Rio de Janeiro,
2014
I27r Illanes, Ana Maria del Rosario Lea-Plaza.
222 f. ; 21 cm.
CDD Ch860.9
RESUMO
Palabras claves: Novela de Formación – primera mitad del siglo XX – literatura chilena
y brasilera.
ÍNDICE
Breve
explicação..........................................................................................................................1
Introdução..........................................................................................................................5
I. Pressupostos teóricos....................................................................................................14
1.
Formação.........................................................................................................................14
Formação e transformação..................................................................................23
2. Bildungsroman........................................................................................................25
O Bildungsroman alemão....................................................................................34
de Sísifo..................................................................................................149
IV. Conclusões..................................................................................................204
Bibliografia..........................................................................................................................
...213
Ao professor Ronaldes de Melo e Souza, por sua acolhida e sua certeira orientação.
Aos meus pais, Carmen Gloria e Alfredo, que me educaram em liberdade, a mesma
liberdade que me trouxe ao Brasil.
Esta dissertação pôde ser realizada graças ao apoio de Becas Chile – CONICYT, que
durante o período de agosto de 2009 e agosto de 2013 concedeu-me uma bolsa de
estudos.
1
Na nossa vida,
O triunfo, o aperfeiçoamento,
BREVE EXPLICAÇÃO
O trabalho de tese que aqui quero apresentar para alcançar o título de Doutora em Letras
Vernáculas, área de concentração em Literatura Brasileira, surgiu a partir de diferentes
experiências da minha carreira literária que, em conjunto, permitiram que este se fosse
perfilando. No que se segue abaixo, gostaria de relatar quais foram estas experiências, com o
fim de dar a conhecer melhor minhas motivações como pesquisadora e os problemas que me
interessa enfrentar durante o desenvolvimento deste trabalho.
A primeira delas e, sem dúvida, a mais importante foi o estudo pormenorizado que fiz
da obra de quem considero o mais importante narrador chileno do século XX. Seu nome:
Manuel Rojas, Prêmio Nacional de Literatura (1957) e autor de uma extensa tetralogia
composta por quatro romances: Hijo de ladrón (1951), Mejor que el vino (1958), Sombras
contra el muro (1964) e La obscura vida radiante (1971). Estudei a obra toda desse escritor,
começando pelos seus contos iniciais, durante a minha monografia, passando pelos romances
recém-mencionados durante a monitoria que prestei ao professor e especialista neste autor,
Grínor Rojo; para terminar com a minha Dissertação de Mestrado, em que realizei uma
2
análise especializada de Punta de rieles (1959), obra que não faz parte da tetralogia, mas que
tem uma clara continuidade com ela.
Estes estudos fizeram com que eu tivesse uma primeira aproximação com o gênero do
Bildungsroman ao ter que trabalhar uma obra inteiramente organizada em termos do que
Grínor Rojo chama de um “macroromance de formação” concentrado nas camadas
subalternas do Chile prévio aos anos 60, isto é, em personagens populares não obreiros:
itinerantes, pobres, com ofícios variados e irregulares (comediantes, jovens anarquistas,
sapateiros, mendigos, delinquentes, etc). Em termos gerais, este conjunto de obras
apresentava-se, nas palavras do crítico chileno, não como um Bildungsroman, mas como um
Anti–Bildungsroman, denominação que se refere, neste caso, à negação da ordem burguesa
que o final do processo formativo do protagonista descreve, para validar, assim, um modo de
vida pré-moderno e pautado pelos valores de uma ideologia anarquista.
Uma segunda experiência decisiva foi a minha participação no projeto de pesquisa
sobre literatura e cidade do professor Danilo Santos López, na Pontifícia Universidade
Católica do Chile (PUC). Durante o processo de tentar estabelecer os vínculos literários entre
romance e cidade, chegamos a um importante corpus de Romances de Formação
especificamente urbanos dentro da narrativa atual, dos quais tive que trabalhar dois: La vida
exagerada de Martín Romaña (1981), do famoso escritor peruano Alfredo Bryce Echenique, e
La ciudad sitiada (2006), da narradora jovem Alejandra Jaramillo (colombiana).
Do ponto de vista da maturação do meu projeto, esta experiência foi interessante, pois
me permitiu começar a vislumbrar as possibilidades e o dinamismo objetivo que apresentava
o gênero do Bildungsroman. No conjunto dos meus estudos anteriores, tinha já diante de mim
três variações do modelo. A primeira delas: a que descrevi nos parágrafos recentes (em termos
de Grínor Rojo, um anti ou contra-bildungsroman de personagem subalterno) e agora me
encontrava com mais duas variações. Um romance de formação especificamente de escritor,
no caso da obra do narrador peruano, que estabelecia relações explícitas com À la recherche
du temps perdu, de Marcel Proust; e um romance de formação feminino, no caso da narradora
colombiana. Em suma, três variações pautadas pelos diferentes sujeitos ou, para falar em
termos mais diretos, pelos diferentes personagens em formação que cada um dos romances
apresentava.
Mais tarde fui percebendo que estas variações eram, de fato, contempladas pela crítica
e usadas como portas de acesso para tratar casos isolados de Romances de Formação. É o que
3
fui compreendendo na última das experiências que quero mencionar sobre a minha
aproximação com o gênero que pretendo estudar. Trata-se do seminário sobre Romance de
Formação, dado pelo professor Michael Bell (Universidade de Warwick), na PUC do Chile,
em que tive a oportunidade de participar durante o mês de janeiro do ano de 2009 e onde
recebi uma primeira aproximação mais ordenada do fenômeno do Bildungsroman, neste caso,
especificamente europeu. Pude conhecer, assim, alguns antecedentes não latino-americanos
do gênero e também dos conceitos envolvidos nele. Dentro do corpus filosófico, lemos
Rousseau (Emilio, ou da educação, 1762), Schiller (A educação estética do homem, 1795), e
um breve, mas contundente artigo de Verdade e método (1967), de Gadamer, onde o autor
situa o conceito de formação no contexto do romantismo alemão; para logo passar à leitura de
alguns exemplos literários mais concretos como Great expectations (1860), de Charles
Dickens, A portrait of the artist as a young man (1916), de James Joyce, To the lighthouse
(1927), de Virginia Woolf, entre outros.
Diante dessas três instâncias e ciente da riqueza que apresentava o assunto, tomei a
decisão de aprofundá-lo durante a minha tese de doutorado. Como é de se esperar, no entanto,
os fins da minha pesquisa não acabavam no estudo em si do Bildungsroman. Interessada em
desenvolver uma carreira com especialização em literatura, cultura e língua brasileira, o
gênero escolhido e o período traçado para a pesquisa se apresentava como uma excelente via
de acesso para conhecer e aprofundar num corpus relativamente amplo de autores de grande
importância para a literatura brasileira. Como veremos mais na frente, estou pensando em
Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Clarice Lispector, entre outros. A
perspectiva de ter que voltar ao meu país para ensinar e empreender projetos de pesquisa
sobre a literatura do Brasil, fez com que escolhesse o caminho – relativamente heterodoxo
para uma tese de doutorado – da pesquisa panorâmica. Carecendo de uma formação de base
sobre a literatura desse país, pareceu-me quase inevitável a necessidade de me desviar do
caminho de uma tese mais especializada e, poderia dizer-se, mais “correta”, com o fim de
evitar uma formação demasiado restrita sobre um campo em que eu era ainda uma
principiante. Em função de um preparo melhor para a carreira em que estava me iniciando,
decidi, então, assumir o risco de trabalhar um corpus relativamente vasto de autores: deixaria,
eventualmente, de fazer uma contribuição “científica” à crítica literária brasileira, mas
favoreceria a cooperação cultural, no nível do ensino superior e da pesquisa, entre o Chile e o
Brasil.
4
Por outro lado, quis fazer compatível estes estudos com os que eu já possuía sobre
literatura chilena, e que ainda precisava aprofundar e aperfeiçoar. Por este motivo, inscrevi a
minha pesquisa no âmbito da literatura comparada: continuaria estudando a literatura do meu
país, desta vez favorecida pela distância cultural que, simultaneamente, iluminaria a literatura
e a cultura do país em que me estava formando.
5
INTRODUÇÃO
por outro, a de uma periferia que se percebe como tal e que, portanto, restringe-se à imitação
inerte das manifestações desse núcleo (SUBERCASEAUX, 1988, p. 187). Ao contrário, anima-
nos a expectativa de ver o que há de original nessas obras compreendendo-as como textos que
participam vivamente da cultura ocidental, criados por autores que, a partir dos seus lugares
existenciais, espaciais e temporais de origem, encontram-se intimamente vinculados com o
todo dessa literatura. Em outras palavras, reformulando o que foi proposto no primeiro
parágrafo desta introdução, queremos ver qual é o “nosso Romance de Formação” e não
como é que se apresenta “o Romance de Formação entre nós”. Se, para isso, temos que nos
referir aos modelos europeus, é porque pensamos que eles formam parte importante desse
todo literário, e que, enquanto tais, são relevantes para a visualização do nosso Romance de
Formação, mas estamos longe de afirmar que tal parte constitua o todo.
Bildungsroman chileno inaugurar-se, em plena literatura burguesa, com Martín Rivas (1886),
obra que tem por um dos eixos organizadores do enredo um episódio histórico de grande
alcance nacional no Chile da época: o chamado “Motín de Urriola”. Apesar do seu
protagonismo dentro do romance, este acontecimento é apresentado como um evento de
impacto limitado, dando conta, no parecer de Jaime Concha, da crise ideológica em que se
acha o universo político da época em que Alberto Blest Gana escreve Martín Rivas. Por este
motivo, o prestigiado estudioso recém-mencionado chegou, inclusive, a denominar a obra de
romance “pós-revolucionário”.
Ora, num outro extremo do período que estamos estudando, o Romance de formação
fecha a metade do século chileno com Hijo de Ladrón (1951), o volume mais famoso da
tetralogia de Manuel Rojas. Neste último caso, a importância pontual do assunto que aqui
queremos desenvolver já foi evidenciada por Grínor Rojo no seu estudo intitulado “La
contrabildungsroman de Rojas”. Descreve ali a situação enunciativa do romance: um homem
de aproximadamente 50 anos, já inserido nas instituições da vida adulta, que relembra um
período específico do seu passado em que teriam acontecido episódios especialmente
significativos. Qual seja: o “motín de Valparaíso” e os acontecimentos, personagens e valores
que giram ao redor desse evento em que Aniceto Hévia, o protagonista e alter ego jovem do
autor, vê-se envolvido logo depois de sair da prisão. A evocação desse período de juventude
anárquica não seria meramente temática, mas de alta relevância formal para este complexo
romance da nossa literatura moderna, pois é ele que estruturaria os diferentes planos
temporais e espaciais em que o texto se desenvolve.
De modo que tanto na sua abertura, quanto no fechamento do ciclo que percorre o
Romance de Formação da primeira metade do século XX chileno, a questão da revolução
aparece como central, inclusive entre autores de setores ideológicos e códigos literários tão
opostos como Blest Gana, o nosso mais emblemático e moderado narrador burguês, e Manuel
Rojas, a figura literária anarquista e de espírito antioligarca talvez mais destacada do Chile.
No caso do Brasil, como veremos mais à frente, o lugar de destaque deste tema não
deixa de ser igualmente notório. Conformando a linha mais político-ideológica, a questão
principal d´O Moleque Ricardo, romance escrito em chave totalmente socialista (sem
necessariamente sê-lo) seria a de encenar, segundo as sugestões do livro, os sintomas que
9
O caso de Graciliano Ramos em Infância (cuja leitura, segundo nos parece, faz-se
mais proveitosa se realizada em conjunto e continuidade com Angústia) é bem mais sutil. No
entanto, resgatar a presença aparentemente periférica da “Revolução de Trinta” em seus textos
(e sobretudo em Angústia) não deixa de ser prometedora como chave de acesso ao
Bildungsroman graciliânico. No recém mencionado livro, o caminho da participação política
aparece como uma negação mal-resolvida no percurso dramático do protagonista. E, de fato, o
romance oferece chaves para interpretar que o crime de Luís da Silva adulto pode ser lido
como consequência de ter eliminado todo substrato utópico da sua existência. A vocação de
escritor que aparece anunciada e, de alguma maneira, conquistada em Infância, é substituída
em Angústia por um trabalho burocrático de funcionário público. E as preocupações políticas
aludidas neste último livro ao se referir à adolescência de Luís da Silva são contrapontadas
pela lógica privada do seu drama passional com Marina, ficando totalmente indisposto a
participar dos eventos revolucionários que o rodeiam.
O nosso interesse por este tópico surgiu a propósito do estudo de Franco Moretti,
intitulado The way of the world, sobre o Romance de Formação europeu do século XIX, e
logo cresceu até o ponto de querer desenvolvê-lo, uma vez observada a sua persistente
presença nos romances que estavam na nossa agenda. Para fazer justiça ao contexto dos
romances que Moretti trabalha nesse estudo (um contexto altamente historicista e cientificista
como é o século XIX), ele escolhe como categoria textual a análise do enredo, sob o
pressuposto de que este representa, na narrativa, o nível da historicidade. O modo em que os
romances das diferentes nações europeias combinam as variantes básicas de enredo (o enredo
10
autor implícito, narrador, narratário, leitor implícito, leitor real). Interessa-nos, portanto, o
ponto de vista figurativo e conceitual que se realiza na voz narrativa que (coincidindo ou não
com o ponto de vista do personagem) da expressão à história de fora dela, e cuja visão de
mundo pode ser igual ou diferente à do seu personagem.
É evidente que não existe tal coisa como uma obra ficcional ou uma obra temática na literatura, já que
os quatro elementos éticos (éticos no sentido de se relacionarem com o personagem): o herói, a
sociedade do herói, o poeta e os leitores do poeta sempre estão presentes, pelo menos em potência.
Dificilmente pode existir uma obra literária sem alguma classe de relação, implícita ou expressa, entre o
criador e o seu público (FRYE, 1991, p. 78, tradução nossa).
Sem ir muito longe, os próprios textos que escolhemos como corpus são textos
híbridos (e o romance em geral, apesar de ter a sua poética, é originalmente informe), o que
invalida de um outro ponto de vista esta dicotomia. Infância é um romance autobiográfico,
Alsino, Escritura de Raimundo Contreras e Memórias sentimentais de João Miramar são,
claramente, escritos em prosa poética, a assim por diante. Porém, o que nos interessa da
terminologia de Frye, neste caso, é a distinção entre duas tendências dentro dessa literatura
temática (ou da literatura lida com ênfase no aspecto temático): a cômica e a trágica. Na
literatura temática trágica, que tende a isolar o herói da sua sociedade, “o poeta pode
escrever como indivíduo, batendo firme no isolamento da sua personalidade e na nitidez da
sua visão” 2, enquanto que na literatura temática cômica, cujo herói tende a estar integrado, o
“poeta pode dedicar-se a ser o porta-voz da sua sociedade, o que significa – já que não está se
dirigindo a uma segunda sociedade – que um conhecimento poético e um poder expressivo,
1
Talvez a melhor tradução de dianoia, segundo Frye, seja “tema”, e a literatura que possui este interesse poderia
então ser chamada de “literatura temática”.
2
Ibid., p. 80.
12
latente na sociedade ou que ela precisa, articulam-se nele” (FRYE, 1991, p. 80, tradução
nossa). A primeira atitude produziria a maior parte dos poemas e ensaios, grande parte da
sátira, dos epigramas, e a composição de “églogas” ou obras de circunstância em geral, com
formas primordialmente descontínuas e temperamentos de protesto, queixa, ridículo e solidão.
Já a segunda produziria uma:
Poesia que é educativa no mais amplo sentido: epopeias do tipo mais artificial ou temático, poesia e
prosa didáticas, compilações enciclopédicas de mitos, folclore, lendas como as de Ovídio e Snorri,
onde, ainda que as histórias mesmas sejam ficcionais, sua disposição e o motivo que induziu a compilá-
las são temáticos. 3
Na poesia que é educativa neste sentido, por último, “a função social do poeta figura
4
destacadamente como tema” e, no que se refere à forma, tende a utilizar modelos mais
amplos e não descontínuos.
Uma tal escolha vincula esta pesquisa à linhagem crítica de estudos sobre
Bildungsroman que define este tipo de textos não só por seu conteúdo, mas também pelo
princípio poético que o organiza. É uma noção mais dinâmica de Romance de formação que,
no nosso modo de ver, aproxima a noção de gênero à da análise discursiva, o que permite
fugir do instrumento às vezes um tanto rígido dos conceitos genéricos. A principal
contribuição de uma tal compreensão do Bildungsroman foi feita, segundo Miguel Salmerón,
no seu artigo “El concepto de novela de formación”, por Blanckenburg, que, apesar de não ter
usado o termo que mais tarde (1813) Morgenstern cunhou, foi o primeiro a falar deste gênero,
ao tentar referir-se às qualidade específicas do romance em geral (cujo surgimento, é
importante sabê-lo, é inseparável do surgimento do Romance de formação), e o fez nos
seguintes termos:
Com uma ênfase muito aristotélica o autor assinala que o romance deve ‘unificar sob um ponto de vista
os principais eventos que ocorrem a um homem e enlaçá-los num todo de causa e efeito’. Esta poética
da causalidade tem duas condições prévias. A primeira é a onisciência do narrador. Todo
acontecimento permite uma dupla consideração: como efeito dos anteriores ou como causa dos
posteriores. Em consequência, o escritor não pode aparentar que não conhece o interior dos seus
personagens porque ele é seu criador. Outro dos elementos formais exigidos pela fidelidade causal é o
caráter central de um personagem sobre os outros. Essa fidelidade ao contínuo causal vai acompanhada
do elemento ético do ideal de perfeição (SALMERÓN, 2002, p. 45, tradução nossa).
3
Ibid., p. 80-81.
4
Ibid., p. 81.
13
A nossa hipótese é que não existe um, mas vários Romances de Formação, os quais
surgem ao abordarmos historicamente este gênero. No caso do Romance de Formação chileno
e brasileiro da primeira metade do século XX, o gênero desenvolve-se principalmente no
contexto dos governos oligárquicos e se apresenta em romances de ruptura com as duas
dimensões dessa ordem social: com a sua base tradicional-patriarcal (no caso do Brasil) e com
o seu projeto de modernização (no caso do Chile).
Por outro lado, para compreender as manifestações concretas deste gênero no Chile e
no Brasil, não precisamos fazer refêrencia a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, nem
à definição clássica que se articula a partir da questão da integração-desintegração do herói na
sociedade burguesa. De fato, parece-nos que o interesse central do Bildungsroman é pensar a
questão da inserção social, mas em função de outro elemento que lhe é mais fundamental: a
formação, instância que é a grande busca do Bildungsroman e para cuja consecução cada
autor terá de achar o seu próprio caminho.
14
I. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
1. Formação
Do misticismo ao humanismo
A palavra germânica Bildung teve “sua origem na mística medieval, sua sobrevivência
na mística do barroco, sua espiritualização fundada religiosamente pelo Messias de
Klopstock, que acolhe toda uma época, e, finalmente, sua fundamental determinação como
ascenso da humanidade com Herder” (GADAMER, 1992, p. 38, tradução nossa). Como o expõe
Todd Kontje, no seu livro The german Bildungsroman, history of a national genre, na fase
religiosa do significado da palavra, esta supunha uma visão teológica do homem. Segundo a
mitologia cristã, desde o pecado original o ser humano tinha quebrado a sua unidade com
Deus, tinha sido deformado, e, como tal, devia esperar passivamente a graça da divindade
para assim reconstruir a imagem de Deus em si mesmo e recuperar a unidade perdida com
ele5. A formação referia-se, assim, a esse processo não humano que se operava no homem
pela intervenção divina.
Por contraditório que pareça, a significação mística tinha como pano de fundo o
conceito antigo de formação como formação natural, inspirada na manifestação exterior das
mudanças do corpo ou da natureza. Nesse contexto formação designava, portanto, um
processo fundamentalmente externo que, como veremos, foi ficando à margem do conceito
5
Ibid., p. 1.
15
atual (que está vinculado, como veremos, fundamentalmente à vida espiritual do indivíduo e
da sua cultura). Contudo, tal significado de formação tinha um duplo aspecto, referindo-se a:
“a forma externa ou aparência de um indivíduo (Gestalt; latim: forma) e ao processo de dar
forma (Gestaltung; formatio)” (KONTJE, 1993, p. 1, tradução nossa).
Fazendo parte da transformação geral que sofre a cultura ocidental durante as últimas
décadas do século XVIII, o conceito da Bildung muda radicalmente:
Como já foi anunciado, o momento decisivo na história desta palavra começou com
Herder, no século XIX, e culminou com Kant e Hegel, os quais levaram a termo a cunhagem
feita pelo primeiro. Como diz Gadamer, o conceito de formação que atualmente utilizamos
vem determinado por este momento em que formação é quase inseparável do termo cultura
(desenvolvimento de capacidades e talentos), designando, assim, o modo especificamente
humano de dar forma a essas capacidades e disposições naturais do homem (GADAMER, 1992,
p. 39).
A visão de Herder sobre a Bildung encontra-se delimitada por três elementos: pela
importância da genética, do determinismo ambiental e, por último, do relativismo cultural.
Para Herder a Bildung envolvia, assim, o desenvolvimento de capacidades inatas potenciais
sob a influência de uma particular localidade geográfica e cultural, a qual, por sua vez, era
responsável pelas diferenças culturais entre os distintos grupos da espécie humana7. Esse forte
sentido do determinismo ambiental teve nele um desenvolvimento teórico positivo, pois
semeou um relativismo cultural dirigido não só às culturas do passado, mas também às do
presente, ao estabelecer que cada civilização tem o seu próprio topo de desenvolvimento.
Deste modo permitiu avançar no reconhecimento das diferenças culturais num momento de
6
Ibid., p. 2.
7
Ibid., p. 2.
16
duro imperialismo, baseado na ideia de que cada cultura, passada ou presente, possui o seu
particular espaço-tempo.
Kant, em particular, não utiliza ainda a palavra formação, mas fala de uma “cultura da
capacidade” enquanto ato de liberdade do indivíduo (GADAMER, 1992, p. 39). Esta “cultura da
capacidade” kantiana, no nosso modo de ver, expressa-se muito bem no texto “Resposta à
pergunta: que é esclarecimento?”, onde Kant desenvolve o que ele entende por iluminismo,
termo que pode ser considerado um antecedente do conceito de formação.
Tanto esclarecimento como formação são conceitos que, em maior ou menor grau,
fogem da lógica dos conceitos técnicos, isto é, os que se articulam com base em meios e fins
específicos. Esclarecimento é uma saída da menoridade e, nesse sentido, visa a um objetivo:
a maioridade autoconsciente. Mas esta expressão, no ensaio de Kant, carece de um conteúdo
claro, e isto não é o resultado de um déficit na sua conceitualização, mas expressa uma
questão fundamental da natureza do termo.
Por outro lado, ambos os movimentos têm de dar-se não no espaço das grandes
tensões históricas, mas sim no âmbito do quotidiano e do privado, do dia-a-dia do cidadão
17
A formação prática realiza-se com base neste exercício de inibição do desejo que
permite ascender à generalidade e, ao mesmo tempo, voltar a si mesmo, em atividades muito
concretas como o trabalho, o cuidado da saúde ou a escolha profissional. Para Hegel o
trabalho forma o homem, que ao mesmo tempo só pode formar-se tendo consciência, e só
pode ter consciência trabalhando:
O trabalho é desejo inibido. Formando o objeto, e na medida em que atua ignorando a si e dando lugar a
uma generalidade, a consciência que trabalha se eleva por cima da imediatez do seu estar aí para a
generalidade; ou, como diz Hegel, formando a coisa, forma-se a si mesma 12.
8
Ibid., p. 41.
9
Ibid., p. 41.
10
Ibid., p. 41.
11
Ibid., p. 42.
12
Ibid., p. 41.
18
Pois comportamento teórico é enquanto tal sempre alheamento, é a tarefa de ‘ocupar-se de um não
imediato, um estranho, algo pertencente à recordação, à memória ou ao pensamento’. A formação
teórica leva para além do que o homem sabe e experimenta diretamente (...) precisamente por isso toda
aquisição de formação passa pela constituição de interesses teóricos (GADAMER, 1992, p. 42-43,
tradução nossa).
Goethe deu uma forma poética à teoria sobre o desenvolvimento orgânico, nos seus
livros A metamorfose das plantas (1799) e A metamorfose dos animais (1820), onde defende
a necessidade de o homem se desenvolver, também, de acordo com aquilo que lhe foi
destinado. Na sua autobiografia ele enfatiza a importância que a liberdade tem para tornar
esse desenvolvimento possível, dando, por outro lado, uma alta significação ética à realização
15
do cultivo pessoal . Por sua vez, Humboldt compartilha com Herder a crença de que a
genética teria um lugar predominante no desenvolvimento do homem e utiliza metáforas
orgânicas para falar do seu crescimento. No entanto, para ele o amadurecimento passivo da
natureza não é suficiente no caso do ser humano, a quem corresponde a responsabilidade de
desenvolver a “semente” inicial que esta lhe oferece. Assim, “a liberdade se transforma no
16
primeiro e essencial requisito para a Bildung pessoal” . Schiller, por último, entra no
diálogo afirmando que, à diferença dos animais, para os quais a Bildung é simplesmente
aquilo que a natureza faz deles, o ser humano livre deve atingir a sua formação por força da
sua própria vontade.
15
Ibid., p. 3-4.
16
Ibid., p. 4.
17
Ibid., p. 4.
20
(…) obriga Kant a empurrar seu exame da relação que estabelecemos com nossos semelhantes para
além da razão pura e, até mesmo, para além da razão prática, e a alojá-lo, por dizer assim, no último
round da sua aposta filosófica, na figura do sujeito e nos sentimentos de ‘prazer’ e ‘desprazer’ que ele
mesmo experimenta (Kant, 131). É lá onde os seres humanos nos reunimos efetivamente, onde uma
certa estrutura de intersubjetividade faz-se por fim possível 20.
(...) de novo, o estético é capaz de ir ao socorro da filosofía, porque, na esfera do juízo estético, os
objetos que se descobrem parecem reais ainda que estejam dados para o sujeito inteiramente,
verdadeiros pedaços de Natureza material que, no entanto, são deliciosamente dóceis à atividade da
consciência 21.
18
Ibid., p. 11, tradução nossa.
19
Ibid., p. 9-10.
20
Ibid., p. 8.
21
Apud ROJO, 2003, p. 10.
21
(…) diferentemente da experiencia moral, manifesta-se como uma ação desinteressada, como uma
finalidade sem fim, que se concentra no prazer pelo prazer e se desentende dos dividendos mais altos
que do lado oposto são alcançados, fazendo efetivo um desdobramento combinado da vontade e do
dever com vistas a um cumprimento total do imperativo categórico. Por isso, a arte kantiana é o fruto
agridoce da capacidade que os seres humanos temos para nos entregar a exercícios de complacência que
não são nem podem ser ponderáveis desde o ponto de vista da sua utilidade ou da sua moralidade
(ROJO, 2003, P. 10-11, tradução nossa).
Este é o ponto de partida das ideias que Schiller defende sobre estética, mas à
diferença de Kant – que busca dar uma explicação racional subjetiva – ele tentará oferecer um
fundamento objetivo para o belo22. Para Schiller, a arte tem, em última instância, a sua origem
no jogo, o lugar de confluência entre o impulso sensível e o impulso formal que, sem deixar
de dar prazer, acolhe a ação estruturante da forma, sobrepondo-se a si mesmo e conferindo
liberdade num sentido superior àquela oferecida pela total ausência de constrições. A
atividade estética, portanto, além de ser uma atividade natural, prazerosa e, até,
autocomplacente, tem nas suas raízes, em concordância com esse impulso sensível, um
impulso profundamente formal. Assim, quando o jogo físico consegue articular esses dois
22
Diz Schiller na carta de 25 de janeiro de 1793 dirigida a Körner: “É interessante notar que minha teoria é uma
quarta forma possível de explicar o belo. Explica-se o belo objetiva ou subjetivamente; e, a rigor, ou de modo
subjetivo sensível (como Burke e outros), ou subjetivo racional (como Kant), ou objetivo racional (como
Baumgarten, Mendelsohn e todo o bando de homens da perfeição), ou, por fim, de modo objetivo sensível: um
termo que decerto não lhe dirá muito agora, a não ser se você comparar entre si as três outras formas. Cada uma
dessas três teorias anteriores detém uma parte da experiência e contém manifestamente uma parte da verdade; e o
erro parece ser meramente que se tenha tomado essa parte da beleza, que concorda com ela, pela beleza mesma
(...) Acho que a sua observação pode ter a grande utilidade de separar o lógico do estético, mas no fundo ela me
parece perder inteiramente o conceito da beleza. Pois a beleza se mostra no seu supremo esplendor justamente
quando supera a natureza lógica do seu objeto, e como pode ela superar onde não há nenhuma resistência? Como
pode ela dar a forma à matéria inteiramente informe? Estou ao menos convencido de que a beleza é apenas a
forma de uma forma e que o que se chama a sua matéria tem de ser simplesmente uma matéria formada. A
perfeição é a forma de uma matéria; em contrapartida, a beleza é a forma dessa perfeição, que está pois para a
beleza como a matéria para a forma” (SCHILLER, 2002, p. 41-41).
22
planos do sensível e do formal, do natural e do racional, este passa a ser um jogo estético,
lugar onde se reencontram, portanto, a esfera da arte, da verdade e da moralidade.
Este curto e sem dúvida parcial resumo das ideias de Schiller a partir dos conceitos
kantianos centrais, refere-se aos aspectos mais doutrinais da questão, pois os aspectos
políticos que certamente estão envolvidos gostaríamos de reservá-los para o final deste
capítulo. Por enquanto, importa-nos adiantar que os elementos envolvidos na visão
schilleriana da arte implicam uma série de disposições por parte do ser humano que seriam
educáveis (formáveis), pois se encontram à disposição de qualquer pessoa, sempre que a essa
pessoa lhe tenham sido oferecidas as oportunidades básicas e sempre que ela conte com a
energia necessária para desdobrar as suas capacidades, superando as limitações da Natureza
(ROJO, 2002, p. 24). O fim da educação seria, então, o de nos educarmos para entrar na
civilização, mas numa civilização que não pretende esmagar aquilo que faz com que o homem
pertença, também, ao mundo dos seres naturais, preservando a liberdade essencial do ser
humano, mas lhe oferecendo uma forma que “não só não a diminua, mas, ao contrário, a
expanda e a enriqueça” 23.
Quando falamos de formação não estamos pensando num processo técnico composto
por meios e fins, como acontece quando refletimos sobre as instâncias que compõem, por
exemplo, o processo pedagógico (para usar um conceito familiar a nosso assunto e, aliás,
muito discutido pelo Romance de Formação). Na concepção mais tradicional, este último
caracteriza-se por ser um processo educativo unilateral orientado pela figura de um tutor que,
em consequência, passa a ser o protagonista deste processo. Por outro lado, a educação assim
compreendida, encontra-se restrita a um âmbito institucional e nela a aprendizagem é
entendida como um uso específico e, poder-se-ia dizer, limitado da inteligência, que fica
reduzida à capacidade de assimilar um conjunto de técnicas e mecanismos para aquisição de
informação. A pedagogia, portanto, seria teleológica, já que tem uma finalidade clara: a
aquisição, por parte dos estudantes, de determinados saberes que não têm relação com a sua
23
Ibid., p. 24.
23
experiência pessoal e existencial, mas com o desenvolvimento específico das habilidades que
estes saberes possibilitam. Por último, pelo fato de ter um caráter institucional e acontecer
dentro do espaço limitado da escola, a pedagogia se desenvolve segundo o funcionamento e,
portanto, os interesses desta instituição. E o saber que nela se distribui é transmitido dentro de
uma rígida distribuição de papéis: o tutor ou professor é quem ensina, e o aluno é quem
aprende. O primeiro seria ativo e o segundo passivo, posições que, da ótica pedagógica
tradicional, não seriam intercambiáveis.
Na formação, nós nos apropriamos por inteiro daquilo no qual e através do qual nos formamos. Nessa
medida, tudo o que ela incorpora se integra nela, mas o incorporado na formação não é como um meio
que tenha perdido a sua função. Na formação alcançada nada desaparece, mas tudo se guarda. Formação
é um conceito genuinamente histórico e é precisamente deste caráter histórico da ‘conservação’ que se
trata na compreensão das ciências do espírito 24.
Formação e transformação
24
Ibid., p. 40.
25
Esta concordância entre Schiller e Goethe não é evidente. Por isso apontamos a referência em que nos
baseamos para afirmá-la: “A noção de Bildungs tem fortes implicações políticas para todos os três classicistas de
Weimar. Cada um contrasta a violência da Revolução Francesa, com a estabilidade do crescimento orgânico”
(KONTJE, 1993, p. 4, tradução nossa). “Este tema extrema-se no tardio romance de Goethe, Wilhelm Meister´s
24
Para o autor das Cartas.... a arte, portanto, tinha um papel social e uma força
revolucionária capaz de resgatar o lugar sagrado da liberdade, mas sem desvencilhar-se do
império da forma. Por homologia, essa sujeição formal do ‘impulso sensível’ tem sido
associada pela crítica a um “limar-lhe as unhas ao potencial puramente transgressor da arte, a
um simultâneo limar-lhe as unhas à energia proletária que o próprio Schiller tinha visto
desatar-se no delírio da ditadura jacobina”, e vista como o ponto essencial e a determinação
28
última da proposta estética de Schiller . Aceitando a viabilidade dessa interpretação, o que
para esta introdução teórica nos interessa é a índole da utopia schilleriana. Baseada no papel
revolucionário da arte enquanto atividade capaz de levar o homem a um estado pleno em que
a Natureza não desconhece os logros da Razão e a Razão não violenta as prerrogativas da
Natureza 29; ela encobre um “ideal integrador para o qual a vida humana tende por si só (...) e
para cuja realização os indivíduos e os povos teriam que remontar-se (Schiller), ou de cujas
possibilidades não deveriam mutilar-se (Rodó)” 30
Wanderjahre [As viagens de Wilhelm Meister] (1821-1829). Num encontro com o personagem Montan (Jarno
no Lehrjahre), Wilhelm Meister faz um sutil apelo ao optimismo do século dezoito, lembrando que uma Bildung
multifacetada tinha sido alguma vez considerada vantajosa e necessária” (Ibid. p. 5-6).
26
Ibid., p. 14.
27
Ibid., p. 14.
28
Ibid., p. 14.
29
Ibid., p. 16.
30
Ibid., p. 17.
25
32
No entanto, como diz José Amícola , os gêneros literários não são entidades fixas,
“formas eternas” ou essências que possam ser abstraídas das condições históricas em que
estes se desenvolvem. E essa definição essencialista, ingênua, canonista, germanista e
31
Com o fim de favorecer a síntese e a clareza, organizamos esta definição reunindo os conteúdos acrescentados
pelos autores mais representativos desta tradição crítica.
32
Amícola parafraseia Barrenechea: “‘Uma das novidades que a teoría literária do século XX vai introduzir nos
estudos sobre os gêneros literários (…) consistirá na convicção de que as molduras genéricas são cambiantes e
que elas têm sido analisadas com padrões a-históricos’” (AMÍCOLA, 2003, p. 127).
26
didática, na verdade corresponde a uma definição dentro de uma tradição crítica específica
que vem sendo revisada e transformada ao longo dos anos, não só mediante novas
interpretações do Wilhelhm Meister, mas também mediante a aparição de outros
Bildungsromane e da apropriação do tema por parte de diferentes escolas críticas. No seu
conjunto, essas circunstâncias, obras e autores têm ido historicamente “formando o Romance
de Formação”.
Já desde o primeiro romantismo, esse que pode ser compreendido como o dogma do
Bildungsroman foi questionado por diferentes pensadores que pareciam detectar na obra de
Goethe um fundo irônico dentro desse quadro harmônico, que não foi percebido pela crítica
conservadora (KONTJE, 1993, p. 8). Estamos pensando em Schiller, Schlegel e Novalis. Se a
primeira linha de intérpretes culminou com a crítica fascista que quis acentuar, mais uma vez,
o caráter profundamente alemão do gênero, esta segunda foi muito importante para os
comentadores de pós-guerra e os estudos recentes mais relevantes sobre o Bildungsroman 33.
Schlegel argumenta que Goethe não retrata a Bildung de um determinado indivíduo. Na opinião dele, o
princípio fundamental que Goethe ilustra com numerosos exemplos é o processo natural da Bildung em
si mesma, reduzida a seus aspectos mais simples. Como resultado, Schlegel possui um afiado olho para
perceber a ironia com que o narrador vê o desenvolvimento de Wilhelm. ‘Mas eles são também, no final
das contas, anos de aprendizado em que nada é aprendido além de existir’ (141). Na visão de Schlegel,
o romance não termina com a maturação triunfante de Wilhelm Meister, mas com a sua passiva
aquiescência à vontade da sociedade da torre 36.
33
Ibid., p. 12.
34
Ibid., p. 11.
35
Ibid., p. 10.
36
Ibid., p. 11.
27
Novalis, por sua vez, situa-se numa posição fortemente crítica com respeito à obra de
Goethe, a qual considera mundana e hostil a tudo que fosse místico, poético, romântico ou
irracional. Ele antecipa também as futuras interpretações políticas do Wilhelm Meister, ao
criticar a entrada do protagonista ao grupo de nobres que conformam a Sociedade da Torre,
delimitando uma leitura alternativa à de Körner e uma posição descomprometida com respeito
ao Wilhelm Meister, que se materializou no seu próprio Bildungsroman: o Heinrich Von
Ofterdingen (1802) (KONTJE, 1993, p. 12).
Esta situação inicial da crítica sobre o Bildungsroman oferecida por Todd Kontje,
composta por tensões e interpretações variadas que, a partir de diferentes escolas filosóficas e
literárias, desafiam a definição tradicional, impõe a necessidade de desdobrar uma
compreensão histórica do Romance de Formação. Quer dizer, uma compreensão que não
depende de uma definição fixa, mas principalmente de um processo de significações que, a
partir de condições concretas irrepetíveis (temporais, geográficas, culturais e subjetivas), que
estabelecem condições expressivas e de comunicação únicas entre autor e leitor, vão
construindo um significado dinâmico e cambiante do gênero, composto por manifestações
sempre novas e originais.
Isso não significa, ainda assim, que falar em Romance de Formação seja um erro
epistemológico. Significa, bem antes, que quando queremos fazê-lo é preciso levar em
consideração o sistema todo em que este emerge, respeitando os limites dentro dos quais tal
manifestação do gênero se encerra. Do contrário, o risco iminente será o de universalizar
formas concretas, culturalmente circunscritas, estabelecendo-as como “as” formas, o que nos
levará, em última instância, à perda do gênero que se procura, na falta de uma realização exata
dessa abstração.
legado, processo que se dispara a partir da análise neorromântica de Karl Schlechta em 1953,
com que se começa a instalar a consciência da ironia reconhecida inicialmente por Shlegel.
Três momentos comporão este processo de questionamento na crítica de pós-guerra. O
momento imediatamente posterior, em que o espírito crítico vai codificar respostas ao passado
recente da Alemanha (KONTJE, 1993, p. 28). O momento da crítica dos anos sessenta, cujo
37
ceticismo oferecerá, também, análises textuais com um grau maior de sofisticação . E, por
último, a Crítica Ideológica e a Teoria da Recepção dos anos setenta em que “o desinteresse
por questionar a autoridade da herança clássica alemã coincidiu com as revoltas estudantis, as
quais submeteram o gênero a um afiado escrutínio” 38.
37
Ibid., p. 50.
38
Ibid., p. 62, tradução nossa.
39
Ibid., p. 13, tradução nossa.
40
Pressentimento e presença.
29
Entre 1948 (a Revolução de Março) e 1871 (a unificação alemã), surge um novo tipo
de Romance de Formação. A crítica volta a se academizar e os autores, filósofos e críticos da
época tendem a buscar uma despolitização do gênero para voltar a uma definição clássica que
foi pautada pela definição hegeliana de romance (baseada no Romance de Formação
goethiano): “(...) sua referência ao típico tema do romance moderno, isto é, o aprendizado ou
a educação do indivíduo contra as demandas da realidade existente revela claramente que tipo
46
de trabalho adota como modelo para o gênero” . Hegel focaliza-se na conclusão
problemática do romance de Goethe, captando a ironia ignorada pela definição acrítica
primeiramente produzida por Körner e seguindo a tradição de Schiller. Instala-se, portanto, a
ideia de que o tema do romance radica no conflito entre a poesia do coração e a prosa do
41
A vida e as opiniões de Tomcat Murr.
42
Ibid., p. 15.
43
Principalmente Ivanhoe, traduzido ao alemão em 1820.
44
Ibid., p. 18.
45
Os epígonos.
46
Ibid., p. 23.
30
47
mundo (KONTJE, 1993, p. 23), entre a vida interior e o rigor do mundo exterior , fórmula
que é atualizada diferentemente pelos autores deste momento: por Vischer, com a sua
48
Aesthetic (1957) e Adalbert Stifter, em Der Nachsommer (1857) – ambos os quais acabam
extirpando a ironia enfatizada por Hegel e fazendo apologia da vida familiar –; e por Gottfried
49
Keller, em Der grüne Heinrich , (1854-1855) e Julian Schmith – que conformam a
contrapartida negativa dos primeiros, seja questionando o lugar da familia no romance, seja
questionando o próprio Goethe e o desejo de Wilhelm Meister de abdicar dos seus próprios
desejos para atender às demandas da sociedade 50.
A definição de Dilthey apareceu várias décadas depois deste período, no seu livro Das
53
Erlebnis und die Dichtung (1906) e, apesar de uma parte dela (a parte que teve maior
impacto na crítica de até a primeira metade do século XX) ter sido uma simples reprodução da
definição conservadora iniciada por Körner, ela trouxe novos significados para o Romance de
47
Ibid., p. 25.
48
Veranico.
49
O Jovem Enrique.
50
Ibid., 27.
51
Ibid., p. 28.
52
Ibid., p. 29.
53
Vivência e poesia.
31
Com a publicação de Le Roman Experimental em 1880 começa uma nova fase dentro
do romance alemão, o qual assume uma posição de rejeição, mas também de assimilação das
novas tendências estrangeiras francesas (e inglesas). O Bildungsroman deixa de ser visto
como uma coisa do passado e passa a ser compreendido como um gênero que se estende para
o século XIX sob novas formas e novas preocupações. Todd Kontje toma como referência
para entender este momento o trabalho de Heinrich Driesmans, “Der alte und der neue
Erziehungsroman” 55 (1904), que detecta um progressivo interesse do Romance de Formação
“em aquilo que chama de ‘das genealogische Moment’ (249), uma espécie de interesse
56
darwiniano na questão da herança, da raça e da criação” , aproximando-se, portanto, do
Naturalismo europeu. “Os romancistas não mais retratam figuras típicas e saudáveis, bem
antes se concentram na psicopatologia do indivíduo subnormal que é visto como o produto de
‘eine hereditäre Verelendung und physiologische Verarmung’ [uma deterioração hereditária e
um empobrecimento fisiológico]” 57. Ele traça este processo passando por diversos autores de
pouco renome e conclui designando os Buddenbrooks, de Thomas Mann, como o típico
Romance de Formação trágico deste momento 58.
