e centenas de metros suportados por bidões
de plástico em jeito de flutuadores, labirintos mortais onde caía
qualquer animal vivo. A tartaruga nunca conseguiria libertar-se, as
forças faltavam-lhe e crispavam-se-lhe, agonizantes, as pálpebras
enrugadas sobre os seus olhos esbugalhados. Mesmo que se libertasse
da rede, o seu esgotamento e as suas feridas sentenciavam-lhe a
morte. Mas para Coy era indiferente. Antes que alguém dissesse o que
quer que fosse, atirara-se ao mar com a faca do Piloto na mão, cego de
raiva, e cortara com rasgões ferozes a rede em volta do animal.
Rasgava a malha com fúria, como se estivesse diante de um inimigo
que odiasse com toda a sua alma. Aspirava e mergulhava para cortar
mais abaixo, a meio da água que o sangue tornava rosada e, ao
emergir, via muito ao perto um olho desorbitado do animal, olhando-
o fixamente. Cortou o mais que pôde, rugindo de ira ao tirar a cabeça
para fora, a fim de respirar, antes de mergulhar de novo e destruir a
rede o mais possível. E mesmo depois da tartaruga ficar finalmente
livre e deixar-se ir à deriva, devagar, agitando debilmente as
barbatanas, continuou a cortar malhas até o braço deixar de
responder-lhe e não aguentar mais. Então nadou até ao Carpanta,
depois de dar uma última vista de olhos à tartaruga, cujo olho
agonizante continuava a olhar para ele enquanto se afastava. Não teria
muitas oportunidades, exausta e com aquele sangue que mais cedo ou
mais tarde atrairia alguma tintureira voraz. Mas, pelo menos, seria um
final no mar alto, de acordo com o seu mundo e a sua espécie, e não
uma morte miserável, estrangulada entre uma meada de cordas
trançadas pela mão do homem.
Em La Obrera pediram mais genebra, mais cognac e mais cerveja, e
Tânger continuava a encostar a cabeça no ombro de Coy. Ciciava em
voz baixa uma canção e de vez em quando interrompia, erguia o rosto
e ele procurava os lábios dela, frios do gelo e perfumados da genebra,
para os aquecer com os seus. Ninguém mencionava o Dei Gloria e
tudo parecia de acordo com os cânones, com o que era exigido pelas
circunstâncias e pelas personagens que eles, excepto talvez o Piloto —
ou talvez este também, inconscientemente —, interpretavam naquela
versão actualizada do velho assunto. Tinham vivido essa cena cem
vezes antes, e era tranquilizador perder a partida em tempos em que
os homens eram educados para verem esfumar-se certo tipo de êxitos.
No balcão, diante do taberneiro que Coy recordava ali desde sempre
com o seu avental e a sua beata na boca, bêbados de nariz vermelho,
clientes habituais de braços magros e tatuados esvaziavam copos de
vinho e taças de cognac voltando-se de vez em quando para a mesa
deles, sorrindo-lhes com cumplicidade. Eram velhos conhecidos do
Piloto e, de quando em quando, o taberneiro servia uma rodada por
conta dos três da mesa. À tua saúde, Piloto, e à companhia. À tua,
Ginés. À tua, Gramola. À tua, Jaqueta. Tudo estava perfeito; Coy
sentia-se em paz e recreava-se com a sua própria personagem e só
faltava, lamentou, o piano. Com Lauren Bacall olhando de soslaio
enquanto cantava com aquela voz rouca, um pouco velada, que na
versão original com legendas se parecia à de Tânger. Ou vice-versa.
Depois, chegados a um certo ponto, o álcool encarregar-se-ia de pintar
as imagens a preto e branco. Porque depois de tantos romances, tantos
filmes e tantas canções, já nem sequer havia bêbados inocentes. E Coy
perguntou a si próprio, invejando-o, o que deveria sentir o homem
que pela primeira vez saiu à caça de uma baleia, de um tesouro ou de
uma mulher, sem antes o ter lido em livro nenhum.
Despediram-se na muralha. Tinham deixado o barco limpo e
ancorado e o Piloto ia passar essa noite na sua casa do bairro de
pescadores de Santa Lucía. Ficaram a vê-lo afastar-se com passo
inseguro entre as palmeiras e as grandes magnólias e depois olharam
para baixo, para o porto, onde para lá do clube naval e do Restaurante
Maré Nostrum, o Felix von Luckner largava amarras com toda a
coberta iluminada e com as suas luzes reflectindo-se na água escura
do molhe. Tinha soltado o lançante de popa e Coy repetiu
mentalmente as ordens que o piloto estaria a dar, de uma das asas da
ponte, nesse momento. Leme todo a estibordo. Devagar a vante. Pára
a máquina. Leme a meio. A ré meia força. Larguem espias de proa.
Tânger estava ao seu lado, observando também a manobra do barco, e
de repente disse quero tomar um duche, Coy. Quero despir-me e
tomar um duche bem quente, com tudo cheio de vapor como se fosse
névoa no mar alto. E quero que tu estejas entre essa névoa e que não
me fales de barcos, nem de naufrágios, nem de nada. Esta noite bebi
tanto que só quero abraçar um herói rude e silencioso, alguém que
regresse de Tróia e cuja pele e cuja boca saibam a fumo de cidades
queimadas e a sal. Disse isto e ficou a olhar da forma que olhava às
vezes, calada, muito séria e atenta, como se espreitasse alguma coisa
nele. Olhou-o dessa forma, com o ferro azulado dos seus olhos que a
genebra diluía em azul-marinho muito brilhante, quase líquido. E
entreabria a boca como se o gelo de todos os copos bebidos a tivesse
arrefecido tanto que precisasse da boca de Coy durante horas para
aquecê-la. Então, ele esfregou o nariz e sorriu como costumava fazer,
com aquela expressão tímida que lhe infantilizava o rosto e suavizava
os seus traços duros, o seu nariz demasiado grande e as feições toscas,
quase sempre mal barbeadas. Herói rude e silencioso, dissera ela.
Naquela ilha específica dos cavaleiros e dos escudeiros, nenhum deles
pronunciara as palavras mágicas. Apenas, mentir-te-ei e trair-te-ei.
Mas mesmo nesse contexto de mentir ou de trair, ninguém dissera
ainda: amo-te. Embora nesse preciso instante, com o mundo oscilante
em volta e o álcool deslizando pelas veias a cada batimento, ele esteve
prestes a ser vulgar e a fazê-lo. Tinha chegado mesmo a abrir a boca
para pronunciar as palavras indizíveis. Mas ela, como se o
pressentisse, colocou os seus dedos sobre os lábios de Coy. Fê-lo
aproximando-se muito, o azul líquido dos seus olhos, cintilante e
escuro ao mesmo tempo, e ele voltou a sorrir, resignado, beijando
aqueles dedos. Depois respirou fundo, como se fosse mergulhar no
mar, e olhou em volta durante cinco segundos, antes de lhe dar a mão
e atravessar a rua em linha recta até à porta da Pensão Cartago, de
uma estrela, quartos com casa de banho e vista para o porto. Tarifas
especiais para oficiais da marinha mercante.
Naquela noite, entre azulejos brancos e espesso vapor de água,
choveu nas margens de Tróia, enquanto as naves zarpavam. Era, com
efeito, uma bruma tépida, cinzenta ou feita de cinzentos, onde todas
as cores ficavam subordinadas a essa chuva mansa caindo sobre uma
praia deserta, na qual podiam ver-se vestígios do desenlace: um
capacete de bronze esquecido, o fragmento de uma espada partida e
semienterrada na areia, cinzas que o vento trazia da cidade queimada,
invisível no cenário mas que se adivinhava próxima, ainda fumegante,
enquanto os últimos navios aqueus içavam as suas velas húmidas,
afastando-se ao longe. Era o nostos dos heróis homéricos: o regresso e
a solidão dos últimos guerreiros que regressavam a casa após a
batalha, para serem assassinados pelos amantes das suas mulheres ou
se perderem no mar, vítimas da cólera ou do capricho dos deuses. E
entre aquela névoa quente, o corpo nu de Tânger procurava o de Coy,
a água com sabão à altura das coxas, a pele pintalgada e limpa,
reluzente de humidade. Procurava-o com determinação e uma intensa
fixação do olhar, encurralando-o literalmente contra a borda da
banheira. E ali encostado, com a água quente na cintura e a chuva
cálida sobre a cabeça, escorrendo-lhe pela cara e pelos ombros, Coy
viu-a erguer-se devagar, elevar-se sobre ele e descer depois decidida,
lenta, milímetro a milímetro, sem lhe deixar outra saída senão a fuga
para a frente, entre as suas coxas profundas, o abraço intenso,
desesperado, na corda bamba da lucidez que desaparecia com a sua
entrega e com a sua derrota. Nunca, até essa noite, Coy se sentira
violado por mulher alguma. Nunca tão minuciosa e deliberadamente
posto à margem. Porque não sou eu, raciocinava com os últimos
vestígios daquele naufrágio onde o seu pensamento se desvanecia.
Não é a mim que ela abraça, nem é ninguém a quem possa atribuir-se
um rosto, uma voz, uma boca. Não foi por mim que noutras vezes
gemia longa e dolorosamente, nem é a mim que agora imagina. É o
herói rude, masculino e silencioso que antes reclamava com voz
rouca. O sonho que ela, que todas elas, trazem na pele e no ventre
desde que o mundo existe: aquele que colocou a semente nas suas
entranhas e depois embarcou rumo a Tróia em navios gregos. O
homem cuja sombra nem sequer os cínicos sacerdotes, os pálidos
poetas, os razoáveis homens da paz e da palavra, que espreitam junto
do tapete inacabado, conseguiram jamais apagar completamente.
Ainda era de noite quando Coy acordou e ela não estava ao seu
lado. Tinha sonhado com um buraco negro, o ventre de um cavalo de
madeira e com companheiros cobertos de bronze que deslizavam
silenciosos, de espada na mão, pelo coração de uma cidade
adormecida. Sentou-se, inquieto, para ver a silhueta de Tânger
recortada na penumbra da janela, sobre as luzes da muralha e do
porto. Fumava um cigarro. Estava de costas e não conseguiu vê-la,
mas sentia o cheiro do cigarro. Levantou-se, nu, e foi até ela. Tinha
vestido a camisa de Coy, sem abotoar, apesar do fresco da noite que
entrava pela janela aberta. Ao pescoço brilhava a corrente de prata
com a chapa de soldado.
— Julguei que estavas a dormir — disse ela, sem se voltar.
— Acordei e não te vi.
Tânger não disse mais nada e ele permaneceu imóvel, olhando-a.
Expelia o fumo muito devagar, depois de o reter cada vez que
inspirava. A brasa, ao avivar-se, iluminava de vermelho as suas unhas
roídas e rombas. Coy colocou-lhe uma mão no ombro e ela tocou-lhe
de uma forma ausente, distraída, antes de chupar novamente o
cigarro.
— O que terá acontecido à tartaruga? — perguntou passado um
bocado.
Coy encolheu os ombros:
— A esta hora já morreu.
— Se calhar não. Pode ter sobrevivido.
— Pode ser.
— Pode ser?... — observou-o por um instante, de soslaio. — Às
vezes há finais felizes, Coy.
— Claro. Às vezes. Reserva-me um.
Ficou novamente calada. Olhava outra vez para a zona da
muralha, para o buraco deixado no molhe pelo barco da Zeeland Ship.
— Já tens resposta para o problema do cavaleiro e do escudeiro? —
acabou por perguntar em voz muito baixa.
— Não há resposta para isso.
Ela riu-se baixinho, ou pareceu fazê-lo. Coy não tinha a certeza.
— Enganaste — disse. — Há sempre uma resposta para tudo.
— Então diz-me o que faremos agora.
Demorou a responder. Parecia tão longe dali como os despojos do
Dei Gloria. O cigarro consumira-se e ela inclinou-se para o apagar no
parapeito da janela, com muito cuidado, desfazendo a brasa até à
última partícula. Depois deixou-o cair para a rua.
— Fazer? — inclinava a cabeça para um lado, como se reflectisse
sobre essa palavra. — ...O que temos feito todo este tempo,
naturalmente. Continuar procurando.
— Onde?
— Outra vez em terra firme. Os barcos afundados nem sempre se
encontram no mar.
E foi assim que os vi aparecer no dia seguinte no meu gabinete da
Universidade de Múrcia. Estava um daqueles dias muito luminosos
que costumamos ter por aqui, com grandes paralelogramos de sol
dourando as pedras do claustro entre os reflexos dos vidros e da água
das fontes. Tinha posto os óculos de sol para ir ao bar da esquina
tomar um café e, no regresso, em mangas de camisa e casaco ao
ombro, encontrei Tânger Soto à minha espera na porta: loura, bonita,
sardenta, com uma saia comprida, azul. Inicialmente tomei-a por uma
aluna, dessas que por estas épocas me vêm pedir ajuda na preparação
da tese. Depois reparei no tipo que estava com ela, perto mas
mantendo-se um pouco à distância. Suponho que sabem a que me
refiro se, por esta altura, conhecem um pouco Coy. Então ela, que
trazia uma carteira de cabedal ao ombro e um cilindro de cartão
debaixo do braço, apresentou-se e tirou da carteira um exemplar do
meu livro Aplicações de Cartografia Histórica. E eu pude identificá-la
como a jovem de que me falara algumas vezes a minha querida amiga
e colega Luisa Martín-Merás, chefe de cartografia do Museu Naval de
Madrid, descrevendo-a como esperta, introvertida e eficiente.
Lembrei-me até de que tínhamos mantido algumas conversas
telefónicas sobre correcções no Atlas de Urrutia e sobre documentos
históricos arquivados na universidade.
Convidei-os a entrar, ignorando a expressão carrancuda dos
alunos que esperavam no corredor. Era época de exames e os
trabalhos por corrigir amontoavam-se em cima da minha mesa, no
chiqueiro que tenho por gabinete. Retirei os livros das cadeiras, para
se poderem sentar, e ouvi a sua história. Para ser mais preciso, ouvi-a
a ela, que foi quem falou durante quase todo o tempo e também ouvi a
parte da história que naquele momento ela achou por bem contar-me.
Vinham de Cartagena, a apenas meia hora de carro pela auto-estrada,
e o assunto podia resumir-se a um barco afundado, uma
documentação que possibilitava a sua localização, um infrutífero
tactear prévio e as coordenadas exactas da latitude e da longitude que,
por alguma razão, estavam inexactas. O mesmo de sempre. Porque
devo dizer que estou habituado a consultas deste tipo. Embora, por
motivos pessoais, assine os meus trabalhos e os meus livros com o
mesmo nome e com o modesto título que figura no meu cartão-de-
visita sob o anagrama, familiar ao meu ofício, do T dentro do O —
Néstor Perona, mestre cartógrafo —, lecciono a cátedra de Cartografia
da Universidade de Múrcia há já muito tempo, as minhas publicações
têm algum significado no mundo científico e, com alguma
assiduidade, tenho de responder a dúvidas e problemas colocados por
instituições ou particulares. Não deixa de ser curioso que, num tempo
em que a cartografia sofreu a maior revolução da sua história (com a
fotografia aérea, os mapas por satélite e a aplicação da electrónica e da
informática), afastando-se dos rudimentares mapas antigos traçados
por exploradores e navegantes, os estudiosos se vejam na necessidade,
cada vez maior, de que alguém mantenha o frágil cordão umbilical
que une a modernidade a épocas pretéritas da ciência, que no fim de
contas não é mais que o mito provado. O problema existia já nos
séculos XV e XVI, quando os então evoluídos cartógrafos flamengos
tiveram de se esforçar para conciliarem as indicações contraditórias
dos autores da Antiguidade com as novas descobertas dos
navegadores portugueses e espanhóis, e repetiu-se nas gerações
sucessivas. Dessa forma, agora, sem gente como eu — desculparão
esta pequena vaidade, talvez legítima — o mundo antigo perder-se-ia
de vista, e muitas coisas deixariam de fazer sentido à luz fria do neón
da ciência moderna. Por isso, cada vez que alguém precisa de olhar
para trás e entender o que vê, vem ter comigo. Com os clássicos.
Naturalmente, recebo consultas de historiadores, bibliotecários,
arqueólogos, hidrógrafos e também caçadores de naufrágios e de
tesouros, em geral. Talvez se lembrem da descoberta do galeão São
Rico em frente a Cozumel, da procura da Arca de Noé no monte
Ararat, ou daquela famosa reportagem para a televisão do National
Geographic sobre a localização do Virgen de La Caridad diante de
Santoíía, no golfo da Biscaia, e do resgate de dezoito dos seus
quarenta canhões de bronze: esses três episódios — apesar do da arca
ter terminado num fracasso grotesco — foram possíveis graças às
tabelas de correcção desenvolvidas pela minha equipa de
colaboradores da Universidade de Múrcia. E até outro velho
conhecido desta história, Nino Palermo, me deu a determinada altura
a honra duvidosa de algumas consultas, embora depois as coisas não
fossem mais longe, quando andava atrás da pista, creio, de oitenta mil
ducados que se afundaram com uma galera espanhola em 1562, diante
da torre de Vélez Málaga. Enfim... Para mais pormenores, remeto para
as minhas publicações na revista Cartographica e para vários dos
meus livros: as já citadas Aplicações, por exemplo; ou o estudo das
loxodrómias — loxos e dromos, vocês já sabem — em Os Enigmas da
Projecção Mercator. Também podem consultar o meu trabalho sobre
os 21 mapas do atlas inacabado de Pedro de Esquivel e Diego de
Guevara, ou as biografias do padre Ricci (Li Mateu: O Ptolomeu da
China) e de Tofino (O Hidrógrafo do Rei), o Catálogo Hidrográfico
Antigo que fiz em colaboração com Luisa Martín-Merás e Belén
Rivera, ou as monografias Cartógrafos Jesuítas no Mar e Cartógrafos
Jesuítas no Oriente. Escrevi tudo isto num gabinete, naturalmente.
Certas coisas, como os sonhos juvenis, devem visitar-se pessoalmente
apenas quando se é jovem. Na maturidade, os postais e o vídeo
impõem-se aos sentidos, e deparamo-nos em Veneza não com o
esplendor, mas com a humidade.
Mas vamos ao assunto. E este é que, naquela manhã, no gabinete
da universidade, os meus dois visitantes expuseram o seu problema.
Ou melhor, expô-lo ela, porque ele, sentado entre as pilhas de livros
que eu afastara para lhe dar lugar, ouvia discretamente. E devo
confessar que aquele marinheiro silencioso — ainda demorei um
bocado a conhecer a sua profissão — me pareceu simpático, talvez
pela sua forma de ouvir mantendo-se à margem, ou pelo seu aspecto
tosco mas boa pessoa, com o olhar franco que costumava manter no
nosso, pela sua forma de coçar o nariz quando parecia desconcertado
ou perplexo, pelo sorriso tímido, as calças de ganga e os ténis, os
braços fortes sob a camisa branca com as mangas arregaçadas até ao
cotovelo. Era desse tipo de homens, nos quais, com razão ou sem ela,
pressentimos poder confiar. E o papel dele em toda esta peripécia, a
sua intervenção no nó e no desenlace é a razão principal que me leva a
contá-la. Na minha juventude eu também li certos livros. Além disso,
costumo recorrer à extrema cortesia — cada qual tem os seus métodos
— como forma superior de desprezo para com os meus semelhantes.
E a ciência a que me dedico é uma forma tão eficaz como qualquer
outra de manter à distância um mundo povoado de gente que no
fundo me irrita, e entre quem prefiro escolher sem o menor sentido de
equidade, consoante as minhas simpatias ou antipatias. Como diria o
próprio Coy, cada qual se organiza como pode. De modo que, por
alguma estranha razão chamem-lhe solidariedade ou afinidade —
sinto necessidade de justificar este marinheiro desterrado do mar, e
talvez seja esse o motivo de lhes narrar a sua história. No fim de
contas, relatar a sua aventura junto de Tânger Soto parece-se um
pouco com a projecção cartográfica mercatoriana: para representar
plana uma esfera, às vezes é preciso forçar um pouco as superfícies
nas altas latitudes.
O caso é que naquela manhã, no meu gabinete, Tânger Soto me
pôs ao corrente dos traços gerais do assunto, para passar depois a
colocar o problema: 37° 32minutos norte e 4° 51minutos este numa
carta esférica de Urrutia. Um barco que se afundara aí no último terço
do século XVIII e isso correspondia, feitas as correcções adequadas
com a ajuda das minhas próprias tabelas cartográficas, a uma posição
moderna de 37° 32minutos norte e 1° 21minutos oeste. A pergunta da
equipa visitante consistia em se estaria correcta essa transformação. E
eu, depois de avaliar um momento, disse que, se as tabelas tivessem
sido bem aplicadas, possivelmente estaria.
— No entanto — disse ela — o barco não está aí.
Olhei-a com alguma reserva. Neste tipo de coisas sempre
desconfiei das afirmações inapeláveis e das mulheres, bonitas ou feias,
armadas>em espertas. Foram muitas as que passaram pelas minhas
aulas.
— Tem a certeza?... Imagino que um barco afundado não anda
delatando a sua posição aos gritos.
— Eu sei. Mas investigámos a fundo, mesmo no terreno.
Ou seja, que tinham molhado os pés, deduzi. Tentava situar o casal
nalguma das espécies catalogadas por mim, mas não era fácil.
Arqueólogos amadores, historiadores ávidos, caçadores de tesouros.
De trás da minha secretária, sob a reprodução da Tabula Itinerária de
Peutinger que tenho emoldurada na parede — oferta dos meus alunos
quando obtive a cátedra —, dediquei-me a estudá-los com atenção.
Fisicamente, ela encaixava nas duas primeiras categorias, e ele na
terceira. Partindo do princípio de que os arqueólogos, os historiadores
ávidos e os caçadores de tesouros têm um aspecto definido.
— Então não sei — disse. — Só me ocorre o mais elementar: os
dados originais estão errados. A latitude e a longitude são falsas.
— Isso é improvável — ela abanava a cabeça, segura, fazendo o
cabelo louro, que reparei estar cortado numa curiosa assimetria, roçar-
lhe o queixo. — Há razões documentais sólidas. Nesse sentido, só
seria aceitável uma relativa margem de erro, o que nos levaria a um
sector de busca mais amplo... Mas antes queremos descartar qualquer
outra possibilidade.
Achei graça ao tom de voz da dama. Tão competente e seguro.
Formal.
— Por exemplo?
— Uma falha da nossa parte ao aplicarmos as suas tabelas...
Gostaria de lhe pedir para rever os cálculos.
Voltei a olhar para ela por alguns instantes e depois dei uma
olhadela ao outro, que nos ouvia muito quieto, muito calado e muito
bom rapaz na sua cadeira, com as manápulas apoiadas nas pernas. A
minha curiosidade era limitada. Já ouvira muitas histórias de buscas
como aquela. Mas os alunos que esperavam lá fora acabrunhavam-
me, o dia estava demasiado bonito para corrigir exames, ela era
insolitamente atraente — sem ser uma beleza por causa daquele nariz
visto de lado, ou talvez justamente por isso — e ele parecia-me
simpático. Porquoi pas? Disse para comigo tal como o comandante
Charcot. Aquilo não ia roubar-me muito tempo, de modo que
concordei. O tubo de cartão continha algumas cartas enroladas, que
Tânger Soto abriu em cima da minha mesa. Entre elas reconheci uma
reprodução em tamanho natural de uma carta esférica de Urrutia.
Conhecia aquela carta, evidentemente, e examinei-a com afecto.
Menos bonita que as de Tofifio, claro. Mas magnificamente gravada a
ponta seca em placas de cobre batido e polido e bastante precisa para
a sua época.
— Vejamos — disse. — Data do naufrágio?
— 1767. Costa sudeste espanhola. Posição por marcações a terra
quase simultâneas ao momento do naufrágio.
— Meridiano de Tenerife?
— Não. Cádis.
— Cádis — sorri um pouco, animador, enquanto procurava a
escala de longitudes correspondente na parte superior da carta. —
Adoro esse meridiano. Refiro-me ao velho, naturalmente. Tem o
aroma tradicional daquilo que se perdeu, como a Islã de Hierro do
velho Ptolomeu... Já sabem ao que me refiro.
Coloquei os óculos para ver ao perto e comecei a trabalhar sem que
eles me dissessem se o sabiam ou não. A latitude foi o que primeiro
estabeleci sem dificuldade: nisso era bastante exacta. Na realidade, há
três mil anos que os navegadores fenícios já sabiam que a altura do Sol
na meridiana, ou a das estrelas próximas ao Pólo Norte sobre o
horizonte de um lugar, mede a latitude geográfica do mesmo. Agora
até uma criança poderia fazê-lo. Uma criança com noções de
cosmografia, claro. Também não é qualquer criança.
— Têm sorte por este episódio ter acontecido em 1767 — comentei.
— ...Apenas cem anos antes, a latitude poderia obter-se quase com a
mesma facilidade, mas a longitude teria deixado muito a desejar. Em
1583, Mattteo Ricci, que era um dos grandes cartógrafos da época,
cometia erros de até cinco graus ao calcular longitudes relativamente
ao meridiano de Tenerife... O globo de Ptolomeu demorou mil e
quinhentos anos a desinchar e fê-lo pouco a pouco... Suponho que
conhecem a famosa frase de Luís XIV, quando Picard e La Hire
deslocaram o mapa de França um grau e meio: «Os meus cartógrafos
tiraram-me mais terra que os meus inimigos.»
Ri-me sozinho da anedota batida, e Tânger teve a cortesia de me
acompanhar com um sorriso. É deveras interessante, disse para
comigo, observando-a pormenorizadamente. Estive algum tempo a
tentar situá-la com mais precisão, até ter decidido desistir. A mulher é
o único ser que não pode definir-se com duas orações consecutivas.
— De qualquer forma — continuei — Urrutia aperfeiçoou muito,
embora tenha sido necessário esperar por Tofirlo para que, com o fim
do século, a cartografia hidrográfica espanhola se ajustasse à
realidade... De qualquer forma... Vamos lá ver. Bom. Considero que a
sua latitude estimada é absolutamente correcta, minha querida. Está a
ver?... Trinta e dois minutos norte. Segundo parece, tanto o cartógrafo
como o cavalheiro que tirou a latitude no seu mapa afinaram bem.
Disse cavalheiro e não dama porque, apesar de não ser verdade,
gosto de armar-me em repugnante machista diante das minhas
alunas. Também queria comprovar se Tânger Soto era das que têm
tempo livre para se ofenderem com este tipo de asneiras. Mas não
parecia ofendida. Limitou-se a voltar-se um pouco na direcção do seu
acompanhante.
— Esse cavalheiro é este marinheiro.
Olhei para Coy por cima dos meus óculos com um interesse
renovado.
— Marinha mercante?... Muito gosto. Os seus cálculos e os meus
são idênticos, em princípio.
Não disse nada. Sorriu vagamente, pouco à vontade, e coçou o
nariz algumas vezes. Inclinada sobre a minha mesa, Tânger apontava
a escala superior na carta esférica.
— Estabelecer a longitude — disse — colocou-nos mais problemas.
— Lógico — encostei-me para trás na cadeira, professoral. — Até
os relógios marítimos de Harrison e Berthoud se terem aperfeiçoado, e
isso foi muito depois de meados do século XVIII, estabelecer a
longitude foi o grande problema dos navegadores. A latitude era dada
pelo Sol ou pelas estrelas, mas a longitude, que agora qualquer relógio
de pulso barato nos facilita, só podia calcular-se através do método
impreciso das distâncias lunares. Quando Urrutia levantou as suas
cartas, situar-se no mar relativamente a um meridiano ainda não
estava totalmente resolvido. Havia relógios de pêndulo e sextantes,
mas faltava o instrumento fiável: um cronometro seguro que
calculasse esses quinze graus contidos em cada hora de diferença
entre a hora local e a do primeiro meridiano... Por isso, os erros de
longitude eram mais apreciáveis que os de latitude. Até 1700, vejam
bem, não se estabeleceu a verdadeira longitude do Mediterrâneo:
vinte graus a menos dos sessenta e dois que lhe atribuiu Ptolomeu.
Concedi a mim próprio uma pausa para observá-la. Não parecia,
de todo, impressionada. Coy também não. Se calhar já sabiam tudo
isto que lhes estava a contar. Mas eu era um mestre cartógrafo, e eles
tinham vindo ver-me ao meu gabinete por sua própria vontade. Cada
qual tem a sua personagem e interpreta-a o melhor que pode. Se
aqueles dois queriam ajuda, teriam de pagar portagem. Ao meu ego.
— Parece mentira, não é verdade? — prossegui no mesmo tom de
voz, permitindo-me acrescentar um toque terno. — ...Quando vejo um
miúdo pintando com lápis de cor o seu caderno de geografia, penso
que, desde sempre, calculando triangulações, distâncias lunares e
eclipses de planetas, os homens estudaram a terra e as suas costas,
observando cada acidente do terreno, sondando metro a metro, para
desenhar mapas do que viam. «Sendo este caminho tão dificultoso,
escrevia Martin Cortês, seria difícil dá-lo a entender com palavras ou
escrevê-lo com a pena. A melhor explicação que para isto descobriram
os engenhos dos homens é dá-lo pintado numa carta»... Dessa forma
se dominou a natureza, se tornaram possíveis as explorações e as
viagens... Com o seu talento e com as ajudas rudimentares da agulha
magnética, do astrolábio, do quadrante, da balestilha e das tabelas
afonsinas, o homem começou a desenhar as costas, marcou nas cartas
os perigos, colocou faróis e torres nos sítios adequados — apontei
para a Tabula Itinerária sobre a minha cabeça. Não era o paradigma
da exactidão, com todas aquelas calçadas romanas e o rigor geográfico
sacrificado à eficácia militar e administrativa, mas era o gesto que
contava. — ...E fê-lo com tanta imaginação e eficácia, apesar das
imprecisões lógicas, que ainda hoje os satélites mostram paisagens
que foram descritas quase na perfeição por homens que as exploraram
e navegaram há centenas de anos... Homens que, sobretudo, falaram,
observaram e pensaram... Conhecem a história de Eratóstenes?
Contei-a, evidentemente. De fio a pavio e sem poupar nos
pormenores. Um rapaz esperto, esse cireneu. Director da biblioteca de
Alexandria, para terem uma ideia. Havia um poço em Assuão a cujo
fundo só chegavam os raios de sol de 20 a 22 de Junho. Isso situava o
poço no Trópico de Câncer e, por outro lado, a cidade de Alexandria
situava-se a norte desse ponto, à distância conhecida de 5000 estádios.
De modo que Eratóstenes mediu o ângulo do Sol ao meio-dia de 21 de
Junho e deduziu que o arco medido, uns 7o, era a quinquagésima
parte do meridiano da Terra. Calculou para o meridiano 250 000
estádios, ou seja, uns 45 000 quilómetros. Têm de reconhecer que não
estava nada mal, não é verdade? Considerando que a medida real da
circunferência terrestre é de 40 000 quilómetros. Menos de catorze por
cento de erro, uma grande precisão relativa, tratando-se de um fulano
que viveu dois séculos antes de Cristo.
— Por isso — concluí —, adoro o meu ofício.
Continuavam sem se mostrar impressionados, mas eu estava nas
minhas sete quintas. E é verdade que adoro o meu trabalho. Posto isto,
decidi continuar a ocupar-me com a consulta.
— Bem — disse, após os cálculos oportunos. — Os meus parabéns.
Aplicaram correctamente as minhas tabelas. Obtenho, tal como vocês,
uma longitude moderna de Io 21' a oeste de Greenwich...
— Então temos um problema sério — disse Tânger. — Porque aí
não há nada.
Olhei-a com uma expressão de pesar, novamente por cima dos
óculos que têm a tendência incomodativa de deslizarem para a ponta
do meu nariz. Observei o marinheiro de soslaio. Não parecia
incomodado pela forma como eu apoiava um cotovelo na mesa e
examinava a loura. Talvez a sua fosse uma simples relação
profissional de toma lá, dá cá. Concebi esperanças.
— Terão de rever então essa posição original no Urrutia, receio
bem. Ou ampliar, como você previa, a área de busca... O barco pode
ter derivado desde a última posição conhecida, ou ter navegado mais
um pouco antes de afundar... Um temporal?
— Combate — disse ela, concisa. — Com um corsário.
Que bonito e que clássico, pensei. E que poucas possibilidades de
acertar tinham aqueles dois. Pus uma cara de circunstância.
— Então — alvitrei com gravidade —, entre o estabelecimento da
posição e o local do naufrágio podiam ter acontecido muitas coisas... E
a bordo estariam demasiado ocupados para se porem a determinar a
altura do Sol ou marcações a terra. Creio que isso vos coloca numa
situação difícil.
Deviam estar conscientes disso antes de virem falar comigo,
porque as minhas palavras não pareceram inquietá-los mais do que já
estavam. Só ele se limitou a olhar para ela, como se estivesse pendente
de uma reacção que não se produziu. Tânger continuava a observar-
me como se olhasse para um médico que só tivesse desembuchado
metade do diagnóstico. Dei uma nova olhadela à carta à procura de
uma boa notícia. Ficará tetraplégico, mas poderá assobiar pasodobles,
ou pintar com os dedos de um pé. Alguma coisa do estilo.
— Suponho que não há dúvidas quanto às cartas utilizadas serem
as de Urrutia — comentei. — ...Qualquer outra poderia significar
alterações da posição teórica com a qual estamos a trabalhar.
— Nenhuma dúvida. — Perguntei a mim próprio, ouvindo-a se
aquela dama duvidaria alguma vez. — Há testemunhos directos dos
tripulantes.
— Tem a certeza de que se trata do meridiano de Cádis?
— Não pode ser nenhum outro. Paris, Greenwich, Ferrol,
Cartagena... Nenhum deles se adequa à área geral do naufrágio. Só
Cádis.
— O meridiano velho, imagino — sorriso profissional, o meu. De
acordo. — Não terão caído no erro, mais frequente do que se julga, de
confundi-lo com San Fernando.
— Naturalmente que não.
— Está bem. Cádis. Reflecti a sério.
— Dou por assente — disse passados alguns instantes — que você
me conta apenas o que acha conveniente contar-me, e compreendo-a.
Entendo esse tipo de circunstâncias. — Ela suportava o meu olhar com
um enorme sangue-frio. — ...No entanto, talvez possa confiar-me mais
alguma informação sobre o barco.
— Era um bergantim procedente da costa andaluza. Rumo
nordeste.
— Bandeira espanhola?
— Sim.
— Quem era o armador?
Vi que hesitava. E se tudo tivesse ficado por aí, eu não teria
continuado a perguntar e ter-me-ia despedido deles com toda essa
cortesia a que anteriormente já me referi. Não se pode vir espremer
um mestre cartógrafo a troco de uma cara bonita, e, ainda por cima,
esconder com uma mão o que parece mostrar-se com a outra. Ela deve
ter lido esse pensamento na minha cara, porque começou a abrir a
boca para falar. Mas foi Coy, da sua cadeira, quem pronunciou as
palavras adequadas: — Era um barco jesuíta.
Observei-o com afecto. Era um bom rapaz, aquele marinheiro.
Suponho que esse foi o momento preciso em que me conquistou para
a sua causa. Olhei para a mulher. Concordava com um leve sorriso,
enigmático, a meio caminho entre a desculpa e a cumplicidade. Só as
mulheres bonitas se atrevem a sorrir desta forma, depois de termos
estado prestes a apanhá-las numa mentira.
— Jesuíta — repeti.
Depois abanei a cabeça de cima para baixo algumas vezes,
saboreando a informação. Aquilo era bom. Era mesmo estupendo, e
uma pessoa, imagino, torna-se cartógrafo para poder gozar de
momentos como este. Demorando o meu tempo, contemplei com
muita atenção a carta aberta sobre a mesa, consciente do duplo olhar
fixo em mim. Contei mentalmente meio minuto.
— Convidem-me para almoçar — acabei por dizer ao chegar aos
trinta. — Acho que acabo de ganhar um bom vinho e uma excelente
refeição.
Levei-os à Pequena Taberna, um restaurante de cozinha huer-
tana1, que fica atrás do Arco de San Juan, perto do rio. Fi-lo,
divertindo-me com o lance, como os toureiros que não têm pressa, e
desfrutei da sua expectativa, doseando a coisa a conta-gotas: aperitivo,
uma garrafa de Marquês de Riscai grande reserva, mais do que
razoável, pisto2 murciano, sangue frito com cebola, verduras
grelhadas. Eles mal tocaram na comida, mas eu fiz as honras ao lugar
e à mesa.
— Esse barco — disse, uma vez decorrido o tempo adequado —
não pode ser encontrado nos 37° 32minutos de latitude e nos 1°
21minutos de longitude este de Cádis, pela simples razão de que
nunca aí esteve.
Pedi mais pisto. Estava delicioso e abria o apetite vê-lo sobre o
balcão, exposto em enormes alguidares de barro. Também abria o
apetite ver a cara que punham à medida que lhes desfiava a história.
— Os jesuítas tinham uma longa tradição cartográfica —
prossegui, molhando o pão no molho. — O próprio Urrutia contou
com a sua ajuda técnica para o levantamento das suas cartas
esféricas... Ao fim e ao cabo, a tradição científica e hidrográfica da
Igreja vem de longe: a primeira citação de um instrumento náutico
encontra-se nos Actos dos Apóstolos: «E deitando a sonda, acharam
vinte braças.»

