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História da Vida Privada no Brasil-Império, a corte e modernidade nacional.

Por Jessé A. Chahad

A coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais é dividida em quatro
volumes e constitui uma das obras recentes mais importantes sobre História do Brasil, e
representa um marco no mercado editorial brasileiro devido ao sucesso de vendas em um país
que lê pouco e compra ainda menos. O enfoque na vida cotidiana faz um recorte da sociedade
brasileira e procura através de documentos tidos como privados construírem o ambiente das
relações sociais desde o descobrimento até meados do século XX.

A partir da leitura de testamentos, dados do recenseamento, correspondências, fotografias,


entre outros documentos, os autores vão traçar dentro da cronologia tradicional, temas
pertinentes ao cotidiano do Império, costumes e práticas comuns aos habitantes, além de
curiosidades pontuais que fornecem detalhes fundamentais para o entendimento da História,
que muitas vezes tem diminuída a sua importância por parte dos historiadores que tratam
exclusivamente da História pelo seu viés econômico, ou ainda os que trabalham a História
social de uma maneira tradicional, porém com certo conservadorismo que impede novas
interpretações acerca da importância dos costumes como retrato e imagem de uma nação.

Esta resenha não pretende ser um resumo do livro, porém devido ao formato da coleção, o
qual apresenta uma divisão em capítulos independentes dentro da obra, se considerou
necessário produzir o texto de maneira abrangente, com o desafio de representar todo o
volume, tendo uma unidade a partir da opção temática da coleção. A riqueza dos detalhes
trazidos nos trabalhos demandaria um trabalho maior, e talvez sua utilização em excesso
pudesse se limitar à repetição exaustiva de dados.

Na introdução, o historiador Luiz Felipe de Alencastro atenta para a importância de uma obra
fundadora do estudo da vida privada no Brasil. Trata-se de Sobrados e Mucambos de Gilberto
Freyre, publicado em 1936 e que trazia uma história a partir de diários, correspondências,
noticias de jornal e estudos acadêmicos oitocentistas, e polemizava sobre diversas questões da
historiografia, como por exemplo, a relação entre senhores e escravos.

Vida publica e privada

No primeiro capítulo do volume, o historiador Luiz Felipe de Alencastro irá tratar de forma
geral as condições da vida privada no Império. Inicialmente a sociedade de privilégios será o
tema em questão, visto que de certa forma essa condição é determinante para o
entendimento de certos fatores, como por exemplo, o que leva as autoridades públicas a
terem de dar o aval sobre a posse e gestão de uma propriedade privada muito presente: o
escravo. Esse paradoxo iria atravessar os anos da gestão imperial, e o autor demonstra não
acreditar que esse escravismo era herança colonial, ou seja, não representava um atraso. Era
visto sim, como um projeto para o futuro, que pretendia incluir a escravidão nos quadros do
Direito moderno, demonstrando a peculiaridade do tipo de modernidade que procurava se
construir[1].

Alencastro irá afirmar que o Rio de Janeiro será local difusor de regras e costumes, por sua vez
importados da Europa, seriam moldes para o padrão de comportamento que iria atravessar o
país pelo século XIX. Nova contradição se apresenta a partir desse fato, pois as diferenças eram
decisivas e por diversas vezes representavam entrave para a difusão do modelo europeu.
Vestimentas, instrumentos musicais, e acessórios ditavam os usos e costumes e
hierarquizavam a sociedade através da criação de um código de ética, ou melhor, uma
etiqueta, que deveria ser seguida à risca - sinal de civilização. Os sapatos, por exemplo, eram
peças do vestuário que serviam facilmente como diferenciadores entre classes, visto que
apenas homens livres os possuíam, fato endossado por fotografias do período.

As diversas revoltas do período serão tratadas dentro do contexto cultural, e a derrocada do


sistema escravista estaria ligada aos conflitos provocados pelos escravos do Oeste paulista no
período posterior ao fim do tráfico internacional em 1850. A resistência dos próprios escravos
colaborou para que novos tipos de mão de obra passassem a ser vistos como solução
econômica para o senhorio[2].

O cotidiano das religiões e crenças foi estudado pelo historiador João José Reis, e nos trouxe
um interessante ponto de vista sobre os costumes ligados a morte. A partir da análise de
testamentos, Reis tentou demonstrar as preocupações que a morte representava e o
imaginário das crenças pós mortem que deveriam garantir antes de tudo, um enterro digno,
teria garantia quase de salvação[3]. A presença não só de pessoas próximas, mas se possível
ilustres, ao lado de carpideiras em grande número eram de bom gosto e significavam que a
pessoa era bem quista. As carpideiras eram profissionais do choro, sua presença demonstrava
o caráter cênico e festivo dos rituais de enterro, claro se entender festa no sentido de
congregação e comoção social.