Seguindo a tendência da época, Georg Lukàcs, na sua Teoria do Romance (1920), não
só se serve das referências hegelianas que marcam a crítica de entre 1848-1945
(complementando-as com a visão romântica da ironia e com o pessimismo de Kierkegaard),
mas também atribui ao Wilhelm Meister Lehjahre o caráter representativo da leitura canonista
(KONTJE, 1993, p. 33). No entanto, ele nada tem a ver com as tendências nacionalistas da
54
Ibid., p. 30.
55
“O velho e o novo Romance de Educação”.
56
Ibid., p. 31.
57
Ibid., p. 53, grifo nosso.
58
Ibid., p. 31.
32
época, que mostram o romance de Goethe como o triunfo do espírito alemão, nem com os
excessos patrióticos do contexto da Primeira Guerra (KONTJE, 1993, p. 33). Lukács constrói
uma tipologia da forma do romance, organizando-a dialeticamente e propõe que o Wilhelm
Meister oferece um intento de síntese e de reconciliação entre o sujeito problemático e a
59
realidade social, mas um intento “que necessariamente não alcança o seu objetivo” .
“Goethe esforça-se por dar validez universal à experiência de um puro indivíduo, mas no final
não pode disfarçar o fato de que ele não habita ‘um mundo transcendente puro e estável’
(137); as fissuras da modernidade não podem ser disfarçadas” 60.
Por último, queremos fazer referência à definição de Thomas Mann, que conclui que o
Bildungsroman moderno só pode ser escrito como uma paródia da tradição passada, pois para
ele o contexto conservador do gênero tinha caído com o avanço da democratização e a
literatura estava se abrindo, progressivamente, a formas “não alemãs”; formas ideologizadas e
radicais representadas pelo romance social. Isto pressupõe uma visão despolitizada do
romance de Goethe que mais tarde ele mesmo questionou ao reconhecer a sua obra como uma
antecipação “do progresso alemão da interioridade à objetividade, à política e à
democracia”61, que se expressariam no tratamento de temas humanos como a locura e a
morte. Foi a estas novas ideias políticas que o próprio Mann tentou dar forma no seu romance
Der Zauberberg.
A historicidade dos gêneros, deste modo, é o pressuposto que permite e, por sua vez,
exige o reconhecimento de diversos tipos de Romances de Formação que podem e devem ser
delineados ao levantarmos condições históricas de diferentes índoles: estilísticas, temporais,
nacionais, continentais, de gênero, de classe, entre outras. A partir da crítica disponível,
assim, é possível constatar a existência de várias outras definições. Atendendo às variáveis
nacionais, fala-se de um Bildungsroman alemão (representado principalmente pelos Anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe), outro inglês (encarnado por Dickens nas suas
Ilusões perdidas) e outro francês (o famoso Vermelho e negro de Stendhal), só para nomear
os mais mencionados pela crítica; e nenhum deles, por mais que erga pretensões de
universalidade, pode ser coroado como “o” Bildungsroman. Ao mesmo tempo, no entanto, é
59
Ibid., p. 35, tradução nossa.
60
Ibid., p. 34.
61
Ibid., p. 36.
33
importante ter presente que, apesar dessas distinções nacionais, os estudos distinguem
também um Bildungsroman europeu, com as suas próprias características gerais e a sua
própria ideologia, como pretende demonstrar José Santiago Fernandez Vasquez em “Uma
aproximação à ideologia colonial europeia da óptica do Bildungsroman clássico”. Este
Bildungsroman europeu, por sua vez – como é de se supor já a partir do título desse estudo –,
não pode ser transposto sem mais para falar daquilo que configuraria o ainda extremamente
indeterminado Bildungsroman latino-americano, na sua fase pós-colonial. Por último, no
plano do sujeito, fala-se também e com justiça de um Bildungsroman especificamente
feminino, que se mostraria como uma virada radical à linhagem absolutamente patriarcal do
Bildungsroman clássico.
(...) a crítica do século XIX e de inícios do XX definiu o Bildungsroman como um gênero patriarcal e
nacional que tinha a posição mais importante no novo cânone literário. [Em contrapartida] Muitos dos
estudiosos atuais do Bildungsroman seguem pelas vias da crítica pós-moderna à modernidade: ela é
feminista, internacional e questiona as distinções entre a ficção culta e a popular num esforço por
62
Fazemos referência a esta terceira fase proposta por Todd Kontje como uma maneira de reunir as definições
que se desprendem do resto da crítica sobre Romance de Formação que temos consultado. No entanto, a partir
daqui deixaremos o fio argumentativo oferecido por Kontje, a fim de articular as definições que nos parecem
importantes de serem destacadas para uma aproximação ao gênero, sem seguir estritamente as questões da crítica
pós-moderna propostas pelo crítico alemão (apesar de elas atuarem como fundamento das pesquisas de que se
vale este estudo).
34
reabilitar trabalhos esquecidos, vendo a literautra como parte de um tecido social mais amplo 63.
Por sua vez, estas bases filosóficas e culturais, que funcionaram, em grande medida,
como fundamento daquilo que aparece representado no romance de Goethe, foram as que
permitiram a sua consolidação como gênero culto e prestigioso, espécie de “norma do
romance” (SALMERÓN, 2002, p. 22), que, ao mesmo tempo, começava a traçar a divisão de
águas entre o romance em geral e outros tipos narrativos, como o romance de aventuras e o
romance gótico; ambos considerados gêneros menores. Tal questão já estava sendo discutida
antes da aparição de Os anos de aprendizado... por Blanckenburg no seu Versuch über den
Roman (Ensaio sobre o romance, 1774), quem, sem usar ainda o termo Romance de formação
(cunhado por Morgenstern em 1813), via no Agathon (1767) de Wieland (considerado por
muitos teóricos o primeiro Romance de Formação, mesmo que não o de maior impacto) a
63
Ibid., p. 111.
35
Por último, segundo José Amícola, que, por sua vez, parafraseia Redfield, “a reflexão
sobre o nascimento deste gênero é inseparável (...) da virada burguesa que se dá com a
65
Revolução Francesa” . Em função disso, segundo o crítico italiano, a variante alemã do
gênero teria sido um intento por demonstrar que era possível evitar a Revolução Francesa
mediante um pacto entre a nobreza e a burguesia que fosse capaz de salvar a ruptura gerada
por esta última e “imaginar a continuidade entre o velho e o novo regime” (MORETTI, 2000,
viii, tradução nossa). Isto teria sido simbolizado através da realização de um processo de
formação e socialização por parte do protagonista que expressava um abandono do universo
burguês e um deslocamento ao mundo aristocrático representado pelas formas de socialização
próprias desta classe (principalmente no Wilhelm Meister, de Goethe): jornais, conversações,
música, dança, cultura humanística. Deste modo, a formação do Bildungsroman clássico
realizava-se não no terreno histórico, mas sim nas significações atribuídas aos eventos do dia-
a-dia, e representava o projeto de uma classe para a qual este se situava numa posição de
64
Ibid., p. 131.
65
Ibid., p. 131.
36
Por este motivo, a aparição (esperada) de um subgênero “de aprendizado” implicava a narração de uma
aculturação do eu, onde a integração do eu concreto na subjetividade geral de uma comunidade
permitisse a passagem para a subjetividade geral de toda a humanidade. Ao parecer, Goethe teria dado
esse passo, mas por trás estava a necessidade do “absoluto literário”: uma criação da burguesia alemã
em espera da sua expressão (...) A própria formação da ideia de uma literatura nacional na Alemanha se
explica a princípio pelo antagonismo político com a França, cuja cultura ocupava uma posição
hegemônica na Europa” escreve Pascale Casanova (AMÍCOLA, 2003, p. 133, tradução nossa).
A maneira particular como estes romances se vinculam com essa realidade histórica
não segue, ainda assim, a fórmula que se esperaria de obras surgidas num contexto público tão
explosivo e publicamente chamativo como é o da “Era das revoluções” e isto fica patente em
três dimensões que caracterizam, de modo geral, o Bildungsroman do século XIX europeu.
Em primeiro lugar, o universo privado dentro do qual este se circunscreve, relegando a uma
“prudente distância” a esfera das “grandes ondas coletivas do século XIX. A Revolução
Francesa, as guerras napoleônicas, a industrialização, 1830, 1848” (MORETTI, 2000, p. vi-vii,
tradução nossa), que parecem ficar separadas do destino individual dos personagens. Por
outro lado, o caráter forte (e estranhamente) aristocrático que estes romances possuem, apesar
de seus protagonistas serem de origem social comumente burguesa. Isto se expressa, como
dissemos, num abandono do universo da burguesia e num deslocamento ao mundo
aristocrático, o que situaria o Romance de formação na beira de dois setores sociais, a
burguesia e a aristocracia, como um recurso orientado a suavizar a ruptura gerada pela
Revolução Francesa. Por último, está o caráter certamente apolítico do gênero, sendo Stendhal
a única hipotética exceção que, no entanto, Moretti descarta, pois encontra em Julien Sorel um
senso do dever tolo e geralmente subordinado a interesses pessoais, configurando um herói
estranho, mistura mal resolvida de radicalismo e ambiguidade.
38
A cojuntura revolucionária, por um lado, e o encontro do burguês com o aristocrático, por outro, têm
uma explicação de longo prazo nestes romances: a burguesia do século XIX refuncionalizou alguns
aspectos do modo de viver aristocrático para sua própria formação – e o Romance de formação, por sua
vez, foi a forma simbólica que mais acabadamente refletiu este estado de afetos. Percebe-se nestes
romances uma pergunta recorrente – afora o trabalho, o que é o burguês? O que ele faz? Como ele vive?
– e a resposta que volta uma e outra vez: é uma estranha mistura do velho com o novo, com uma
improvisada e cambiante identidade (MORETTI, 2000, p. ix, tradução nossa).
A interação dessas duas forças são analisadas textualmente por Moretti através do
enredo, com o fim de fazer justiça ao caráter histórico-narrativo que ele observa na cultura
39
europeia do século XIX (e que explica, também, a centralidade da história e da ciência neste
período). Auxilia-se, para isso, como já temos anunciado, de duas estratégias discursivas
propostas por Lotman, sob a suposição de que os diferentes modelos de Romance de
formação se perfilam a partir do modo como elas são moduladas por cada cultura, a fim de
organizar o cenário de mudanças.
Apesar de cada cultura modular estes dois princípios de maneira diferente, dando
predomínio a um por sobre o outro (geralmente, em relação inversamente proporcional); uma
40
condição sine qua non é que, no Bildungsroman, ambas as estruturas têm que existir. Os
princípios de “classificação” e “transformação” expressam a contradição central da
mentalidade moderna ocidental, para a qual o Romance de formação oferece uma solução
particular: o compromisso. Isto é, a possibilidade de seguir uma lógica que não é pautada pela
solução trágica de “ou um ou outro”, senão aquela mais comprometedora do “tanto um,
como...”. Há, no Romance de formação, uma evasão dos pontos de ruptura históricos; uma
evasão da tragédia e da ideia de que as sociedades e os indivíduos adquirem total significado
num momento de verdade. Neste sentido, ele deve ser compreendido como um gênero débil.
O Bildungsroman seria o gênero mais contraditório das formas modernas: com ele
descobrimos que em nosso mundo a socialização é a interiorização da contradição, é aprender
a viver com ela. Olha a normalidade de dentro, mais do que desde suas instâncias de exceção,
e produz uma fenomenologia que faz da normalidade algo interessante, significativo e
internamente articulado.
Ora, além destas variações nacionais, é também importante reconhecer aqueles traços
que caracterizam o Bildungsroman europeu em geral. Marianne Hirsch, no seu artigo, “The
novel of formation as genre”, oferece uma interessante proposta sobre o que seria esta norma
europeia de um ponto de vista formal, mediante uma definição genérica do Romance de
Formação do século XIX. Propõe, primeiro, sete categorias para, mais tarde, passar a uma
localização da estrutura do gênero com respeito a outros dois que lhe são comumente
associados: o Romance Picaresco e o Romance Confessional. No seu conjunto, elas permitem
falar de um Romance de Formação europeu em geral, polemizando com certas opiniões que
defendem a hipótese de este ser um gênero exclusivamente alemão. Transcrevemos aqui as
referidas categorias, pois, além de úteis de um ponto de vista crítico, funcionam como uma
boa introdução ao gênero:
essencialmente passivo, um joguete das circunstâncias. Incapaz de controlar seu destino, ele é quem dá
forma aos eventos sem, de fato, causá-los. O desenvolvimento do herói é explorado de várias
perspectivas no romance de formação que visa à formação de uma personalidade total, física,
emocional, intelectual e moral.
3. O enredo do Romance de Formação é uma versão do romance de prova. Este retrata a busca de uma
existência significativa, de valores autênticos que facilitem o desdobramento de capacidades internas. O
enredo linear cronológico, de acordo com Scholes and Kellog, representa “o movimento geral para
enfatizar o personagem em narrativa”, desde que este “permite um desenvolvimento livre e pleno do
personagem, sem interferência dos requerimentos de um enredo de tecido apertado. O crescimento é um
processo gradual que consiste num número de encontros entre necessidades subjetivas e uma ordem
social inflexível. Já que este envolve a consideração de várias alternativas, o processo de crescimento
precisa de erros e as buscas, de falsos guias.
5. O ponto de vista narrativo e a voz, seja na primeira ou na terceira pessoa, são caracterizados pela
ironia com respeito ao protagonista, mais do que pela nostalgia da juventude. Há sempre uma distância
entre a perspectiva do narrador e a do protagonista.
6. Os outros personagens do romance cumprem funções fixas e diversas: os educadores servem como
mediadores e intérpretes entre as forças do si mesmo e a sociedade; os companheiros servem como
reflexos do protagonista, presentes para diferentes objetivos e fins (por exemplo, Wilhelm Meister and
Lothario, Emma Woodhouse and Jane Fairfax, Lucien de Rubemp´re e David Séchard); os amantes
proveem a oportunidade de educar os sentimentos. (No romance de formação estas figuras são
subordinadas ao protagonista, diferente de como acontece no romance social, onde todos os
personagens possuem iguais centros de interesse).
7. O Romance de Formação é concebido como um romance didático, que educava o leitor retratando a
educação do protagonista [tradução nossa]” (HIRSCH, 1979, p. 296-298, tradução nossa).
narrativas do BR e determinados pontos de vista ideológicos, que foram utilizados para apoiar
as políticas colonialistas” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 84, tradução nossa). Assim, o argumento, a
figura do mentor, o tópico do deslocamento campo-cidade, a importância do individualismo, a
preponderância do público sobre o privado, a relação com o ideal humanista, o discurso em
torno da identidade que este gênero defende, a imagem de sujeito presente nele e a estrutura
linear historicista que o organiza seriam simbolizações de uma tal filiação.
(...) fetiches da cultura ocidental e, sobretudo, uma das características que a diferenciam das culturas
nativas das antigas colônias, para as quais a primazia da comunidade – ou dos habitantes do mundo
sobrenatural – sobre o indivíduo é um dos traços principais que nos permitem distinguir as histórias
pós-coloniais dos relatos ocidentais 69.
66
Ibid., p. 85.
67
Ibid., p. 85.
68
Ibid., p. 87.
69
Ibid., p. 92.
43
O individualismo, por sua vez, vincula-se ao caráter privado deste tipo de histórias
que, como mencionamos, localizam-se num terreno sempre afastado dos pontos de definição
histórica, fazendo com que “o mundo colonial, que necessariamente teve de jogar um papel
fundamental nas sociedades em que floresceu o BR clássico, incorpore-se ao texto quase
sempre de forma indireta e simbólica” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 101, tradução nossa). É
inevitável, nesta linha de argumentação, não nos referirmos também à relação deste gênero
com o ideal humanista desenvolvido no século XVIII alemão, o qual possui uma contradição
de base que envolve, em última instância, conflitos de classe, gênero e relativos ao
colonialismo, pois, se, por um lado, este acreditava na existência de uma subjetividade
universal que se manifestaria de maneira diferente nas distintas culturas, “na prática, o
programa de aprendizado projetado pelos pensadores alemães ficou limitado às classes
70
superiores e dele foram excluídas as mulheres e outros grupos sociais minoritários” . Tal
visão da subjetividade, por sua vez, sustenta-se num discurso em torno da identidade,
caracterizado por três traços principais. Em primeiro lugar, por uma visão que flutua entre
duas concepções: a orgânica, a qual “implica que a sociedade se limita a ajudar o indivíduo a
desenvolver suas potencialidades inatas por si mesmo, sem interferir mais do que o
estritamente necessário” 71 e a construtivista, que:
(...) sugere que a sociedade não desempenha só uma função coadjuvante na formação do eu, mas que
controla todo o processo de maneira ferrenha, dirigindo o indivíduo por um caminho estabelecido
previamente, ao mesmo tempo que o faz conceber a ilusão de que atua por si mesmo 72.
Ambas as visões operavam também no discurso colonial, o qual “flutuou entre uma
defesa até a morte do essencialismo e a crença de que o entorno é o responsável último pela
73
construção do sujeito” . Em segundo lugar, este processo de formação do sujeito não é
realizado mediante a aplicação de um poder coercitivo, mas é o protagonista que se
transforma a si mesmo em sujeito, a partir de um “silêncio opressor” 74 que “pretende inculcar
no leitor a crença de um sujeito centrado, unitário, criado a partir da repressão de outras
70
Ibid., p. 94.
71
Ibid., p. 95.
72
Ibid., p. 95.
73
Ibid., p. 95.
74
Ibid., p. 99.
44
formas de subjetividade, que ficam nas margens do romance” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 102,
tradução nossa). Por último, isto expressa-se na estrutura narrativa do Bildungsroman, a qual
se configura a partir de dois actantes principais: o “eu narrado” e o “eu narrador”, duplicidade
que ameaça introduzir uma cisão na identidade que o BR evita utilizando diferentes
procedimentos. Por exemplo, mediante a redução da distância entre os actantes e a recorrência
à memória, com o fim de dar unidade ao fluxo de impressões que este experimenta. No
entanto, segundo Fernández Vásquez:
(…) a imagem de unidade que se transmite ao leitor é uma quimera. A alteridade está sempre presente
no relato ocidental, ameaçando a possibilidade do discurso hegemônico. Esta ameaça pode adotar
formas diversas: desvio sexual, criminalidade, selvagismo (...). No Bildungsroman clássico, o
protagonista rejeita todos aqueles que representam o outro, inclusive quando desempenharam um papel
determinante na sua formação 75.
76
Um tal processo de “recalque do outro” implica também uma negação de tudo
aquilo que está ligado ao mito e à fantasia, o que, seguindo os esquemas orientalistas
definidos por Said, é relegado, pelo discurso colonial, ao terreno das colônias, ficando para o
mundo europeu –sob a influência do positivismo e da ilustração- o domínio da racionalidade.
75
Ibid., p. 105.
76
Ibid., p. 108.
45
As cinco obras que iremos analisar ao longo destas páginas são imensamente
diferentes entre si e constituem variantes singulares do Romance de Formação. Elas
distribuem-se na extensão de um período amplo que vai de 1888 até 1943 e fazem parte de
contextos históricos, culturais e literários também distintos, que lhes oferecem materiais
humanos e estilísticos novos, a partir dos quais potenciam a sua singularidade. Esse quadro de
diferenças que iremos desenvolver mais à frente dá-se, no entanto, dentro de uma
problemática comum que atravessa os textos e a partir da qual quisemos integrá-los. Trata-se
da questão do patriarcalismo e da polêmica que esses romances levantam contra a estrutura
social tradicional representada pela cultura organizada ao redor do homem, cuja elaboração
define, ao mesmo tempo, duas tradições. A primeira delas é uma tradição poética, composta
pelas obras de Pompeia, Andrade e Lispector, que aborda a problemática do patriarcado como
um problema subjetivo de emancipação espiritual. A outra, uma tradição prosaica, que
acrescenta a esses elementos vinculados ao sujeito, questões associadas à configuração social
do mundo em que cada uma delas se desenvolve. Esta tradição é erigida pelos romances de
Graciliano Ramos e José Lins do Rego.
No caso do Brasil, esta compreensão local do que seja o patriarcalismo nos é oferecida
pelo ensaio histórico-antropológico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1935),
particularmente pelos capítulos “A herança rural” e “O homem cordial”. Este ensaio, diga-se
de passagem, foi escrito na década de trinta, quer dizer, no coração da época que estamos
estudando, momento em que os estudos histórico-sociais voltam-se à compreensão e à análise
da “realidade brasileira”, formando parte do movimento geral de unificação, engajamento e
transformação da cultura que está experimentando o país nesse momento.
46
Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da antiguidade, em que a própria
palavra ‘família’, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que
mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca,
os liberi 78.
As relações que primam neste universo patriarcal são, portanto, relações particularistas
modeladas pelo trato entre consaguíneos, e dentre as quais se pode dizer que não há formação,
pois os seus vínculos são extremamente estreitos e, não raro, opressivos. A mulher, os filhos e
os trabalhadores encontram-se aqui fixos diante da obediência que devem render ao pai-
patrão; travando o seu desenvolvimento individual em função da manutenção do sistema
social em que estes se encontram inseridos.
77
Ibid., p. 49.
78
Ibid., p. 49.
79
Isto é, de 1888 até 1930.
47
portanto, muitos dos fundamentos dessa sociedade tradicional encontram-se ainda vivos.
80
Ibid., p. 165.
81
Ibid., p. 165.
82
Ibid., p. 149.
48
interesse dos grandes Estados e sobretudo de São Paulo” (FAUSTO, 2012, p. 140 ), pois eram
vitais “para que o governo paulista pudesse pôr em prática os planos de valorização do café”
83
, decretar impostos sobre a exportação das suas mercadorias e organizar uma justiça própria.
Em relação a este ponto é de grande importância o fenômeno conhecido como a política do
“café com leite”, expressão que se refere à aliança estabelecida entre São Paulo e Minas
Gerais, os dois estados mais ricos da época, com o fim de comandar a política nacional,
alternando entre um e outro estado o poder presidencial, a fim de fazer prevalecer os
84
interesses das oligarquias locais: do café (no caso de SP) e do leite (no caso de MG) . Isto
pressupunha a configuração de estados com um alto grau de autonomia em relação à União, o
que favorecia a realização dos seus interesses particulares, sendo o caso mais extremo o de
São Paulo que, apesar de receber apoio de dois governos (Afonso Pena e Artur Bernardes) em
duas operações valorizadoras do café, uma vez perdido esse apoio, ainda assim “tiveram
meios de garantir sua autonomia e até certo ponto levar seus planos econômicos adiante” 85.
86
Como veremos, a presença deste domínio do rural-tradicional faz-se sentir no
Bildungsroman da época, o qual compreende a formação como o processo de libertação da
cultura patriarcal ou, para pô-lo em termos visuais, como a colocação em movimento desse
quadro rígido em que as partes dessa sociedade começam a entrar a se emancipar: os filhos, os
trabalhadores e, por fim, as mulheres. Nesse sentido, diante do cenário histórico em que eles
se situam, os romances orientam-se a promover a ruptura entre o velho e o novo mundo: entre
o mundo patriarcal-oligárquico e a modernidade, propondo para isso uma formação mediante
deformação, a qual surgirá de diferentes formas de rompimento com os papéis sociais
estabelecidos por ela.
83
Ibid., p. 141.
84
Ibid., p. 150.
85
Ibid., p. 152.
86
A partir da década de trinta começa um lento caminho de desvencilhamento desta configuração política,
econômica e administrativa, com o processo de industrialização que se intensifica notoriamente a partir do
governo de Getúlio Vargas. Sem embargo, por enquanto iremos nos abster de desenvolver estes aspectos ligados
à modernização para favorecer o fio argumentativo desta primeira parte, cujo objetivo é articular a questão do
patriarcalismo – que organiza, distintamente, o Romance de formação da época – com o contexto dominante em
que este se desenvolve.
49
“megaempresa” educativa que é O Ateneu 87. No entanto, o educador modelo desse universo
continuará sendo um homem que soberanamente se levanta representando a norma que os
alunos haverão de obedecer e reproduzir. Diante dela, como veremos, o Sérgio-narrador vai
desdobrar um relato paródico orientado a desmantelar essa identificação entre homem e
norma, perspectivando a figura de Aristarco e narrando a formação de Sérgio-menino em
oposição aos caminhos traçados por ele.
87
Trânsito que fica explícito no célebre início do romance de Pompeia: “‘Vais encontrar o mundo, disse-me meu
pai, à porta do Ateneu. Coragem para luta’. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia,
num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico;
diferente do que se encontra fora, tão diferente que parece o poema dos cuidados maternos um artifício
sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento,
têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso” (POMPEIA, s/d, p. 5).
88
“Mamãe queria que eu fosse o melhor dos alunos, mas na abertura esplanada onde os outros bolavam caía vida
do tinir das forjas e dos bondes no recrote de apitos e pregões. A campainha era um badalo de sonoridades. A
grita meridiana estourava bola de sabão na queda entre os goals dum último kick de altura. E recolhiam-se os
retardatários às filas formadas para eu deixar de escutar a cidade última atrás da carranca em andor dos
vigilantes” (ANDRADE, 1973, p. 28).
50
Um romancista nordestino, o Sr. José Lins do Rego, fixou em episódios significativos a evolução crítica
que ali também, por sua vez, vai arruinando os velhos hábitos patriarcais, mantidos até aqui pela inércia;
hábitos que o meio não só já deixou de estimular, como principia a condenar irremediavelmente. O
desaparecimento do velho engenho, engolido pela usina moderna, a queda de prestígio do antigo
sistema agrário e a ascensão de um novo tipo de senhores de empresas concebidas à maneira de
estabelecimentos industriais urbanos, indicam bem claramente em que rumo se faz essa evolução
(BUARQUE DE HOLANDA, 1973, p. 131).
89
configuram um dos dois sistemas observáveis no Bildungsroman brasileiro . No seu
conjunto, esses romances descrevem um processo que pode ser visto de forma unitária: o
processo de superação das subjetividades estabelecidas pela cultura masculina patriarcal,
configurando uma tradição em si mesma polêmica e de vozes narrativas fortemente
anárquicas. Esta tradição se inicia com o texto de Raul Pompeia, um texto eminentemente
masculino em que a lógica feminina (apesar da atuação de certas mulheres) é cruamente
eliminada do processo formativo do seu protagonista e do universo geral do romance. Mais
tarde continua com a obra de Oswald de Andrade, que apresenta um intento de superação de
tal estrutura, através da história de formação de um escritor de vanguarda; mas uma superação
fracassada no seu conteúdo, que acaba com a reintegração de Miramar ao esquema da
masculinidade oligárquica. Previsivelmente, tal processo culmina com a aparição de uma
mulher, Clarice Lispector, cujo romance descreve uma viva superação da cultura patriarcal, já
não de forma incendiária (como acontece em O Ateneu), mas oferecendo, além da negação,
uma nova estrutura de pensar, sentir, e posicionar-se no mundo que virá de um olhar
radicalmente feminino.
Uma vez traçada essa afinidade, o que surge é o desenho de um sistema que oferece
vários outros pontos de interseção. Em todos os textos que o compõem, a história de
formação relatada aparece inscrita dentro de um universo sumamente rígido e organizado, em
que a institucionalidade se erige como um dos atores principais dos romances. A
institucionalidade concreta da escola, no caso de O Ateneu, ou a institucionalidade cada vez
mais difusa (mais nem por isso menos atuante) da família oligárquica, em Memórias
sentimentais, e, finalmente, das relações intersubjetivas, em Perto do coração selvagem.
Por contraposição a tal rigidez, esses textos terão como protagonistas personagens ou
discursos narrativos especialmente singulares, e o relato da formação desses
sujeitos/discursos será mais central que o espaço em que se inserem, apesar do poder que
esses exercem. Talvez pela própria contraposição entre o marco excessivamente
institucionalizado em que acontece a formação nesses romances e a singularidade dos
89
Seguindo o critério cronólogico teríamos que ter deixado Clarice Lispector para a parte final do nosso estudo
sobre o Romance de formação brasileiro. No entanto, pela afinidade que ela apresenta com Raúl Pompeia e
Oswald de Andrade quisemos estudá-la em continuidade com eles e incorporá-la neste capítulo. Contudo, a sua
obra continua sendo, para nós, o romance que coroa o Romance de formação brasileiro na sua totalidade, quer
dizer, nas suas duas tradições.
52
90
Fazemos esta distinção entre retórica poética e retórica prosaica seguindo os fundamentos de Mikhail Bakhtin,
isto é, atendendo ao grau de dialogicidade que cada uma destas tradições desenvolve: “Na maioria dos gêneros
poéticos (no sentido estrito do termo), conforme já afirmamos, a dialogicidade interna do discurso não é utilizada
de maneira literária, ela não entra no “objeto estético” da obra, e se exaure convencionalmente no discurso
poético. No romance, ao contrário, a dialogicidade interna torna-se um dos aspectos essenciais do estilo prosaico
e presta-se a uma elaboração literária e específica” (BAKHTIN, 1990, p. 93). Ao afirmarmos que esta tradição
possui uma tendência fundamentalmente poética, não queremos dizer que careça de toda dialogicidade, mas que
o grau de polifonia é significativamente menor. Eles se organizam praticamente em torno de dois eixos: o
discurso do protagonista (e do narrador que, geralmente, é o mesmo personagem) e o discurso de um outro que
representa a norma social. Seu foco central, por outro lado, será a articulação de um discurso próprio e não a
abertura ao universo aberto das falas alheias, configurando-se como textos mais “centrípetos” do que
“centrífugos”.
53
- Qual a pessoa que você mais admira? Além de mim, além de mim – acrescentou o professor –. Se
você não me ajudar, não chegarei a conhecê-la, não poderei guiá-la.
- Por que você não citou um desses grandes homens que rolam por aí? Você conhece pelo menos uma
dezena deles. Você é excessivamente sincera, excessivamente – disse ele com desagrado.
O romance O Ateneu e Perto do coração selvagem podem ser lidos, cada um à sua
maneira, como uma polêmica em torno de um tipo particular de figura social: a figura que eles
mesmos denominam de “o grande homem”. Tanto o texto de 1888, como o de 1943, levantam
esse tópico que se oferece como um ponto de conexão e um fio condutor fantasticamente
visível entre ambos os romances. Consequentemente, como veremos, de modo geral, essa
figura dos “grandes homens” vai corresponder à do “homem normativo”, isto é, aquele que
representa a norma social (masculina, racional e socialmente construtiva) que terá de ser, de
alguma forma, desafiada ou superada pelo personagem em formação: Sérgio, no caso de O
Ateneu, e Joana, em Perto do coração selvagem. No primeiro livro, esse “grande homem” é
atualizado pelo personagem Aristarco, “o homem que sofre a obsessão pela própria estátua”,
imagem do sujeito que, obsecado por encarnar a norma, se identifica plenamente com a
institucionalidade. Em Perto do coração selvagem, como iremos ver, a figura do “grande
homem” reaparece representada pela cultura patriarcal do pai e pelo tipo de masculinidade
encarnada por Otávio, assim como pelas relações sociais que estão imbricadas na cultura
masculina determinada por ambos os personagens. “Grande homem”, como se insinua na
cena da epígrafe supracitada, vai ser, no romance de Clarice, aquele sujeito que compreende a
formação e a experiência como fatos históricos, isto é, como um conjunto de ações e
acontecimentos que devem dar-se no âmbito das relações sociais. Na sua forma mais extrema,
tais “grandes homens” seriam os personagens heroicos, cujas ações se destacam na
coletividade, representando-a. No entanto, numa fórmula corriqueira, eles correspondem aos
sujeitos cuja inserção na dinâmica do comportamento social encontra-se tão enraizada, que
todos os seus atos privados, inclusive o ato singelo de, por exemplo, comer um bombom,
serão regulados pelas demandas da sociedade:
54
Por que não? – perguntou-se de repente irritado. Quem disse que os grandes homens não comem
bombons? Só que nas biografias ninguém se lembra de contar isso. Se Joana soubesse desse
pensamento? Não, na verdade nunca mostrou ironia para...Teve um momento de raiva, apressou o
passo. Antes de dobrar na esquina, pegou o saco de bombons e despejou-os na sarjeta. Angustiado, viu-
os misturarem-se à lama, rolarem até um vão escuro cortado de raiva, apressou o passo (LISPECTOR,
1980, 118).
No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele
sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.
Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social
periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um
viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse ‘Vosso mau amor de
vós mesmos vos faz do isolamento um cativerio’ 92.
natureza humana como um todo que resiste ao entendimento esquemático das categorias
vindas do socratismo-platonismo, do cristianismo e do humanismo moderno. Talvez o mais
importante filósofo e o fundador desta linha de pensadores na modernidade seja Nietzsche,
sucedido mais tarde por Heidegger, Sartre, Kierkeegard, Foucault e Lacan, dentre outros 93.
93
Mesmo participando claramente dessa corrente espiritual anti-humanista de que esses romances são expressão,
Clarice Lispector ocupa um lugar singular. Esse lugar já foi explorado por Benedito Nunes no seu livro O drama
da linguagem, um de cujos eixos principais é a análise dos motivos em que se cristaliza o arcabouço
existencialista da concepção de mundo de Clarice Lispector. Para o crítico literário, ainda que a afinidade esteja
de fato instalada na sua obra, o sentido global dela diverge tanto da filosofia da existência, que se centra na ideia
de “existência como realidade fática” (NUNES, 1989, p. 101), quanto do existencialismo sartreano de O ser e o
nada. E a divergência estaria “na perspectiva mística que prevalece afinal e redimensiona os nexos temáticos
formadores da concepção do mundo de Clarice Lispector” – nexos que começam a ser repensados e desfeitos em
O livro dos prazeres (...)” (Ibid., p. 101). De fato, Clarice Lispector é imensamente propositiva neste romance e
parece querer resolver as contradições que lhe dão a sua organização mediante a colocação destes valores
transcendentais. No caso de Raúl Pompeia, o vínculo mais importante entre ele e esta tradição espiritual é
estabelecido por Alfredo Bosi, na descrição que este realiza da poética da obra, a qual expõe, segundo o crítico,
uma contradição entre a lei (representada pela matriz naturalista que o romance apresenta) e o lugar do
inconsciente e do desejo, que este superpõe: “Ao longo do século XIX a contradição entre a Lei (sustentada pelo
prestígio da ciência) e o Desejo vai conhecendo expressões cada vez mais veementes. Descobre-se, afinal, que o
inconsciente, lugar das paixões, se rege por movimentos próprios que perpassam as imagens do sonho e se
traduzem nas mil e um figuras da arte. Este será o grande passo dado por Nietzsche e por Freud, para só lembrar
os cimos” (BOSI, 2003, p. 78). “A poética de Pompeia é um dos muitos exemplos dessa passagem que envolvem
toda a arte ocidental no último quartel dos Oitocentos. Do naturalismo ao impressionismo” (Ibid., p. 79).
94
Ibid., p. 181.
95
Ibid., p. 185.
96
Ibid., p. 186.
56
Nesse indivíduo, a força de expansão é muito maior do que a de conservação (no que se identifica a
crítica de Nietzsche a Darwin), e é nisso que reside o seu grande valor (a sua genialidade criadora) para
a espécie como um todo: esse tipo de indivíduo leva para a frente, e sua grande preocupação com o
amanhã da espécie lhe dá direito a “tão extraordinário egoísmo” (DE OLIVEIRA, 2012, p. 187)
(SEVCENKO, 2003, 97), o que seria conseguido, segundo eles, mediante “a liberalização das
iniciativas (...) e a democratização, entendida como a ampliação da participação política.
Como se vê, uma lição bem acatada de liberalismo progressista” 97.
Seguindo os caminhos traçados pela crítica, O Ateneu, de fato, parece ser indissociável
do momento histórico de transição entre o regime monárquico escravista e o início da
República em que ele surge (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 74). Este momento se fixa logo
na data de publicação do livro: 1888, ano da abolição que iniciou o desmoronamento da
ordem tradicional para dar lugar à cultura brasileira urbana moderna. Internamente, este
momento imprime-se também na ordem simbólica do romance, cujo desfecho tem sido
compreendido em termos alegóricos, como “a superação da ordem degenerada do Segundo
99
Império” , sendo o incêndio do internato por Américo, uma metáfora da destruição do
“velho” – o colégio – pelo “novo” universo da República vista como destino americano 100. A
própria composição da obra, e principalmente o final dado pelo seu autor, esteve fortemente
imbricada aos acontecimentos históricos mencionados. O Ateneu publicava-se diariamente no
97
Ibid., p. 97.
98
De fato, a produção cultural em si ganhou uma aceitação e legitimação inédita durante esse período que vai de
1875 a 1922, tendo o seu momento áureo entre 1880 e 1908 (CANDIDO; CASTELLO; 1966, p. 107). Mediante os
diferentes gêneros modernos que estavam se desenvolvendo na época, os intelectuais escreviam sobre as
questões locais em sentido acentuadamente crítico (Ibid., p. 110), dando continuidade a suas funções políticas e
estéticas. Por este motivo, a indagação na interação entre as duas esferas parece ser uma condição crítica
necessária para o estudo dos autores desta época.
99
Ibid., p. 75.
100
Ibid., p. 75.
58
jornal Gazeta, mas a partir do dia 14 de maio de 1888 foi interrompido para voltar com o
capítulo final quatro dias depois: “Durante a interrupção da narrativa, a Gazeta aparece
tomada pela notícia da abolição da escravatura. No dia 18, quando o romance volta às folhas
do jornal, apresenta-se o episódio em que Américo, um furioso aluno recém-matriculado,
incendeia a instituição prestigiada em solenidades pela princesa regente e outros
representantes do Império” (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 75). O nome do incendiário
seria revelador e expressaria, segundo Leila Perrone-Moises, em concordância com a morte
de Franco e a revanche de Américo, a oposição – corrente na época – entre Europa e
Monarquia e América e República 101.
Para começar a expor com mais detalhe as características deste romance, gostaríamos
de apresentá-lo como um texto configurado a partir de duas perspectivas que, por sua vez,
determinam a utilização de dois modelos literários: o já mencionado Romance de Formação e
o Romance de Escola. Da perspectiva deste último, a obra se focaliza na apresentação deste
internato, nos aspectos institucionais e nos elementos técnico-pedagógicos que nele se
desenvolvem, utilizando um repertório linguístico naturalista-darwinista que sustenta “uma
critica ao status quo monárquico, responsabilizando-o pelo cenário pessimista que se
diagnosticava no contexto nacional” (MISKOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p. 77). Já da perspectiva
do Romance de Formação, O Ateneu lê-se como o desenvolvimento do caráter específico do
protagonista, com suas reflexões e sucessivas transformações, e não somente como um
101
Ibid., p. 75.
59
A sátira, segundo a fórmula útil, ainda que desgastada de Juvenal, interessa-se por tudo o que os homens
fazem. O filósofo, por outro lado, ensina determinado método ou modo de vida; insiste em algumas
coisas e despreza outras; o que recomenda foi selecionado cuidadosamente dentre os dados da vida
humana; constantemente está emitindo juízos morais sobre o comportamento social. Sua atitude é
dogmática; a do sátiro, pragmática. Por essa razão a sátira pode amiúde representar o choque entre uma
seleção de pautas extraídas da experiência e o sentimento de que a experiência é mais ampla do que
qualquer série de crenças que se tenha sobre ela 106.
Mobilizado pelo domínio desta norma, o mundo narrado será satirizado por meio do
Romance de Escola e complementado pela presença do Romance de formação que, para além
da lógica naturalista, vai nos trazer a presença de um personagem em efetiva
autodeterminação107. Como dissemos, e recolhendo as palavras do próprio texto, quisemos
102
Neste sentido, discordamos do trabalho de Marcus Vinicius Mazzari, “O ABC do terror: representações
literárias da escola”, que considera que o estudo deste romance da ótica do Romance de formação é inadequado:
“Os traços que impedem a consideração de obras como O Ateneu ou As tribulações do pupilo Törless enquanto
Bildungsroman são inúmeros, começando com a ausência do amplo recorte temporal e espacial característico
deste gênero. Se é verdade que a narração de um processo formativo costuma incorporar a etapa da infância (mas
quase sempre através de breves flashbacks), enfocam-se sobretudo conflitos próprios da transição da juventude
para a maturidade do herói (a rigor, apenas a velhice é excluída do processo formativo)” (MAZZARI, 2010, p.
181).
103
Cf. nota de rodapé número 22.
104
Ibid., p. 303.
105
Ibid., p. 307.
106
Ibid., p. 307.
107
Alfredo Bosi detecta uma série de momentos antitéticos que expressam a superação dos valores naturalistas
na narração, no estilo e na ideologia deste romance. Em primeiro lugar, “o foco da escuta conhece a fundo e por
dentro o caráter mutante e intercambiável da relação entre sujeito e objeto. O nexo assume, no discurso
evocativo, a forma originária de um eu/outro. Não há pretensão de naturalismo impessoal que resista a esse
60
denominar esse caráter em formação sob o rótulo do “pequeno homem”. Ele corresponde à
imagem perfeita do sátiro na sua versão mais corrosiva, a uma espécie de “homem cupim”
que, através do seu discurso, procura e consegue “roer” a fachada da institucionalidade,
situação que é radicalizada no final do romance com o incêndio do Ateneu. Este “pequeno
homem” encontra-se cindido em dois “Eus”: o Sérgio-menino, que participa dos
acontecimentos narrados, e o Sérgio-narrador, voz discursiva que organiza a história e que
espalha a perspectiva satírica por todos esses acontecimentos. O relato mostra o caminho
formativo de Sérgio, as sucessivas etapas pelas quais ele passa até a metamorfose final em
que esse caráter fundamentalmente anárquico “coagula” no seu espírito. E a narração total
sobre o aspecto institucional, o romance enfim, será todo contado dessa perspectiva, tendo
como mecanismo central o sucessivo desmascaramento de Aristarco, o “grande homem”, e a
sua imensa obra pomposamente chamada de “Ateneu”; até o extremo de reduzir ambos a
cinzas.
tratamento de choque” (BOSI, 2003, P. 69). Em segundo lugar, ele destaca como formando parte do mesmo
movimento a contestação ao poder que se articula a partir da interpretação histórica que o romance quer
desdobrar através desta escola que parece ser tecida com “os mesmos fios que sustém a trama social do Segundo
Império” (Ibid., p. 70): “Se apenas os mais fortes e os mais fracos devem cingir-se com os louros da vitória, o
que autoriza ‘cientificamente’ a contestar o seu poder? O impulso anárquico parece, portanto, o contrário das leis
darwinianas (...)” (Ibid., p. 72). Por último, o crítico brasileiro destaca a autodeterminação ética que Sérgio
expressa em relação a Franco e mesmo o contraste que ela apresenta com a ideologia das relações sociais dentro
do romance: “Mas ‘durante a conferência pensei no Franco’. Assim, abrupto, sem rodeios, levanta o narrador a
ponte entre uma leitura cerrada do universo (sua ideologia explícita) e a matéria vertente, o fluxo das ações e
reações que envolvem Sérgio e os meninos do Ateneu” (Ibid., p. 73).