*1. Cozinha huertana: a região de Múrcia é considerada a horta de


Espanha e a sua cozinha integra muitos legumes, hortaliças e vegetais. (N. da
T.) 2. Pisto: fritura de vários legumes, ovos, e outros alimentos que se queira
juntar. (N. da T.)

Aquele toque erudito não lhes fez muita mossa. Estavam


impacientes, claro. Ele nem pretendia escondê-lo, com as mãos
imóveis de cada lado do prato, olhando-me com cara de estar a
pensar: «quando será que este imbecil vai parar com os rodeios?» Ela
ouvia com uma calma aparente que me atrevo a qualificar de
profissional: valia para isso, sem dúvida. Não mostrava indícios de
nada que não fosse uma atenção extrema, como se cada uma das
minhas vaquida-des fosse ouro puro. Sabia manipular os homens.
Mais tarde, soube até que ponto.
— O caso — prossegui, entre duas dentadas e dois goles do grande
reserva —, é que alguns dos mais importantes cartógrafos
pertenceram à Companhia de Jesus: Ricci, Martini, o padre Four-nier,
autor da Hydrographie... Tinham os seus sistemas, as suas missões na
Ásia, as suas reduções americanas, as suas próprias rotas, os seus
feudos de todo o tipo. Os seus barcos, capitães e pilotos. Blasco Ibanez
descreveu-os como A Aranha Negra e, de certa forma, tinha razão.
Continuei com a refeição e com os pormenores, reservando o golpe
de efeito final. Os jesuítas, acrescentei, dispunham das suas escolas de
cosmografia, cartografia e náutica. Sabiam como eram impostantes os
conhecimentos geográficos exactos, e os seus religiosos, desde o
tempo de Inácio de Loiola, estavam encarregados de recolher, em
todas as viagens, dados úteis para a Companhia. Até o marquês de Ia
Ensenada — apontei com um espargo verde espetado no garfo — lhes
encomendou, no tempo de Felipe V, um mapa moderno e
pormenorizado de Espanha, que não se chegou a imprimir devido à
queda do ministro. Também falei da sua estreita relação com Jorge
Juan e António de Ulloa, os cavalheiros do Punto Fijo3 que mediram o
grau de meridiano no Peru. Em matéria científica, em suma, os
jesuítas meteram o nariz em todo o lado. Nos amigos e nos inimigos,
naturalmente. Por isso tomavam precauções. Eu próprio, no decurso
dos meus trabalhos, tinha 3 Cavalheiros do Punto Fijo: Jorge Juan e
António de Ulloa percorreram a cordilheira dos Andes à procura da
linha ideal que dividia o mundo em dois. Para as suas medições, um
deles tinha de ficar horas e dias inteiros, imóvel, no cume de um pico
enquanto o outro fazia os seus cálculos e medições no cume mais
próximo. Os índios da cordilheira, ao vê-los tão quietos durante tanto
tempo, passaram a chamá-los «Caballeros dei Punto Fijo». (TV. da T.)
tropeçado com documentos que às vezes foram difíceis e outras vezes
impossíveis de interpretar. Aqueles tipos tinham uma infra-estrutura
dedicada ao que hoje — sorri — chamaríamos contra-espionagem.
— Quer dizer que utilizavam códigos e linguagem cifrada?...
— Sim, minha querida. Esse vosso barco navegava dentro de um
sistema de códigos internos e secretos. Como todos os da Companhia,
ia pelo mundo com cartas que, tal como as de Urrutia e as outras,
indicavam escalas de meridianos e paralelos necessários à navegação:
Cádis, Tenerife, Paris, Greenwich — bebi um gole de vinho e
concordei satisfeito: o empregado acabava de abrir a segunda garrafa.
— ...Mas existe uma particularidade. Lembrem-se de que o meridiano
é um conceito relativo, que serve para nos situarmos num mapa que
imita a superfície da Terra mediante uma projecção esférica... Há
cento e oitenta meridianos que, em princípio, são arbitrários. O
primeiro, que outros chamam meridiano zero, pode passar por onde
quisermos, pois não há nem no céu nem na Terra sinal fixo que
obrigue a contar a longitude a partir daí. Dada a forma da Terra, todos
os meridianos estão aptos a serem considerados o principal e,
qualquer deles, pode receber tão citado e ilustre nome. Por isso, até se
ter adoptado Greenwich como referência universal, cada país teve o
seu — bebi outro gole de vinho e olhei para eles, limpando a boca com
o guardanapo. — ...Estão a seguir-me?
— Perfeitamente. — Os olhos de ferro escuro observavam-me com
uma fixação extraordinária e não pude deixar de admirar todo aquele
sangue-frio. — ...Dito em poucas palavras, os jesuítas utilizavam o seu
próprio meridiano.
— Exactamente. Só que eu detesto dizer as coisas em poucas
palavras.
Coy abanava a cabeça devagar, sem dizer nada: um gesto
afirmativo muito lento e muito abatido. Vi que aproximava a mão do
seu copo e, agora sim, bebia um gole de vinho. Um gole enorme.
— Então — disse Tânger —, as correcções que estivemos a fazer
com as suas tabelas não devem fazer-se relativamente a Cádis...
— Claro que não. É preciso fazê-las relativamente ao meridiano
secreto que os jesuítas utilizavam em 1767 para calcular a longitude a
bordo dos seus barcos — fiz outra pausa e olhei para eles, sorridente.
— ...Vêem onde quero chegar?
— Maldição! — exclamou Coy. — Diga-o de uma vez. Dirigi-lhe
um olhar de afecto. Julgo ter-vos dito que gostava cada vez mais
daquele indivíduo.
— Não me prive do prazer do suspense, querido amigo. Não me
prive... O meridiano que vocês procuram corresponde aos actuais 5o
40' oeste de Greenwich. E passa exactamente pela escola de
cosmografia, geografia e navegação, e pelo observatório astronómico
que, até à sua expulsão em 1767, os jesuítas tiveram naquela que é hoje
a Universidade Pontifícia, antigo Colégio Real da Companhia de
Jesus...
Fiz uma última pausa teatral, allez bop, damas e cavalheiros, e tirei
o coelho da cartola. Um coelho branco, lustroso, que mastigava com
naturalidade uma cenoura.
— ...A poucos metros — precisei — da torre da Catedral de
Salamanca.
Houve um silêncio de, pelo menos, cinco segundos. Primeiro
olharam um para o outro e depois Tânger disse não pode ser. Disse-o
assim, em voz baixa: não pode ser, olhando para mim como se eu
fosse um marciano. A sua frase não soava a objecção ou a
incredulidade, mas a lamento. Sou uma estúpida, em tradução livre.
— Receio que sim — afirmei.
— Mas isso significa...
— Significa — interrompia-a, receoso de perder protagonismo —
que nessa latitude, entre o meridiano de Salamanca e o do colégio de
guardas-marinhas de Cádis, em muitos mapas da época havia, em
1767 uma diferença de quarenta e cinco minutos de longitude oeste...
Enquanto falava dispus alguns talheres, um pedaço de pão e um
copo para reconstruir aproximadamente o traçado de uma costa. O
copo ficava ao centro, representando Cartagena, e a extremidade de
um garfo marcava o cabo de Paios. Não era uma carta de Urrutia, mas
a verdade é que não estava mal de todo. Era o que faltava! Até os
quadrados da toalha pareciam paralelos e meridianos de uma carta
esférica.
— E vocês — concluí, contando quadradinhos com o dedo na
direcção do garfo situado à direita — estiveram à procura desse barco
trinta e seis milhas a oeste do sítio onde realmente está.

XIV - O MISTÉRIO DAS LAGOSTAS VERDES

Embora fale do Meridiano como um só, não é assim, pois são muitos;
porque todos os homens ou navios têm meridianos distintos, cada um o seu
particular.
Manuel Pimentel. Arte de Navegar