Os costumes dos africanos, sabidamente presente em maioria no Império também tem seus
próprios rituais de passagem, inclusive com homenagens públicas, de acordo com o prestígio
do morto. Apesar de todo o preconceito vindo da sociedade dominante, os escravos não se
viam inibidos a demonstrar suas crenças. Ao contrário, eram motivo de resistência e orgulho,
além de significarem que a autonomia cultural dos africanos por si só já se constituía, dentro
das suas limitações, uma sociedade privada.

O embate entre público e privado vem à tona quando se iniciam as tentativas de transferência
dos enterros realizados dentro das igrejas, para locais mais afastados, a fim de se preservar a
higiene - conceito fortificado com o liberalismo-e que atingiam as paróquias, que por sua vez,
eram dependes de donativos provenientes de testamentos, e de enterros. A chamada reforma
por que passariam as instituições religiosas provocaria mudanças, como aponta o autor, a
partir de então, a distância entre vivos e mortos, representada pelos cemitérios públicos
parece ter criado um esfriamento nas relações com o sagrado[4].Assim requisitava a
racionalização proposta pelo modelo liberal, cada vez mais presente e importante para a
formação do contexto que viria a se desenrolar.

Ao estudar a opulência na Bahia, a professora Kátia Mattoso irá provocar um deslocamento do


foco tradicional que permeiam os estudos sobre o Império, muitas vezes limitados ao Rio de
Janeiro. Porém, a influência fluminense se demonstra definitiva na sociedade rural baiana, que
procurava se adaptar aos costumes difundidos pela corte. Os relatos de Vilhena sobre a Bahia
são trazidos pela autora através de outras obras da historiografia que trataram do tema, assim
ela procura construir uma imagem da opulência que difere de certos moldes tradicionais da
História.

A opulência era ostentada, e às vezes a ostentação era o mais perto que um plebeu poderia
chegar de tal atributo, e mesmo podendo ser fictícia, não deixava de ser elemento de
diferenciação social ao passo em que na Europa, a nobreza a via como afirmação de seu
poder[5].A distribuição de títulos de fidalguia fazia com que genealogias inteiras fossem
criadas, a fim de que com sobrenome de prestígio, um cidadão comum pudesse se diferenciar
dos demais e o conduzir a uma função pública, ou qualquer coisa que o aproximasse da
aristocracia.

Segundo afirmação de Stuart Schwartz, “apesar da aspiração ao status de nobreza, os senhores


de engenho constituíam se essencialmente em uma aristocracia de riqueza e poder, que
desempenhou e assumiu muitos dos papeis tradicionais da nobreza portuguesa, mas nunca se
tornou um Estado com bases hereditárias”, com essa afirmação Kátia Mattoso demonstra a
linha que pretende seguir, ao considerar que a aristocracia baiana nunca viveu escondida atrás
dos muros (grifo meu) e atentando para a mobilidade que poderia trazer a simples convivência
entre os meios rural e urbano[6]. Sinal disso era a quantidade de dinheiro que circulava em
forma de empréstimo, fato bem visto, se considerarmos a tendência de modernização e
progresso que estava associada ao sentimento de solidariedade em detrimento do conceito
antiquado de usura e da honestidade dos baianos, quase sempre pagadores de suas dívidas.

A autora vai retomar a questão do modelo escravista iniciada por Gilberto Freyre, quando
trata da questão dos escravos e trabalhadores livres, estabelecendo entre esses dois
personagens da sociedade uma relação de poder, além de comparar os dois estamentos. Para
Mattoso, alguns escravos também gozavam de certas regalias, claro de acordo com a posição
do senhor a que ele pertence: “o escravo de uma casa de ricos será quase sempre desdenhado
pelo seu colega mal nutrido pertencente ao seu vizinho pobre” [7].Essa tese implica a
discussão acerca dos diferentes modos de dominação dentro do próprio sistema escravista,
mas sem qualquer “brandura” que pode ser erroneamente interpretada.

Muitos trabalhos já foram produzidos, inclusive por Ana Maria Mauad, sobre o papel das
imagens na construção dos costumes e do imaginário na sociedade. Quase sempre remetemos
ao olhar estrangeiro, que através dos seus viajantes contribuiu com relatos escritos e até
fotográficos. Não podemos esquecer da especificidade que pode representar o ponto de vista
desses viajantes, em sua maioria em busca do pitoresco e do extraordinário. Portanto
devemos ver com algumas ressalvas certas afirmações acerca do assunto, como Mauad nos
traz[8], pois a fotografia nos seduz a pensá-la com uma áurea de realismo extremamente
significante, porém longe de teor incontestável.