61
representados pelo harmônico quadro de anjos a que Sérgio dirige constantemente o seu olhar,
passam na prática a conformar um conjunto de sujeitos extremamente caracterizados, quase
monstruosos na sua excessiva singularidade, inconfundíveis entre si neste universo onde o
que prima é o indivíduo e não a comunidade. O ritual de iniciação neste novo universo será o
sinistro episódio dos cacos e, enquanto tal, ele vai gerar no personagem posto a prova uma
mudança irreversível; marcando de forma drástica um antes e um depois na configuração do
personagem e interditando toda possibilidade de voltar ao seu estado originário:
Ah! Que se ainda me vivesse no ânimo a bravura audaz que trouxera de casa, sem dúvida nenhuma há
muito tempo que eu tinha despachado o Sanches com a cartilha pelas ventas. Mas eu era outro [o grifo
é nosso], e a vontade vegetava tenra e dúctil como um renovo, depois do aniquilamento da primeira
decepção. Fui transferindo o conflito (POMPEIA, s/d, p. 47).
O Sanches será o primeiro mentor de Sérgio neste universo. Ele o fará incorporar a
retorcida lógica da confiança que opera no âmbito do colégio; uma confiança imbricada de
dominação e dependência. E os sentimentos dominantes de Sérgio durante este período serão
os da solidão e da letargia moral, da limitação pessoal, do acovardamento e da falta de
virilidade.
Para sair um pouco mais forte das provações do Ateneu, Sérgio começa a abrir-se à
religião, dando início, assim, ao segundo período do seu desenvolvimento, o “Período da
depressão contemplativa”, às vezes também chamado pelo narrador de “Período anagógico da
crença”. Esse caminho místico seguido por Sérgio (e que lembra as antigas formas de
religiosidade inaciana, em que o sofrimento e a autoflagelação corporal são partes
constitutivas da fé) aparece, no entanto, como mais uma via de martírio e ensimesmamento, e,
consequentemente, como uma nova forma de perpetuar a autoanulação que tinha se iniciado
com a entrada no colégio. Deste modo, a religião não serve a ele nem para elevar-se
espiritualmente, nem para comungar com alguma forma de comunidade através de rituais que,
aliás, renega; mas como um modo de espiritualizar o seu sofrimento. Apesar de suavizar o
mal do mundo descoberto no período anterior, tal finalidade o leva, mais uma vez, ao
enclaustramento, ao martírio e à decadência, agora sublimada pela presença da divindade.
62
Ao dia imediato saí da cama como de uma metamorfose. Imaginei, generalizando errado, que a
contemplação era um mal, que o misticismo andava traidoramente a degradar-me: a convivência fácil
com o Franco era a prova. O Ateneu honrava-me, por esse tempo, com um conceito que só depois
avaliei. Eu não me julgava assim tão apeado, mas supus-me diretamente a caminho de um mergulho. Se
a alma tivesse cabelos, eu registraria neste ponto um fenômeno de horripilação moral.
Fiquei perplexo.
O triunfo na escola podia ser o Sanches; em compensação, a humildade vencida era o Franco. Entre os
dois extremos repugnantes, revelavam-se-me três amostras típicas à linha do bem viver: Rebelo, um
ancião; Ribas, um angélico; Mata, o corcunda, um polícia secreta. Para angélico definitivamente não
tinha jeito, estava provado, nem omoplatas magras; para ancião, não tinha idade, nem óculos azuis, nem
mau hálito; para ser o Mata, faltava-me o justo caráter e a corcova... Onde estava o dever? Na cartilha?
Na opinião de Aristarco? Na misantropia senil dos óculos azuis? Saltou-me nisto, às avessas, o
relâmpago de Damasco: independência. (POMPEIA, s/d, p. 71-72, grifo nosso)
O sinistro episódio dos cacos em que Franco faz Sérgio participar leva-o à última e
mais decisiva transformação do seu caráter: “Chegava eu assim, por trajeto muito diferente do
108
que sonhara, à desejada personificação moral do pequeno homem” . Assim, os dois
períodos anteriores adquirem neste ponto da sua evolução a feição de um percurso um tanto
demonista, em que primeiro se nega a possibilidade da amizade e, depois, a existência da
divindade, para acabar afirmando a supremacia do ser independente que põe todo o valor da
existência na própria autonomia e todo parâmetro de comportamento no critério pessoal. A
religião escurece-se nele, torna-se ateu e anarquista, e põe-se em conflito com a autoridade,
transformando-se assim, nesse “pequeno homem” que, por definição, legitima-se só a partir
de si mesmo, renegando o valor que possa ter o reconhecimento de qualquer instância
superior, abdicando de todo desejo de exemplaridade e tornando-se antipático de tudo aquilo
que possa representar a norma social. O “pequeno homem” é, assim, a realização de um tipo
de homem autônomo, autossuficiente, “desumanizado” e, sobretudo, de um sátiro. Em outras
palavras, de um sujeito que, carente de qualquer tipo de idealismo, deposita, no entanto, toda
a sua fé no desmascaramento e na corrosão das instituições e dos seus discursos.
Seguindo esta linha de interpretação, dois episódios do romance que poderiam passar
como meras anedotas transformam-se em eventos de interessante significação. O primeiro
deles é o violento capítulo do assassinato do amante de Ângela que, mais do que trazer um
acontecimento impactante da infância escolar, cumprirá a função de mostrar, de forma não
discursiva, qual é a perspectiva deste “pequeno homem” em formação. Assim, na maneira
como Sérgio posiciona-se diante do cadáver – ou diante da morte, se quisermos ser mais
108
Ibid., p. 79-80.
63
generalizantes – vemos uma eloquente exposição da perspectiva deste sátiro anárquico que
quer ver a vida humana com o olhar que se encontra para além dos disfarces da
institucionalidade escolar ou religiosa, registrando os acontecimentos com toda a crueza e
tragicidade do real:
Isto não era ter visto um cadáver. Eu queria o cadáver flagrante, despido dos artifícios de armação e
religiosidade, que fazem do defunto simples pretexto para um cerimonial de aparato. O que me
convinha era o galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da existência, tal qual
(POMPEIA, s/d, p. 85).
O segundo episódio que gostaríamos de resgatar para fixar a imagem deste caráter é o
da exposição de desenhos que, por sua vez, funciona como uma sorte de antecipação da
fantástica cerimônia em que Aristarco se encontra com a desejada escultura de si mesmo.
Interessa-nos esse capítulo do relato escolar, pois vemos nele mais uma instância em que se
ilustra, neste caso visualmente, qual é o modelo com que Sérgio se identifica. Por oposição
aos trabalhos dos seus colegas que decidem reproduzir a imagem do diretor (da autoridade),
transformando-se em alter egos de Aristarco, o protagonista trabalha com devoção no
desenho de uma cabra, ou seja, de um importantíssimo símbolo utilizado inúmeras vezes na
história da literatura, especificamente em textos de corte iconoclasta, para representar o
funcionamento das altas esferas da sociedade de uma perspectiva narrativa irreverente,
dirigida a enfatizar os aspectos excessivamente carnais, corruptos e deformantes dessas
classes. Isso se pode notar em famosos livros como El libro del buen amor (1330-1343), de
Juan Ruiz, Arzipreste de Hita, El libro de los gatos (1350-1400), de Odo de Cheriton, El
carnero (1638), de Juan Rodríquez Freyle (MORENO DURÁN, 1988, p. 3-21). Sérgio escolhe e
se autorrepresenta com esse símbolo da cabra, negando, assim, o modelo da autoridade
representado por Aristarco, o “grande homem”, e pondo no seu lugar uma figura de oposição
representando o seu caráter polêmico e controverso:
Quando os visitantes invadiram a sala notaram na linha dos trabalhos suspensas duas enigmáticas
pontas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último capítulo, a
história de uma cabra (...) 109.
Os retratos todos, bons ou maus, eram alojados indistintamente nas molduras de recomendação. Passada
a festa, Aristarco tomava ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha-os já às resmas. Às vezes, em
momentos de spleen, profundo spleen de grandes homens, desarrumava a pilha; forrava de retratos,
109
POMPEIA, op.cit., p. 130.
64
mesas, cadeiras, pavimento. E vinha-lhe um êxtase de vaidade. Quantas gerações de discípulos lhe
haviam passado pela cara! Quantos afagos de bajulação à efígie de um homem eminente! Cada papel
daqueles era um pedaço de ovação, um naco de apoteose.
E todas aquelas coisas malfeitas animavam-se e olhavam-se brilhantemente. “Vê, Aristarco, diziam em
coro, vê; nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!” E Aristarco, como ninguém na
terra, gozava a delícia inaudita, ele incomparável, único capaz de bem se compreender e de bem se
admirar – de ver-se aplaudido em chusma por alter-egos, glorificado por uma multidão de si mesmos.
Primus inter pares.
110
Tal contraposição entre o “Microscópico” e o “Macroscópico” corresponde a um uso comum da sátira da
terceira fase. Igual à quixotesca que estamos analizando aqui, ela pode “hacer uma defensa táctica de lo
prágmático contra lo dogmático, pero aquí debemos renunciar incluso al sentido común ordinario como criterio”
(FRYE, 1991, p. 308). Pompeia não chega a avançar tanto neste tipo de sátira, que chega inclusive a questionar a
realidade dos dados da experiência sensível e a base das nossas associações habituais. No entanto, pela presença
desse mecanismo podemos dizer que se encontra a caminho de fazê-lo: “El satírico no puede explorar todas las
posibilidades de su forma sin ver lo que va a ocurrir si él pone en tela de juicio dichos supuestos. Esta es la razón
por la cual tan a menudo él somete la vida ordinaria a un cambio de perspectiva lógico e intrínsecamente
coherente. Nos mostrará de improviso, la sociedad por un telescopio, como pigmeos muy dignos que se
pavonean; o por un macroscopio, como gigantes apestosos que apestan (…)” (Ibid., p. 309).
66
representação ginástica que concentra o episódio. Em segundo lugar, temos o próprio prédio,
cuja melancólica arquitetura parece difundir a ideia de uma solene casa de meditação e
estudo, permanentemente cuidada, pintada e reformada, a fim de projetar, ao mesmo tempo, a
imagem de uma autoridade cuidadosa e preocupada por, através do patrimônio físico, amparar
o patrimônio espiritual da escola. Altamente eloquentes neste sentido são também os artefatos
decorativos distribuídos no Ateneu, aos quais o Sérgio menino dirige incessantemente o seu
olhar: os quadros dedicados à imagem do Mestre como mártir do saber; os objetos didáticos
que parecem encerrar a promessa de um conhecimento quase enciclopédico; os lemas morais;
e, principalmente, o já mencionado quadro alegórico (que faz lembrar os Frisos de Kaulbach)
e que, mediante a imagem de inocentes crianças unidas coletivamente, representa o consórcio
entre as artes, o estudo e as indústrias. Sobretudo este último objeto obseca intensamente o
narrador que, contrastando a imagem com a experiência posterior de Sérgio, parece ver nela a
concentração de toda a ironia que atravessa a indumentária escolar:
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilidade da fé cega a
que estava disposto. As paredes pintadas da antessala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico
aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a
majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-relevo; à direita, uma alegoria das artes e do
estudo; à esquerda, as indústrias humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a
ferramenta simbólica - psicologia pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da
inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles, convidativo, me estendesse a mão para
o bailado feliz que os levava. Oh! Que não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica
de corações à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!
(POMPEIA, s/d, p. 11)
111
Ibid., p. 28.
67
No ano seguinte, o Ateneu revelou-se-me noutro aspecto. Conhecera-o interessante, com as seduções do
que é novo, com as projeções obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; conhecera-o
insípido e banal como os mistérios resolvidos, caiado de tédio; conhecia-o agora intolerável como um
cárcere, murado de desejos e privações 112.
Assim, a partir desse desmascaramento que confronta a imagem “real” do Ateneu com
a imagem “ideal”, várias outras facetas desse colégio inicialmente monolítico irão se
desdobrando diante do leitor, destruindo, deste modo, todo o idealismo erigido por Aristarco
em torno da escola e corroendo já, de forma definitiva, a imagem oficial “macroscópica” do
colégio:
Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro polido, esperava, com os colegas, que aparecesse à porta
o inspetor que devia ler o resultado do escrutínio, foi-me parar a vista aos quadros de alto-relevo, das
artes e das indústrias, os risonhos meninos nus, fraternais, em gesso puro e inocência. Senti-me velho.
Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas, desde que vira, à primeira vez, as ideais
crianças vivificadas no estuque pelo contágio do entusiasmo ingênuo, ronda feliz do trabalho... Agora,
um por um que os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as nádegas brancas com um reverso
igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquele gesso das facezinhas rechonchudas coraria
de uma sanção geral e esfoladora de palmadas. Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram
infantis, alegres, francos, bons, imaculados, saudade inefável dos primeiros anos, tempos da escola que
não voltavam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma
112
Ibid., p. 133.
68
falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira,
a intriga, a bajulação, a covardia, a inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eróticas, a
desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, a impotência, o colégio,
barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do Mestre, confederação de instintos em evidência,
paixões, franquezas, vergonhas, que a sociedade exagera e complica em proporção de escala,
respeitando o tipo embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós que só vemos
azul o passado, porque é ilusão e distância (POMPEIA, s/d, p. 128).
Como já foi dito, o processo corrosivo culmina com o incêndio que fecha o livro, final
fantasioso que vai radicalizar o registro satírico do romance, instalando um non sense
desconcertante para quem lê o texto só do ponto de vista do conteúdo sem atender às
convenções da própria sátira. Diante disso, Pompeia não proporá mais nada e isso é um dos
aspectos mais interessantes do seu texto. O romance apresenta o problema da norma e da
cultura patriarcal da forma mais, poderíamos dizer, pesada, concreta e autoritária possível,
encarnando-a na imagem desse imenso aparato escolar. Diante desse universo, a resposta será
proporcionalmente agressiva, baseada numa fórmula que não admite nem soluções
defeituosas, nem concessões ingênuas; numa fórmula que não aceita nenhum tipo de diálogo,
tão autoritária quanto a instituição que acabou por destruir. Em oposição a esta, no entanto, o
seu objeto será a libertação dos muros da escola e não a sua instauração.
113
Ibid., p. 129.
114
“As agitações sociais trazendo ao nível da conciência literária inspirações populares comprimidas,
esboçavam-se também aqui, embora em miniatura. No campo operário, com as grandes greves de 1917, 1918,
1919 e 1920, em São Paulo e no Rio, a fundação em 1922 do Partido Comunista. No setor burguês, com a
fermentação política desfechada no levante de 1922 e, mais tarde, a revolução de 1924” (Ibid., p. 129).
69
momentos do processo de importação cultural, o Brasil nesta fase situa-se numa posição
muito mais próxima do Ocidente, o que contribuiu para dar fundamentos regionais à
vanguarda internacional e ofereceu à história do Bildungsroman uma nova forma de
expressão, que conseguiu sintetizar os aspectos cosmopolitas com os locais, os europeus com
os latino-americanos, os modernistas com os brasileiros.
115
Memórias sentimentais de João Miramar é uma das primeiras manifestações
literárias deste processo de apropriação vanguardista e, portanto, ainda não consegue imprimir
os elementos locais que virão com mais força no Romance de formação da década seguinte.
Ademais, ele deu-se num contexto ainda rígido e fortemente tradicionalista que, como iremos
sugerir, limitou o alcance da formação por ele proposta. No âmbito cultural, predomina o
academicismo (1900-1922), quer dizer, a rotinização das grandes figuras e movimentos da
fase anterior (Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo), que deram espaço a um
mundo artístico tomado por epígonos e estilos esvaziados da sua força e convicção original
(CANDIDO, 2008, p. 121). Acrescenta-se a isto o fato de o livro ter sido originado e
ambientado em São Paulo, cidade cujo panorama por esses anos era “como na província”
(CANDIDO; CASTELLO, 1967, p. 12) “menos rico e mais simples: (...) de um lado, uma
116
literatura oficial de pouca importância; de outro, os renovadores” . Clima que, do ponto de
vista urbano, foi também descrito pelo próprio Oswald de Andrade:
As lembranças que me restam dessa fase foram as últimas que tive da grande casa de esquina da Rua
Barão de Itapetininga com a atual Dom José de Barros, que naquele tempo se chamava Onze de Junho.
Ali está ainda hoje o mesmo prédio de minha meninice, transformado em farmácia. De suas janelas
atualmente muradas, eu, pela primeira vez, espiava a vida.
São Paulo era uma cidade pequena e terrosa. Pouca gente. Um ou outro sobrado de um só andar (...)
Nenhuma condução mecânica (ANDRADE, 2005, p. 25).
115
A primeira redação de Memórias sentimentais de João Miramar foi em 1916. Em 1923, sabe-se que o livro já
estava pronto, mas é só em 1924 que ele chega ao domínio público.
116
Ibid., p. 12.
70
uma estética futurista, do ponto de vista do seu conteúdo, pareceu perpetuar as questões
próprias de uma formação quase totalmente inserida nos valores dessa sociedade tradicional,
apresentando-se como um romance que mais do que narrar a realização de uma formação
capaz de subverter a ordem patriarcal, pareceu retratar a história de um fracasso. O fracasso
de João Miramar e de toda a geração jovem incipientemente subversiva que o rodeia, nos
mostrando belamente esse processo.
Dentro da crítica que existe ao redor da obra de Oswald de Andrade, vemos que há um
consenso quanto a considerar as Memórias sentimentais como uma sátira paródica, na qual o
escritor critica e burla a sociedade paulista de 1912. A descrição e delimitação clara dos
modos como se apresenta esta sátira na obra de Oswald de Andrade é uma das tarefas
fundamentais do famoso ensaio de Haroldo de Campos, “Miramar na Mira”. Isso o leva a
destacar a importância deste escritor para a posterior realização da obra de Mário de Andrade
(invertendo o caráter de fundador do modernismo no Brasil que se atribui a esse último), e
também a estabelecer os vínculos entre ele e o Ulisses, de James Joyce. Em relação ao
primeiro, Haroldo de Campos compara a introdução das Memórias com o capítulo de
Macunaíma, intitulado “Cartas para Icambaia”. Após a sua análise, comprova que a escrita
desse famoso extrato não teria sido possível sem a realização da mencionada introdução que
satiriza a linguagem ostentosa do mundo intelectual prévio ao modernismo, procedimento que
Mario de Andrade teria aplicado quase ao pé da letra, mas se referindo ao linguajar dos
primeiros cronistas do Brasil. No caso da relação entre Andrade e Joyce, isto o leva a
demonstrar novamente o caráter textual que adquire a sua sátira em clara continuidade com o
autor de Dublin.
(...) linguagem nua e incisiva, toda concentrada na sátira social, até a despretensão da atitude
literária, despreocupada de aformasear a vida. Opõe-se ferozmente à primeira, com um tom
másculo de revolta, sátira, demolição, subversão de todos os valores, esboçado nas admiráveis
Memórias sentimentais de Jõao Miramar e culminado no fragmento do grande livro que é o
Serafim Ponte Grande (CANDIDO, 1992, p. 19).
71
Ora, pensamos que a leitura deste romance da perspectiva desse gênero literário rende
muito para a compreensão do livro, principalmente porque ajuda a nos focalizar nos
personagens jovens e nos destinos que são traçados para eles, os quais são um pouco
esquecidos pelos estudos mencionados, por se fixarem principalmente nos procedimentos
satírico-paródicos, dirigidos aos personagens que representam as gerações anteriores à do
próprio Miramar117. Isto nos permite observar não só o satirizado, mas também o aspecto
dramático do texto, já que, como veremos mais adiante, os destinos desses jovens são, quase
todos, trágicos. Por outro lado, e como consequência, dá-nos a oportunidade de entender as
Memórias como um livro em que se retrata um primeiro momento na formação do artista
modernista, que poderíamos denominar de “prévio à semana de arte moderna” e que mostra a
frustração dos novos germes subversivos, em meio às instituições tradicionais que acabam por
esmagá-los.
Para nos referir ao livro de Oswald de Andrade queríamos começar por uma breve
descrição do modo como se desenvolve o processo formativo de João Miramar, o qual pode
ser divido em três ciclos. O primeiro deles se encontra marcado pela morte do pai, a qual abre
o livro e inicia o período de formação que se estende desde a mencionada morte até o final da
escola. O segundo começa com o ingresso do protagonista e seus colegas no espaço social, e
117
Esta divisão geracional é destacada por Oswald de Andrade na sua autobiografia: “Sinais dos tempos. A nossa
geração integrara-se na consciência capitalista que gelara os velhos sentimentos da gente brasileira. Nos
mantivemos, primos e primas, cautelosamente afastados, se não hostis, vagamente nos encontrando nos enterros
da família e sabendo, por travessas vias, de doenças, partos e transações. Nossos pais vinham do patriarcado
rural, nós inaugurávamos a era da indústria” (ANDRADE, 2005, p. 20).
72
sua abertura ao mundo urbano paulista, que se inicia com a cena 20, intitulada “Rumo
sensacional”, e termina com a volta de Miramar do seu périplo europeu. Assim como o início
do primeiro ciclo se acha marcado pela morte do pai, o final do segundo é delimitado pelo
falecimento da mãe - do qual o protagonista se informa ao pisar na terra brasileira - e pela
inserção de Miramar na vida adulta, ao casar com sua prima Célia. Este ciclo termina com a
entrada do protagonista na satírica “Sociedade Recreio Pingue-Pongue”.
Assim, desde o início desta etapa que se abre com a morte do pai, parece predominar a
visão de um espaço social inteiramente desprovido de utopias, e onde os ideais carecem de
espaço e existência, questão que se reflete num vasto repertório de imagens sintéticas
apresentadas fragmentariamente pelo narrador. A imagem do “jardim desencanto” e do “circo
vago e sem mistério” (cena 2); a apresentação do infinito como mera morte, na cena 3; a
ausência de fantasia que sofre o próprio protagonista (“tive inveja da vontade de ter sido
roubado pelos ciganos” (ANDRADE, 1973, p. 25)); a cena da queima de livros por parte da
mãe, no episódio 5; e, por fim, a apresentação da própria mãe como quem vigia a relação de
Miramar com a cultura (“Na casa de tia Gabriela havia o espaço de meus livros num espaço
fronteiro para mamãe me olhar” 118).
118
Ibid., p. 28.
73
Por outro lado, e de maneira simultânea, vai se mostrando como surgem os valores da
imaginação, da cultura, da sensualidade e do espírito crítico, através de referências variadas
que se encontram em clara oposição às primeiras imagens mencionadas. Entre elas está a cena
de erotismo infantil de Miramar com Madô, que aparece no episódio 9 do livro e que surge
vinculada à imagem de exotismo, mistério e fantasia simbolizada pelos “mapas do segredo do
mundo” (ANDRADE, 1973, p. 26). Do mesmo modo, tem lugar o nascimento do que o narrador
chama da “Cidade de Rimbaud” 119, a qual vai se perfilando em clara antítese com respeito ao
espaço higiênico, branco, simétrico e extremamente restritivo do colégio, isto é, como um
lugar aberto, vital, estimulante visual e sonoramente como a própria poesia de Rimbaud, um
de cujos procedimentos poéticos favoritos é o da sinestesia, que mistura as ordens visuais,
sonoras e verbais da linguagem. Ao mesmo tempo, esta abertura para a cidade coincide com a
fascinação pelo surgimento da incipiente modernidade: “Mamãe queria que eu fosse o melhor
dos alunos mas na abertura esplanada onde os outros bolavam caía vida do tingir das forjas e
120
dos bondes no recorte de apitos e pregões” . Do mesmo modo, no momento em que a
família se muda para a casa da tia Gabriela, aparece o primo Pantico, que aparece como um
primeiro modelo formativo associado a este outro mundo do espaço público, da rua, da
vagabundagem e dos “servos”, a partir do qual se vai delineando esta formação do
protagonista em oposição aos valores do seu meio social: “Eu achava abomináveis as famílias
121
das nossas relações” . Em sintonia com esse paradigma de imagens e personagens, está a
referência à prima Nair, cujo discurso também parece mostrar o surgimento destes valores
transgressores, que se acham numa relação de antítese com os valores tradicionais. Assim, em
oposição ao espaço do internato, de onde ela escreve e manda suas cartas, o narrador põe na
sua boca episódios libertinos, como a referência às relações lésbicas que as meninas do
internato mantêm, e a precocidade sexual destas últimas: “E quando elas se encontram, se
beijam como noivos. Por mais que não se queira ficar com elas, inconscientemente fica-se. As
122
meninas de agora não são como as meninas de outro tempo” . Mesmo que em estado
incipiente, participam também desta formação “subversiva” o José Chelinini, representado
como o típico “perdido” do curso, o Pita, o Bandeirinha, e, finalmente, Gustavo Dalbert, que
aparece inicialmente como o modelo formativo verdadeiro, como o artista autêntico, que
119
Ibid., p. 12.
120
Ibid., p. 28.
121
Ibid., p. 29.
122
Ibid., p. 29.
74
O segundo ciclo começa com a cena intitulada “rumo sensacional”, onde se inicia a
inserção dos partícipes desta geração no espaço social, através das novas profissões liberais (o
comércio, a advocacia, as finanças, etc.). Em outras palavras, começa-se a observar as opções
que cada um toma no mundo produtivo, em que medida são fiéis a essa vocação artística
inicial, e em que medida esta é relegada para seguir os caminhos traçados pela nova
burguesia. Jose Chelinini, “o perdido”, integra-se nas atividades comerciais, por oposição a
Gustavo Dalbert, que, em sintonia com a imagem do artista autêntico, continua fiel a seu
compromisso total pela arte. A imagem do artista inautêntico, pelo contrário, é dada por João
Jordão, que também viaja a Paris, não por vocação, mas por uma mera facilidade que lhe
oferece sua classe. Além disso, temos o caso do Bandeirinha, cujo itinerário se divide entre o
do burguês e o do artista: quer entrar na diplomacia, mas também se dedica à poesia, uma
poesia que parece responder aos princípios modernistas de Andrade: “Vagabunda mas cheia
124
de alma” . Pantico, por último, parte para um internato nos Estados Unidos. É nesta etapa
que começa a perfilar-se um certo tom sarcástico, mas também progressivamente trágico no
romance de Andrade, na medida em que a maioria dessas primeiras sementes de liberdade e
subversão, a maioria desses personagens “problemáticos” e criativos parece ser devorada
pelos caminhos traçados por sua classe: são, de alguma maneira, esmagados pelo meio social.
No caso de João Miramar, este também empreende a viagem à Europa, caracterizada pelo
narrador como uma experiência de vagabundagem, onde já parece desenvolver certo olhar
123
Ibid., p. 30.
124
Ibid., p. 33.
75
Esta domesticação que os personagens vão sofrendo por causa da superposição das
instituições tradicionais (comerciais, educacionais ou religiosas) sobre esses primeiros
indivíduos “autônomos” é expressa no percurso de vários personagens, principalmente do
primo Pantico, como fica em evidência no comentário de uma de suas irmãs, alguns capítulos
mais adiante: “Os Estados Unidos e depois o Colégio Interno aqui deixou ele um besta
quadrado”. Sobre o próprio Dalbert (músico que era a imagem do artista modernista por
excelência), quando Miramar se encontra com ele em Paris, diz que estava “seco como um
chicote de Polainas”. Contudo, parece ser o Chelinini a mais eloquente imagem da degradação
desses personagens, pois acaba aparecendo como um pseudo-conde, que não só casa com sua
tia, mas também a engana e lhe rouba como um verdadeiro gangster. O Britinho, por sua vez,
morre atropelado no sertão.
Ora, no caso do protagonista, este processo começa com a sua integração no mundo
adulto, através do casamento com a prima Célia (o estereótipo da mulher tradicional,
provinciana, que gosta de ler romance naturalista –Eça de Queiroz), momento que, junto com
a morte da mãe, dá início a seu terceiro e último ciclo formativo. Ao longo desse ciclo,
Miramar parece lutar por manter a sua autonomia em relação à burguesia, através da rebeldia,
dos livros, da arte e, inclusive, por meio de seu romance com Mlle. Rolah, mulher moderna e
artista, com quem acaba fracassando. No entanto, o cenário tradicional ainda parece
prevalecer e sobrepor-se a essa luta, através do predomínio de personagens anacrônicos como
Machado Penumbra; a mãe da Célia, que começa seu romance com Chelinini; o pseudo-
125
Ibid., p. 43.
126
Ibid., p. 34.
76
erudito Doutor Pilatos; o afetado e de estilo parnasiano Fíleas; o Doutor Mandarin Pedroso,
entre outros personagens, muito bem descritos por Haroldo de Campos:
Esses personagens são mais ou menos reversíveis, e configuram, todos eles, uma mentalidade
tipo, que confere sentido à paródia e lhe dá unidade e continuidade. Todas essas figuras são
basicamente extraídas do ambiente em que circulava Oswald na São Paulo anterior e
contemporânea à Primeira Grande Guerra” (CAMPOS, 1964, p. 30).
Como já sugerimos ao longo destas páginas, Perto do coração selvagem (1942) faz
culminar toda uma tradição do Romance de formação brasileiro, pois, por um lado, retoma as
questões centrais que se desenvolvem nos textos de Pompeia e Andrade, mas, por outro, fá-las
evoluirem para um novo discurso narrativo que, além do fundo corrosivo, proporá uma nova
forma de pensar e de sentir. Esta surgirá do debate com a cultura patriarcal que já
tematizamos, e de um espírito tão anárquico quanto o de Sérgio e o de João Miramar. Mas,
77
como veremos, Clarice Lispector será menos radical, sobrepondo a essa tradição aquilo que a
crítica interpreta como uma estrutura epifânica de sentir, assentada numa sensibilidade
feminina que surge por oposição ao universo da cultura organizada ao redor do homem,
atualizada no romance pela trama amorosa que gira ao redor de Otávio127.
127
O novo contexto literário em que o romance de Clarice se insere favorece esta superação propositiva da
cultura patriarcal. “Perto do coração selvagem representou um importante momento de ruptura em relação à
literatura que vinha sendo feita no Brasil a partir de 1930, fato observado pelos primeiros críticos de Lispector e
reiterado pela extensa crítica que existe sobre a escritora e sua obra. De 1930 até o momento de estreia de Clarice
Lispector, sobressai na literatura brasileira uma ficção regionalista, na linha do “romance nordestino” de José
Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado” (FERREIRA, 1990, p. 80). Clarice rompe
com essa tradição, dando impulso a uma literatura de “anseio generalizador, procurando fazer da expressão
literária um problema de inteligência formal e de pesquisa interior” (CANDIDO, 2008, p. 134). Isto abre uma nova
porta para a elaboração da questão do patriarcalismo, a qual é resolvida, como veremos, precisamente pela via do
subjetivismo, do trascendentalismo e do experimentalismo que a narrativa de Lispector atreve-se a utilizar. Ao
mesmo tempo que a separa dos narradores de 30, isto parece vinculá-la com a literatura modernista (Andrade) e
impressionista (Pompeia), com quem constitui uma tradição.
78
público128.
Diante desse esquema em que se estruturam os personagens que legitimam, de má fé,
o pacto social, o romance interessa-se pelo percurso formativo de Joana, personagem que
Clarice não se cansa de nos mostrar como um ser “íntegro”, “sincero demais”, que “nunca
mente” ou que “entra em todos os palcos”. Em outras palavras, alguém que não se ajusta à
lógica social do comportamento duplo do Bildungsroman realista129 em que, por um lado,
produz-se a obediência e, internamente, reserva-se o espaço da transgressão. Seria, portanto,
a história de um personagem “antibovariano” que, em determinado momento, deve passar
pela prova do casamento, cindir-se individualmente e lidar com a dinâmica das relações
sociais (baseadas nesse princípio da duplicação), representada pela trama amorosa que
articula a maturidade de Joana, para depois cortar definitivamente e seguir o seu caminho fora
dessa esfera, mas de forma unitária, em sintonia consigo mesma e com os valores
transcendentais (e não histórico-normativos) que a mobilizam.
Em oposição ao modelo realista de Bildungsroman o livro opõe uma estrutura
epifânica130 de significações, que parece provir não do universo social externo, mas do
processo semiótico ativado e vivificado pela própria protagonista. Contrastando fortemente
com o primeiro, ele surge nos momentos de maior riqueza existencial na vida de Joana, em
128
“O Bovarismo, que cresce ‘de acordo com o desenvolvimento da civilização, é a habilidade do ‘homem de
pensar-se a si mesmo como algo diferente do que ele é’. O Bovarismo prolifera na divisão, no ‘vazio que existe,
em cada indivíduo, entre o imaginário e o real, entre aquilo que ele é e aquilo que ele acredita ser’. É um
‘idealismo exasperado’ e, ‘sendo um intento por reformar a realidade coletiva de acordo com os sonhos
individuais, carrega o princípio do fracasso’. Finalmente, na sua forma mais típica e difundida, o bovarismo está
cheio ‘da crença em que toda a nossa civilização ocidental se funda: o homem pensa-se a si mesmo como livre’”
(MORETTI, 2000, p. 88, tradução nossa).
129
O espírito de contradição: aqui jaz a verdade histórico-cultural destes sobressaltados enredos e destes
inconsistentes heróis (...) muito mais do que no ‘progresso’, esta idade vê na contradição a essência oculta da
história. Estes são os anos em que a dialética hegeliana adquire a sua forma final, e em que Goethe, abordando o
tema da mudança histórica, decide utilizar não um, mas dois protagonistas: opção que lhe permite ‘resgatar’ a
‘parte imortal‘ do ser humano (...) A pergunta, para Pushkin e Stendhal, não é ‘como separar o anjo do demônio‘,
mas: como fazer com que vivam juntos‘ (Ibid., p. 87)
130
Benedito Nunes descreve o que seria a epifania em Clarice Lispector analisando a palavra glória, cujos
significantes remontariam a ela: “Tais são os principais significantes dispersos que convergem, remontando ao
significado fugidio de epifania, na palavra glória (...). A palavra glória – uma das mais frequentemente
empregadas por Clarice Lispector – também marca, na concepção do mundo da autora, o limite do dizível, além
do qual, como na errância de G.H., só se pode descortinar, no silêncio que o envolve, o ser indiviso, idêntico,
inominado: “a mais primária vida divina”, “a glória divina primária” (...). Núcleo das coisas ou a própria coisa
como a substância antes de seus atributos e modos, mas também vida imortal, como natura naturans ou
energeia, esse ser “chão comum onde nós todos avançamos” (LE, 33), que não apenas suporta a existência
contingente do sujeito humano, é, pois, a realidade da matéria viva, da qual G.H. participou na medida em que se
perdeu a si mesma, despojando-se de tudo quanto era como pessoa e onde cessaria, depois de consumada, a
ruptura com o mundo humano, a inquietude da “consciência infeliz” (NUNES, 1989, p. 125-126).
79
que ela consegue por em movimento a sua faculdade estética e poética, dando unidade às
diferentes ordens da realidade, mediante um modo de refletir intuitivo e criativo que nada tem
a ver com a lógica separadora do real.
O romance surge, assim, de um debate entre duas estruturas que expressam um defeito
e um desequilíbrio intrínseco de nossa civilização: a contradição entre o que devemos ser e o
que somos, entre o lugar predefinido em que temos de nos classificar, e aquela dimensão
imponderável em que nos formamos e transformamos, mas sempre sob o signo dessa cisão
fundamental131. A consciência desta dualidade e a sua transposição literária para duas formas
de poéticas que entram em conflito articulando o romance são o que nos permite entender, por
outro lado, qual é o vínculo entre este livro e O retrato do artista quando jovem, de James
Joyce, de cujas páginas provém o título Perto do coração selvagem. Como bem assinala
Franco Moretti no final de The way of the world, a obra do escritor irlandês se estrutura a
partir de uma dualidade semelhante, definida por ele nos seguintes termos:
Flaubert e Rimbaud: uma possível matriz para a conhecida oscilação d´O retrato entre ‘o tedioso’ e o
‘sensível’, entre o dia a dia sem significados (preferivelmente ao início dos capítulos) e as revelações
cheias de sentido (preferivelmente no final). Flaubert e Rimbaud... Flaubert ou Rimbaud, deveríamos
dizer. Sua compreensão da experiência era tão radicalmente incompatível que, ‘no final’ nenhuma
reconciliação ou compromisso era possível (...). A opção dupla de Joyce era, então, o signo de uma
dupla cisão: de uma contradição que inclusive o mais escrupuloso bricoleur do mundo (Joyce
certamente o era) não podia esperar resolver. O mérito d´O retrato jaz precisamente em não ter
resolvido o seu problema (...). O retrato é um bricolage; como bricolage manqué. Como um defeito
estrutural. Afortunadamente (MORETTI, 2000, p. 242-243, tradução nossa).
131
Dualidade particular que, na verdade, forma parte do conjunto mais amplo de divisões que conformam a
nossa cultura: “Condenada ao duplo suplício de viver com o espírito, mas sem o corpo, no mundo inteligível, e
com o corpo, mas sem o espírito, no mundo sensível. Com efeito, o denominador comum às imagens do tríptico
é a separação (khorismós) do sensível e do inteligível, de que decorrem as oposições do corporal e do anímico,
do material e do espiritual, do real e do ideal, e de todos os pares de dualidades irredutíveis, que se impuseram à
tradição onto-teológica do pensamento ocidental” (MELO E SOUZA, 1997, p. 132).
80
tempo, porém, ela dará conta do grau de coerência que a autora alcança no uso ficcional
dessas duas estruturas e a sua capacidade de se manter dentro do registro do Bildungsroman,
gênero que exige a existência dos dois princípios que o articulam: o princípio de classificação
e o princípio de transformação132.
Maturidade e Bovarismo
A pesquisa sobre a norma social, inscrita na matriz realista do livro, surge durante a
narração da maturidade de Joana, momento em que aparece uma Clarice Lispector totalmente
imersa na lógica do mundo empírico representado pela mecânica do bovarismo. Essa
maturidade organiza-se através do enredo amoroso que articula mais da metade da obra:
Otávio é casado com Lídia e trai Lídia com Joana; depois se separa e trai Joana com Lídia,
com quem tem um filho. Por sua parte, Joana também, ocasionalmente, trai Otávio, mas no
final opta por ficar sozinha. De maneira indireta, o romance faz o seu próprio resumo: “Não
sabe que se eu abandonar você, você será uma mulher sem marido, sem nada... Um pobre
diabo... que um dia foi abandonada pelo noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto
ele casava com outra” (LISPECTOR, 1980, p. 117).
Apesar de não ter nada de novo nesse enredo, ele simboliza uma questão que convém
destacar: a norma de comportamento social que rege a história e de que Joana buscará escapar
mediante o triunfante e solitário final que encerra o livro. Concretamente, ela corresponde à
norma da obediência e da traição representada por essa trama amorosa baseada no esquema
casamento-adultério. Quem casa sempre estará num esquema de adultério porque o
casamento por si só parece não deixar espaço às dimensões mais complexas da personalidade
que, consequentemente, devem criar uma via de expressão na figura de um terceiro. Com
132
Essa seria, aliás, uma possível explicação para a incógnita colocada por Roberto Schwarz em seu texto sobre
o romance de Clarice: “A falta de nexo entre os episódios torna-se um princípio positivo de composição.
Experimentamos a sua existência, como espinha dorsal da narração, quando é desrespeitada; é de sua ruptura que
resulta, a meu ver, a única passagem débil do romance: a explicação da viagem de Joana a partir de uma
longínqua herança paterna, e a consequente ligação dos episódios. O apelo a uma causa exterior, plausível,
impressiona como quebra e arbítrio precisamente porque um dos temas do romance é o hiato mediando as
estações de vida. Reconhecemos que nada há mais razoável do que viajar depois de herdar; no caso, entretanto, a
narração desmente o esforço que vinha fazendo” (SCHWARZ, 1981, p. 55). Por outro lado, Roberto Schwarz
concentra a maior parte da sua análise nos elementos mais complexos do romance e da formação de Joana
(vinculados ao que nós denominamos de estrutura epifânica), mas não observa que essa estrutura se encontra em
debate e em interação com uma estrutura de lógica realista e que, visto assim, o final possui uma continuidade
com o resto do relato.
81
Casou-se.
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito
e sentido. O mundo rodava aos seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a
fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar,
crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar...o
que? – perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo embaixo
de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia 133.
O personagem que melhor representa esse fenômeno é, sem dúvida, Otávio. Dividido
entre Lídia e Joana, entre a ordem e a autenticidade, ele ao mesmo tempo espalha a lógica do
casamento-adultério entre elas. Otávio organiza essa dualidade a partir de um esquema de
133
Ibid., p. 92.
134
Ibid., p. 70.
135
Ibid., p. 154.
82
ordem e concessão, que permite incorporar a sua dimensão individual dentro da organização
metódica da sua existência:
A verdade é que se não tivesse dinheiro, se não possuísse os “estabelecidos” se não amasse a
ordem, se não existisse a Revista de Direito, o vago plano do livro de civil, se Lídia não
estivesse dividida de Joana, se Joana não fosse mulher e ele homem, se... oh, Deus, se
tudo...que faria? Não, não “que faria”, mas a quem se dirigiria, como se moveria? Impossível
deslizar por entre os blocos, sem vê-los, sem deles precisar. (LISPECTOR, 1980, p. 111)
136
Faço alusão a uma das críticas feitas por Roberto Schwarz no seu livro A sereia e o desconfiado: “(...) o livro
contém uma falha grave de perspectiva: nalguns pontos, a visão interior usada para mostrar Joana é usada
também para mostrar outras personagens, que se tornam então irremediavelmente semelhantes à figura principal;
ao que esta, por sua vez, deixa de ter um plano narrativo especificamente seu” (SCHWARZ, 1981, 57).
83
ela se encontra “nos caminhos obscuros do pensamento” não restritos à lógica, que surgem da
coragem para seguir um caminho pessoal:
É necessário certo grau de cegueira para conseguir enxergar determinadas coisas. É essa talvez
a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança,
segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-
se fosforescentes. Pensou um pouco. Depois, apesar de a concessão prolongar-se demais,
anotou: “Não é o grau que separa a inteligência do gênio, mas a qualidade. O gênio não é tanto
uma questão de poder intelectivo, mas da forma com que se apresenta esse poder. Pode-se
assim ser mais inteligente que um gênio. Mas o gênio é ele. (LISPECTOR, 1980, p. 111).
137
Ibid., p. 110.
138
Ibid., p. 118.
139
Ibid., p. 116.
84
interna igualmente poderosa, mas nunca superior à primeira, e quando tenta superá-la é só
mediante a privacidade do pensamento escrito e o adultério.
E amava-o nesse instante. Sua feiura não a excitava, não lhe causava pena. Simplesmente
ligava-se mais a ele e com maior alegria (...) Lembrava-se das antigas colegas – daquelas
meninas sempre vivas, sabendo tudo, tendo ligação com cinemas, livros, namoros, roupas,
daquelas moças de quem nunca pudera aproximar-se de verdade, calada como era, sem ter
propriamente o que dizer. Lembrava-se delas e sabia que haveriam de achar Otávio feio
naquele instante. Pois aceitava-o tanto que desejá-lo-ia pior para provar ainda mais seu amor
sem luta (LISPECTOR, 1980, p. 119).
140
A noção de “personagem problemático” é uma contribuição de A teoria do romance de Lukács, e refere-se ao
sujeito ficcional que, provido de uma série de ideais, entra em confronto com os poderes que organizam o
universo social. Segundo o crítico húngaro, no Romance de formação clássico esse sujeito rebelde acaba se
inserindo harmoniosamente dentro do corpo social sob a forma de um acordo em que tanto o indivíduo, quanto a
sociedade cedem, ficando ambos fortalecidos.