Navegavam para leste fendendo a bruma do amanhecer ao longo


do paralelo 37° 32', com um ligeiro desvio do rumo para norte,
tentando ganhar um minuto de latitude. Aparafusado à sua antepara,
o barómetro metálico tinha a agulha inclinada para a direita: 1022
milibares. Não havia vento e as tábuas da coberta estremeciam com a
trepidação suave do motor. A neblina começava a desvanecer-se e
embora fosse ainda cinzenta na esteira, a proa filtrava deslumbrantes
raios de sol e tons dourados, e pelo lado de bombordo distinguia-se,
às vezes, esfumado e muito alto, o relevo pardo e fantasmagórico da
costa.
Lá em cima, no poço, o Piloto vigiava o rumo. E lá em baixo, na
casa de pilotagem, inclinada, com paralelas, compasso, lápis e
borracha, como uma aluna aplicada a preparar-se para um exame
difícil, Tânger quadriculava a carta 464 do Instituto Hidrográfico da
Marinha: De cabo Tinoso a cabo de Paios. Sentado junto dela, com
uma chávena de café com leite condensado na mão, Coy via-a traçar
linhas e calcular distâncias. Tinham trabalhado toda a noite, sem
dormir, e quando o Piloto acordou e largou antes do amanhecer, já
tinham estabelecido no papel a nova zona de busca, com o centro
situado nos 37° 33minutos norte e 0° 45minutos oeste: o rectângulo da
carta que Tânger, agora, à luz da mesa de cartas, com paciência e
muito cuidado devido às oscilações do Carpanta, dividia em faixas de
cinquenta metros de largura. Uma área de milha e meia de altura por
duas e meia de largura, a sul de Punta Seca, seis milhas a sudoeste do
cabo de Paios: «... Mas acontece que depois o vento girou para norte e
tendo já avistado o cabo a nordeste, ao forçar vela para evitar a caçada
de que era objecto, teve apouca sorte de faltar o mastaréu do traquete,
iniciando-se combate vivíssimo quase penol a penol. Perdeu-se o
mastro do traquete com quase toda a gente na coberta morta ou fora
de combate por o outro lhes haver atingido para ré do través; mas
quando o chaveco se dispunha a atracar para a abordagem, o incêndio
de uma das suas velas baixas, conforme julga ter visto o declarante,
estendeu-se a alguma carga de pólvora, em resultado do qual foi pelo
ar o chaveco com apouca sorte de a explosão também ter derrubado o
mastro grande do bergantim, enviando este a pique. Segundo o
declarante, não houve mais sobreviventes além dele, que se salvou
por saber nadar e a bordo da lancha que o bergantim tinha largado ao
iniciar combate, passando aí o resto do dia e da noite, até que sobre as
onze horas do dia seguinte foi resgatado seis milhas a sul desta praça
pela tartana Virgen de los Parales. Segundo o declarante, o
afundamento do bergantim e do chaveco deu-se a duas milhas da
costa em 37° 32' norte e 4° 51' este, posição que coincide com a anotada
em meia folha de papel que trazia no bolso ao ser recolhido, por lhe
ter sido confiada pelo piloto uma vez estabelecida numa carta esférica
de Urrutia, para a anotar no livro de bordo, não tendo podido fazê-lo
por causa da rapidez com que se iniciou o combate. Ficou internado o
declarante sob cuidado médico no hospital da marinha desta cidade ã
espera de outras diligências. Solicitou no dia seguinte o Exm° Senhor
Almirante novas averiguações sobre certos pontos deste
acontecimento, dando-se a circunstância de o declarante ter
abandonado as dependências do hospital durante a noite, sem que até
ao momento haja notícias do seu paradeiro. Circunstância sobre a qual
o Exm° Senhor Almirante ordenou iniciar as diligências oportunas
sem prejuízo da depuração de responsabilidades. Datado na Capitania
da Marinha de Cartagena, a oito de Fevereiro de mil setecentos e
sessenta e sete. Tenente de navio Ricardo Dolarea.»
Tudo se encaixava. Discutiram-no do direito e do avesso com a
cópia da declaração do ajudante de piloto em cima da mesa,
analisando cada costura daquela partida póstuma, exasperante, com
que os fantasmas dos jesuítas e dos marinheiros naufragados com o
Dei Gloria tinham troçado deles e de todos. Com a 464 aberta diante
dos olhos, um compasso de pontas na mão, o traçado da costa na
parte superior da carta — cabo Tinoso à esquerda, cabo de Paios à
direita e o porto de Cartagena ao centro —, Coy tinha calculado
facilmente as dimensões do erro: naquela noite de 3 para 4 de
Fevereiro de 1767, com o corsário colado à sua popa, o bergantim
navegou muito mais rapidamente e para muito mais longe do que
pensavam. E, ao amanhecer, o Dei Gloria não se encontrava a
sudoeste do cabo Tinoso e de Cartagena. Tinha já ultrapassado essas
longitudes e navegava mais para levante. Estava a sudeste do porto e
o cabo que avistava à proa, a nordeste, não era o cabo Tinoso mas o
cabo de Paios.
Tânger tinha terminado. Pousou sobre a carta o lápis e as paralelas
e ficou olhando para Coy.
— Por isso torturaram o menorita Gándara durante dezoito anos...
Procuraram o barco na posição dada pelo ajudante de piloto. Talvez
tenham até descido com mergulhadores ou balões de ar e não
encontraram nada, porque o Dei Gloria não estava ali.
A falta de sono marcava círculos escuros sob os seus olhos,
fazendo-a parecer mais velha. Menos atraente e mais fatigada.
— Conta-me agora o que aconteceu — disse. — A tua versão final.
Ele observou a 464. Estava sobre a reprodução da carta de Urrutia,
cheia também de traços a lápis e anotações. O desenho castanho da
costa, a faixa azul das sondas mínimas, percorriam-na ascendendo
numa diagonal suave até à ponta de Paios e às ilhas Hormigas,
visíveis no canto superior direito da carta. Todos os acidentes
geográficos estavam à vista, de oeste para este: cabo Tinoso, o porto
de Cartagena, a ilha de Escombreras, cabo de Agua, a enseada de
Portman, cabo Negrete, Punta Seca, cabo de Paios... Talvez naquela
noite o vento de sudoeste tivesse sido mais forte, explicou Coy. Vinte
e cinco ou trinta nós. Ou talvez o capitão Elezcano tivesse assumido
antes o risco de forçar a mastreação largando mais pano. Também
pode ter acontecido o vento ter rodado para norte, convertendo-se em
vento vindo de terra muito antes do amanhecer, e que o corsário, bom
bolineiro graças à vela de proa do gurupés e às velas latinas dos seus
mastros do traquete e da mezena, tivesse ganho barlavento,
interpondo-se entre o bergantim e Cartagena, para o impedir de se
refugiar nesse porto. Também havia a possibilidade de que, no
decurso de alguma manobra nocturna para despistar o corsário, o Dei
Gloria se tivesse afastado perigosamente do seu único abrigo possível.
Ou pode ser que o capitão, obstinado e rigoroso, tivesse ordens
estritas de não tocar noutro porto além do de Valência, a fim de que as
esmeraldas não corressem o perigo de cair noutras mãos.
Tentou descrever as primeiras luzes, a ainda confusa linha da
costa, os olhares inquietos do capitão e do piloto tentando saber onde
se encontravam exactamente e a desolação ao descobrirem que o
corsário continuava ali, perseguindo-os cada vez mais perto, sem que
tivessem conseguido enganá-lo na escuridão. De qualquer forma, com
essa primeira claridade, enquanto o capitão olhava para cima, para a
mastreação, perguntando a si próprio se aguentaria tanto pano
navegando à bolina, o piloto foi para bombordo e fez marcações a
terra para estabelecer a posição. Sem dúvida obteve marcações
simultâneas e fê-lo situando nos 345° o Junco Grande, o cabo Negrete
nos 295° e o cabo de Paios nos 30°. Depois transferiria a intersecção
desses azimutes para a carta, a fim de estabelecer aí a posição do
bergantim. Não era difícil imaginar o piloto com o óculo e a alidade
ou aparelho de marcar sobre a agulha-padrão, alheio a tudo o que não
fosse o procedimento técnico do seu ofício. E o ajudante de piloto ao
seu lado, com o lápis e o papel prontos para anotar as observações,
olhando de esguelha para as velas do corsário, avermelhadas pelo
crepúsculo matutino, cada vez mais próximas. Depois, a toda a pressa
para baixo, fazer o cálculo na carta de Urrutia, e o ajudante de piloto
correndo de regresso ao tombadilho na coberta inclinada, o papel com
os resultados na mão, mostrando-o ao capitão justamente no
momento em que, lá no cimo, o mastaréu se partia com um estalido,
vindo tudo abaixo, o capitão ordenava que o cortassem e alijassem ao
mar e prevenissem os artilheiros. E o Dei Gloria dava a guinada
trágica que o defrontaria com o seu destino.
Calou-se, ao reparar num tremor na sua própria voz. Marinheiros.
No fim de contas, aqueles homens eram marinheiros como ele. Bons
marinheiros. Podia imaginar até o último dos seus medos e sensações
com tanta exactidão como se ele próprio tivesse estado a bordo do Dei
Gloria.
Tânger olhava-o atentamente.
— Contas bem as coisas, Coy.
Ele esfregou o nariz. Contemplava através da escotilha a luz
abrindo caminho entre a bruma, à medida que o Sol subia sobre o
difuso círculo cinzento. Também via a proa do corsário Chergui
aparecendo pouco a pouco diante de um dos portalós do bergantim.
— Não é difícil — disse. — ...De certa forma não é difícil.
Semicerrava os olhos. Sentia a boca seca, o suor no tronco nu, o pano
que acabara de amarrar à testa encharcado. Porque nesse momento,
inclinado atrás do canhão preto de quatro libras, entre o fumo das
mechas acesas, ouvia a respiração dos seus companheiros agachados
junto ao reparo do canhão com o soquete, a lanada e o saca-trapos a
postos, prontos para soltar trincas, limpar, carregar e disparar
novamente.
— De qualquer forma — acrescentou passado uns instantes —, eu
não digo que as coisas tenham acontecido assim.
— E como explicas a posição do ajudante de piloto?
Coy encolheu os ombros. O fragor dos tiros de canhão e os
estilhaços que soavam na sua cabeça apagaram-se lentamente. Agora,
o seu dedo indicava um ponto na carta, antes de descrever uma linha
diagonal para sudoeste.
— Tal como explicámos anteriormente — disse. — Com a
diferença de que o vento que soprava após o naufrágio, fazendo o
bote ir à deriva, não era de noroeste mas de nordeste. O vento que
soprava de terra ao amanhecer podia ter rodado algumas quartas para
levante, quando o Sol ficou no alto, arrastando nessa altura o ajudante
de piloto mar adentro e aproximando-o da vertical de Cartagena,
algumas milhas a sul, onde no dia seguinte foi recolhido.
Isso também não era difícil de imaginar, pensou, observando a
linha de deriva no papel marcado com os números das sondas.
O rapaz sozinho no seu bote desgovernado, aturdido, atirando a
água fora. O sol e a sede, o mar imenso e a costa cada vez mais
longínqua, inatingível. O dormitar de barriga para baixo, para evitar
que as gaivotas lhe bicassem a cara, a cabeça erguida de vez em
quando para olhar em volta, abatida imediatamente com
desesperança: apenas o mar impassível, com os segredos bem
guardados nas suas entranhas. E em cima, na superfície ondulada pela
brisa outro Ismael flutuando sobre o túmulo azul dos seus
companheiros.
— É estranho que não desse a posição real do Dei Gloria ~ disse
Tânger. — Um miúdo como ele não podia ter consciência de todas as
implicações.
— Não era tão miúdo. Já te disse que embarcavam muito novos e,
depois de quatro ou cinco anos no mar, amadureciam depressa. Eram
homens de fibra. Marinheiros a sério.
Ela abanava a cabeça, convencida.
— Mesmo assim — disse — é espantosa a forma como guardou
segredo... Era aluno de náutica, tinha de saber que a longitude não se
referia ao meridiano de Cádis... E, no entanto, soube calar-se e
enganou os investigadores. Não há na acta do interrogatório a mínima
sombra de dúvida.
Era verdade. Tinham estado a rever os documentos, a declaração
do náufrago, o relatório oficial: nem uma única contradição. O
ajudante de piloto mantivera-se firme quanto à latitude e à longitude.
E tinha no bolso o papel anotado como prova.
— Era um bom rapazinho — acrescentou Tânger, pensativa. —
Um rapaz leal.
— É o que parece.
— E muito esperto. Lembras-te da declaração dele?... Fala do cabo
que está a nordeste, mas não o nomeia. Pela posição que deu, todos
acreditaram tratar-se do cabo Tinoso. Mas ele evitou corrigi-los.
Nunca chegou a dizer que cabo era.
Coy olhava outra vez para o mar através da porta.
— Suponho — disse — que essa foi a sua forma de continuar a
lutar.
O Sol já estava alto e a bruma desvanecia-se. O perfil escuro da
costa ia ficando mais preciso pelo lado de bombordo: a Punta de Ia
Chapa, com o seu farol branco a este da baía de Portman; o antigo
Portus Magnus, com os escombros das minas abandonadas sobre a
velha calçada romana, e o lodo entupindo a enseada onde, já antes do
nascimento de Cristo, navios com olhos pintados na proa carregavam
lingotes de prata.
— Pergunto a mim próprio o que teria acontecido ao rapaz.
Referia-se ao seu desaparecimento do hospital da marinha. A esse
respeito, Tânger tinha a sua própria teoria. De modo que a expôs,
deixando que Coy, como de costume, tivesse o trabalho de preencher
os espaços em branco. Em síntese, no início de Fevereiro de 1767 os
jesuítas ainda dispunham de muito dinheiro e poder em toda a parte,
incluindo no departamento marítimo de Cartagena. Não era difícil
subornar as pessoas certas e garantir uma retirada discreta do
ajudante de piloto para segundo plano: bastava uma carruagem,
cavalos e garantias para atravessar as portas da cidade. Sem dúvida,
agentes da Companhia fizeram-no sair do hospital antes de ser sujeito
a um novo interrogatório, levando-o para longe, a salvo, no dia
seguinte ao da sua recolha no mar. Desaparecido sem licença, estava
escrito na documentação: uma atitude irregular para um marinheiro
mercante extremamente jovem, sujeito a uma investigação da
Armada. Mas o desaparecimento sem licença tinha sido corrigido
mais tarde por mão anónima, substituindo-o por uma alta com
licença. Aí perdia-se o rasto.
Era fácil, pensava Coy ao ouvir o relato de Tânger. Tudo encaixava
e também isso conseguia imaginar sem dificuldade: a noite, os
corredores desertos do hospital, a luz de uma vela. Sentinelas ou
guardas encegueirados pelo ouro, alguém que chega encapuçado e
com instruções precisas, o rapaz rodeado de gente segura. Depois, as
ruas vazias, o conciliábulo clandestino no convento jesuíta da cidade.
Um interrogatório grave, rápido, tenso, e sobrolhos que se desfazem
ao descobrir que o segredo continua bem guardado. Talvez palmadas
nas costas, mãos admiradas que lhe pousam no ombro. Bom rapaz.
Bom e valente rapaz. E depois a noite novamente e gente que, de uma
esquina na sombra, faz sinais: não há novidades. A carruagem, as
portas da cidade, o campo aberto e o céu cheio de estrelas. E um
marinheiro de quinze anos que dormita no assento, habituado desde
pequeno a balanços piores que aquele, velado no sono pelos espectros
dos seus companheiros mortos. Pelo sorriso triste do capitão Elezcano.
— No entanto — concluiu Tânger —, há alguma coisa... Talvez
divertida, ou curiosa. O ajudante de piloto chamava-se Miguel Palau,
lembras-te?... Era sobrinho do armador valenciano do Dei Gloria, Luis
Fornet Palau. E pode ser apenas uma coincidência. — Espetou um
dedo para cima, como se reclamasse um momento de atenção e
rebuscou entre os documentos que tinha na gaveta da mesa de cartas.
— ...Mas olha. Quando estive a averiguar os nomes e datas, ao
consultar em Viso dei Marquês algumas listas da marinha, bastante
posteriores, dei com uma referência à balandra Mulata, de Valência.
Essa embarcação teve, em 1784, um combate com o brigue inglês
Undated, perto dos Freus de Formentera. O brigue quis capturá-la,
mas a balandra defendeu-se muito bem e conseguiu escapar... E sabes
como se chamava o capitão espanhol?... M. Palau, diz a referência. Tal
como o nosso ajudante de piloto. E até pela idade poderia coincidir:
quinze anos em 1767, trinta e dois ou trinta e três em 1784...
Passara uma fotocópia a Coy e este leu o texto: «Notícia do que
aconteceu no dia quinze do corrente, sobre o combate mantido pela
balandra Mulata comandada pelo capitão Dom M. Palau, com o
brigue inglês Undated diante da ilha dos Abarcados...»
— Tratando-se do mesmo Palau — disse Tânger — também não se
rendeu dessa vez, não é verdade?
«Informa-se perante a autoridade marítima deste porto de Ibiza
que fazendo a rota de Valência para esta localidade, quando ia em
demanda do Freo Grande de Formentera e nas proximidades das
Negras e dos Ahorcados, a balandra espanhola Mulata, de oito
canhões, foi atacada pelo brigue-goleta inglês Undated, de doze, que
se tinha aproximado recorrendo ao engano da bandeira francesa,
tentando capturá-la. Apesar da diferença de porte susteve vivíssimo
fogo com muitos estragos de ambas as partes e também uma. tentativa
de abordagem dos ingleses, que conseguiram meter três homens na
balandra, sendo os três mortos e atirados ao mar. Separaram-se as
embarcações e prosseguiu o combate muito encarniçado por um
espaço de meia hora, até que a Mulata, apesar do vento contrário,
conseguiu passar para, este lado dos canais graças a uma manobra de
enorme risco, que consistiu em meter-se no canal do meio, com apenas
quatro braças de fundo na mediania e muito perto do recife da
Barqueta; manobra de grande perícia que deixou do outro lado o
inglês, cujo capitão não ousou seguir em frente pelas condições do
vento epela incerteza do fundo, conseguindo a Mulata arribar a este
porto de Ibiza com quatro homens mortos e onze feridos a bordo e
sem mais novidades...»
Coy devolveu a Tânger a cópia do relatório. Sorria. Há anos, num
veleiro de pouco comprimento e calado, tinha passado o canal médio
naquele mesmo sítio. Quatro braças eram pouco mais de seis metros e,
além disso, a sonda diminuía rapidamente a partir do centro de um
lado e de outro. Lembrava-se bem da visão sinistra do fundo através
da água transparente. Uma balandra artilhada podia ter três metros de
calado, e o vento contrário dificultava um rumo em linha recta. De
modo que, fosse ou não fosse o mesmo homem, ajudante de piloto
Miguel Palau ou capitão M. Palau, quem dirigia a Mulata tinha nervos
de aço.
— Talvez o nome seja apenas uma coincidência.
— Talvez — Tânger relia pensativa a fotocópia antes de voltar a
colocá-la na gaveta. — Mas agrada-me pensar que era ele.
Ficou calada um instante e voltou-se depois para a porta, olhando
para a linha da costa que a bruma já revelava limpa e livre, na
direcção da amura de bombordo, com o sol iluminando a pedra escura
do cabo Negrete.
— Agrada-me pensar que o ajudante de piloto voltou ao mar e
continuou a ser um homem valente.
Durante oito dias peneiraram a nova zona de busca com a
Pathfinder, passagem a passagem, com rumos de norte a sul,
começando por este, em sondagens que iam dos oitenta aos dezoito
metros. Mais profundo e aberto aos ventos e às correntes que a
enseada de Mazarrón, o local era agitado por ondulação desagradável
que entorpecia e atrasava o trabalho. O fundo era irregular, de rocha e
areia e, tanto o Piloto como Coy, tinham de fazer muitas imersões —
que a profundidade excessiva tornava necessariamente breves — para
comprovar irregularidades detectadas pela sonda, incluindo uma
velha âncora solitária que os fez alimentar esperanças até a terem
identificado como uma de almirantado com cepo de ferro: um modelo
posterior ao século XVIII. Dessa forma, acabavam, exasperados e
exaustos, por fundear ao abrigo do cabo Negrete nas noites de pouco
vento, ou resguardados de levantes e sudestes no pequeno porto de
cabo de Paios. Os boletins meteorológicos anunciavam a formação de
um centro de baixas pressões no Atlântico e, se a borrasca não se
desviasse para o nordeste da Europa, os seus efeitos demorariam
menos de uma semana a chegar ao Mediterrâneo, obrigando-os a
suspender a busca por algum tempo. Tudo isso os tornava nervosos e
irritáveis. O Piloto passava dias inteiros sem abrir a boca, e Tânger
mantinha a sua obstinada vigilância da sonda com uma atitude
sombria, como se cada dia decorrido lhe arrancasse outro pedaço de
esperança. Uma tarde, Coy deu uma vista de olhos ao caderno onde
ela tinha estado a anotar os resultados da exploração e encontrou as
folhas cheias de gatafunhos incompreensíveis, espirais e cruzes
sinistras. Também havia uma cara de mulher pavorosamente
deformada, com traços tão fortes que nalgumas linhas rasgavam o
papel. Uma mulher que parecia gritar para o vazio.
As noites não eram muito mais agradáveis. O Piloto dava as boas-
noites e fechava a sua porta na proa e eles os dois deitavam-se
cansados, com a pele a cheirar a suor e a sal, sobre os colchões de um
dos camarotes de popa. Encontravam-se em silêncio, procurando-se
com uma urgência tão excessiva que parecia artificial, para
encaixarem um no outro de uma forma intensa e brutal, rápida, sem
palavras. De todas as vezes Coy tentava prolongar o instante, prender
Tânger nos seus braços, encurralá-la contra a antepara, controlar o
corpo e a mente daquela desconhecida. Mas ela debatia-se, fugia,
tentava acelerar o processo, pondo apenas esforço e carne, longínqua a
cabeça, inacessível o pensamento. Às vezes, Coy julgava possuí-la
finalmente, atento ao ritmo da sua respiração, aos beijos da sua boca
aberta, à pressão das coxas nuas em volta da sua cintura. Oprimia com
os lábios o pescoço ou os seios da rapariga e agarrava-a com firmeza,
poderosamente, prendendo-lhe os pulsos, sentindo o latejar do sangue
dela na língua e nas virilhas, cravando-se profundamente nela como
se pretendesse atingir o coração e empapá-lo, até conseguir que fosse
tão suave como aquele interior húmido e aquela boca. Mas ela
retrocedia, debatendo-se para fugir do abraço e, mesmo agarrada,
prisioneira, negava-lhe em última instância o pensamento que ele se
esforçava por capturar. Os olhos, olhando fixamente para as sombras,
brilhantes e inatingíveis, transfiguravam-se, ausentes, para além de
Coy, do barco e do mar, absortos em maldições arcanas de solidão e
negrume. E então abria a boca para gritar, tal como a mulher que ele
descobrira no desenho, para gritar um grito de silêncio que ressoava
nas entranhas do homem como o mais doloroso dos insultos. Coy
sentia correr aquele lamento pelas suas veias e mordia os lábios
reprimindo uma angústia que lhe inundava o peito, o nariz e a boca,
como se estivesse a afundar-se, sufocado, num mar de densa tristeza.
Tinha vontade de chorar como quando era criança, com lágrimas bem
gordas e copiosas, incapaz de aquecer o calafrio de tantas solidões.
Aquele era um peso demasiado grande. Limitara-se a ler alguns
livros, a navegar alguns anos e a entrar em algumas mulheres. Por
isso julgava carecer de palavras e de gestos, e achava também que até
os seus próprios silêncios eram toscos. No entanto, teria dado a vida
para poder chegar dentro dela, infiltrando-se pelos tecidos da sua
carne e aproximando-se do seu cérebro nu para o lamber devagar,
suavemente, com toda a ternura de que era capaz, limpando-o de tudo
o que centenas de anos, milhares de homens, milhões de vidas, foram
deixando ali como um lastro, uma escória, um tumor doloroso e
maligno. E dessa forma Coy, depois de cada vez, após o último
estremecimento dela, insistia tenaz, esquecido de si próprio, acicatado
pelo desespero, quando ela parava de se agitar para ficar imóvel,
respirando com dificuldade em busca do fôlego perdido. E ele, ou as
suas células vivas, o seu sangue e a sua memória, concluíam que a
amavam mais que a qualquer outra pessoa ou coisa. Mas ela fora
demasiado longe e ele não existia. Era um intruso nesse mundo e
nesse instante. E seria assim, pensava com tristeza, o fim de tudo: não
um estrondo, mas um quase imperceptível suspiro. Nesse minuto de
indiferença, pontual como uma condenação, tudo morria nela, tudo
ficava em suspenso, enquanto a pulsação não recuperava a
normalidade. E novamente a pele do homem tomava consciência da
porta aberta para a noite e do frio que rastejava vindo do mar, como
uma maldição bíblica. Isso atirava-o para uma desolação árida como
uma superfície de mármore, polida, imensa, perfeita. Um mar dos
Sargaços aterradoramente imóvel, uma carta esférica com nomes
como os que os antigos navegadores inventavam: ponta da Decepção,
baixio da Solidão, baía Amarga, ilha de Guarda-nos Deus... Depois,
ela beijava-o antes de voltar-lhe as costas, e ele ficava de barriga para
cima oscilando entre o ódio para com aquele último beijo e o desprezo
por si próprio, com uma mão apoiada na anca próxima, nua e
adormecida. Com os olhos abertos na escuridão, ouvindo o rumor da
água contra o casco do Carpanta e o vento a aumentar na enxárcia.
Pensando que ninguém foi capaz, nunca, de desenhar a carta esférica
que permite navegar através de uma mulher. E com a certeza de que
Tânger ia sair da sua vida sem que ele chegasse algum dia a possuí-la.
Foi por aqueles dias que tive outra vez notícias do grupo. Tânger
telefonou-me de El Pez Rojo, um restaurante de cabo de Paios, para
pedir-me alguns esclarecimentos sobre um problema técnico que
aumentava a margem de erro em meia milha de longitude este.
Clarifiquei a dúvida, interessando-me pelos seus trabalhos e ela
respondeu-me que tudo corria bem, muito obrigada e que mais tarde
teria notícias suas. A verdade é que demorei duas semanas a ter essas
notícias. Quando as obtive foi pelos jornais e nessa altura sentime tão
estúpido como quase todas as personagens desta história. Mas não
apressemos os acontecimentos. A chamada telefónica fê-la Tânger
num dia em que tinham o Carpanta atracado no molhe da antiga
povoação piscatória convertida em localidade turística. A borrasca do
Atlântico Norte continuava estacionária e o Sol brilhava nas
longitudes e latitudes do sudeste da Península Ibérica. A agulha do
barómetro estava alta, sem ultrapassar a perigosa vertical para a
esquerda. E era isso, paradoxalmente, o que os tinha levado daquela
vez até ao pequeno porto que se estendia em volta de uma ampla
enseada negra, suja de escolhos a flor da água, sob a torre do farol que
se erguia sobre uma rocha, mar adentro. De manhã, o calor tinha feito
aparecer à esquerda do vento cúmulos-nimbos que se agrupavam em
forma de bigorna, aumentando para cima num tom cinzento
ameaçador. O vento, de doze a quinze nós de intensidade, ia na
direcção dessas nuvens. Mas Coy, ao dar uma vista de olhos,
compreendeu que, se a bigorna de cúmulos-nimbos continuasse a
crescer à medida que se aproximava, duras rajadas de tempestade
rebentariam do lado contrário, quando a massa cinzenta estivesse
sobre as suas cabeças. Bastou uma troca silenciosa de olhares com o
Piloto, cujas rugas das pálpebras se acentuavam ao olhar na mesma
