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realizar seus fins. Identificáveis pelo gênero, diferenciáveis por suas habi-
lidades específicas se deixam facilmente representar respectivamente pelo
polvo e pela raposa. O polvo alude a um tipo de comportamento huma-
no: o homem de mil disfarces, poluplokos dotado de inteligência tentacular
e capaz de todos os truques, armadilha viva que confunde o adversário e
o atrai para seu labirinto. A raposa define o homem de mil desvios,
polutropos que desenha o traçado circular no interior do qual se subvertem
as relações topológicas do anterior e do posterior, do antes e do depois,
do começo e do fim.
Duas artes distintas: a polimorfia sofística que permite simular to-
das as formas, por mimetismo; a arte de ocupar, um após outro, todos
os espaços, por retornos e deslocamentos. Duas finalidades próximas:
desdobrar as linhas, traçar o círculo, enlaçar ou encerrar o oponente
em um sem saída.
O sofista, sob esse aspecto, é mestre no manuseio dos laços, arma
privilegiada da metis. Trançar, torcer, laçar, entrelaçar mediante fios e cor-
das, enquanto ações correspondentes definem, em seus jogos complexos,
o meio comum de sua atividade. O sofista é pois, aquele que sabe entre-
laçar (sumplekein) e torcer (strephein) os discursos (logoi) do mesmo modo
que o homem político pretende poder circular, sem embaraço, por luga-
res distintos e esquivar-se das mais variadas situações.
A arte de trançar e a problemática dos laços que atravessa o Sofista de
Platão aproxima a sofística do ofício próprio aos caçadores e pescadores.
Ela designa, sem dúvida, o domínio da inteligência astuciosa sob seus
diferentes aspectos, naturais ou técnicos.
O vocabulário da metis que associa o mundo da caça e da pesca à
atividade dos sofistas se torna evidente no Sofista: é a partir da análise
dessas técnicas, e, por uma espécie de astúcia suplementar que o filósofo
pode finalmente triunfar sobre o sofista, defini-lo ou encurralá-lo.
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pescador com anzol; ele é, com efeito, o modelo exemplar da metis huma-
na. O pescador com anzol se revelará, tão logo, um caçador. A fórmula
sofista caçador exprime com precisão aquilo a que visa explicitamente Platão:
o confronto da dialética filosófica com a metis sofística.
O diálogo filosófico se propõe como uma preparação, como um des-
vio tornado necessário para prosseguir por um outro caminho.
Não se poderia, entretanto, reconhecer nele uma evasiva, um ardil reno-
vado, um mero pretexto para a imposição da norma superior da essência pelo
discurso que, a esse título, oculta e dissimula, se não as mesmas estratégias
sofísticas de poder, pelo menos conserva sua violência surda?10
A filosofia dos diálogos, tal como esboçada no Sofista, parece-nos
antes sugerir a instauração de uma ontologia que não pode se furtar a
conceber o outro e toda forma de alteridade como um de seus princi-
pais elementos constitutivos. O outro será, portanto, concebido como
o gênero fundamental em virtude do qual se poderá articular a
multiplicidade genérica, sem ele, todos os demais gêneros (movimento,
repouso, mesmo) permaneceriam isolados. É o outro, enquanto catego-
ria plurifuncional, que instaura a ontologia como pensamento da dife-
rença e como pensamento na diferença.
Que a alteridade radical seja, todavia, submetida ao regime do mesmo, e
ainda que a ontologia platônica aborte a distinção entre o algo (ti) e o ente
(on), suspenda provisória e negativamente a vigência do um (hen) para sua
instauração, essa submissão, esse aborto, essa negação constituem, no
entanto, a via positiva, a afirmação filosófica da pertinência da alteridade
em sua diferença para o pensamento. O pensamento, ontológico ou não, é
desde Platão pensamento da alteridade, do estrangeiro e da diferença.
O desvio, afinal, o pequeno desvio não significa outra coisa: devir em
direção a um outro. A estratégia platônica como desvio seletivo, que per-
mite desfazer as amarras do senso comum e da opinião e desatar o nó
firme do bom senso, é como uma rede de pesca arremessada diante do
caos. Um pensamento-rede, instaurativo e ontológico.
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Notas
1. DETIENNE, M. & VERNANT, J-P. La Course dAntiloque, in: Les ruses de lintelligence: La métis
des grecs, pp.17, Paris: Flammarion, 1974.
2. DETIENNE, M. & VERNANT, J-P. La Course dAntiloque, in: Les ruses de lintelligence: La métis
des grecs, p. 26, Paris: Flammarion, 1974.
3. PLATÃO - República, 568d.
4. DETIENNE, M. & VERNANT, J-P. La Course dAntiloque, p. 28, in: Les ruses de lintelligence: La
métis des grecs, Paris: Flammarion, 1974.
5. DETIENNE, M. & VERNANT, J-P. Le renard e le poulpe, p. 48, in: Les ruses de lintelligence: La
métis des grecs, Paris: Flammarion, 1974.
6. Idem.
7. DETIENNE, M. & VERNANT, J-P. Le renard e le poulpe, p. 54, in: Les ruses de lintelligence: La
métis des grecs, Paris: Flammarion, 1974.
8. Cf. JOLY, H. Le renversement platonicien: Logos, Episteme, Polis, Paris: J. Vrin, 1985.
9. PLATÃO, Sofista, 218b-d.
10. Assim parece sugerir em seu artigo JACQUES, F. Dialogue et Dialectique chez Platon: une reévatiacion,
in: La naissance de la raison en Grèce, Actes du Congrés de Nice, mai, 1987, pp. 396-403, que a
despeito das intenções de Platão (sic), é preciso reconhecer nos Diálogos um elemento de manipula-
ção e o exercício monológico que trai a má consciência de Platão (sic).
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Resumo
A ontologia de Platão recorre ao método dialético para subverter a
astúcia sofística. A dialética platônica, entretanto, pode sugerir uma astú-
cia suplementar. A criação da ontologia depende do sucesso dessa sub-
versão e da categoria plurifuncional do outro.
Palavras-chave
Platão, sofistas, dialética, astúcia, ontologia, diferença.
Abstract
Platos ontology appeals to the dialectical method so that to subvert
the cunning of the Sophists. The Platonic dialectics, nevertheless, suggests
another kind of the cunning. The construction of the ontology depends
on the success of this subversion and depends on this multifuctional
category of the other.
Key-words
Plato, Sophists, dialectics, cunning, ontology, difference.
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