85
“dimensões”: “Lídia tem vários planos. A cada gesto revela-se outro aspecto de sua
dimensão” (LISPECTOR, 1980, p. 134). Para nós, esta é uma representação visual do fenômeno
do bovarismo, pois a noção de dimensão e profundidade sugere um estar opaco, não
totalmente transparente, em que são sempre dois os planos que, no mínimo, estão operando
atrás das ações dos personagens. O plano do visível, ou do socialmente aceito, e o plano do
invisível que é, no caso de Lídia, o plano da transgressão manifesto no adultério e nesse filho
ilegítimo dela com o homem casado. Tudo isto parece nos dizer que aquilo que se chama de
“profundidade”, na verdade, encontra-se nos personagens mais simplórios e comuns, que,
impedidos de atuar de maneira transparente, devem realizar-se num registro de maior
complexidade ao terem que cindir-se para continuar se movimentando em harmonia com o
social. Por outro lado, Lídia é também apresentada em termos qualitativos, como alguém
“excessivamente real”, como uma mulher poderosa e “material”. No entanto, o “peso” dessa
“materialidade” não corresponde à substância que ela possui diante de nós como leitores, mas
à legitimação social que tem o modelo de mulher que ela representa, pois é um “peso” medido
com a balança das normas sociais: “Por que é que ela é tão poderosa? O fato de eu não ter tido
tardes de costura não me põe abaixo dela, suponho” 141.
Joana estará situada nas antípodas de Lídia e de Otávio. Ela não parece ter talento para
participar dessa encenação das relações sociais baseadas na cisão do eu, pois está marcada
pela integridade: “Vou continuar, é exatamente de minha natureza nunca me sentir ridícula, eu
142
me aventuro sempre, entro em todos os palcos” . Joana estará ou inteiramente ausente ou
inteiramente presente nas circunstâncias, mas nunca cindida. A sua lógica será, portanto, a da
sinceridade total:
Pobre Joana…poderia ele dizer se quisesse. Jamais saberia. Tão íntegra na sua altivez ignorante... Mas
ele ferozmente a pouparia, ria ele, o coração batendo. Bem, amanhã escreveria algo definitivo sobre o
artigo 143 (...) Você sabe que eu não minto, que nunca minto, mesmo quando…mesmo sempre? Sente?
Diga, diga. O resto então não importaria, nada importaria…quando digo essas coisas…essas coisas
loucas, quando não quero saber de seu passado e não quero contar sobre mim, quando eu invento
palavra...Quando minto, você sente que eu não minto” 144.
Comigo acontece o seguinte ou senão ameaça de acontecer: de um momento para outro, a certo
movimento, posso me transformar numa linha. Isso! Numa linha de luz, de modo que a pessoa fica só a
meu lado, sem poder me pegar e à minha deficiência 145.
As minhas mãos e as dela. As minhas – esboçadas, solitárias, traços lançados para a frente e para atrás,
descuido e rapidez num pincel molhado em tinta branco-triste, estou sempre levando a mão na testa,
sempre ameaçando deixá-las no ar, oh, como sou fútil agora compreendo. As de Lídia – recortadas,
bonitas, cobertas por uma pele elástica, rosada, amarelada, como uma flor que vi em alguma parte,
mãos que repousam em cima das coisas, cheias de direção e sabedoria. Eu toda nado, flutuo, atravesso o
que existe com os nervos, nada sou senão um desejo, a raiva, a vaguidão, impalpável como a energia.
Energia? Mas onde está minha força? Na imprecisão, na imprecisão, na imprecisão… 146.
Como vimos, para a Clarice Lispector de Perto do coração selvagem, nas relações
adultas nenhuma formação é possível, pois elas se regem pelo princípio classificatório do
bovarismo. A única fase da existência que permite esta formação é a infância, idade que, mais
do que um ciclo externo da vida147, consistirá numa perspectiva a partir da qual é possível
criar e atribuir significados próprios aos fenômenos do real: é possível, então, formar-se. A
grande busca da Joana adulta será, com efeito, a realização dessa perspectiva infantil perdida
com o casamento. E seu grande drama será o de não poder desdobrá-la dentro da lógica das
relações sociais, nem sequer sob a fórmula de uma negociação. De fato, quando o relato salta
145
Ibid., p. 134.
146
Ibid., p. 135.
147
Uma visão semelhante corresponderia ao romance cíclico, segundo o descreve Bakhtin: “Assim, no tempo
cíclico pode-se mostrar a trajetória do homem entre a infância e a mocidade, e entre a maturidade e a velhice,
revelando-se todas as mudanças interiores substanciais no caráter e nas concepções de mundo que no homem se
processam com a mudança da idade. Essa série de desenvolvimento (de formação) do homem é de natureza
cíclica, repetindo-se em cada vida (BAKHTIN, 2003, p. 221)”.
87
à narração dos episódios da sua maturidade, os momentos de maior relevância não serão
aqueles ligados aos acontecimentos próprios dessa etapa (casamentos, traições, separações),
mas sim os instantes em que a Joana adulta triunfa sobre o quotidiano e consegue retomar a
perspectiva da infância, dando continuidade ao elo da meninice.
Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e cada papelão era um aluno. Joana era a
professora. Um deles era bom e outro era mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E sempre nada
vinha se ela…pronto (LISPECTOR, 1980, p. 11).
Como é de esperar, essa perspectiva infantil nada tem a ver com o registro do conto de
fadas contra o qual se dirige ironicamente o parágrafo supracitado e cuja finalidade principal é
a de fazer reconhecíveis as distinções entre bem e mal, associando a infância a uma
simplicidade espiritual e a uma lucidez moral perdida com a maturidade. Nas antípodas dessa
assentada visão, em Clarice Lispector a infância parece ser a idade de uma lucidez que não é
produto da obediência e do reconhecimento de categorias morais, mas de uma força intuitiva e
reflexionante, livre daquelas mediações. Este é o período em que a protagonista parece
encontrar-se totalmente entregue ao exercício da reflexão e à meditação de dilemas
filosóficos, projetando-se como uma criança “séria” e pensante. Uma menina em vários
sentidos “adulta”, que enfrenta perguntas fundamentais e que não se interessa por distrair-se
daquela intensa condição humana: “Não gosto de me divertir - disse Joana com orgulho” 148.
O episódio do roubo que a protagonista comete em companhia da tia é muito
eloquente em relação ao que estamos falando. “- Sim, roubei porque quis. Só roubarei
quando quiser. Não faz mal nenhum. - Deus me ajude, quando faz mal, Joana? - Quando a
gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste” 149. A menina não parece atuar de
acordo com as categorias de bem e mal apresentadas de maneira normativa. Além disso, ela
propõe que o que mobiliza o ser humano não são os padrões de correção ou incorreção, mas
os padrões psicológicos ligados ao prazer e ao desprazer (felicidade-infelicidade), os quais
reconhece, mas, ao mesmo tempo, desconhece. O que lhe interessa é a desumanização dos
seus atos, acentuando o valor que tem o vigor da vontade que vem de si mesma e não da
obediência a esquemas pré-definidos nem pela moral (bem-mal), nem pela psicologia (prazer-
148
Ibid., p. 26.
149
Ibid., p. 45, grifo nosso.
88
desprazer)150.
Diante dessa postura, os dois únicos e fracos educadores que Joana tem durante a
infância – a tia e o professor – assumirão duas perspectivas. A primeira será uma perspectiva
totalmente exterior à realidade íntima da menina e desdobrará uma compreensão pejorativa
dessa desumanização, associando Joana com a imagem de uma “víbora”, isto é, de um animal
selvagem, letal, frio e calculista:
É uma víbora. É uma víbora fria, Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil gostar dela, inútil
fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de matar uma pessoa...” (...) “É um bicho estranho,
Alberto, sem amigos e sem Deus (LISPECTOR, 1980, p. 46)
A segunda delas será a do professor, personagem que parece capaz de assumir uma
perspectiva mais próxima à de Joana, evitando impor-lhe as categorias morais que funcionam
mais fortemente nos critérios da tia, e sugerindo a ela parâmetros subjetivistas de avaliação do
próprio comportamento:
Ainda assim, o próprio professor também assumirá mais tarde a tarefa de humanizar
Joana, perdendo, com isso, o acesso a esta menina impenetrável. Ao contrário da tia, que
acode a critérios moralistas para conseguir isto, ele tentará religar a conduta dela às categorias
psicológicas de prazer e desprazer que ela tinha negado com o roubo, no mesmo capítulo
intitulado “O banho”:
A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na
insatisfação dos intervalos. É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto.
Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. 152
Para ele, o caminho de Joana leva a uma anulação da experiência concreta e, portanto,
150
Cenas como essa confirmam o colocado por Benedito Nunes: “No entanto esse romance de tão boa fortuna
literária, que nos faz penetrar em tais labirintos, não é mais um romance de análise psicológica. Muito embora
seja a experiência interior o seu âmbito, muito embora tenha no aprofundamento introspectivo o princípio
mesmo de seu dinamismo, Perto do coração selvagem já se desliga da visão objetivista dos estados d´alma. Nele
encontramos, sem dúvida, aquela minúcia da descrição de múltiplas experiências psíquicas (...) sem que isso
signifique contudo que a narrativa vise, como o realismo psicológico do século passado, a análise de caracteres e
a fixação de tipos” (NUNES, 1989, p. 12)
151
Ibid., p. 47.
152
Ibid., p. 47, grifo nosso.
89
– Não – disse ele –, não. Nem sempre. Às vezes possui-se o mais alto e no fim da vida tem-se a
impressão... – olhou-a de lado – tem-se a impressão de que se está morrendo virgem. É que as coisas
não são talvez mais altas ou mais baixas. De qualidade diferente, entende? (LISPECTOR, 1980, p. 117).
Mas por que tão fraco, tão sem alegria? O que acontecera afinal? Há poucas horas chamavam-na de
víbora, o professor fugia, a mulher esperando… O que acontecia? Tudo recuava… E de súbito o
ambiente destacou-se na consciência com um grito, avultou com todos os detalhes submergindo as
pessoas numa grande vaga… Seus próprios pés flutuavam. A sala onde já estivera durante tantas tardes
refulgia no crescendo de uma orquestra, mudamente, numa vingança pela sua distração. De um
momento para outro Joana descobriu a insuspeita potência daquele aposento quieto. Era estranho,
silencioso, ausente como se nunca tivessem nele pisado, como se fosse uma reminiscência. As coisas
haviam-se guardado até agora e então aproximavam-se de Joana, cercavam-na, brilhando na meia
escuridão do crepúsculo 153.
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das
galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a
153
Ibid., p. 54-55.
90
terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se
espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco.
Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina
trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas
revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver (...). Então, subitamente olhou com desgosto
para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. (LISPECTOR, 1980, p. 9)
Em sintonia com esta sensibilidade, a morte dos pais também será uma experiência de
grandeza para Joana. Em certo sentido, é um evento que a menina não lamenta, pois lhe
permite experimentar a imensidão da existência entre as filisteias relações humanas que a
rodeiam. Antes que a perda, o que fica no coração de Joana é a possibilidade de, graças a essa
experiência trágica, ter uma compreensão mais intensa do que é viver, causada pelo encontro
com a força da natureza. Ela tem, portanto, uma visão épica da morte, que contrasta com a
perspectiva estreita e lastimosa da tia. Para esta, a tragicidade da morte não deve ser encarada,
mas, ao contrário, adoçada e dissimulada com biscoitos. Já para Joana, a morte deve ser
vivida com toda a sua amargura, e assumida com a maior das consciências: deve ser bebida,
provada e sentida, como aparece simbolizado nas cenas de Joana perto do mar, no dia em que
aceita o falecimento do pai. O aprendizado que este lhe oferece é, por fim, o da união entre o
quotidiano e o transcendente, presente na cena seguinte que, como uma versão da madalena
de Proust, reúne o doméstico (o biscoito) com o épico-transcendente representado pelo mar:
Na casa da tia certamente lhe dariam doces nos primeiros dias. Tomaria banho na banheira azul e
branca, uma vez que ia morar na casa. E todas as noites, quando ficasse escuro, ela vestiria a camisola,
iria dormir. De manhã, café com leite e biscoitos. A tia sempre fazia biscoitos grandes. Mas sem sal.
Como uma pessoa de preto olhando pelo bonde. Ela molharia o biscoito no mar antes de comer. Daria
uma mordida e voaria até casa para beber um gole de café. E assim por diante 154.
154
Ibid., p. 37.
91
parte de Joana de reencarnar a figura da mãe morta que o pai viúvo parece ter amado tanto,
revivificando essa que se mostra, nos relatos do progenitor, como uma magnífica figura
feminina. De fato, as referências que o livro oferece dessa mãe mostram-na muito próxima do
caráter de Joana. Mitificada pelo pai que a recorda situada num espaço imaginário – o areal –,
mais próxima do divino que do humano, as evocações falam de uma figura materna que, igual
à filha, atua de acordo com as suas próprias concepções de bem, expressando singularmente a
sua bondade. É o que se observa no capítulo “...Um dia...”, em que o livro, belamente, parece
expor estas causas para explicar o caráter de Joana, causas que não seguem uma lógica
superficial, mas que parecem obedecer ao profundo chamado da mãe (“das profundezas
chamo por vós”), com quem Joana tem uma evidente continuidade. Deste modo, ao contrário
do que acredita o professor, o decisivo na formação de um caráter, seguindo a linguagem do
livro, não seria uma experiência, nem uma ação histórica concreta, mas uma ausência: a
ausência presente da mãe que nem sequer conheceu. O caráter de Joana, consequentemente,
não seria uma mera rebeldia, uma simples oposição à norma representada por estes
personagens concretos, mas ela passaria, antes de mais nada, pela peneira desta ordem
familiar. Informa-nos o livro sobre a figura da mãe:
“- É o diabo, sim...
- Tu não imaginas sequer: nunca vi alguém ter tanta raiva das pessoas, mas raiva sincera e desprezo
também. E ser ao mesmo tempo tão boa... secamente boa. Ou estou errado? Eu é que não gostava desse
tipo de bondade: como se risse da gente. Mas me acostumei. Ela não precisava de mim. Nem eu dela, é
verdade. Mas vivíamos juntos. O que eu ainda agora queria saber, dava tudo para saber, é o que ela
tanto pensava. Você, como me vê e como me conhece, me acharia o tipo mais simplório perto dela.
Imagine então a impressão causada na minha pobre e escassa família: foi como se eu tivesse trazido
para o seu rosado e farto seio – lembras-te, Alfredo? – os dois riram – foi como se eu tivesse trazido o
micróbio da varíola, um herege, nem sei o que… Sei lá, eu mesmo prefiro que esse broto aí não a repita.
E nem a mim, por Deus… Felizmente, tenho a impressão de que Joana vai seguir o seu próprio
caminho” (LISPECTOR, 1980, p. 24)
Era fina, enviesada – sabe como, não é? –, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão
independente e amarga que da primeira vez em que falamos chamei-a de bruta! Imagine... Ela riu,
depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia
impossível que ela dormisse. Não, ela não se entregava nunca. E mesmo aquela cor seca – felizmente a
guria não puxou –, aquela cor não combinava com uma camisola... Ela passaria a noite a rezar, a olhar
para o céu escuro, a velar por alguém. Eu tinha má memória, nem me lembrava porque a chamava de
bruta. Mas não tão má que a esquecesse. Via-a ainda caminhando sobre um areal, os passos duros, o
rosto fechado e longínquo. O mais curioso, Alfredo, é que não poderia ter existido nenhum areal. No
entanto a visão era teimosa e resistia às explicações. 155
155
Ibid., p. 23.
92
O caminho traçado por Joana pode ser compreendido, assim, como um percurso
fundamentado numa visão arcaica e ancestral da formação, isto é, numa visão “pré-moderna”.
Tal estrutura se expressaria na busca e realização da unidade do indivíduo e na possibilidade
deste, ao mesmo tempo, dar continuidade à ordem dos seus antepassados, representados, neste
caso, pela figura da mãe de Joana e pela ordem matriarcal que, por sua vez, ela simboliza. A
visão epifânica que entra em pugna com o bovarismo realista, e que a protagonista consegue
reivindicar, formaria parte dessa mesma configuração.
Em sintonia com esse registro arcaico e ancestral, o relato de Clarice se preocupará de
que o percurso da sua protagonista, apesar da singularidade com que ele se reveste dentro da
ficção, não fique restrito a um discurso individualista, válido somente para ela mesma, mas
que também seja reconhecido e reconhecível por uma comunidade simbólica mais ampla.
Com essa finalidade, a autora incorpora, lucidamente, duas instâncias orientadas a legitimar o
percurso e a estrutura de valores da sua personagem. A primeira delas e a mais simples será
fazendo referência ao poder transformador que o discurso e o comportamento de Joana tem
sobre os outros personagens do romance, em outras palavras, à capacidade não só de
transgredir e de desconhecer a ordem social, mas também à de impactar e penetrar nessa
ordem, promovendo mudanças nos indivíduos concretos que a rodeiam. Isso se vê, por
exemplo, no quão instigante Joana é para Otávio, o qual, apesar de optar por um equilíbrio
inquebrantável entre obediência e transgressão, vai sentir-se profundamente seduzido pelo
senso de liberdade dela: “Sim, em breve ela se tornaria pesada a ele com seu excesso de
milagre. Como as outras pessoas, inexplicavelmente envergonhado de si próprio ansiaria por
ir embora. Mas uma vingança: ele não se libertaria inteiramente. Terminaria maravilhado
consigo mesmo, comprometendo-se, cheio de uma responsabilidade indefinida e angustiosa.”
156
. Reação semelhante terá o amante de Joana: “Era assim: Joana o libertara. Cada vez mais
ele necessitava de menos para viver: pensava menos, comia menos, dormia quase nada. Ela
era sempre. E viria daqui a pouco” (LISPECTOR, 1980, p. 155).
A segunda e a mais interessante destas instâncias de legitimação acontece na aparição
do marco narrativo que o romance incorpora inusitadamente à narração:
Titia, ouça-me, eu conheci Joana, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca em relação às coisas.
Tudo lhe parecia às vezes preciso demais, impossível de ser tocado. E, às vezes, o que usavam como ar
156
Ibid., p. 161-162.
93
de respirar, era peso e morte para ela. Veja se compreende a minha heroína, titia, escute. Ela é vaga e
audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria notando-o como Lídia, outra mulher – uma
mulher cheia do próprio destino –, observou-o. No entanto o que há dentro de Joana é alguma coisa
mais forte que o amor que se dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se recebe.
Compreende, titia? Eu não a chamaria de herói como eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um
medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão (...). Vejo teus olhos abertos,
me olhando com medo, com desconfiança, mas querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha,
agora morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por cima de minha aspereza. Pobre!, a
maior revolta que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquela frase quase diária
que ainda ouço, misturada a teu cheiro que não posso esquecer: “oh, não poder sair à rua na roupa em
que se está!” Que mais te contar? Tenho os cabelos cortados, castanhos, às vezes uso franja. Vou morrer
um dia, nasci também (...) (LISPECTOR, 1980, p. 163-164).
Como todos sabemos, já o uso deste recurso do marco é em si um arcaísmo que vem
das origens orais da narrativa e de onde surgiu, precisamente, a figura do narrador. Nos seus
inícios, este correspondia geralmente a um velho que contava um relato e ia simultaneamente
acrescentando considerações morais à história que estava sendo narrada. Mais tarde, é claro,
essa avaliação moral foi sendo deslocada devido ao caminho principalmente irônico que
assumiu o narrador moderno. Clarice Lispector, não obstante, volta a utilizar esse recurso
arcaico, levando à forma o que está em jogo também no conteúdo, e o faz com uma finalidade
extremamente interessante. Qual seja: a de pedir legitimação para o percurso da protagonista
do romance e conseguir que os atos e os rumos tomados por Joana sejam aceitos como
válidos, não só dentre os seus contemporâneos, mas agora, principalmente, dentro da estirpe
familiar feminina (quem narra é uma mulher se dirigindo a uma tia morta, que bem pode ser
reconhecida como uma autoridade). Se, no recurso anterior, procurava-se um reconhecimento
que poderíamos chamar de horizontal, busca-se agora um consentimento vertical, dirigido à
autoridade matriarcal – movimentos que expressariam a vontade de fazer do caso de Joana o
instrumento de um discurso transformador.
geral da narrativa dos anos 30 e da evolução do modernismo no Brasil157, das grandes capitais
da região centro-sul do país, ele dirige-se ao Nordeste, seja para os decadentes territórios
rurais, seja para as cidades menores em vias de modernização (Recife, Maceió). O gênero
volta-se, assim, em sentido contrário ao movimento histórico geral (o progressivo processo de
industrialização que faz a massa do campo migrar às grandes cidades), com o fim de examinar
a experiência e a significação dessas transformações naqueles territórios. Isto acontecerá
através de uma literatura escrita por autores que fazem parte desse processo; originários
dessas regiões a que farão referência, inaugurando um novo capítulo do modernismo e do
Bildungsroman brasileiro, o qual se abre à realidade local do país158 e a um novo repertório de
personagens. No nosso caso: um preto filho de trabalhadora de engenho (personagem
emergente) e um neto de fazendeiros, filho de pequeno-comerciante que passa a ser
funcionário público na cidade de Maceió (personagem decadente).
157
Segundo o mapeamento de Antonio Candido, aquilo que se esboçara nos anos vinte com a Semana de Arte
Moderna assimila-se e generaliza-se durante a década de trinta. O antiacademicismo, a aceitação consciente ou
inconsciente das inovações formais e temáticas, o inconformismo, o anticonvencionalismo e o alargamento da
literatura regional adquirem alcance nacional. Esta última tem particular importância dentro deste quadro, cuja
“extensão (...) e transformação em modalidades expressivas dentro da literatura nacional [desdobra] uma
interpenetração literária de todo o Brasil que é uma visão renovada, não convencional do país visto como
conjunto diversificado” (CANDIDO, 1984, p. 29-30).
158
Através do que Antonio Candido chamou de uma “ficção regional não regionalista” desenvolvida pelo
“Romance do Nordeste”, o qual derivou do fato do país ter tomado consciência desses territórios (Ibid., p. 30).
159
Experimental no sentido naturalista, pois o romance se estrutura em grande parte em torno de uma tese que
explicitaremos nas páginas que se seguem.
160
Ibid. p. 184.
95
161
“E é precisamente em Recife que vamos encontrar o futuro autor d´O Moleque Ricardo, no início da década
de 20, como estudante de Direito exercendo atividades jornalísticas” (PONTES DE AZEVEDO, 1946, p. 208).
162
Estas observações sobre o “Bildungsroman prosaico” estão em consonância com a descrição que Antonio
Candido faz do romance de trinta. Caracterizado pelo movimento, ele amplia as suas perspectivas, ao mesmo
tempo que dificulta as possibilidades de realização da formação do personagem: “Nesse tipo de romance (...) é
marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza. Raramente, como
em um ou outro livro de José Lins do Rego (Banguê) e sobretudo Graciliano Ramos (São Bernardo), a
humanidade singular dos protagonistas domina os fatores de enredo: meio social, paisagem, problema político.
Mas, ao mesmo tempo, tal limitação determina o importantíssimo caráter de movimento dessa fase do romance,
que aparece como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros de radicalismo
da nossa história” (CANDIDO, 1984, p. 131).
96
O caso de Graciliano Ramos segue, em parte, a mesma lógica, só que esta é finalmente
superada pelas características textuais e discursivas dos romances que compõem o seu
Romance de formação. Como proporemos, o percurso de Luís da Silva será normatizado
pelas regras sociais pequeno-burguesas representadas por Julião Tavares, obediência que
também expressará a continuidade de uma submissão inconsciente às normas patriarcais
impostas ao menino Graciliano em Infância, e agora interiorizadas por Luís da Silva, em
Angústia. Tal submissão levará este último a uma deformação diferente da que mencionamos
anteriormente. Uma deformação que, por acontecer no interior da norma, adquire as
características de uma deformação neurótica e, portanto, patológica, que, no entanto,
encontrará uma saída através da memória, iniciada em Angústia e desdobrada
programaticamente em Infância.
Segundo esta mesma lógica, é interessante destacar, por último, o lugar que o artista e
o intelectual ocupam nesses romances. Situados em mundos complexos e inscritos numa
163
“O Estado de Pernambuco presenciava a luta oligárquica entre “borbistas” e “pessoístas”. No Jornal do
Recife, onde substituíra Barbosa Lima Sobrinho em crônicas dominicais, José Lins posicionava-se a favor do
senador Manuel Borba, na defesa contra as intenções intervencionista de Epitácio Pessoa em Pernambuco. E
criticava a situação política do Estado, numa atitude polêmica que se tornará mais veemente ainda na revista
Dom Casmurro, que ele funda com Osório Borba, em 1922” (PONTES DE AZEVEDO, 1946, p. 208).
97
esfera pública que os textos parecem incorporar intencionalmente à ficção, eles se apresentam
como sujeitos impotentes, incapacitados de exercer qualquer função dentro desse âmbito. No
caso de Graciliano, isto se faz visível no seu romance Angústia, mediante as referências ao
passado político do personagem; um passado afogado que parece não ter tido continuidade,
configurando-se como uma das causas da frustração que o romance como um todo busca
retratar. Em José Lins do Rego, observamos isso na figura de Zé Cordeiro, personagem que,
dentro do quadro de atores que o romance apresenta como fazendo parte do processo
revolucionário, simboliza a figura do intelectual. Apesar de ele explicitar e transparentar ao
leitor quais são os sintomas que impossibilitam a revolução, ele próprio não consegue intervir,
nem participar dos eventos internos ao romance. O seu papel fica, portanto, restrito a essa
função ficcional extratextual.
O ponto de partida deste estudo pode ser sintetizado pela seguinte citação de Ficção e
confissão – livro que Antonio Candido dedicou à obra completa de Graciliano Ramos:
De tal modo que a veracidade deste livro só encontra testemunho garantido nos outros de Graciliano
Ramos, ou, para ser mais preciso, em Angústia. A ficção, neste caso, explica a vida do autor, ao
contrário do que se dá geralmente. Muitas das pessoas aparecidas na primeira parte de Infância já eram
nossos conhecidos de Angústia. E, penetrando na vida do narrador menino, parece-nos que há nela o
estofo em que se talham personagens como Luís da Silva” (CANDIDO, 2006, p. 71).
É a partir desse vestígio, dessa conexão fundamental entre Infância e Angústia, que
gostaríamos de começar este trabalho. Compreendidos em conjunto, ambos os romances
funcionariam como um grande Bildungsroman de artista. Nele aparece elaborado
ficcionalmente o período da vida de Graciliano Ramos que vai de 1884 – data do seu
nascimento – até 1935, ano que marca o fim do período que o autor passa no nordeste
brasileiro trabalhando na instrução pública, antes de ser demitido do seu cargo de diretor e
preso pelas questões políticas que todos conhecemos164.
Outras obras poderiam ser acrescentadas ao par romanesco que aqui iremos estudar,
mas o vínculo que estas mantêm com Infância e Angústia é menos nítido165 que o que estes
romances possuem entre si. De fato, eles apresentam uma continuidade direta, um fio
condutor explícito que o estudo de Lamberto Puccinelli registra rigorosamente nas seguintes
linhas do seu livro:
Mais para comparar do que para glossar essas duas obras é necessário fazer um balanço dos fatos e dos
personagens que se repetem de uma para outra. Desse cotejo, tem-se, para começar, que autor e
personagem seguem um roteiro comum: ambos abriram os olhos para a vida numa propriedade rural;
ainda pequenos, ambos mudaram-se para uma vila, depois, através da zona rural, o autor mais
demoradamente, para ir a Viçosa, o personagem mais rapidamente, para ir para Maceió. E, para
terminar, os personagens que surgem nas memórias e os que surgem no romance são, quase todos, não
só os mesmos, como ainda se apresentam na ficção com os seus nomes reais, a ponto de poderem
colocar-se lado a lado; José Baia, que em Angústia é o único amigo do personagem, é, em Infância, o
único amigo do romancista; era, na realidade, risonho e expansivo, barulhento mesmo e se na ficção
falava baixo contudo ria sempre; tanto na realidade quanto na ficção, tinha dentes alvos, dentes muito
brancos; cantava na realidade e na ficção; aqui e ali, contava histórias de onças; aqui era amigo, ali era
bom tipo; na ficção, assim como nas memórias, menciona ao menino as orações fortes, especialmente a
da cabra preta, de enorme virtude, o avô paterno na realidade e na ficção, foi proprietário de terras e
arruinou; na vida e no romance, por rabugice da enfermidade ou por bebedeira, quando endireitava o
espinhaço, o antigo proprietário ressurgia; Amaro vaqueiro das memórias e Amado vaqueiro do
164
Esse período coincide com o surgimento, desenvolvimento e crise da República Velha na história do Brasil, e
inclui os seis anos que se seguiram à Revolução de Trinta.
165
De fato, é difícil não reconhecer a estreita relação que existe entre muitos dos personagens de Caetés, de
Vidas secas ou de São Bernardo. Eles atuam, muitas vezes, uns como reflexo de outros, funcionando, por sua
vez, como diferentes alter egos da figura desse autor que aparece exposta em Infãncia. Jõao Valério, Fabiano, “o
menino mais velho”, esse filho abandonado na escuridão que aparece em São Bernardo e, até mesmo, o Paulo
Honório: todos eles têm, direta ou indiretamente, algo dessa contraditória e trágica criança que aparece em
Infância, ou dessa fissurada figura adulta que reconhecemos em Luís da Silva. Em cada um deles vemos, de uma
ou outro forma, a relação com o nordeste brasileiro, o sentimento de opressão vindo da natureza e da cultura
representada por algum tipo de autoridade, e o sentimento de abjeção, de “pessoa ruim” e inferior, refugiada da
hostilidade do meio na escrita.
99
romance está nos dois lugares enchendo cestos de mandacaru; o padre João Inácio das memórias é o
padre Inácio do romance e, num como noutras, distribui sempre o mesmo insulto ao povo arreda, raça
de cachorro com porco e é sempre a mesma figura austera, de sinistro aspecto, com olho de vidro,
imóvel, num círculo negro, na órbita escura, que dirigia ou chefiava um partido político.
Assim, também, o cabo José da Luz canta, no romance, a mesma cantiga que canta nas memórias; seu
Antônio Justino das memórias, vai ser o mestre Antônio Justino do romance; e Teotoninho Sabiá e seus
filhos; e Acrísio, e André Laerte, e Rosenda e seu Felipe Benício desfilam, com seus nomes, suas
característicase até suas funções, no romance e nas memórias” (PUCCINELLI, 1975, p. 61-62)
A continuidade entre estes romances é dada, assim, pela recorrência dos seus
personagens secundários, mas também, e sobretudo, pela história comum que possuem os
seus diferentes protagonistas, os quais funcionam, ao mesmo tempo, como distintos alter egos
da figura do autor. O primeiro desses personagens seria o trágico menino, filho do senhor
Ramos, que protagoniza Infância. O segundo seria o próprio Luís da Silva, figura central de
Angústia. Este último aparece como um homem já adulto, que abandonou a vila tantas vezes
mencionada no livro de memórias, instalando-se como jornalista em Maceió, e que volta
incessantemente ao seu lugar de origem através das lembranças do avô, do pai, do seu amigo
José da Luz, do padre Inácio, dentre outros, todos eles mencionados no livro de 1945.
Infância tem sido considerada uma das obras centrais que constituem o corpus do
Bildungsroman brasileiro da primeira metade do século XX. Mas a nossa impressão é que ele
por si só não chega a configurar a experiência total deste Bildungsroman de artista, que sim
se vislumbra incorporando os romances mencionados, pois, como diz Antonio Candido:
Em Infância o esqueleto quase se desfaz, dissolvido pela maneira de narrar, simpática e não objetiva,
restando apenas uns pontos de ossificação para nos chamar à realidade. Para o leitor que não conhece a
zona do autor, creio que esses pontos não passam de alguns nomes de cidade e de gente (CANDIDO,
2006, p. 70).
100
Visto assim, este romance pode ser considerado como um Bildungsroman composto
por três etapas. A primeira meninice, narrada principalmente em Infância, que vai dos dois ou
três anos do menino Graciliano até os onze, quando este tem a sua primeira experiência
amorosa com Laura, cuja narração fecha o livro. Em seguida, haveria mais dois períodos: o da
adolescência e o da maturidade, ambos referidos no romance Angústia, e que também
parecem estar pautados pelo tema amoroso e sexual que põe fim a Infância. A adolescência
seria apontada pelo romance de Luís da Silva com Berta, enquanto que a maturidade, pelo
dramático e frustrado romance deste com Marina, em Maceió.
166
Graciliano Ramos terminou de escrever Angústia em 1936, quer dizer, um pouco antes de ser preso durante a
ditadura de Vargas. Ele foi o desenvolvimento de um antigo conto intitulado “Entre grades”, que escreveu em
1924 e que também tinha como protagonista o personagem Luís da Silva, figura com que “começa a construir
uma galeria de criminosos” (MORAES, 1993, p. 47). Desengaveta-o em 1935 e escreve o romance alternando
com o seu trabalho na Instrução Pública. Mais tarde é preso durante um ano, e ao sair sai livre fixa residência no
Rio de Janeiro, onde, em 1938 lança Vidas secas, livro que consolida o seu reconhecimento. A redação de
Infância foi, primeiro, por partes e logo foi se consolidando como um projeto total cujo objetivo era, segundo o
seu biografista, reavivar a meninice perdida no interior, ideia que tinha desde 1936, isto é, desde a publicação de
Angústia. Isto oferece maior convicção na hora de compreender estes livros como um só projeto que foi
interrompido ou talvez estimulado pelo quebre experimentado pelo autor por causa da prisão. Infância, deste
modo, apareceria, em palavras do próprio romance, como uma sorte de “solução de continuidade” não só do
impulso para as origens iniciado em Angústia, mas também da traumática cisão existencial sofrida pelo autor no
cárcere.
101
negada a Luís da Silva no plano empírico. Ao mesmo tempo, a viagem interna para o passado
será uma busca do momento em que esta formação de fato aconteceu. Este momento é
finalmente encontrado pelo narrador nas páginas finais de Infância, quando a criança, como
dissemos, inicia-se no mundo literário.
Um aspecto significativo que pode ser observado em Infância e Angústia, vistos como
uma unidade, é a quase total ausência da idade que se considera fundamental para o
Bildungsroman clássico: a juventude. Reunidas, ambas as obras possuem, como diz Antonio
Candido, um tempo “tripartido”, composto pela infância, pela adolescência e pela maturidade,
mas o certo é que os únicos dois períodos realmente desenvolvidos são o primeiro e o último.
Essa juventude “sem formação” e, portanto, sem espaço para elaborar e processar uma
identidade individual estará representada, em última instância, pela ausência dessa idade no
plano do relato. Como consequência de semelhante falta, o que restará ao protagonista será
continuar reproduzindo a moral que lhe foi inculcada no período da infância: a moral do amo
cuja violência será o Leitmotiv de Angústia.
167
Esse intento frustrado se corresponde, no biográfico, com a primeira viagem que Graciliano fez para o Rio de
Janeiro em 1914, conhecida pelas imensas dificuldades de toda ordem que ele teve de atravessar.
102
Marina é uma mulher do povo que mora com seus pais – seu Ramalho e dona Adélia –
do lado da casa de Luís. Seu Ramalho trabalha numa usina de carvão, que fica próxima do
bairro, e dona Adélia é o símbolo da mulher popular, sacrificada, dedicada à casa e totalmente
entregue às necessidades da filha e do marido. O romance com Marina se inicia como uma
paixão meramente fisiológica e sexual, que parece ser coerente com as antigas experiências
amorosas de Luís da Silva: amores fadados ao fracasso e em que o dinheiro aparece como um
elemento indissociável ao jogo passional. Vemos isto, primeiro, na referida experiência de
Luís com Berta, a prostituta loira com que tem um romance durante a juventude, e, depois, na
já mencionada história entre Luís da Silva e a filha da dona da pensão onde se hospedava
durante seus anos no Rio de Janeiro. Em ambos os casos, o amor parece dar-se não como um
encontro direto entre homem e mulher, mas como um jogo de interesses mútuos, cujo fim é a
aquisição de algum tipo de propriedade. No caso da mulher, o capital que o homem possa ter,
e, no caso do homem, os prazeres que ele possa receber da parte da fêmea. Este tipo de amor
configura-se, portanto, fora do registro da parceria, de modo que o avanço nas intenções de
um implica um retrocesso nas intenções e no desenvolvimento do outro.
168
Ambos são personagens inteligentes, politizados, mas sintomaticamente fracos, que se encontram em
oposição aos “machos” do relato, encabeçados por Julião Tavares e seguidos pelos maridos de Dona Rosa e
Dona Mercedes.
104
dos temores de um homem que concentra e projeta todo o seu pavor pela modernidade na
figura de uma femme fatale que atua como uma espécie de bomba de tempo, cuja pólvora é o
consumo.
Ora, o domínio dessa deformante norma burguesa que está tomando conta e se
apoderando de todas as dimensões de Luís da Silva será representado pela aparição de Julião
Tavares, esse rival que parece espelhar os contraditórios desejos de integração e, ao mesmo
tempo, de liberação que atuam nele. Julião Tavares fala bem, se veste bem, se dá bem na vida
e tem um trabalho de comerciante legitimado pelo novo universo social. É, portanto, um alter
ego de Luís da Silva que simboliza, simultaneamente, o caminho em que ele se encontra mal
inserido e, ao mesmo tempo, a causa da sua progressiva frustração, pois esse caminho
desejado é, na verdade, um caminho de submissão.
Luís da Silva iniciará um longo duelo com Julião Tavares até matá-lo, atravessando
com isso a barreira da lei e da normalidade, o que dará origem ao clima psicótico deste
romance e ao estado dramático do seu narrador.
como um debate consigo mesmo, simbolizado pela rivalidade entre o protagonista e seu alter
ego, Julião Tavares.
O principal deste texto seria, portanto, o drama interno que gera a luta do indivíduo
com a normatividade social, a qual se encontra como que incrustada no comportamento do
protagonista. A história criminal subordina-se, assim, ao registro interior de um relato cujo
tema central não é o homicídio, mas, sobretudo, o debate privado de Luís da Silva consigo
mesmo. Este surge, por um lado, da frustração de todas as possibilidades de formação
intelectual, artística, afetiva e política para a sua vida. E, por outro lado, da sintomática
obediência, por parte do protagonista, ao roteiro de uma pequena-burguesia representada pela
imagem de Julião Tavares, que, por sua vez, funciona como o novo senhor da história.
O drama descrito por Angústia consistiria, assim, na extrema obediência por parte do
protagonista aos valores sociais, transformando-se numa vítima deles. Este drama desemboca
no crime simbólico, que funcionaria como um desesperado e degradado ato de formação. No
entanto, a verdadeira formação não se daria no plano empírico. Interditada toda possibilidade
concreta de atuar segundo valores pessoais, ela surgirá, como veremos, do próprio exercício
de lembrar e reconstruir os fatos do passado. Este exercício começa em Angústia, desenvolve-
se plenamente em Infância e continua a se desdobrar na obra toda de Graciliano, definida, nas
palavras de Antonio Candido, como um grande movimento que vai da ficção para a confissão;
ou, para os fins da nossa leitura, da ficção para a formação.
106
Tendo em mente o que foi dito acima, Infância pode ser lido como uma grande
experiência de “formação pela memória”, que acontece através do exercício sistemático de
reconstrução do passado. Nisso se encontrará, para além do conteúdo narrado, o sentido
fundamental deste livro, se compreendido em conjunto com Angústia: o de completar a
formação que foi negada no plano empírico através da reconstrução dos fatos passados, com o
fim de formar uma experiência. Como foi dito, esse exercício começa em Angústia, com
Graciliano/Luís da Silva, homem de uns 35 anos que se encontra instalado na cidade de
Maceió e que, dentre as condições opressivas da vida moderna desta cidade industrial de
província, é impelido involuntariamente a recordar:
Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva. Nos meses compridos daqueles
invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua
que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó. (Ramos, 2003, p. 12).
[.....]
Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os
desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: - “Arreda, povo, raça de cachorro com porco.” Sento-
me no paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a figura sinistra de seu Evaristo enforcado e
os homens que iam para a cadeia amarrados de cordas. Lembro-me de um fato anterior ou posterior ao
primeiro, mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado e confuso. Em
seguida os acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das
pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do
entorpecimento recordações que a imaginação completou 169.
169
Ibid., p. 14.
107
recriar esse passado e lutar contra o domínio do esquecimento, representado pelo símbolo das
trevas e pelo estado de sonolência em que se acham, simultaneamente, o homem que evoca
essa idade e o menino evocado.
O primeiro passo desta grande missão pessoal de formar uma experiência por meio
das lembranças será o de invocar a memória, com o fim de elaborar os mais remotos instantes
da primeira infância e fazê-los significativos. Ao redor deste tópico, giram, de fato, os
capítulos iniciais do romance. O narrador começa fazendo referência a um universo composto
somente por coisas, em que o contato da criança com o mundo parece ser meramente
material:
Mas pai e mãe, entidades próximas e dominadoras, as duas irmãs, uma natural, mais velha que eu, a
outra legítima, direita, dois anos mais nova, eram manchas paradas. Positivamente havia pitombas e um
vaso de louça, esguio, oculto atrás de um móvel a que a experiência deu o nome de porta (RAMOS,
2003, p. 9).
Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas,
pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo
incongruente. Às vezes as peças se deslocavam – e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se
tornavam irreconhecíveis (...) (RAMOS, 2003, p. 17).
170
“Nova solução de continuidade. As sombras me envolveram, quase impenetráveis, cortadas por vagos
clarões: os brincos e a cara morena de sinha Leopoldina, o gibão de Amaro vaqueiro, os dentes alvos de José
Baía, um vulto de menina bonita, minha irmã natural, vozes ásperas, berros de animais ligando-se à fala humana.
O moleque José ainda não se tinha revelado. Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos,
incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas,
finas e leves, transparentes” (Ibid., p. 11).
108
Vistas como um todo, as recordações deste volume podem ser divididas e organizadas
em três momentos, pautados pelos três espaços através dos quais transita o protagonista e que,
por sua vez, seguem a linearidade oferecida pelo evoluir real do eu biográfico. Esses três
momentos são: I. O período da fazenda (capítulos 1-5), II. O período da vila, ou de Buíque
(capítulos 6-24) e III. O período no município de Viçosa - Alagoas (do capítulo 25 ao 39).