direcção, para que os dois marinheiros se compreendessem sem
palavras. Então o Piloto apontou a proa para cabo de Paios. E ali
estavam, no alpendre caiado de El Pez Rojo, comendo anchovas fritas,
salada e vinho tinto.
— Mais meia milha — disse Tânger, sentando-se.
Falou com um tom de voz irritado. Agarrou numa anchova da
bandeja, olhou-a por um momento, como se procurasse alguma
responsabilidade a atribuir-lhe, e depois pô-la de lado com desprezo.
— Mais meia milha maldita — repetiu.
Na sua boca, maldita era quase um palavrão. Era estranho ouvi-la
falar dessa forma e muito mais vê-la perder o controlo, de modo que
Coy observou-a com curiosidade.
— Não é muito grave — disse.
— É outra semana de busca.
Tinha o cabelo sujo, acachapado de salitre e a pele brilhava-lhe
queimada pelo sol, pela falta de água e de sabão. Piloto e Coy também
não tinham melhor aspecto, depois de vários dias sem se barbearem,
tão queimados e sujos como ela. Todos vestiam calças de ganga,
camisolas de manga curta, pólos desbotados e ténis, e era patente a
marca dos dias passados no mar.
— Uma semana — repetiu Tânger — no mínimo.
Olhava sombria para o Carpanta ainda iluminado pelo Sol e
atracado lá em baixo, no molhe da barra. A bigorna cinzenta escurecia
pouco a pouco a enseada, como se alguém corresse devagar uma
cortina que apagasse o reflexo do Sol nas casinhas brancas e na água
azul-cobalto. E ela está perdendo a esperança, disse Coy para consigo
de repente. Depois de tanto tempo e de tanto esforço, começa a
encarar a possibilidade de existir a palavra fracasso. A profundidade
da zona de exploração é maior e isso pode significar que, mesmo que
encontremos os despojos, estes estejam fora do nosso alcance. Além
disso, o prazo destinado à busca está a acabar e o seu dinheiro
também. Agora, pela primeira vez desde sabe-se lá quando, está a
conhecer a dúvida.
Observou o Piloto. Os olhos cinzentos do marinheiro deram
silenciosamente razão às suas conclusões: a aventura começava a roçar
as margens do absurdo. Todos os dados estavam certos e foram
provados, mas faltava o principal: o barco afundado. Ninguém
duvidava de que estava ali, nalgum sítio. Talvez se conseguisse
mesmo, da pequena elevação do restaurante, ver o local exacto onde o
bergantim e o corsário tinham ido a pique. Talvez tenham passado
várias vezes por cima dos destroços, ocultos sob metros de lodo e
areia. Talvez tudo não passasse de uma imensa sucessão de erros. E o
mais importante de todos era que o tempo de procurar tesouros não
resistia à lucidez do tempo adulto e razoável.
— Falta ainda milha e meia por explorar — disse Coy suavemente.
Ainda não tinha acabado de pronunciar a frase e já se sentia
ridículo. Ele a animá-la. Nunca se vira. Na realidade, limitava-se a
atrasar o último acto. A desejar atrasá-lo, antes de voltar a flutuar só e
órfão, agarrado ao caixão de Queequeg. Ao esquife do Dei Gloria.
— Claro — respondeu ela, átona.
Com os cotovelos em cima da mesa, as mãos cruzadas sob o
queixo, continuava a olhar para a enseada. A bigorna cinzenta já
estava sobre o Carpanta, fechando o céu sobre o seu mastro nu. Nessa
altura o vento cessou, o mar recobrou a calma diante do molhe tda
barra, as adriças e a bandeira do barco ficaram imóveis. Depois, Coy
viu como, ao fundo, as rochas da margem e os escolhos se riscavam de
traços brancos, espuma que começava a bater, enquanto uma
coloração mais escura se estendia como uma mancha de óleo pela
superfície do mar. Ainda havia sol no alpendre do restaurante quando
a primeira rajada correu ao longo da baía, encrespando a água; e no
Carpanta a bandeira ondulou de repente e rangeram as adriças contra
o mastro, tilintando furiosas, enquanto o barco se inclinava na
direcção do molhe, batendo contra as defen-sas. A segunda rajada foi
mais forte: trinta e cinco nós pelo menos, calculou Coy a olho. A baía
estava agora cheia de ovelhinhas brancas e o vento uivava subindo de
nota em nota pelos buracos das chaminés e pelos beirais dos telhados.
De repente, o ambiente tornou-se sombrio e cinzento, quase
assustador e Coy alegrou-se por estar sentado ali comendo anchovas
fritas e não no alto mar.
— Quanto tempo durará isto? — perguntou Tânger.
— Pouco — disse Coy. — Uma hora, talvez. Talvez um pouco
mais. À tarde deverá ter acabado. É só uma tempestade de Verão.
— O calor — explicou o Piloto.
Coy olhou para o amigo, sorrindo no seu íntimo. Também ele,
disse para consigo, sente o dever de a consolar. No fim de contas foi
isso que, deveras, nos trouxe até aqui, embora o Piloto não encare
racionalmente esse tipo de coisas. Ou, pelo menos, assim o creio.
Nesse momento, os olhos do marinheiro pousaram nos de Coy,
tranquilos, tão serenos como sempre, e este rectificou. Talvez ele
encare afinal esse tipo de coisas.
— Amanhã teremos que procurar também meia milha mais além
— anunciou Tânger. — Até aos 47' oeste.
Coy não precisava de uma carta. Tinha a 464 gravada na cabeça, de
tanto a estudar. Até ao último pormenor da área de busca.
— A parte positiva — disse — é que por esse lado diminui a
profundidade até dezoito e vinte e quatro metros. Tudo será mais
fácil.
— Que fundo existe?
— Areia e rochas, não é verdade, Piloto?... Com manchas de algas.
O Piloto concordou. Tirou do bolso um maço de cigarros e pôs um
na boca. Como Tânger olhava para ele, concordou novamente.
— As algas aumentam à medida que nos aproximamos do cabo
Negrete — disse —, mas este sítio está limpo. Rocha e areia, como Coy
disse... Com algum cascalho no sítio das lagostas verdes.
Tânger, que nesse momento bebia um gole de vinho, deteve o
gesto, com o copo ainda nos lábios, atenta ao Piloto.
— O que é isso de lagostas verdes?
O Piloto estava ocupado com o seu isqueiro de mecha, acendendo
o cigarro. Fez uma expressão indecisa.
— E isso mesmo — expelia o fumo entre os dedos, ao falar. —
Lagostas de cor verde. É o único sítio onde se encontram. Ou se
encontravam. Já ninguém apanha lagostas aqui.
Tânger tinha pousado o copo. Colocou-o cuidadosamente sobre a
toalha, como se receasse derramá-lo. Continuava a olhar com uma
atenção extrema para o Piloto, que enrolava com parcimónia a mecha
em volta do isqueiro.
— Tu estiveste lá?
— Claro. Há muito tempo. Era um bom sítio quando eu era jovem.
Coy lembrava-se disso. O amigo falara-lhe uma vez de lagostas
mouras de carapaça verde, em vez do habitual vermelho-escuro ou
castanho raiado de branco. Isso foi há vinte ou trinta anos, quando
ainda havia peixes e marisco naquelas águas: lagostins, amêijoas,
atuns e meros de vinte quilos.
— O sabor era bom — explicou o Piloto —, mas a cor afugentava
os clientes.
Tânger estava pendente das suas palavras.
— Porquê?... Como era essa cor?
— Verde-bolor, muito diferente do vermelho ou do azulado que
têm as lagostas acabadas de pescar, ou daquele verde-escuro da
lagosta africana ou americana — o Piloto esboçou um sorrisinho entre
o fumo do tabaco. — ...Não abria muito o apetite... Por isso só os
pescadores as comiam ou vendiam os rabos já cozidos.
— Lembras-te do sítio?
— Claro que sim. — O Piloto começava a mostrar-se incomodado
com o interesse dela e aproveitava as chupadas no cigarro para fazer
pausas cada vez maiores, olhando para Coy. — .. .O cabo de Agua,de
través e o cabeço de Junco Grande uns 10° a norte.
— Que profundidade?
— Escassa. Vinte e poucos metros. A lagosta pode andar mais
abaixo, mas naquele sítio havia sempre umas quantas.
— Mergulhavam aí?
O outro olhou novamente para Coy. Diz-me onde quer ela chegar,
diziam os olhos dele. E este, que tinha as mãos apoiadas na mesa,
voltou-as um pouco para cima, mostrando as palmas. Versão para
surdos-mudos: não faço a mínima ideia.
— Nessa época não havia tantos equipamentos de mergulho como
agora — acabou por responder o Piloto. — Os pescadores
trabalhavam mergulhando as nassas de junco ou o tresmalho que,
quando se perdiam, ficavam lá em baixo.
— Lá em baixo — repetiu ela.
Depois permaneceu calada. Passado um momento estendeu a mão
para o seu copo de vinho, mas teve de parar porque os dedos lhe
tremiam.
— O que se passa? — perguntou Coy.
Não compreendia a atitude dela, nem o tremor, nem o repentino
interesse de Tânger pelas lagostas. Era mesmo um dos pratos que
constavam na lista do restaurante e tinham-na visto passar por ele
com indiferença.
Ela ria-se. De uma forma estranha, quieta. Ria-se entredentes,
inesperadamente sarcástica, abanando a cabeça como se a divertisse
uma piada que tivesse contado a si própria. Levara as mãos às fontes
como se de repente lhe doessem e olhava para a água da baía que já
estava cinzenta, clareada pela espuma das ondas curtas, levantadas
pelas rajadas incessantes. A luz depurada do exterior acentuava o
metal azulado dos seus olhos absortos. Ou estupefactos.
— Lagostas — murmurou — ...Lagostas verdes.
Agora estremecia, com o riso demasiado parecido a um soluço.
Após uma nova tentativa, tinha derramado o copo de vinho sobre a
toalha. E espero que não tenha enlouquecido, pensou Coy, alarmado.
Espero que não tenha ficado destrambelhada com toda esta merda e
que, em vez de a levarmos ao Dei Gloria, acabemos por ter de levá-la
ao manicómio. Limpou um pouco o vinho com o guardanapo. Depois
colocou-lhe uma mão no ombro e, ao fazê-lo, sentiu o tremor.
— Acalma-te — sussurrou.
— Estou muito calma — disse ela. — Nunca estive tão calma em
toda a minha vida.
— Que diacho se passa?
Ela tinha deixado de rir, ou de soluçar, ou o que quer que fosse, e
continuava observando o mar. Por fim parou de tremer, suspirou
profundamente e olhou para o Piloto com uma expressão estranha,
antes de se inclinar sobre a mesa e depositar um beijo na cara do
ruborizado marinheiro. Agora sorria, radiante, quando se voltou para
Coy.
— Passa-se que é aí que está o Dei Gloria. No lugar das lagostas
verdes.
Mar encrespado, quase plano, e brisa suave. Nem uma nuvem no
céu e o Carpanta baloiçando suavemente a duas milhas e meia da
costa com a amarra da âncora caindo verticalmente da roldana: cabo
de Agua de través e o Junco Grande em cima, 10° a nordeste.
O Sol ainda não estava alto, mas já ardia nas costas de Coy quando
este se inclinou para comprovar o manómetro das duas garrafas:
dezasseis litros de ar comprimido, a reserva em cima, o equipamento
preparado. Verificou a anilha e encaixou depois em cima dela o
regulador que iria fornecer-lhe o ar a uma pressão variável, consoante
a profundidade, para compensar o aumento das atmosferas sobre o
seu corpo. Sem esse aparelho para equilibrar a pressão interna, um
mergulhador ficaria esmagado ou explodiria como um balão
demasiado cheio. Abriu completamente a torneira e depois fechou-a
três quartos de volta. O bocal era um velho Nemrod. Sabia a borracha
e a pó de talco quando a meteu na boca para verificar o
funcionamento. O ar circulou ruidosamente pelas membranas. Tudo
em ordem.
— Meia hora a vinte metros — recordou-lhe o Piloto. Concordou,
enquanto vestia o casaco de neopreno, o cinto de lastro e o colete
salva-vidas de emergência. Tânger estava de pé diante dele,
agarrando-se com uma mão ao brandal, olhando-o em silêncio. Vestia
um fato de banho preto de nadadora olímpica e tinha umas
barbatanas nos pés, uma máscara de mergulho e um tubo respirador.
Tinha passado quase toda a tarde e parte da noite explicando-lhes
aquilo das lagostas verdes. Expôs o assunto vezes sem conta, do
direito e do avesso, depois de interrogar o Piloto até ao mais ínfimo
pormenor, fazendo esboços com lápis e papel, calculando distâncias e
profundidades. A carapaça das lagostas, dissera, possui faculdades
miméticas. Tal como a muitas outras espécies, a natureza proporciona
a estes crustáceos a capacidade de se camuflarem como meio de
defesa. Dessa forma adaptam-se aos fundos onde vivem. Estava
provado que as lagostas que habitavam em barcos de ferro afundados
adquiriam com frequência o tom avermelhado do óxido das pranchas
em decomposição. E a cor verde-bolor descrita pelo Piloto coincidia
exactamente com a tonalidade que o bronze adquire após longas
imersões no mar.
— Que bronze? — tinha perguntado Coy.
— O dos canhões.
Coy tinha as suas reservas. Tudo aquilo se parecia demasiado com
o «Caranguejo das Tenazes de Ouro», ou a qualquer outra aventura
semelhante. Mas eles não moravam num álbum do Tintim. Ele, pelo
menos, não.
— Tu própria disseste, e comprovámo-lo, que os canhões do Dei
Gloria eram de ferro... Não havia grandes quantidades de bronze a
bordo do bergantim.
Ela olhou para ele tranquila e superior, como naquelas vezes em
que parecia dar-lhe a entender que tinha a braguilha aberta, ou que
era imbecil.
— Os do Dei Gloria, sim — afirmou —, mas não os do Chergui. O
chaveco levava dez canhões: quatro compridos de seis libras, oito de
quatro e além desses, quatro pedreiros, lembras-te?... Procedentes de
uma velha corveta francesa artilhada, a Flamme. E pelo menos os
canhões de seis e os de quatro eram de bronze. — Tinha tirado da
antepara o plano do chaveco, atirando-o para a mesa diante de Coy.
— Isso consta na documentação que nos deu Lúcio Gamboa em Cádis.
Há quase quinze toneladas de bronze lá em baixo.
Coy trocou outro olhar com o Piloto, que se limitava a ouvir em
silêncio, e não colocou mais objecções. Tudo o resto, tinha continuado
Tânger a explicar, era óbvio. Os dois barcos afundaram-se muito perto
um do outro. O mais provável, devido à explosão que acabou com o
Chergui, era que os restos do corsário estivessem dispersos à volta dos
destroços principais. Ao sulfatar-se um dos seus elementos, o cobre, o
bronze fora adquirindo aquela coloração característica no fundo do
mar, adoptada pelas lagostas que, sem dúvida, fizeram as suas casas
nos restos do naufrágio e nas bocas dos canhões. E verificava-se, além
disso, uma circunstância complementar e animadora: o mais
importante. Se as lagostas tinham estado em contacto com o bronze,
isso significava que a área de dispersão não era muito grande e que os
restos não estavam cobertos pelo lodo ou pela areia.
Ouviu um mergulho e viu que Tânger já não estava junto ao
brandal. Atirara-se ao mar e nadava em redor da popa do Carpanta,
com a máscara de mergulho e o respirador pronto, aguardando. Não
ia descer com ele, ia ficar à superfície vigiando as bolhas de ar para o
manter localizado. O raio em que teria de se deslocar tornava difícil
mantê-lo preso ao barco com uma corda de segurança. Coy prendeu a
faca na barriga da perna direita, o batímetro e o relógio num dos
pulsos e a bússola no outro e dirigiu-se até à beira do degrau da popa.
Aí, sentado e com os pés na água, calçou as barbatanas, cuspiu no
vidro da máscara e colocou-a depois de enxaguá-la no mar. Depois
levantou os braços para que o Piloto lhe colocasse a garrafa de ar
comprimido nas costas. Ajustou as correias e colocou o bocal. O ar
ressoou nos seus ouvidos ao circular pelo regulador. Rodou sobre um
lado, protegeu com uma mão o vidro da máscara e, aproveitando o
peso da garrafa, deixou-se cair de costas no mar.
A água estava muito fria. Demasiado para a época do ano. Os
mapas de correntes indicavam ali um fluxo suave de nordeste para
sudoeste, com uma diferença de cinco a seis graus relativamente à
temperatura mínima geral. Sentiu a pele arrepiar-se com a sensação
desagradável da água penetrando sob o casaco de neopreno.
Demoraria alguns minutos a aquecer com o calor do corpo. Respirou
lenta e profundamente algumas vezes, para verificar o regulador e,
com a cabeça meio fora de água, viu a popa do Carpanta quase por
cima e o Piloto lá em pé. Depois mergulhou um pouco, olhando em
voka no panorama azul que o circundava. Perto da superfície, com os
raios de sol clareando a água limpa e serena, tinha boa visibilidade.
Uns dez metros na horizontal, calculou. Podia ver a quilha preta do
veleiro com a porta do leme virada a bombordo e a amarra da âncora
descendo verticalmente para as profundezas, as pernas de Tânger
nadando perto, com impulsos suaves das suas barbatanas de plástico
cor de laranja. Deixou de pensar nela para se concentrar no que fazia.
Olhou para baixo, onde o azul se tornava mais escuro e intenso,
verificou a posição dos ponteiros do relógio e começou a deixar-se cair
lentamente para o fundo. Agora, o ruído do ar ao inspirá-lo através do
regulador era muito forte, ensurdecedor. E quando a agulha do
batímetro chegou aos cinco metros, parou para levar os dedos ao
nariz, sob a máscara, e compensar o aumento da pressão nos ouvidos.
Cluc. Cluc. Ao fazê-lo ergueu o rosto, aliviado, e viu as bolhas de ar
ascendentes da sua última expiração, a superfície do mar que o Sol
convertia em tecto de prata polida, o casco preto do Carpanta lá em
cima e Tânger que tinha mergulhado um pouco e nadava junto dele,
olhando-o por detrás da sua máscara de mergulho, com o cabelo louro
agitando-se na água, as pernas esbeltas, prolongadas pelas barbatanas,
movendo-se devagar para manter a profundidade perto de Coy.
Respirou novamente e outro penacho de bolhas de ar subiu na
direcção dela, que acenou num cumprimento. Depois, Coy olhou para
baixo e prosseguiu a lenta descida através da esfera azul que se
fechava sobre a sua cabeça, escurecendo à medida que se aproximava
do fundo. Fez a segunda paragem para compensar, quando o
batímetro marcava catorze metros e a água era já uma esfera
translúcida que extinguia todas as cores excepto a verde. Estava nesse
ponto intermédio onde, às vezes, os mergulhadores, sem referências,
perdem a orientação e o sentido do que está em cima e do que está em
baixo e de repente se vêem contemplando bolhas de água que
parecem descer em vez de subir e só a lógica, se é que a conservam,
lhes lembra que, em qualquer circunstância, uma bolha de ar dirige-se
sempre para cima. Mas não chegou a esse extremo. A penumbra do
fundo começou a desenhar formas e, momentos depois, Coy deixava-
se cair muito devagar sobre um leito de areia pálida e fria, perto de
uma espessa pradaria de anémonas, posidónias e algas filamentosas
entre as quais nadavam pequenos cardumes. O batímetro marcava
dezoito metros. Coy olhou em volta, através da pouca claridade que o
circundava: a visibilidade era boa e a corrente suave que sentia
limpava a água. Num raio de cinco a sete metros conseguia distinguir
bem a paisagem, as estrelas-do-mar, as conchas vazias, os grandes
bivalves em forma de pá cravadas verticalmente na areia, as cristas de
pedra com formações rudimentares de coral que marcavam o limite
da pradaria submarina. Pequenos microorganismos arrastados pela
corrente flutuavam à deriva, à sua volta. Sabia que, se acendesse uma
lanterna, a luz devolveria as cores naturais a todos aqueles objectos de
monótona aparência verde, aumentados de tamanho através do vidro
inquebrável da máscara. Respirou várias vezes pausadamente para
adaptar os pulmões à pressão e oxigenar o sangue, e orientou-se
consultando a bússola. O seu plano era afastar-se quinze ou vinte
metros para sul e depois descrever um círculo em volta do
fundeadouro do Carpanta, que tinha ficado para trás, a norte.
Começou a nadar devagar, com as mãos aos lados e com suaves
movimentos das pernas e das barbatanas, mantendo-se a um metro do
fundo. Observava a areia com muita atenção, pendente de qualquer
indício de alguma coisa enterrada por baixo, embora os canhões de
bronze, tinha insistido Tânger, tivessem de estar à vista. Foi até ao
limite da pradaria submarina e deu uma vista de olhos entre as algas e
os filamentos ondulantes. Se houvesse alguma coisa naquela
espessura ia ser difícil dar com ela, de modo que decidiu continuar a
explorar a parte nua da areia que, apesar de parecer plana, descia num
declive suave para sudoeste, conforme pôde verificar com o batímetro
e a bússola. O ruído do ar acompanhava-o com uma inspiração e uma
expiração aproximadamente de cinco em cinco segundos, entre
intervalos de silêncio absoluto. Procurava deslocar-se devagar,
reduzindo ao mínimo o esforço físico. A menor fadiga, rezava a velha
regra do mergulho, correspondia menos ritmo de respiração, menos
consumo de ar e mais reservas disponíveis. E aquilo ia ser longo. Com
lagostas ou sem elas, era uma agulha num palheiro.
Havia algumas manchas escuras na areia e Coy aproximou-se para
dar uma vista de olhos: cascalho e rochas semienterradas com
pequenas algas em cima. Um pouco mais longe encontrou o primeiro
objecto relacionado com a vida na superfície: uma lata de conservas
oxidada. Prosseguiu sem pressa, movendo a cabeça para olhar em
volta, e parou quando calculou que tinha atingido o limite do raio da
circunferência que tinha previsto descrever sobre o fundo. Nessa
altura orientou-se novamente e começou a nadar em arco para a
direita. Estava prestes a passar do leito de areia para as rochas que
marcavam o limite da pradaria de algas quando distinguiu uma
sombra um pouco mais afastada, quase no final do seu campo de
visão. Foi até aí e verificou, decepcionado, que se tratava de uma
pedra circular coberta por formações calcárias. Demasiado circular e
demasiado perfeita, pensou de súbito. Moveu-a um pouco,
levantando areia do fundo, e a pedra revelou-se surpreendentemente
leve ao partir-se entre as mãos, descobrindo no interior uma matéria
verde-acinzentada semelhante a madeira podre. Atónito, Coy
demorou um pouco a compreender que se tratava precisamente disso:
de madeira velha e apodrecida. Talvez a roda de uma carreta de
canhão. Sentiu palpitar mais depressa o coração sob o neopreno. A
respiração já não era tranquila, tinha subido para três golfadas a cada
cinco segundos quando esgaravatou sem encontrar mais nada e, ao
fazê-lo, levantou tanta suj idade do fundo que teve de subir um pouco
para chegar a uma zona de água limpa e continuar a olhar em volta.
Nessa altura, viu o primeiro canhão sobre a areia.
Nadou dando um impulso suave com as barbatanas, como se
receasse que a grande peça de bronze fosse desfazer-se diante dos
olhos tal como a roda de madeira. Devia ter dois metros de
comprimento e jazia sobre o fundo como se alguém tivesse acabado de
o depositar ali com muito cuidado. Estava quase todo a descoberto,
com a sua patina bolorenta e algumas incrustações calcárias. Mas
eram perfeitamente visíveis os adornos das pegas em forma de
golfinhos, a bola da maçaneta da culatra e os grossos munhões. Devia
pesar perto de uma tonelada.
Um pouco mais longe conseguia distinguir a sombra escura de
outro canhão. Foi até aí e verificou que era idêntico, embora estivesse
numa posição distinta, porque devia ter caído no fundo quase
verticalmente, cravando-se de boca e na diagonal. Mais tarde, o peso
tê-lo-á afundado na areia até acima dos munhões. Também havia
estranhas pedras avermelhadas que, ao serem abertas com a faca
revelavam interiores ocos parecidos com moldes: a marca de objectos
de ferro desaparecidos pela corrosão, mas que conservavam as suas
formas impressas na formação calcária que os cobriu com o passar do
tempo. Coy teve de se controlar para não subir até à superfície,
anunciando aos gritos que tinha descoberto o Chergui, ou o que dele
restava. Bastava-lhe agitar a mão para remover o fundo, e sob este
aparecerem fragmentos de madeira e objectos mais bem conservados
graças à protecção da areia. Desenterrou uma garrafa de aparência
muito antiga, cuja base estava intacta mas deformada e fundida pelo
calor. O chaveco corsário, concluiu, tinha explodido precisamente ali,
vinte metros acima, na superfície, e os seus restos ficaram espalhados
por esse local. Um pouco mais longe, muito juntos, encontrou outros
dois canhões. Também tinham a cor verde do bronze submerso
durante dois séculos e meio e, excepto algumas incrustações e a patina
bolorenta exterior, estavam razoavelmente limpos. Agora, os restos
eram abundantes: madeiras que saíam da areia, objectos metálicos em
diversos graus de corrosão, balas de canhão semienterradas, loiça
partida, aglomerados de tábuas e pregos de ferro. Coy deparou-se
mesmo com uma estrutura de madeira quase intacta que, ao
esgaravatar na areia, revelou ser maior e estar em melhor estado do
que parecia à vista desarmada. Parecia uma mesa de guarnição, com
grandes vigotas e fragmentos de cordame que se desfez ao tocá-la. E
mais canhões. Contou até nove, espalhados numa área de uns trinta
metros de diâmetro.
Surpreendia-o a limpeza em que tudo se encontrava, a ausência de
acumulação de sedimento sobre os restos que, na sua maior parte,
consistia em finas camadas de areia. A suave corrente fria que se
deslocava para sudoeste podia ser uma explicação, mantendo o sítio
limpo e encaminhando o fluxo na direcção de uma depressão aberta
um pouco mais abaixo, atrás de uma pequena crista rochosa,
atapetada de anémonas. Coy foi até aí para comprová-lo e viu que a
depressão, em forma de fenda natural, drenava os sedimentos,
desviando-os para uma série de degraus que davam para zonas mais
profundas. Um polvo, surpreendido na sua guarida pela presença do
intruso, afastou-se pela areia, com os braços abertos em forma de
estrela nervosa, lançando jorros de tinta para cobrir a retirada. Coy
consultou o relógio. O ar do regulador tornava-se mais duro, de modo
que olhou para cima, para a claridade verde-azulada que se esfumava
sobre a sua cabeça, trespassada pelas bolhas de ar que pareciam de
prata. Eram horas de subir. Levou a mão à base da garrafa para
accionar a reserva e o ar voltou a chegar-lhe aos pulmões com
normalidade.
Preparava-se para subir quando viu uma âncora. Estava
justamente na beira de uma segunda crista rochosa, já gasta pela
erosão, no outro lado da fenda de drenagem. E era grande, antiga,
com as grandes unhas de ferro bastante oxidado e coberta de
incrustações calcárias. Tanto a âncora como a crista de pedras e
anémonas tinham, agarrados a elas, restos de redes velhas e nassas
desfeitas. Com o tempo, muitos pescadores haviam perdido as suas
artes neste lugar. Mas o que lhe chamou a atenção foi que a âncora era
das de cepo de madeira, embora este tivesse desaparecido e restasse
apenas alguns pedaços sob o anete. Era uma âncora como as que um
chaveco ou um bergantim poderiam ter usado, e isso animou Coy a
atravessar a fenda, a rodear a crista e a aproximar-se dela,
aproveitando os últimos minutos da sua reserva de ar. No outro lado
das rochas, a areia alternava com um leito de cascalho; o declive era
mais pronunciado e descia dos vinte e seis aos vinte e oito metros de
sonda. E aí, na penumbra verde, diluindo-se na profundidade como
uma fantasmagórica sombra escura, estava o Dei Gloria.