Algumas exceções se apresentam como o fotógrafo Marc Ferrez que procurou retratar
também o mundo trabalho, além de figuras ditas comuns ou de pouca importância, mas que
são relatos do contraste entre a imagem de modernidade e progresso pretendida pelos
governantes e o atraso representado pela miséria e trabalho escravo. Seus trabalhos
atravessaram o tempo e são referência tanto no estudo da História do Brasil, quanto no
debate sobre o uso de registro fotográfico como documento histórico e todo o problema
relacionado à sua pretensa oficialidade.

Seria impossível não se utilizar de fontes iconográficas para a produção do texto, devido à sua
notável presença no período e posteriormente sua importância como documento. Ana Maria
Mauad vai utilizar imagens em busca de uma visão mais detalhada sobre o significado das
representações e construções presentes no material. A fotografia, símbolo da modernidade foi
muito utilizada por D Pedro II na construção da imagem que queria demonstrar. Ele mesmo
obteve diversas fotografias, inicialmente através da daguerreotipia e mais tarde com o avanço
das técnicas de reprodução se utilizou ainda mais em um processo publicitário sem
precedentes nos trópicos. Contribuía para isso, a alta taxa de analfabetismo que contribuía
para que a fotografia se tornasse uma linguagem mais acessível a todos.

A título de curiosidade, vale lembrar que na Campinas de 1833, o pintor Hercules Florence já
havia conseguido desenvolver a fotografia através de técnica própria, fato ainda não tratado
de maneira digna pela historiografia e objeto de estudo do historiador Boris Kossoy,
especialista em imagens, em diversas de suas obras.

Mais uma vez os costumes importados se impõem, e estão presente nas imagens
representadas pelo vestuário, e pelo caráter cênico demonstrado pela analise do cenário. Não
só o imperador se preocupava em ser retratado ao lado de bustos de figuras de destaque ou
globos geográficos procurando demonstrar sabedoria e cosmopolitismo. As famílias em geral
procuravam se retratar com toda pompa exigida pela pequena ética dos costumes. Os escravos
ditos domésticos eram por vezes enfeitados e demonstrados com certo orgulho por seus
senhores. Porém a expressão nos rostos dos retratados não nos exige muito estudo para que
nos dias de hoje possamos ter um sentimento de tristeza oriundo de um período extenso e
cruel para os negros no Brasil.

O debate sobre o escravismo tem seqüência no trabalho de Robert W. Slenes que nos
apresenta uma carta muito peculiar na qual um jovem dá alforria a sua própria mãe,
insinuando a maneira peculiar que se davam as relações sociais no período. A partir de então,
o autor irá narrar de maneira detalhada a saga da família Gurgel Mascarenhas, natural de
Minas Gerais, mas empreendedores que apostaram em São Paulo. Dentro desse contexto,
transparece o crescimento e o desenvolvimento agrícola da região Oeste. Essa família serve
como exemplo para os moldes da época, em que o inevitável contato entre senhores e
escravos começavam a produzir frutos, ou como no caso,serem incluídos em testamentos
filhos antes rejeitados.

Robert Slenes irá contrapor os trabalhos das historiadoras Elizabeth Kuznesof e Hebe Mattos
de Castro buscando nesses trabalhos elementos que formassem bases de comparação entre a
mobilidade social nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro respectivamente. Nota-se que
entre os agricultores o enriquecimento por meio do escravismo era mais freqüente no início
de século, e declinou ao passo em que pequenos e médios senhores se encontravam em
situação crítica[9].Mais uma vez, a presença de escravos em serviços domésticos convivendo
dentro da casa senhorial é vista como fator de certa mobilidade, mesmo dentro do sistema
severo qual estava inserido e para o autor, representa uma alteração no quadro da vida
privada.

O tema da imigração é estudado no contexto das fazendas de café do oeste paulista, com o
imigrante sendo introduzido de maneira gradual junto aos cativos, o que pode ter
desencorajado uma massa maior de estrangeiros, assustados com as condições de trabalho e
pouco beneficio. Ora, se os modos e costumes eram forjados na colônia e transpassavam o
Atlântico, se mostrava necessária uma maior presença de europeus como força de trabalho,
com a iminência do fim do escravismo. A chegada de colonos germânicos no o sul do Império,
a vinda de portugueses em maior número que antes era freada no período joanino, eram
incentivadas com políticas imigrantistas somente a partir de 1818. Terras públicas teriam sido
o primeiro atrativo para convencer novos imigrantes a investirem seu próprio capital no
país[10]. Nota se não estava se pensando inicialmente em substituição de mão de obra, e sim
um sistema de loteamento que propiciasse novos pólos produtores. O quadro imaginado não
correspondeu à realidade. A chegada numerosa de imigrantes pobres engrossava as camadas
baixas e disputavam ainda trabalho com cativos, que agora trabalhavam em um regime de
emprego agora semi – escravista. A situação tem melhoria a partir dos investimentos da corte
em infra-estrutura, com a construção de estradas e vias férreas no fim da década de 1850.