Em cada uma destas fases e nos diferentes episódios que as compõem, veremos a
encenação de uma mesma tensão, gerada pelo conflito entre duas moralidades ou leis: a dos
opressores e a dos oprimidos, a dos que exercem o poder que socialmente possuem, e a dos
outros que carecem dele e o padecem:
Os episódios desta primeira parte mostrarão cada um dos martírios que configuram
este “aprendizado doloroso” do plano moral, do intelectual e, por último, do social. O
primeiro deles dá-se no dramático capítulo “Um cinturão”, durante o castigo paterno, em que
o menino, mediante a tortura física, parece adquirir as suas primeiras e confusas noções de
bem e de mal, associando a “justiça” com a obrigação de o mais fraco ser punido pelo mais
forte. O segundo aprendizado surge da alfabetização, suplício ainda mais violento que o
109
anterior, pois se impõe como uma agressão persistente que causa uma dor permanente no
corpo e na autoestima do protagonista. Em lugar de educar, esta alfabetização aparecerá como
uma redução e um embrutecimento das faculdades mentais do menino171. A aprendizagem do
social, por último, acontece por responsabilidade da mãe, durante a primeira instância de
socialização do menino Graciliano. Nela, a criança (já oprimida pelos sapatos exigidos por
tais situações) é embriagada impunemente por um grupo de mulheres, como uma espécie de –
comum, mas macabro – ritual de iniciação no âmbito não familiar. A vida social aparecerá,
assim, não como uma instância de expansão do indivíduo, mas como um terreno a mais para
sua anulação.
Apesar do clima de fatalidade com que a fazenda aparece na narração do autor, uma
vez acontecido o deslocamento, ela adquire um novo sentido nos sentimentos do menino. A
fazenda passa a constituir uma espécie de idílio perdido em que o personagem lembra de ter-
se vinculado com o mundo de maneira absoluta e de ter-se sentido livre e à vontade entre as
roupas desleixadas. Ao se separar da água, da terra, do céu aberto e, também, dos personagens
que antes davam orientação a sua vida, quebra-se a relação entre ele e o mundo como
totalidade: “Longe da fazenda considerei-me fora da realidade e só” (...) “O paletó feria-me os
sovacos, os sapatos mordiam-me os pés e tropicavam no tijolo. Senti falta da camisa e das
172
alpercatas” . O ingresso na vila de Buíque aparece, assim, como uma experiência de
desajuste, em que o personagem perde a liberdade da natureza e é obrigado a encerrar-se num
apavorante mundo mental de fantasmas e mitos, a partir do qual só pode contemplar a vida
por fragmentos, sem participar dela: “Observávamos pedaços de vida, namorávamos o oitão
171
Como aparece muito bem explicitado no capítulo 15: “Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e
miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentado num caixão, sem pensamento, a carta
sobre os joelhos” (RAMOS, s/d, p. 96).
172
Ibid., p. 43.
110
da outra gaiola, aberta, e tínhamos inveja imensa dos Sabiás pequenos, desejávamos correr e
voar com eles” (RAMOS, s/d, p.55).
Por outro lado, o trânsito da fazenda para a vila de Buíque aparece também como um
salto do individual para o histórico-coletivo; isto é, do familiar e do particular, para um
âmbito de socialização mais rico, composto por um universo de valores cada vez mais amplo.
Observando a organização e as condições deste novo eixo espacial, o menino transforma-se
num leitor e num intérprete do momento histórico que atravessam: o ano de 1897, isto é,
inícios da República Velha, na história do Brasil. É durante esta passagem para o coletivo que
o menino começa a reconhecer e aprofundar-se no conhecimento de outras moralidades.
A moral dos senhores, antes representada unicamente pelo pai, amplia-se para outros
personagens. Ao mesmo tempo, a partir deste momento, o menino entrará em contato com a
moral dos servos, ou dos escravos (antes levemente vislumbrada no seu amigo José Baía),
abrindo-se, assim, a novas vozes sociais.
A visão e a lei dos poderosos estará agora representada pelo padre João Inácio (que
concentra, na sua figura, o poder político, religioso, social e urbano) e todo o desfile de
personagens vinculados à dominação do povoado de Buíque. Esta moral será a da civilização,
da corrupção, do controle e da mercantilização da vida e do homem.
Tomava-o por modelo. E, sendo-me difícil copiar-lhe as ações, imitava-lhe a pronúncia, o que me
rendia desgosto. Esfriavam-me a ambição de melhorar e instruir-me, forçavam-me a recuperar a fala
natural. Haviam obrigado o moleque a tratar-me por senhor, não admitiam que me reconhecesse
indigno, me privasse voluntariamente daquele respeito miúdo. José, insensível às minhas desvantagens,
perseverava na obediência, modesto, a proteger-me (...). José conhecia lugares, pessoas, bichos e plantas
(...) senti o moleque próximo e infalível. Eu julgava a ciência dele instintiva e segura. Modifiquei o
111
juízo e alimentei a esperança de, com esforço, decorar nomes também, orientar-me em caminhos e
veredas (...). Apesar do erro, o prestígio de José não diminuiu” (RAMOS, s/d, p.76 – 77).
Diante dessas duas moralidades, o menino optará por buscar e realizar cada vez mais a
moral dos servos, como fica ilustrado nos seus esforços por reproduzir (ainda que sem
sucesso) os atos e as falas do moleque. Tal orientação, porém, deparar-se-á com diversas
formas de obstáculos, que serão ilustrados em diferentes episódios do romance. Obstáculos
vindos de si mesmo, como filho de um autoritário patriarca pequeno-burguês, formado por
um sistema educacional totalmente alinhado com os seus métodos de ensino. E obstáculos
colocados pelos próprios personagens que representam o mundo (agora, relativamente
emancipado) dos “servos”, também deformados pela moral dos patrões. O livro fechar-se-á
com uma solução particular: a atividade literária, uma atividade inofensiva, que permite fugir
da dinâmica senhor/servo, além de revindicar poeticamente o universo dos desvalidos.
Foi por esse tempo que o negro velho apareceu, limpo, de colarinho, gravata, botinas, roupa camiseta,
óculos. Estranhei, pois não admitia tal decência em negros, e manifestei surpresa em linguagem de
cozinha (...) Mas negociante não tem os escrúpulos comuns das pessoas comuns. Tanto elogiara as
mercadorias chinfrins expostas na prateleira que sem dificuldade esquecia as minhas falhas evidentes e
me transformava numa espécie de fechadura garantida, com boas molas. O fabricante era ele. 173.
173
Ibid., 102, 103.
112
golpes, porém, mais tarde, também os livros, a carta de A B C e o colégio em geral. Estes
últimos aparecem não como recursos educativos, mas como instrumentos de domesticação e
de propagação da moral das classes dominantes a que o personagem, para além da sua
vontade, acha-se totalmente submetido. “Fala pouco e bem, ter-te-ão por alguém”, “A
preguiça é a chave da pobreza”: é esse o tipo de conteúdo moral associado à alfabetização.
Sob a forma de inofensivos refrãos, eles divulgam um conteúdo claramente ideológico. Neles
a educação atua como instrumento de diferenciação social, reforçando a “superioridade” das
classes dominantes e mostrando a pobreza como um defeito individual e não como um
problema social.
Às vezes, porém, o espelho nos anunciava borrasca. O desgraçado não se achava liso e alvacento,
azedava-se, repentina aspereza substituía a doçura comum. Arriava na cadeira, agitava-se, parecia
mordido de pulgas. Tudo lhe cheirava mal. Segurava a palmatória como se quisesse derrubar com ele o
mundo.” (RAMOS, s/d, p.179).
Após isto virão os momentos talvez mais luminosos do romance e durante os quais se
vislumbra um início e uma promessa de formação para este menino maltratado pelas
diferentes formas de civilização e dominação a que é submetido desde os seus primeiros dias
de vida. Esses são a narração dos primeiros passos de Graciliano como homem de letras, os
quais serão dados fora do espaço controlado pelo pai, pelo avô e pela escola. No livro “O
menino da mata e seu cão piloto” e na biblioteca de Jerônimo Barreto, a criança começa um
caminho de libertação daquela opressão, o que aparece como uma possibilidade de ressurgir
113
da escuridão a partir da sua própria fraqueza, mas também como uma via para se adentrar e
reivindicar livremente o mundo dos desvalidos, questão que, mais tarde, constituirá
praticamente uma poética: “Os astrônomos eram formidáveis. Eu, pobre de mim, não
desvendaria os segredos do céu. Preso à terra, sensibilizar-me-ia com as histórias tristes, em
que há homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e animais ferozes”
(RAMOS, s/d, p. 191). Este será, como anunciamos, o momento formativo “factual” que a
memória na sua formação subjetiva busca nos episódios evocados ao longo do livro até
encontrá-lo. A sua continuidade, no entanto, estabelece-se sob a fórmula de uma pergunta que
Angústia vai responder negativamente, mostrando que tal formação “de fato” não teve
verdadeira continuidade, instaurando, por isso, a necessidade da formação pela memória.
Entre Angústia e Infância haveria, portanto, dois usos da ficção. No primeiro livro, ela
estaria orientada a nos mostrar os aspectos deformantes de uma experiência concreta
destituída de qualquer forma de idealismo e, portanto, encenaria uma distopia, em que a
formação se distorce pela falta de um rumo próprio no percurso do protagonista. Em Infância,
ao contrário, a ficção estaria intimamente vinculada à formação, pois é ela que permite recriar
e renarrar o passado, auxiliando a memória e limpando a experiência.
O moleque Ricardo (1935), de José Lins do Rego, faz parte da conhecida saga de
romances que compõe "O ciclo da cana da açúcar", escrita por José Lins do Rego entre os
anos de 1932 e 1936. Trata-se do penúltimo texto de um conjunto de cinco romances que têm
como base o mesmo universo: o mundo do engenho açucareiro no Nordeste brasileiro, nas
suas fases de crise e de decadência. O menino de engenho, Doidinho, Usina e Banguê, tendo
essa mesma base contextual, concentram-se na história de formação de Carlos de Melo, o
privilegiado neto do Coronel Zé Paulino, dono da Fazenda do Pilar. Eles narram a história de
um sujeito "em decadência", cuja formação descreve a passagem de uma esfera de
estabilidade, legitimidade e bem-estar a um estado de total futilidade existencial e desinteresse
por qualquer forma empreendimento pessoal.
114
Esta história de “emergência”, por outro lado, encontra-se vinculada a uma pergunta
que expressa a preocupação político-ideológica do livro. O romance quer dar conta de um
fenômeno sociológico geral (a imigração interprovincial do operariado às capitais do Brasil,
neste caso, à cidade do Recife), de um ponto de vista concreto, quer dizer, por meio de figuras
174
individualizadas, de "carne e osso" , como o próprio “Ricardo” (e não "João" ou "José",
nomes comumente utilizados nas narrativas sobre as massificações, e que designam antes
coletividades do que individualidades). O seu objetivo é revelar as condições de vida desse
operariado no Recife dos anos 30-35, mas submetendo a apresentação de tal universo a uma
questão: qual é o quadro em que se deve dar uma revolução proletária no Brasil para libertar
esse trabalhador da escravidão em que se encontra, apesar da mudança do sistema produtivo?
A resposta do autor, articulada em chave social, é formulada nos seguintes termos: existe, no
campo dessa luta, uma separação de base entre consciência e ação que deve ser superada. A
reflexão política deve encontrar uma via material de realização e, por sua vez, a ação política
precisa de uma consciência e de um ideal claro que a oriente.
174
Ibid., p. 21.
115
revolução (evidentemente, se se visa a mudança estrutural do mundo histórico, então ele não
pode ser compreendido como norma). Por outro lado, no entanto, as ações concretas dos
indivíduos em favor dessa mudança devem achar outro princípio de orientação no lugar
dessas normas. Esse princípio é chamado no romance de “consciência” e corresponderia à
aquisição de uma racionalidade e de um entendimento das circunstâncias contingentes que, do
contrário, reduzem-se a meros fatos de violência sem orientação.
Tendo isto como fundamento, o relato sobre o moleque Ricardo pode compreender-se
de duas maneiras. Em primeiro lugar, pode ser lido historicamente, como o relato sobre um
campesino que migra para cidade do Recife com o objetivo de alcançar maior autonomia e
116
trabalhar segundo esquemas diferentes dos que se dão no engenho. Contada a partir de um
caso particular, essa seria a história geral do operariado que deve deixar o seu espaço de
origem, absorvido pela modernidade que demanda a sua mão-de-obra, para inserir-se nos
espaços produtivos dos centros urbanos, fora do seu entorno original. Por outro lado, no
entanto, a história do Moleque Ricardo terá um viés mais específico, configurando-se como
uma narração sobre a formação de uma consciência política.
A passagem de um para outro contexto será pautada pelo progresso material que cada
uma das mudanças lhe oferece, o qual é intencionalmente detalhado pelo narrador através da
referência pormenorizada dos salários que em cada trabalho recebe. No entanto, o foco desta
formação prática não será a formação de uma consciência que devém do próprio fazer, como
o entenderia Hegel. Isto acontecerá só nas páginas finais do romance e será mais pela força
das circunstâncias que pelo poder formativo do trabalho em si mesmo. Ao contrário, o
emprego será para Ricardo uma mera fonte de progresso material que, na mesma medida em
que irá melhorando, irá ofuscando a consciência que ele tem de si, de seu lugar como
trabalhador e de seu pertencimento a uma classe. O narrador mostrará, assim, ironicamente,
este processo de aparente progresso para Ricardo, insinuando para o leitor o seu desacordo
com tal lógica e os riscos que ela significa para um sentido verdadeiro e não financeiro da
liberdade e da autonomia.
Durante esta primeira etapa, Ricardo será valorado de duas maneiras: como um mero
recurso de produção – “uma peça de primeira” – da perspectiva do dono, e como um sujeito
excepcional que merece educação e formação, da ótica da mãe e do povo da fazenda em
geral. Esses dois valores que giram em torno da sua figura conformarão, respectivamente, o
valor externo e o valor interno do moleque. Ricardo foge, pois questiona o preço que a figura
do dono lhe impõe – questiona o seu valor externo – e descobre que não corresponde ao
mérito interno que ele mesmo e os seus iguais lhe atribuem. Parte, então, com o objetivo de
relativizar o “preço” que o dono lhe coloca, e conseguir melhores condições de vida, que, por
sua vez, tenham uma relação de concordância maior com o valor próprio que ele, num
momento de lucidez, reconhece em si mesmo:
Não sei por que naquela noite ele teve vontade de ver o coronel. Nascera para ser menor que os outros.
Em pequeno vivia pela sala com os senhores lhe ensinando graça para dizer. Os meninos brancos
brincavam com ele. Mais tarde viu que não valia nada mesmo. Só para o serviço, para lavar cavalos,
rodar moinho de café, tirar leite. Negro era mesmo bicho de serventia. Andava pelo mato, espetando os
pés atrás do gado. Em casa mãe Avelina botava jucá e pronto. Não se falava mais nisto. E no entanto,
quando Carlinhos ralava o joelho na calçada, corria gente de todo canto da casa. Davam água fria ao
menino por causa do susto e passavam pedaço de pano pela ferida. Ricardo só podia sentir essas cousas.
Ele tinha uma alma igual à dos outros. E sabia mesmo fazer tudo melhor. E apesar disso, quando o outro
crescesse, seria o dono, e ele um alugado como os que via na enxada (LINS DO REGO, 1956, p.20).
O ato que ele realiza antes de partir é especialmente significativo se o lemos a partir
desses parâmetros. Ricardo dá um banho no irmão menor, descuidando, excepcionalmente,
dos deveres com o patrão. Sobrepõe, assim, o simbólico ao produtivo, dando predomínio ao
seu valor pessoal em detrimento da sua função dentro do engenho.
118
Os dois anos que ele fica trabalhando para Dona Margarida constituem o primeiro
contato do moleque com o povo da cidade. Como sugere o nome da rua onde Ricardo mora
(Rua do Arame), esse período estará marcado pela aspereza de um clima popular rude que, no
entanto, agradará a Ricardo, pois o sentirá como um signo de força e vitalidade de que carecia
o rotineiro mundo do engenho:
Para Ricardo aquela rua era diferente daquela onde nascera e se criara. A velha senzala do engenho era
muda. Só aquele bater de boca, de noitinha. A mão Avelina, Joana, Luiza e os moleques pelo terreiro,
brincando. Também ali só faziam dormir e esperar os homens na cama dura. Agora a cousa era outra. A
rua do Arame agachada, com as biqueiras encostando no chão, mulheres brigando com os maridos,
falava outra língua mais áspera, mais forte. Ricardo gostava mais dela (LINS DO REGO, 1956, p.19).
Após esta experiência, vem o último e mais importante trabalho que o moleque realiza
na cidade do Recife: o emprego na padaria de seu Alexandre. Ali ele aumenta notoriamente o
seu salário, arrumando um esquema de vida em concordância com as suas expectativas
pessoais (como diz o narrador, começa ganhando 90$000 mil-réis e chega a receber até
140$000 mil-réis, incluindo cama e comida). A noção de progresso econômico continua,
assim, a sua tendência ascendente durante este terceiro emprego. Desta vez, no entanto, da
perspectiva do moleque (pois o narrador não pensa o mesmo), tal progresso significará
ademais um passo adiante na sua própria autonomia. O trabalho é árduo, mas, diferentemente
do emprego com dona Margarida, aqui tem liberdade, privacidade e, além do mais, conta com
o respeito do seu empregador.
A padaria, por sua vez, configura um espaço claramente alegórico, com que José Lins
do Rego parece querer representar, em pequena escala e através de personagens concretos, os
detalhes do ciclo da produção capitalista. Seu Alexandre seria o “novo patrão”, em
contraposição com o antigo “dono” do moleque Ricardo, Zé Paulino. Numa relação
119
semelhante àquela que o livro estabelece entre Carlos de Melo e o moleque Ricardo, Zé
Paulino é o patrão em decadência, enquanto que Alexandre é o patrão em emergência (de
mão-de-obra, de “besta”, diz o livro, ele passou a ser chefe). Segundo a perspectiva de
Ricardo, ele é a encarnação do capitalista puro: o único ponto que lhe interessa do ciclo
produtivo é a riqueza ganha. Nesse sentido, ele nada tem a ver com a imagem do “bom
empresário” que, sabendo que o seu produto e os ganhos que busca extrair dele dependem do
desempenho de todos os participantes do ciclo produtivo, cuida e procura o bem de cada um
deles. Seu Alexandre gosta apenas do dinheiro. Ele não tem o menor interesse em participar
do ciclo de elaboração da matéria-prima, aparecendo sempre como alguém externo que,
benefiando-se o máximo do rigor do trabalho alheio, mantém-se totalmente imune ao esforço
que implica. Sempre bem lavado e descansado, surge no espaço rude de elaboração do pão
para questionar o destino da sua matéria-prima, gerando, assim, uma dissociação total entre
ele e os empregados, cujas condições de trabalho e de existência pouco lhe interessam. Os
únicos pontos da produção com que Seu Alexandre se preocupa são a material que ele coloca
e o lucro que ela deve gerar. E para ele a qualidade do trabalho dos seus padeiros vai ser
sempre inferior à essa matéria-prima, o que, noutras palavras, significa um desconhecimento
total do objeto pelo qual os empregados se esforçam diariamente. Em outras palavras, uma
negação absoluta do seu valor externo (paga salários miseráveis), mas também do seu valor
interno, pois é nesse produto permanentemente desprestigiado por seu Alexandre que os
operários se avaliam a si mesmos:
Também o patrão era a impertinência em pessoa. Nunca chegou um dia ali para elogiar, fazer justiça ao
suor que ele via correr em bica pelo corpo nu dos homens. Eles trabalhavam com uma tanga de estopa.
Os masseiros gemiam em cima da farinha do reino com a cara de quem estivesse em luta com um
inimigo rancoroso. A boca do forno era um inferno de quente. De noite o calor era menor, mas pelo dia
queimava, tostava o couro de quem chegasse por perto. Seu Alexandre chegava de lenço no pescoço
para examinar, para falar do trabalho. Que eles melhorassem o produto. Dava tudo muito bom, farinha
de primeira, tudo de boa qualidade. A água era igual à dos outros. E por que o pão crioulo dele não se
comprava com o das outras padarias? Era relaxamento, era descuido. (LINS DO REGO, 1956, p.34)
Para alegorizar as condições de produção capitalistas, José Lins do Rego utiliza uma
padaria, o que nos parece especialmente significativo. É nesse lugar que se produz o pão: o
alimento básico da sociedade que, portanto, simboliza o bem comum justa ou injustamente
120
Essa opção pela padaria como eixo espacial do romance sugere a ideia de que toda a
atividade econômica descrita em detalhe pelo autor está em tensão com um problema público
e um problema distributivo, quer dizer, com um problema político. E a participação de
Ricardo naquele esquema ficará sujeita à mesma tensão entre ambas as dimensões. De fato, o
trabalho de Ricardo não é o de padeiro – o que sabe produzir o pão –, mas o de pãozeiro, isto
é, de quem distribui o pão já fabricado. A continuidade entre o econômico e o político se
expressa, portanto, nas duas opções que tem Ricardo de distribuir esse bem: obedecer ao
sistema da padaria, vendendo o pão a quem tem dinheiro para pagar, e privando desse bem
àqueles que carecem de capital, ou deixar de ser uma parte funcional desse esquema, doando
o pão que deve distribuir, fora do sistema de compra e venda.
A causa psicológica dessa despolitização do moleque parece ser apontada pelo fato de
ele, desde as suas origens no engenho, identificar a figura do patrão com a figura do pai. Nas
lembraças que Ricardo tem de Zé Paulino, há sempre um fundo de admiração e afeto que,
apesar de não projetar totalmente no seu novo patrão, parece intermediar a sua relação com
ele, bloqueando os sentimentos de revolta (mesmo diante das expressivas circunstâncias de
exploração que ele testemunha). Nos dois patrões que o leitor conhece, Ricardo sempre verá
unicamente uma pessoa real (Seu Alexandre, Zé Paulino) e nunca associará essa pessoa real
com uma categoria econômica (o patrão). O papel social dos patrões que o comandam, assim,
achar-se-á como que nublado pelo fundo afetivo que o domina, dando prioridade à imagem do
pai que nunca teve, antes que à imagem do patrão. Assim, as diferenças no afeto que o
moleque sente por um e por outro serão de grau, mas não de natureza. Em Zé Paulino verá
mais o pai, por isso a sua admiração é quase absoluta, ainda que não total. Em seu Alexandre,
pelo contrário, ele verá um pouco mais o patrão, por isso não consegue amá-lo – mas também
não consegue odiá-lo por completo, pois o pai-Zé Paulino continua atuando como uma figura
de mediação.
121
Mas aumentou dez-mil réis. Porém a raiva a seu Alexandre permaneceu. Era a primeira pessoa por
quem sentia repulsa, mesmo ódio. No entanto o patrão o tratava bem, sem gritos, sem aborrecimentos.
Também não dava por onde. Vivia com os outros aos berros. Os homens da padaria, até o patrício
viviam com o patrão pelas goelas. Ninguém levasse pão para casa que ele visse. Chamava de ladrão a
todo mundo. Não era o “ladrão” da boca do velho Zé Paulino. Era um ladrão que feria os outros com
vontade de ofender. Seu Alexandre, porém, gostava de Ricardo. Até lhe falava do negócio. No dia em
que botou fora um cobrador em que ele passou uma descompostura, chamou o negro e lhe deu o
serviço. O balaio de pão saíra assim de sua cabeça. O serviço amaneirava-se. Era ele agora quem tocava
a corneta e apontava nos livros os pães que deixava pelas casas. Se Guiomar visse como ele estava, a
coisa era outra. (LINS DO REGO, 1956, p. 33)
O moleque tinha vontade de bater na porta, de acordar aquele povo e dar-lhes os pães de que
precisassem. Mas passava. Seu Carlinhos estava contra os operários (...). O moleque não demorava
muito com esta convicção. O Santa Rosa era do coronel Zé Paulino. Só no dia de São Nunca passaria
para as mãos dos cabras. Mentira de Florêncio e da gente da padaria. Ele só queria saber de vender seus
pães e mais nada. Agora a corneta já não se exprimia com tanto entusiasmo. O sol já queimava. Não
tinha mais pão para vender 175.
175
Ibid., p. 67.
123
que padece176. Mais tarde aparece Isaura, amor passional e movido por impulsos “baixos”. E,
finalmente, relaciona-se com Odette, mulher com quem destrói totalmente o percurso da sua
formação privada, e depois da qual Ricardo dará o primeiro passo para a sua curta libertação,
ao se deixar seduzir por Sebastião e a causa política.
Em termos gerais, o romance mantém uma visão bastante pessimista do amor nos
âmbitos populares que ele procura representar. Em primeiro lugar, em cada uma das histórias
amorosas de Ricardo nunca coincide paixão e amor, questão que marca uma cisão de base
entre o ideal e a prática da experiência afetiva: Zefa Cajá parece ser só corpo, Guiomar só
espírito. Isaura, corpo. Odette: nem espírito, nem corpo. No entanto, o mais importante é a
visão sociológica que José Lins do Rego desenvolve sobre o amor no interior da classe social
que ele pesquisa. Nas relações de Florêncio e dos outros trabalhadores da padaria, o mais
recorrente parece ser o fato de que o casamento reforça a exploração: quem tem família
cultiva a base que faz da própria exploração uma coisa aceitável. Ao contrário, quem não tem,
como acontece com Ricardo durante a maior parte do romance, parece ficar mais resguardado
dos efeitos do capitalismo. O esmagamento do sistema econômico, então, invade e destrói o
trabalhador, não só quando está inserido no esquema de trabalho capitalista, mas sobretudo
quando ele é complementado com a instituição matrimonial.
Ricardo, por sua vez, não parece ser a exceção dessa norma, pois o seu
desenvolvimento estraga-se precisamente quando decide casar com Odette. O seu matrimônio
com ela não é o resultado de uma vontade própria, mas, principalmente, consequência de uma
demanda externa: cumprir com a missão que Odette e sua mãe parecem ter-lhe adjudicado,
isto é, de fazê-las sair da Rua do Cisco e da sua miséria. Estar casado absorve-lhe tanto as
preocupações, que acaba destruindo os últimos restos de organicidade que ele mantinha com o
universo do campo, com mãe Avelina e com seus irmãos. Por outro lado, o casamento
também o afasta dos seus colegas de trabalho, com os quais mantinha relações de
fraternidade, de apoio e de intercâmbio político e espiritual. Resultado: o percurso no âmbito
íntimo o transforma numa cópia fiel do patrão a quem tanto questionou, demonstrando que,
mesmo no sujeito mais moral, a formação exclusivamente privada pode levar à imoralidade.
176
“Mãe Avelina perdia-se na distância. Guiomar estava mais perto. Guiomar ria-se para ele. A negrinha curava-
lhe das saudades de casa. Se um dia tivesse alguma coisa, casaria com ela. Era com ela que gastaria o seu
dinheiro todo. Depois seu povo viria morar com ele” (LINS DO REGO, 1956, p.29)
124
Diante desta situação, sugere-se uma conclusão: é impossível, na verdade, separar o impessoal
do pessoal. Sendo ético no particular é necessário sê-lo também no coletivo.
177
Além dos movimentos revolucionários, o romance dialoga com uma outra possibilidade de redenção do
operariado: a religião. Esse caminho, no entanto, coloca-se como uma vereda aparentemente caduca, em
comparação com o movimento histórico-político que aparece substituindo a lógica religiosa. Tal como
apresentada pelo livro, esta opção tem por base a submissão coletiva e a aceitação das condições históricas. Ela
baseia-se, portanto, na esperança de um socorro divino que supõe a imagem de um Deus assistencialista tão
precário quanto o Estado. Quem representa este caminho é seu Lucas, figura honesta e pacífica que diz não
pretender nada além do bem do povo e não aspirar a nenhuma forma de poder, nem mesmo o poder do
operariado. O romance coloca este personagem em contraste com o Dr. Pestana, que, apesar de defender uma
causa mais vigente dentro do universo do livro, é apresentado como uma espécie de antilider da revolução, muito
menos admirável que o excessivamente cândido Seu Lucas.
125
em armas feito por Florêncio, observando as suas dramáticas condições, resulta aos seus olhos
num verdadeiro contrassenso:
O moleque no entanto chegou em casa pensando. Porque era que o seu Alexandre gostava da greve? O
portuga não se cansava de elogiar o movimento. Greve assim valia a pena, dizia ele. Se fosse para servir
operário, seu Alexandre não se enchia assim de tanta satisfação. Pareceu até ao moleque da bagaceira
que o rapaz de olhos vivos estava com razão. (LINS DO REGO, 1956, p.53)
178
Ibid., 56.
127
A partir da guerra civil de 1891, instaura-se no Chile um estado oligárquico que inicia
um processo de “modernização societal”179, o qual terá o seu final mais ou menos definitivo
em 1938, com o início dos governos mesocráticos. Como anunciamos, afora os episódios que
o inauguram, os fundamentos desse estado oligárquico possuem poucas diferenças
substanciais com os da República Velha, no Brasil, e com as outras repúblicas oligárquicas da
América latina180. No plano ideológico, caracteriza-se por um “afã modernizador de viés
positivista”; no econômico, pela “incorporação [do país] no mercado capitalista mundial”; no
social, “pela migração massiva e pela presença de novos atores”; e, no político, “pela
instauração de regimes teoricamente liberais, mas na prática fortemente restritivos” 181.
No Chile, esta fase passa por um período de transição entre 1920 e 1938, datas que
marcam o primeiro e o segundo governo de Arturo Alessandri, os quais, por sua vez, são
intermediados pela ditadura de Carlos Ibañez del Campo182 (1927-1931). Inicia-se então “um
proceso de retificação das condições políticas, sociais e econômicas que precipitaram as
mudanças [e a] ampliação das bases sociais do Estado que estava dando legitimidade à
179
Por “modernização societal”, Bernardo Subercaseaux compreende as transformações objetivas que
experimenta a sociedade no nível econômico, social e político. “Modernidade” e “Modernismo”, no outro
extremo, referem-se à experiência vital, aos valores e às ideias que acompanham essas transformações.
180
“Nos atreveríamos a afirmar que lo que es válido para Chile, lo es también para la mayoría de los países del
continente, puesto que durante este período, en cada uno de ellos, se entrecruza un perfil endógeno específco
(socio-económico o político-institucional) con un perfil compartido de modernización y de integración al
mercado capitalista mundial en sus instancias de producción y consumo” (SUBERCASEAUX, 1988, p. 18).
181
Ibid., p. 145.
182
Com respeito a esta ditadura e a outras que se deram na América latina durante o mesmo período (como a de
Getúlio Vargas, no Brasil), diz Armando de Ramón: “As ditaduras surgidas nesta época podem ser lidas como
uma resposta autoritária à problemática incorporação na vida política dos novos setores sociais, assim como das
condições em que essa incorporação devia dar-se ” (RAMÓN, 2003, p. 120, tradução nossa).
128
participação dos grupos médios e começava a permitir a consciência dos seus direitos às
classes baixas (RAMÓN, 2003, p. 120). O primeiro governo de Alessandri Palma foi guiado
por um programa político que incluía o fim do parlamentarismo e da rotatividade dos
presidentes, mediante reforma constitucional e reformas sociais em favor da classe média e
trabalhadora 183, e compreendeu a necessidade das leis sociais sobretudo para deter o impulso
184
revolucionário que subjazia aos acontecimentos de 1917 . No entanto, ele não foi capaz de
acabar com a oposição parlamentar.
É só no final da década de vinte, com a ditadura de Ibañez del Campo, que esse “novo
Chile” começa a adquirir verdadeira força, momento durante o qual se completou, em muitos
185
aspectos, a atividade reformadora de Alessandri . Certamente, esse governo significou um
retrocesso para as liberdades civis, pelos seus aspectos autoritários. Mas promoveu uma
modernização, que propôs um ambicioso plano de obras públicas e sociais, com base numa
ideologia pragmática que valorizava a eficiência sobre todas as coisas, desenvolvendo cada
uma das áreas públicas e criando novos e importantes organismos que tentaram conformar o
que Ibañez chamava, exatamente, de “Chile novo” 186. Em virtude dela, na década de vinte, o
país exibe uma feição nitidamente moderna:
É na década de 1920 que surgiram os primeiros edifícios em altura, os cinemas exibiam a filmografia
importada e ensinavam as novas pautas de conduta que eram rapidamente assimiladas por uma
população urbana que buscava modelos para imitar. O telefone se fazia automático e aumentava o
número de aparatos numa proporção de quase três vezes entre 1924 e 1930. Os aviões das primeiras
linhas aéreas apareciam sobre os céus, enquanto que as férias eram desfrutadas nos novos balneários da
costa e da cordilheira. Apesar do país não ter petróleo, os carros, os caminhões e os ônibus se
constituíam no novo meio de transporte. Para eles se asfaltavam caminhos, como a estrada que uniu
Santiago a Valparaíso ou a mais pitoresca, que desde 1926 beirava as escarpas do oceano Pacífico,
comunicando Viña del Mar com os balneários situados para o norte. Também o jogo entrava nesses
planos e a fins de 1930 se inaugurava um cassino nesse mesmo balneário. 187
Após este período de aparente prosperidade, vem a crise social, política e econômica
de 1929188; e, finalmente, o segundo governo de Alessandri Palma, em 1932, um governo de
183
Ibid., p. 121.
184
Ibid., p. 123.
185
Ibid., p. 118.
186
Ibid., p. 118.
187
Ibid., p. 129, tradução nossa.
188
Ver capítulo sobre Manuel Rojas desta mesma tese.
129
compromisso com a direita, que trouxe estabilidade institucional, mas que ao mesmo tempo
foi marcado por graves acontecimentos sociais, como a matança dos colonos de Ranquil e a
tragédia do Seguro Obreiro (139). A transformação nacional completa-se, assim, entre os anos
de 1938 e 1973, período que Armando de Ramón descreve com as seguintes palavras:
Existiu no país uma verdadeira república onde as liberdades e ao mesmo tempo o respeito aos direitos
das pessoas passaram a ser uma realidade sentida e exercida por todos os setores do país. Muitos
pensamos que essa etapa constitui o período histórico que, ainda tendo muitos defeitos e carências,
esteve mais próximo da definição clássica de “república”, quer dizer, a forma de governo dos povos
emanada da plena participação popular, supremo ideal de todos os tempos (RAMÓN, 2003, 119, tradução
nossa).
O Romance de formação chileno sente com força a presença das novas condições,
positivas e negativas, trazidas por essa modernidade que vai sendo progressivamente
absorvida pelo país. Talvez em correlato com o modo como esta se inaugura no Chile, quer
dizer, mediante um fato militar global de forte impacto social, elas parecem se impor ao
personagem em formação de maneira muito mais forte que as estruturas tradicionais
patriarcais com que os romances brasileiros polemizam. Surgidos de um processo social que
se iniciou com um acontecimento pontual e gradual, estes últimos parecem ter que ir ao
encontro da modernidade, colocando-se como agentes dela, dentro de um mundo simbolizado,
na maioria das vezes, como retrógrado e autoritário.
Martín Rivas já possui traços dessa nova configuração, especialmente num dos
130
Um dos pontos em comum mais importantes entre essas obras talvez seja o fato de
ambas se vincularem a uma tradição literária fortemente ligada ao tema da terra e da província
chilena, inserindo esse tópico dentro de uma preocupação estética, em que a questão do
regionalismo aparece entrelaçada com uma pesquisa formal e, fundamentalmente, com uma
pergunta pelo lugar do poeta e da poesia na modernidade.
No caso de Pedro Prado, esta relação estética com a natureza faz parte das
preocupações próprias do Mundonovismo, movimento que, na América-latina, teve a sua
gestação entre 1905 e 1919, e sua vigência entre 1920-1934189. O aspecto dominante deste
movimento, conhecido como a terceira geração do naturalismo latino-americano, foi a
representação cíclica da vida do país, com o fim de fixar as suas particularidades típicas,
mediante uma literatura autônoma que buscou a sua inspiração nas tradições nacionais, a
partir de uma visão do mundo e do homem como natureza (GOIC, 1968, p. 115). Compunha-
se, portanto, de interesses localistas, poéticos, nacionalistas e também de certos pressupostos
naturalistas ainda não superados190.
Mas o traço em comum mais importante entre essas obras, que aqui nos interessa
189
Para a definição desta geração utilizamos como referência o livro Historia de la novela hispanoamericana, de
Cedomil Goic, 1980, p. 152-156.
190
Prado inseriu-se certamente nesta geração e, ao mesmo tempo, fez parte de um momento de transição entre o
modernismo e a vanguarda (entendendo modernismo como o movimento latino-americano liderado por Rubén
Darío entre 1888-1894, que se insere dentro do período naturalista de 1890-1934). Este momento de transição
consistiu numa renovação do modernismo de Dario que, dentro da vertente naturalista, era uma sensibilidade
marginal, mas que consituiu uma das fontes literárias fundamentais dos vanguardistas da época (SUBERCASEUX,
1988, p. 119-127).
191
Ibid., p. 132.
132
destacar, é o fato de ambas se articularem como investigações que expressam uma intensa
preocupação pelas relações entre poesia e história.
Alsino materializa esta preocupação através de uma narração que pode ser lida
metaficcionalmente como uma extensa reflexão dedicada à figura do poeta – representado por
Alsino –, ao lugar que seu “canto” adquire dentro do ciclo da história e às diferentes funções
sociais nos distintos contextos que o fluxo do tempo coloca à voz do escritor. A relação entre
poesia e história concretiza-se, assim, num relato que busca criar um texto simbólico e
totalizante que, tendo por base esta visão temporal do homem e do escritor, vai nos falar sobre
o percurso geral do poeta ocidental, desde a sua fase mítica, até a fase irônica com que o livro
termina (e que, na verdade, permeia a obra inteira). A descoberta do lugar irônico do poeta,
quer dizer, a sua posição dentro da contemporaneidade, apresentar-se-á como a iluminação
central do livro, a revelação pela qual o percurso dramático do protagonista se justifica e à
que ele se entrega plenamente mediante a imagem do fogo prometeico que o consome. Dá-se,
assim, um contraponto entre o particular e o geral, entre a verdade histórica que dá sentido,
mas que, ao mesmo tempo, destrói o percurso completo de Alsino, e o esforço a-histórico e
reestruturante do livro que se concretiza na visão totalizante que o organiza.
192
Em Alsino, algumas dessas estratificações também estão presentes, mas não constituem o elemento que
consideramos central para ver as relações entre poesia e história que o livro apresenta. De qualquer forma, ele
também é, simbolicamente, o relato sobre um artista, que utiliza recursos históricos e locais próprios de um país
periférico, de uma região pré-moderna, estruturada por uma ordem fazendeira e com resquícios coloniais.
133
tom fundamentalmente épico. A consciência da condição histórica, neste caso, impõe-se sob a
forma de um desafio estilístico, a partir do qual será possível construir voluntariosamente uma
identidade poética, orientada a criar uma escrita capaz de representar tais condições históricas,
que são pessoais, mas também e sobretudo coletivas. Neste sentido, Escritura de Raimundo
Contreras constitui-se como um texto épico dirigido à formação de uma escrita forjada
“desde” e “para” as condições de um mundo periférico (latino-americano, chileno, popular,
rural, etc.), que, no entanto, resiste a se identificar completamente com esse lugar e propõe,
para eludir esse obstáculo, uma escrita em movimento, em permanente viagem pelos
universos simbólicos dos quais surge. Uma das causas desta tonalidade épica encontra-se no
fato de Pablo Rokha situar-se num outro momento literário do país, durante o qual se vive
uma consolidação e um reconhecimento da vanguarda, enquanto que Pedro Prado ainda faz
parte de um primeiro momento de recepção e apropriação das tendências renovadoras:
Pode-se dizer, como assinalávamos, que, a finais da década seguinte (1930 e depois), as novas
tendências conseguem um certo reconhecimento e se instalam como movimento vanguardista e
como uma opção estética disponível dentre outras. No entanto, tal como se depreende de
alguns dos antecedentes assinalados, o processo de recepção e apropriação das vanguardas se
concentra, no caso chileno, na década do centenário (SUBERCASEAUX, 1988, p. 75, tradução
nossa).
Diante da historicidade, por último, ambos os textos propõem alguma forma de retorno
ao mito: Alsino, aos mitos de Ícaro e de Prometeu; Escritura de Raimundo Contreras, ao mito
de Sísifo. O primeiro funcionará como a imagem de um poeta que, apesar da corrosão do
tempo, justifica e valida religiosamente o seu percurso pelo valor que a revelação tem para si
e para os homens, para além do custo individual que a sua busca significa. O segundo, como
iremos ver, funcionará como a identidade poética que o narrador encontra para uma escrita
que se define pelo voluntarismo da busca, do movimento e da autoconstrução entre os
universos simbólicos que a constituem, e não pela fixação em algum desses territórios.
A leitura que iremos empreender aqui busca se focalizar no lugar que a figura do poeta
134
e da poesia tem em Alsino, de Pedro Prado. Ao longo do livro, inumeráveis são os momentos
em que o protagonista se refere a si mesmo como “orador”, “cantor” ou “narrador de
histórias”, quer dizer, em que se tematiza não só a sua condição particular de poeta, mas
também as diferentes modalidades que essa função adquire nos distintos momentos do livro.
Surgiu, por isso, o desejo de explorar exaustivamente esse traço do texto e de abranger a
totalidade de instâncias em que o tema do autor ou do poeta, assim como o da poesia nas suas
diferentes formas de expressão (oração, lenda, canto, narração, representação etc.), aparecem
ao longo do romance.
Como já foi anunciado, o nosso interesse por este tema surge da ideia de que Alsino
pode ser lido como um texto metaficcional em que se simboliza o percurso global do poeta
ocidental, funcionando como uma ficção que consegue totalizar as diferentes fases pelas quais
a figura do poeta e da poesia tem atravessado ao longo da história. Nesse sentido, pensamos
que esta obra faz parte do que Northrup Frye distingue como a literatura temática
enciclopédica, cujo foco não é “a ficção interna do herói e da sua sociedade” (FRYE, 1991, p.
77-78, tradução nossa), mas sim a “ficção externa que é uma relação entre o escritor e a
sociedade do escritor” 193. Do mesmo modo, seu elemento central não é o protagonista interno
da história, mas, principalmente, a figura do escritor e do poeta, cuja presença no horizonte do
relato estabelece “um vínculo com o leitor que atravessa a história e que pode ir aumentando
até que da história nada reste, apenas o que o poeta comunica ao leitor” 194 195.
193
Ibid., p. 78.
194
Ibid., p. 78.
195
A preocupação pelas relações entre o autor e a sociedade expressou-se também, no caso de Pedro Prado, no
grupo “Los diez” que este liderou e “cuja ação se desdobrou fundamentalmente entre 1914 e 1918”
(SUBERCASEAUX, 1988, p. 124, tradução nossa). Este grupo foi um intento e uma proposta de liberação cujo
Leitmotiv era “a beleza como alma do mundo”, e que teve claros elementos modernistas (no sentido hispano-
americano) “como a espiritualidade, a preeminência do estético, a relação entre a beleza sensível e a beleza ideal,
e a crítica à retórica” (Ibid., p. 124). “Na proposta d´Os Dez nos encontramos com uma sensibilidade fronteiriça,
em que confluem elementos modernistas como os assinalados com traços de corte vanguardista, que se
expressam na ideia de que, para os artistas verdadeiros, as tendências ou escolas são somente restrições inúteis;
também gestos lúdicos e irreverentes” (Ibid., p. 124).