XV - AS ÍRIS DO DIABO

Tudo o que se encontra no mar, sem dono, é nosso.


Francisco Coloane. O Caminho da Baleia

Com frases musicais tensas e curtas, o saxofone-contralto


improvisava como nunca ninguém o fizera. Ouvia-se Koko, um dos
temas que Charlie Parker tinha gravado quando inventou tudo o que
estava destinado a inventar antes de apodrecer e rebentar com um
ataque de riso. Por essa ordem: primeiro apodreceu e depois morreu
de riso, vendo televisão. Isso foi há meio século. E agora Coy ouvia a
gravação digitalizada daquela velha melodia, sentado, nu, numa
cadeira de baloiço diante de uma mesa com uma bandeja de fruta e
junto à janela de um quarto com vistas chuvosas do porto, na Pensão
Cartago. Tarará. Tum, tum. Tarará. Tinha uma garrafa de limonada na
mão e via Tânger dormir.
Chovia sobre o porto, sobre as gruas, molhes, sobre os barcos da
Armada atracados de dois em dois no dique de San Pedro e sobre os
cascos ferrugentos do Cemitério dos Barcos Sem Nome, onde estava o
Carpanta atracado de popa para o espigão e tendo largado uma
âncora à proa. Chovia a cântaros porque a borrasca tinha, finalmente,
chegado. Fê-lo do seu quartel-general de baixas pressões, situado
sobre a Irlanda, estendendo isóbaras malignamente concêntricas e
próximas umas das outras. Fortes ventos de oeste empurraram
sucessivas frentes nebulosas em direcção ao Mediterrâneo, e os mapas
do tempo encheram-se de advertências negras, raios e sinais de chuva,
e as costas foram trespassadas por flechas com dois ou três rabinhos
de penas na cauda que apontavam para o coração dos navios incautos.
De modo que, depois de três dias de trabalho nos destroços, os
tripulantes do Carpanta viram-se obrigados a regressar ao porto.
Apesar da impaciência de Tânger, ela própria admitiu que a pausa
seria boa para planificar os últimos passos e adquirir equipamento
necessário antes do assalto final aos segredos da tumba submarina.
Uma tumba, a do Dei Gloria, situada definitivamente a duas milhas
da costa, nos 37° 33,3minutos de latitude norte e nos 0° 46,8minutos
de longitude oeste, com a popa a vinte e seis metros de profundidade
e a proa a vinte e oito.
Durante aqueles dias em que viveram com um olho no mar e outro
no barómetro, Tânger tinha dirigido a operação da casa de pilotagem
do Carpanta. Coy e o Piloto trabalharam duramente, fazendo turnos lá
em baixo por períodos de meia hora a quarenta minutos, com
intervalos suficientes para não serem obrigados a fazer longas
descompressões. O barco, verificaram desde as primeiras explorações,
encontrava-se em bom estado, se tivessem em conta os dois séculos e
meio de permanência debaixo de água. Afundara-se de proa,
deixando uma das suas âncoras na crista rochosa antes de pousar no
fundo, orientado num eixo nordeste-sudoeste. O casco, jazendo sobre
estibordo, estava enterrado na areia com sedimentos até ao convés, a
coberta podre e cheia de aderências marinhas, mas com a popa ainda
intacta. Na direcção da proa, todo o madeiramento, o forro da coberta
e os vaus tinham desaparecido, e da areia assomavam algumas
extremidades das cavernas do navio, semelhantes a costelas de um
esqueleto limpo. Quando, nas imersões seguintes, Coy e o Piloto
exploraram o resto do Dei Gloria, puderam verificar que a sua terça
parte posterior, aproximadamente, estava a descoberto, com destroços
que teriam sido maiores noutras águas e noutra posição. O convés
parecia coberto por uma confusão de madeiras, aglomerados de ferro
apodrecido pela corrosão, areia e sedimentos, que se amontoava na
direcção da proa desfeita e enterrada. Era evidente que, com a
inclinação do bergantim enquanto se afundava, os dez canhões de
ferro da coberta e todos os objectos pesados se tinham deslocado para
a proa. E aí, com o tempo, aquele peso tinha feito o madeiramento
ceder, afundando-o na areia. Esse era o motivo pelo qual a popa se
encontrava um pouco alta e com menos destroços, embora muitos
vaus e cavernas tenham cedido e a areia se amontoasse entre o
madeiramento apodrecido. Podia distinguir-se a guinada do mastro
grande partido em combate, uma pirâmide de tábuas petrificadas em
forma de escotilha da gaiuta, duas portas de canhão na amurada de
bombordo, o cadaste que conservava, ainda preso por pernos de
bronze bolorento e cheio de filamentos e incrustações, e restos da
porta do leme.
Tinham tido sorte, explicou Tânger na primeira noite, enquanto
baloiçavam fundeados sobre o naufrágio, reunidos em volta da carta
de Urrutia e dos planos do Dei Gloria, à luz diminuta do candeeiro da
casa de pilotagem, celebrando a descoberta com uma garrafa de
branco Pescador que o Piloto tinha a bordo. Tiveram muita sorte por
várias razões e a principal era o bergantim ter ido a pique de proa e
não de popa, deixando mais acessíveis a câmara do capitão, onde
costumavam guardar-se os objectos valiosos. O mais provável era as
esmeraldas, caso estivessem a bordo no momento do naufrágio,
estarem aí ou no piso contíguo, reservado aos passageiros. O facto de
a popa não estar completamente enterrada facilitava a tarefa, porque
procurar debaixo da areia teria exigido mangueiras de extracção e um
equipamento mais complexo. Quanto ao estado de conservação,
óptimo depois de tanto tempo no fundo do mar, devia-se à crista
rochosa atrás da qual se encontravam os destroços, com os canais
naturais e as pedras que o protegiam da acção da ondulação, dos
sedimentos marinhos e das redes dos pescadores. Também a corrente
suave de água fria que circulava desde o cabo de Paios tinha atenuado
a acção dos teredos, os vermes marinhos devoradores de madeira que
encontram condições favoráveis em águas quentes. Por tudo isto, o
trabalho que tinham pela frente parecia ser esgotante, mas não
impossível. Ao contrário dos arqueólogos que investigavam
naufrágios, eles não tinham que conservar nada, podiam permitir-se
qualquer estrago necessário para chegar mais depressa ao seu
objectivo. Não havia meios técnicos nem tempo para considerações.
De modo que no dia seguinte, actuando em paralelo com o trabalho
de Tânger sobre os planos abertos em cima da mesa de cartas ou nas
anteparas do Carpanta, Coy e o Piloto perderam todo um dia de
imersões sucessivas a estender um cabo branco que ia da proa à popa
do barco afundado, seguindo a linha aparente de meio-navio. Depois,
deslocando-se com precaução entre as madeiras partidas e as
incrustações calcárias que podiam cortar como facas, cruzaram de
dois em dois metros cabos mais curtos, perpendiculares a ambos os
lados da linha longitudinal e lastrados com chumbo nas extremidades.
E, dessa forma, fizeram uma divisão dos destroços em segmentos, cuja
correspondência Tânger tinha traçado com régua e lápis nos planos do
bergantim. Assim estabeleceram pontos rudimentares de identificação
entre a realidade e o papel, situando em baixo cada parte do casco
conforme figurava em escala 1:55 nos planos fornecidos por Lúcio
Gamboa. No dia em que o barómetro começou a descer e os boletins
meteorológicos os levaram a decidir abrigar-se em Cartagena, já
tinham conseguido calcular a posição do pavimento inferior da popa,
da casa de pilotagem e da câmara, situados sob o tombadilho. A
questão principal estava em tentar averiguar o estado interior dos
aposentos do capitão Elezcano, e se o estado do madeiramento
interior resistira à pressão dos sedimentos, ao apodrecimento da
madeira e se era possível deslocarem-se lá dentro quando
descobrissem a forma de entrar. Ou, pelo contrário, se estaria tudo tão
destruído e revolto que tornasse necessário começar por cima,
partindo e desentulhando até descobrir os doze metros quadrados,
junto da popa, ocupados pelo alojamento do capitão.
A chuva continuava a cair atrás dos vidros e Charlie Parker
extinguia-se naquela paisagem com o seu saxofone, aconchegado, a
caminho do sonho eterno, pelo piano de Dizzy Gillespie. Fora Tânger
que oferecera a Coy aquela gravação, depois de a comprar numa loja
de música da Calle Mayor. Estavam sentados na porta do Gran Bar
com o Piloto, depois de um passeio sob a chuva até ao Museu Naval
da cidade e de se abastecerem pelo caminho em lojas de artigos
náuticos, supermercados, lojas de ferragens e drogarias, com dinheiro
que ela levantou de um caixa automático, após duas tentativas que a
obrigaram a diminuir o valor por falta de liquidez. Eu também estou a
mergulhar na reserva, disse sarcástica, guardando a carteira com o
cartão de crédito num bolso traseiro das suas calças de ganga. Tinham
conseguido comprar o necessário, desde ferramentas a produtos
químicos, e as compras estavam em sacos entre as pernas das cadeiras,
enquanto o toldo de lona do bar os protegia da chuvinha quente, que
envernizava a rua dando um aspecto melancólico às galerias vazias
dos edifícios modernistas cujos andares térreos, que Coy recordava
animados por velhos cafés, se tinham convertido em lúgubres
dependências bancárias. E estavam ali os três, bebendo aperitivos e
vendo passar impermeáveis e guarda-chuvas molhados, quando
Tânger deixou o diário local sobre a mesa — tinha-o aberto na página
de entradas e saídas de navios, observou Coy — se pôs em pé e foi até
à loja de música que ficava junto de Revistas Mayor, diante da
Livraria Escarabajal. Voltou com um embrulho na mão e pô-lo à frente
de Coy sem dizer pega, é para ti, sem dizer nada. Lá dentro estavam
dois CD duplos com os masters dos oitenta temas que Charlie Parker
tinha gravado para as editoras Dial e Savoy entre 1944 e 1948. E,
dadas as circunstâncias, ele só pôde apreciar o gesto. O velho Parker
custava um dinheirão.
Naquele mesmo dia, Coy julgou ver novamente Horacio Kiskoros.
Regressavam ao Carpanta carregados com as compras e, sob os muros
do antigo forte Navidad, junto ao cemitério dos barcos, ele deu uma
vista de olhos em redor. Fazia-o com frequência, por instinto, cada vez
que estavam em terra. Embora Tânger parecesse indiferente às
ameaças de Nino Palermo, Coy continuava a levá-las em conta e não
se esquecia do último encontro com o argentino na praia de Águilas.
O caso é que caminhava na direcção do espigão em cuja extremidade
estava atracado o Carpanta, na peugada de Tânger e do Piloto,
quando viu Kiskoros ao pé da torre velha. Ou julgou vê-lo. Aquela era
uma passagem frequentada por pescadores que iam ao quebra-mar,
mas a silhueta que se destacou no contraluz cinzento, entre a torre e a
ponte desmontada do Korzeniowski, não tinha aspecto de pescador:
miúda, imaculada, vestida com o que parecia ser um Barbour verde.

*1. Barbour: marca de roupa, muito difundida entre os praticantes de vela


devido aos seus casacões impermeáveis. (N. da T.)

— Aquele é Kiskoros — disse.