Os números apresentados pelos autores merecem destaque, pois ilustram o fluxo migratório
para o Brasil: entre 1550 e 1850 chegaram cerca de quatro milhões de africanos, enquanto de
1850 a 1950, 5 milhões entre europeus e asiáticos. Após a abolição, intensificaram se a
presença de espanhóis e italianos. A transformação da sociedade era irreversível, e a abolição
deu início a uma série de modificações legais e concedeu direitos aos cidadãos, ainda que com
todos os problemas que sabemos interferirem de maneira direta quando se trata de uma
mudança na ordem privada de um local.

Porém, obviamente notamos nos dias de hoje a herança negativa deste processo que exclui a
maioria da população negra, que historicamente busca seu espaço na nova ordem. Lembrando
que aos libertos, nada alem de uma falsa liberdade foi concedida, pois não tinham terras, nem
condições ou reparos pelos anos de cativeiro. O estereótipo do escravo dava lugar ao do negro
liberto, confirmando o preconceito que era reflexo da frustração de uma elite que perdera sua
mais lucrativa forma de exploração.

Para simbolizar as transformações defendidas ao longo do trabalho, Evaldo Cabral de Mello irá
ao último capitulo reforçar o que vimos anteriormente. Dialogando com Gilberto Freyre, o
autor vai fundo na intimidade da ordem privada, e se dedica ao estudo de diários pessoais,
uma freqüente prática principalmente entre a elite, chamados de “livros de assento”,
“pequenos cadernos onde o chefe da família anotava os principais acontecimentos da história
doméstica.”.

O “fim da casa grande” marca o turbulento processo de modernização forçada e inspirada no


modelo europeu. O progresso, a republica, o futuro era inevitável e o Brasil procurava se
adaptar a nova velocidade dos acontecimentos, a revolução cientifica, aos novos modelos
políticos, porém com certo atraso criado pela própria ineficiência do Estado, em tentar impor
costumes de caráter civilizatório com moldes próprios e interesses mais do que suspeitos.

A importância da História Privada no Brasil reside nos documentos legados pelas gerações que
nos ajudam a entender melhor a sociedade, pois aproxima de maneira incontestável o objeto
de estudo sob o prisma do cotidiano e procura mostrar de uma maneira mais prática a
presença de fatores que são estudados na academia em forma de teoria pura, e muitas vezes
se tornam trabalhos sólidos, porém frios e quase aritméticos.

De certa forma, não há uma tese única a ser defendida, há muito mais. Há um deslocamento
do ponto de vista meramente econômico para uma intimidade quase desconhecida pela escola
tradicional. A partir deste viés, é que vem à tona os debates da historiografia como sistema
escravista, construção do Estado, Independência, etc. Também presente em todas as
passagens está a inevitável influência de Gilberto Freyre, polemizado até hoje e às vezes mal
interpretado, ele procurou demonstrar que apesar de todo o mal, podemos perceber algumas
diferenças entre o nosso sistema escravista, e, por exemplo, o norte americano. Guardadas as
questões que surgirão neste intenso processo de análise da complexa obra de Freyre, fica claro
que ele se dedicou a inovar ao trazer para a academia o olhar sobre os costumes não só da
aristocracia, mas também do insurgente povo brasileiro.

[1] Luis Felipe de ALENCASTRO, Vida privada e ordem privada no Império, in História da Vida
Privada no Brasil, p.17.

[2] Idem, p.93.

[3] João José REIS, O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in: História da vida privada no
Brasil, p.104.

[4]Idem, p.141.

[5] Kátia M. de Queirós MATTOSO, A opulência na província da Bahia, in: A História da vida
privada no Brasil, p.153.

[6] Idem, p.156.

[7] Idem, p.158.

[8] Ana Maria MAUAD, “Para o viajante, a impressão causada pelo olhar é a que fica,
fornecendo o estatuto de verdade ao relato. O fato de ele ter estado presente, de ter sido a
testemunha ocular de um evento, ou de um hábito cotidiano qualquer, garante a sua narrativa
o teor incontestável”. In: Imagem e auto imagem no segundo reinado. In: A História da vida
privada no Brasil, p.185.

[9] Robert W. SLENES. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: História da vida privada no
Brasil, p.247.

[10] Luiz Felipe de ALENCASTRO, Maria Luiza RENAUX. Caras e modos dos migrantes e
imigrantes. In: História da vida privada no Brasil. P.

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