196
O foco deste trabalho concorda plenamente, então, com o afirmado por Guillermo Gotschlich sobre a poética
do romance de Pedro Prado: “Nas narrações de Prado se outorga uma notória primazia à linguagem e aos meios
de expressão, com o propósito de gestar um pensamento crítico não só sobre a narrativa e a poesia, mas também
135
uma forma literária totalizante, em que essas questões são tratadas de um ponto de vista
abrangente, atualizando, mediante a história de Alsino, cada uma das modalidades propostas
por Frye: o modo mítico, o modo do romance, do mimético elevado, do mimético baixo e do
irônico197. Descrevendo, assim, o drama do poeta e da sua narrativa dentro da nossa tradição,
que vai passar de porta-voz e instrumento dos deuses a cantor da condição trágica de um
poeta sub-humano, isolado da natureza, da sociedade e dos outros homens.
da arte e das suas variadas manifestações. Outro dos pontos nos quais Prado indaga com frequência é a situação
do artista, fazendo parte de grupos ou tendências, ou enclaustrado na sua solidão devido ao olhar plural que tem
sobre o mundo. Distintas cenas ou fragmentos de Alsino e Un juez rural nos chamam a refletir sobre assuntos
que se convertem em temas de controvérsia, tanto grupal como interna e reflexiva, sobre a situação do escritor,
dos gêneros literários e sobre a função do romance no momento histórico em que nosso autor escreve e publica
as suas obras” (GOTSCHLICH, 2010, p. 7, tradução nossa).
197
1. O modo mítico: em que o herói é um ser divino e, como tal, é superior em classe aos demais homens. 2. O
modo do romance (da lenda, do conto popular e dos Märchen), em que o herói é superior em grau aos demais
homens e ao meio ambiente, realiza ações maravilhosas, mas ele mesmo se identifica como ser humano. 3. O
modo mimético elevado da maior parte da épica e da tragédia, em que o herói é um chefe superior em grau aos
demais homens, mas não ao meio ambiente natural. “Tiene autoridad, pasiones y poderes de expresión mucho
mayores que los nuestros, pero lo que hace está sujeto tanto a la crítica social, como al orden de la naturaleza”
(FRYE, 1991, p. 54, tradução nossa). 4. O modo mimético baixo (da comédia e da ficção realista), em que o
personagem não é superior nem aos outros homens, nem ao meio ambiente, constituindo-se como mais um de
nós: “Respondemos a um sentido de sua comum humanidade e exigimos do poeta os mesmos cânones de
probabilidade que descobrimos em nossa própria experiência” (Ibid., p. 54). 5. E, por último, o modo irônico, em
que o personagem é inferior em poder ou inteligência a nós mesmos “de modo que nos parece estar
contemplando uma cena de servidão, frustração e absurdo” (Ibid., p. 55).
136
irmão, em que ele cai da árvore. Em sintonia com a imagem da elevação e da queda, prima
aqui o simbolismo dual, na oposição entre Alsino e Poli e, mais sutilmente, no contraste entre
a corcunda que Alsino parece estar cultivando nas suas costas após o acidente, e as asas que,
na verdade, estão nascendo nele. O par asas-corcunda instala uma oposição anjo-monstro que
traz, por sua vez, o apocalíptico e o demoníaco, que os dois extremos do relato também
parecem anunciar: a elevação mítico-paradisíaca e a queda infernal. Por último, aparece o
tópico de um mundo precário em processo de destruição: dunas que devoram o universo geral
da avó de Alsino, areia que come a casa, sugerindo a ideia de um mundo efêmero e trazendo a
presença visual da ação do tempo histórico, protagonista do percurso que mais tarde será
representado:
(...) Como ninguém as vê, as dunas avançam com mais pressa que a que tem quando o sol
brilha (...). Essa noite, em cada casa também se escuta um ruído. É o crepitar fino e constante
do grão de areia ao bater contra as folhas secas coriáceas. Nem por um segundo o tremor cessa;
já é quase imperceptível, como uma fraca garoa que se côa e cai; já sobe de tom mais e mais
até assemelhar-se ao ruído do óleo fervendo; já se atenua e cessa, quase não se escuta, mas é
preciso perder a esperança de que alguma vez conclua, porque sempre há um grão de areia que
escorrega (PRADO, 1983, p. 9-10, tradução nossa).
Após este primeiro exórdio, vem a parte II que estende do capítulo VI ao XII, onde se
narra o processo de transição para o terreno mítico que se instalará na parte III do livro. Esta
parte possui seis fases que parecem desenhar um percurso ascendente, mas ao mesmo tempo
marcado pela possibilidade da queda: é uma elevação, cuja condição de base é a condição
humana de Alsino. Começa pelo capítulo “Os tordos198”, momento que, simbolizado pela
imagem de pássaros adestrados, mostra um Alsino ainda limitado, mas, ao mesmo tempo, em
absoluto estado de disponibilidade e abertura mística: “ – Quer levá-los? Não vai ao povoado?
– Qual povoado? – Como assim? Ah! Sim. Você disse que não conhece essas regiões. Bem.
199
Então, me diz, o que buscas? – Nada – disse com tranquilidade Alsino” . As coisas
começam a transfigurar-se, ele vai abrindo-se ao canto humano e continua ouvindo “um
chamado”, mas um chamado “ruidoso” e “indecifrável”, cuja origem ainda não lhe é revelada.
198
Deixaremos em itálico as palavras para quais não encontramos uma tradução em português.
199
Ibid., p. 35.
137
passo a mais no seu processo de elevação. Ele começa a realizar certas funções do poeta em
fase mítica: a função de dar esperança aos desvalidos, aos fracos e aos fracassados da região,
que se aproximam dele como de um oráculo: “Só as crianças e os garotos riem de mim e me
dirigem saudações sarcásticas. Mas os amantes melancólicos, os jogadores arruinados me
oferecem com os seus olhos cordial acolhida, enquanto se aproximam cautelosos a tomar o
que eles acham de bom agouro” (PRADO, 1983, p. 40, tradução nossa). Canta ao sol e a Deus,
e inicia as suas primeiras manifestações como poeta órfico, ao assumir, mesmo que
intermitentemente, a função de porta-voz da natureza: “E também posso fazê-los cantar,
matagais, arbustos e pequenas árvores! As trepaderas cantam, os boldos novos espremem a
200
seda, os maitenes simplesmente choram . Dá-se, assim, uma primeira mudança no seu
caráter, a qual é totalmente metaliterária: a transformação de ser individual a ser divino e,
portanto, de personagem a herói: “Ninguém gosta de mim por mim, mas porque eu faço
brilhar as suas esperanças” 201.
“Sabe converter moedas sujas em anéis brilhantes e brincos de prata? O que você deve fazer para que
seu pássaro ganhe nas competições em que se aposta na ave que dá mais cantos ou repiques de
chamadas, em menos tempo? Muitas outras coisas você poderia saber; coisas pequenas, sim, mas que
bastam para que vivam pessoas livres, como nós, que se contentam com pouco.” 202
200
Ibid., p. 42.
201
Ibid., p. 40.
202
Ibid., p. 48.
138
Por que são tão tímidas? Todas mudas e inquietas. Nada farei a vocês. Como recuperar a sua confiança?
Querem que conte a vocês uma história? – Sim, sim – dizem as inumeráveis vozezinhas das folhas. Os
ventos reaparecem confiantes e se aproximam. Alsino, com voz clara e insinuante e gestos singelos,
narra-lhes a história, de nunca acabar, que diz assim (...) ”(PRADO, 1983, p.58, tradução nossa).
Antes de empreender voo durante o capítulo XII, o mundo pugna por desviá-lo. É o
que se ilustra em “Vagando”, onde Alsino aparece esquivando a cidade, dentro da qual é
reconhecido como um monstro e não como ser em processo de divinização. Imagens de
pontes e caminhos que parecem querer traçar o destino a Alsino instalam-se no cenário como
o pano de fundo da elevação que está por vir. Instaura-se com essa imagem a ação do tempo
histórico, da “prosa do mundo” que será a protagonista da história de ascenção e queda a ser
apresentada.
Por fim, Alsino empreende voo no capítulo XII. O mundo, inclusive o mundo humano
da antes lúgubre cidade, transfigura-se por completo diante dos seus olhos:
Da planície sombria por onde ía Alsino, o espetáculo da pequena cidade era de uma magnificiência
fantástica. Não podia ele reconhecer nesses castelos de ouros resplandescentes as torres da igreja
paroquial, o moinho ruinoso e as casas vulgares e as pocilgas miseráveis. 203
203
Ibid., p. 66.
139
desse voo cujo chefe é o tempo: “Minhas asas fatigadas me levam novamente para a terra.
Não precisaria delas para conhecer o caminho que à terra conduz. Quanto mais alto eu subo,
mais poderoso e difícil de seguir desdobrando sinto a forte mola que parece me unir a ela.”
(PRADO, 1983, p. 69).
A terceira parte de Alsino é uma espécie de utopia em que Pedro Prado, através do seu
herói, remonta-se à fase mítica da literatura ocidental. Nessa etapa, como dissemos, o poeta
caracteriza-se por ser um porta-voz dos deuses e, enquanto tal, ele mesmo uma criatura
divina. A sua função consiste em ser “um oráculo inspirado, entrega-se amiúde ao êxtase e
escutamos relatos sobre os seus poderes” (FRYE, 1991, p. 81, tradução nossa); sendo o seu
labor o de “revelar o Deus em cujo nome fala” 204.
Em diversos momentos dos capítulos que compõem a fase mítica de Alsino, o autor
vincula o momento do voo com o motivo do “canto” e “da vontade de falar”, transformando o
evento da “elevação” num tópico metaficcional: “Cantemos, oh! vozes, oh! sentimentos, oh!
desejos incompresíveis; me ajudem todos e cantemos juntos, ao compasso das asas e do ar
205
que vão tornando melodioso; cantemos esta necessidade de voar e voar!” . O autor refere-
se, assim, às origens do poeta, às suas funções primordiais e às particulares relações com o
mundo e com o tempo que em determinados contextos e sociedades lhe são atribuídas. Pedro
Prado recria (não sem romantismo) essa fase mítica, a qual será, dentro do livro, a experiência
primordial e o material essencial de muitos dos cantos futuros do poeta Alsino.
Nesta fase mítica, a poesia, como foi dito, adquirirá a forma de um “canto”, o que se
vê logo no título do primeiro capítulo desta parte (“O canto”). O símile deste canto será o
som dos diferentes pássaros com que Alsino convive durante o dia: choroyes durante a
madrugada, andorinhas durante a tarde. O seu canto, portanto, não se origina da civilização,
mas expressa a própria natureza e surge dela. Enquanto tal, ele está para além das condições
204
Ibid., p. 81.
205
Ibid., p. 73.
140
O canto de Alsino terá também um tempo especial, pautado pelo ciclo diário dos
astros que, por sua vez, farão surgir formas poéticas particulares ajustadas às diferentes fases
do dia. Durante a alvorada, esse será um “canto oração”, acompanhado de “diálogos
monológicos” entre ele e Deus. Por meio deles, Alsino fala ao sol nascente como se fosse uma
divindade, descobrindo, ao mesmo tempo, a sua própria função sagrada. O canto estratificado
pelas fases do dia, assim, cria um ciclo de transfigurações: revela o Deus na natureza que, por
sua vez, confirma a função sagrada do poeta cantor. Do mesmo modo, o capítulo XV (“A
aurora”) em que este se insere, perde o seu caráter temporal e adquire a forma de um
momento simbólico no percurso do próprio poeta mítico: o momento em que o Deus
amanhece em si de forma definitiva. Durante a noite, por sua vez, o canto adquirirá a forma
de um “noturno” (capítulo XIX) que, por oposição a esse canto-oração, será a primeira
expressão do declínio da sua condição eterna.
A função de Alsino como poeta-mítico não lhe é revelada de forma imediata. É o que
se mostra no capítulo XVI do livro, onde o narrador relata as “aventuras” do herói, quer dizer,
já não as formas que compõem o canto do poeta, nem o tempo em que elas se inscrevem, mas
as ações próprias desta fase. Esses acontecimentos são, na sua maioria, periféricos, não
afetam o rumo das coisas e tem a particularidade de simplesmente retratar as diferentes
maneiras de o herói interagir com o meio. Dentro delas podem se distinguir as aventuras
adaptativas, que estão ligadas à luta pela sobrevivência que empreende Alsino dentro da
natureza, e as aventuras lúdicas (narradas, mais tarde, no capítulo XVI sobre os potros), em
que não há nenhuma lógica darwinista envolvida e em que Alsino joga desinteressadamente,
quase esteticamente, com ela.
Mas a aventura mais notável é a que tem a ver com a descoberta da função mítica de
Alsino: a cena do encontro entre ele e o velho que se ajoelha aos seus pés em busca de
206
“ (...) se as asas só com voar já fazem seu canto” (Ibid., p. 72).
141
libertação e perdão pelos seus pecados. Durante essa cena, o próprio herói descobre e de certa
forma rejeita essa função, pois ela tem a ver com um exercício moral da religião (a de redimir
o campesino), que não se ajusta às revelações de que Alsino é porta-voz. A cena contrasta,
portanto, com outro momento de autorreconhecimento de Alsino que já comentamos: o do
canto na alvorada, em que a sua função mítica foge dessas formas mais próximas das formas
católicas, e se ajusta a uma lógica panteísta207, dentro da qual o seu papel não é o de perdoar
pecados, mas o de transmitir uma visão de Deus como ser indissociável da natureza. Ambos
os capítulos, assim, podem ser lidos como complementares: sob a forma de uma antítese,
põem em jogo duas visões de mundo e duas formas de religiosidade, dentro das quais se
define, de passagem, o universo simbólico em que se apoia o autor de Alsino e os conteúdos
religiosos que ele quer transmitir mediante a sua história.
O final da fase mítica começa durante o capítulo XVIII, “No verão silencioso”, o qual
é dedicado à iniciação sexual do herói. Nele mostra-se o primeiro descenso do protagonista do
estado de poeta divino para o estado de poeta humano. A causa desse descenso é o chamado
da libido e dos impulsos “baixos” do corpo que sente Alsino, os quais são simbolizados pelo
clima de seca e calor extremo que toma conta do meio ambiente: “Quietos sob esta tarde
canicular, que nenhuma brisa percorre, há na sua imobilidade a atitude de uma espera
angustiante” (PRADO, 1983, p.92, tradução nossa). Como um reflexo dessa erotização de
Alsino, toda a natureza sexualiza-se:
Com os lampejos do diamante sobre a terra preta do seu leito, lambendo as raízes contorcidas e
revoltas, como serpentes na luta por beber, brilha a linfa pura. As folhas secas caem, o arroio as acolhe e
transforma em barquinhos que derivam, joviais, seguindo a louca e rápida corrente 208.
Por contraposição, a água representará a sede saciada pela mulher que emerge do
coração do rio. Após o encontro com ela – e continuando com o registro simbólico – parece
nascer um outro Alsino, o Alsino humano: “Ao olhar para baixo viu na água, agora quieta e
207
Esses dois episódios contrastados servem como casos que relativizam de forma concreta o que é proposto por
Lucía Guerra, que vê na história de Alsino a influência de uma visão de mundo cristã proporcionada por Tolstoi
“mediante a qual é possível encontrar o verdadeiro sentido da vida e da morte” (GUERRA, 1983, 32, tradução
nossa), em meio a um cenário internacional de pós-guerra.
208
Ibid., p. 92.
142
dormida, outro ser a ele parecido que voava se afastando para as profundezas da terra”
(PRADO, 1983, p. 97, tradução nossa). O final deste tempo mítico é delimitado, a grandes
traços, pela tempestade do capítulo XX, que marca o fim de uma era e o início de outra,
fechando o ciclo das estações que pautaram esta fase (primavera, verão e outono; nascimento,
apogeu e declínio). Na verdade, ela estende-se brevemente para a quarta parte do livro (o
capítulo XX), onde o mundo mítico será observado de um ponto de vista humano, e a figura
divina do poeta será transformada em lenda. Pedro Prado põe em ação duas formas de lenda:
a oral, que corre entre os moradores da região209 e a lenda escrita, difundida pelos jornais do
país: “Um jornal de província comenta a história com tal ingenuidade, que os grandes jornais
das cidades a aproveitam vários dias para se burlar dele e aumentar o número de suas edições.
Por mais de uma semana é tema dos mais engraçados comentários” 210.
A quarta parte de Alsino é como uma imensa antologia que consegue compilar quase
todas as fases da poesia ocidental, desde o modo romântico até o modo irônico, com que
fecha o livro.
Na poesia do modo romântico, Deus é tirado de cena e o poeta converte-se num ser
humano cuja função consiste essencialmente em recordar. A sua fonte de inspiração, portanto,
não será a divindade, mas a memória, a qual atua como expressão humana do seu caráter
divino. Iluminados por ela, os poetas recordam um sem-fim de assuntos: catálogos de reis e
tribos, mitos e genealogias de deuses, provérbios da sabedoria popular, tabus, dias fastos e
nefastos, sortilégios, façanhas de heróis tribais (FRYE, 1991, p. 83). A era desses heróis é, em
grande parte, nômade, e os seus poetas são, frequentemente, vagabundos. Mas, se o poeta não
se move, é a poesia que viajará, mediante contos folclóricos que seguem as rotas do comércio,
e baladas e romances que retornam às grandes feiras 211.
Em Alsino, esta fase dá-se entre os capítulos XXIII (“Prisioneiro”) e XXIV (“Vega de
209
“De boca em boca corre a notícia do anjo ou demônio que, voando pelo ares, visita a região” (Ibid., p. 118).
210
Ibid., p. 119.
211
Ibid., p. 84.
143
Com temor e reticências, depois mais tranquilo, ao se assegurar de que nada lhe faria, Alsino foi
contando, contando, com voz entrecortada, algo da sua estranha existência. O curso do breve e
maravilhoso relato serenava os incrédulos semblantes. Os policiais perdiam, com a sua tendência
irônica, os últimos restos da sua ebriedade. Escutavam-se tosses sufocadas no quarto vizinho e suaves
rangidos de um leito, em que, pesadamente, alguém se mexia 212.
Escassa em terra de rega, férteis potreiros vizinhos aos barrancos do rio; rica em cachos trigueiros; com
velhos vinhedos de fama local; abundante em montanhas virgens, e com léguas de serranias, aptas para
o pastoreio de temporada, é um feudo valioso e pitoresco. Vindo do povoado, ao passar pelo porto, já
desde a cruz de madeira ali plantada para lembrar um cruel assassinato, cruz a que sempre iluminam
velas humildes que começam a brilhar mais e mais na medida em que o crepúsculo se obscurece,
enxergam-se ainda distantes, na escura profundeza deste lado do rio, que nessa hora reflete o moribundo
resplendor dos arrebóis, umas luzes que piscam amigas atrás dos confusos arvoredos. São as casas da
fazenda.
O raro viajante que atravessa por essa solitária região, iniciada a noite, ao sentir nas suas carnes a
primeira coçeira do ventinho gelado que se levanta, enquanto segue caminho adiante, contempla
212
Ibid., p. 130.
144
longamente, com olhos de inveja, a doce reclamação dessas luzes (PRADO, 1983, p.134, tradução
nossa).
A partir do capítulo XX e até o capítulo XXXI, Pedro Prado situa Alsino num novo
contexto e com novas funções. De poeta recordador ele passa a fazer uma poesia centrada na
figura da mulher amada (XXIX “Canto do amor”), declarando a sua posição de poeta-amante.
O canto organizado ao redor de Abigail e o novo ambiente em que Alsino se encontra, ao
ficar como prisioneiro na fazenda de D. Xavier, vinculam este momento do romance com a
fase do mimético elevado. Nela, a poesia traz uma sociedade mais fortemente estabelecida em
torno da corte e uma perspectiva centrípeta substitui a força centrífuga do romance (FRYE,
1991, p. 85), sendo o seu tema central o olhar dirigido à amada, ao amigo ou à divindade, que
parece ter algo do olhar da corte sobre o soberano ou sobre o orador, ou mesmo do público
sobre o ator. O poeta nesta fase é eminentemente um cortesão, um conselheiro, um
predicador, um orador público ou um mestre de decoro, sendo o teatro o meio principal das
suas formas ficcionais 213, e o tema do mando social ou divino, um dos seus assuntos centrais.
O ano ameaçava continuar pródigo em calamidades. Desde o outono passado, que se despedira
com uns dias horríveis, as coisas íam de mal a pior (...) Quando chegou uma trégua de escassos
dias, começaram a cair, como corvos sobre um campo de batalha, as notícias abrumadoras: as
últimas pontes, que ainda resistiam, estavam quebradas; os caminhos, cortados por fendas e
desmoronamentos, e quadras e quadras, das mais fecundas terras de ribeira, carcomidas e
213
Ibid., p. 36.
145
engolidas pela corrente do rio. A metade do povoado de Las Juntas, ali onde o Reinoso recebe
a torrente de Las Loicas, tinha sumido. Faltavam duas crianças e alguns animais. Desolação
caindo sobre misérias, caíram as águas e as ilhas, que formaram os braços do rio antes férteis e
sorridentes, cobertas de arbustos, viam-se arrasadas e transformadas em pedregais estéreis e
brancos como ossos (...). Quebradas as bocatomas dos canais de irrigação, entrada já a
primavera, uma seca irremediável no primeiro tempo se deixou sentir. Mas ela bastou, junto
com o retorno de um ardente sol, para que começassem as epidemias no gado (...). Não se
detiveram aqui os açoites caídos. Não passou nem um mês quando uma epidemia de febres
irreprimíveis começou a se espalhar entre os povoadores desses remotos campos (PRADO,
1983, p. 61-63, tradução nossa).
O domínio desses novos valores, em detrimento dos valores divinos de que Alsino era
porta-voz, expressa-se em três cenas: na cena dos jornalistas, na dos gringos e, por último, na
cena do aeroplano. Em todas elas, ao mesmo tempo, parece estar presente alguma noção
formal ligada à teatralidade. Com os jornalistas, o poeta cumpre a função de ator enquanto
impostor: “O ruim é que, cedo ou tarde, o público enganado dará a você um golpe, e à prisão!
214
Sim! À prisão! Com certeza!” “ – Já te contarei, Gerônimo! Imagina, quis nos
enganar…mas eu o vi! É um fenômeno maravilhoso! Que coisas se podem contemplar nos
215
dias que se passam!” . Com os gringos, ele realiza a função patética e triste de ator
enquanto mercadoria: “ – Banegas, ¡que entre Alsino! – gritou o fazendeiro. O prisioneiro,
empurrando a porta, mostrou o seu rosto –. Adiante! Aproxime-se!– continou mal-humorado
dom Xavier –– O que você está esperando para tirar a manta? Alsino obedeceu com um pudor
216
estranho. Os gringos, para observá-lo, nem se moveram das suas cadeiras” . Por último,
temos a cena do aeroplano, em que o poeta cumpre a função de espectador e, mais tarde, de
vítima da sua própria caducidade e da falta de legitimidade que o seu voo poético de antigo
cantor mítico tem diante do voo técnico-mecânico do outro filho de Reinoso:
Os gritos, vivas e juramentos dos bêbados se silenciaram diante de uma exclamação enorme e jubilosa
que subia da pradaria. O aeroplano empreendia novamente voo. Distraídos um instante, quando os
bêbados quiseram continuar perseguindo Alsino, este, o corpo machucado e ensanguentado, deslizando-
se entre as brenhas, fugia sem ser visto (PRADO, 1983, p.189).
214
Ibid., p. 176.
215
Ibid., p. 176.
216
Ibid., p. 180.
146
A reclusão do prisioneiro pouco a pouco vai se afastando. Banegas, diante do tácito assentimento de seu
patrão, acabou trazendo Alsino com ele cada noite, quando, já tarde, chega a hora em que os
empregados da fazenda, que a isso tem direito, vem com os empregados comer na cozinha das casas
(PRADO, 1983, p.192, tradução nossa).
Do clima triste e gregário que domina a fase anterior, o poeta parece, mesmo que por
tempo breve, recuperar a sua centralidade e a sua legitimidade diante de um povo agora
totalmente caracterizado e vivo. O ambiente deprimente de ruptura da ordem cósmica pela
ordem mecânica é substituído, assim, por um festivo e alegre capítulo, em que o que
predomina é o canto, a poesia e a festividade dionisíaca em torno do vinho. Passamos do
morto ao vivo, do ordinário ao genial, acessando, portanto, uma nova fase: a do mimético
baixo. Nela as formas ficcionais tratam de uma sociedade fortemente individualizada e a
analogia do mito converte-se no ato de criação individual (FRYE, 1991, p 86). Identificamos
este traço logo nas primeiras páginas deste capítulo, um de cujos esforços principais é o de
caracterizar e descrever, em detalhe, cada um dos sujeitos da casa: O mordomo Régulo; a
cozinheira Candelária; o domador Calixto; Florêncio, o bodegueiro; Margarida, a mulher do
serviço; Dona Benta, a ama; e Don Santiago, o cego lírico vagabundo. Reunidos para
participar do sarau, todos estes personagens distribuem-se ao redor de Alsino, que, ocupando
o centro da cena, desdobra as suas histórias extensamente pela primeira vez ao longo do livro.
Seguindo as convenções do poeta romântico, Alsino fica aqui “invulnerável aos assaltos do
217
mal efetivo” expostos na fase anterior, e transforma-se num ser “extraordinário que vive
numa ordem de experiência mais alta e imaginativa que a da natureza” 218, e num “construtor
219
de epopeias mitológicas” , baseadas nas diferentes façanhas vividas por ele durante o seu
período de poeta-mítico.
217
PRADO, op.cit., p. 87.
218
Ibid., p. 87.
219
Ibid., p. 87.
147
Diante dos olhos ávidos desses lavradores e montanheses, desdobrou-se a riqueza perdida nesse lugar
oculto. Parece que veem os numerosos guanacos mortos, esvaziados por condores, conservar intactas as
desejadas peles, devido ao ar rarefeito e seco da altura. Alsino começa uma nova história. (PRADO,
1983, p.197-198, tradução nossa).
Nesta fase, destaca-se também o potencial criativo do poeta e dos homens que o
rodeiam, os quais parecem adquirir um novo rosto diante das novas circunstâncias. Para além
da lógica social que coloca este público na parte mais baixa da sociedade, ele renasce aqui e
se transforma num conjunto de artistas: artistas do seu trabalho e artistas enquanto tais, como
vemos nas alusões ao pintor campesino, autor dos antigos afrescos da capela ruinosa pela qual
os personagens passam em busca de vinho220; e também no último personagem que entra em
cena:
Antes de que pedissem, o cego pegou o seu violão e, rasgando as cordas, começou a cantar entre o
compassado coro de Florêncio e dom Ñico. “Ai! Ai! Que eu peço! / Ai! Ai! Que eu não ouso…/
Sempre, duvidando, de novo, / O tempo passou, / E, ai...! Sim! E, ai…! / Não! / Xingado o tonto ficou!”
– Bem merecido o teve... Aprendam crianças! – gritou dom Ñico –. Mas não se apresse, compadre.
Vamos, primeiro, limpando a voz. E voltaram a beber. “Há no campo uma erva / chamada de borraja…
Reataram-se as canções. Mas logo começou a chegar o esquecimento, e logo subitamente a alegria e a
boa liberdade.” 221
Fixa-se, assim, o último traço do poeta do mimético baixo: o seu “impacto social
revolucionário” 222. Após esta cena, a fase fecha-se e passamos à quarta parte, composta pelos
220
“Entre os enormes barris, apareciam, pintados nas paredes, atributos religiosos da antiga capela, e santos
grotescos, obras de algum artista campesino” (Prado, 201)
221
Ibid., p. 203.
222
FRYE, op.cit., p. 88.
148
Com o avançar das páginas, de fato, esta contradição irônica que estabelece relações
de continuidade entre o bem e o mal, entre a elevação e a queda, a sabedoria e a limitação vai
se instalar como perspectiva dominante, primeiro, das páginas finais do livro e, mais tarde, do
livro na sua totalidade. Isso explica, por sua vez, o fato de o romance estar atravessado do
início ao fim pelo símbolo da dualidade: Alsino-Poli, subir-descer, jovem-velho, Alsino-
Abigail, voo mítico-voo técnico, Rosa-Etelvina, etc.
No que se refere à última parte do livro, o modo irônico estabelece-se de forma pura.
Do ponto de vista do enredo, a sensação de estar acompanhando uma cena de “servidão,
frustração ou absurdo” (FRYE, 1991, p. 55) toma conta do leitor; mas, do ponto de vista
temático, vemos que o que há é a representação de uma nova imagem do poeta. Alsino não é
mais o ambicioso porta-voz dos deuses, nem a voz individualizada de uma sociedade de
homens, mas a figura humilde de um curandeiro cego, afastado dos humanos, rodeado de uma
natureza singela e protetora, e exercendo o papel de curador do corpo e da alma do povo. O
seu discurso é marcado pela sobriedade, pelo ceticismo diante dos próprios impulsos titânicos
e pela consciência humilde das suas limitações (simbolizadas pelo seu estado de cegueira). A
sua atitude é, portanto, totalmente nova: tem pretensões mínimas e seu tema central, como
acontece em geral com os poetas desta fase, será “o tema da visão pura, mas fugitiva, do
momento estético intemporal, da Illumination de Rimbaud, da Epifania de Joyce, do
Augenblick do moderno pensamento alemão, e do tipo de revelação não didática implícita em
termos tais como simbolismo e imaginismo” (FRYE, 1991, p. 88). Este tema se atualiza, no
caso de Alsino, em orações, delírios e cantos inspirados, que não repousam sobre uma visão
mítica total, mas em momentos de clarividência que surgem precisamente da consciência da
sua limitação:
149
“Permite, oh meu Deus!, louvar a limitada razão que você me deu, pois a proximidade dos seus mais
estreitos limites é o que mais rápido a faz duvidar de si mesma, e onde ela duvida, uma vereda nasce;
uma vereda que vai serpenteando na tua busca (PRADO, 1983, p.255, tradução nossa).
A esse instante de visão fragmentária e limitada tanto na sua forma, quanto no seu
conteúdo, o poeta entrega-se por completo. Isto é simbolizado pela imagem final de Alsino
transfigurado em fogo, imagem de entrega radical a uma verdade que justifica a totalidade do
seu percurso. Novamente, isto nos remete aos poetas da fase irônica, os quais viam na própria
obra o único e exclusivo objetivo da existência: “(…) renunciam à retórica, aos juízos morais,
e a todos os outros ídolos da tribo, e dedicam toda a sua energia à função literal do poeta
como fazedor de poemas” (FRYE, 1991, p. 88, tradução nossa), já que “têm mínimas
pretensões no que se refere à sua personalidade, e as máximas ambições no que diz respeito à
sua arte” 223. Por sua vez, o gesto final de se entregar por completo ao fogo de uma iluminação
e que lembra, inevitavelmente, o Prometeu, expressa mais uma tendência da poesia nesta fase.
Qual seja: a de retornar da ironia ao mito, do irônico ao oracular, como fez Rilke ao dedicar a
sua vida a escutar a sua voz oracular interna; ou Nietzsche, que proclamava o advento de um
novo poder divino no homem 224. Em Alsino, o gesto expressaria a vontade de contra-arrestar
os efeitos da história nas relações entre o poeta e uma sociedade em progressiva
secularização, resguardando o seu lugar de porta-voz de uma verdade que, mesmo subjetiva,
não abdica da possibilidade de se contatar com uma visão total, aliás, dada pelo próprio livro.
223
Ibid., p. 88.
224
Ibid., p. 90.
150
comprovamos a veracidade desta filiação, pois vemos que as afinidades entre Prado e este
autor da vanguarda chilena são profundas, e que Escritura de Raimundo Contreras é, em
parte, uma radicalização das tendências poéticas que já estavam presentes em Alsino. O
impulso metaficcional intensifica-se: o enredo se perde e o drama poético-discursivo toma o
centro da cena. Por outro lado, a tendência popular-localista-latino-americanista aprofunda-se,
ao transformar-se numa difícil empreitada estética e estilística. Da prosa poética passamos a
um versolivrismo radical. E, por último, a busca por uma identidade mítica resolve-se, como
veremos, mediante a apropriação de uma figura, a de Sísifo, que não pretende esgotar os
significados do texto mediante um misticismo hermético (Icarista, Prometeico), mas expandi-
lo até chegar ao princípio da escrita como ação que o próprio De Rokha teorizava nesses
anos225.
Este processo de escrita apresenta-se como um duelo entre duas ordens simbólicas: a
vida, a natureza, a matéria e a saúde, por um lado; a morte, a cidade, a razão e a doença, por
outro. Quer dizer, dá-se como uma alternância de universos que se organizam, desorganizam
e reorganizam entre si pautados pelo ritmo dominante da sua mútua anulação, o que nos leva a
visualizar este poema como um retorno ao mito de Sísifo. Após a encenação desse processo
de construção e destruição, o autor parece atualizar esse mito como imagem de identidade
para esse sujeito diferente em classe, mentalidade, natureza, sexo e orientação (de “língua
obreira”, “imaginário difuso confuso”, “animal de inclinações derrubadas”, de “virilidade sem
caminho”, “sem caminho”) e que não deixa de ser representação do novo sujeito latino-
225
“Em Equação, se retoma a polêmica sobre a concepção da arte como cantar do aedo genial para seu povo,
mas também como um modo de atuar sobre o mundo. Essa dupla articulação – autonomia e ação significativa –
verte-se no texto poético Escritura, em que também coexistem antinomicamente as duas tendências” (NÓMEZ,
1988, p. 93, tradução nossa).
151
americano que se está formando por aqueles anos226. O seu poema sugere, assim, uma
identidade em movimento, cuja condição é o estado voluntarioso da sua autoconstrução e sua
capacidade de integrar o cosmopolita e o local, o abstrato e o material, o europeu e o latino-
americano, enriquecendo-se mutuamente, sem que nenhum deles se instale de forma
definitiva.
Esse sujeito, esse projeto de escrita e a oposição entre as duas ordens simbólicas
mencionadas anunciam-se já no primeiro capítulo do livro, em que são tematizadas as
condições de enunciação do canto que se desenvolverá ao longo do texto.
226
Este sujeito, como diz Naín Nómez, “Tem características que se formam de 1) Traços pessoais e
autobiográficos de Pablo de Rokha; 2) Alguns traços da figura real-mítica do loiro Carioca, mais uma abstração
arquetípica do campesino chileno” (NÓMEZ, 1988, p. 97, tradução nossa). “O loiro Carioca é um personagem
extraído da vida real e que reaparece várias vezes nos poemas. Foi um arreeiro que o autor conheceu durante a
sua infância e que tinha características de contrabandista cordilheirano e herói romântico. Sua imagem persistiu
na memória do menino e nos textos” (Ibid., p. 97). Podemos dizer, portanto, que este representa o novo sujeito
latino-americano, provinciano e vinculado à terra – o pequeno proprietário a que de Rokha estava próximo, mas
também o inquilino pobre que ele quis representar –, que se está emancipando, no âmbito nacional, da ordem
oligárquica, e no âmbito internacional, da condição de periferia cultural.
227
“sublimidade que resplandece furiosamente por dentro das águas burguesas” (Ibid., p. 24).
228
Ibid., p. 24.
229
Ibid., p. 25.
152
A interação desses dois cenários, como já foi dito, realizar-se-á mediante o exercício
da memória, a qual adquire duas feições: a memória linear, sujeita a uma visão cronológica
do tempo; e a memória como totalidade. A primeira possui dois movimentos: do presente ao
passado (memória que se constrói e que adquire a forma de um obstáculo230) e do passado ao
presente (memória involuntária que invade o tempo atual231). O narrador anuncia, sem
embargo, o predomínio da memória como totalidade que funciona para além das coordenadas
presente-passado. Essa memória é o território a que Raimundo se dirige e para cuja definição
deve encontrar novos termos que não os temporais. É uma memória que se “olha em
redondo”, desde “a última ponta do globo”, quer dizer, que se observa como um todo em cuja
direção viaja-se de “corpo inteiro”, como a uma viagem cosmológica, e através de veículos
míticos tais como “o potro da noite”, que se apresentará como a ponte, durante vários
capítulos, entre ambos os universos.
230
“(…) muralha de vidro oblíqua astronômica água de espelhos sobre os meninos dormidos acima de
Raimundo que a prolonga contemplando-a encurralando-se contra seu destino” (DE ROKHA, 1966, p.22,
tradução nossa).
231
Esta memória surge imediatamente após a instalação da memória-obstáculo-muro “a muralha que cresce
enorme como a palavra incalculável esmagando-o arruinando-o / mas a galinha preta picava devagarinho
a rosinha à Rosinha embaixo do pé de pera do parrón sozinhos tem o sorriso corado acima do moleque
situações de diamante” (Ibid., p. 22).
232
“(...) mal lhe pendura o poema mesmamente que a doença aos terrenos”, “cheira a pêssegos artificiais”
(Ibid., p. 31).
153
(…) velhos gansos vermelhos levantam voo a partir da cruz migram em situação de bandeiras
difíceis içando os extenuados ocasos então e ademais têm toda a vida metida dentro do sexo oh!
dentro do sexo de todas as mulheres ele Raimundo Contreras como uma dual língua crescida que
anda lambendo o acontecer desse peixe alegre incandescente entrementes molhado o rosto em sucos
de frutas grandemente pretos como quebrando-se ovos de tinta azul na espada indômita ou como
impregnado de coisas viscosas redondas em redondez de vinhos em nudez que se repete de alegria
incombustível (DE ROKHA, 1966, p..32, tradução nossa).
Dentro dele, o imaginário sexual surge num registro simbólico (representando a vida),
mas também biográfico, poético e social. Aparece em cena uma nova mulher, Corina
Gonzalez, mulher talquina popular, exuberante e grosseira que desperta uma linguagem
poética sinestésica: sensorial, táctil, gustativa e fisiológica. Em contrapartida, o território do
civilizado surge com força sob a forma de uma “doença metafísica”, uma enfermidade que
poderíamos chamar de “epistemológica”, em que o isolamento do indivíduo em relação ao
mundo, provocado pelas separações da racionalidade, configuram-se como o seu drama
central:
Digamos que advém carregado com pensamento com um poço ou com um buraco carregado com a
ausência da carga e isso é infame carregado com abismos metafísicos com religão caída fé
fedorenta a tumba abstrata com liberdade com solidão muito errante que abre cidades cortadas a
pico de espanto em espanto horizontes verticais e lamentáveis que resolvem tanta situação a faca e
não obstante oscilam como antenas 233.
Neste duelo bivocal, será a morte, desta vez, a triunfante, como nos parecem dizer os
últimos versos do capítulo: “Dentro da Capital desenfadado aeroplano de artista ferindo
234
outonos pintados de prostitutas completamente só” , anunciando-se, assim, o domínio,
total e sem contrapartida, da doença no capítulo seguinte, intitulado “á l c o o l / o medo e o
fogo / a loucura imaginária”.
com tontura premeditada de bonde” (DE ROKHA, 1966, p. 40), “esse vinho grande que se
236 237
quebra” , “cidreira em álcool” . Se no primeiro capítulo é a memória que organiza o
discurso, e no segundo, a estrutura do duelo entre ambos os imaginários, instala-se aqui um
novo eixo discursivo, a psique, simbolizada pela imagem desagregadora de uma “roldana
238
psicológica” , que funciona como o redemoinho que desorganiza os símbolos e as partes
que constituem Raimundo Contreras:
(…) parte do eixo psíquico e remonta à alma em confusão e alça punhados de coisas sem destino e
anda chamando as últimas vozes estipuladas produzindo cataclismos organizando seus vaivéns
contra Raimundo sobre Raimundo virando-o ou voando-o ou virando-o confundido como terremoto
envergonhado alavanca em giro ao redor de suas ilhas fatais arestadas de perigos semelhança de
sepulcro em aluguel na beira de um mar desterrado 239.
Este eixo psicológico que toma conta de Raimundo e da sua escrita é expressão de um
modo de estar incompleto (exógeno e periférico) dentro da civilização, que tem por referente
o sistema do “acontecer kantiano” 240, baseado na lógica de uma vontade organizada com base
a fins que parece excessivamente linear e coerente para este sujeito essencialmente psíquico,
cujo sistema volitivo é um sistema confuso, cambiante e contraditório241, de atos que se
anulam242 e se contradizem entre si243. O estado de doença representado pelo domínio de um
imaginário totalmente mental, assim, tem uma dupla origem: a perda do imaginário rural-
material – “da primeira natureza” – mas também a impossibilidade de se ajustar ao bem-estar
dessa “segunda natureza” representada pela estrutura racional. De qualquer forma, e seguindo
o ritmo de construção e destruição que organiza o livro, o próprio mal deste estado vai se
desfazendo nas páginas finais do capítulo, quando começa a ser anunciado o ressurgimento e
o reaparecimento da primeira natureza, e a segunda natureza racional vai perdendo terreno.
Neste momento, esse estar exógeno dentro da civilização transforma-se num lugar válido de
236
Ibid., p. 41.
237
Ibid., p. 41.
238
Ibid., p. 45.
239
Ibid., p. 40.
240
Ibid., p. 42.
241
“alavanca de fumaça quebrada da vontade” (Ibid., p. 39), “a volição falha o arrasta empurrando-o” (Ibid., p.
42)
242
“goza chorando”, “caminha retrocedendo”, “amontoando o andado” (Ibid., p. 42).
243
“se persegue perseguindo-se” (Ibid., p. 42).
155
produção de símbolos e no território específico desse poeta que sintetiza o natural e o artificial
e cuja visão do homem surge precisamente desse estar inacabado:
E ademais literato literato? literato quer dizer uma grande máquina quer dizer o que rega com
pêssegos e o que semeia terrenos a dinamita e ara a chutadas ou tiros quer dizer o que esteriliza
e produz aquela fruta egrégia do veneno: o poema grande química metafísica sim Raimundo
Contreras o literato reencontra o poeta incendiando-se é inabordável o animal canta-se Raimundo
o que sem aranhas isolado no limite determinável condicionado por espaços humanos (DE ROKHA,
1966, p. 43)
Dentro do caótico e doente espaço simbólico que organiza este capítulo, as condições
para o triunfo da vida e da saúde vão sendo criadas, até o momento da sua instauração total no
capítulo seguinte, intitulado, “a descoberta d a a l e g r i a”. A natureza triunfa, desta vez,
sobre a civilização, a primavera sobre o inverno, a vida, sobre a morte. A palavra poética se
organiza, novamente, em direção ao passado, à memória e à natureza; e do imaginário do
psíquico, do subterrâneo e do mental, passamos, sem contrapartida, ao imaginário do inocente
e do material: “arrebenta em Raimundo seu ovo de água saindo dos psíquicos cósmicos
244
subterrâneos como jato de inocência incontestável” . O espaço volitivo de Raimundo
também se esclarece. Ele “distingue água das águas” 245 e o modelo visual da escrita passa de
“roldana psicológica” a “significado de circunsferência brilhante” 246. De um universo em que
Raimundo ocupa um lugar exógeno e cujo eixo psicológico desarticula os significados, a
escrita desloca-se para um terreno poético em que os sentidos se esclarecem e outorgam a seu
personagem um lugar central. Desdobra-se uma linguagem de referentes naturais que
recuperam a sua integridade e tornam-se expressivos mediante uma adjetivação que atribui
cores, sentimentos, cheiros e sabores: “pássaros corados”, fungos doces”, “todas as matérias
sorriem”, “camarões entusiastas”, “louros de tinta”, “peras de gritos agrícolas”, “entusiasmo
247
de tomates” . A linguagem se localiza e traz expressões da cultura campesina. O ambiente
transforma-se numa festa dionisíaca com comidas, cantos e danças populares que se
244
Ibid., p. 51.