Tânger parou, perplexa. Ela e o Piloto voltaram-se, olhando para
onde Coy apontava, mas já não estava ninguém. De qualquer forma,
pensou Coy, LBLTL: Lei de Branco, Líquido e em Tetrabrik deve ser
Leite. De modo que Barbour, anão e por ali, só podia tratar-se de
Kiskoros. Além disso, quando os maus rondam, o normal é, mais cedo
ou mais tarde, algum pôr o nariz de fora. Pousou os sacos no chão.
Nesse momento não estava a chover, e as rajadas de sudoeste quente
que desciam assobiando pelas ladeiras de San Julián agitavam a água
dos charcos que os seus pés chapinhavam, na corrida em direcção à
torre. Continuava a não estar ninguém quando lá chegou, mas tinha a
certeza de ter visto o herói das Malvinas; e o seu desaparecimento
brusco reforçava-lhe essa convicção. Deu uma vista de olhos entre as
pranchas cortadas a maçarico, entre os ferros retorcidos que tingiam a
areia de ferrugem e, permanecendo muito quieto, aguçou o ouvido.
Absolutamente nada. O metal ressoou inseguro com os seus passos
quando trepou por uma escada da ponte desmantelada do paquete,
sujando as mãos de ferrugem. Os restos de chuva pingavam do tecto,
empapando as madeiras apodrecidas do chão. Algumas cediam sob o
seu peso, de modo que tentou ver onde punha os pés. Desceu pelo
outro lado, até à barriga aberta do bulkcarrier meio desmantelado,
com as anteparas interiores sujas de óleo preto e seco: aquilo era um
labirinto de ferro-velho, de sucata amontoada por toda a parte.
Rodeou a base de uma das gruas e penetrou no barco através de um
corredor inclinado, onde a água formava charcos no chão contra as
braçolas. Os seus sentidos tensos, em estado de alerta, acusaram a
tristeza opressiva de toda aquela desolação intensificada pela luz suja
que se filtrava do exterior. No outro lado de um aposento
desguarnecido e vazio, com todos os cabos retirados e amontoados a
um canto, espreitou para a cavidade escura de um porão. Deixou cair
um bocado de metal e o eco sinistro ecoou no fundo, entre as pranchas
invisíveis. Impossível descer sem uma lanterna. Nessa altura ouviu
um ruído atrás de si, no fundo do corredor. De modo que, com o
coração saltando-lhe no peito, a respiração suspensa até lhe doer a
mandíbula, voltou para trás. O Piloto estava ali, carrancudo e tenso,
empunhando um barrote de ferro de três palmos, e Coy blasfemou
entredentes, a meio caminho entre a decepção e o alívio. Tânger
esperava atrás, apoiada numa antepara, com as mãos nos bolsos e
uma expressão sombria. Quanto a Kiskoros, se de facto se tratava dele,
tinha voado.
Tirou os auscultadores quando o longínquo relógio da Câmara
dava as sete badaladas. A toada parecia rematar as últimas notas.
Pum! Bebeu um gole de limonada e continuou olhando para Tânger,
adormecida na cama revolta. A claridade cinzenta depurava sombras
à contraluz dos lençóis que lhe cobriam os joelhos, o tronco e a cabeça.
Dormia de lado, com uma mão estendida e outra entre as pernas
dobradas, com a cintura e as coxas a descoberto, de costas para a luz
incerta do amanhecer, e a curva das suas ancas nuas era o escorço por
onde resvalavam claridade e sombras moldando pele pintalgada,
covinhas da carne, fendas e curvas. Imóvel na cadeira de baloiço, Coy
observava os pormenores da cena: o rosto oculto, o cabelo entre os
lençóis enrugados que definiam a consistência dos ombros e das
costas, a cintura a descoberto, o alargamento das ancas e a linha
interior das coxas vistas de trás, o belo ziguezague das pernas
flectidas, as plantas dos pés. E em especial aquela mão adormecida,
cujos dedos espreitavam presos entre as coxas, muito perto da
insinuação do pêlo púbico, dourado e com tons escuros.
Pôs-se de pé e caminhou silenciosamente, aproximando-se da
cama para melhor fixar tudo aquilo na sua memória. Ao fazê-lo, o
espelho do armário do fundo reflectiu um fragmento da cena: a outra
mão de Tânger estendida sobre a almofada, o esboço de um joelho, o
corpo moldado sob o lençol. E também o próprio Coy integrado ali
através da parte do seu corpo reflectida no mercúrio do espelho: um
braço e uma mão, o contorno da sua anca nua, a certeza física de que
aquela imagem não pertencia a outro nem era um jogo de espelhos da
sua memória. Lamentou não ter à mão uma máquina fotográfica para
reter os pormenores. De modo que se esforçou por gravar na sua
retina aquele mistério semidescoberto que o obcecava; a intuição do
momento volúvel, curtíssimo, que talvez explicasse tudo. Havia um
segredo e o segredo estava à vista, apenas dissimulado no óbvio.
Outra questão era isolá-lo e compreender, mas sabia que não ia dispor
de tempo e que, num instante, os deuses ébrios e caprichosos, que
ignoravam a sua própria faculdade de criar enquanto sonhavam,
bocejariam acordando e tudo se esfumaria como se nunca tivesse
existido. Talvez nunca mais se repetisse com tanta evidência, pensou
desolado, esse momento fugaz, o relâmpago de lucidez consoladora
capaz de colocar as coisas no seu sítio, de equilibrar vazio, horror e
beleza. De reconciliar o homem reflectido no espelho com a palavra
vida. Mas Tânger começava a mexer-se sob os lençóis e Coy, que se
sentia em risco de roçar a chave do enigma, sentiu que, tal como numa
fotografia imperfeita, entre a cena e o observador se interpunha já
uma décima de segundo a mais ou a menos, como o desajuste de uma
imagem impossível de solucionar. E no espelho, para lá do escorço do
seu próprio corpo e da mulher estendida na cama, os barcos sob a
chuva eram outra vez reflexos de navios negros num mar milenar.
Nessa altura ela acordou e, com ela, acordaram todas as mulheres do
mundo. Despertou morna e sonolenta, com o cabelo revolto e colado à
cara, cobrindo-lhe os olhos, a boca entreaberta. O lençol escorregou-
lhe pelos ombros e pelas costas revelando o braço estendido, a linha
da axila na direcção dos músculos dorsais, o início tenso de um seio
comprimido sob o peso do corpo. Agora as costas queimadas pelo sol,
com a marca mais clara do fato de banho, apareciam em toda a sua
extensão até mais abaixo da cintura enquanto arqueava os rins,
espreguiçando-se como um animal belo e tranquilo, com os olhos
deslumbrados pela claridade suja da janela, descobrindo a
proximidade de Coy com um sorriso, primeiro perplexa e depois
quente, por fim repentinamente séria, grave, consciente da sua nudez
e da observação de que fora objecto. E finalmente o desafio, a volta
lenta e deliberada diante dos olhos do homem, totalmente despojada
dos lençóis, de barriga para cima, com uma perna estendida e a outra
dobrada em ângulo, impudica, a mão junto ao sexo sem chegar a
escondê-lo, as linhas do ventre convergindo para a face interior das
coxas como sinais sem retorno, a outra mão abandonada sobre o
lençol. Imóvel. E o olhar sempre firme, calmo, os olhos fixos no
homem que a observava. Depois, após uns instantes, ela escorregou
para um lado até ficar de joelhos em frente ao espelho, mostrando-lhe
por trás a nudez das costas e das ancas. Aí, aproximando os lábios do
vidro, respirou até embaciá-lo e, sem afastar os olhos de Coy, ou da
imagem de Coy, imprimiu a marca da sua boca no bafo que
embaciava o reflexo. Foi isso que fez. Depois levantou-se e, vestindo
uma camisola de manga curta pelo caminho, foi sentar-se no outro
lado da mesa, junto da bandeja com fruta. Descascou com os dedos
uma laranja inteira e começou a comê-la sem separar os gomos,
mordendo a polpa que derramava pelos lábios, pelo queixo e pelas
mãos. Coy colocou-se à frente dela, sem dizer uma palavra, e de vez
em quando Tânger olhava-o, com os dedos e a boca cobertos do sumo
da laranja, da mesma forma que o olhara quando estendida na cama,
com a diferença de que agora sorria um pouco, apenas. Sorria e depois
levava os pulsos à boca para chupar o sumo que lhe escorria até aos
cotovelos, e a laranja desfeita entre os dedos desaparecia entre os seus
lábios e a língua lambia os espaços entre os dedos, novamente os
restos de polpa nas palmas das mãos, novamente os pulsos. Então,
Coy abanou a cabeça como se negasse alguma coisa. Abanou-a de um
lado para outro antes de suspirar como se lhe tivesse escapado um
queixume triste, resignado. Depois rodeou a mesa sem se apressar,
atraiu a mulher para si e, tal como estava, sentada, com a camisola
levantada até às ancas, o sabor da laranja na boca, procurou o
caminho para ítaca na outra margem daquele mar velho e cinzento
como a memória.
Regressaram ao Dei Gloria quando passou a borrasca, depois de as
últimas nuvens se afastarem ao amanhecer deixando um rasto
avermelhado a barlavento. Novamente o mar se tornou azul intenso, e
o Sol iluminou as casinhas brancas da costa levando o vento pela mão
na forma de uma brisa suave, a soprar favorável, nas palavras do
Piloto. E naquele mesmo dia, com luz vertical projectando a sombra
de Coy na superfície da água, este voltou a mergulhar com duas
garrafas de ar comprimido nas costas para descer ao longo da baliza
— uma das grandes protecções laterais do Carpanta — que tinham
fixado, com trinta metros de cabo e um nó a cada três metros, à
extremidade de uma âncora. Tocou no fundo a pouca distância do
lado de bombordo, à altura do convés, e nadou ao longo do casco para
verificar se as marcas fixadas antes da borrasca continuavam no sítio.
Depois consultou o plano que trazia desenhado a lápis de cera numa
tabuinha de plástico, calculou as distâncias com a ajuda de uma fita
métrica e; começou a desentulhar a escotilha da popa, petrificada e
coberta de incrustações marinhas. Com uma alavanca de ferro e uma
picareta partiu as tábuas apodrecidas, que se desfizeram numa nuvem
de sujidade. Trabalhava devagar, tentando não fazer esforços que
aumentassem a sua necessidade de ar. Às vezes afastava-se um pouco
para descansar, enquanto os sedimentos pousavam e recuperava a
visibilidade. Dessa forma desmontou a escotilha e, quando a água
clareou um pouco, pôde meter a cabeça lá dentro, como fizera no dia
anterior no porão do bulkcarrier. Desta vez meteu com cuidado o
braço com a lanterna e iluminou as entranhas revoltas do bergantim,
onde peixes desorientados pela luz nadavam enlouquecidos,
procurando rotas de fuga. A lanterna devolvia a cor natural, anulando
a monotonia do verde das profundezas. Havia anémonas, estrelas-do-
mar, formações coralinas vermelhas e brancas, algas coloridas que se
agitavam suavemente, e as escamas fugitivas dos peixes cortavam o
feixe como navalhas de prata. Coy viu um tamborete de madeira
aparentemente bem conservado, caído contra uma antepara e coberto
de limo: podiam distinguir-se os adornos em espiral talhados nos pés.
Exactamente por baixo da escotilha havia uma coisa que parecia uma
colher cheia de aderências e, junto dela, aparecia a parte inferior de
um candeeiro de petróleo com o latão coberto de caramujos, meio
enterrado num montículo de areia que se fora infiltrando por entre as
tábuas apodrecidas. Descrevendo um arco com a lanterna, Coy viu os
restos do que parecia ser um aparador, destruídos a um canto e, entre
uma pilha de tábuas partidas, pôde ver rolos de cabos de pita
rodeados de filamentos pardos e objectos de metal e louça: pichel,
jarros, alguns pratos e garrafas, tudo coberto por uma finíssima
camada de sedimentos. No entanto, noutros aspectos o panorama não
era tão animador: os vaus que suportavam a coberta tinham cedido
em muitos sítios e metade da câmara era uma desordem de madeiras
e montes de areia que se tinham introduzido pelas cavernas
esburacadas. O feixe da lanterna iluminava buracos suficientes para se
deslocar pelo interior com muitas precauções, desde que as cavernas e
os vaus que mantinham a estrutura do casco não cedessem. Era mais
prudente, decidiu, levantar o maior número de tábuas possível do
tombadilho e agir a partir do exterior, a céu aberto, retirando o
madeiramento com a ajuda de flutuadores de ar que reduzissem o
esforço. Isso tornaria o trabalho mais lento, mas era preferível a ele ou
ao Piloto se verem presos lá dentro, ao menor descuido.
Tirou as duas garrafas com muito cuidado, passando-as para a
frente sobre a cabeça. Inspirou uma boa golfada de ar e deixou-as na
coberta, com o bocal preso debaixo das torneiras. Depois meteu meio
corpo pela escotilha, tendo cuidado para não ficar preso a nada e,
iluminando com a lanterna, aproximou-se do candeeiro semienterrado
até conseguir apanhá-lo. Era muito leve e soltou-o do fundo sem
dificuldade. Nesse momento viu os olhos de um grande mero que o
observava boquiaberto de um buraco por baixo da escotilha.
Cumprimentou-o acenando com a mão e depois retrocedeu de costas,
pouco a pouco, até ficar novamente à altura da coberta, atento a não
deixar sair nem um sopro do ar que precisaria para esvaziar o bocal
do regulador e respirar novamente. Mordeu o bocal, soprou no
regulador borbulhante e inspirou ar fresco sem problemas. Depois
passou as garrafas para as costas, fechando as correias. No pulso, o
relógio Seiko à prova de água do Piloto indicava que tinha passado
trinta e cinco minutos ali em baixo. Eram horas de subir, parar à altura
do nó que marcava os três metros e aguardar os sete minutos exigidos
pelas tabelas de descompressão. De modo que deu cinco puxões
sucessivos no cabo de kevlar que o mantinha unido a um cunho do
Carpanta e começou a subir devagar com o candeeiro na mão, a
menos velocidade que as suas próprias bolhas de ar, vendo a água
clarear, passando da penumbra esverdeada para o verde e deste para
azul. Antes de chegar acima, parou na marca dos três metros,
agarrado ao nó do cabo, com a sombra negra do veleiro imóvel sobre a
sua cabeça, sob a superfície cujos reflexos pareciam vidro polido.
Nesse momento o vidro partiu-se na espuma de um mergulho e
Tânger, com óculos de mergulho e os cabelos ondulando na água,
desceu dando braçadas até Coy. Nadava à sua volta como uma
estranha sereia, e a luz que se filtrava de cima empalidecia a sua pele
pintalgada, fazendo-a parecer estranhamente despida e vulnerável.
Mostrou-lhe o candeeiro do Dei Gloria e viu os olhos dela abrirem-se,
maravilhados, atrás do vidro da máscara.
Durante quatro dias, revezando-se em imersões sucessivas, Coy e
o Piloto levantaram parte da coberta do bergantim à altura da câmara.
Desobstruíram, retirando o madeiramento apodrecido de cima para
baixo, abrindo com alavancas de ferro e picaretas, com cuidado para
não afectarem a estrutura de cavernas e de vaus que mantinha a forma
do casco sob o tombadilho. Para levantar as madeiras grandes
recorriam ao princípio de Arquimedes, procurando um volume de ar
equivalente ao peso de cada objecto a levantar: uma vez livres das
madeiras grossas, usavam flutuadores semelhantes a pára-quedas de
plástico com fios de nylon, que enchiam com o ar comprimido das
garrafas de reserva arreadas verticalmente do Carpanta, com a ajuda
de um cabo. O trabalho era lento e esgotante; às vezes, a nuvem de
sedimentos era muito espessa e impedia a visibilidade ao ponto de
serem obrigados a descansar até a água clarear novamente.
Havia ossos humanos. Surgiam entre o madeiramento do barco ou
parcialmente enterrados na areia, amiúde com fragmentos do que
tinham sido os seus cintos ou sapatos. Como o crânio com uma brecha
no parietal que Coy encontrou sob uma fina camada de sedimentos,
junto de uma das portas, e que voltou a enterrar na areia, num
impulso de respeito atávico. Os marinheiros do Dei Gloria
continuavam ali, tripulando o seu barco afundado e, às vezes, quando
se deslocava entre as madeiras sombrias do bergantim, tendo a sua
respiração no regulador de ar comprimido por única companhia, Coy
podia senti-los perto na penumbra verde que o rodeava.
Todas as noites faziam um balanço à luz da casa de pilotagem, em
reuniões que pareciam conselhos de guerra presididos por Tânger,
com os planos do bergantim à frente: Coy e o Piloto vestidos com
camisolas de lã apesar da temperatura suave, para compensar o frio
que tinham dentro de si após demasiadas horas de imersão. Depois,
Coy dormia um sono pesado, sem sonhos ou imagens e, na manhã
seguinte, voltava novamente a mergulhar. Tinha a pele como grão-de-
bico demolhado.
No terceiro dia, quando subia disposto a parar na marca dos três
metros para expurgar o nitrogénio dissolvido no sangue, olhou para
cima e ficou estupefacto: a silhueta escura de outro casco balançava
junto ao Carpanta, na ondulação crescente. Subiu à superfície sem
completar a descompressão, com uma ferroada de alarme que se
intensificou ao encontrar ali a lancha-patrulha da guarda civil.
Aproximaram-se para dar uma vista de olhos, curiosos os seus
tripulantes com a imobilidade do Carpanta. Felizmente, o tenente ao
comando da embarcação era conhecido do Piloto e a primeira coisa
que Coy captou ao emergir foi um olhar tranquilizador deste: estava
tudo sob controlo. Ele e o tenente fumavam e conversavam passando
o odre de vinho de barco para barco, enquanto dois guardas jovens,
vestidos com fatos-macaco verdes e ténis, dirigiam olhares nada
desconfiados a Tânger, que lia na coberta da popa, óculos de sol, fato
de banho, chapéu de lona e aparente indiferença relativamente à cena.
A história que o Piloto acabara de contar em frases soltas, sem dar
excessiva importância, sobre turistas amadores de mergulho que lhe
tinham alugado o barco e a suposta busca desportiva de um pesqueiro
naufragado há alguns anos naquelas águas — o Leo y Vero, de
Torrevieja — tinha parecido razoável ao tenente. Especialmente
quando soube que o homem que saía da água e lhes estendia a mão
num cumprimento, depois de pendurar as garrafas, pelas correias, na
escada de popa, com o ar vagamente surpreendido, era nativo de
Cartagena e oficial da marinha mercante. A lancha-patrulha foi-se
embora, depois de o tenente se conformar em deitar uma vista de
olhos à licença de mergulho de Coy e recomendar que a renovasse,
por estar caducada há um ano e meio. E assim que ficou a meia milha
de distância na extremidade de uma esteira recta e branca, Tânger
fechou o livro do qual fora incapaz de ler uma única linha e os três
entreolharam-se com um alívio silencioso. Coy voltou a atirar-se à
água com as garrafas de ar comprimido, desceu até à marca dos três
metros e ficou ali, rodeado de medusas brancas e pardas que
passavam devagar, levadas pela corrente, até se terem diluído as
bolhas de nitrogénio que a precipitada emersão começava a formar no
seu sangue.
No quinto dia, o tombadilho do bergantim estava suficientemente
desobstruído para uma primeira exploração séria. Quase todo o
madeiramento da coberta tinha desaparecido, e a estrutura despojada
do casco na popa revelava parte dos alojamentos do capitão, os restos
de uma antepara intacta, um paiol e a câmara contígua, que era a dos
passageiros. Dessa forma, a céu aberto, Coy pôde começar a busca
desenterrando a desordem de objectos, restos e fragmentos de
madeira que se amontoava formando uma camada de quase um
metro de espessura. Escavava com as mãos enluvadas e uma pá de
cabo curto, atirando os restos inúteis pela borda, para fora do casco,
parando de vez em quando para se afastar um pouco até a nuvem de
sedimentos pousar. Dessa forma desenterrou coisas que, noutras
circunstâncias, teriam despertado a sua curiosidade, mas que agora se
limitava a descartar, impaciente: ferragens diversas, jarros de peltre,
um candelabro, fragmentos de vidro e olaria. Encontrou parte de um
sabre cuja folha tinha desaparecido com a corrosão. Tinha um punho
de bronze, grande, com o coto de uma folha larga e enormes copos
para proteger a mão: um sabre cuja única utilidade era a de cortar
carne humana durante as abordagens. Encontrou também,
aglomerado por aderências marinhas, um bloco de balas de mosquete
que conservava a forma da caixa onde se afundara, apesar de a
madeira já não existir. Enterrada na areia descobriu meia porta que
mantinha as ferragens e a chave na fechadura, balas redondas de
canhão de quatro libras, pregos petrificados de ferro, com o interior
desvanecido em manchas de ferrugem, e outros de bronze que se
conservavam em melhor estado. Sob as tábuas desfeitas de um
aparador descobriu malgas e pratos de cerâmica de Talavera
milagrosamente inteiros e limpos, ao ponto de se poder ler as marcas
dos fabricantes. Encontrou um cachimbo de barro, dois mosquetes
cheios de caramujos, discos enegrecidos e colados uns aos outros que
pareciam moedas de prata, a ampulheta partida de um relógio de
areia, e também uma régua articulada de latão, que deve ter traçado
rumos nas cartas de Urrutia. Como medida de segurança, tinham
decidido não levar para o Carpanta nenhum objecto que pudesse
levantar suspeitas, mas Coy fez uma excepção quando desenterrou
um instrumento coberto de aderências calcárias: era composto
originalmente de metal e madeira, embora esta se tenha desfeito entre
os dedos quando o sacudiu para limpá-lo, conservando apenas um
braço com peças presas na sua parte superior e um arco na inferior.
Emocionado, identificou-o sem dificuldade: tinha na mão as partes
metálicas, de latão ou bronze, correspondentes ao braço e ao limbo
graduado de um antigo octante, aquele que talvez tenha sido utilizado
pelo piloto do Dei Gloria para estabelecer a latitude. Era uma boa
troca, pensou. Um octante do século XVIII em troca do sextante que
tinha vendido em Barcelona. Colocou-o à parte, de forma a poder
recuperá-lo facilmente mais tarde.
Mas o que realmente lhe revolveu as entranhas foi o que encontrou
num canto do paiol, coberto por minúsculos filamentos pardos, atrás
das tábuas de um cofre: um simples rolo de cabo perfeitamente
enrolado, com um nó bem apertado nas duas últimas voltas, tal como
fora ali deixado pelas mãos experientes de um marinheiro
consciencioso, conhecedor do seu ofício. Aquele rolo de cabo intacto
afectou Coy mais que tudo o resto, incluindo as ossadas dos
tripulantes do Dei Gloria. Mordeu o bocal de borracha para reprimir
uma careta amarga, a tristeza infinita que sentia atropelar-se-lhe na
garganta e na boca, à medida que aumentava o rasto dos tripulantes
mortos no naufrágio. Há dois séculos e meio, homens como ele,
marinheiros habituados ao mar e aos seus perigos, tiveram aqueles
objectos nas suas mãos. Tinham calculado rumos com a régua de
latão, enrolado o cabo, medido os quartos de serviço dando voltas à
ampulheta de areia, obtido a altura dos astros com o octante. Tinham
trepado às escorregadias vergas lutando contra o vento que tentava
arrancá-los dos ovéns, e tinham uivado o seu medo e a sua coragem
humilde na oscilante mastreação, recolhendo as velas entre dedos
hirtos de frio, dando a cara a temporais de noroeste no Atlântico, a
mistrais ou levantes assassinos do Mediterrâneo. Tinham lutado a
tiros de canhão, roucos de tanto gritar, cinzentos de pólvora, antes de
irem para o fundo com a resignação dos homens que fazem bem o seu
trabalho e vendem cara a sua pele. Agora, os ossos de todos eles
estavam espalhados em redor, entre os restos do Dei Gloria. E Coy,
deslocando-se lentamente sob o fluxo de bolhas de ar que subia
rectilíneo naquela penumbra semelhante a um sudário, sentia-se como
um saqueador furtivo que viola a paz de um túmulo.
A luz vinda da porta baloiçava devagar sobre a pele nua de
Tânger. Era uma mancha de sol pequena, quadrangular, que subia e
descia com o movimento do barco, e que lhe deslizou pelos ombros e
pelas costas quando ela se separou de Coy, ainda sufocada pelo
esforço, abrindo a boca como um peixe fora de água. Tinha o cabelo,
que os dias de mar clarearam nas pontas tornando-as quase brancas,
colado à cara com suor. E esse suor escorria-lhe pela pele, fazendo
brilhar a chapa de soldado na extremidade da corrente de prata,
deixando-lhe regueiros entre os seios e depositando gotinhas na parte
superior dos lábios e das pestanas. O Piloto estava vinte e seis metros
mais abaixo, trabalhando no seu turno de imersão. O Sol quase
vertical aquecia o poço como um forno e Coy, encostado no banco sob
a escada que levava à coberta, deixava as suas mãos escorregarem
pelos flancos húmidos da mulher. Tinham-se abraçado ali mesmo,
inesperadamente, quando ele tirava o colete de mergulho e procurava
uma toalha, depois de ter estado meia hora nos destroços do Dei
Gloria, e ela passara ao seu lado, roçando-o involuntariamente. De
repente, a fadiga dele desapareceu de chofre e ela ficou muito quieta
olhando-o com aquela reflexão silenciosa com que às vezes o olhava e,
um instante depois, estavam agarrados ao pé da escada, arremetendo
um contra o outro com tanta fúria como se se odiassem. Agora, ele
apoiava-se no espaldar, desfalecido, e ela afastava-se devagar,
inexoravelmente, voltando-se de lado e libertando nesse gesto a carne
húmida de Coy, com aquela mancha de sol que lhe resvalava por
cima, e o olhar, que era novamente azul-metálico, azul-escuro, azul-
marinho, azul-de-ferro-azulado, voltado para cima, para a claridade e
para o Sol que, da coberta, entravam pela escotilha. Então Coy, de
baixo, ainda reclinado, viu-a subir nua pela escada como se partisse
para sempre. Apesar do calor, sentiu um arrepio percorrer-lhe a pele,
exactamente nos sítios que conservavam a marca dela. E de repente
pensou: um dia será a última vez. Um dia abandonar-me-á, ou
morreremos, ou envelhecerei. Um dia sairá da minha vida e eu da
dela. Um dia não terei mais que imagens para recordar, e depois nem
sequer terei vida para recompor essas imagens. Um dia apagar-se-á
tudo, talvez hoje mesmo seja a última vez. Por isso esteve a olhar para
ela enquanto ela subiu pela escada da escotilha até desaparecer na
coberta, gravando na memória o mais ínfimo pormenor. Fê-lo com
muita atenção, e a última coisa que reteve daquela imagem foi uma
gota de sémen que deslizava lentamente pela face interior de uma das
coxas dela e que, ao chegar ao joelho, reflectiu de súbito a luz
ambarina de um raio de sol. Depois ela desapareceu do seu campo de
visão e Coy ouviu o rumor de um mergulho no mar.
Passaram aquela noite fundeados sobre o Dei Gloria. A agulha do
cata-vento girava indecisa junto da lâmpada acesa no topo do mastro,
e a água mansa reflectia como um espelho o clarão intermitente do
farol de cabo de Paios, sete milhas a nordeste. Havia tantas estrelas
que o céu parecia aproximar-se do mar e até serem demasiadas para
as distinguir com facilidade. Coy ficou sentado na coberta da popa,
olhando-as e traçando entre elas linhas imaginárias que permitiam
identificá-las. O triângulo de Verão começava a subir em direcção a
sudeste e podia avistar-se um rasto da Cabeleira de Berenice, a última
das constelações da Primavera a desaparecer. A leste, brilhando sobre
a paisagem negra como tinta, o cinto do caçador Orion era bastante
visível e, prolongando uma recta de Aldebarã até ele, sobre a Ursa
Maior, encontrou a luz saída oito anos antes de Sírio, a estrela dupla
mais brilhante do céu, lá onde a Via Láctea alongava a sua esteira na
direcção do sul, a caminho das regiões do Cisne e da Águia. Todo
aquele mundo de luzes e de imagens míticas movia-se lentamente
sobre a sua cabeça e ele, como no centro de uma estranha esfera,
participava do seu silêncio e da sua paz infinita.
— Já não me ensinas nomes de estrelas, Coy.
Não a ouvira aproximar-se até estar ao seu lado. Foi sentar-se
muito perto mas sem tocá-lo, com os pés nos degraus da escada da
popa.
— Ensinei-te todos os que sei.
Ouviu um leve chapinhar quando ela meteu os pés descalços na
água. Intermitentemente, o clarão do farol delineava o contorno
impreciso da sua sombra.
— Pergunto a mim própria — disse — o que recordarás de mim.
Tinha falado com suavidade, em voz baixa. E não era uma
pergunta, era uma confidência. Coy ficou a pensar naquilo.
— É cedo para saber — acabou por dizer. — Ainda não acabou.
— Pergunto a mim própria o que recordarás depois de acabar. Coy
encolheu os ombros, sabendo que ela não podia ver o gesto. E houve
um silêncio.
— Não sei que mais esperas — acrescentou Tânger passado algum
tempo.
Ele continuou calado. Da casa de pilotagem chegava o rumor do
rádio VHF: eram dez e um quarto e o Piloto ouvia o boletim
meteorológico para o dia seguinte. A sombra da mulher permaneceu
imóvel: — Há viagens — murmurou — que só podemos fazer
sozinhos.
— Como morrer.
— Não fales disso — protestou ela.
— Morrer sozinhos, lembras-te? Como Zas... Uma vez falaste-me
do medo que sentias de que isso te acontecesse.
— Cala-te.
— Pediste-me que ficasse perto. Que o jurasse.
— Cala-te.
Coy deixou-se escorregar até apoiar as costas nas tábuas do
pavimento da coberta, com a abóbada celeste aberta diante dos seus
olhos. A silhueta escura inclinou-se sobre ele: um buraco negro nas
estrelas.
— O que poderias tu fazer?
— Dar-te a mão — respondeu Coy. — Acompanhar-te nessa
viagem para não ires sozinha.
— Não sei quando acontecerá. Ninguém sabe.
— Por isso quero ficar contigo. Esperando.
— Farias isso?... Ficarias comigo para esperar?... Para não me
deixar ir sozinha quando chegasse a hora?
— Claro.
A silhueta escura deixou o céu livre. Ela desviava-se, afastando-se.
Olhava para a água nas trevas, ou para o firmamento.
— Que estrela é aquela?
Coy seguiu a direcção do traço negro da mão dela.
— Régulo. A garra dianteira do Leão.
Tânger parecia voltada para cima, procurando o animal descrito
nas luzes que pestanejavam lá em cima. Um momento depois, voltou
a agitar os pés na água.
— Talvez eu não te mereça, Coy.
Disse-o em voz muito baixa. Ele fechou os olhos exalando devagar
o ar.
— Isso é problema meu.
— Enganaste. Não é problema teu.
Ficou calada, fazendo ruído no mar. Os pés dela continuavam a
remexer a água negra.
— És um bom tipo — disse de repente. — A sério que o és.
Coy abriu os olhos para os encher de estrelas e suportar a angústia
que lhe subia do peito. De repente sentia-se desamparado. Não se
atrevia a mover-se, como se receasse que, ao fazê-lo, a dor se tornasse
insuportável.
— Melhor que eu própria — prosseguia ela — e que toda a gente
que conheci. Pena que...
Interrompeu o que estava a dizer e o seu tom de voz era diferente
quando voltou a falar. Mais duro, seco e definitivo: — É uma pena.
Sobreveio outro silêncio. Uma estrela cadente caiu lá longe, a
norte. Um desejo, pensou Coy. Tenho de pedir um desejo. Mas a
minúscula centelha extinguiu-se antes que conseguisse formular um
pensamento adequado.
— Onde estavas quando ganhei a minha taça de natação?
Que ela fique comigo, acabou por pedir. Mas já não havia estrelas
cadentes no firmamento gelado, verificou. Estavam todas fixas e
implacáveis.
— Vivendo — respondeu. — Preparava-me para te conhecer.
Falou com simplicidade e depois calou-se. Havia um rasto de
claridade no rosto escuro de Tânger. Um reflexo muito ténue. Ela
olhava-o: — És um bom tipo.
Depois de repetir aquilo, a sombra inclinou-se mais e ele sentiu a
boca húmida dela na sua. Depois Tânger levantou-se.
— Oxalá — disse — encontres depressa um bom barco.
A rede de chumbo de uma vigia conservava ainda restos de vidro.
Afastou-se um pouco para deixar repousar a nuvem de sedimentos e
continuou a trabalhar. Tinha chegado a um lugar da câmara onde a
areia voltava a encher o buraco assim que era retirada e tinha de fazer
idas e vindas constantes com a pá curta para a deitar pela borda. Isso
cansava-o bastante e fazia-o gastar mais ar do que convinha. As
bolhas de ar subiam a um ritmo superior ao normal, de modo que
pousou a pá a um lado e foi até aos restos de uma caverna, apoiando-
se nela para descansar e convencer os seus pulmões a serem menos
exigentes. Debaixo dos pés tinha uma bala de canhão acorrentada,
daquelas que se utilizavam para quebrar a enxárcia do inimigo, que o
Piloto tinha desenterrado na imersão anterior. O seu estado de
conservação era mais que razoável, graças à areia que a protegera
durante dois séculos e meio. Talvez fosse uma das disparadas pelo
corsário, terminando ali o seu percurso depois de provocar alguns
estragos nos cabos e no velame do bergantim. Desceu um pouco para
a ver melhor — o que inventa um homem para destruir outro,
pensava — e nessa altura, por um buraco na base de uma antepara
muito próxima, viu espreitar a cabeça de uma moreia. Era grande,
com um palmo de largura, num sinistro tom escuro. Abria as fauces,
mal-humorada pela intrusão no seu território daquele estranho ser
borbulhante. Coy retrocedeu prudentemente diante daquela boca
aberta, cujos dentes podiam arrancar-lhe meio braço de uma dentada,
e foi até à espingarda de caça submarina que pendia de um cabo com
os flutuadores vazios e as outras ferramentas. Armou o arpão
esticando os elásticos e regressou à toca da moreia. Detestava matar
peixes, mas não podia trabalhar entre tábuas apodrecidas com a
ameaça de uns dentes farpados e venenosos no pescoço. O animal
continuava vigilante sob a antepara, defendendo a entrada do seu
orifício doméstico: lar doce lar. Manteve os olhos malignos fixos em
Coy quando este se aproximou empunhando o arpão e o colocou
diante das suas fauces abertas. Não é nada pessoal, companheira. Tens
apenas pouca sorte. Apertou o gatilho e a moreia debateu-se
trespassada, dando dentadas furiosas à alavanca de aço que lhe saía
pela boca, até Coy ter tirado a faca e lhe ter cortado a medula espinal à
altura da nuca. Regressou ao trabalho, desentulhando um ângulo da
câmara onde estavam amontoadas madeiras e objectos. A areia enchia
novamente os buracos que ele abria com as mãos e os caramujos e os
restos de metal tinham-lhe transformado as luvas em tiras — era o
terceiro par que rompia ali em baixo — e os dedos numa lástima de
cortes e arranhões. Encontrou o canhão de uma pistola cuja culatra de
madeira tinha desaparecido e também um crucifixo que parecia de
prata, preto e coberto de aderências, e um sapato de cabedal quase
intacto, com a sua fivela. Depois retirou algumas tábuas que se
partiram sob a picareta, subiu para deixar assentar os sedimentos e, ao
descer novamente, viu um bloco escuro, coberto de aderências
avermelhadas e pardas. A olho nu parecia um tijolo grande,
quadrado. Quis deslocá-lo e pareceu-lhe colado ao fundo. É
impossível, disse para consigo. Os cofres dos tesouros têm uma tampa
que se abre e mostra o interior brilhante, as pérolas, as jóias e as
moedas de ouro. E as esmeraldas. Os cofres dos tesouros não têm a
aparência anódina de um bloco calcário e oxidado, nem aparecem tão
facilmente debaixo de um sapato velho e de algumas tábuas. De modo
que é impossível que isto que tenho à frente seja o que andamos a
procurar. Esmeraldas grandes como nozes, íris do Diabo e coisas do
estilo. É demasiado fácil.
Escavou a areia em volta do bloco de aderências, iluminando-o
com a lanterna para verificar as suas cores reais. Devia ter dois palmos
de comprimento, outros dois de largura e um pouco menos de
profundidade, e os ângulos conservavam cantoneiras de bronze que
tingia de verde as incrustações e os caramujos mais próximos. O resto
estava coberto por uma crosta rígida e quebradiça, com restos de
madeira apodrecida e manchas de ferrugem. Bronze, madeira e ferro
em decomposição, tinha previsto Tânger. E também tinha dito que,
caso encontrasse alguma coisa com estas características,, tinha de
manipular com cuidado. Nada de pancadas nem de esgaravatar no
seu interior. As esmeraldas, se é que se tratava delas, estariam coladas
umas às outras num bloco calcário que deveria desfazer-se por meios
químicos. E as esmeraldas eram muito frágeis.
Libertou o bloco da areia com pouco esforço. Não parecia muito
pesado, pelo menos na água, mas era sem dúvida um cofre. Ficou
imóvel durante quase um minuto, respirando pausadamente,
libertando bolhas de ar a um ritmo cada vez mais lento, até acalmar
um pouco, a pulsação deixar de latejar nas fontes e o coração voltar a
bater com normalidade sob o colete de neopreno. Encara-o com calma,
marinheiro. Cofre ou não, encara-o com muita calma. Sê fleumático,
por uma vez na tua vida, porque os nervos são incompatíveis com o
facto de estares a respirar ar comprimido a duzentas atmosferas de
pressão, a vinte e seis metros de profundidade. De modo que ficou ali
algum tempo; depois foi à procura de um dos flutuadores de plástico,
fixou uma rede de malha muito fina em forma de saco na extremidade
das adriças e prendeu-a à grilheta com um lais de guia. Pôs o bloco na
rede e, com o seu próprio bocal, deixou sair um pouco de ar
comprimido para encher em parte o flutuador. Em seguida, apesar
das instruções de Tânger, esgaravatou um pouco o bloco com a ponta
da faca, soltando parte da crosta, sem encontrar nada de especial.
Esgaravatou um pouco mais e um bocado do tamanho de meio punho
desprendeu-se do resto. Agarrou-o para olhá-lo de mais perto à luz da
lanterna e, nessa altura, um fragmento desse bocado soltou-se, caindo
muito devagar até pousar na areia do fundo. Era uma pedra
translúcida de formas irregulares e com arestas rectas, poliédricas.
Numa cor verde-esmeralda.

XVI - O CEMITÉRIO DOS BARCOS SEM NOME

Como sempre o enganaste e conquistaste com truques, a este inocente?