245
Ibid., p. 51.
246
Ibid., p. 51.
247
Ibid., p. 49-51.
156
transfiguram em elementos cósmicos248 dando passagem à nação não oficial, não glamorosa
do Chile:
solta a pipa das províncias a bola profunda do astrônomo e do acendedor de nações o globo
do juiz teimoso e educa astros claros com esse fio forte para sempre que amarra mundos e mortos
solta gargalhadas contra o céu e um mar antigo cinje a sua cintura alegremente como ideia de cadáver
honorável alegremente dançando pelado Raimundo
nas horas tremendas Chile retumba nos bramidos nas alavancas de Raimundo Contreras o
bruto 249.
255
Ibid., p. 58.
256
“cem mulheres indescritíveis lambem a sua vontade enchem de sexo o triângulo de energias educadas” (Ibid.,
p. 58).
257
Ibid., p. 59.
258
Ibid., p. 64.
259
“parente astronômico de Gumercindo Fuenzalida” (Ibid., p. 64).
260
Ibid., p. 65.
158
contraposição aos sistemas de pensamento que parecem se sobrepor de forma delirante sobre
o terreno do simbolismo do natural, Lucina representará o universo simbólico do endógeno,
daquilo que surge, organicamente, de dentro para a fora:
vezes de vezes lhe parece a Contreras que Ela não aconteceu de fora para dentro como maçã
madura mas de dentro para fora como o caído e tremendo das coisas futuras que são o passado da
esperança e como obra sua apenas crê que existe e enche-a toda de lamentos (DE ROKHA, 1966, p.69,
tradução nossa).
261
“olha para Lucina e lembra do caqui profundo a barriguinha da panelinha de Talagante” (Ibid., p. 73)
262
Ibid., p. 71.
263
Ibid., p. 72-73.
159
Primeiro, a abstração traz uma oposição entre racionalidade e psique. Depois, ela
instaura o sonho e a imaginação. Agora ela nos leva ao território do mítico, dentro do qual a
escritura consegue reunir harmoniosamente o universal e o material, triunfo que se expressa
no “reencontro infinito” entre Lucina (o quotidiano) e Raimundo (o imaterial): “caminharão
mil anos cem mil anos certamente Raimundo Contreras e Lucina” 267.
264
“esta grande fumaceira é Raimundo é Raimundo aquele incêndio sem fogo e sem lenha e sem aquele
problema de fumo” (Ibid., p. 77)
265
Ibid., p. 78.
266
Ibid., p. 78.
267
Ibid., p. 79.
160
O método de escrita começa aos poucos a se definir. Explicitando o que já vinha sendo
feito na práxis do livro, o capítulo “cruz do único”, apresenta-se como um posicionamento
sobre os princípios que hão de reger a escritura:
já não será capitão de ladrões nem ferreiro nem pirata nem trovador-caçador de búfalos nos
romances nem vagabundo de aventura já não será o bêbado que dorme nos palheiros cosmopolitas já
não será o solitário e o sem-vergonha que agarra livremente a fruta sonora dos caminhos e sorri ai!
Raimundo já não será nem assassino nem santo nem estrangeiro em todas as fórmulas (DE ROKHA,
1966, p. 83, tradução nossa)
Nesse sentido é que Escritura de Raimundo Contreras pode ser lido como uma
reescrita do mito de Sísifo, mito que põe em relevo, principalmente, o voluntarismo da da
escrita como ação e não meramente como forma: “como homem que recolhe pedras assim
Raimundo reconquista seu estilo”, “edifício que se constrói e se derruba e se constrói e se
270
derruba e se constrói e se derruba como a epopeia oceânica ou o paradoxo desterrado” ,
271
“construção de névoa arquitetura despedaçada há vontade naquela angústia desfeita” . A
268
Ibid., p. 84.
269
Ibid., p. 93.
270
Ibid., p. 84.
271
Ibid., p. 89.
161
fixação nesta figura de identidade em movimento é uma conquista da própria escrita, a escrita
de Raimundo Contreras que, passando pelo psicológico, pelo dionisíaco, pelo apolíneo, pelo
onírico e pelo mítico, assim como pelas estruturações básicas do urbano e do rural, do
racional e do concreto, do cosmopolita e do local, do natural e do civilizado, encontra o seu
estilo na reunião de todas e cada uma destas dimensões:
ele não é um conjunto de cachorros uivando nem um conjunto de éguas relinchando nem cem leões
emocionantes rugindo dentro da noite não caramba não ele é um grande ademã educado num carro
enorme e ardente de animais selvagens mas com governo essa imensa força do regido o trem que
emerge desde o escuro para o escuro hasteando a luz escura das catástrofes por direção única e
culminante egregiamente a bala que arde e range e vai lançada isso o férreo o geométrico a música
pitagórica das matemáticas que são a liberdade dirigindo a liberdade o homem então (DE ROKHA,
1966, p.95-96, tradução nossa)
272
Ao longo desta pesquisa, preferimos usar o termo “oligarquia” em lugar de burguesia, pois se ajusta melhor
ao que há na América Latina durante esse anos. No entanto, no caso de Martín Rivas, decidimos conservar o
segundo termo, para manter continuidade com a crítica, que já instalou a imagem de Martín Rivas como
emblema do Romance de formação burguês chileno. Por oligarquia compreende-se “um regime político e social
que implica um controle rigoroso do poder político por parte de uma minoria que possui também o poder
econômico. Esta oligarquia não necesariamente se afirma em linhagens como ocorre no regime aristocrático,
ainda que uma mesma família possa ser de uma oligarquia por mais de uma geração antes de desaparecer”
(RAMÓN, 2003, p. 67, tradução nossa). Durante os anos em que transcorre Martín Rivas, ainda não há
propriamente uma oligarquia, pois esta se consolida “só na terceira metade do século XIX, com a chegada do
grande comércio britânico e com o desenvolvimento do porto de Valparaíso como primeiro porto no Pacífico
sul” (Ibid., p. 67). No entanto, ela está certamente em gestação e em processo de elaboração do seu programa.
162
Os dois romances que iremos estudar aqui oferecem novos pontos de vista para essas
duas categorias a partir das quais a figura do burguês é avaliada no romance Martín Rivas. A
mulher que no texto de Blest Gana cumpre a função de representar a classe, aceitar o
provinciano como membro legítimo dela e coroar o seu percurso encontra uma nova posição
em Soñaba y amaba el adolescente Perces. Na função de autora do romance, o seu foco não é
mais o de quem deve fazer reconhecíveis as continuidades sociais entre o protagonista e o
universo dentro do qual está se inserindo274. Em outras palavras, o seu dever não é o de
reconciliar harmonicamente o individual com o social (burguês), revelando a funcionalidade
do homem, ao iluminar os seus aspectos éticos, morais e racionais, a partir da ótica amorosa.
Pelo contrário, como veremos, o ponto de vista de Carolina Geel assumirá a orientação de
cortar os laços entre o privado e a funcionalidade pública, aprofundado-se nas dimensões mais
íntimas, ligadas aos aspectos psíquicos, sexuais, pré-racionais e, portanto, “desfuncionais” do
burguês em formação. Em segundo lugar, por esse mesmo caminho, a autora estabelecerá
outro tipo de continuidade: a continuidade de gênero. Mergulhando nos aspectos mais
radicalmente privados desse burguês chamado Perces, Carolina Geel mostrará a formação
desse homem fora da perspectiva cultural que separa o masculino do feminino através do
273
“A narração de Martín Rivas transcorre entre datas assinaladas com precaução pelo autor. Desde começos de
julho de 1850 até fins de outubro de 1851 se desdobra uma peripécia romanesca que capta um momento político
culminante da história do Chile. São os anos em que se gesta e se prepara a primeira revolução liberal, fenômeno
coletivo de grande envergadura, que cresce a partir de motins e sublevações militares, até alcançar uma
magnitude nacional” (CONCHA, 1985, p. XIX, tradução nossa)
274
Esta função se encontra em consonância com a missão político-social que está vigente na narrativa romântico-
realista de Alberto Blest Gana: “A função social da literatura lhe parece inerente a sua condição moderna e é
acompanhada do mesmo sentido edificante que é possível surpreender na origem da literatura moderna” (Goic,
1968, p. 46, tradução nossa).
163
275
Manuel Rojas participa da primeira geração desta literatura superrealista, a geração de 1927, sendo um dos
seus pontos mais altos. Carolina Geel insere-se melhor na geração seguinte: a de 1942, ficando próxima de
autoras como María Luisa Bombal. Vistos nos seus traços essenciais e abstratos, os fundamentos poéticos de
ambos os autores são, no entanto, basicamente os mesmos.
276
Cedomil Goic define da seguinte maneira os traços gerais do romance moderno (romântico, realista e
naturalista), que se estende, aproximadamente, de 1860 a 1934: “Se observarmos a história do romance chileno
moderno podemos ver a estranha coerência de suas manifestações e a constância singular que os traços típicos
expostos nas considerações precedentes mostram. Podemos notar a apresentação das narrações por um narrador
pessoal cujos traços gerais, cujas atitudes, cujos métodos, cujas interpretações da realidade, cuja elaboração do
tempo, cujo modo de narrar, em definitivo, são constantes, observados os matizes diferenciais que convêm à
singularidade de cada obra e de cada momento diversamente condicionados. Esta figura de intérprete da
realidade nacional que enfrenta o mundo com a atitude de um reformador, crítico e descontente; que defende
com ingênua convicção a sua ideologia, seu saber precário; que invoca esse saber como crença fundamental para
o aperfeiçoamento social é o narrador moderno. A incongruência com relação ao mundo narrativo designa o seu
164
É incrível quão diferente pode ser a inauguração de certo gênero literário pela
diferença de uns poucos anos e pela mudança de espaço nacional. Tanto Martín Rivas (1862),
de Alberto Blest Gana, quanto O Ateneu, de Raul Pompeia, são referências obrigatórias para
todo aquele que se interesse pelo Bildungsroman chileno e brasileiro. Ambos são romances
que se inscrevem na segunda metade do século XIX. Cada um à sua maneira conta com o
traço comum de tratarem do tema da formação de uma perspectiva discursiva satírica. Os dois
desenvolvem narrativas em que se tenta fazer reconhecível a degradação dos valores que
movimentam determinado universo social (a degeneração monárquica, no primeiro; a crise
ideológica liberal, no segundo). No entanto, entre um e outro são muito poucos os elementos
que justificariam uma aproximação e nenhum desses eliminaria o abismo que há entre eles.
O motivo dessa imensa distância entre os dois romances que inauguram o gênero no
Chile e no Brasil é de origem ideológica. Pompeia foi um escritor que, dentro do contexto da
República e da intelectualidade liberal, ocupou um lugar periférico, e posicionou-se de forma
modo de narrar. Sua concepção do mundo é sobretudo uma concepção da sociedade. Por isso, sua concepção do
tempo é pura historicidade, escatologia e soteriologia secular; é tempo que marcha para a racionalização social e
para a liberdade como para o paraíso em que culmina a história humana num progresso natural irreversível. Esta
é a forma adotada por esta teoria geral dos mitos degradados que, deste ponto de vista, o romance moderno
constitui” (GOIC, 1968, p. 145)
277
Ver: GOIC, La novela chilena: los mitos degradados, 1968, p. 145-166).
165
Um dos traços que eu considero mais marcantes d’O Ateneu é o fato de concentrar-se
num espaço eminentemente masculino, o que estrutura um desequilíbro de base no seu
universo simbólico. O mundo do feminino é violentamente deslocado: a partir da
descontinuidade total que o internato impõe ao menino com respeito ao espaço do lar
materno, a configuração do caráter sofrerá permanentemente essa separação estrutural entre
homem e mulher. De fato, o caminho formativo do personagem estará marcado pela excessiva
institucionalização e masculinização da vida infantil de Sérgio e pela carência total de um
espaço afetivo, baseado nos cuidados amorosos da mulher, cujas poucas aparições parecem
produzir o efeito de uma liberação do peso da escola, do Estado, da sociedade, do sistema
burocrático, etc.
278
“Como sempre, Alberto Blest Gana se situa aqui de novo num ponto intermediário, equanimemente. Isso lhe
permitirá juntar, em Martín Rivas e em outros romances, ambas as formas de conduta política, e mostrar sua
contradição, refutando a moderação com a exaltação e vice-versa. Consegue, assim, sensibilizar com os seus
relatos o que acontecia na realidade social do seu tempo e na sua própria família: que, no que toca aos liberais, os
dois extremos se confrontam entre si, se embotam mutuamente. Ponto de vista superior, objetividade de
romancista? Bem antes, cremos, arte do equilíbrio, da medida e das decisões prudentes. Tática de diplomata mais
do que tato de narrador!” (CONCHA, 1985, p. XIV, tradução nossa).
279
Destacamos o seu caráter mais reformista do que revolucionário, apesar do seu romance remontar-se à época
do Motim de Urriola com o fim de “ressaltar o heroismo atuante da burguesia” (Ibid., p. XXII) de meados do
século, momento após o qual “a participação do herói e do povo não será mais um dinamismo histórico, mas,
pelo contrário, uma reminiscência, algo que é necessário atualizar através de um processo de reconstrução
romancesca” (Ibid., p. XXIII).
280
Os referentes desta forma de revolução, na época, foram “os dois episódios principais da luta de classes
entabulada na Europa: a insurreção de junho de 1848 e a Comuna de París, em maio de 1871” (Ibid., p. XIV)
166
281
De fato, ambos os livros prestam-se a leituras alegóricas nas quais estas questões ligadas à masculinidade e à
feminidade têm um significado simbólico, em que se imbricam as questões privadas com as públicas. No caso de
O Ateneu, a focalização no universo masculino serviu para ficcionalizar uma tese de degeneração social que
“emergiu na crise do Segundo Império, contrastando com as expectativas de progresso encarnadas no projeto
republicano já em gestação após a década de 1870. A obra literária de Raul Pompeia é criada neste período,
marcado por um contexto de declínio da ordem imperial e suas bases escravistas em meio à formação de centros
urbanos com populações relativamente independentes dos setores senhoriais. Nesta linha, a categoria
sexualidade funciona não apenas como criadora de identidades sociais, mas como categoria de conhecimento que
se dirige também a instituições políticas. Daí afirmarmos que está presente em O Ateneu a “homossexualizacão”
do Segundo Império, relacionando “imoralidade” e instituições monárquicas” (MISCOLCI; FIGUEIREDO, 2011, p.
77). Da sua parte, Martín Rivas pode ser lido como um dos livros que compõem o “Romance fundacional”
latino-americano, textos de cunho alegórico que “se desenvolvem mão a mão com a história patriótica na
América Latina. Juntas despertaram um fervoroso desejo de felicidade doméstica que se transbordou em sonhos
de prosperidade nacional, materializados em projetos de nações que investiram nas paixões privadas com
objetivos públicos (...) ‘Estas ficções – nas palavras de Djetal Kadir – ajudaram, desde seus inícios, a história que
as engendrou’. O romance e a república a ser desenhada com frequência estiveram unidos, como disse, através
dos autores que prepararam projetos nacionais em obras de ficção e implementaram textos fundacionais através
de campanhas legislativas ou militares” (SOMMER, 2004, p. 24, tradução nossa).
282
“Martín Rivas acontece num marco definidamente urbano. Todos os personagens se movem no espaço
romanesco de Santiago, a capital do Chile. Isso contrasta poderosamente com outros romances do século XIX
latino-americano, aos quais já aludimos nestas páginas. Isso se deve sem dúvida ao grau de desenvolvimento
econômico e político do país, ao alcance centralizador das ordens da vida social que tinha logrado o Estado
nacional” (CONCHA, 1985. XXXVI, tradução nossa). Este caráter urbano traz consigo a presença de um espaço
socialmente variado, dentro do qual as situações amorosas serão articuladas: “A classe alta, por uma parte, que
dita os valores configuradores do mundo, objeto da sátira do narrador e do desmascaramento da sua mísera
realidade. A classe média, em seguida, descrita principalmente por sua tendência a imitar a classe alta em seus
ideais exteriores de elegância e de dinheiro, traços imitativos que definem a sua condição de arrivista (...). O
povo é apenas entrevisto no pitoresco da cena dos sapateiros da Praça de Armas – captado na sua linguagem
vulgar e seus idiotismos –, nos vendedores dos passeios santiaguinos ou nos curiosos da revolução de abril”
(GOIC, 1968, p. 59, tradução nossa).
167
Rivas, deve livrar-se do que aprendeu no círculo de elite onde nasceu, e desprender-se dos
preconceitos de classe que, mesmo sendo vistos como frívolos e inautênticos por ela,
continuam operando e mediando a sua atração. Ambos, assim, sofrem transformações antes de
unirem-se definitivamente. Os dois se formam para poder realizar a finalidade de exercer os
critérios da moralidade e não os da sociedade, mediante a realização desse amor
(supostamente) cheio de diferenças; configurando, assim, uma forma especial de
Bildungsroman misto. Trata-se de um gênero curioso que, apesar de ser protagonizado por um
homem, organiza-se a partir da ótica da mulher. O predomínio da lógica feminina se verá
reforçado pelo poder da temática amorosa, do formato e das tipologias próprias do folhetim,
em detrimento da temática política ou épica, representada pela história de Rafael San Luís. O
protagonista, de fato, será permanentemente comparado com uma espécie de ideal feminino:
“o tipo de herói que as mulheres aficionadas à leitura de romances se forjam na juventude”
(BLEST GANA, 1975, p. 183, tradução nossa).
283
Esta formação a que queremos dar destaque aqui segue a lógica da teoria do amor de Stendhal. “O romance
se propõe como um ‘estudo do coração’. O tempo da narração se ordena nas tensões e nos estágios do
desenvolvimento do amor no coração de Leonor Encina. Tal desenvolvimento se cinje cuidadosamente à teoria
do amor em Stendhal. As formas primeiras da admiração, unidas ao desejo e à esperança de ser amada, a
cristalização seguida da dúvida e a segunda cristalização criam tempos diferentes para as partes principais da
narração” (GOIC, 1968, p. 53, tradução nossa).
284
Um “orgulho” socializado, que denota o fechamento de uma classe que não quer se abrir ao que se mostra
como aparentemente diferente.
285
BLEST GANA, op.cit., p. 179.
286
Esta palavra usada com muito cuidado pelo romance, fazendo referência a um sentimento também
socialmente inscrito num meio rigidamente estamentado.
168
vez que, ao mudarem os valores de Leonor, ele pode, então, reconhecer-se como burguês,
revelando-se um amante legítimo para ela.
Mas as interpretações dos últimos anos conseguiram instalar uma objetividade maior e
desmitificar este suposto “herói da classe media” chileno. Seguindo os estudos de Cedomil
Goic288 e Jaime Concha289, hoje sabemos que mais do que um ídolo dos setores médios, a
história de formação de Martín Rivas é a de um burguês proveniente da burguesia mineira do
norte do Chile, cujo percurso terá a função de reformar o comportamento moral da
plutocratizada sociedade burguesa urbana do Chile de meados do século XIX. Desta
perspectiva, ele simboliza a consolidação da ideologia, do espírito e da moralidade burguesa,
num contexto de consolidação exclusivamente material, configurando-se como um herói tão
burguês quanto a classe em que se insere, mas representando uma nova fase do seu
desenvolvimento.
287
“O ‘estudo social’ deste que se propõe como ‘romance de costumes politico-sociais’ começa com a chegada a
Santiago num dia de julho de 1850 do jovem provinciano. Trata-se de um recurso fundamental do romance
moderno. Julien Sorel ou Rastignac provocam com seu conhecimento da cidade as manifestações características
da vida social e expõem o significado formador da sua experiência pessoal. A presença de um estranho no
mundo é a maneira efetiva de promover a ilustração do mundo em que se penetra” (GOIC, 1968, p. 54, tradução
nossa).
288
Ver: GOIC, La novela chilena, los mitos degradados, 1968, p. 45-46.
289
Ver: CONCHA, 1985, p. XXVIII.
169
ou “aura”. Esta alma não corresponde a uma “ética social” ou a um “senso de justiça”, mas,
sim, a uma espécie de estetização do burguês.
Seguindo este modelo, todas as tarefas realizadas por Martín estarão determinadas
pelo mesmo equilíbrio de prioridades. No trabalho, no estudo, o protagonista nunca deixará de
cumprir com as exigências do mundo burguês. No entanto, diante delas, ele irá sobrepor
sempre um valor: a inteligência, o dever de gratidão, o desinteresse. É o que fica explicitado
no fato de ele trabalhar de graça para D. Dámaso, deixando o seu protetor perplexo pelo
menosprezo que Martín demonstra por algo que, ao contrário, ele tanto valoriza. Mas, na
verdade, com esse trabalho ele sim está tirando um proveito, que consiste precisamente na
aquisição de um saber com respeito aos negócios próprios do burguês, saber para o qual, de
resto, ele demonstra especiais aptidões. Na linguagem do romance, contudo, o que ficará em
destaque será o ceticismo diante do dinheiro expresso por Martín, e o fato de ele ser bem-
170
sucedido nos negócios de D. Dámaso mais por inteligência que por experiência nos negócios
(BLEST GANA, 1975, p. 125). Em outras palavras, o protagonista será elogiado por realizar
muito bem esse aprendizado na dimensão comercial da classe a que chega, mas por motivos
elevados: seu talento e seu altruísmo.
O mesmo acontece nos estudos, dimensão na qual Martín procura ser reconhecido não
290
pela “elegância do vestuário” ou pelo orgulho da roupa, mas pelas suas aptidões
intelectuais. Mesmo assim, não abdica da exigência de ser advogado, profissão que faz parte
indiscutível do roteiro da sua classe.
Inicialmente, eles parecem compartilhar tudo. Ambos têm quase a mesma idade; os
dois sofrem de um amor “sem esperança” e, por último, tanto um quanto o outro se destacam
por contar com mais capital “espiritual” (se é possível juntar essas duas palavras) do que
material, com mais recursos internos do que externos 292. A verdade, no entanto, é que os dois
representarão lógicas totalmente opostas. Nas antípodas de Martín, Rafael San Luís atuará no
romance como o personagem que encarna a lógica histórica representada pela sua
290
Ibid., p. 74.
291
Ibid., p. 214.
292
Ibid., p. 78.
171
Com Manuel Rojas, o romance chileno supera, de forma definitiva, duas das escolas
narrativas do século XIX, que mantiveram a hegemonia literária do país até a década de trinta:
o Realismo e o Mundonovismo. Inicia-se com ele uma nova sensibilidade, que se afastou da
narrativa ideológico-política de Blest Gana, assim como dos fundamentos naturalistas que
ainda atuam, mesmo que de forma renovada, na literatura de Pedro Prado, instaurando uma
narrativa humanista tanto “em termos da relação do homem com o homem, em que o
princípio da fraternidade se contradiz e entra em pugna com qualquer forma de darwinismo
social, como na relação do homem com o seu meio, com a natureza, com a cordilheira, com a
máquina e o trabalho, este último não desprovido de densidade filosófica” (ROJO, 2009, p. 3,
tradução nossa). Vista como um todo, esta literatura desloca-se do universo eminentemente
burguês de romances como o Martín Rivas para:
(...) os setores subalternos da sociedade, entendendo por tais a classe baixa não obreira ou, pelo menos,
a classe baixa de obreiros não organizados. É o “baixo povo”, como o denomina, seguindo uma
nomenclatura de princípios do XIX, Gabriel Salazar (...) isso se deve a que o pessoal das suas narrações
172
está composto não tanto por obreiros como por trabalhadores independentes, que podem ser
cabeleireiros, alfaiates, sapateiros, pequenos comerciantes, trabalhadores que são contratados para a
realização de tarefas pontuais, como os estivadores, os obreiros da construção (pintores, pedreiros,
carpinteiros, etc.) e os artistas pobres, quando não são desempregados sem mais (ROJO, 2009, p. 5,
tradução nossa).
293
A data de publicação deste romance ultrapassa o limite temporal deste trabalho, mas mesmo assim, e por
diferentes motivos, decidimos incorporporá-lo. Pensamos que, na hora de estudar o Bildungsroman desta época,
Manuel Rojas é um autor imprescindível. No entanto, a sua obra mais famosa, a tetralogia de Aniceto Hevia,
acabou de ser estudada de forma total por Grínor Rojo, o que contrasta com a situação deste romance sobre o
qual existe apenas um estudo crítico publicado. Em segundo lugar, apesar de Punta de rieles ter sido publicado
alguns poucos anos depois, ela se insere totalmente no universo da primeira metade do século, pois se passa no
mesmo período de tempo em que se focalizou a narrativa geral do autor: “período da história pessoal de Rojas e
a geral do Chile, de aproximadamente cinquenta anos, desde começos até meados de séculos XX, ainda que seu
foco recaia sobretudo no primeiro quarto do século” (Ibid., p. 1). Por último, Punta de rieles nos permite
completar o quadro de atores que temos querido criar, incorporando simultaneamente a história de um burguês
em decadência e a de um artesão em vias de proletarização, num registro de romance social.
294
O único estudo que existe de Punta de rieles é o artigo intitulado “Presencia de Wild Palms de William
Faulkner, en Punta de Rieles”, escrito por Mercedes Robles, e publicado na recopilação Manuel Rojas. Estudios
críticos. Tal como o seu título o indica, o objetivo fundamental deste texto consiste em analisar em que medida o
romance do autor chileno cumpre com o modelo narrativo que ele mesmo diz ter tomado da obra do autor norte-
americano, começando por uma valoração negativa, nada generosa, dos resultados atingidos por Rojas:
“Contrariamente ao que expõe Rojas, a técnica do seu romance não seria igual à de Faulkner. Trata-se, bem
antes, da adaptação de procedimentos narrativos e de preocupações temáticas que acabam por transparecer que o
autor chileno, como grande parte da crítica, não assimilou totalmente o alcance dos propósitos do norte-
americano (...) Na realização da sua obra, Rojas só aproveitará os aspectos extrínsecos de Wild Palms” (ROBLES,
2005, p. 247, tradução nossa).
173
295
Em relação ao âmbito econômico internacional, estamos pensando na queda de Wall Street em Nova Iorque,
que não descreveremos neste trabalho por se encontrar vastamente comentada e estudada. O que sim é
importante destacar é que esta queda é a que agravou a crise econômica nacional que o Chile viveu nos anos
trinta, e que se iniciou como consequência da interrupção de duas atividades que tinham sido cruciais para o
desenvolvimento do país durante pelo menos trinta anos. Referimo-nos, especificamente, à indústria mineira e ao
crédito internacional. Trata-se, pois, da exportação de produtos primários, os nitratos e o cobre, e das
importações de capital, crédito e investimento exterior; ambas destinadas a alimentar o desenvolvimento geral do
país. A catástrofe que se gerou devido à dependência que o país tinha nestas atividades de comércio exterior,
detonou a crise também política em que o Chile entrou durante esses anos. A Grande Depressão afetou o que se
considerava um dos pilares do governo de Carlos Ibañez del Campo, quer dizer, a reativação econômico-
administrativa que este tinha conseguido, após o conflitivo período parlamentar e da polêmica presidência de
Alessandri. Ibañez, com efeito, deu ao Chile um período de quatro anos de certa prosperidade, que, para a
população, justificaram a limitação das liberdades, à qual Ibañez tinha submetido o país. No entanto, quando a
Grande Depressão derrubou aquilo que segurava a tolerância ao autoritarismo de Ibañez, produziu-se um
processo recíproco em que, por um lado, as medidas do ditador iam-se tornando impopulares e, por outro, foram
se intensificando as reações autoritárias (BETHEL, 1990, cap. 7).
296
Fernando Larraín sugere a Romilio Llanca entregar-se à polícia, apelando a um critério objetivo, apesar de ter
ouvido a comovedora história do trabalhador e reconhecido as continuidades que a sua tinha com a dele.
174
Com o fim de dar uma explicação formal ao acesso autobiográfico que a obra do
escritor chileno sugere, Grínor Rojo distingue duas estruturas de conjunto referencial,
conceito tomado do teórico espanhol Tomás Alvadalejo, que se refere ao período da vida
selecionado e semantizado pelo autor através dos distintos segmentos do seu trabalho
narrativo. A primeira delas é a que vai desde 1912 a 1921 (na biografia de Rojas) e se refere
à “idade da inocência e da vagabundagem programática”, a qual é semantizada através das
obras “Laguna” (em Hombres del sur), “El vaso de leche” (em El delinquente), Lanchas en la
bahía, Hijo de ladrón, Sombras contra el muro e La oscura vida radiante. Todos esses contos
e romances, assim como esse trecho da vida de Rojas, possuem, segundo o crítico chileno,
certa unidade outorgada, fundamentalmente, pela figura de um jovem em processo de
formação, cujo estado característico é o seu nomadismo, a sua solidão, o seu desamparo e a
sua fome física e espiritual. Nas vicissitudes desse jovem podem encontrar-se chaves sobre a
identidade do homem adulto, da sua relação com os outros, com a mulher e com a maturidade
que “poderia consistir na sua integração ou não no sistema das instituições burguesas tais
como elas são” (ROJO, 2009, p. 8, tradução nossa).
A segunda estrutura de conjunto referencial que Grínor Rojo detecta é a que se refere
à segunda etapa da vida de Rojas, isto é, a etapa da “integração frustrada”, que se estende de
fins dos anos vinte em diante e será semantizada, dentro da tetralogia, pelo romance Mejor
297
que el vino . A unidade de ação e de sentido desta segunda metade da obra e da vida de
Manuel Rojas é dada pelo intento de integração de seu protagonista e do próprio escritor nas
instituições burguesas, intento marcado pelo esmagamento do indivíduo, pelo fracasso e pela
pobreza existencial.
297
Ibid., p. 24.
175
Tendo isto como esquema geral, podemos reconhecer as conexões que estabelece
Punta de rieles com o resto da obra de Rojas, para o que vale a pena abordá-lo como um
romance composto por três “sub-romances”, cada um dos quais se conecta com um ponto
distinto da sua trajetória narrativa.
No caso de Romilio Llanca, essas duas etapas prévias apresentam-se sob a forma de
referências ao “pretérito perfeito” do protagonista. A “idade da inocência” estaria conformada
pelo período que vai desde que decide sair espiritual e fisicamente do seu meio, Cáhuil,
impulsado por “El milico”, até que conhece o seu verdadeiro modelo em Santiago, o
carpinteiro anarquista chamado de “mestre Pascual”, graças a quem se inicia, posteriormente,
na fase da “vagabundagem programática”:
Queria descansar um pouco da luta, apesar de ter partido para Valparaíso para sondar como andava o
grêmio. Mas, em Valparaíso, sem saber como, nem por que, me vi, de um dia para outro, a bordo do
vapor “Piragua”, embarcado como carpinteiro (...) Conheci toda a costa sul do Chile, Talcahuano, Lota,
Puerto Montt, Corral, Ancud, Castro, Melinka, Punta Arenas; cheguei até Buenos Aires. Em outras
viagens conheci Coquimbo, Taltal e todos os portos do sul, do norte e do Equador [tradução nossa]
(ROJAS, 1974, p. 954, tradução nossa).
Rojo. Trata-se de “El Checo”, o qual corresponde ao mesmo perfil de Fernando Larraín
Sanfuentes: “El Checo, que é um mal sujeito, é também um filho de “família decente” que
saiu do caminho reto e “corrompeu-se”, corrompendo no caminho às meninas mais pobres do
seu bairro” (ROJO, 2009, p. 20, tradução nossa).
Por último, teríamos que nos referir ao que aqui queremos denominar como o “sub-
romance de encontro entre mundos” que, em Punta de rieles, é constituído pela situação
enunciativa que faz interagir o solilóquio de Romilio com o monólogo interior de Fernando
Larraín. Essa situação é a que Rojas pega, quase ao pé-da-letra, da história do seu amigo Julio
Asmussem e com cuja ficcionalização reúne os dois tipos de mundos que antes se
encontravam separados. A narrativa do autor chileno apresenta para este sub-romance só um
298
antecedente, que é o conto “Poco sueldo” , recopilado na coleção intitulada Travesia
(1934). Apesar de carecer da temática criminal e erótica tão importante em Punta de rieles,
“Poco sueldo” estrutura-se a partir do mesmo choque entre dois mundos. O de um
personagem subalterno chamado Laureano, que trabalha como eletricista numa empresa, com
o seu superior, que cumpre o papel de administrador da mesma. Laureano vai ao escritório do
administrador para fazer um trabalho de rotina, mas de repente lhe ocorre pedir um aumento
de salário, a partir do qual, o administrador o descobre pela primeira vez:
— O quê?
— Qual?
— Queria pedir ao senhor um aumento de salário. Ganho tão pouco aqui, senhor, que apenas me
alcança para viver mal, e tenho mulher e dois filhos. Faz dois anos que aumentaram o meu salário em
vinte cinco pesos, não voltaram a se lembrar de mim. E já vê que sou eletricista...
— Ganho cem pesos por mês. Já vê, senhor, o que são cem pesos por mês para um homem que tem
mulher e filhos?
298
“Pouco salário”.
178
— Cem pesos! O administrador dá uma olhada no obreiro. É a primeira vez que o olha detidamente, a
fundo. Não tem costume de olhar com atenção os trabalhadores da empresa. Olha-os bem somente para
contratá-los, para ver se são sãos, fortes, se denotam hábitos de trabalho. Uma vez empregados não os
olha senão ao rosto e, rapidamente, ao comandá-los e ao cumprimentá-los. Ignora como vivem. Não
tem tempo de se informar. Mas essa manhã olha para o homem que tem à frente, como se deve olhar os
homem, de cima para abaixo, para saber deles não o que dizem ou pensam, mas também o que vivem e
sentem. O exame lhe produz angústia; aquilo não é um homem, é um bucha. Nunca viu tanta pobreza
nem tanto abandono.
— Bom — diz olhando para outra parte —; realmente não ganhas demasiado. Mas eu me ocuparei de
você. Agora, vai.
O homem agradece e se retira, e quando a porta se fecha suavemente atrás dele, o administrador
exclama:
—Que horror!
—Uma semana.
—Tenho que matricular a menina e ela precisa de uniforme, sobretudo e guarda-pó. Talvez nem dê.
—Sim, os pesos valem menos cada dia. Tá, falarei com o contador. Deixarei para você uma mensagem.
—Obrigado, senhor.
—Tudo em casa.
(Este é o que briga com “O Sebento”. Briga não; brinca só. O Sebento diz que ele é mesquinho e que
por isso a filha não gosta dele. Se lhe pedir um beijo, ela não dá; então lhe oferece dinheiro. Como vive
morta de fome, segundo O Sebento, pensa que se poderá comprar algo para comer e o beija) (ROJAS,
1974, p. 940, tradução nossa).
Para este “sub-romance de encontro” devemos sublinhar a importância que nele teve o
já mencionado casamento de Rojas com Valeria López Edwards, pois, de fato, esse foi um
encontro entre dois mundos: o de um escritor proveniente de uma classe social subalterna e
que agora tinha a oportunidade de conhecer os estratos mais exclusivos do país; e, de outro
lado, o da filha de uma típica família burguesa chilena.
299
O primeiro elemento que permite identificar um romance da corrente de consciência, segundo Robert
Humphrey, é o seu argumento: trata-se de obras cujo objetivo fundamental é relatar a consciência de um ou mais
personagens, entendendo por consciência “o desenvolvimento completo da reflexão mental, desde os níveis
anteriores à consciência mesma até os mais superiores da razão, passando por diferentes estratos mentais e
incluíndo o mais alto deles, o do conhecimento racional comunicável. Deste último geralmente se ocupa o
romance sociológico. E deste difere o da corrente de consciência precisamente porque trata daqueles níveis
anteriores à verbalização racional: os níveis à margem da reflexão” (HUMPHREY, 1969, p. 12, tradução nossa).
Nesse sentido, o seu fim fundamental é o de mostrar o homem interno, que se encontra sob a superfície da
dimensão comunicativa, antes que as motivações ou ações do homem externo (as quais estariam relacionadas
com o pensamento behaviorista e positivista, e com o romance experimental de escritores como Zolá e Drieser).
180
capítulos contrapostos, ao longo dos quais o autor intervém só três vezes: “No capítulo II para
introduzir o carpinteiro, no IX para dirigir o monólogo de um dos personagens e no último,
para terminar” (ROJAS, 1962, p. 240, tradução nossa). Ambos os discursos, o solilóquio e o
monólogo interior, entram no romance mediante uma montagem de espaço, situação que
mantém fixos os personagens num lugar, enquanto suas consciências viajam pelo tempo. As
coordenadas para realizar essa montagem são as seguintes: Como se assinala no capítulo I, o
romance abre às 2:30 da manhã, momento em que Fernando Larraín se encontra em
companhia de dois dos seus trabalhadores: Joãozinho e o personagem apelidado “o sebento”.
Às 3:15, segundo é indicado no capítulo II, aparece Romilio Llanca na gráfica. No capítulo
VI, assinala-se que são 4:00 da madrugada e que está começando a amanhecer, sendo o
amanhecer definitivo a última coordenada temporal que o autor nos fornece. Isto significa que
o encontro que dá contexto à história tem uma duração de aproximadamente três horas e meia,
se consideramos que deve ter amanhecido ao redor das seis da manhã. Neste plano do relato,
então, o romance acontece dentro de um número limitado de horas deliberadamente marcadas
pelo autor, a partir das quais entraremos no espaço e no tempo mais amplo dos dois mundos
em encontro.
quadro geral de decadência da elite, vinculada a uma capacidade de empreendimento que vai
minguando com a passagem das gerações desta família empobrecida, que parece não se
identificar com o seu meio de origem, mas que, no entanto, segue confiando nos capitais que
este supostamente lhe deve.
O relato deste burguês relegado distribui-se em três eixos espaciais. O primeiro deles
corresponde ao conjunto de lugares associados à casa paterna: o sítio do tio Eugênio, onde se
inicia sexualmente; o prostíbulo “de segunda categoria” a que vai sistematicamente e onde
conhece Lya, prostituta com quem começa a sua primeira relação mais ou menos estável
durante um ano até contrair sífilis; e o banco, onde se inicia no mundo do trabalho com o
cargo de boy. O segundo eixo espacial pode denominar-se de o “próprio lar”. Este se inaugura
com o matrimônio de Fernando com Clara e rompe-se mediante um processo lento de
desintegração, que começa quando chega pela primeira vez bêbado em casa; continua com a
perda de seu emprego por causa do álcool e o abandono da sua mulher e dos seus filhos; e
acaba quando larga o trabalho que os Escalante lhe tinham oferecido. Rasgada fica toda
relação com o lar, todo vínculo com o espaço da casa, dando-se início, assim, ao período da
“vadiagem marginal”. Fernando reúne-se, então, com o que aparece como a escória de todas
as classes sociais: cocainômanos, morfinômanos, etc; e dorme pela primeira vez em cortiços.
No período ao redor deste espaço, ele tem breves momentos de recuperação, por exemplo,
quando Afonso lhe dá a oportunidade de trabalhar no seu sítio; mas em Valparaíso recai no
álcool. Inaugura-se, então, o terceiro espaço, correspondente ao cortiço em que Otília o recebe
e que funciona como uma recuperação marginal do lar. Pelo lugar em que se encontra, sabe-se
que o último espaço da história deste personagem é Antofagasta.
“integração frustrada”. Pode-se falar de um último período, cuja duração não se precisa, mas
que corresponde a sua relação com Otília, mulher do povo a quem engravida300.
Llanca permanece em três salitreiras do norte. Primeiro, em Santa Anita, lugar que
descobre como um espaço ideal para o trabalho e para conviver com homens solteiros, e onde
pode renunciar à tão difícil vida amorosa. Mais tarde, instala-se em Mantos Blanco, salitreira
nova, onde conhece Rosa, primeiro como mulher de Campón e depois como sua própria
mulher; momento em que Llanca começa a ser o que será até matá-la. Ademais, nesta
salitreira se frustra a primeira greve, motivo pelo qual parte a Antofagasta, onde consegue
trabalhar na salitreira Buena Ventura, menor que as anteriores, mas também melhor
organizada e mais antiga. Aqui começa a queda de Llanca, até que, no seu retorno a
Antofagasta, mata Rosa e, nessa mesma noite, chega ao escritório de Fernando. Em termos
300
É, mais uma vez, o recurso de marcar os anos através do nascimento dos seus filhos. Neste caso, trata-se do
seu primeiro filho concebido fora da sua classe de origem.
183
temporais, esta história transcorre em aproximadamente cinco anos, desde que Llanca se
inicia sexualmente, aos vinte e cinco, até que mata Rosa, momento em que não se especifica a
sua idade.
Como vimos, este processo se inicia em Cáhuil, lugar que simboliza não só a
sociedade de subsistência que Llanca olha de forma depreciativa, mas também o típico espaço
rural marginalizado da modernidade. Diz-se que tinha só uma rua, e que ali nem sequer tinha
184
chegado um cinema; ademais, os habitantes são quase todos analfabetos. Como todo espaço
rural de tais características, simboliza também a segurança: o lugar onde a precariedade do
provinciano pobre não corre riscos e a sua fragilidade parece não ser sentida. Mais tarde,
integra-se à migração campo-cidade e vai para Santiago, lugar que para o resto dos
povoadores simboliza o medo, a vulnerabilidade e a fatalidade que advêm da sobre-exposição
de sua fragilidade no âmbito da urbe. Depois da migração para a cidade, Llanca passa por um
breve lapso de tempo, que poderia ser interpretado como um momento de conjunção
harmônica entre modernidade e pré-modernidade, simbolizada pela sua estada no Barco
Pisagua. Esse lugar representa para o protagonista um verdadeiro paraíso, porque ali o
moderno (o barco) não impossibilita nem esmaga o pré-moderno (o seu trabalho como
carpinteiro). Pelo contrário, parece dotá-lo de um espaço exclusivo para ele, e lhe oferece um
lugar estabelecido para a realização do seu ofício. Nisso radicam as conotações paradisíacas
que o personagem lhe atribui:
Foi um sonho de muitos anos, desde que, sendo criança, via passar, de vez em quando, muito
longe, um barco. Nunca tinha visto um de perto e imaginava os maiores disparates (...).
Quando pisei na coberta e me levaram para o meu beliche e me disseram que ali dormiria e
trabalharia, pensei que tinha morrido e que estava no céu, e que Rafael Guerreiro, o
contramestre, homem que, segundo ouvi depois, não podia dizer três palavras seguidas sem
que uma delas fosse um insulto para alguém, um palavrão que lhe mantinha a conversa; era,
pelo menos, o arcanjo Rafael, já que assim se chamava. O arcanjo, no entanto, era meu
companheiro Miguel Trevinho, que não quis voltar a embarcar e conseguiu para mim o posto
(...) sentia-me como se o barco e o mar tivessem sido feitos para me levar. Era o único
carpinteiro e isso me dava uma segurança e um orgulho muito grandes. Na terceira viagem, no
entanto, desembarquei (ROJAS, 1974, p. 975, tradução nossa)
Após estar no Pisagua, como vimos, Llanca desce à terra. Em termos simbólicos, essa
terra em Punta de rieles representa o espaço do trabalho, mas do trabalho baseado numa
estruturação trágica entre a vontade do sujeito subalterno e a produtividade industrial. Ao
descer do barco, Llanca abandona a harmonia prévia de maneira progressiva, sendo
praticamente engolido pelo terrestre, passando de uma indústria a outra, até chegar nas
salitreiras, lugar que é a antítese do Pisagua, quer dizer, o inferno mesmo, precisamente
porque nele a harmonia entre o pré-moderno e o moderno não é possível.
185
301
Mas como se relacionam estas duas histórias: a do “roto” com a do “cavalheiro”?
Para dizê-lo de modo direto, observamos que este encontro entre dois mundos ideado por
Manuel Rojas está marcado pela ironia. Uma ironia que surge como consequência da
representação de dois personagens que não respondem ao paradigma dentro do qual são
apresentados, mas precisamente o contrário. Para isso, o autor divide o relato em quatro eixos
temáticos, ao redor dos quais cada um dos personagens expõe em contraponto as suas ideias e
experiências. No seu conjunto, eles dão conta de como cada um desestabiliza o seu respectivo
estereótipo, até se produzir a inversão final dos papéis. A consolidação desta ironia alcança o
seu ponto mais alto com o juízo final de Larraín Sanfuentes que articula a história, e expressa-
se em frases como a seguinte: “O que posso fazer por este homem, eu, que nunca fiz nada por
mim?” (ROJAS, 1974, p. 945, tradução nossa). Ou: “Vem pedir conselhos a um bêbado,
pensando que é um grande senhor. Poxa… as coisas que se veem é difícil de acreditar, mas é
assim” 302.
Poderia eu ter matado a Clara? Nem bêbado. Se só ao olhar para ela começava a chorar. E tão
caralho que me comportei com ela. Não a matei, mas o que fiz foi pior. De que posso me
admirar. Este cara matou a mulher e é mais do que possível que se coma seus anos no cárcere;
aguentará como um homenzinho. Eu, filhinho de família, fiz algo pior e estou livre 303.
301
Conservamos a expressão “roto”, pois ela é um chilenismo que não possui tradução em português. A palavra
se refere às pessoas pobres de origem urbana e é utilizada, muitas vezes com conotações classistas, para falar
pejorativamente de quem é visto como socialmente inferior. No entanto, a expressão “roto” pode fugir deste
último sentido para fazer menção às pessoas consideradas mal-educadas, desavergonhadas, grosseiras, ou
ingratas. Por último, “roto” também encerra certas conotações épicas, pois lembra a imagem das tropas chilenas
(compostas por grupos de origem social pobre) que triunfaram na guerra entre o Chile e a Confedereção
Peruano-Boliviana, em 1839. No caso de Manuel Rojas, ele joga com as duas primeiras acepções mencionadas
aquí (a classista e a ligada ao comportamento moral).
302
Ibid., 985.
303
Ibid., 945.
186
altas, de acordo com o uso que esses escolhem dar-lhes. O principal capital que o narrador
distingue é o capital social representado pelos sobrenomes:
Mas, nem todo mundo sai igual, nem as posibilidades são enfiadas no bolso da gente. É preciso
fazer algum esforço para conseguí-las. Há caras que tiram dos seus sobrenomes todo o suco
que têm; uns tem mais do que outros. É questão de saber dirigir a teta. Outros não tiram nada
deles, não tem garra ou são limitados. Alguns lhe dão mais brilho do que têm, outros lhe dão
mais dinheiro. Outros os deixam na altura do betume (ROJAS, 1974, p. 951, tradução nossa).
Segundo Larraín, os membros da elite dividem-se de acordo com o uso que dão a seus
sobrenomes, capital que pode ser administrado com distintos níveis de eficiência. Em
primeiro lugar estão “os caras que tiram dos seus sobrenomes todo o suco”, quer dizer, que
administram esse capital com um nível de relativo sucesso. Em segundo lugar, existem
aqueles que “lhe dão mais brilho do que têm” ou “mais dinheiro”: não só se beneficiam do
sobrenome, mas também o melhoram. Há também, na elite, sujeitos que “não tiram nada
dele”, quer dizer, que desperdiçam os seus sobrenomes e administram-nos de maneira
ineficiente. Por último, estariam os que “deixam-no na altura do betume” ou aqueles que, não
contentes com desperdiçar esse capital, prejudicam o seu valor, quer dizer, pioram-no. Esses
diferentes modos de administrar o capital dependerão do “interesse”, da “garra” ou da
“inteligência” de quem o possua.
Fernando faz esta conceitualização a partir da sua posição de relegado social, a qual é
consequência não da sua incapacidade de produzir capital monetário – pois isso não constitui
causa de eliminação para a elite –, mas por ter desperdiçado o seu capital social – que é o
capital do grupo –, “jogando fora” o dinheiro e “comportando-se como um bruto” com os
seus. Em outras palavras, Larraín é relegado do seu grupo sobretudo por ter perdido a
“honra”, não respondendo pelos seus atos diante da família, e traindo os que o apoiaram e
confiaram nele (fundamentalmente, os Valdivieso e os Escalante). Utilizando as categorias
dadas pelo seu próprio discurso, o seu caso faz parte, portanto, daqueles que por “falta de
garra” deixaram o seu capital social “na altura do betume”, desperdiçando-o e piorando-o.
Por trás da sua relegação há, assim, algo que parece estar para além do capital social e
que depende, em última instância, do mérito pessoal. Neste sentido, ao contrário do que
187
Fernando pensa, antes que o dano a seu sobrenome, o que fez dele um relegado social parece
ter sido, sobretudo, o seu modo de compreender a sua própria posição social e a dos seus
iguais. Este modo se caracteriza pela desvalorização dos méritos individuais e pela
sobrevaloração das expectativas que ele tem nos capitais básicos da sua classe.
Comecei a trabalhar para ter dinheiro para deitar com as putas; continuei trabalhando porque
estava casado e ía ter filhos. Alguma vez chegaria a ser gerente ou subgerente, pelo menos
chefe de alguma coisa, apesar de muitos esperarem o mesmo (...) O que me faltava era ficar
tranquilo em algum lugar. Eu gosto da mudança súbita e forte. Talvez por isso gostei do drink
(ROJAS, 1974, p. 978, tradução nossa).
Ao contrário, a formação de Romilio até antes da sua queda final responde a uma
concepção geral da vida como desdobramento, o que se manifesta no tipo de vínculo que este
mantém com o seu meio de origem, na visão que desenvolve e materializa com respeito ao
trabalho e à política e no modo como concebe o amor.
304
“Há de começar de alguma maneira: a primeira fêmea, uma empregada; a segunda, uma prostituta; primeiro
emprego: boy” (Ibid., p. 964)
305
Ibid., p. 947-948.
188
roteiro da carreira militar. O verdadeiro modelo de Llanca, portanto, não será O Milico, mas o
Mestre Pascoal, a quem buscará definitivamente imitar, e cujo pensamento coincidirá com a
sua noção expansiva da existência. O Mestre Pascoal ensina a Romílio o que ele compreende
como o verdadeiro trabalho. Ademais, o põe em contato com as ideias anarquistas e o
empurra para uma vida de luta e itinerância. Graças à influência do Mestre Pascoal, o conceito
de trabalho que Llanca vai adquirindo e pondo em prática é o de trabalho como ofício, o que
implica conhecimento, método, criatividade e, junto com isso, permite um desdobrar-se do
indivíduo no âmbito do público. Será em defesa destas ideias que o personagem definirá o
tipo de luta política que lhe interessa:
Me interessa a luta nos grêmios, sem ânimo de mudar a sociedade, como querem os anarcos,
nem de substituir os patrões na direção da coisa, como querem os socialistas e comunistas (...)
Jurei que nunca mais seria obreiro. Nada de ser contratista ou patrão. Deixaria de ser o que eu
gosto (ROJAS, 1974, p. 953, tradução nossa).
Romilio defende a luta gremial, porque ela se apresenta não como busca de poder, mas
como uma organização de trabalhadores cuja finalidade primeira é o cuidado com o ofício.
Para Romilio, o mais importante é realizar-se como artesão. Buscar poder, como ele observa
que acontece com alguns sindicalistas, ou com aqueles que aspiram a ser “patrões” ou
“contratistas”, seria deixar de fazer o que para ele é o mais importante: trabalhar, praticar um
ofício que materializa esse conceito geral da vida como desdobramento. Romilio quer
realizar-se e essa realização se opõe ao jogo de ser controlado e controlar. Controlar é exercer
a vontade, não é desdobramento de si porque o sujeito não é pura vontade, nem pura vocação
de controle. Ser controlado tampouco é desdobramento porque, neste caso, sempre haverá um
que se submete à vontade de outro:
A verdade é que nunca pude entender como um homem pode ter tanta vontade e tanta aspiração de
mandar, de ter o pau na mão, de ser o chefe. Também não entendo por que os mais ambiciosos de poder
são os que menos valem, enquanto que os que mais valem não se interessam por mandar 306.
306
Ibid., p. 953.
189
Quando falei das minhas ideias, me olhou como se estivesse bêbado, e quando tentei lhe explicar por
que aconteciam certos fatos, as greves, as revoluções, por exemplo, pegou no sono. “Não me fale dessas
besteiras. Não entendo nada. Me diga melhor o que vai fazer quando nos mandarem embora daqui” 307.
No caso de Llanca, a sua queda produz-se por motivos diversos que abrangem a
totalidade da sua pessoa. No entanto, a sua fraqueza no plano amoroso será como que a porta
de acesso para que todos os planos da sua existência colapsem, precipitando a sua
desintegração. Estes são: o plano do trabalho, o plano da política e, por último, o próprio
plano amoroso, a partir do qual a queda se inicia. De fato, o percurso total de Romilio pode
ser compreendido como o trânsito de um estado de organicidade, em que ele desdobra todas
as suas capacidades no que se refere a estes três níveis, a um segundo estado que podemos
caracterizar como de embrutecimento, alienação, humilhação e artificialidade que consiste,
precisamente, na frustração dos ideais que os articulavam.
307
Ibid., p. 1002.
190
Por último, os ideais no plano amoroso se frustram na história de Romilio com Rosa
que, como foi dito, acaba no homicídio. Rosa obriga-o a entrar na dinâmica da exploração,
separando as dimensões afetivas e sexuais (“Não fazia ideia do que era carinho nem do que
era ternura” 309), o que o leva – usando uma metáfora vinculada ao trabalho industrial que está
exercendo – a se representar a si mesmo como uma máquina embrutecida: “Tinha a mania de
308
Este processo também foi descrito por Rojas no seu ensaio “Da criação no trabalho”: “O obreiro industrial
não é um obreiro no sentido clássico da palavra, ao contrário, é a sua negação. A economia capitalista acabou
com o obreiro, com o artesão que não pôde conservar a sua independência e foi absorvido pela indústria (...) Esta
absorção determinou o fracionamento do trabalho do obreiro e, ao fracioná-lo, matou automaticamente a parte de
criação que o trabalhador punha no seu labor. Daí em diante, este labor de criação foi exercido por um só
indivíduo, o técnico, que desenha os modelos e que determina a forma como as máquinas, fracionadamente, o
realizarão. Nesta realização, o obreiro não é mais do que uma peça, humana, da máquina (...). Pode-se dizer que
a criação no trabalho não desapareceu, é verdade, mas não se pode dizer que a criação não desapareceu do
trabalho do obreiro” (ROJAS, 1938, p. 160-161, tradução nossa).
309
Ibid., 1117.
191
fazer amor uma e outra vez e não havia nada que a detivesse. O ser humano é uma máquina,
como dizem alguns, mas não uma máquina que possa fazer a mesma coisa; tem que fazer
várias senão se embrutece” (ROJAS, 1974, p. 1145). Este embrutecimento se produz em
Romílio não só pela demanda sexual de Rosa, mas também pela experiência de estar ele
mesmo afundado numa intimidade que não lhe permite um desdobramento psicológico, já que
não pode fazer sua mulher participar na sua vida pública. Diante desta relação empobrecida
que ela oferece a Romilio – comparável à exploração que está padecendo o personagem nas
salitreiras – a experiência amorosa leva o homem numa direção totalmente oposta à realização
de si. Leva-o, como disse ele mesmo, ao embrutecimento, ao apequenamento e, finalmente, à
humilhação, que o crime final representa. Neste marco, Llanca aspirará sem sucesso a
dominar Rosa, não para explorá-la, mas para desdobrar os atributos que são próprios da
masculinidade, quer dizer, para poder cumprir com a sua própria natureza e, portanto, com a
sua liberdade originária: “Sonhava, sonhou às vezes, com noites assim, intermináveis. Nessas
noites, no entanto, o ginete era eu. Na noite passada não fui mais do que o gineteado. Bom,
bem poderia acontecer que fosse eu quem depois passasse a mandar o barco, que conseguisse
enfim ser o dominante” 310.
O ponto fraco de Larraín é a sua falta de disposição para o trabalho, carência que
parece ser substituída pelo álcool, causa principal não só da sua queda, mas também dos
outros dois “machos” da família: o seu pai e o seu irmão Frederico. Fernando (e todos os
homens que o rodeiam) não valorizam o trabalho como o próprio Llanca, que organiza toda a
sua vida em torno do desejo de desdobrar o seu ofício como carpinteiro. Isto fica em
evidência na sua opção (estratégica) de trabalhar como boy no banco, mas sobretudo nas
lembranças intercaladas que o autor integra dentro do discurso de Fernando: “O que houve,
Fernando, de novo você pegou no sono. ‘Poxa, de novo a senhora. Nem dormir a gente pode’.
‘Mas, filhinho, você só tem vinte minutos para chegar no banco. O que vai dizer o tio Chalo’”
311
.
310
Ibid., p. 991.
311
Ibid., p. 955.
192
cuja ausência e vazio parece ser substituído pela bebida, elemento corrosivo que os leva à
decadência.
Dentro deste processo, a mulher de elite ocupa um lugar capital. De fato, as poucas
referências aos personagens femininos que aparecem no livro estão associadas ao controle que
elas tem da relação dos seus homens com o álcool. Tanto a mãe de Fernando quanto Clara, a
sua mulher, apresentam-se, cada uma a sua maneira, como mulheres totalmente
condescendentes com o alcoolismo dos seus maridos, mostrando uma total incapacidade de
cooperar para sua inserção social. Diz Fernando sobre Clara: “Não me fez censura nenhuma.
Me recebeu mais suave e mais tenra do que nunca” (ROJAS, 1974, p. 987, tradução nossa). Tal
atitude contrasta com a que mantém as mulheres populares com que Fernando se relaciona.
Trata-se de mulheres que sabem pôr um freio nos seus homens, pois, vulneráveis socialmente,
não podem permitir que os seus maridos caiam nesse vício que enfraquece a vontade de
trabalho, o único suporte de que dispõem. Nas últimas cenas do romance, Otilia aparece
expressamente protegendo Fernando do álcool:
A Otília conseguiu sei lá onde um frango mais ou menos magrelo e eles prepararam um peixe. Dom
Vítor chegou com uma boa garrafa de vinho. Fiquei olhando-a, e quando a destamparam, e mestre fez
um gesto de querer encher as taças, eu peguei a minha. ‘Não, você não’, disse inesperadamente Otília,
afastando minha taça da garrafa. ‘Por que não?’, perguntei impressionado. Era a primeira vez que
alguém me proibia uma taça de vinho” 312
312
Ibid., p. 1015-1016.
193
miraculoso dos poucos capitais com que ele conta313, transformando-se no único personagem
que verdadeiramente empreende dentro do romance. E, o que é mais importante, ainda tem a
“honra” de se apresentar diante de Fernando Larraín para lhe confessar o seu crime. De “roto”
e de “assassino”, Romílio transforma-se no “cavalheiro” do romance.
É nesse sentido que a relação que se estabelece entre Fernando e Romilio é irônica.
Romilio, o verdadeiro cavalheiro da história, aproxima-se de Fernando porque vê nele uma
autoridade que o poderá julgar a partir da sua privilegiada e respeitável posição. Pelo
contrário, esse “cavalheiro” é um “roto”, que o julga de uma posição que realmente não
possui, mas apelando aos seus códigos: os códigos da honra e do capital social.
313
Um capital cultural mínimo – “eu sabia ler” (ROJAS, 1974, p. 947, tradução nossa) – que ele vai fazendo
crescer com o aprendizado de um ofício.
194
Marginaliza-o da marginalidade, “relega-o”, quer dizer, aplica a Llanca a sanção que a classe
alta aplicou a ele próprio. Em lugar de resguardar o mérito de Romílio, resguarda a sua honra,
quer dizer, protege-o de cometer o que falsamente reconhece como o seu próprio erro: falhar
na honra e não no mérito. Essa decisão encontra o seu contrário na atitude liberadora que o
povo – representado por Otilia – tem com Larraín. Dos dois únicos requisitos necessários para
ser acolhido por esse povo (a liberdade e a vida), Otilia preserva de Fernando não só o
primeiro, mas também o segundo: a vida, que Fernando põe em risco durante as suas noites de
farra. Salvando-o da morte, cumpre com todo o necessário para ser incluído.
Para terminar, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre o modo como estas
contradições se imprimem na forma de Punta de rieles. Como dissemos no início deste
trabalho, o romance dialoga com um fato específico deste período histórico, relacionado com
a reformulação das relações entre as diferentes classes sociais que está em curso,
especificamente durante a década de trinta. No entanto, ao mesmo tempo, ela também dá
conta da permanência das relações de classe tradicionais, fundamentalmente nas relações
entre a elite e o proletariado. No livro, entram em confronto, assim, duas tendências, uma
“revolucionária” e outra “conservadora”, as quais se refletem no uso do romance da corrente
de consciência que Manuel Rojas faz.
No entanto, esta mesma estruturação narrativa que adquire a obra de Rojas pode ser
compreendida de um ponto de vista totalmente oposto. O solilóquio, além de “poder”, implica
vulnerabilidade, diante do discurso silencioso – do monólogo interior – de Fernando Larraín,
que, ao esconder os conteúdos da sua mente, preserva a autoridade que tem diante do
proletário. Em outras palavras, Llanca se expõe diante de Larraín, mas não Larraín diante de
Llanca, que, por isso, continua reconhecendo o “relegado” como uma autoridade,
195
perpetuando, sem querer, as relações tradicionais. Nesse sentido, a figura do burguês parece
reclamar um reposicionamento, uma recuperação do seu papel de doador de sentido à história,
o qual se vê ferozmente ilustrado na decisão de sugerir a Llanca entregar-se à lei, apelando,
inconscientemente, à lei da honra e do capital social.
Na leitura que iremos propor, queremos apresentar este romance como uma
perspectivação feminina do Martín Rivas, realizada mediante a narração de uma nova faceta
do burguês em formação: a da iniciação sexual. Nele, os personagens, os espaços e o registro
196
O processo desgarrava-me até me alhear, e minha timidez acentuava-se, acossada por tanta
inquietação inconfessável e tanto anseio envergonhante, tremendo no fundo se era tocado por
qualquer detalhe do qual partiam, subitamente, possibilidades e fatos que esperava e não
chegavam a se produzir. Mas às vezes também enlanguescia, e isso quando uma secreta
emoção vinda de não se sabe qual ancestral e sem objetivo concreto deslizava-se de um curioso
agrado físico para a minha indolência mental 315.
O romance consta de duas partes. A primeira, que vai do capítulo 1 ao 5, começa com
o aniversário de Perces e termina no dia em que o seu amigo Cristas se encontra com Violeta,
314
Ibid., p. 15.
315
Ibid., p. 15.
197
a tia com que ele mesmo está se envolvendo. Esta primeira parte está atravessada pela
contraposição entre o racional e o pulsional, e descreve o progressivo avanço do segundo
destes domínios sobre o primeiro. Narra-se, em outras palavras, o avanço do primitivo, do
sexual, do ritual e do ancestral sobre o iluminista-moderno-civilizado-racional.
Repetia-me que eu era um sujeito cabal e superior, que tinha lido imensamente e que sustentava a única
ideia política digna e inteligente: o socialismo libertário. Gostava da denominação, tinha força, e ao
pronunciá-la sentia-me como parte da sua sonoridade viril 316.
Diante dessa imagem, no entanto, o eu-narrador interferirá com outra perspectiva que
funcionará como uma ironia dessa visão “elevada” da identidade e desse sujeito autônomo,
porta-voz de um ideal de civilização que culmina de maneira simplória com a integração na
sociedade adulta. Como aparece no final do parágrafo supracitado, quem fala nos mostrará
que a base dessa autoimagem excessivamente compacta é, na realidade, produto de algo
inacabado: a formação sexual e a afirmação dessa virilidade que será o centro do relato.
Assim, por oposição a esse sujeito “redondo”, claro e resolvido, civilizado e publicamente
ativo, o narrador trará de imediato o terreno do primitivo e do pré-claro, “o de baixo” e “o de
dentro”, que ele mesmo simboliza através da imagem do quarto-caverna, eixo espacial do
relato317, descrito logo nas primeiras páginas do livro. Ao mesmo tempo, o narrador
316
Ibid., p. 16.
317
“Poucas quadras faltavam para chegar em casa e, dentro dela, na minha caverna. Ali vivia, ali odiava e
almejava amar, coitado, e me consumia em terríveis fogos cuja escassa duração, é verdade, me salvavam. Tinha
o quarto uma janela, bastante ampla, no mesmo nível da calçada, e dela eu via só as extremidades inferiores dos
transeuntes, coisa que às vezes me divertia, mas que, na maioria das ocasiões, me era totalmente indiferente e até
mesmo evitava fechando as persianas” (Ibid., p. 16).
198
O narrador traz dois sonhos que funcionam como uma “transposição onírica”, em que
os acontecimentos do quotidiano são elevados a uma significação mais profunda, próxima do
mítico e do ancestral. O primeiro deles é um sonho de comunhão e de convergência humana,
em que aparece uma imagem certamente tribal, simbolizada por uma sociedade de pessoas
avançando, unidas, na mesma direção. O personagem vive esse sonho como uma experiência
de repouso e de tranquilidade, apesar de ele mesmo aparecer como alguém que não consegue
se inserir dentro desse movimento de coesão e convergência espiritual. Nessas imagens há,
segundo pensamos, uma representação do processo formativo de Perces, em que a lógica
erótica das inclinações sexuais, que acentuam a individualidade do personagem, sobrepõe-se à
lógica político-religiosa, que o situaria como parte de um conjunto humano.
O segundo desses sonhos é uma premonição em que se encena o mito de Caim e Abel.
Nesta ocasião o processo de “transfiguração” busca retratar em linguagem onírica, e também
bíblica, a iminência do incesto que já está se anunciando na cena diurna de Perces com
Violeta (a sua tia) durante o funeral da parenta mais velha. Caim e Abel, no caso, aparecem
representando a rivalidade (ainda não revelada no nível da anedota) entre Perces e Cristas, o
qual também deseja secretamente Violeta. As imagens do sonho transformam, deste modo, o
laço de amizade num laço sanguíneo (de irmandade) e intensificam, por sua vez, a relação
parental que Perces já tem com Violeta, convertendo-a, simbolicamente, na sua mãe. Estamos,
assim, diante do registro simbólico do amor incestuoso que, para reforçar o tabu, transforma
os laços familiares em não familiares. Perces encarna primeiro Caim (o algoz), mas logo
passa a ser Abel (a vítima), representando-se uma premonição dos fatos que acontecerão no
199
final desta primeira parte (o encontro entre Cristas e Violeta) e na segunda (a consumação
sexual de Perces com a tia).
Este registro do incestuoso que está sendo elaborado inconscientemente por Perces
determina, por sua vez, a tipologia de personagens que o romance utiliza. Por um lado está o
mundo dos velhos: Violeta e as três tias que vivem com Perces, uma das quais morre no dia
do seu aniversário. Por outro, está o mundo dos jovens, que são os amigos de Perces: Cristas e
Ulisses, seu primo. A presença dos pais (Patrício e Florência) é quase nula. Mostra-se, assim,
um universo polarizado, conformado por uma metade feminina que funciona em bloco (todas
elas com nomes de flores) e que representa o “império do sangue”; e outra metade jovem que
parece estar restrita ao domínio e à regulamentação desse império sanguíneo representado
pelo conjunto de anciãs. O universo dos personagens masculinos jovens em processo de
despertar sexual encontra-se, assim, emoldurado por uma ancestralidade feminina que
representa o tabu, que deve ser respeitado, mas que, ao mesmo tempo, eles querem
transgredir.
Mas, eis que involuntariamente busquei os olhos de tia Violeta como se fosse encontrar neles algum
reconhecimento e, não com pouco assombro, os encontrei... aveludados como a pele das pétalas, me
pareceu que tinham uma inocência que lindava com o salaz. Me senti um tanto contrariado, mas bateu a
curiosidade, estranhando grandemente não ter reparado antes nela. Sempre me pareceram as quatro um
pouco como as quatro beatas medievais, calcada uma na outra, e agora, de repente, se individualizava
(GEEL, 1956, p. 27, tradução nossa).
filosófica” que definia a relação entre os amigos é destruída pela lógica erótica, a qual quebra
o entendimento mútuo em que se baseava a sua amizade e antepõe a rivalidade intelectual e
sexual entre ambos, elemento que entorpece e, finalmente, acaba com o diálogo.
Este caminho da síntese vai se perfilando aos poucos, mediante um processo composto
por crises e transformações. É o que se compreende dos dois episódios centrais da primeira
parte do romance: o episódio do cemitério, em que Perces descobre a própria alma; e o
episódio do carro com os homens adultos, em que ele se encontra com a força da sua
corporeidade. O primeiro deles é uma experiência intensa e espiritual, em que o protagonista
experimenta vivamente a sensação do suprassensível e reconhece aquilo que está para além do
fisiológico: o intangível e misterioso que há em si mesmo. A cena concentra-se na visão de
um pássaro que o mira de maneira penetrante nos olhos, trazendo à consciência do
adolescente a noção da força daquilo que não se reduz à mera experiência sensorial:
201
Então me olhou com os seus olhos redondos de topázio e uma irremissível sensação do desconhecido,
para onde eu transmigraria. Entrou como uma sombra até a minha consciência desolada (…) quando
voltei a unir-me com os outros, um deles me olhou interrogante e eu baixei as pálpebras sobre a minha
própria alma (GEEL, 1956, p. 32, tradução nossa).
Uma situação semelhante tinha acontecido no capítulo anterior, mas com o olhar
indecifrável de um cachorro. Nesse caso, no entanto, a função do olhar animal cumpriu a
finalidade de ridiculizar o ilusório antropocentrismo de Perces.
O renascer era lento, lentíssimo, e ia encontrando nessa minha nova maneira física, desconhecida, uma
certa faculdade mental que antes não possuía: por exemplo, deter-me nas coisas e nos fatos, sem
pretender enlaçá-los imediatamente com as coisas e os fatos seguintes; eles eram em si, um algo cabal
que podia advir, ser si mesmo, e sumir 318.
A primeira parte termina com o encontro entre Cristas e tia Violeta, acontecimento que
Perces lê como uma afronta a sua masculinidade. Inicia-se, assim, a segunda parte do livro, a
qual começa com a aparição da prima Malva, com quem Perces dará continuidade ao registro
incestuoso do seu despertar sexual. Como o seu nome sugere, Malva (malvada) aparece como
um novo modelo feminino dentro do livro, associado ao obscuro, ao misterioso e ao doloroso.
E, diferentemente das outras mulheres do romance que se aproximam de uma sacralidade
318
Ibid., p. 39.
202
católica, a sua personalidade ficará mais perto de uma sacralidade profana. Malva demonstra
ter um caráter e um mistério que vem de si mesma, e isso a distingue de Violeta, figura que
parece estar, na maior parte do tempo, associada às anciãs da casa. É uma mulher de espírito
refinado e trabalhado que não age espontaneamente, traço que a Perces dá a impressão de ter
raízes ancestrais. Nela, portanto, parece conjugar-se de maneira intensa o individual e o
supraindividual:
Tinha um modo de falar devagar, quase dificultoso, como se precisasse de palavras muito exatas, que
não lembrava de imediato. A impressão dominante e primeira que ela transmitia era a de um
refinamento extremo, talvez criado por si mesma, mas que, com certeza, vinha também das velhas
gerações, pois havia nele a força do concreto (GEEL, 1956, p. 73).
319
Ibid., p. 86.
320
Mais tarde se fará alusão ao Édipo através da imagem do pé ferido, o qual aparece como defeito tanto externo
quanto interno: “Num deles, situado num prédio quase destruído, meti o pé num buraco do tablado, torcendo
rudemente o meu tornozelo. Maldisse o meu descuido e a desídia do comerciante e tive que continuar o meu
perambular coxeando um bom trecho e cheio de sentimentos envenenados. Burláva-me acidamente do meu
ridículo passeio que qualificava de convencional, acusando-me de esnobe. Depois tive de aceitar que também
não estaria bem em lugar nenhum, porque certa coisa coxeava também dentro do meu foro” (Ibid., p. 92).
203
E então, a rua acabou sendo uma daquelas fechadas como fundo de saco e só existiam nela quatro ou
cinco portas míseras e outras tantas janelinhas tenebrosas, protegidas por grades, o todo pessimamente
iluminado por um farol desbotado e poeirento. As religiosas tinham sumido. É que não existiram nunca?
No ar quieto não vibrava toque algum” (GEEL, 1956, p. 40, tradução nossa).
Ah, como deixei formar-se esse enorme vazio, essa ausência? Parecia-me uma deserção indigna, um
abandono, uma descortesia. Os acontecimentos que me tinham mantido afastado emagreceram-se,
apareciam inofensivos, de uma finita futilidade. E não compreendia como puderam confinar-me tão
facilmente no mundo da covardia e do desalento. Acelerava o passo, enchia o tórax e respirava fundo,
reconhecendo-me vencedor do meu espírito e dominador de algo que, da mulher, viria até mim. O sol
declinante mostrava-se gigantesco, como se estivesse se aproximando do meu próprio universo 321.
321
Ibid., p. 106.
204
IV. CONCLUSÕES
1.
322
Como vimos, a revolução, particularmente neste romance, parece ser meramente formal, expressando uma
contradição que não é nova dentro do modernismo: “Dessa contradição, inconformismo na forma,
conservadorismo no conteúdo, vieram todas as limitações e contradições do modernismo; daí veio mesmo a
castração do poder criador dos seus artistas” (AMADO Apud. MARTINS, MCMLXVII, p. 128).
323
É nesses mesmos termos que Antonio Candido define o espírito de Oswald de Andrade: “Oswald
propuganava uma atitude brasileira de devoração ritual dos valores europeus, a fim de superar a civilização
patriarcal e capitalista, com as suas normas rígidas no plano social, e os seus recalques impostos no plano
psicológico” (CANDIDO, 1967, p. 16-17)
205
Por último, Clarice Lispector propõe uma superação da cultura patriarcal de um ponto
de vista epistemológico, mediante uma literatura feminina que busca romper com o
comportamento da vida social organizada em torno do homem, mas principalmente com os
modos de pensar que essa organização modela para o ser humano. A sua solução será uma
proposta de caráter instrospectivo, que se oferece como uma saída às contradições intrínsecas
324
“O esteticismo define a orientação modernista até por volta de 1926, quando as ondas do pensamento político
começam a adquirir consistência e importância; entre 1928 e 1939, o político predomina nitidamente sobre o
estético; com a guerra a situação perdura mais ou menos na mesma relação de forças, mas o frenesi propriamente
político cede sutilmente uma parte dos seus direitos ao espírito crítico e ao ensaísmo; pela porta da crítica
literária, o estético penetra de novo no mundo literário” (MARTINS, MCMLXVII, p. 128).
206
à civilização patriarcal vista como um todo e não como uma organização histórica concreta,
como acontece com o romance social de José Lins do Rego.
Segundo Simmel, a modernização traz consigo uma cara regressiva indissoluvelmente vinculada ao
progresso. Essa foi a causa do fato de que a cultura moderna fosse uma cultura cindida, que se
caracterizou por um desajuste entre os sucessos materiais e técnico-científicos e os insucessos no campo
do espírito. Essa tese do desajuste entre o corpo e a alma da sociedade foi frequente na época, e se
encontra também, entre outros, em Nietszche, Husserl e Bergson (SUBERCASEAUX, 1988, p. 157,
tradução nossa).
No caso de Pablo de Rokha, o que se busca é a descoberta de uma escrita nova, capaz
de se ajustar à condição irredutível de um igualmente novo sujeito em formação: rural e
urbano, perifério e central, cosmopolita e local etc. A noção de transformação atualiza-se na
própria natureza dessa escrita, que pretende ser representativa, mas que ao mesmo tempo
resiste a se articular como um discurso de identidade. O autor propõe, assim, uma revolução
simbólica, que se daria na descoberta de uma poética que oferece para esse novo sujeito uma
207
figura de identidade em movimento, sintetizada pela imagem do mito de Sísifo. Esta poética é
um constante desafio e uma constante negação dos universos simbólicos entre os quais esse
novo sujeito se movimenta, instalando, assim, o princípio fundamental da escrita como ação
épica.
Manuel Rojas talvez seja o escritor mais crítico e mais consciente dos efeitos
corrosivos da modernidade, centrando a sua preocupação sobretudo em Romílio Llanca, o
personagem subalterno de Punta de rieles. Contrário à proletarização do baixo-povo, o que
ele parece propor é um anarquismo gremialista325, em que a libertação dessa classe social se
dá através do trabalho artesanal e da luta política orientada à proteção do ofício. Com esse
fim, o seu romance ilustra os efeitos alienantes que a inserção na indústria tem sobre o seu
personagem, a qual desintegra todos os seus ideais políticos, amorosos e vinculados ao
trabalho. A sua proposta é, assim, a manutenção de organizações pré-modernas, mas que têm
um pé na vida urbana, pois as sociedades de subsistência de onde provêm sujeitos como
Llanca também lhe parecem brutalizantes.
Carolina Geel, por último, propõe o que nos parece uma “feminilização do homem”. A
ideia de transformação que ela sugere corre pela via da liberação dos aspectos privados do
personagem masculino, mediante a aceitação dos seus traços impulsivos, pulsionais e pré-
racionais, os quais criam mais continuidades do que rupturas entre homem e mulher. Percebe-
se, então, um espírito de revolta que tende a questionar a legitimidade das funções públicas do
homem, exigindo dele uma autoanálise e uma revisão da sua identidade nos espaços que estão
para além do seu privilegiado lugar social.
2.
A tendência crítica destes romances expressar-se-á na dianoia dos textos, quer dizer,
no seu aspecto temático-discursivo. A função educativa da literatura temática cômica,
325
Apesar do romance estar ambientado num período posterior (1929), a assimilação destas ideias
provavelmente aconteceu durante os anos que constituem o período formativo de Rojas: “ (...) este é também um
período em que o anarquismo, depois do apagão que experimentara após o massacre de Santa María de Iquique,
retorna: ‘Por volta de 1914 e 1915 os libertários tinham aumentado consideravelmente a sua influência no
movimento obreiro e popular. A atividade ácrata era muito visível em algumas cidades, especialmente em
grêmios como os dos pedreiros, estucadores, sapateiros, aparadoras, padeiros, carpinteiros e motoristas de bonde
de Santiago e nos metalúrgicos, estucadores, pedreiros, pintores, curtidores, sapateiros, aparadores e portuários
de Valparaíso e Viña del Mar’ (Los anarquistas, 262)” (ROJO, 2009, p. 22, tradução nossa).
208
formalizada por meio de um herói que tende a estar integrado na sociedade e de um poeta que
atua como porta-voz da mesma, dissolve-se com o avançar da primeira metade do século tanto
no Chile, quanto no Brasil. Instala-se, portanto, de forma predominante, uma literatura
temática trágica, que tende a isolar da sociedade tanto o herói quanto o narrador, e cujo
temperamento é claramente de protesto, queixa, ridículo e solidão.
Dentre os autores referidos, o único que ainda conserva traços da literatura cômica
neste sentido é Alberto Blest Gana. O seu personagem integra-se sem grandes conflitos dentro
da burguesia santiaguina, servindo a seu narrador como instrumento de reforma dessa classe,
mas sem deixar de representá-la. O viés didático nele presente atualiza-se mediante uma
literatura que tende a expressar os sintomas de um determinado círculo social (a elite de
meados do século XIX), com uma finalidade ideológico-política ulterior (denunciar o pacto
liberal-conservador que se está forjando na década seguinte). Porém, tanto o seu narrador
quanto o seu personagem reconhecerão um fundo de verdade nessa estrutura social (por
exemplo, na ordem classista), e isso manterá um fundo de bom humor na relação entre os
quatros elementos éticos da narrativa: o herói, a sociedade do herói, o narrador e o leitor.
Com o início das repúblicas oligárquicas, esta literatura encontra seu fim. O teor
didático destrói-se: nem o herói, nem o narrador atuam como porta-vozes da sociedade. Os
diferentes setores sociais que seus protagonistas e narradores representam resistem a
identificar-se com a ordem oligárquica, seja com os seus fundamentos tradicionais (no caso
do Brasil), seja com os seus projetos de futuro (como acontece no Chile). Para eles, todos os
males diagnosticados serão causados por essa ordem social: a destruição dos germes criativos
juvenis (Oswald de Andrade), a perda da organicidade mediante a irrupção de um avasalador
tempo novo (Pedro Prado), o drama psíquico-simbólico que Pablo de Rokha aproveita
positivamente, a neurose (Graciliano Ramos), a miséria urbana e a perpetuação da escravidão
(Lins do Rego), a pobreza existencial e intelectual (Clarice Lispector), a hipocrisia masculina
(Carolina Geel) e a alienção das classes trabalhadoras (Manuel Rojas).
3.
4.
Estas propostas de formação serão articuladas por diferentes tipos de sujeitos e
expressarão, portanto, o progressivo plurilinguismo social que se está desenvolvendo na
época. Em geral, os romances que conseguem descobrir e promover algum de tipo de
formação serão aqueles em que o personagem simboliza a região do autor, e em que as
relações entre narrador e herói são equivalentes às de um “eu” com outro “eu”, quer dizer,
quando existe alguma continuidade entre o eu-biográfico, o eu-narrador e o eu-narrado. Nesse
sentido, apesar da formação dar-se fora das relações internas entre o personagem e a
sociedade, ela sim dependerá da legitimade que o personagem tenha no espaço social, a qual
será representada pela sua projeção na figura do autor.
Assim, mesmo que em diferentes graus, existe formação em quase todos os tipos de
sujeitos representados pelos romances: no artista modernista de elite (Andrade), no poeta que
representa o mundo rural latino-americano (Prado), no escritor vasguardista de classe média
(De Rokha), no filho de pequeno-comerciante em decadência (Ramos) e na mulher
(Lispector). Porém, não se pode dizer o mesmo dos romances que representam as classes
trabalhadoras, cuja falta de consolidação histórica ainda não parece criar as condições para
uma apropriação cabal de todas as instâncias do discurso literário.
5.
6.
Para terminar, gostaríamos de, brevemente, contrastar os modos como se dá cada tipo
de Bildungsroman no Chile e no Brasil, pois isso pode oferecer luzes interessantes para a
compreensão dos campos culturais de ambos os países.
BIBLIOGRAFIA
Literatura brasileira
Bibliografia primária
- ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: coedição
Livraria J. Olympio, Editora Civilização Brasileira, Editora Três, 1973.
- LINS DO REGO, José. O moleque Ricardo. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.
- LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. São Paulo: Círculo do livro, 1980.
- POMPÉIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Círculo do Livro. Edição cotejada com a terceira
edição definitiva, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro (sem data de publicação).
- RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: O Globo, 2003.
---------------------- Infância. Rio de Janeiro-São Paulo, Editora Record, (não aparece
ano de edição).
Bibliografia secundária
Crítica e livros auxiliares
Sobre Clarice Lispector
- CANDIDO, Antonio. “Uma tentativa de renovação”, em Brigada Ligeira e outros
escritos. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
- CAMPOS, HAROLDO DE. “Introdução à escritura de Clarice Lispector”, em
Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo:
Perspectiva, 1992.
- COSTA LIMA, Luiz. “A mística ao revés de Clarice Lispector”, em Por quê literatura.
Petrópolis (RJ), Vozes, 1969.
- MELO E SOUZA, RONALDES DE. “A poética dionisíaca de Clarice Lispector” em Revista
Tempo Brasileiro, Núm. 130-131 (1997), pp. 123-142.
- NUNES, BENEDITO. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São
Paulo: Editora Ática, 1989.
- SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
- MISKOLCI, Figueiredo. “O drama público de Raúl Pompéia”, em Rev. Bras. Ci. Soc.
Vol.26, no. 75, São Paulo, 2011.
Bibliografia primária
- BLEST GANA, Alberto. Martín Rivas v. I e II. Santiago de Chile: Biblioteca Popular
Nascimiento, 1975.
- DE ROKHA, Pablo. Escritura de Raimundo Contreras. Santiago de Chile, Orbe, 1966.
Bibliografía secundária
Sobre Pablo de Rokha
- ACEVEDO, Pablo. “El embrión cósmico de Pablo de Rokha” en Revista Anales de
Literatura, Núm. 34, (2005), pp. 159-178.
- SEPÚLVEDA Llanos, Fidel. “Pablo de Rokha, una forma poética” en Aisthesis Núm. 5
(1970), pp. 147-171.
- BALART Carmona, Carmen. Prólogo: “La obra poética de Pedro Prado” en: Prado,
Pedro. Obras completas, vol. II, Poesía. Santiago de Chile: Editorial Origo, 2010.
217
- GUERRA, Lucía. “La aventura del héroe como representación de la visión de mundo en
Alcino de Pedro Prado” en Hispania, Vol. 66, Núm. 1 (marzo 1983), pp. 32-39.
- MAINO, Valeria. “Vida y Obra. Pedro Prado (1886-1952)”, en: Prado, Pedro. Obras
completas, vol. IV, Vida y obra. Santiago de Chile: Editorial Origo, 2010.
- ROJAS, Manuel. Travesía, Santiago de Chile: Editorial Nascimento, 1973, pp. 133-
134.
- -------------------- El delincuente. Santiago de Chile, Zig-Zag, 1966.
- -------------------- De la poesía a la revolución. Santiago: Ercilla, 1938.
- -------------------- Antología autobiográfica. Santiago de Chile: LOM, 1962.
- PROMIS, José. La novela chilena del último siglo. Editorial La Noria, Santiago de
Chile, 1933.
- RAMÓN, Armando de. História de Chile. Desde la invasión incaica hasta nuestros
días. Santiago: Catalonia, 2003.
---------------------------- Santiago de Chile. Historia de una sociedad urbana. Santiago:
Catalonia, 2007.
- DILTHEY, Wilhelm. “La novela Hiperión”, en Vida y poesía, México: Fondo de cultura
económica, 1945.
- HIRSCH, Marianne. “The novel of formation as genre” em Genre, XII, 3 (1979), 293-
311.
- LUKÁCS, George. A teoria do romance, São Paulo: Duas cidades; Editora 34 Ltda,
2000.
- ROJO, Grínor. “Kant, Schiller, Rodó e la educación estética del hombre”, en Revista
Taller de Letras, Núm. 33 (2003) pp. 7-26.
- SCHILLER, Friedrich. Kallias ou sobre a beleza, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002.
220
- CHATMAN, Seymour. Story and discourse. New York: Cornell University Press, 1978.
- FRYE, Northrop. Anatomía de la crítica. Traducción Edison Simons. Venezuela:
Monte Ávila Editores, 1991.
Outros
- DE OLIVEIRA, JELSON R. “Nietzsche, o humano versus o humanismo” em A natureza
humana em movimento. Ensaios de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2012.