Apolónio de Rodes. Argonáuticas

Via-se a cidade ao fundo, concentrada sob o castelo numa névoa


de tons esbranquiçados, pardos e azuis, acentuada pela luz poente. O
Sol começava a pôr-se a oeste, sobre a silhueta maciça do monte
Roldán, quando o Carpanta, amurado a bombordo com a genoa
desfraldada e a vela grande com rizes, entrou pelo canal entre os dois
faróis, passando por baixo das ameias dos antigos fortes que
guardavam a entrada da barra. Coy manteve o rumo até ter pela
alheta o farol de Navidad e as canas dos pescadores sentados entre os
blocos do quebra-mar. Nessa altura meteu a roda do leme a
barlavento e as velas grivaram enquanto o barco orçava parando na
água tranquila, ao abrigo do dique. Tânger movia a manivela de um
molinete, recolhendo a genoa, quando ele libertou o mordente da
adriça da vela grande e esta caiu deslizando ao longo do mastro.
Depois, enquanto o Piloto a ferrava à espicha, Coy ligou o motor e
aproou para a doca, na direcção dos cascos desmantelados e das
estruturas ferrugentas dos barcos sem nome.
Tânger acabou de colher em aduchas as escotas e ficou a olhar para
ele. Fê-lo demoradamente, como se lhe estudasse a cara, e ele
respondeu com uma ameaça de sorriso. Ela também sorriu e foi
depois encostar-se à escotilha, voltada para a proa onde o Piloto tinha
aberto o poço da âncora. Coy olhou para o cais comercial, onde o Felix
von Luckner estava amarrado junto de um grande navio de
passageiros e lamentou que aquela chegada fosse clandestina. Teria
gostado de ostentar no mastro um sinal de vitória, tal como os
comandantes dos submarinos alemães arvoravam na torre bandeirolas
com as toneladas afundadas. Regressamos de Scapa Flow, missão
cumprida. Comunico que os tesouros existem e que trazemos um a
bordo.
Porque as esmeraldas estavam a bordo do Carpanta. O bloco de
aderências calcárias que as continha estava envolto em várias camadas
de espuma protectora, embrulhado numa mala de viagem de
aparência inocente. Limparam-no com muito cuidado antes de o
embalarem, quase sem acreditar no que viam, maravilhados por terem
tornado realidade o sonho que Tânger — Clero Jesuítas Vários nº 356
— tivera diante de um maço de papéis velhos, há muito tempo. Era
como uma nuvem onde flutuavam os três, ao ponto de Coy não se ter
atrevido a mencionar ao Piloto o valor aproximado que aquele bloco
pétreo e sujo, resgatado do mar, atingiria no mercado clandestino da
joalharia internacional. O Piloto também não fez perguntas, mas Coy
conhecia-o bem e captava uma inquietação invulgar atrás da
indiferença aparente do marinheiro, um brilho especial nos olhos,
uma forma diferente de manter os seus silêncios, uma curiosidade
contida pelo pudor das gentes do mar, certa do seu mundo mas cheia
de incertezas, timidez e interrogações a respeito das armadilhas e
tentações da terra firme. E Coy receava assustá-lo contando-lhe que
duzentas esmeraldas em bruto, mesmo mal vendidas por Tânger pela
quarta parte do seu valor final, dariam um lucro mínimo de vários
milhões de dólares. Uma cifra que, embora possuindo imaginação
suficiente, o Piloto nunca teria sido capaz de imaginar. De qualquer
forma, o plano era esperar algum tempo, enquanto Tânger negociava
com os intermediários e depois dividir os lucros: 70 por cento para ela,
25 por cento para Coy e 5 por cento para o Piloto — que iriam fluindo
de uma forma suficientemente discreta para evitar suspeitas. Tânger
tratara de estabelecer os mecanismos necessários durante a visita que
efectuara há meses a Antuérpia, onde o seu contacto local mantinha
relações com bancos das Caraíbas, Zurique, Gibraltar e ilhas inglesas
do canal.
Nada impediria que, mais tarde, o Piloto comprasse um novo
Carpanta matriculado em Jersey, por exemplo. Ou que Coy recebesse,
enquanto não recuperava a sua licença de marinheiro, um salário
apropriado de uma hipotética companhia de navegação sedeada nas
Antilhas. Quanto a ela própria, respondera Tânger a uma pergunta de
Coy, sem levantar a vista do pincel que nesse momento utilizava para
limpar as aderências do bloco de esmeraldas, esse era um problema só
dela.
Tinham falado de tudo durante a última noite, à luz da mesa de
cartas, depois de içarem para bordo, com muito cuidado, o cofre dos
jesuítas do Dei Gloria. Lavaram-no em água doce e, depois, com
paciência, instrumentos adequados e vários manuais técnicos à mão,
Tânger foi eliminando com dissolventes químicos a camada exterior
de incrustações calcárias, num alguidar de plástico, enquanto Coy e o
Piloto a observavam com um respeito reverencial, sem se atreverem a
abrir a boca. Finalmente tinha aparecido uma superfície de
aglomerado de cristais com arestas rectas e indícios de formações
hexagonais, ainda por talhar e conservando as irregularidades
originais, que à luz da câmara lançava suaves reflexos de um verde-
azulado, tão limpo e transparente como a água.
Eram esmeraldas perfeitas, tinha murmurado Tânger, fascinada,
sem deixar de trabalhar, secando com as costas da mão o suor que lhe
colava o cabelo à testa. Tinha um olho semicerrado e uma lupa de
ourives diante do outro, uma lupa pequena e estreita, de dez
aumentos, e inclinava-se sobre o bloco para observar o seu interior a
três centímetros de distância, iluminando-o de diversos ângulos com
uma potente lanterna Maglite. Verde translúcido, Be3-Al2-Si6-O18 à
letra, pedras ideais na cor, brilho e limpeza. Tinha estudado, lido,
perguntado pacientemente durante meses para emitir agora aquele
parecer em voz baixa. Esmeraldas de vinte a trinta quilates em bruto,
sem jardins de impurezas, nítidas como gotas de óleo que, nas mãos
de ourives habilidosos, uma vez talhadas em facetas de quadriláteros
ou octógonos aproveitando as zonas de mais bela cor e refracção, se
transformariam em jóias valiosas que as damas da alta sociedade, as
mulheres ou as amantes de banqueiros milionários, mafiosos russos
ou xeques do petróleo, ostentariam em pulseiras, diademas e colares
sem fazerem perguntas sobre a sua procedência, nem sobre o longo
caminho percorrido por aquelas singulares formações de sílica,
alumina, berilo, óxidos e água, pelas quais os homens tinham matado
e morrido sempre, e continuavam a fazê-lo. Talvez, quando muito,
entre alguns, poucos, iniciados, corresse o boato de que algumas
dessas esmeraldas, as melhores, provinham de um naufrágio
documentado com dois séculos e meio. E então, o preço das melhores
peças, das maiores e mais artisticamente talhadas, dispararia até
limites de loucura nos mercados clandestinos. Na sua maior parte,
aquelas pedras voltariam a dormir um longo sono na escuridão, desta
vez dentro de cofres de segurança de bancos de todo o mundo. E
alguém, numa discreta oficina de uma rua de Antuérpia, multiplicaria
a sua fortuna.
Coy manobrou com brusquidão para evitar a lancha de pilotos que
se aproximava por estibordo, em direcção a um dos petroleiros que
aguardavam diante da refinaria de Escombreras. Distraíra-se por um
instante e sentiu, da proa, o olhar inquisitivo do Piloto. Na realidade,
estava a pensar em Horacio Kiskoros. Na sua presença, que pressentia
próxima. Mas pensava sobretudo no chefe dele. Com as esmeraldas a
bordo, estava prestes a descer a cortina sobre o último acto, e Coy
tinha dificuldade em admitir que Nino Palermo deixasse as coisas
acabarem assim. Lembrava-se das advertências do gibraltino, a sua
decisão de não ficar à margem do negócio. E aquele fulano era dos
que cumpriam as suas ameaças. Observou Tânger que, de cotovelos
sobre a escotilha, imóvel, olhava para o lugar aonde se dirigiam. Não
parecia preocupada mas ausente, mergulhada na grata realidade do
seu sonho verde. Porém, Coy sentia uma inquietação crescente, como
quando o mar está tranquilo, o céu limpo, mas uma nuvem negra
aparece no horizonte e o vento faz sentir de uma forma suspeita o seu
rumor na enxárcia. Estudou com apreensão o pequeno espigão
cinzento do ancoradouro. Relativamente a Palermo, a pergunta era
como e quando.
O levante soprava perpendicular ao espigão, de modo que Coy se
aproximou devagar a vante e um pouco a barlavento em direcção à
extremidade deste, pôs ponto morto à distância de três comprimentos,
e a âncora libertada pelo Piloto caiu na água com ruído. Quando a
sentiu unhar, Coy acelerou um pouco, metendo todo o leme para
estibordo, para que o Carpanta guinasse sobre a âncora, amarrado de
popa. Depois pôs o leme a meio e marcha a ré e, enquanto ouvia
correr os elos da amarra pela roldana da proa, retrocedeu aproando na
direcção da ponta do espigão. A meio comprimento deste parou o
motor, foi à popa, agarrou no chicote de um dos cabos atados aos
cunhos e, com ele na mão, saltou para terra para parar a suave inércia
do Carpanta sobre o molhe. Depois, enquanto à proa, o Piloto metia
dentro um pouco da amarra para deixar o barco no sítio, deu volta ao
cabo num dos cabeços — um pequeno e ferrugento canhãozinho
antigo metido no cimento até aos munhões — e depois levou um
segundo cabo para outro. O veleiro estava agora imóvel, rodeado de
velhos cascos meio desmantelados e de esqueletos abandonados.
Tânger pusera-se de pé no poço e, quando os olhos dela encontraram
os de Coy, este achou-os mortalmente sérios.
— Acabou-se — disse ele.
Ela não respondeu. Olhava para longe, para a outra extremidade
do espigão, e Coy voltou-se na mesma direcção para dar uma vista de
olhos ao que tinha atrás de si. E aí, sentado nos restos de um bote
salva-vidas estilhaçado, consultando o relógio como se alardeasse a
sua pontualidade num encontro minuciosamente programado, estava
Nino Palermo.
— Reconheço — disse o caçador de naufrágios — que fizeram um
bom trabalho.
O Sol acabava de esconder-se atrás da encosta de San Julián, e no
cemitério dos barcos intensificavam-se as sombras. Palermo tirara o
casaco, dobrando-o cuidadosamente sobre um dos bancos partidos do
bote salva-vidas e dobrava com parcimónia as mangas da camisa,
fazendo brilhar o pesado relógio do seu pulso esquerdo. Formavam
um grupinho de aparência quase cordial, os cinco sob a ponte da
velha embarcação, conversando como bons amigos. E o número era
cinco porque, além de Coy, de Tânger, do Piloto e do próprio
Palermo, Horacio Kiskoros também estava ali. Na realidade, a sua
presença era decisiva pois, caso não estivesse com eles, seria
improvável a conversa fluir, como de facto acontecia, por vias
civilizadas. Embora talvez tivesse influência o facto de Kiskoros, para
a ocasião, ter substituído a sua navalha por uma bonita pistola
cromada com as placas da coronha em madrepérola, cujo aspecto teria
sido inofensivo se não tivesse um cano com uma abertura
inquietantemente grande e orientada na direcção dos tripulantes do
Carpanta. Sobretudo na direcção de Coy, de cujos arranques
temperamentais Kiskoros e Palermo pareciam conservar uma
lembrança ingrata.
— Nunca pensei que o conseguissem — prosseguiu Palermo. —
Deveras que... Quem diria... Amadores, hem?... Pois foi uma coisa
muito bem feita. Bem feita, juro por Deus. Bem feita.
Mostrava-se sincero na sua admiração. Abanava a cabeça para
sublinhar as palavras, agitando o rabicho grisalho, com o ouro que
trazia ao pescoço a tilintar. E às vezes voltava-se para Kiskoros,
pondo-o por testemunha. Pequeno, cheio de gel, esmeradíssimo com o
seu casaco leve aos quadrados e de lacinho, o argentino concordava
com o seu chefe sem perder Coy de vista pelo canto do olho.
— Encontrar esse barco — continuou o caçador de tesouros — tem
muito mérito. Com os meios de que dispõem, é... Quem diria!
Subestimei-a, senhora. E também aqui ao marinheiro — sorria como
um tubarão rondando a presa. — Eu próprio... Valha-me Deus! Eu não
teria feito melhor.
Coy olhou para o Piloto. Os olhos plúmbeos permaneciam atentos,
com o fatalismo de quem aguarda apenas o sinal adequado para agir
num ou noutro sentido: atirar-se contra aqueles tipos arriscando-se a
receber um balázio, ou ficar ali a ver onde param as modas, à espera
de que alguém decida alguma coisa. Tu dás as cartas, dizia aquele
olhar. Mas Coy achava que já tinha arrastado o amigo longe de mais,
de modo que semicerrou devagar as pálpebras. Calma. Viu que o
Piloto as semicerrava por sua vez e, quando se voltou para Kiskoros,
verificou que este os observava alternadamente e que o cano da
pistola descrevia arcos paralelos ao seu gesto. O herói das Malvinas,
decidiu Coy, não chupava no dedo.
— Receio — concluiu Palermo — que Deadman's Chest tome o
comando das operações.
Tânger, impassível, examinava-o fixamente. Fria como um
granizado(1) de limão, comprovou Coy. O ferro das suas pupilas
estava mais escuro e mais duro do que nunca. Perguntou a si próprio
onde teria ela escondido o revólver. Lamentavelmente, não com ela.
Não naquelas calças de ganga e naquela camisola de manga curta.
Pena.

*1. Granizado: refresco feito com gelo picado e fruta esmagada. (N. da T.)

— Que operações? — perguntou ela.


Coy observou-a, admirado. Palermo erguia um pouco as mãos,
abarcando a cena, o barco. Quase parecia abarcar o mar.
— As do resgate. Estou há dois dias a observá-los da costa com
binóculos... Compreendem?... E agora somos sócios.
— Sócios em quê?
— Ora... No que há-de ser... Naquele barco. Já fizeram a vossa
parte... Fizeram-na maravilhosamente. Agora... Pelo amor de Deus!
Isto é assunto para profissionais.
— Não precisamos de si para nada. Já lho disse.
— Já mo disse, é verdade. Mas engana-se. Precisam de mim, sim.
Ou estou... Valha-me Deus! Ou estou por dentro ou rebento-lhe o
negócio a si e a estes lobinhos do mar.
— Essa não é maneira de se associar.
— Compreendo o seu ponto de vista. E creia que lamento toda esta
parafernália pistoleira. Mas o seu gorila... — apontou para Coy com o
polegar. — Bom. Jurei a mim mesmo que ele não me surpreenderia
pela terceira vez. Horacio também não tem boas recordações do
cavalheiro — coçou maquinalmente o nariz, com os olhos bicolores
voltados para Coy com uma mistura de rancor e curiosidade. —
Demasiado agressivo, não é verdade?... Demasiado agressivo.
Kiskoros torcia o bigode numa careta que gotejava vitríolo. O seu
rosto citrino ainda conservava vestígios do encontro na praia de
Águilas e, talvez por isso, parecia menos equânime que o seu chefe. A
pistola moveu-se-lhe significativamente na mão, e Palermo sorriu ao
ver esse gesto.
— Já vês — outra vez a cara de cação. — Está desejando meter-te
um tiro na barriga.
— Prefiro — sugeriu Coy — que o meta na puta da sua mãe.
— Não sejas grosseiro — o gibraltino parecia deveras
escandalizado. — Lá por Horacio te apontar uma pistola, não te dá o
direito de insultá-lo.
— Referia-me à puta da sua mãe. À sua, não à dele.
— Ora! Confesso que tenho vontade de te dar, eu próprio, um tiro.
O que acontece é que... Ora! Isso faz barulho, compreendes? —
Dir-se-ia que Palermo estava sinceramente interessado em que Coy
compreendesse. — ...O ruído é mau para os meus negócios. Além
disso, podia indispor a senhora. E já estou cansado de tantos diz tu,
direi eu. Só quero chegar a um acordo. Cada qual receba o seu... Está
bem? Que tudo acabe em paz — tinha agarrado no casaco e, com um
gesto, convidava-os a segui-lo. — Vamos instalar-nos comodamente.
Caminhou na direcção do casco do bulkcarrier meio
desmantelado, sem se voltar para verificar se o seguiam ou não. Por
outro lado, Kiskoros limitou-se a mover o cano da pistola, indicando-
lhes a direcção adequada. De modo que Tânger, Coy e o Piloto
começaram a andar atrás de Palermo. Não levavam as mãos no ar,
nem a atitude do argentino era especialmente ameaçadora. Um
passeio amistoso. Mas quando estavam ao pé da escada estendida
desde o castelo de proa do barco e Coy parou um momento,
titubeando e olhando para o Piloto, Kiskoros demorou apenas meio
segundo a encostar-lhe a pistola à cabeça.
— Tenta não morrer jovem — sussurrou muito baixinho, com
inflexões de tango.
Atravessaram corredores húmidos e em ruínas, com os cabos
pendendo do tecto e as anteparas meio desmanteladas, e depois
desceram entre o óxido das cavernas e a sobrequilha despida, pela
escada de um porão.
— Agora vamos ter uma longa conversa — ia dizendo Palermo. —
Passaremos a noite na conversa e amanhã podemos... Sim. Voltar lá
todos juntos. Tenho um barco com o equipamento pronto em Alicante.
Deadman's Chest ao seu serviço. Discrição absoluta. Eficácia garantida
— dedicou a Coy uma careta trocista. — A propósito, o meu motorista
está lá à espera, com o equipamento. Manda-te cumprimentos.
— Voltar? Onde? — perguntou Coy. Palermo riu-se da graça,
canino.
— Não faças perguntas tontas.
Coy ficou com a boca aberta, processando aquilo. Olhava para
Tânger, que permanecia impassível.
— Existe outra opção? — perguntou ela, como se Palermo fosse
um vendedor de enciclopédias às prestações. A sua voz soava a 5o
negativos.
— Sim — afirmou o outro acendendo uma lanterna. — Mas é mais
desagradável para vocês... Cuidado com a cabeça. Isso. Ponha os pés
aí, por favor. Assim — a voz dele ressoava cada vez mais abaixo, nas
entranhas do recinto metálico. — A opção é Kiskoros trancá-los aqui
por tempo indefinido...
Fez uma pausa iluminando os pés de Tânger para ajudá-la a
chegar ao fundo do porão. Cheirava a ferrugem e a sujidade
misturada com os aromas remotos das mercadorias que aquele recinto
já contivera: madeira, grão, fruta podre, sal.
— Também — acrescentou — pode meter-lhes uma bala na cabeça.
Uma vez lá em baixo, com Kiskoros e a sua pistola pendentes dos
três convidados, o caçador de tesouros utilizou o seu Dupont de ouro
para acender a mecha de um candeeiro de petróleo que iluminou o
local com um brilho mesquinho e avermelhado. Então apagou a
lanterna, pendurou o casaco num gancho e guardou o isqueiro no
bolso, antes de sorrir novamente para a assistência.
— Afastem-se da escada. Todos lá para o fundo, isso mesmo...
Instalem-se.
Nesse momento Coy compreendeu tudo. Ele não sabe, disse para
consigo. Este idiota de merda e o seu anão ainda não sabem que as
esmeraldas já estão a bordo do Carpanta, e que esta palhaçada é
desnecessária porque lhes basta lá ir apanhá-las. Olhou novamente
para Tânger, assombrado com o sangue-frio dela. Quando muito
parecia incomodada, como se estivesse em frente do guiché de um
funcionário incompetente, à espera de resolver qualquer assunto. Isto
vai acabar, pensou com amargura. Não sei de que raio de maneira,
mas vai acabar. E continua a espantar-me a massa de que é feita esta
tipa.
— Agora vamos falar um bocado — disse Palermo.
Coy viu que Tânger fazia um gesto insólito: olhava para o relógio.
— Não tenho tempo para falar — disse ela.
O gibraltino parecia parado em seco. Durante três segundos ficou
mudo e com uma expressão atónita. Depois sorriu forçada-mente.
— Vejam só! — Os dentes brancos sobressaíam à luz gordurosa do
petróleo. — Pois receio...
Tinha ficado outra vez sério, de chofre, examinando-a como se a
visse pela primeira vez. Depois observou Kiskoros, o Piloto e,
finalmente, deteve-se em Coy.
— Não me digam que... — murmurou — .. .Não é possível! Deu
dois passos sem rumo pelo porão, pôs uma mão na escada e olhou
para o rectângulo estreito de claridade que se ia apagando lá em cima,
na escotilha.
— Não é possível! — repetiu.
Voltara-se novamente para Tânger. A voz estava tão rouca que
nem parecia dele.
— Onde estão as esmeraldas?... Onde?
— Isso não lhe interessa — disse Tânger.
— Deixe-se de parvoíces. Já as têm?... Não me diga que já as têm!
?... Isto é... Pelo amor de Deus!
O caçador de tesouros desatou-se a rir e, nesse momento, em vez
do seu riso habitual de cão cansado, deu uma gargalhada que fez
estremecer os ferros das anteparas. Um riso de admiração e de
surpresa.
— Tiro o chapéu, palavra de honra! E suponho que o Horacio
também o tira. Maldita seja a minha estupidez... Juro-lhes que... Bem
jogado sim senhor! — Observava Tânger com uma curiosidade
extrema. — Os meus respeitos, senhora. Surpreendentemente bem
jogado.
Tinha tirado um maço de cigarros do casaco e acendia um. A
chama de gás dilatava-lhe mais a pupila do olho pardo que a do olho
verde. Era evidente que estava a dar a si próprio uma pausa para
reflectir.
— Espero que não levem a mal — concluiu —, mas a nossa
sociedade acaba de ser dissolvida.
Expelia o fumo devagar, semicerrando os olhos, olhando para o
grupo como que interrogando-se sobre o que fazer com eles. E Coy
percebeu, com uma desolada resignação interior, que tinha chegado o
momento. Que esse era o ponto a partir do qual seria necessário tomar
decisões, antes que outros as tomassem por ele. E que, mesmo com
decisões próprias ou sem elas, havia a possibilidade de, dentro de
alguns minutos, ele próprio estar de barriga para cima com um
orifício no peito. De qualquer forma, isso não poderia acontecer sem
tentar a sua sorte, pedindo outra carta. Seis e meia. Sete. Sete e meia.
LUC: Lei da Última Carta. Até o casco partir contra as rochas ou a
água invadir a coberta, continuamos a bordo.
— Não se pode ganhar sempre, compreendam — comentava
Palermo. — Às vezes nunca se chega a ganhar.
Coy trocou um olhar com o Piloto e pressentiu a mesma decisão
resignada. De acordo. Vemo-nos em La Obrera para beber umas
imperiais. Em La Obrera ou noutro sítio qualquer. Quanto a Tânger, a
partir desse ponto já nada podia fazer por ela, excepto facilitar-lhe na
refrega o caminho da escada que levava à coberta. A partir daí, cada
um nadava sozinho. No fim, ela teria de se desenrascar sem a mão
dele na escuridão, quando chegasse a sua vez. Porque ele ia largar
amarras muito antes. Ia fazê-lo agora mesmo, secundado pelo Piloto,
que sabia tenso e pronto para a briga.
— Nem penses! — Palermo tinha adivinhado a sua intenção e
trocava olhares precavidos com Kiskoros.
Coy calculou a distância que o separava do argentino. Sentia a
pulsação acelerar-se-lhe e um vazio no estômago. Dois metros eram
dois balázios e ignorava se, com todo aquele lastro no corpo, ia
conseguir chegar até ele e em que condições estaria se o conseguisse.
Quanto ao Piloto, esperava que Palermo não tivesse também uma
arma, mas chegado esse momento nem o Piloto nem Palermo seriam
já problema seu. Tânger tinha afirmado uma vez ao pé do cadáver de
Zas: todos morremos sozinhos.
— Já perdemos muito tempo — disse ela de repente.
Para estupefacção de todos, pôs-se a andar na direcção da escada,
como se estivesse decidida a abandonar uma reunião social
aborrecida, fazendo caso omisso da pistola e de Kiskoros. Palermo,
que nesse momento levava o cigarro à boca para dar uma passa, ficou
petrificado, com o gesto a meio.
— Está louca? Não se dá conta de que... Espere!
Ela estava agora ao pé da escada, apoiada no corrimão e parecia
deveras disposta a ir embora sem problemas. Voltara-se um pouco e
olhava em volta sem ligar a Palermo, como que perguntando a si
própria se teria esquecido alguma coisa.
— Fique aí ou lamentá-lo-á — disse o gibraltino.
— Deixe-me em paz!
Palermo ergueu a mão que segurava o cigarro, ordenando a
Kiskoros que mantivesse a pistola quieta. A cara do argentino era uma
máscara sombria à luz da chama do petróleo. Coy olhou para o Piloto
e dispôs-se a saltar. Dois metros, recordou. Talvez, graças a ela, agora
consiga percorrer esses dois metros sem me darem um tiro.
— Juro-lhe que... — estava Palermo a dizer.
De repente ficou calado e o cigarro caiu-lhe da mão, entre os pés. E
Coy, que preparava o salto para a frente, sentiu gelar-se-lhe o
movimento antes de o iniciar. Porque a pistola de Kiskoros tinha
descrito um perfeito semicírculo e apontava agora para Palermo. E
este balbuciou alguns sons confusos, do tipo que merda estás a fazer e
o que caraças está a acontecer, sem terminar de pronunciar uma única
palavra, ficando depois a olhar estupidamente para o cigarro que
fumegava entre os pés, como se aquilo fosse a explicação de alguma
coisa, antes de erguer novamente os olhos para a pistola, disposto a
confirmar que fora tudo um engano dos seus sentidos e que a arma
continuava a apontar na direcção correcta. Mas o buraco negro do
cano continuava orientado para o estômago do caçador de tesouros, e
este olhou em volta, para Coy, para o Piloto e, por fim, para Tânger.
Olhou-os um por um, levando o seu tempo, como se esperasse que
alguém esclarecesse em pormenor o que se passava com tudo aquilo.
Por último voltou-se para Kiskoros.
— Pode-se saber que merda estás a fazer?
O argentino permanecia impassível, sempre impecável e
esmerado, imóvel como o crómio e a madrepérola da sua pistola na
mão direita, a silhueta minúscula projectada contra a antepara pela
lanterna. Não tinha cara de mau, nem de traidor, nem de chalado,
nem de nada em especial. Estava ali como se não fosse nada com ele,
muito cortês e tranquilo, com o seu cabelo esticado, o seu bigode, mais
anão, porteno e melancólico do que nunca, diante do seu chefe. Ou, de
acordo com todos os indícios, seu ex-chefe.
Palermo voltara-se para os outros, mas desta vez deteve-se mais
tempo em Tânger.
— Alguém... Valha-me Deus! Alguém pode explicar-me o que está
a acontecer?
Coy fazia a si próprio a mesma pergunta, apercebendo-se de um
buraco estranho no estômago. Tânger continuava ao pé da escada,
apoiada no corrimão. De repente ele percebeu que não era uma treta.
Ela estava mesmo prestes a ir embora.
— Passa-se — disse ela muito lentamente — que é aqui que nos
despedimos todos.
O vazio no interior de Coy estendeu-se às pernas. O sangue, se é
que nesse momento circulava, devia fazê-lo tão devagar que teria sido
incapaz de encontrar a pulsação. Sem se dar conta do que fazia, foi-se
agachando pouco a pouco, até ficar de cócoras, com as costas apoiadas
numa antepara.
— Filhos da puta! — amaldiçoou Palermo.
Olhava para Kiskoros como se estivesse hipnotizado. A realidade
acudia finalmente, de uma forma coerente, à sua cabeça. E, à medida
que as peças encaixavam, a sua expressão desfigurava-se cada vez
mais.
— Trabalhas para ela — disse.
Parecia mais atónito que indignado, como se a principal censura a
formular fosse a sua própria estupidez. Sempre silencioso e imóvel,
Kiskoros deixou que a pistola que continuava a apontar ao gibraltino
confirmasse a questão.
— Desde quando? — quis saber Palermo.
Perguntou-o a Tânger que, sob a luz avermelhada do candeeiro,
parecia prestes a esfumar-se nas sombras. Coy viu-a iniciar um gesto
vago, como se a data em que o argentino decidira mudar de bando
não tivesse importância. Consultava novamente o relógio.
— Dê-me oito horas — disse a Kiskoros, de uma forma neutra. O
outro concordou, sem deixar de vigiar Palermo, mas quando o Piloto
fez um movimento casual, a pistola moveu-se, apontando para ele
também. O marinheiro olhou para Coy, estupefacto, e este encolheu os
ombros. Para ele, há já algum tempo que a linha que dividia cada
bando era clara. E, acocorado a um canto, pensou em si próprio. Para
sua surpresa, não sentia fúria nem amargura. O que sentia era a
materialização de uma certeza muitas vezes intuída e esquecida, tal
como uma corrente de água fria que lhe fosse entrando no coração e
começasse a solidificar-se em camadas de geada. Estivera tudo ali,
compreendeu., Fora tudo evidente desde o início, em sinais sobre a
estranha carta náutica das últimas semanas: sondas, perfis da costa,
baixios, escolhos. Ela própria tinha fornecido toda a informação que
devia tê-lo prevenido. Mas ele não soube, ou não quis, interpretar os
indícios. Agora anoitecia com a costa a sotavento e nada ia arrancá-lo
dali.
— Diz-me uma coisa — continuava acocorado contra a antepara,
alheio aos outros, olhando para Tânger. — Diz-me só uma coisa.
Colocava-o com uma seriedade tal que ele próprio se surpreendeu.
Tânger, que já fazia tenções de subir a escada, deteve-se, voltada para
ele.
— Só uma — concedeu.
Talvez te deva pelo menos essa resposta, dizia a expressão dela.
Paguei de outras maneiras, marinheiro. Mas pode ser que te deva isso.
Depois subirei pela escada, tudo seguirá o seu curso e ficaremos
quites.
Coy apontou para Kiskoros:
— Ele já trabalhava para ti quando matou Zas? Observou-o em
silêncio, fixamente. A luz de petróleo projectava traços sombrios na
pele pintalgada. Voltou-se para cima, como se se dispusesse a subir
pela escada sem responder. Mas, por fim, pareceu mudar de ideias: —
Já tens a resposta para o problema dos cavaleiros e dos escudeiros?
— Sim — admitiu ele. — Na ilha não há cavaleiros. Todos
mentem.
Tânger pensou um instante. Nunca a tinha visto sorrir daquela
forma tão estranha.
— Talvez tenhas chegado a essa ilha demasiado tarde. Depois
subiu a escada e desapareceu lá em cima, nas sombras.
E Coy soube que já tinha vivido essa cena anteriormente. Um raio
de sol e uma gota de âmbar, recordou. Olhou para a pistola de
Kiskoros, para a expressão desolada de Palermo, para a imobilidade
taciturna do Piloto, antes de encostar a cabeça contra a antepara de
ferro. Agora, a sua certeza e a sua solidão eram tão intensas que
pareciam perfeitas. Talvez, reflectiu, no fim de contas, estivesse
enganado e não fossem tão evidentes os limites entre cavaleiros e
escudeiros. Talvez, à sua maneira, ela tenha estado todo o tempo a
sussurrar-lhe a verdade.
Bem vistas as coisas, a traição tinha um gosto singular para a
vítima. Uma pessoa escavava a sua ferida, gozando com a sua própria
agonia. E, tal como o ciúme, podia ser mais intensamente saboreada
por quem sofria as consequências do que pelo responsável do acto em
si. Havia algo perversamente grato na estranha libertação moral que
resultava disso, na dolorosa expectativa de se aperceber de indícios,
ou na satisfação mórbida de confirmar suspeitas. E Coy, que acabava
de descobrir tudo isso, pensou muito naquela noite, sentado com as
costas contra a antepara, no porão do bulkcarrier meio desmantelado,
junto do Piloto e de Nino Palermo, diante da pistola de Horacio
Kiskoros.
— É uma questão de paciência — comentava o argentino. — Como
disse um poeta meu compatriota: quando amanhecer, cada ladrão
com a sua velha mãe.
Tinha decorrido quase uma hora e Kiskoros acabou por se mostrar
moderadamente loquaz. Quando o seu antigo chefe acabou de o
insultar e de censurar o seu virar de casaca, o herói das Malvinas foi-
se descontraindo um pouco. E talvez em memória dos velhos tempos
insinuou algumas confidências em voz baixa, facilitadas pela
penumbra do candeeiro de petróleo, pelo local e pela longa espera.
Não era, comprovou Coy, muito falador. Mas tinha, como toda a
gente, uma certa necessidade de se justificar. Souberam dessa forma
como Kiskoros se aproximara de Tânger pela primeira vez, com uma
mensagem de Palermo; e como ela, com uma habilidade espantosa e
bons reflexos, tinha alterado o panorama das suas lealdades durante
uma longa conversa — de homem para homem, esclareceu Kiskoros
— onde expôs as vantagens de uma associação mútua, com Palermo
posto de lado e incluindo trinta por cento dos lucros da empresa para
o argentino, se decidisse trabalhar como agente duplo. Porque,
conforme esclareceu Kiskoros, a vida era um cambalacho, etc. E,
sobretudo, porque guita era guita. Além de que a miúda, sublinhou,
era uma dama a sério. Recordava-lhe outra guerrilheira que conheceu
em 1976, lá no bairro prateado pela lua da ESMA: depois de uma
semana de picanha(2), ainda não tinham conseguido arrancar-lhe o
segundo apelido.

*2. Picanha: instrumento de tortura através do qual se transmitem


descargas eléctricas no corpo da vítima. (N. da T.)

Coy não teve dificuldades em imaginá-lo, enquanto o bigode


castrense do ex-sargento Kiskoros se torcia numa careta de nostalgia,
onde o cheiro da carne electrocutada se misturava com o aroma dos
bifes mal passados da Costanera, com a música do Viejo Almacén e
com as raparigas da Calle Florida. Catche Florida, pronunciava
Kiskoros tocando melancolicamente nos suspensórios. Mas essas,
interrompeu-se, são outras histórias. De modo que, voltando a Tânger
— à dama, insistia — cada vez que Nino Palermo o mandava vigiá-la
ou pressioná-la, o que ele fazia era fornecer-lhe a ela as informações.
De uma ponta a outra, com sujeito, verbo e predicado. E isso incluía
Barcelona, Madrid, Cádis, Gibraltar e Cartagena. Tânger esteve
sempre a par da sua proximidade e Kiskoros pontualmente informado
de cada um dos seus passos junto de Coy — ou de quase todos,
esclareceu com delicadeza o argentino. Quanto a Palermo, o seu
suposto sicário tinha-o intoxicado todo o tempo com informação
limitada. Até que o gibraltino, farto de milongas(3) pamperas(4),
decidiu dar uma vista de olhos. Isso esteve prestes a deitar tudo a
perder. Mas, felizmente para Tânger, as esmeraldas já estavam a
bordo do Carpanta. Kiskoros não teve outra alternativa senão seguir a
corrente de Palermo. A diferença era que, em vez de estarem Coy e o
Piloto sozinhos naquele porão, o caçador de tesouros estava a fazer-
lhes companhia. Três pássaros de um tiro. Embora, relativamente a
esse tiro, Kiskoros esperava não ter de dispará-lo.
— Isto não vai ficar assim — dizia Palermo. — Encontrar-te-ei
onde... Maldita seja! Onde quer que vás. Encontrá-la-ei a ela e
encontrar-te-ei a ti.
Kiskoros não pareceu preocupar-se excessivamente.
— A dama é bem desenrascada e sabe cuidar de si — replicou. — E
eu penso ir para longe... Volto na mesma à pátria «con La frente
marchita»(5) e compro uma fazenda em Rio Gallegos.
— Para que quer ela oito horas?
— É óbvio. Para pôr as pedras em lugar seguro.
— E deixar-te plantado, como a todos.

*3. Milonga: dança popular argentina. (N. da T.)


4. Pampera: das pampas; utilizada neste caso como sinónimo de
«argentina». (N. da T.)
5. Con La frente marchita: referência à letra de um tango. (N. da T.)

— Não — Kiskoros negava com o cano da pistola. — O nosso


assunto está claro. Ela precisa de mim.
— Essa cabra não precisa de ninguém!
O argentino levantara-se, com o sobrolho franzido. Os seus
olhinhos esbugalhados fulminavam Palermo.
— Não fale assim dela.
O gibraltino ficou a olhar para ele como quem olha para um
marciano verde.
— Não me lixes, Horacio. Não me... Vá lá! Não me digas que ela
também te sugou o cérebro.
— Cale-se!
— É de cair de cu!
Kiskoros deu um passo em frente. A pistola apontava directamente
para a cabeça do seu ex-chefe.
— Já lhe disse que se calasse. Ela é uma dama a sério.
Não dando importância à arma, o caçador de tesouros dirigiu a
Coy um olhar sarcástico.
— É preciso reconhecer — disse — que essa sujeita tem... Bolas!
Muita raça. Enganar-te a ti e ao teu amigo, suponho que não seria
difícil. Quanto a mim... Valha-me Deus! Isso tem mais mérito.
Mas.comer o filho da puta do Horacio... Entendes?... Isso já é renda de
bilros.
Suspirou, admirado. Em seguida, esticou o braço para o casaco e
tirou o maço de cigarros. Depois de pôr um na boca ficou pensativo:
— Começo a achar que ela merece deveras as esmeraldas. Procurava o
isqueiro, absorto nos seus pensamentos. Sorriu, trocista:
— Somos uns idiotas.
— Não generalize — exigiu Kiskoros.
— Está bem. Rectifico. Eu e estes dois somos tontos. Tu és idiota.
Nesse momento, a sirene de um barco que atravessava a entrada
da barra ouviu-se através das anteparas: um apito rouco, breve, com
que da ponte avisavam uma embarcação menor que deixasse a
passagem livre. E como se esse apito fosse o culminar de um longo
processo de reflexão que mantivera Coy ocupado na última hora — na
realidade, de uma forma inconsciente, dedicava-se a isso há muito
mais tempo — viu aberto, diante dos seus olhos, todo o resto da
jogada, até ao fim. Viu-o com tanto pormenor que abriu a boca,
prestes a proferir uma exclamação. Cada um dos indícios, suspeitas,
interrogações, de que se apercebera nos últimos dias, adquiriu de
chofre um significado. Até o papel que Kiskoros desempenhava nesse
momento, incluindo as oito horas de prazo e a escolha daquele porão
como calaboiço temporário podiam explicar-se em duas palavras.
Tânger preparava-se para abandonar a ilha. E eles, escudeiros
enganados, ficavam ali abandonados: — Ela vai desaparecer — disse
em voz alta.
Todos olharam para ele. Não abrira a boca desde que Tânger
desaparecera pela escotilha da coberta.
— E deixa-te plantado — acrescentou em honra de Kiskoros — tal
como a nós.
O argentino ficou a examiná-lo durante um longo bocado. Depois
sorriu, céptico. Uma rãzinha enfatuada e de cabelo esticado. Auto-
suficiente. Ricaço.
— Não digas baboseiras.
— Acabei de perceber. Tânger pediu-te para nos reteres aqui até
ser dia, não é verdade?... Depois fechas a escotilha, deixas-nos aqui e
reúnes-te com ela, não é assim? Às sete ou às oito da manhã em tal
sítio. Diz-me se estou a ir bem — o silêncio e o olhar do argentino
revelaram que, com efeito, ia bem. — Mas Palermo tem razão, ela não
vai aparecer. E vou dizer-te porque não: porque a essa hora estará
noutro lado.
Aquilo não agradou a Kiskoros. A sua expressão era tão sombria
como o buraco negro da pistola.
— Julgas-te muito esperto, não é verdade?... Pois até agora não
tens sido muito.
Coy encolheu os ombros:
— Pode ser — aceitou. — Mas até um tonto compreende que um
jornal aberto em tal ou tal página, um certo tipo de perguntas, um
postal, algumas visitas, uma carteirinha de fósforos e uma informação
fornecida há algum tempo, de uma forma casual, por Palermo em
Gibraltar, conduzem a um sítio determinado... Queres que to diga, ou
calo-me e esperamos que o descubras sozinho?
Kiskoros brincava com a patilha de segurança da pistola, mas era
evidente que tinha o pensamento noutro sítio. Franzia a boca,
indeciso.
— Diz.
Sem deixar de olhar para ele, Coy apoiou novamente a cabeça na
antepara.
— Partimos do facto — disse — de que Tânger já não precisa de ti.
A tua missão, fazer um jogo duplo, controlar Palermo, convencer-me
de que ela estava desprotegida e em perigo, termina esta noite,
retendo-nos enquanto ela se vai embora. Ela já não pode obter nada de
ti. E o que achas que faz?... Como vai partir com um bloco de
esmeraldas?... Nos aeroportos controlam a bagagem de mão com raios
X e não pode arriscar-se a expedir essa fortuna tão frágil numa mala.
Um carro de aluguer deixa pistas perigosas. Um comboio significa
fronteiras e transbordos incómodos... Ocorre-te alguma alternativa?
Ficou calado, à espera de uma resposta. Dizer tudo aquilo em voz
alta fazia-o sentir um estranho alívio, como se partilhasse a vergonha
e o fel que sentia a rebentar-lhe por dentro. Esta noite há para todos,
pensou. Para o teu chefe. Para o pobre Piloto. Para mim. E tu não vais
sair de mão beijada, anormal.
Mas a conclusão veio de Palermo e não de Kiskoros. O gibraltino
acabava de dar uma palmada na coxa: — Claro! Um barco... Um
maldito barco!
— Exactamente.
— Santo Deus, que a tipa é esperta!
— Essa é a minha pequena.
De pé junto da escada, aturdido, Kiskoros tentava digerir o
assunto. Os seus olhinhos de batráquio iam de um para o outro,
oscilando entre o desdém, a desconfiança e a dúvida razoável.
— São demasiadas suposições — acabou por contrapor. — Julgas-
te muito inteligente, mas baseias tudo em conjecturas, não há nada
que confirme essa mixórdia... Não há provas. Não há um dado
concreto a que agarrar-se.
— Enganaste. Há, sim — Coy olhou para o seu relógio: estava
parado. Voltou-se para o Piloto, que continuava imóvel e atento no
seu canto. — Que horas são?
— Onze e meia.
Observou Kiskoros com muita troça. Ria-se entredentes ao fazê-lo
e o argentino, ignorando que, na realidade, Coy estava a rir-se de si
próprio, não parecia gostar daquele riso. Tinha deixado de manusear a
patilha de segurança e agora apontava para ele.
— A uma da manhã — informou Coy — zarpa o cargueiro Felix
von Luckner da Zeeland Ship. Bandeira belga. Duas viagens por mês
entre Cartagena e Antuérpia, com carga de citrinos, creio. Admite
passageiros.
— Poça! — murmurou Palermo.
— Em menos de uma semana — Coy não tirava os olhos de
Kiskoros — ela venderá as esmeraldas num certo local da Ruben-
strasse que o teu antigo chefe pode confirmar — convidou Palermo
com um movimento de cabeça. — ...Diga-o.
— É verdade — admitiu o outro.
— Já vês — Coy voltou a rir-se daquela forma desagradável. —
Mas terá na mesma o cuidado de te enviar um postal.
Desta vez, Kiskoros acusou o golpe. A sua maçã-de-adão subia e
descia na confusão de retorcidas lealdades. Também os canalhas,
pensou Coy, têm o seu coraçãozinho.
— Ela nunca falou disso — Kiskoros olhava fixamente, como se o
culpasse. — íamos...
— Claro que não te falou! — Palermo tentava acender o cigarro
que tinha na boca. — Cretino.
Kiskoros foi-se abaixo por momentos.
— Tínhamos um carro alugado — murmurou, confuso.
— Pois já podes — sugeriu Palermo — devolver as chaves.
O seu isqueiro não funcionava, de modo que o caçador de tesouros
se levantou, inclinando-se sobre a chama do candeeiro de petróleo
com o cigarro na boca. Parecia divertido com aquela belíssima piada
na qual cada um tivera o seu quinhão.
— Ela nunca... — começou Kiskoros a dizer.
Talvez cheguemos a tempo, pensou Coy, enquanto trepavam pela
escada e o ar da noite lhe refrescava a cara. Havia muitas estrelas e as
silhuetas dos barcos desmantelados tinham uma aparência
fantasmagórica, recortadas nas luzes do porto. Lá em baixo, no chão
do porão, o argentino já não gemia. Tinha deixado de o fazer quando
Palermo parou de dar-lhe pontapés na cabeça, e o sangue que lhe saía
aos borbotões pelo nariz chamuscado se misturava com a ferrugem do
chão, ou crepitava ao molhar a sua roupa fumegante. Debatia-se ao pé
da escada com o casaco a arder, com grande alarido, depois de Nino
Palermo, inclinado para acender o cigarro, atirar contra ele, de
improviso, o candeeiro. Um arco de chamas que sulcou com um
zumbido a penumbra do porão, passou à frente de Coy e acertou em
Kiskoros no peito, justamente quando este estava a dizer isso de ela
nunca. E nunca souberam o que ela nunca teria feito ou dito porque,
nesse instante, o petróleo do candeeiro derramou-se em cima dele,
fazendo-o largar a pistola, logo que uma labareda ateou na sua roupa
e lhe cobriu a cara. Um instante depois, Coy e o Piloto estavam de pé
mas Palermo, muito mais rápido, já se tinha agachado, apoderando-se
da pistola. Ficaram assim os três, olhando uns para os outros sem
pestanejar, enquanto Kiskoros se contorcia no chão, entre labaredas,
dando uns gritos que gelavam o sangue. Por fim, Coy agarrou no
casaco de Palermo e apagou as chamas, batendo com ele e deitando-o
por cima. Ao retirá-lo, Kiskoros fumegava como um frangalho. Em
vez de cabelo e bigode tinha restolhos chamuscados, dizia ai, ai, e nos
intervalos emitia um ruído surdo, como se estivesse a fazer gargarejos
com aguarrás. Foi nessa altura que Palermo lhe deu todos aqueles
pontapés na cabeça de uma forma sistemática, quase contabilística.
Como se estivesse a pôr em cima de uma mesa as notas da sua
indemnização por despedimento. E depois, com a pistola na mão mas
sem apontar para ninguém, com um sorriso muito pouco risonho na
boca, suspirou satisfeito e perguntou a Coy se alinhava ou não. Foi o
que disse: alinhas ou não, olhando para ele à claridade das últimas
chamas do candeeiro quebrado no chão, com cara de tubarão
noctívago prestes a saldar velhas contas.
— Se a magoares, matar-te-ei — respondeu Coy.
Era essa a condição. Disse-o assim, embora fosse o outro quem
tinha a pistola de crómio e madrepérola na mão. E Palermo não lho
levou a mal, limitando-se a acentuar a careta branca de cação,
dizendo, de acordo, não a mataremos esta noite. Depois guardou a
pistola no bolso e começou a subir a toda a pressa na direcção do
rectângulo de estrelas. E agora estavam os três, Coy, Palermo e o
Piloto, correndo juntos pelo convés escuro do bulkcarrier, enquanto
no outro lado do porto, sob as gruas iluminadas e os focos dos
molhes, o Felix von Luckner se preparava para soltar amarras.
Havia luz na janela da Pensão Cartago. Junto a Coy ouviu-se o riso
de mastim exausto: Palermo também olhava para cima.
— A dama faz as malas — alvitrou o caçador de tesouros. Estavam
sob as palmeiras da muralha, com o porto atrás, em baixo. Os edifícios
iluminados da Universidade Politécnica sobressaíam na extremidade
da avenida deserta.
— Deixa-me falar antes com ela — disse Coy.
Palermo tocou no bolso, onde levava a pistola de Kiskoros.
— Nem penses! Agora somos todos sócios — continuava a olhar
para cima, a careta sombria. — Além disso, de certeza que se arranja
para te convencer outra vez.
Coy encolheu os ombros:
— De quê?
— De alguma coisa. Dá-lhe tempo e de certeza que te convence de
alguma coisa.
Atravessaram a rua seguidos pelo Piloto. Palermo fê-lo sem perder
de vista a luz da janela e, uma vez na porta da pensão, voltou a
apalpar o bolso.
— Ela ainda tem aquele pistolão de Gibraltar?
Olhava com uma enorme fixação. O olho claro parecia vidro frio.
— Não sei. É possível.
— Merda.
Palermo reflectiu um momento. Depois voltou a observar Coy,
como se reconsiderasse a sua oferta de falar com Tânger a sós.
— Ela tem os seus motivos — insinuou Coy. O gibraltino fez um
meio sorriso.
— Claro. Todos temos — olhou para o Piloto que esperava atrás,
expectante. — Até ele os tem.
— Deixa-me ser eu a falar-lhe.
O outro ainda pensou um pouco.
— De acordo.
A encarregada da pensão cumprimentou Coy, confirmando-lhe
que a senhora estava lá em cima e que pedira a conta.
Atravessaram o vestíbulo e subiram ao segundo andar, tentando
não fazer barulho nas escadas. Havia gravuras emolduradas de barcos
nas paredes e uma escultura em madeira da Virgen del Cármen num
nicho. A porta do quarto abria directamente para o patamar, no cimo
dos degraus. Estava fechada. Coy chegou à porta seguido por
Palermo. A alcatifa amortecia-lhes os passos.
— Tenta a tua sorte — sussurrou o gibraltino com a mão no bolso.
— Tens cinco minutos.
Coy agarrou na maçaneta, fazendo-a girar sem dificuldade. A
porta não estava fechada à chave. Enquanto a abria compreendeu a
inutilidade de tudo aquilo. O absurdo da sua presença ali, amante
despeitado, amigo enganado, sócio vigarizado. Na realidade
descobriu de repente, considerando as coisas a frio, que não tinha
nada para dizer. Ela estava prestes a partir, mas na verdade já tinha
ido há muito tempo, deixando-o para trás, à deriva. E nada do que ele
pudesse dizer ou fazer ia mudar o curso das coisas. Quanto às
esmeraldas, habituado a pensar nelas como uma quimera inatingível,
nunca lhe tinham importado anteriormente e continuavam a não lhe
importar agora.
Tânger era o que tinha querido ser. Quis escolher livremente e ele
sempre soube que seria assim, desde o princípio. Tinha visto a velha
taça de prata sem uma asa e a fotografia da menina que sorria a preto
e branco. Era suficiente para compreender que a palavra engano
estava deslocada, mesmo apesar dela própria. E Coy teria dado nesse
momento a volta para se ir embora, passar junto do Piloto e continuar
a andar até ao Carpanta com escala prévia no bar mais próximo, se
não tivesse iniciado já o movimento de abrir a porta. Não sentia
rancor e já nem sequer sentia curiosidade. Mas a porta abria-se cada
vez mais, revelando o quarto, a janela do fundo sobre o porto, o saco
de viagem por acabar em cima da mesa, o pacote das esmeraldas e
Tânger de pé, com a saia azul de algodão escuro, a blusa branca e as
sandálias, o cabelo acabado de lavar e ainda húmido, com as pontas
assimétricas pingando-lhe os ombros. E a pele pintalgada e escura por
todas aquelas semanas de mar e de sol, os olhos azul-marinhos
arregalados de surpresa, azulados e metálicos como o aço da 357 que
acabava de ir buscar acima da mesa ao ouvir a porta. Então, Nino
Palermo jogou o seu papel naquela tragicomédia de enganos e, sem
esperar pelos cinco minutos prometidos, passou atrás de Coy
deslizando para um lado, com a pistola de crómio e madrepérola
brilhando-lhe na mão. Coy abriu a boca para gritar não, chega, basta,
rebobinemos toda esta história absurda que já vimos milhares de
vezes no cinema. Mas ela já tinha contraído a mão e um clarão
explodiu à altura das suas ancas, com um estampido que chegou a
Coy um milésimo de segundo depois do impacto sob as suas costelas,
um estalido de raspão que o fez dar meia volta, atirando-o sobre
Palermo que, por sua vez, disparava nesse instante. Desta vez, o tiro
soou muito perto dos ouvidos de Coy, que quis gesticular para
impedir o gibraltino de usar novamente a pistola. Mas nesse momento
houve outro clarão atrás de si, outro estampido agitou o ar e Palermo
saltou para trás como se tivesse sido arrancado dos seus braços,
projectado através do patamar pelas escadas abaixo. Não se ouvira
bang, como nos filmes, mas pumba! pumba! pumba! três vezes e tudo
muito seguido. Agora só havia uma fumarada dos diabos no quarto,
um cheiro acre muito áspero e um silêncio absoluto. Quando Coy se
voltou para olhar, Tânger já não estava ali de pé, mas no outro lado da
mesa, estendida no chão, com um buraco na blusa por onde saía o
sangue num jorro muito vermelho, denso e intermitente, manchando
a blusa e o chão, manchando tudo. Estava ali, mexendo os lábios e de
repente parecia muito jovem e muito sozinha.
Foi nessa altura que saiu para a rua e verificou que estava uma
noite perfeita, com a Estrela Polar visível no seu lugar exacto, cinco
vezes à direita da linha formada por Merak e Dubhé. Andou até
apoiar-se na balaustrada da muralha e ficou ali, pressionando com
uma mão a ferida que lhe sangrava na anca. Apalpara-a sob a camisa e
vira que as costelas estavam intactas, que a ferida era superficial e que
não morreria desta vez. Contou cinto débeis batimentos do seu
coração, enquanto contemplava a doca escura, as luzes dos molhes, o
reflexo dos castelos nas montanhas. E a ponte e o convés iluminados
do Felix von Luckner, prestes a soltar amarras.
Tânger falara-lhe. Continuava a mexer os lábios quando ele se
inclinou para ela, enquanto o Piloto tentava fechar o buraco do peito
por onde a vida se lhe escapava. Falava muito baixo, de uma forma
quase inaudível e teve de se aproximar bastante da boca dela para
entender o que dizia. Custava-lhe demasiado compor as palavras,
cada vez mais fraca, apagando-se à medida que o charco vermelho se
espalhava pelo chão sob o seu corpo. Dá-me a mão, Coy, tinha-lhe
dito. Dá-me a mão. Prometeste que não me deixarias partir sozinha. A
voz extinguia-se e o resto de vida parecia ter-se-lhe refugiado nos
olhos, muito abertos, quase fora das órbitas, como se nesse momento
assomassem a um páramo desolado que lhe inspirasse horror. Juraste,
Coy. Tenho medo de partir sozinha.
Não lhe deu a mão. Ela estava no chão, tal como Zas no tapete
daquela casa em Madrid. Tinham decorrido milhares de anos, mas
para ele essa era a única coisa impossível de esquecer. Ainda a viu
mover os lábios um pouco mais, pronunciando palavras que já não
ouviu porque se tinha levantado e olhava em volta com um ar
aturdido: o bloco de esmeraldas em cima da mesa, o revólver negro no
chão, o charco vermelho que se espalhava cada vez mais, as costas do
Piloto inclinado sobre Tânger. Caminhou pelo seu próprio páramo
desolado ao atravessar o quarto e descer os degraus, passando pelo
cadáver de Palermo que estava estendido de barriga para cima a meio
das escadas, com as pernas para cima, a cabeça para baixo e os olhos
nem abertos nem fechados, a careta de tubarão impressa na cara e o
sangue correndo pelos degraus até aos pés da aterrorizada
recepcionista da pensão.
O ar da noite apurou-lhe os sentidos. Apoiado na muralha sentia a
ferida da anca a pingar, por baixo da roupa, a cada batimento do
coração. O relógio da Câmara Municipal deu uma badalada e, nesse
momento, a popa do Felix von Luckner começou a afastar-se
lentamente. Sob os focos de halogénio do convés podia ver o
primeiro-oficial vigiando o trabalho dos marinheiros no castelo da
proa, junto aos escovéns das âncoras. Estavam dois homens numa das
asas da ponte, atentos à distância entre o casco e o molhe. Sem dúvida
o piloto e o capitão.
Ouviu os passos do Piloto atrás de si, sentindo que este se apoiava
na balaustrada ao seu lado.
— Morreu.
Coy não disse nada. Uma sirene da polícia soava ao longe, vinda
da cidade baixa. No molhe acabavam de soltar a última amarra do
barco que começou a afastar-se. Coy imaginou a penumbra da ponte,
o timoneiro no seu posto, o capitão atento às últimas manobras,
enquanto a proa apontava para a entrada da barra, entre as luzes
verde e vermelha. Adivinhou a silhueta do piloto descendo para a
lancha pela escada de cunhos que pendia de um bordo. Agora, o barco
ganhava velocidade, deslizando com suavidade em direcção ao mar
negro e aberto, com as suas luzes tremeluzentes reflectidas na esteira e
um último toque rouco de buzina que deixou atrás como uma
despedida.
— Agarrei-lhe na mão — disse o Piloto. — Ela julgava que eras tu.
A sirene da polícia soava mais perto e um clarão azul apareceu na
outra extremidade da avenida. O Piloto tinha acendido um cigarro e o
clarão do isqueiro de mecha encegueirou Coy. Quando conseguiu
voltar a ver, o Felix von Luckner já navegava por águas livres. Sentiu
uma saudade imensa ao ver afastarem-se as suas luzes na noite. Podia
pressentir o aroma da chávena de café do primeiro quarto de serviço,
os passos do capitão na ponte, o rosto impassível do timoneiro
iluminado de baixo pela agulha giroscópica. Podia sentir a vibração
das máquinas sob o convés, enquanto o oficial de quarto se inclinava
sobre a primeira carta náutica da viagem, acabada de abrir sobre a
mesa para calcular um rumo qualquer, um bom rumo traçado com
réguas, lápis e compasso de pontas, em papel grosso, cujos sinais
convencionais representavam um mundo conhecido, familiar,
regulamentado por cronómetros e sextantes que permitiam manter a
terra à distância.
Oxalá, pensou, me devolvam ao mar. Oxalá encontre rapidamente
um bom barco.
La Navata, Dezembro de 1999

SOBRE O AUTOR: Arturo Pérez-Reverte - nasceu em Cartagena


(Espanha) em 1951 e licenciou-se em Ciência Política e Jornalismo.
Depois de ter feito carreira como jornalista, nomeadamente como
repórter de guerra, dedicou-se à escrita de romances e tornou-se no
autor espanhol mais lido no mundo. É autor de uma extensa obra que
com frequência foi adaptada ao cinema. É membro da Real Academia
Espanhola desde 2003.
Entre as suas obras destacam-se O Mestre de Esgrima, A Rainha
do Sul e O Pintor de Batalhas, todos editados em Portugal pela ASA,
que, em 2006, editou Hussardo, o seu romance de estreia, numa
versão revista pelo próprio autor. A ASA já iniciou a publicação da
célebre série As Aventuras do Capitão Alatriste, tendo dado à
estampa os dois primeiros volumes: O Capitão Alatriste e Limpeza de
Sangue.

Data da digitalização

Amadora, Novembro de 2007

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